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Resistência à aculturação

no Ocidente
Hispânico: Defesa do
território e
identidade
linguística.
AMÍLCAR GUERRA

Son alrededor de treinte las tribus (ethne) que se reparten el territorio entre el 1. Enquadramento Dado a natureza e a quantidade da
Tago y los ártabros, pero apesar de ser próspera la región por sus frutos, informação (ou melhor, a falta dela),

O
pastos y abundancia de oro, plata y metales análogos, la maioría de ellos que designamos como pode perguntar-se que condições se
romanização é um processo de exigem para colocar a imaginação ao
pasaban la vida apartados de la tierra, en piraterías y en continua guerra
aculturação complexo e serviço, ou se não é preferível esperar
entre si y contra sus vecinos de la otra orilla del Tago, hasta que los prolongado no tempo, cujos contornos, algum tempo até que a massa
pacificaron los romanos, haciéndolos bajar al llano y convertiendo en aldeas mesmo os mais gerais, se não podem documental possa aumentar em
(komas) la maior parte de sus cidades (poleis), aunque también asociándose definir facilmente. quantidade e qualidade. Desde logo, o
a algunas como colonos en mejores condiciones. Fueron los montañeses los que me parece desejável é que esta,
Há algum tempo, tratando desta ainda que reduzida, seja submetida a
que originaron esta anarquía, como es natural; pues al habitar una tierra
questão e de uma forma genérica, K. uma análise mais apurada. Apesar
mísera, y tener además poca, estaban ansiosos de lo ajeno. Los demás, al Hopkins (1996: 15-22) chamava a destas limitações, é importante que se
tener que defenderse, quedaran por fuerza en la situación de no poder atenção para as dificuldades desta exerça sobre ela uma continuada acção
dedicarse a sus proprias tareas, de modo que también ellos guerreaban en vez tarefa. Ao mesmo tempo sublinhava a exegética. Nela se insere este
de cultivar la tierra. Y sucedía que la tierra, descuidada, quedaba estéril de necessidade de recorrer contributo.
150 simultaneamente à imaginação e a um 151
sus bienes naturales y era habitada por bandidos.
conhecimento circunstanciado da Esta reflexão assume, por sugestão da
STR 3, 3, 5 (trad. M. J. Meana Cubero) antiguidade como condição para a sua linha editoral da revista, um ponto de
inteligibilidade e, em última análise, vista menos habitual. Em vez de se
como forma de utilizar o discurso sobre apontar para a análise do processo de
esse passado como matéria útil para o assimilação dos valores mais
mundo actual (Idem: 18). caracteristicamente romanos pelas

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populações locais, tem-se especialmente optei por um tratamento mais restrito, ignotas. Para si e os seus leitores, a historiografia posterior – Diodoro,
em vista determinar os factores que que tenha essencialmente em conta a maioria dos povos do mundo romano, Estrabão –, em particular em alguns
configuram uma resistência a esse realidade do Ocidente Peninsular, o que em particular os dos confins do mundo aspectos da caracterização dos povos
fenómeno. Ao fim e ao cabo, pretende-se quer dizer, na prática, o território que conhecido, corresponde a realidades que hispânicos. Acima de tudo, conhece-se a
uma caracterização dos povos corresponde genericamente às Lusitânia não se apresentam apenas como repercussão que o seu pensamento tem
peninsulares do ponto de vista dos seus e Galécia antigas. Para além disso, diferentes, mas em muitos aspectos na criação de uma determinada visão
valores tradicionais e da capacidade considerando a panóplia documental e opõem-se diametralmente à norma dos lusitanos e da figura de Viriato,
para os manterem vivos ao longo do os aspectos a abordar, a exposição constituída pela cultura romana. E, por personagem incontornável no tema em
tempo, em interacção com a cultura centrar-se-á mais especificamente no isso, a escolha dos critérios para a análise.
latina. centro e norte dessa vasta área, descrição do outro reflectem, acima de
deixando deliberadamente na tudo, a sua própria mentalidade. Os elementos do seu retrato, conhecido
Na prossecução desse objectivo, é penumbra a realidade meridional, a Confronta-se a imagem que os gregos e particularmente pelas referências que
essencial o recurso às fontes literárias respeito da qual a informação de romanos têm de si próprios, com o que nos chegam através de Diodoro e Díon
clássicas, pelo que se dedicará uma natureza linguística é menos vêem (ou deduzem) dos outros. Cássio1, podem servir para a elaboração
primeira parte a reflexões sobre a esclarecedora. de uma imagem muito peculiar de um
natureza deste tipo de informação e as Esta situação foi recentemente definida chefe bárbaro, atípica, de qualquer
suas implicações no domínio histórico. por García Quintela como de modo, uma vez que definida por marcas
De seguida, incidir-se-á sobre um 2. Romanização, literatura e política “conhecimento excêntrico”, precisamente de admiração que não são a regra na
aspecto essencial para compreender as – perspectivas “etnográficas” da pelo facto de a abordagem etnográfica descrição de povos “primitivos”. Neste
interacções entre as entidades locais e antiguidade que caracteriza as fontes antigas se caso concreto, como se tem sublinhado,
os conquistadores: a análise do percurso basear no que pensam das realidades é precisamente a circunstância de

O
que sofreu o processo de conquista. Por ponto de partida para boa parte observadas os elementos exteriores a Viriato ser um representante desse
fim, ponderar-se-á toda a questão das das reflexões que se seguem é elas, neste caso os autores clássicos mundo distanciado da civilização que o
línguas locais, procurando avaliar em constituído, como se disse, pela (GARCÍA QUINTELA 1999: 30 ss). transforma na personagem, modelo aos
que medida estas constituíram um informação das fontes clássicas. E, no olhos de Possidónio. Nesta concepção
importante meio de afirmação das vasto domínio literário da antiguidade É esse mundo de oposições, reflectido entram várias componentes do seu carácter:
entidades peninsulares. grega e romana, assume especial pelas análises “etnográficas” da as suas modestas origens, o seu afastamento
importância a produção de natureza antiguidade clássica que permitiu, nos geográfico e cultural em relação aos
É manifesto para os historiadores da geográfica, em especial a sua vertente últimos anos, uma perspectiva diferente ambientes urbanos, o seu estreito e
antiguidade a grande diversidade de mais “etnológica”. Neste âmbito se dos povos peninsulares, porque não permanente contacto com a natureza.
povos e culturas que apresenta a insere o texto estraboniano, de que se demasiado colada à imagem transmitida
Península Ibérica nas vésperas do cita um significativo passo em epígrafe, pelos autores gregos e latinos. A perspectiva em relação a esta figura
processo de conquista. Por essa razão, uma das bases em que assenta a A historiografia actual, ao enquadrar no constitui, de qualquer modo, mais que
sempre que se tratam estas questões, imagem que a historiografia construiu seu contexto cultural a produção do uma excepção à regra, na visão das
torna-se obrigatória a referência à dos povos do Ocidente Peninsular. discurso sobre os outros povos, ao ver fontes clássicas da realidade hispânica.
especificidade de cada região ou etnia. na sua descrição uma alteridade, abre Possidónio ilustrou o seu disrcurso
Na análise desta documentação novas perspectivas sobre o escolhendo o retrato de uma figura que
Dados os objectivos desta publicação e interessa, é claro, o que os próprios entendimento dos textos, com um largo idealizou e, como se depreende
o leque de problemas que se propõe autores antigos afirmam explicitamente. alcance na caracterização dessas facilmente, não com base num
abordar, impõe-se uma restrição Mas é também muito pertinente entidades. conhecimento pessoal (que nunca teve),
geográfica desta abordagem, não apenas investigar o que omitem e compreender ou de particularidades da vida e
por razões de espaço, mas, acima de as razões por que o fazem. Estas Um percurso pelo domínio da pensamento de Viriato, que seria
tudo, para não se cair numa enunciação primeiras reflexões destinam-se, pois, a etnografia antiga do Ocidente muitíssimo complicado atestar.
mais ou menos circunstanciada do compreender algumas das razões que Peninsular leva-nos inevitavelmente a
comportamento de cada uma das subjazem às perspectivas veiculadas Possidónio. Desde logo porque algumas Ao invés, para a maioria dos autores
entidades perante a presença romana, pelas fontes literárias a respeito da das suas concepções enformam a clássicos, os lusitanos não deixam de se
152 repetindo grosso modo as opiniões realidade étnica pré-romana. encontrar para lá das fronteiras do 153
transmitidas pelas fontes clássicas e por mundo civilizado. São, na designação
qualquer vulgata da historiografia Em primeiro lugar, importa, A partir da análise de J. Lens Tuero (1986), aceitou-se
criada pelos gregos, para abarcar
1

genericamente esta perspectiva, retomada, sob diversos


moderna. obviamente, saber o que um matizes, por García Moreno (1988, 1989), López Melero precisamente todos os que não se
determinado autor antigo considera
(1988), Pérez Vilatela (1989a e 1989b), Guerra & Fabião
(1992), García Quintela (1999: 177-222). integram nos seus padrões culturais e,
Considerando, ao mesmo tempo, a pertinente referir a propósito de 2
Uma recente abordagem desta questão pode encontrar-se
por isso, não falam de todo ou falam
minha própria investigação anterior, determinadas entidades mais ou menos em GARCÍA QUINTELA 1999, esp. 31-36. mal a sua língua, bárbaros2. E, ainda

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que possam admirar a sua força, objecto da atenção dos historiadores / dessa riqueza. Com uma correcta próprios autores clássicos a estabelecer
combatividade ou astúcia, estas geógrafos, como se a sua integração nas política da parte de Roma, deduz-se como traço mais característico desta
características contribuem obras correspondesse a uma das formas facilmente que estão criadas as etnia o da recusa em pactuar com o
essencialmente para valorizar o feito da sua inclusão no âmbito romano. condições para estas populações se invasor. A historiografia actual, por esse
dos conquistadores e a sua afastarem progressivamente dos seus facto, aceita como evidente que esta
superioridade. Seria, por assim, dizer a correspondente comportamentos típicos da barbárie. entidade recorreu a todos os meios para
literária deste processo que, noutro Deste modo, o processo de romanização oferecer uma oposição militar
Há algumas décadas, Bermejo Barrera plano, se traduzia num conjunto de destas regiões é, na perspectiva consistente e manifestou sempre a
(1986: 21-28) pôs em evidência as medidas de natureza política e estraboniana, mais uma consequência vontade de não aceitar, senão sob a
oposições dicotómicas entre povos do administrativa que culmina com a da correcta aplicação de um programa força das armas, a presença romana e as
Noroeste Peninsular e romanos, no reorganização do território no início do que elimina os comportamentos suas implicações nos diversos domínios.
quadro da Geografia de Estrabão, principado. Esta conjugação de “impróprios” do que a consequência de Sabemos, por diversas considerações
chamando a atenção para o facto de a produção literária e dimensão política uma necessidade sentida pelas das próprias fontes em múltiplas
descrição dos lusitanos e seus vizinhos adequa-se bem à perspectiva de populações. Precisamente o contrário do situações, que essa recusa nem sempre
constituir o contraponto de realidades Estrabão, o escritor contemporâneo de que o geógrafo comentara a respeito de pautou o comportamento das
romanas: os que bebem cerveja, em vez Augusto que encarna bem o espírito do alguns povos meridionais. populações hispânicas.
de vinho; os que usam manteiga, em seu tempo e cuja obra, por essa razão, se
vez de azeite; os que comem pão de pode tomar como um dos mais Quando se pretende pôr em confronto
belota, em vez de trigo; os que vivem do interessantes documentos para o estudo 3. Defesa do território e identidade as duas posições antagónicas perante a
banditismo e não respeitam a do processso de integração dos povos cultural conquista romana, é frequente recorrer
propriedade. hispânicos na esfera de Roma. aos clássicos exemplos de Viriato e

S
uplantado o domínio cartaginês Astolpas, imortalizados por uma visão
Este último aspecto, referido no passo Na sua perspectiva, o processo de no território peninsular, Roma muito própria, devida, como se disse, às
em epígrafe, constitui mesmo um topos conquista revela-se, especialmente no passou a controlar boa parte da concepções de Possidónio. Como se
da literatura antiga e não apenas para Ocidente, o motor da transformação das vertente mediterrânea da Hispânia. No percebe actualmente, este autor
caracterizar os povos do Ocidente sociedades bárbaras, incutindo-se processo de conquista que se segue, concentrou no herói lusitano as virtudes
Hispânico, mas muitos outros. Insere-se progressivamente as características da põem-se em evidência vários focos de de quem foi marcado por um contacto
na concepção, tipicamente cínica e em civilização. Este processo consiste, na conflito, a que as fontes atribuem pesos permanente com a natureza, a qual lhe
particular possidoniana, segundo a qual base, na alteração de alguns dos diferentes. No Ocidente, de um lado, ditou a norma de vida. A historiografia
o homem é fruto dos condicionalismos condicionalismos que determinam o encontram-se as rebeliões de diversos preferiu ver nele, acima de tudo, o
que a natureza lhe impõe. Deste modo, modo de vida das populações locais. Por chefes turdetanos, do outro, os conflitos símbolo de uma resistência tenaz ao
os povos que habitam regiões inóspitas, exemplo, com a alteração da sua com os lusitanos. A historiografia invasor, coroada geralmente de êxito,
montanhosas e pobres, tendem, de sua condição de montanheses, através de costuma opor uma resistência apenas pontualmente vencido,
natureza a serem dotados de uma uma política de fixação nas terras relativamente curta dos primeiros à enganado pela falta aos compromissos e
particular resistência e força física, mas baixas. Na lógica possidoniana, que durabilidade e dimensões da dos finalmente derrotado pela traição.
são igualmente propensos ao latrocínio. Estrabão segue, a criação de riqueza segundos. Os recontros entre uma
Ao contrário, o clima ameno e as terras agrícola eliminaria uma tradição como entidade designada como “lusitanos” e Viriato encarna, naturalmente, a face do
férteis proporcionam os ambientes que o banditismo, uma vez que atacava as as tropas de Roma estão documentados mundo peninsular mais fechado em si
permitem o desenvolvimento de povos próprias origens desse mal. Porque, nas fontes, pela primeira vez em 193 a. C. mesmo. Recorda-se em particular a
civilizados (LOMAS 1996: 48-49). como se deduz claramente do passo em e prolongam-se, com períodos de cena das suas bodas, descrita por
epígrafe, a dedicação ao trabalho particular intensificação dos conflitos, Diodoro, e na qual censura
No âmbito da literatura clássica, o agrícola é a antítese dos pelo menos até 139 a.C., ano do veementemente o sogro3, pela sua
Ocidente Hispânico é particularmente comportamentos típicos da barbárie. desaparecimento do mais notável posição dúbia, que tanto aceita dar-lhe
referido a propósito das realidades símbolo da sua luta de guerrilha. a filha em casamento, como colaborar
correspondentes aos séc. II e I a.C., Neste passo concreto, acentua-se a com os romanos. Invoca-se, a esse
correspondendo, portanto, à fase de circunstância de o território não ser, em Graças às fontes clássicas, gerou-se a respeito, o célebre apólogo do homem
154 conquista. As duas principais vertentes si, inóspito (o que constitui um ideia de que a oposição militar dos que tinha duas mulheres, uma mais 155
da informação literária concernem, elemento determinante do afastamento lusitanos se tornou particularmente nova, outra mais idosa, que
respectivamente, às movimentações da civilização) nem pobre. Os tenaz e a imagem que elas próprias
militares e à caracterização geográfica problemas decorrem da circunstância transmitem em relação aos combatentes 3
Sigo aqui a interpretação mais tradicional das fontes,
(no sentido abrangente do termo). O de um grupo concreto (os montanheses) e às chefias é de um profundo considerando todavia pertinentes as considerações de L.
que revela que o mundo desconhecido e desencadear um processo que empenhamento nas tarefas de Pérez de Vilatela 1989: 200 e 202 e García Quintela 1999:
199, a respeito de real grau de parentesco entre este e
exótico constituía, neste período, o inviabiliza o normal aproveitamento resistência ao inimigo. São, portanto, os Viriato.

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alternadamente lhe arrancavam os diferenciada os vários acontecimentos conflito com os Cântabros e Ástures, uma campanha de penetração na
cabelos brancos e os negros. Assim, uma que protagonizaram. atitude que é compensada por Augusto direcção do extremo noroeste,
simbólica calvície, precoce e com a concessão de uma série de empreendida por Décimo Júnio Bruto.
desprestigiante, era o resultado de Do outro lado, recordar-se-ia a privilégios. Ainda que este exemplo Esta incursão é apresentada como uma
servir ao mesmo tempo a dois senhores proverbial receptividade de alguns pareça constituir uma excepção (a operação pouco complexa e com uma
de interesses divergentes. povos meridionais em relação ao mundo julgar pelo que até ao momento se oposição menos sistemática, ainda que
itálico, com reflexos em diversos sabe), revela uma prática bem da informação literária se recolham
O perfil do Ocidente Hispânico, visto domínios, especificamente na evolução conhecida e certamente mais alguns episódios que acentuam
nesta dicotomia, oferece aparentemente das estruturas urbanas, que reflectiam amplamente difundida do que as fontes simultaneamente a irredutabilidade de
alguma coerência. Por isso, a progressivamente a integração deste documentam. algumas entidades hispânicas e a
historiografia moderna configurou uma espaço na esfera romana. superioridade militar romana.
situação que não diverge muito deste Uma leitura de alguns autores clássicos
quadro, alargando essa narrativa das Por isso, o processo de romanização do deixa claro que a passagem para o lado Um dos textos mais significativos
fontes a realidades mais vastas. A Ocidente foi relativamente precoce. romano nem seria assim tão rara; corresponde à narrativa de Apiano, a
posição colaborante com o inimigo, Nesse percurso se deveriam incluir todavia, como reconhece Apiano em respeito da intervenção do general
encarnada por Astolpas, representa a algumas concessões de estatutos determinado passo (Iber. 72), as romano no território dos Brácaros,
atitude de um rico proprietário das especiais, consequência natural da populações hispânicas nessa situação os quais o autor grego sublinha a
terras meridionais, eventualmente da fixação de soldados em território com frequência mudavam de atitude, bravura das mulheres, que não só
Andaluzia (origem que o seu nome hispânico. A este título, é habitual manifestando uma instabilidade no seu combatiam ao lado dos homens, como
confirmaria). Seria, por isso, o espelho recordar o que Tito Lívio (43, 3) reporta comportamento que causa alguma preferiam suicidar-se ou matar os filhos
de um território que aceitou, de forma a respeito de Carteia: em consequência estranheza aos autores clássicos (é, em a submeterem-se (APP. Iber. 71-72).
relativamente pacífica, a presença da fixação de soldados nessa cidade, é última análise, também este um Esta campanha do Galaico pelo
romana e rapidamente assumiu um concedido o estatuto de colonia latina, a comportamento típico de bárbaros). É Noroeste – um misto de missão de
modo de vida com fortes marcas da qual, acrescenta, se designava “de bem conhecido, a este propósito, o reconhecimento e imposição de
cultura latina, isto é, característica do libertos” (libertinorum) e que, como exemplo dos Talabrigenses, certamente soberania –, não parece ter conduzido
mundo “civilizado” de matriz salienta Schulten (FHA III, 229), foi a uma entidade dos Límicos – a situar, ao controlo geral do território. Entre
genericamente mediterrânea. primeira colónia latina criada fora do contra a interpretação mais tradicional, esta acção militar e a implantação de
território itálico. no Alto Vale do Lima, em território da uma política consistente de integração
Ao contrário, a resistência tenaz de actual Galiza – a qual foi apontada, pelo das realidades locais, empreendida por
Viriato corresponderia à atitude dos A acção romana assenta, em parte, mesmo Apiano (Iber. 73), como uma das Augusto, muitos casos de rebelião
povos ocidentais, mais pobres, numa habilidosa gestão da diplomacia, que mais vezes oscilou entre a aliança localizada se registaram, alguns
culturalmente menos abertos aos ventos cultivada ao longo de séculos, que com Roma e a sublevação. E, apesar ampliados pela instabilidade interna
que sopravam do Mediterrâneo e mais permite estabelecer relações com as disso, jogando os seus habitantes tantas que afectou fortemente Roma durante
apegados ao seu território, aos seus chefias locais e abrir clivagens no vezes na ambiguidade da sua posição, esse período. A documentação
valores e tradições. território a dominar. A ideia que fazendo e desfazendo pactos ao sabor disponível permite dar conta de um
perpassa na documentação de natureza das circunstâncias, Décimo Júnio Bruto número substancial de situações em que
Esta dualidade de reacções foi diversa é de uma diversidade de permitiu que continuassem a habitar a os romanos necessitaram de intervir ao
interpretada igualmente como uma comportamentos, que permite conceder sua “cidade”, generosidade que não longo de um século para eliminar os
divergência de natureza mais profunda, privilégios a indivíduos ou deixou de causar alguma estranheza aos muitos focos de tensão e instabilidade.
que poderia configurar uma separação comunidades, de acordo com as próprios Talabrigenses, segundo o relato
entre uma Hispânia indo-europeia e conveniências e as estratégias do historiador. Pode tomar-se como exemplar, neste
outra que não o era. Viria então a diplomáticas. plano, a situação documentada pela
propósito citar o caso dos Celtiberos De qualquer modo, a fase inicial de tabula Alcantarensis, também conhecida
que, em conjunto com os Lusitanos, Um dos casos mais significativos do uso conquista do Ocidente Hispânico traduz como a deditio dos Seanoc. (LÓPEZ et
protagonizam os conflitos mais sérios e de uma política de alianças locais, com uma oposição militar, geralmente muito alii 1984). Daí se deduz que em, 104 a. C.
a resistência militar mais consistente vista a fazer frente às situações, é consistente, da parte dos povos esta entidade, certamente instalada na
156 que os romanos encontraram na precisamente o testemunho transmitido peninsulares. Todavia, vencida a região do achado epigráfico, assinou a 157
Península. Não se esqueceria, por fim, pelo chamado “Bronze de Bembibre”, resistência dos lusitanos, que as fontes rendição incondicional perante o
que também outros povos afins, como documento epigráfico de extraordinária de uma maneira geral transformam romano L. Caesius, imperator, facto que
os Vetões, Galaicos, Ástures ou importância, recentemente aparecido4. num processo difícil para Roma, segue-se se consagrou naquele texto jurídico.
Cântabros, se viram envolvidos, em Aí se testemunha a colaboração dos Nele se estabelecia, concretamente, que
ocasiões distintas e com Roma, ainda castellani Paemaeiobrigenses, uma 4
O documento epigráfico foi primeiramente dado a conhecer
os vencedores reteriam os prisioneiros,
que as fontes tratem de forma muito entidade dos Sussaros, com Roma, no em BALBOA 1999. bem como os cavalos e éguas, mas

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permitiriam aos vencidos a utilização 4. Personalidade e língua dos povos Galaicos5, ou se estabeleceu uma falares não indo-europeus (ainda que
dos seus campos e casas, “enquanto o pré-romanos aproximação entre a área celtibérica e a algumas dúvidas pontuais se tivessem
quisessem o senado e o povo do Roma”, dos Vaceus. levantado, esta opinião continua a

À
segundo uma expressão jurídica chegada dos romanos, o quadro dominar) torna mais difícil a
corrente. linguístico peninsular parece ser Na análise deste problema tem sido comparação e compreensão destas
bastante complexo. Apesar das considerada a questão étnica, uma vez realidades, a respeito das quais se têm
A circunstância de uma entidade até manifestas faltas de informação a este que ela poderia ajudar a definir grandes dado alguns passos, necessariamente
agora desconhecida subscrever esta respeito, o conhecimento dos sistemas unidades, cujos traços distintivos hesitantes.
deditio faz pensar que, apesar da linguísticos então usados permite deveriam passar, pelo menos até certo
designação de populus, teria certamente constatar uma substancial diversidade. ponto, por esse domínio. Qualquer que tenha sido o panorama à
uma reduzida dimensão, e revelaria Genericamente, costuma dividir-se essa chegada dos romanos, nenhuma das
bem a divisão existente no contexto realidade em duas grandes áreas, Mesmo assim, algumas áreas línguas ocidentais subsistiu ao domínio
hispânico, mas também a capacidade separadas por uma linha sinuosa que, permaneceram na indefinição, romano continuado, a não ser em
para, apesar disso, desafiar a autoridade grosso modo, atravessa a Península normalmente pela escassez de escassos vestígios, normalmente de
romana (MARTÍN BRAVO 1999: 265-266). Ibérica em sentido transversal, desde o elementos, circunstância que não natureza toponímica, antroponímica ou
Baixo Ebro até ao Cabo de S. Vicente permitia uma aproximação teonímica. Todavia, num primeiro
De qualquer modo, assinale-se o facto (UNTERMANN 1962: esp. 16-17). Do fundamentada a qualquer uma das impacto, a língua deve ter representado
de o texto epigráfico assinalar que os lado norte e ocidental dessa linha realidades já identificadas. Foi o caso um dos elementos diferenciadores e
Seanoc. manteriam as suas leis, segundo falavam-se fundamentalmente línguas do sistema usado pelos Célticos do certamente uma das formas mais
uma fórmula bem conhecida no direito indo-europeias, enquanto a Sul e a Este Sudoeste, certamente de origem indo- evidentes de as populações afirmarem a
aplicado às entidades locais sob o as que não se englobavam dentro desse -europeia, mas em relação ao qual sua identidade. Ao mesmo tempo, a
domínio romano. Todavia, assinale-se a grupo. faltam os dados que o possam associar utilização do latim reflectia uma
inexistência de uma realidade política ao lusitano, ao celtibérico ou a qualquer conformidade (desejada ou forçada)
com esse nome (uma ciuitas Seanoc., por De entre as primeiras, a investigação outro. com o novo domínio político-militar.
exemplo) em fase posterior, ao contrário reconhece desde logo o celtibérico, sem
do que se poderia deduzir do que dúvida a mais bem documentada e, por No estado actual dos nossos Entre uma atitude de resistência,
anteriormente se disse. isso mesmo, a que se encontra mais bem conhecimentos, parece que deveria demonstrada linguisticamente no
caracterizada. A tradição de estudo considerar-se a existência, na costa persistente apego à língua dos
Em suma, um longo período de sobre este novelo de problemas definiu, ocidental a norte do Vale do Tejo, de antepassados e a vontade de uma rápida
instabilidade caracteriza o processo de sobretudo com base no estudo percursor uma língua única, já chamada adaptação à realidade dominante,
conquista do Ocidente, com múltiplos de António Tovar (1966-67) sobre a “hispânico ocidental” (BÚA 1997: 58), deveriam oscilar os comportamentos,
conflitos localizados, que correspondem inscrição do Cabeço das Fráguas, uma que abarcaria, no extremo Ocidente, os diversidade que se situaria tanto num
a uma certa insubmissão dos povos outra realidade claramente autónoma, lusitanos e galaicos e, para o interior, os plano individual, como se colocava,
desta região. A revolta é, todavia, conhecida essencialmente através de domínios ásture (afim do galaico) e acima de tudo, a nível de realidades
apenas uma das formas de se evidenciar três inscrições do extremo Ocidente. vetão. Não subsistem muitas dúvidas populacionais mais ou menos extensas.
o desejo de afirmação da sua Pela sua distribuição geográfica e tendo sobre as afinidades linguísticas desta Não há elementos concretos que
individualidade. Perdida a soberania em consideração a tradição grande região, onde se usuaria um permitam estabelecer uma evolução no
das entidades hispânicas sobre o historiográfica, aquele estudioso sistema comum, naturalmente com as tempo e no espaço desta transformação,
território, esta manifesta-se sob outras designou-a como “lusitano”, termo que diversidades locais ou regionais que são embora se possa, com base em
formas. Merece aqui uma especial acabou por se consagrar, apesar das compreensíveis nestas circunstâncias e alterações de outra natureza, tecer
referência a língua, como um dos dificuldades que uma designação desse neste contexto histórico-cultural. conjecturas gerais sobre a evolução
elementos que melhor contribui para a tipo levanta. histórica e traçar as linhas gerais deste
identidade das populações. Na vertente mediterrânea da linha fenómeno.
Todavia, ficava excluído ainda um acima citada, reconhece-se também
amplo território, a que se atribuía uma uma substancial variedade, por vezes A implantação de uma realidade deste
grande diversidade de entidades associada aos vários sistemas de escrita tipo tem, em primeiro lugar, que ver
158 étnicas, cuja aproximação a uma ou a (“do sudoeste”, “meridional” e com a existência de uma comunidade 159
outra língua se fazia com base nos “levantino”), ainda que nada obrigue a de falantes de latim, em determinados
escassos elementos de natureza que esta divisão tenha relevância locais e com o peso numérico e social
linguística ou histórico-cultural que era linguística. O facto de se tratar de que ela pode ter. Por essa razão, lugares
possível reunir. Assim, com essa base se em que um estabelecimento militar se
definiu, por exemplo, uma afinidade 5
Para as afinidades a nível da antroponímia ALBERTOS
fixou durante determinado tempo, e
entre o “lusitano” e a língua dos 1985: 304. sobretudo no qual se estabeleceram

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tropas licenciadas, receberam um do movimento de implantação no cultural em que o latim rapidamente manifestações se justificariam numa
contributo decisivo para a implantação território, o qual condiciona, em suplanta as tradições preexistentes, que fase inicial do processo de aculturação e
da nova língua. Mérida constitui, primeira instância, a cronologia deste acabariam por se manifestar apenas em que perderiam o seu sentido quando
inevitavelmente, um caso concreto de fenómeno. Um processo de conquista, algumas circunstâncias muito este já tivesse atingido uma
afirmação rápida do latim, porque se que se estende ao longo de cerca de dois particulares. E poderia mesmo invocar-se considerável dimensão.
trata de uma fundação colonial, centro séculos, ocasiona inevitavelmente uma a circunstância de as raras excepções
administrativo e de fixação de gentes diferença substancial no estado de corresponderem a monumentos Relativamente a esta questão, movemo-
ligadas ao ambiente romano. integração dos territórios, consoante o associados à esfera do sagrado, -nos, é necessário ter consciência disso,
período em que este fenómeno ocorre e acentuando-se o carácter conservador num terreno de meras hipóteses. Por
As actividades comerciais, por outro dependendo dos próprios destas manifestações que se isso, não seria despropositado que, por
lado, devem ter justificado uma condicionalismos inerentes ao processo apresentariam numa língua “religiosa”, uma questão de princípio, se admitisse
afluência crescente de negociantes que então se desencadeia. já perto da completa extinção. igualmente a eventualidade de algumas
romanos: em fase precoce, aproveitavam delas, ou até mais do que uma,
as vantagens de quem se encontra em Embora não decorra muito tempo entre Parece-me, todavia, que esta corresponder a um período mais tardio6.
situação privilegiada para abastecer a a conquista dos territórios da chamada interpretação pode ser questionada. Em
tropa em movimento; posteriormente linha do vale do Tejo e a incursão de primeiro lugar, deve negar-se Para esta vertente do problema poder-
usufruem dos privilégios de quem Décimo Júnio Bruto (138 a.C.) ao pertinência ao argumento estatístico. -se-ia ter uma perspectiva idêntica à
acompanha de perto os movimentos de âmago do mundo galaico, é habitual De facto, as manifestações epigráficas, que é necessário adoptar a respeito da
bens e daí procura retirar vantagens. assinalar-se a oposição entre as tal como elas se apresentam, onomástica tipicamente hispânica em
manifestações de resistência das correspondem a uma tradição contextos romanos. Ainda que a
Ao invés, os núcleos mais pequenos, à diferentes áreas da costa ocidental. determinada, tipicamente romana, subsistência da antroponímia pré-
margem destas realidades, habitadas Costuma, em particular, salientar-se o inserem-se numa tradição muito -romana não implique o uso integral do
essencialmente pelas populações locais, carácter conservador das populações do concreta, associada a um conjunto de sistema, perdurando mesmo que uma
não sentem a necessidade nem sequer o centro e norte, o que se manifestaria hábitos, normas, formulários e “rituais” língua já tenha deixado de ser veículo
interesse de aprender um novo sistema igualmente no domínio linguístico. inevitavelmente ligados à cultura latina de comunicação, pode, todavia, ser um
de expressão cujo uso é ainda diminuto e, por inerência, aos indivíduos cuja indicador da grande longevidade que
ou nulo na sua comunidade. A circunstância de se terem mentalidade se enquadra nesse mesmo determinadas realidades linguística
identificado, entre os documentos contexto. Não se pode considerar no evidenciam, especialmente em certas
São, portanto, os contactos com o epigráficos de período romano, um mesmo plano a utilização para fins regiões.
exército, a administração e as pequeno conjunto de inscrições numa muito específicos, diferentes do
actividades comerciais que condicionam língua pré-romana, a que se habitual (neste caso, pelo que se A onomástica pessoal apresenta-se, tal
em boa parte a difusão do latim, o que convencionou chamar “lusitano”, num conhece dos dois monumentos como o uso da língua pré-romana, como
significa que, no seu início, é território que vai do vale do Tejo ao do interpretáveis, uma relação de vítimas uma das modalidades de afirmação da
especialmente em ambiente urbanos Douro, permite colocar algumas oferecidas a várias divindades) de uma cultura tradicional e, neste sentido,
(em particular colónias ou cidades questões a respeito do assunto em técnica usada em situações opõe-se à tendência para a
portuárias com forte componente de análise. perfeitamente tipificadas e, por hábito, uniformização pelo padrão romano. De
elementos exógenos) que se afirma mais profundamente normalizadas. uma forma geral, tem-se considerado
precocemente esta importante Sendo claro que a substituição de uma que a presença de uma antroponímia de
componente cultural da presença língua por outra no mesmo território é Depois, há alguns motivos para crer que origem local, expressa normalmente por
romana. um processo necessariamente lento, o a língua constitui, pelo menos em uma sequência de nome único mais
certo é que são muito escassos os alguns casos muito concretos, uma nome do pai seguido ou não da palavra
Baesuris, Ossonoba, Balsa, Cilpes, Murtili, vestígios textuais datáveis de época realidade com uma longa perduração. filius, se deveria enquadrar em fase
Salacia, Pax Iulia, Olisipo, Scallabis romana, mas respeitantes aos sistemas relativamente precoce do império,
constituiriam, nesta perspectiva, alguns preexistentes. Se uma avaliação Mas objectivamente não temos qualquer basicamente até aos finais do séc. I d.C.
dos lugares que responderiam às estatística fosse considerada pertinente meio que permita infirmar esta Esta convicção radicava na ideia de que
condições enunciadas e, como tal, (o que nos parece, diga-se desde já, de hipótese. A convicção generalizada, as manifestações mais típicas das
160 poderiam converter-se em pólos de todo inaceitável), a presença de quatro segundo a qual as epígrafes em culturas anteriores se diluiriam 161
difusão dos modelos de cariz latino e da monumentos num universo de vários “lusitano” se deveriam situar num completamente e não perdurariam
sua componente linguística em milhares de inscrições identificadas na determinado momento do alto-império,
particular. província da Lusitânia transmitiria a eventualmente mesmo na sua fase As conjecturas, mesmo vagas, sobre a cronologia da plena
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integração dos povos hispânicos no domínio da língua latina,


ideia de que essa realidade assumiria inicial, não tem, pelo menos para já, são relativamente raras, pelo risco que envolvem. De
A escolha destas cidades tem, desde um carácter francamente residual. qualquer apoio sólido. Resulta apenas, qualquer modo, Díaz y Díaz (1983: 283) defende genericamente
uma datação situada entre os finais do séc. III e os inícios do
logo, que ver com a própria dinâmica Levaria a considerar um quadro como se disse, da ideia de que estas século IV para esta ocorrência em território galaico.

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muito para além desse limite os que resultam de uma simbiose das território bracarense e o chamado religiosidade, dado o desconhecimento
cronológico. duas tradições, correspondentes “lusitano” (Albertos) . profundo em relação aos cultos
genericamente a teónimos romanos a tradicionais.
Estes pressupostos foram seriamente que se seguia um epíteto Essa comunidade de elementos de
abalados pelo aparecimento da epígrafe especificamente hispânico. natureza linguística e religiosa Desse mundo restaram, em primeiro
do Cabeço do Crasto (S. Romão, Seia), Desta tripartição não deve retirar-se a espelharia um conjunto de traços lugar, os nomes: dos deuses e dos
porque se dava a circunstância de o ideia de que só a última representaria a comuns entre as populações e dedicantes. É especialmente em relação
monumento se poder datar com confluência das culturas ou que esta justificaria, em certa medida, uma aos primeiros que se podem tecer
precisão do ano 217 d.C. O facto de aí espelharia, mais do que as outras, este relativa uniformidade no modo como se algumas considerações que julgo
se referir uma personagem, Vegetus fenómeno. Parece preferível admitir que, preservaram as marcas culturais ao pertinentes. O que persiste para além
Talabari f(ilius), que tinha sido aedilis, em todas as situações, estamos perante longo da presença romana. Em suma, disso é, por regra, quase completamente
permitia afirmar que a perduração dos realidades complexas em que podem indícios de um conservadorismo que desconhecido ou resulta de
modelos onomásticos tradicionais era coexistir elementos de várias origens, permitiu a transmissão, mesmo em considerações cujo fundamento tem
muito maior do que se tinha até aí sendo difícil determinar a importância contextos há muito romanizados, de sido frequentemente constestado.
imaginado, tanto mais que, naquele relativa de cada uma das componentes. elementos identificadores das suas Refiro-me em especial às deduções
caso concreto, se reportava a uma figura tradições. sobre a natureza das divindades feitas
seguramente enquadrada numa De qualquer modo, é inevitável que a com base na interpretação da etimologia
realidade política de considerável perduração de nomes de divindades No que respeita às divindades de nome dos respectivos teónimos (sobre a
importância e não propriamente a indígenas (ou mesmo a atribuição de pré-romano, tem-se sublinhado questão, v. DE HOZ 1986: 33-35).
alguém que está afastado dos centros de invocações locais a entidades romanas) geralmente a sua especificidade no
decisão. represente um indício de maior apego à plano religioso. Como é compreensível, Em relação aos nomes, poderiam, desde
tradição e, como tal, seja interpretado não faltam elementos que documentem logo, alinhar-se algumas considerações
A maior presença das manifestações da como um modo de os indivíduos ou as que o contacto com a tradição clássica sobre a sua distribuição. Constata-se,
antroponímia tipicamente local tomou- comunidades afirmarem, desta forma, deu lugar a realidades onomasticamente em primeiro lugar, que, de um lado, se
-se como um dos critérios para a as suas especificidades. hispânicas, mas em cujas práticas podem colocar os elementos teonímicos
diferenciação das áreas mais tendentes religiosas se implantaram algumas frequentemente repetidos com uma
a manter alguns traços culturais e, Ao comparar-se a distribuição da tradições itálicas. O caso de Endovélico amplíssima dispersão no espaço do
aparentemente, a manifestarem maior onomástica pré-latina com a difusão dos representa, sem dúvida, uma situação Ocidente Peninsular. Trata-se, por
resistência aos fenómenos de teónimos caracteristicamente paradigmática. norma, da primeira parte do teónimo,
aculturação: no Ocidente Peninsular, hispânicos, facilmente se constata como em geral seguida de um ou mais
todo o território litoral a norte do são coincidentes. Admite-se, por isso, Apesar do número de atestações epítetos, cuja natureza tópica é
Maciço Central, a que se juntava, no que a subsistência destes elementos epigráficas, com consequências a nível habitualmente aceite. O caso
interior, o que corresponde à Beira tenha que ver com a própria natureza da informação, e de alguns dados de paradigmático respeita às ocorrências
Baixa e parte do Alto Alentejo, bem das entidades que habitam esse espaço natureza arqueológica (muito sumário, do chamado “grupo Band-”.
como às províncias de Cáceres e, geográfico. O que se conhece, no uma vez que os resultados dos
parcialmente, de Badajoz. domínio linguístico como no religioso, trabalhos, já muito antigos, não são Noutro plano se situariam as
permite estabelecer ligações muito esclarecedores), os elementos divindades de âmbito regional ou local.
Em paralelo com as perdurações relativamente estreitas entre as disponíveis são ainda ténues e muitas Um dos exemplos mais sugestivos
onomásticas, podem colocar-se algumas populações de todo o espaço ocidental e vezes ambíguos no seu significado. parece-me continuar a ser o de
realidades epigráficas de natureza entrever um conjunto de traços que as Trebaruna, teónimo que se regista quase
teonímica. Ainda que pouco se conheça aproxima. A nível linguístico, teríamos, Algumas investigações mais recentes na exclusivamente numa região que
das manifestações religiosas dos povos nessa área, uma língua comum, que área de S. Miguel da Mota, conduzidas compreende genericamente a parte mais
pré-romanos, uma vez que a epigrafia é poderia ser designada, como propõe por Manuel Calado (1993: 59, 157), oriental da Beira Alta e o território que
parca nesse tipo de informação, subsiste Carlos Búa, como o “hispânico proporcionaram alguns elementos corresponde hoje sensivelmente à
um considerável número de nomes de ocidental”. As afinidades linguísticas novos. Foram nomeadamente província de Cáceres. Com excepção de
divindade, material que tem servido de identificadas nessa ampla região não identificadas na região algumas um caso isolado da região de Lisboa (de
162 base para a caracterização dessa são de modo nenhum incompatíveis estruturas que este investigador resto sob uma variante fonética única), 163
vertente cultural. Na sistematização com a existência de algumas associou a um antigo santuário pré- todas as restantes ocorrências provêm
tradicional distinguem-se três especificidades em determinados -romano, desviado no espaço e também da zona referida.
categorias de teónimos: os que são territórios, como já se tinha verificado na sua natureza pelo contacto
veiculados pela romanização (ainda que na onomástica pessoal, onde se podiam progressivo com a cultura romana. Na Talvez seja caso para pôr esta situação
não especificamente originários de entrever vínculos mais estreitos entre realidade pouco de concreto se pode em paralelo com o que disse a respeito
Roma); os que são tipicamente locais; e diversas áreas, por exemplo, entre o dizer a respeito das alterações da da(s) língua(s).

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