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MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO

POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO,


REFERENDO E INICIATIVA POPULAR
INSTRUMENTS FOR POPULAR PARTICIPATION IN BRAZIL:
PLEBISCITE, REFERENDUM AND POPULAR INITIATIVE

DENISE AUAD
Mestre em Direito Público pela Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo.

JOÃO CLÁUDIO HERNANDES PEDROSA, MARIA DE LOURDES


MARTIMIANO E ROGÉRIO FERRARI TANGANELLI
Alunos do curso de Direito do Centro Universitário Ibero-Americano.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Plebiscito: 2.1 Antecedentes históricos;


2.2 Plebiscito no Brasil; 2.3 Plebiscito no Estado de São Paulo e capital
– 3. Referendo: 3.1 Conceito e aspectos históricos; 3.2 A regulação do
referendo no Brasil; 3.3 Referendo no Estado de São Paulo e capital
– 4. Iniciativa popular: 4.1 Conceito; 4.2 Aspectos históricos do instituto;
4.3 Iniciativa popular no Brasil; 4.4 Iniciativa popular no Estado de São
Paulo e capital – 5. Questões práticas para a implementação da
democracia semidireta – 6. Exemplos concretos da aplicação dos
mecanismos de participação popular no Brasil – 7. Conclusão.

RESUMO: A democracia representativa apresenta sinais de crise e está


cada vez mais distante dos anseios populares. Diante desse panorama,
os Estados que buscam manter o regime democrático estão prevendo,
em suas legislações, mecanismos de participação popular como um
complemento ao sistema de democracia representativa, o que permite
aos cidadãos, em certas ocasiões, deliberar sobre assuntos políticos
de forma direta. O Brasil adotou, no art. 14, I, II e III, da CF/88, o
plebiscito, o referendo e a iniciativa popular como mecanismos de
participação direta. No entanto, a utilização desses institutos ainda não
é uma prática cotidiana em nosso país, situação que se torna ainda
mais difícil pelo fato de a legislação infraconstitucional relacionada a
tais institutos (Lei 9.709/98) ser lacunosa e não solucionar questões
cruciais que permitiriam a viabilidade prática da participação popular.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia. Democracia representativa. Demo-


cracia semidireta. Mecanismos de participação popular. Plebiscito.
Referendo. Iniciativa popular.
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ABSTRACT: Representative democracy is showing signs of crisis and every day


distances itself from the public’s wishes. Therefore those States looking to shore up
democracy are in their laws, providing instruments for popular participation to
complement the representative system of democracy. This can, depending on the
circumstances, give citizens a direct role in political decisions. In Article 14, I, II and
III, CF/88, Brazil adopted the plebiscite, referendum and popular initiative as
instruments for popular participation. However, these instruments are not often used
in our country: their use is made more difficult due to the legal omissions in Law
9.709/98, and because of the many unresolved and important problems that could
allow practical viability of popular participation.

KEY WORDS: Democracy. Representative democracy. “Semidirect” democracy.


Instruments for popular participation. Plebiscite. Referendum. Popular initiative.

Recebido para publicação em fevereiro de 2004.

1. Introdução dade Clássica traz ao mundo tem raízes na


consolidação de um espaço público em que
Historicamente, a democracia como os cidadãos comuns, ou seja, os moradores
regime político tem seu berço em Atenas, da cidade, com as devidas restrições apon-
implantada pelo governo de Clístenes, por tadas acima, participavam diretamente das
volta de 510 a.C., após um período de crise deliberações políticas, sem intermediários,1
e de sucessivos regimes ditatoriais, alcan- uma vez que votavam nas propostas colo-
çando seu ápice no período áureo do cadas em discussão na Assembléia, e não
governo de Péricles, entre 461 a 429 a.C. em “candidatos”.
Sob o ponto de vista etimológico, a palavra Nos períodos históricos posteriores à
democracia pode ser desmembrada em dois Antiguidade Clássica (Idade Média e Idade
conceitos: dêmos, que significa povo, e Moderna), a democracia como regime de
krátos, que tem o sentido de poder. Na governo ficou praticamente esquecida. É
prática, consistia tal regime na convocação retomada apenas no século XVIII, com
dos cidadãos atenienses para deliberar sobre base no pensamento jusnaturalista que
os assuntos públicos de forma direta, reu- embasou a luta pela derrubada do poder
nidos em Assembléia. Todavia, o acesso à absolutista dos monarcas, bem como a
política em Atenas era deveras restrito, conquista de liberdades individuais em
permitido apenas aos homens, descenden- face do Estado, e abriu caminho para a
tes de famílias gregas, o que alijava de tal ascensão política de pessoas civis, não
poder político todas as mulheres, crianças descendentes de famílias nobres, mas de-
e escravos. Apesar dessa restrição, Atenas tentoras de poder econômico, fruto do
teve o mérito de construir um conceito comércio.
clássico de democracia, o qual influenciou, No século XVIII, encontramos em
posteriormente, a elaboração da doutrina Rousseau uma construção teórica clássica
ocidental sobre a forma de governo demo- sobre a democracia. O autor defendia a
crático. O encanto que Atenas da Antigui- forma direta de participação política como

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forma de democracia ideal,2 mas considera- políticos que pudessem organizar os dife-
va que sua aplicação seria muito difícil em rentes anseios dos cidadãos e desempenhar
Estados de larga escala, o que fatalmente o papel de instrumentos eficazes para vei-
ocasionaria a implementação prática da cular a opinião pública. Segundo as pala-
democracia representativa, pela qual os ci- vras de Stuart Mill: “Democracia (...) re-
dadãos escolheriam representantes, cuja fun- presentativa de todos e não somente da
ção específica seria o exercício da política. maioria – na qual os interesses, as opiniões,
É na América do Norte que encontra- os graus de intelecto que são excedidos
mos a primeira tentativa de implementação pelo número seriam apesar disso ouvidos,
de um governo democrático moderno. Com e que teriam a oportunidade de obter pelo
a independência das treze colônias ingle- peso do caráter e pela força do argumento
sas, em 1776, buscou-se implantar um influência que não pertenceria à força
novo Estado que se diferenciasse o máximo numérica – essa democracia, que é a única
possível do modelo monárquico europeu, igual, a única imparcial, a única que seja
o qual, na visão dos norte-americanos, era governo de todos por todos, o tipo único
um modelo fadado ao insucesso.3 A luta de verdadeira democracia, ver-se-ia livre
política e ideológica de três autores fede- dos maiores males das democracias assim
ralistas – Alexander Hamilton, James falsamente chamadas, que hoje predomi-
Madson e John Jay –, os quais, juntos, nam, e das quais se deriva exclusivamente
publicaram artigos na imprensa de Nova a idéia corrente de democracia”.4
York, contribuiu para a consolidação de Atualmente, nos Estados Ocidentais, a
uma Constituição norte-americana. Esses democracia pautada principalmente na idéia
artigos previam a implantação de um regi- de representação política é consagrada como
me democrático, com respeito à separação a melhor forma de governo (ou mesmo
entre os Poderes Legislativo, Executivo e como a “menos pior”), defendida em inú-
Judiciário, dentro de uma estrutura federa- meros discursos políticos como o regime
lista de Estado. Tal Constituição, apesar de viabilizador do desenvolvimento social, da
manter um poder central, proporcionava paz, do pluralismo, do diálogo político e
autonomia aos Estados-membros da Fede- do respeito aos Direitos Humanos.5 No
ração; assim, de forma inovadora, implan- entanto, é patente o deslocamento dos
tou-se pela primeira vez na História um ideais democráticos, consolidados na dou-
modelo de regime democrático em um trina política dos pensadores clássicos, em
espaço de larga escala e pautado em uma face da realidade concreta vivida pelos
economia de mercado. O modelo escolhi- Estados que se consideram democráticos.
do, no entanto, estava baseado na idéia de A implementação da democracia ainda é
representação política e no voto censitário. um grande desafio para a humanidade.
A idéia de democracia representativa é Segundo Norberto Bobbio, o pressupos-
bastante explorada por Stuart Mill em sua to para a implementação do regime demo-
obra Considerações sobre o governo re- crático está na correta definição das “regras
presentativo, publicada em 1861. Nessa do jogo”, para que tanto o cidadão quanto
época, já se intensificava um forte pensa- o governo saibam de antemão como devem
mento no sentido de que os caminhos para proceder para viabilizar o diálogo político.
a implantação de um regime democrático “Afirmo preliminarmente que o único
dependiam da estruturação de partidos modo de se chegar a um acordo quando se

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fala de democracia, entendida como con- balança que deve reger o processo demo-
traposta a todas as formas de governo crático.
autocrático, é o de considerá-la caracteri- Em relação ao Brasil, objeto de nosso
zada por um conjunto de regras (primárias estudo, podemos dizer que a implementa-
ou fundamentais) que estabelecem quem ção de seu regime democrático está em fase
está autorizado a tomar as decisões cole- de consolidação. Grande parte de nossa
tivas e com quais procedimentos.”6 História foi marcada por golpes de Estado
Conforme colocado por Bobbio, é regra e revoluções, como a de 1930 e a de 1964.
basilar do regime democrático a definição A cada ruptura institucional, a democracia
de povo, ou seja, de quem efetivamente sofre duro golpe, pois é atingida em seu
poderá participar da decisão política. Quanto ponto fundamental: o respeito ao Estado
maior a extensão da soberania popular, Democrático de Direito. A consolidação de
mais próxima estará a democracia de seu um regime democrático requer discerni-
verdadeiro sentido. No entanto, não é mento, bem como um melhor esclareci-
simples a criação de regras que viabilizem mento sobre os mecanismos disponíveis
a ampla participação e, além disso, ofere- para uma participação mais efetiva no pro-
çam mecanismos para concretizar as deci- cesso. A base de sustentação da democracia
sões de forma fiel aos anseios populares. como forma de governo é a soberania
Outro grande desafio na atualidade7 rela- popular, exercida por meio do voto direto,
ciona-se à elaboração de normas que ga- secreto, universal e periódico. O voto é um
rantam eficiência e governabilidade ao direito garantido e assegurado a todos,
Estado sem sacrificar os instrumentos de- previsto no art. 60, § 4.º, II, da CF/88 como
mocráticos. Se não houver regras do jogo uma cláusula pétrea, o que impede qualquer
bem estabelecidas, a democracia não pas- proposta de emenda constitucional tendente
sará de um conjunto de dogmas meramente a aboli-lo.
teóricos. O Estado brasileiro adotou, em seu texto
Falar em consolidação de um processo constitucional, a democracia representativa
democrático implica, também, um profun- conjugada a mecanismos de participação
do investimento na educação dos cidadãos. popular,8 ou seja, nossa democracia deve
Uma educação que proporcione a cada ser exercida, conjuntamente, por represen-
cidadão condições de compreender o con- tantes livremente eleitos pelo povo e, na
texto social em que vive, e, conseqüente- medida do possível, diretamente pelos ci-
mente, garanta sua liberdade de escolha. dadãos. Ressalta-se que, no cenário político
Subjacente a isso, pressupõe-se um contex- mundial, a representação assume o papel
to de igualdade de oportunidades, a fim de central no jogo democrático em quase
que cada um possa desenvolver seus po- todas as democracias, o mesmo ocorrendo
tenciais e estar no espaço público, em que no Brasil. No entanto, o instituto da demo-
ocorrem as decisões políticas, com a mes- cracia participativa vem ganhando cada
ma dignidade que os demais participantes, vez mais espaço, o que contribui sobrema-
caso contrário, o processo de escolha e de neira para o aperfeiçoamento do Estado
deliberação estará viciado, pois alguns ci- que pretenda verdadeiramente firmar-se
dadãos terão mais poder para convencer e como democrático.
para impor seus interesses do que outros, Mesmo diante dessa conjuntura, o povo
fator que desequilibra por completo a brasileiro não se deu conta ainda do sig-

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nificado de seu voto: um direito, um dever Constitucionalista de 1932. Diante das


ou função social? O “voto” como função pressões insuportáveis geradas pelo confli-
social é o instrumento para o aperfeiçoa- to, o governo federal viu-se obrigado a
mento do regime democrático. Por tratar- convocar, às pressas, uma Assembléia
se de um meio tão importante, desempenha Nacional Constituinte. As eleições da
papel fundamental na construção de uma Constituinte se realizaram com a participa-
sociedade livre, solidária e justa. A eleição ção de um grande contingente de represen-
é vital para que o processo representativo tantes das antigas oligarquias, restando
se realize, pois é por meio dela que o para a sociedade civil organizada apenas 40
político é legitimado pelo povo para atuar representantes eleitos pelos sindicatos le-
em seu nome. Segundo José Afonso da galmente reconhecidos, pelas associações
Silva: “É no regime da democracia repre- de profissionais liberais e de funcionários
sentativa que se desenvolvem a cidadania públicos, a chamada representação classis-
e as questões da representatividade, que ta, prevista no art. 3.° do Decreto 22.621,
tende a fortalecer-se no regime da demo- de 05.04.1933. O instituto da representação
cracia participativa. A Constituição combi- classista, no entanto, não cumpriu com os
na representação e participação direta, ten- objetivos a que foi criado e rapidamente
dendo, pois, para a democracia participa- desapareceu de nosso ordenamento jurídico.
tiva. É o que, desde o parágrafo único do Neste contexto político vigorava o
art. 1.º, já está configurado, quando, aí, se Código Eleitoral de 1932, que trouxe im-
diz que todo o poder emana do povo, que portantes avanços democráticos para o
exerce por meio de representantes eleitos País: criou a Justiça Eleitoral, a qual tor-
(democracia representativa) ou diretamen- nou-se responsável por coordenar o proces-
te (democracia participativa). Consagram- so de realização e de apuração das eleições
se, nesse dispositivo, os princípios funda- no Brasil, e estendeu a cidadania eleitoral
mentais da ordem democrática adotada”.9 às mulheres – a potiguar Celina Guimarães
No processo de evolução da democracia Viana, da cidade de Mossoró, foi a primei-
brasileira, os partidos políticos, os sindica- ra mulher a votar no Brasil.11
tos, as associações políticas, as comunida- As críticas ao Código Eleitoral de 1932
des de base e a imprensa livre ganham levaram, em 1935, à promulgação de nosso
espaço para coordenar e expressar a von- segundo Código, a Lei 48, que substituiu
tade popular no que se refere aos seus o primeiro sem alterar as conquistas de até
anseios e às suas reivindicações. Neste então.12
sentido, um dos sustentáculos da democra- No período de 1964-1985, não houve na
cia representativa baseia-se no compromis- legislação eleitoral qualquer progresso
so dos eleitos em cumprir as propostas quanto ao direito do voto. Governando o
apresentadas durante a campanha.10 País com mão de ferro, o regime militar
Vale a pena percorrer alguns pontos reprimiu de todas as formas legais e ilegais
marcantes da História política brasileira, os os anseios da sociedade por participação e
quais nos ajudam a compreender melhor atuação direta nas decisões políticas impor-
nossa atual conjuntura. A crescente insatis- tantes do País. A promulgação de atos
fação de São Paulo com a demora na institucionais, eleições indiretas, mergu-
elaboração e promulgação de uma Consti- lhou o Brasil em um cenário de medo e de
tuição para o País deflagrou a Revolução repressão.

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Muito interessante foi o processo de tização da ampliação da participação era


elaboração da Constituição Federal de 1988. um norte para a política nacional, e, em
Um anseio generalizado emergiu com o decorrência, a soberania popular tornou-se
enfraquecimento do governo militar, pela a palavra-chave a embasar a vontade de
democratização do regime político, unindo, participação da sociedade na vida política
sob a bandeira das oposições, os mais diver- do País. Todavia, na prática, a soberania
sos segmentos e setores sociais. Essas arti- popular não logrou efetivar seus anseios,
culações, discursos e expectativas mobiliza- tendo em vista as poucas oportunidades
ram a sociedade brasileira, incitando-a, em que o País lhe ofereceu para participar
1985, a se expressar especialmente em uma diretamente da política, bem como pelo
grande campanha social e política pelas fato de os partidos políticos terem falhado
eleições diretas, movimento que recebeu a no papel de legítimos representantes do
denominação de Diretas Já. interesse público.
“Foram as maiores manifestações públi- Após essa breve análise da democracia
cas da história do Brasil. Nos dias 10 e 16 tanto no panorama internacional quanto no
de abril de 1984, cerca de 1 milhão de nacional, podemos apontar que a democra-
pessoas se concentraram na Praça da Can- cia representativa, considerada o regime de
delária, no Rio de Janeiro, e depois no Vale governo que melhor responderia aos an-
do Anhangabaú, em São Paulo, dispostas seios do povo em Estados de larga escala,
a derrubar o legado mais claro da ditadura não vem respondendo a contento, está
militar e exigir eleições diretas para a desacreditada e desvirtuada de sua concep-
Presidência da República.”13 ção original não só no Brasil, mas também
Os setores populares, articulados pelos em diversos outros países. A principal
movimentos sociais, destacaram-se nessa queixa dos cidadãos em relação à crise da
ampla e diversa luta pela democratização democracia está relacionada ao desvio de
do País, carregando o sonho de que tal luta finalidade com que se apresenta, a confi-
conseguiria romper os vínculos centenários gurar um cenário em que interesses parti-
do Estado brasileiro com interesses oligár- culares, corporativos e oligárquicos se
quicos, e permitiria, assim, aos segmentos sobressaem ao interesse coletivo e público.
tradicionalmente excluídos uma participa- O Brasil ainda convive, principalmente em
ção política mais efetiva. seus rincões mais pobres, com a triste
O clamor social por mais liberdade e realidade do clientelismo e do voto de
participação despontou uma sociedade cabresto, na qual os eleitores não têm
melhor organizada, unida por meio de liberdade para votar, já que sua liberdade
distintos setores, com projetos políticos de escolha está submetida ao preço do
diferenciados, o que fez entoar, por toda a suborno, que troca o voto pela promessa de
nação, um discurso unânime de valorização alguma vantagem ou mesmo se cala diante
à cidadania, à democracia, à descentraliza- da ameaça do poder do mais forte.14
ção, à participação da sociedade na gestão Este contexto nos faz refletir se este
de seus interesses comuns. Por esse discur- círculo vicioso que emperra o bom funcio-
so, condenou-se o monopólio estatal sobre namento da democracia representativa é
a gestão da coisa pública e, assim, a uma falha intrínseca ao sistema, impossível
sociedade passou a exigir um maior con- de ser superada.15 Primeiramente, porque
trole sobre o Estado. A luta pela concre- os partidos políticos, longe de representa-

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rem agremiações de idéias, transformaram- rente desconfiança do povo, que reputa


se em facções distantes dos anseios cole- intrinsecamente incompetente. Por isso sua
tivos. Segundo, porque o mandato político, ‘democracia’ sempre depende de pressu-
juridicamente desvinculado dos eleitores, postos notoriamente elitistas, tais como os
mas de certa forma atrelado às bases de que o povo precisa ser preparado para
partidárias pela necessidade de filiação, é a democracia, de que esta pressupõe certo
uma figura jurídica que também está em nível de cultura, certo amadurecimento
crise.16 Outro problema que envolve a de- social, certo desenvolvimento econômico,
mocracia está relacionado à governabilidade e reclama que o povo seja educado para ela,
e, subjacente a esta, à difícil decisão de fazer e outros semelhantes que, no fim das
políticas públicas que agradem a todos: ao contas, preparam os fundamentos doutriná-
povo, às elites, aos organismos e investidores rios do voto de qualidade e restrito.
internacionais e, ao mesmo tempo, à cúpula
A contradição é evidente, pois supõe
do partido político a que se está filiado.
que o povo deve obter tais requisitos para
Todos estes fatores ditarão o futuro político
o exercício da democracia dentro de um
do representante que, na maioria das vezes,
regime não democrático; que as elites
não obstante seu mais puro sentimento de-
devem conduzi-lo a uma situação que
mocrático, quer continuar no poder.
justamente se opõe aos interesses delas e
O desejo de permanência no poder, a as elimina. Temos, enfim, a singularidade
fim de mantê-lo cada vez mais concentra- de aprender a fazer democracia em um
do, gerou por parte de certos políticos, laboratório não democrático.
defensores da pouca ingerência do povo
nos assuntos públicos, que o mesmo não Ora, em verdade, a tese inverte o pro-
sabia votar, que não tinha conhecimento ou blema, transformando, em pressupostos da
preparo suficiente e que, portanto, não teria democracia, situações que se devem ter
capacidade de decisão. A educação era como parte de seus objetivos: educação,
utilizada como pressuposto para a prática nível de cultura, desenvolvimento, que
da democracia, mas, no entanto, pouco se envolva a melhoria de vida, aperfeiçoa-
fazia para que o povo pudesse ter um maior mento pessoal (...).”17
acesso a ela e, conseqüentemente, fazer A tese de que o povo não sabe o que
parte das decisões políticas. A educação é é democracia, de que não sabe votar, por
um pressuposto básico para a prática da muito tempo justificou uma democracia
democracia, mas não pode ser um argu- elitista, a qual buscava colocar no poder
mento para afastar o cidadão do direito de pessoas “preparadas” para o seu exercício,
votar. José Afonso da Silva defende que a com o argumento de que estariam mais
democracia é um processo em constante aptas a filtrar o interesse geral da socieda-
desenvolvimento, que deve ser sempre de. A educação é importante, mas não deve
praticada tanto na esfera pública quanto na ser um argumento para afastar o cidadão
privada e que a educação para a democra- das decisões políticas, até porque tais de-
cia, fundada na discussão sadia, na tolerân- cisões também atingirão seus interesses.
cia e no respeito mútuo, deve acompanhar José Afonso da Silva18 questiona o quão
o cidadão em todos os aspectos de sua vida, falaciosa é a idéia de que o cidadão só
não só na política. poderia votar quando atingisse um nível
“Coerente com sua essência antidemo- educacional adequado para tal. Que nível
crática, o elitismo assenta-se em sua ine- adequado seria este? Na prática, esse argu-

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mento leva a um círculo sem fim, no qual haja vista que ainda é um modelo político
o povo jamais conseguiria atingir o direito indispensável para a sustentação da gover-
de votar e, portanto, ficaria alijado do nabilidade.
poder político. Conforme expressa Bolívar Lamounier:
Estando a democracia representativa tão “Até onde a vista alcança, não há fortes
desacreditada e não podendo a sociedade razões para se supor que a representação
como um todo fazer uso do poder que lhe parlamentar e partidária venha a deixar de
é conferido pela Constituição,19 como su- ser o fulcro da organização democrática da
prir a lacuna que o sistema representativo vida política em sociedades de larga escala.
deixa? A flagrante insatisfação dos repre- A afirmação de que uma democracia ‘par-
sentados nos leva a analisar a possibilidade ticipativa’ tende cada vez mais a coexistir
de, concomitantemente ao sistema repre- com a ‘representativa’ pode, evidentemen-
sentativo, existirem mecanismos de parti- te, ser aceita. De fato, a evolução prática
cipação popular direta nas decisões políti- dos regimes democráticos ao longo deste
cas do País. A pergunta que surge neste século caracterizou-se por duas tendências
momento nos leva a refletir se é possível marcantes, e na verdade não imagináveis
corrigir a crise do sistema de democracia a partir dos embriões históricos e debates
representativa. teóricos sobre esse sistema no século 19:
Seria ingênuo acreditar, diante do atual 1) uma ampliação impressionante no uni-
estágio de organização social, que seria verso dos participantes potenciais do jogo
viável, de uma hora para outra, como num político; 2) um fortalecimento não menos
passe de mágica, substituir o sistema de marcante da expectativa de que os titulares
democracia representativa por outro com- (eletivos ou designados) das funções públi-
pletamente novo, o qual fosse capaz de cas sejam sensíveis à opinião pública, ou
resolver todos os problemas decorrentes da seja, a pressões e reivindicações que se
representatividade. A democracia é um originam em círculos cada vez mais distan-
processo lento e contínuo de adaptação dos tes do epicentro partidário e parlamentar do
anseios sociais aos modelos institucionais sistema”.21
vigentes, mas tais modelos respondem ao Busca-se, como saída, a complementa-
desejo popular de forma limitada, ou seja, ção do sistema representativo, pois uma
de acordo com sua capacidade de resposta. ponderação a respeito da complexidade da
Como diz Norberto Bobbio, não existem organização estatal, hoje, demonstra que a
estruturas perfeitas e a atitude do bom aplicação da democracia direta pura tam-
democrata é a de não se iludir sobre o bém estaria fadada ao insucesso. Primeiro,
melhor sistema político e a de não se porque as pessoas não têm tempo de se
conformar com o pior.20 dedicar à política praticamente de forma
Aos sinais de desgaste da democracia integral como lhes seria exigido do siste-
indireta pura, surge como uma alternativa ma;22 segundo, porque estamos vivendo
a implementação de mecanismos de parti- um momento de especialização e vertica-
cipação popular de forma complementar à lização das grandes questões sociais, a
representação. Não se propõe uma substi- exigir respostas pautadas, muitas vezes, no
tuição radical do sistema representativo conhecimento de técnicos e especialistas.
tradicional pela democracia direta, mas, Seria “humanamente” impossível que um
sim, uma complementação desse sistema, único indivíduo conseguisse acumular em

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si todo o conhecimento necessário para O recall é um mecanismo de participa-


responder às atuais demandas da socieda- ção popular tipicamente norte-americano.
de. Assim, deixar com que todas as ques- Sua forma de aplicação mais conhecida é
tões políticas sejam decididas por todos os aquela que possibilita aos cidadãos revo-
cidadãos, como requer a democracia direta garem o mandato político de determinado
pura, seria insensato, a colocar em xeque representante se estiverem insatisfeitos com
a governabilidade do Estado. Daí o bom sua atuação. Faz-se, então, uma consulta à
senso a indicar que, atualmente, a aproxi- opinião pública, solicitada por um certo
mação a um modelo de democracia semi- número de eleitores, para que seja decidido
direta, com a incorporação de mecanismos se o candidato eleito deve permanecer ou
de participação popular, seria um bom ser destituído de seu cargo, com o direito
caminho para atenuar as deficiências do de o impugnado apresentar ampla defesa
sistema partidário e garantir o exercício da em favor da manutenção de seu mandato
soberania popular, sem trazer riscos à político.
estabilidade do governo,23 a fim de que o Pelo veto popular, confere-se o direito
povo, em situações de relevante interesse aos cidadãos de opinar se determinada lei,
público, possa participar diretamente da discutida e aprovada pelo Poder Legislati-
decisão política, bem como fiscalizar a vo, será vigente no país ou não. Geralmente
atuação de seus representantes. é determinado um prazo, após a promul-
São cinco os mecanismos de participa- gação da lei, para o eleitor se manifestar.
ção popular mais conhecidos e utilizados24 A aprovação popular é condição necessária
no mundo: plebiscito, referendo, iniciativa para a lei entrar em vigor.
popular, recall e veto popular. O Brasil optou por regular apenas os
De forma sucinta, o plebiscito consiste três primeiros mecanismos mencionados,
em uma consulta à opinião pública para conforme dispõe o art. 14, I a III, de nossa
decidir questão política ou institucional, CF: “A soberania popular será exercida
não necessariamente de caráter normativo. pelo sufrágio universal e pelo voto direto
A consulta é realizada previamente à sua e secreto, com igual valor para todos, e, nos
formulação legislativa, autorizando ou não termos da lei, mediante: I – plebiscito; II
a concretização da medida em questão. – referendo; III – iniciativa popular”.
O referendo é uma consulta à opinião Para a funcionalidade desse sistema,
pública para a aprovação de normas legais não basta apenas uma previsão constitucio-
ou constitucionais relacionadas a um interes- nal que ateste a existência de mecanismos
se público relevante. A consulta é feita após de participação popular, é necessária, tam-
a aprovação do projeto normativo e, como bém, uma legislação infraconstitucional
conseqüência, pode aprová-lo ou rejeitá-lo. sólida que lhes dê dinamismo e garanta a
A iniciativa popular enseja ao povo a sua aplicação prática. Todavia, por volta de
oportunidade de apresentar ao Poder Legis- dez anos, o Brasil permaneceu omisso em
lativo um projeto normativo de interesse relação à regulação infraconstitucional, e,
coletivo, o qual, após discussão parlamen- como conseqüência, a possibilidade da
tar e respeitados os requisitos do processo democracia semidireta, apesar de prevista
legislativo, pode se transformar em lei. É constitucionalmente, era um direito de difícil
um instituto que, quando bem estruturado, viabilização prática, o que pode ser cons-
dá força de voz à soberania popular. tatado pela observação de nossos fatos

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históricos, que não contemplaram nesses vos para sua implementação. Esse é o
dez anos nenhum exemplo substancial objetivo deste trabalho: informar e escla-
relacionado à utilização da consulta popu- recer as principais dúvidas relacionadas ao
lar, com exceção do plebiscito de 1993, plebiscito, ao referendo e à iniciativa po-
para a escolha da forma e do sistema de pular, os quais, a seguir, passam a ser
governo a vigorar no País.25 objeto de uma análise mais minuciosa.
Apenas em 1998 foi promulgada uma
lei infraconstitucional com o escopo de 2. Plebiscito
regulamentar o referendo, o plebiscito e a
iniciativa popular – Lei 9.709, de De maneira geral, plebiscito é uma
18.11.1998. Era grande a expectativa dos consulta prévia à população sobre determi-
doutrinadores, estudiosos do assunto e nada questão de interesse coletivo.
defensores da democracia, no sentido de
No Brasil, de acordo com a Lei 9.709/98,
que tal lei abarcasse as principais questões
o plebiscito poderá versar sobre matéria de
relacionadas aos mecanismos de participa-
acentuada relevância constitucional, admi-
ção e pudesse realmente ser um canal para
nistrativa ou legislativa, podendo, inclusive,
o exercício da soberania popular de forma
ser utilizado para aprovar ou não atos nor-
mais freqüente em nosso país. Diversos
mativos.26
estudos haviam sido desenvolvidos para
dar consistência à regulamentação infra-
constitucional, como o estudo da Professo- 2.1 Antecedentes históricos
ra Maria Victoria Benevides, publicado,
posteriormente, em seu livro A cidadania Na antiga Roma havia uma grande
ativa: referendo, plebiscito e iniciativa diferença entre as classes sociais, situação
popular. Todavia, a Lei 9.709/98 frustrou que pode ser constatada, por exemplo, pela
essa expectativa, mostrando-se lacunosa. análise das diferentes prerrogativas entre os
Além disso, foi deveras tímida em relação patrícios e os plebeus. Os patrícios repre-
à ampliação do exercício da soberania sentavam a aristocracia romana e possuíam
popular e não regulou importantes assuntos privilégios relacionados a direitos políticos
relacionados à viabilidade da aplicação da e civis, enquanto os plebeus representavam
democracia semidireta no País. Pratica- a grande maioria da população e, supõe-se,
mente é uma cópia das disposições cons- eram descendentes dos povos conquistados
titucionais sobre o assunto sem maiores e subjugados.
esclarecimentos. Com a evolução da sociedade romana
Infelizmente, os mecanismos de partici- e o crescimento de sua população, os
pação popular no Brasil ainda não são plebeus passaram a exigir direitos e prer-
direitos que fazem parte de nosso cotidiano rogativas perante os patrícios, os quais
político, tanto que muitos brasileiros se- foram obrigados a aderir aos anseios da
quer os conhecem. Provavelmente, o prin- plebe, criando-lhes cargos públicos pró-
cipal caminho para que a democracia se- prios. Assim nasceu o “Tribunato da Ple-
midireta saia do papel e integre nossa be”, que permitia aos plebeus vetar as leis
realidade é uma educação voltada para a que fossem contrárias aos seus interesses.
cidadania, a fim de que as pessoas, ao A Lex Hortensia deu-lhes o direito de votar
conhecer seus direitos, sejam sujeitos ati- as resoluções da assembléia popular, com

Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 3, jan./jun. – 2004 (Artigos)


MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 301

força de lei, e essa decisão chamava-se 2.2 Plebiscito no Brasil


plebiscitum (do latim: plebis – plebe e
scitum – decreto), ou seja, “decreto da A Constituição brasileira de 1937 foi a
plebe”. Mais tarde, no entanto, tornou-se que previu pela primeira vez o instituto em
uma formalidade para legitimar os cônsules nosso país. Este também poderia ser utili-
investidos do poder supremo – como Pom- zado para a incorporação, subdivisão ou
peu e César –, o que originou a expressão anexação de Estados entre si, a critério do
“cesarismo plebiscitário”. Presidente da República. Vale ressaltar que
Historicamente, o plebiscito foi muito o modo como o referendo estava regulado
utilizado para a manutenção de governan- fortalecia demasiadamente os poderes do
tes no poder e reforçar estruturas do poder Presidente da República, fator decorrente
existentes. Por meio do plebiscito, os fran- da centralização política almejada por
ceses se pronunciavam a favor ou contra Getúlio Vargas em seu governo. Assim,
um homem e não a favor ou contra uma poderia ser utilizado pelo chefe do Poder
proposta, um projeto; confiavam a um Executivo, e somente por ele, caso um
homem a faculdade ilimitada do poder, projeto de emenda constitucional de sua
identificando a causa do governante com autoria fosse rejeitado pelo Congresso
as causas populares. O plebiscito passou a Nacional, ou se este aprovasse projeto de
ser uma arma na mão do Executivo – que emenda constitucional apesar da discor-
possuía exclusividade na convocação e dância do Executivo. Em ambos os casos,
autorização – e que, na verdade, buscava o Presidente da República estaria autoriza-
a cumplicidade do povo para legitimar seus do a solicitar um plebiscito nacional, a se
atos, em completo desrespeito à soberania realizar noventa dias após sua resolução, o
popular. Por este motivo, para os franceses, qual transformaria em norma constitucio-
o plebiscito possui uma conotação pejora- nal o que fora levado à consulta popular
tiva, pois, na verdade, houve uma deturpa- caso aprovado pelo povo. Esta mesma
ção da democracia pela demagogia. Alguns Constituição previa em seu art. 187 um
exemplos do emprego deturpado do plebis- plebiscito de autolegitimação, mas este
cito são: Napoleão Bonaparte – 1804 – nunca se efetivou.
Imperador da França; Luís Napoleão Bo-
naparte – 1852 – Imperador da França; A Constituição de 1946 previa o insti-
Adolph Hitler – 1938 – anexação da tuto apenas para incorporação, subdivisão
Áustria à Alemanha; General De Gaule – ou desmembramento de Estados entre si. A
1962 e 1969 – França.27 Constituição de 1967, em pleno governo
Na América do Sul, a participação militar, sequer previu a possibilidade de
popular na atividade legislativa é pouco consulta popular nos casos territoriais, fi-
difundida. O sistema presidencialista é ex- cando o assunto dependente de regulamen-
cessivamente centralizado e os Legislativos tação por lei complementar.28
têm um perfil oligárquico. No Uruguai, por O primeiro plebiscito em âmbito federal
exemplo, foram realizados somente 12 ple- foi realizado no Brasil em janeiro de 1963,
biscitos desde 1917. Em vários países euro- para a manifestação popular acerca do
peus, assim como no Brasil, o plebiscito tem sistema de governo (presidencialista ou
um enfoque mais voltado a assuntos territo- parlamentarista), já que o sistema parla-
riais, já que, na grande maioria das vezes, mentarista havia sido instituído com o
foi utilizado com esta finalidade. intuito de impedir o governo do então

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302 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

presidente João Goulart, que possuía ten- legislativo, com proposta de, no mínimo, 1/
dências socialistas, fato que assustava não 3 dos integrantes de qualquer uma das
só os militares, como também os detentores Casas, ou seja, este dispositivo legal retira
do poder à época. Por meio de uma das mãos do povo a possibilidade de decidir
manobra política, João Goulart conseguiu qual assunto considera relevante para ser
conclamar o plebiscito com o objetivo de discutido e consultado no âmbito nacional,
trazer de volta o sistema presidencialista ao já que restringe ao Congresso Nacional a
Brasil, a fim de governar com mais liber- prerrogativa de deliberar o que deverá passar
dade. As urnas foram favoráveis à proposta ou não pelo crivo popular. No âmbito es-
e o presidencialismo foi vitorioso com 80% tadual e municipal, o plebiscito será convo-
dos votos. Todavia, após apresentar suas cado em conformidade com a respectiva
“Reformas de Base”, o que despertou o Constituição Estadual e com a Lei Orgânica
medo do comunismo, o presidente João Municipal, como veremos adiante.
Goulart foi deposto em 1964 pelo chamado O plebiscito no Brasil poderá abranger
“Golpe Militar”. duas formas: a ampla e a orgânica. A ampla
Na Constituição de 1988, encontramos versa sobre qualquer questão de relevância
o instituto do plebiscito em cinco artigos: nacional, de competência dos Poderes
o art. 14, I, prevê o exercício da soberania Legislativo ou Executivo (não é previsto
popular também por meio de plebiscito; o para o Judiciário), é o caso descrito no
art. 18 possibilita a incorporação, subdivi- parágrafo anterior. A orgânica está relacio-
são e desmembramento de Estados entre si; nada com a incorporação, subdivisão e
o art. 18, § 4.°, dispõe sobre a criação, desmembramento de Estados ou fusão,
incorporação, fusão e desmembramento de incorporação, criação e desmembramento
Municípios; o art. 49, XV, estabelece a de Municípios. Em relação aos Estados, é
competência exclusiva do Congresso Na- necessária, segundo o art. 4.º da Lei 9.709/
cional para convocação de plebiscitos; e o 98, a aprovação da população diretamente
art. 2.° do ADCT determinou a realização interessada por meio de plebiscito, o qual
de plebiscito para a escolha da forma e do deverá ser realizado em data e horário
sistema de governo em 07.09.1993. coincidentes em cada Estado, bem como a
Somente em 18.11.1998, dez anos após aprovação do Congresso Nacional, por
a promulgação da Constituição Federal, foi meio de lei complementar, depois de ou-
promulgada a Lei 9.709/98, com o intuito vidas as respectivas Assembléias Legisla-
de regulamentar os mecanismos de parti- tivas. Já em relação aos Municípios, a Lei
cipação popular no Brasil, previstos nos 9.709/98 prevê, em seu art. 5.º, a convo-
incisos I, II e III do art. 14 da CF. Esta cação do plebiscito pela Assembléia Legis-
norma legal prevê que o plebiscito será lativa do Estado, em conformidade com a
convocado com anterioridade ao ato legis- legislação federal e estadual.
lativo ou administrativo e que caberá ao Finalmente, são de responsabilidade da
povo aprovar ou denegar, pelo voto, o que Justiça Eleitoral os trâmites administrativos
lhe foi submetido. do plebiscito, tais como data, cédula de
O art. 3.° da referida lei estabelece que, votação, instruções para realização, entre
para questões de relevante interesse nacio- outros. Se o assunto a ser consultado
nal, a convocação do plebiscito será feita constar de projeto de lei em tramitação ou
pelo Congresso Nacional, mediante decreto de medida administrativa não efetuada,

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MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 303

ambos terão sua tramitação sustada até a Eleitores em 2003 1%


apuração do resultado da consulta. O ple- Eleitores no Estado de São Paulo 26.092.920 260.929

biscito será aprovado ou rejeitado por


(Coluna 1) (Coluna 2) (Coluna 3)
maioria simples, de acordo com o resultado Município Eleitores 2003 2/10%
homologado pelo Tribunal Superior Elei- 1 SÃO PAULO 7.587.634 15.175
toral. 2 CAMPINAS 662.536 1.325
Encontramos a regulação do plebiscito 3 GUARULHOS 611.332 1.223
em diversos Estados e Municípios da 4 SANTO ANDRÉ 502.910 1.006
Federação, mas, para um estudo maior e 5 SÃO BERNARDO DO CAMPO 481.925 964
mais aprofundado, daremos destaque ao 6 OSASCO 459.001 918
instituto no âmbito de São Paulo e de sua 7 SÃO JOSÉ DOS CAMPOS 359.696 719
capital. 8 RIBEIRÃO PRETO 348.470 697
9 SANTOS 334.933 670
10 SOROCABA 330.422 661
2.3 Plebiscito no Estado de São Paulo e 11 DIADEMA 260.887 522
capital 12 SÃO JOSÉ DO RIO PRETO 246.990 494
13 MAUÁ 242.885 486
Compete exclusivamente à Assembléia 14 JUNDIAÍ 235.159 470
Legislativa do Estado de São Paulo a 15 PIRACICABA 223.285 447
convocação de plebiscito, segundo o art. 12.888.065 25.776
20, XVIII, da Constituição Estadual. No Dados de Dez/03
entanto, o povo poderá solicitar sua reali- Fonte: TRE/SP (www.tre-sp.gov.br)

zação ao Tribunal Regional Eleitoral por


proposta de, pelo menos, 1% do eleitorado, A possibilidade de convocação de ple-
distribuído, no mínimo, entre 5 dos 15 biscito pelo povo, em nível estadual, atin-
maiores Municípios do Estado, com não gido o mínimo do número de subscrições,
menos de 0,2% de eleitores em cada um pode ser considerada uma inovação, já que
deles, ouvida a Assembléia Legislativa.29 a Constituição Federal e a Lei 9.709/98 não
A Constituição, no entanto, não prevê qual prevêem tal prerrogativa. Há, no entanto,
critério é utilizado para se obter os 15 quem diga que essa prerrogativa seria
maiores Municípios: PIB, número de eleito- inconstitucional, por não estar prevista em
res, população etc., o que dificulta a correta nossa Carta Maior. Todavia, a Constituição
interpretação e efetivação do instituto. Federal de 1988 dá destaque à soberania
De acordo com a tabela abaixo, pode- popular, o que se sobrepõe a qualquer
mos ter uma idéia de que a porcentagem divergência ou interpretação, dizimando
de assinaturas exigida para a solicitação de qualquer discussão quanto à validade da
plebiscito pela população do Estado não é norma. A efetiva utilização deste instrumen-
tão difícil de ser obtida, na medida em que to pode ajudar a consolidar a prática da
o número de eleitores exigidos não é tão consulta popular e, quem sabe, ser absorvida,
expressivo – cerca de 3,44 % do eleitorado futuramente, no âmbito nacional.
do Município de São Paulo. A maior A Constituição Estadual de São Paulo
dificuldade está, a nosso ver, na articulação também estabelece a realização de plebiscito
para se conseguir adesões em, no mínimo, para os casos de fusão, criação, incorporação
5 dos 15 maiores Municípios do Estado e o desmembramento de Municípios, nos
(coluna 3).30 mesmos moldes previstos pela legislação

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304 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

nacional, desde que ouvida a população O plebiscito é muito criticado pelos


diretamente interessada e desde que obser- autores por sua má utilização no passado.
vadas certas condições estipuladas por lei, Apesar disso, não se pode condenar o
tais como população mínima de 2.500 ha- plebiscito ao fracasso. “O plebiscito pode
bitantes, eleitorado não inferior a 10% da ser utilizado para o bem, desde que haja
população, centro urbano já constituído com, comprometimento e vontade política para
no mínimo, 200 casas; entre outras. uma ampla discussão acerca dos temas que
Os Municípios, em geral, possuem dire- serão submetidos à consulta.”32
trizes e procedimentos em suas leis orgânicas
para realização de plebiscitos. Na Lei Orgâ- 3. Referendo
nica do Município de São Paulo, em seu art.
10,31 é previsto plebiscito antes da discussão 3.1 Conceito e aspectos históricos
e aprovação de obras de elevado valor ou
que tenham significativo impacto ambiental. Referendo é um mecanismo de consulta
Neste caso específico, o Legislativo e o popular para a confirmação ou rejeição de
Executivo devem tomar a iniciativa da con- determinada lei, projeto de lei ou emenda
vocação. A crítica que se faz é a não- constitucional; consiste em submeter ao
especificação do valor aproximado das obras crivo do povo determinada espécie norma-
públicas que poderão ser objeto de consulta tiva, fator que enseja a participação popular
popular, pois, de acordo com a redação do direta na construção de seu ordenamento
dispositivo, não se sabe ao certo qual o jurídico e, por isso, amplia espaços demo-
critério para avaliação da obra, ficando a cráticos paralelamente ao sistema político
cargo somente do Legislativo e do Executivo representativo.
a convocação da consulta, não podendo o Segundo Maria Victória Benevides, o
povo sequer fiscalizar. termo referendo origina-se da expressão ad
O art. 44, II, prevê a iniciativa dos referendum e tem raízes em cantões suíços,
cidadãos para requerer à Câmara Munici- como Valais e Grisons, por volta do século
pal a realização de plebiscito sobre assunto XV, implementado à época com o objetivo
de relevante interesse do Município ou do de validar perante os cidadãos as decisões
bairro pela manifestação de, pelo menos, emanadas das Assembléias cantonais.33
1% do eleitorado municipal. Tal solicitação A teorização do instituto deu-se na
terá tramitação especial assegurada na França, no final do século XVIII, fruto de
Câmara Municipal e a possibilidade de debates acalorados entre defensores da
defesa oral pelo representante dos reque- democracia direta versus fautores do mo-
rentes. Abaixo, vemos uma tabela com delo representativo. Na metade do século
valores aproximados da quantidade de elei- XIX, no entanto, o povo francês começou
tores necessários para a requisição de ple- a repudiar o referendo pelo fato de, muitas
biscito em âmbito municipal: vezes, ter sido confundido com o plebis-
cito, e utilizado de forma desvirtuada por
Eleitores Municipais em 2003 7.587.634 Napoleão Bonaparte com o intuito de
legitimar suas decisões políticas. No século
Plebiscito (1%) 75.876 XX, o instituto expandiu-se pela América
Dados de Dez/2003 do Norte34 e Europa,35 as quais passaram
Fonte TRE/SP (www.tre-sp.gov.br)
a empregá-lo para ampliar a participação

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MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 305

popular e, ao mesmo tempo, manter a suas regras são as mesmas que servem de
estrutura da democracia representativa. Len- parâmetro para o plebiscito, apesar de
tamente, diversos outros países ocidentais serem institutos diferentes, que não podem
passaram a prever o referendo em suas ser confundidos.37
Constituições; todavia, em muitos deles, tal Segundo o art. 2.º da referida lei, “ple-
figura jurídica restou esquecida no texto biscito e referendo são consultas formula-
legal, sem qualquer expressão prática. das ao povo para que delibere sobre ma-
Há, no entanto, alguns exemplos histó- téria de acentuada relevância, de natureza
ricos em que o referendo foi utilizado para constitucional, legislativa ou administrati-
solucionar importantes questões políticas.36 va”; porém, conforme preleciona o § 2.º do
Podemos citar a França, que em 1962 dispositivo mencionado, “o referendo é
recorreu ao referendo para reformar a convocado com posterioridade a ato legis-
Constituição da Quinta República e im- lativo ou administrativo, cumprindo ao
plantar o regime semipresidencialista, bem povo a respectiva ratificação ou rejeição”.
como eleições diretas para a escolha do A diferenciação feita pela legislação
Presidente. Na década de 90, os cidadãos está basicamente relacionada ao aspecto
franceses foram novamente consultados, temporal desses institutos: o plebiscito é
desta vez por François Miterrand, para se convocado com anterioridade ao ato legis-
pronunciarem sobre a ratificação do Tra- lativo ou administrativo, objeto de consul-
tado de Maastricht, sustentáculo para o ta, enquanto a convocação do referendo é
sucesso da União Européia. Por pouco o posterior. A lei não especifica qualquer
Tratado não foi ratificado pelos franceses, detalhe sobre o significado do verbo “con-
pois apenas 51% dos votos foram favorá- vocar”, utilizado para ambos os institutos,
veis. Em 1991, Gorbatchov propôs um apesar de a Constituição Federal, em seu
referendo na ex-União Soviética para a art. 49, XV, estabelecer que é da compe-
criação da Comunidade de Estados Inde- tência exclusiva do Congresso Nacional
pendentes (CEI). Com a posterior ascensão “autorizar” referendo e “convocar” plebis-
de Yeltsin ao poder e o conseqüente aban- cito. Pela forma como o assunto está
dono da CEI por dezessete Repúblicas, regulado, tudo indica que a lei não abre
transformando-a na atual Rússia, foram espaço para que o povo, pautando-se em
propostas, em 1993, outras duas consultas um determinado número de assinaturas,
populares: a primeira para a legitimação de possa dar início a uma consulta popular,
Yeltsin e de sua política econômica de cunho mesmo sobre um assunto que considere de
mais liberal, e a segunda para a aprovação relevante interesse social. Tal fator enfra-
de um novo texto constitucional. quece o próprio escopo dos mecanismos de
participação popular, qual seja resgatar a
3.2 A regulação do referendo no Brasil força da soberania popular nos sistemas de
democracia representativa, já enfraqueci-
O referendo entrou para o ordenamento dos por uma séria crise de legitimidade.
jurídico brasileiro apenas com a Constitui- Apesar de a Constituição silenciar a
ção Federal de 1988. Está regulado na Lei respeito da possibilidade ou não de concla-
9.709/98, com o plebiscito e a iniciativa mação de referendo para aprovação de
popular. Tal lei é bastante reticente em emenda constitucional,38 uma interpreta-
relação ao referendo, tanto que muitas de ção sistemática do art. 2.º da Lei 9.709/98,

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306 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

o qual se reporta à expressão “matéria de rendo rejeitar a questão, será necessário


acentuada relevância de natureza constitu- regular os efeitos jurídicos conseqüentes de
cional”, juntamente dos princípios de nossa sua anulação.40
atual Constituição Federal, dentre os quais A outra indagação suscitada pelo art. 11
o da soberania popular, aponta para a está relacionada ao prazo que prevê para
possibilidade de submeter à aprovação convocar a consulta: Qual o parâmetro em
popular questão regulada por emenda cons- que se baseou o legislador para estabelecer
titucional. Esta espécie normativa, conside- o período de trinta dias para a convocação
rada uma manifestação do Poder Consti- do referendo? A nosso ver, este é um prazo
tuinte Derivado Reformador, deve, a nosso preclusivo, no sentido de que, se a consulta
ver, passar pela aprovação popular para não for prevista nesse período, não mais
obter legitimidade caso regule matéria de poderá ser realizada. No entanto, pondera-
acentuada relevância. É o caso, por exem- mos que tal lapso temporal é demasiada-
plo, da Emenda Constitucional 41, de mente curto para que se tenha uma opinião
19.12.2003, que alterou regras importantes sólida sobre a necessidade ou não da
sobre a Previdência Social, e deveria ter realização do referendo. A fixação de um
sido submetida a referendo após sua apro- prazo preclusivo para a conclamação do
vação, dada sua relevância social. Todavia, referendo é medida necessária para garantir
a consulta não foi prevista e nem há sinais certeza e estabilidade ao ordenamento ju-
de que ela poderá ocorrer, o que demonstra rídico (talvez um ano seria um prazo
que a implementação da consulta popular razoável), caso contrário, uma lei ou me-
no Brasil ainda é frágil. dida administrativa já consolidada poderia
Tanto o plebiscito quanto o referendo ser questionada a qualquer momento, como
são aprovados ou rejeitados por maioria submeter a referendo, hoje, a parte geral do
simples, de acordo com o resultado apura- Código Penal, modificada em julho de
do pelo Tribunal Superior Eleitoral. Incum- 1984 pela Lei 7.209, o que não teria
be à Justiça Eleitoral fixar a data da cabimento e só acarretaria incerteza e
consulta popular, tornar pública a cédula de insegurança jurídica.
votação, expedir instruções para a realiza-
ção da consulta e assegurar um horário 3.3 Referendo no Estado de São Paulo e
gratuito nos meios de comunicação em capital
massa para os grupos debatedores esclare-
cerem a população sobre o assunto a ser A Constituição do Estado de São Paulo
consultado.39 prevê a possibilidade de realização de re-
Conforme o art. 11 da Lei 9.709/98: “O ferendo ao dispor em seu art. 20, XVIII,
referendo pode ser convocado no prazo de que: “Compete, exclusivamente, à Assem-
trinta dias, a contar da promulgação da lei bléia Legislativa autorizar referendo e
ou da adoção de medida administrativa, convocar plebiscito, exceto nos casos pre-
que se relacione de maneira direta com a vistos nesta Constituição”. Logo abaixo, no
consulta popular”. Tal dispositivo abre art. 24, § 3.º, itens 2 e 4, abre uma
espaço para algumas indagações. Primeira- importante porta para a ampliação desse
mente, não indica se durante esse prazo a instituto, ao permitir que 1% do eleitorado
lei ou a medida administrativa entrarão em do Estado, distribuído pelo menos nos 5
vigor. Se entrar, e, posteriormente, o refe- dentre os 15 maiores Municípios, com, no

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MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 307

mínimo 0,2% de eleitores em cada um Art. 45: “As questões relevantes aos
deles, requeira à Assembléia Legislativa a destinos do Município poderão ser subme-
realização de referendo sobre lei.41 tidas a plebiscito ou referendo por proposta
A Constituição do Estado de São Paulo do Executivo, por 1/3 (um terço) dos
é, portanto, mais ampliativa que a Consti- vereadores ou por pelo menos 2% (dois por
tuição Federal e a própria Lei 9.709/98, ao cento) do eleitorado, decidido pelo Plená-
regular expressamente que, no âmbito esta- rio da Câmara Municipal”.
dual, a prerrogativa para requerer referendo Ao que tudo indica, há uma colisão
também cabe aos cidadãos, ou seja, não é insuperável entre esses dois dispositivos43
exclusiva do Poder Legislativo. Vale ressal- impossível de ser solucionada apenas pelo
tar, entretanto, que a expressão utilizada método interpretativo. Nesse sentido, será
pelo dispositivo da Constituição paulista é necessária uma nova emenda à Lei Orgâ-
“referendo sobre lei”, o que nos faz deduzir nica paulista para ser fixada qual é a
que o legislador não permite a conclamação porcentagem correta exigida pelo legisla-
de referendo por 1% do eleitorado do Esta- dor para que o povo possa requerer o
do para o caso de ato administrativo. referendo. Sem dúvida, o art. 45 é mais
A Lei Orgânica do Município paulista gravoso, pois, além de ter elevado o parâ-
segue a mesma linha. Dispõe em seu art. metro de assinaturas para 2% do eleitorado,
14, X, que “compete privativamente à determina que o Plenário da Câmara
Câmara Municipal: autorizar a convocação Municipal decidirá sobre a proposta apre-
de referendo e plebiscito, exceto os casos sentada.
previstos nesta Lei”, e, em seu art. 44, II, Para facilitar a compreensão desses dois
que 1% do eleitorado poderá requerer à dispositivos, temos a seguinte tabela:
Câmara Municipal a realização de referen-
do sobre lei. Além disso, amplia a força da
participação popular ao assegurar tramita- Eleitores em 2003 1% 2%
ção especial e urgente ao pedido de con- Eleitores do Município
7.587.634 75.876 151.753
de São Paulo
sulta solicitado pelo povo, bem como ao
Dados de Dez/03
possibilitar a defesa oral da proposta pelos Fonte: TRE/SP (www.tre-sp.gov.br)
representantes dos proponentes.42
Apesar dessa inovação, a nova redação
do art. 45 da Lei Orgânica paulista, alterada 4. Iniciativa popular
pela Emenda 24 de 2001, nos causa estra-
nheza, haja vista que seu conteúdo é 4.1 Conceito
incompatível com a redação do art. 44, II,
mencionado acima. Comparemos os dois A iniciativa popular se autodefine pelo
dispositivos: exercício da soberania popular, ao permitir
Art. 44, II: “Para requerer à Câmara o acesso de um grupo de cidadãos, na
Municipal a realização do plebiscito sobre elaboração de um projeto de lei, submeten-
questões de relevante interesse do Municí- do-o à apreciação do Poder Legislativo,
pio, da cidade ou de bairros, bem como desde que cumpridos os pressupostos le-
para a realização de referendo sobre lei, gais. A Constituição Federal de 1988 aco-
será necessária a manifestação de pelo lheu seu uso conforme o disposto no art.
menos 1% (um por cento) do eleitorado”. 14, III, e art. 61, § 2.º.

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308 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

As condições para o exercício deste se a assinatura de, no mínimo, cinqüenta


direito variam de acordo com os pre- mil eleitores para a propositura da inicia-
ceitos legais e constitucionais de cada tiva popular, enquanto, na Espanha, são
país que o adota. Mas, apesar das exigidas quinhentas mil assinaturas com
diferenças entre os países que o pra- firma reconhecida.
ticam, inexiste dúvida quanto ao seu Na América Latina, países como Argen-
significado. Segundo Maria Victoria tina, Colômbia, Venezuela, Equador e
Benevides: Paraguai acolheram a iniciativa popular em
“Por iniciativa popular legislativa suas respectivas Constituições.
entende-se sempre o mesmo mecanis-
mo, que inclui um processo de parti- 4.3 Iniciativa popular no Brasil
cipação “complexo”, desde a elabora-
ção de um texto (das simples moções Segundo a Constituição Federal brasi-
ao projeto de lei ou emenda constitu- leira: “A iniciativa popular pode ser exer-
cional formalmente articulados) até a cida pela apresentação à Câmara dos De-
votação de uma proposta, passando putados de projeto de lei subscrito por, no
pelas várias fases da campanha, coleta mínimo, um por cento do eleitorado nacio-
de assinaturas e controle de constitu- nal, distribuído pelo menos por cinco Es-
cionalidade”.44 tados, com não menos de três décimos por
cento dos eleitores de cada um deles”.46
4.2 Aspectos históricos do instituto45 O número elevado de assinaturas, bem
como sua distribuição pelos Estados são
Conforme a História registra, o apare- fatores que, de certa forma, dificultam o
cimento da iniciativa popular deu-se no exercício desse direito. Podemos ter uma
final do século XIX, nos Estados Unidos, melhor visualização desses requisitos por
onde foi previsto pela primeira vez, em meio da tabela a seguir:
1898, no Estado de Dakota do Sul. Toda-
via, foi o Estado de Oregon, em 1904, que
Total de eleitores em âmbito nacional 1%
primeiro utilizou-se da iniciativa popular
115.184.176 1.151.841
de forma prática.
A Constituição de Weimar passou a
admiti-la a partir de 1919, e exigia, para
sua efetivação, participação mínima de um Quadro Geral do Eleitorado por UF
décimo do eleitorado. Posteriormente, a
Alemanha também adotou sua prática por UF Eleitores 0,30%
meio da Lei Fundamental de Bonn, com o AC 369.786 1.109
propósito de modificação do território de AL 1.600.092 4.800
seus Estados integrantes. Vale a pena res- AM 1.524.727 4.574
saltar que a adoção do instituto para essa AP 290.101 870
finalidade foi atípica, já que o plebiscito é BA 8.568.602 25.706
o instituto mais empregado para esses fins. CE 4.805.259 14.416
A Suíça o prevê para promover mais DF 1.518.437 4.555
projetos de emenda constitucional do que ES 2.146.425 6.439

projetos de lei ordinária. Na Itália, exige- GO 3.365.848 10.098

Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 3, jan./jun. – 2004 (Artigos)


MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 309

MA 3.391.814 10.175 impossível exigir do povo todos os requi-


MG 12.680.584 38.042 sitos formais relacionados à técnica de
MS 1.411.773 4.235 redação legislativa, o que inviabilizaria por
MT 1.730.022 5.190 completo o instituto. Assim, geralmente os
PA 3.569.333 10.708 projetos de lei advindos de iniciativa po-
PB 2.322.068 6.966 pular são apresentados em forma de moção
PE 5.396.667 16.190 ou de articulado. Por meio da moção, o
PI 1.848.292 5.545 povo apresenta ao Congresso uma redação
PR 6.663.381 19.990 simples expondo o assunto que deseja ver
RJ 10.213.518 30.641 regulado. Já pelo articulado, apresenta um
RN 1.917.382 5.752 conjunto de itens, que guiará os parlamen-
RO 882.545 2.648 tares quando da elaboração da norma.
RR 208.524 626 Uma questão polêmica relacionada à
RS 7.352.139 22.056 iniciativa popular diz respeito se tal instituto
SC 3.817.974 11.454 pode ou não ser utilizado pelos cidadãos
SE 1.147.933 3.444 para propor ao Congresso Nacional propos-
SP 25.655.553 76.967 ta de emenda à Constituição. Tal prerroga-
TO 785.397 2.356 tiva seria muito importante para o fortaleci-
Eleições 2002
Dados TSE (www.tse.gov.br)
mento da soberania popular; no entanto,
não há previsão expressa nem na Constitui-
Somente após dez anos da promulgação ção nem na Lei 9.709/98 quanto a essa
da Constituição Federal, foi promulgada possibilidade, tanto que ambos os diplomas
uma lei infraconstitucional para regular a normativos utilizam em seus dispositivos a
iniciativa popular – Lei 9.709/98. Esta, no expressão “projeto de lei”, e em nenhum
entanto, cuidou de tal instituto apenas nos momento se reportam aos termos “projeto
arts. 13 e 14. de emenda constitucional”. O mesmo acon-
tece no art. 60 de nossa Carta Magna, que,
A lei infraconstitucional não desce a ao regular os trâmites para a aprovação de
muitos detalhes sobre o procedimento para emenda à Constituição, estabelece em seus
a realização da iniciativa popular. Todavia, incisos que “a Constituição poderá ser
vale destacar o disposto no art. 13, §§ 1.º emendada mediante proposta: I – de um
e 2.º: “§ 1.º O projeto de lei de iniciativa terço, no mínimo, dos membros da Câmara
popular deverá circunscrever-se a um só dos Deputados ou do Senado Federal; II –
assunto. do Presidente da República; III – de mais da
§ 2.º O projeto de lei de iniciativa metade das Assembléias Legislativas das
popular não poderá ser rejeitado por vício unidades da Federação, manifestando-se,
de forma, cabendo à Câmara dos Deputa- cada uma delas, pela maioria relativa de
dos, por seu órgão competente, providen- seus membros”, mas silencia quanto à pos-
ciar a correção de eventuais improprieda- sibilidade de iniciativa popular. Apenas uma
des de técnica legislativa ou de redação”. interpretação sistemática dos princípios
Estas disposições legais facilitam a re- constitucionais, colocando em relevo o prin-
dação do projeto de lei a ser apresentado cípio da soberania popular poderia abrir
para o Congresso, o qual deverá ser fiel ao uma porta nesse sentido.
espírito popular quando da elaboração final A legislação também deixa uma lacuna
da lei a ser promulgada. Seria praticamente em relação à obrigatoriedade ou não de o

(Artigos) Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 3, jan./jun. – 2004


310 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

Congresso Nacional votar o projeto de lei Municípios com não menos que dois dé-
advindo de iniciativa popular, e em qual cimos de unidade por cento de eleitores em
prazo. Também não esclarece se o Presi- cada um deles.”
dente da República, após os trâmites legais “5 – não serão suscetíveis de iniciativa
da votação do projeto pelos parlamentares, popular matérias de iniciativa exclusiva,
poderá ou não exercer o seu poder de veto. definidas nesta Constituição.”
Há, no entanto, o aspecto moral que atrela Podemos visualizar melhor esses núme-
tanto o Poder Legislativo quanto o Poder ros na seguinte tabela:47
Executivo para a promulgação de lei ori-
ginária de iniciativa popular, pois, caso
Eleitores em 2003 0,5%
contrário, cairão em descrédito diante de
Eleitores no Estado de São Paulo 26.092.920 130.465
seus eleitores.
Dados de Dez/03
No cenário do federalismo brasileiro, as Fonte: TRE/SP (www.tre-sp.gov.br)

Constituições Estaduais e as Leis Orgâni-


cas Municipais também dispõem acerca da Além disso, prevê em seu art. 22 a
iniciativa popular. Alguns Estados foram possibilidade de iniciativa popular para
mais abrangentes, permitindo emendar as proposta de emenda à Constituição Esta-
Constituições por meio da iniciativa popular, dual mediante a assinatura de um por cento
como é o caso de São Paulo e do Rio Grande dos eleitores. Neste sentido, a Constituição
do Sul. Outros apenas adotaram as disposi- paulista abre uma porta maior ao exercício
ções contidas na Constituição Federal. da soberania popular quando comparada à
Constituição Federal.
4.4 Iniciativa popular no Estado de São Em relação ao Município paulista, dis-
Paulo e capital põe nossa Lei Orgânica:
“Art. 5.º O Poder Municipal pertence ao
Concentraremos o estudo do instituto povo, que o exerce através de representan-
no Estado e Município São Paulo, para tes eleitos para o Legislativo e o Executivo,
melhor evidenciar uma aplicação prática à ou diretamente, segundo o estabelecido
nossa realidade. nesta Lei:
A Constituição Estadual de São Paulo
(...)
determina, conforme disposto no art. 24, §
3.º, que:“O exercício direto da soberania § 1.º O povo exerce o poder: (...) II –
popular realizar-se-á da seguinte forma: pela iniciativa popular em projetos de
1 – a iniciativa popular pode ser exer- emenda à Lei Orgânica e de lei de interesse
cida pela apresentação de projeto de lei específico do Município, da cidade ou de
subscrito por, no mínimo, cinco décimos de bairros”.
unidade por cento do eleitorado do Estado, “Art. 44, I: Para projetos de emendas à
assegurada a defesa do projeto por repre- Lei Orgânica e de lei de interesse especí-
sentantes dos respectivos responsáveis, fico do Município, da cidade ou de bairros,
perante as Comissões pelas quais trami- será necessária a manifestação de pelo
tar.”. menos 5% (cinco por cento) do eleitorado.”
“4 – o eleitorado referido nos itens Tal porcentagem é expressa, aproxima-
anteriores deverá estar distribuído em, pelo damente, pelo número de eleitores demons-
menos, cinco dentre os quinze maiores trado no quadro abaixo:

Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 3, jan./jun. – 2004 (Artigos)


MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 311

Eleitores Municipais em 2003 7.587.634 convocar plebiscito”. Note-se que o legis-


Iniciativa Popular (5%) 379.382 lador constituinte utilizou verbos diferentes
para cada um dos institutos mencionados,
Dados de Dez/03
Fonte: TRE/SP (www.tre-sp.gov.br) ou seja, o referendo deve ser “autorizado”,
e o plebiscito deve ser “convocado”. De-
Apesar de a Lei Orgânica paulista per- vemos considerar que o legislador não
mitir a utilização da iniciativa popular para utilizaria verbos distintos em um preceito
a propositura de emendas a seu texto, o que normativo tão curto se não quisesse expres-
é uma inovação, eleva o número de assi- sar sentidos diferentes. No entanto, o legis-
naturas para um patamar alto, qual seja lador infraconstitucional não levou em
cinco por cento do eleitorado, fator que consideração tal questão e utilizou, no art.
impõe uma certa barreira para a viabilidade 2.º, §§ 1.º e 2.º, da Lei 9.709/98, o verbo
do instituto. “convocar” tanto para o plebiscito quanto
Seria muito interessante para a amplia- para o referendo.
ção do processo democrático no Brasil que Qual seria a diferença entre “autorizar”
a iniciativa popular, bem como os demais e “convocar”? Poderíamos interpretar que
mecanismos de participação popular pre- a autorização seria um sinônimo de “per-
vistos em nosso ordenamento jurídico, missão”, e, dessa forma, caberia exclusiva-
tivessem uma aplicação mais freqüente mente ao Congresso Nacional o chama-
tanto em âmbito estadual quanto munici- mento inicial para a realização de referen-
pal, pois tal fator aproximaria mais as do. Partindo dessa diferenciação, o verbo
pessoas do exercício da democracia parti- “convocar” facultaria ao povo a possibili-
cipativa, o que contribuiria sobremaneira dade de solicitar a realização de plebiscito
para fortalecer a sociedade civil. para a discussão de um assunto de interesse
relevante, com um certo número de assi-
naturas a ser delimitado pelo legislador
5. Questões práticas para a implementa-
infraconstitucional.
ção da democracia semidireta
Poderíamos, ainda, interpretar o contrá-
O maior desafio para o sucesso de uma rio, ou seja, considerar a “convocação”
lei é a sua aplicação aos casos concretos como ato prévio para conclamar a realiza-
e a conseqüente produção de resultados ção da consulta. Nesse caso, caberia ao
satisfatórios à sociedade. No entanto, em Congresso Nacional a prerrogativa exclu-
relação à implementação dos mecanismos siva de permitir a realização de plebiscito,
de democracia semidireta no Brasil, con- mas estaria aberta ao povo a possibilidade
tamos, infelizmente, com um arcabouço de dar início a um pedido para a realização
jurídico insuficiente para regular inúmeros de referendo.
dos desmembramentos decorrentes da apli- Todavia, se o verbo “autorizar” não for
cação prática do plebiscito, do referendo e diferenciado do verbo “convocar”, confor-
da iniciativa popular. me a linha seguida pelo legislador infra-
Primeiramente, chamamos a atenção constitucional,48 então o povo ficará total-
para a questão da convocação da consulta mente alijado da possibilidade de solicitar
popular. Determina o art. 49, XV, de nossa a realização seja do plebiscito, seja do
CF que: “É da competência exclusiva do referendo, pois este direito restará exclusi-
Congresso Nacional autorizar referendo e vamente nas mãos do Congresso Nacional.

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312 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

A leitura do art. 3.º da Lei 9.709/98 porcentual de um terço poderia ser com-
também aponta uma outra preocupação. plementado, ou seria necessário movimen-
Estabelece tal dispositivo: “nas questões de tar o Congresso para elaborar o decreto
relevância nacional, de competência do legislativo partindo-se do ponto zero?
Poder Legislativo ou do Poder Executivo, Tomando-se como referência a segunda
e, no caso do § 3.º do art. 18 da Consti- hipótese, ou seja, de que sempre é neces-
tuição Federal, o plebiscito e o referendo sária a elaboração de um decreto legislativo
são convocados mediante decreto legisla- por proposta de um terço, no mínimo, dos
tivo, por proposta de um terço, no mínimo, membros que compõem qualquer das Ca-
dos membros que compõem qualquer das sas do Congresso Nacional, também esta-
Casas do Congresso Nacional”.49 Como ríamos diante de outro problema: E se o
seria o trâmite deste decreto legislativo? A Congresso não se movimentar para elabo-
questão complica em relação ao referendo rar o decreto legislativo, como forçá-lo
quando a própria lei, objeto de referendo, para tal? E ainda: E no caso de o percentual
prevê tal consulta em um de seus disposi- de um terço de votos favoráveis não for
tivos. É o caso do Estatuto do Desarma- alcançado? Como regular juridicamente
mento. Vejamos: essas situações, já que é a própria lei
Art. 28: É proibida a comercialização de ordinária que prevê a realização do refe-
arma de fogo e munição em todo o terri- rendo?
tório nacional, salvo para as entidades Outro ponto importante a ser discutido
previstas no art. 6.º desta Lei. em relação à aplicabilidade prática dos
Parágrafo único. Este dispositivo, para mecanismos de participação popular diz
entrar em vigor, dependerá de aprovação respeito a quais questões deveriam ser
mediante referendo popular, a ser realizado objeto de consulta. A Lei 9.709/98 deter-
em outubro de 2005. mina em seu art. 2.º que “plebiscito e
Pergunta-se: diante desta situação, po- referendo são consultas formuladas ao povo
demos considerar que o referendo já estaria para que delibere sobre matéria de acen-
convocado, ou, apesar da previsão legal do tuada relevância, de natureza constitucio-
parágrafo único do art. 28, seria necessário nal, legislativa ou administrativa”. O termo
movimentar o Congresso Nacional para “matéria de acentuada relevância”, no
que elabore um decreto legislativo para entanto, é dotado de um grande subjetivis-
convocar a consulta? mo. Assim, se for entendido que a compe-
Tomando-se a primeira hipótese, ou tência para convocar a consulta popular é
seja, considerando que o referendo já es- apenas do Congresso Nacional, será ele o
taria convocado pela própria previsão le- detentor exclusivo do poder de dizer o que
gal, estaríamos diante de um problema: a considera ser matéria de acentuada rele-
aprovação de um projeto de lei ordinária vância ou não.
requer quorum de maioria simples, segun- Diante desse fato, e para evitar incer-
do o art. 47 da CF, o qual pode ser um tezas, seria importante que a legislação
número menor do que o porcentual de um demarcasse melhor quais as matérias sus-
terço exigido pela Lei 9.709/98 para a cetíveis à consulta popular. Nesse sentido,
elaboração do decreto legislativo.50 O que apontamos duas soluções possíveis. Uma
fazer neste caso? O número faltante de delas consiste na própria Constituição es-
votos favoráveis para ser alcançado o pecificar taxativamente tais questões. No

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MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 313

entanto, se esta for a solução adotada, gera um compromisso moral para o Con-
desde já se deixa o alerta de que tal método gresso e o Executivo acatarem a decisão do
é restritivo e, como conseqüência, poucas povo; caso contrário, criariam um canal de
matérias poderiam ser arroladas no texto impopularidade que colocaria em risco
constitucional, a não ser que se apelasse seus próprios mandatos, como conseqüên-
novamente a termos subjetivos. Outra cia da perda do apoio de seus eleitores.
maneira baseia-se no caminho inverso, ou Fator que também deve ser discutido
seja, a Constituição prever taxativamente está relacionado à redação das questões que
quais assuntos não poderiam, em hipótese envolvem os mecanismos de democracia
alguma, ser objeto de consulta, como as semidireta. Por exemplo: como escrever o
cláusulas pétreas, os princípios fundamen- projeto de lei advindo da iniciativa popu-
tais arrolados no Título I, os princípios lar? Conforme demonstrado acima, a via-
sensíveis previstos no art. 34, VII, do texto bilização desse instituto já está dificultada
constitucional. Esta solução apresenta-se pelo elevado número de assinaturas exigi-
bastante plausível por abrir uma possibili- do para sua propositura no art. 61, § 2.º,
dade democrática de discussão sobre quais de nossa Constituição;52 assim, achamos
assuntos passariam pelo crivo da consulta. que não seria viável dificultá-lo ainda mais
A Professora Maria Victoria Benevides com a exigência de que o projeto de lei a
sugere alguns temas cuja consulta, em sua ser apresentado ao Congresso esteja reves-
opinião, deveria ser obrigatória pela in- tido das formalidades exigidas pelo proces-
fluência que trazem à vida dos brasileiros: so legislativo (artigos, incisos, parágrafos).
questões relacionadas aos direitos huma- Como conseqüência, deve-se permitir sua
nos, a fim de aumentar o rol de proteção apresentação por meio de moção, isto é,
à pessoa e nunca de restringi-lo; políticas uma redação simples que exteriorize a
públicas de grande impacto nacional e as vontade popular, ou em forma de articula-
matérias legislativas de interesse corpora- do, o qual é uma apresentação em tópicos
tivo dos parlamentares para evitar a “de- do assunto a ser objeto de legislação,
liberação em causa própria”, como o au- deixando para o Congresso, quando da
mento de seus vencimentos, os privilégios promulgação, proceder à correta redação
de aposentadoria etc.51 da lei, conforme as regras do processo
Quanto ao resultado da consulta, per- legislativo, mas sempre fiel à vontade
gunta-se: deveria ser vinculante ao Con- popular manifestada.53
gresso ou não? Consideramos que sim, Ainda no tocante à redação das ques-
apesar de a Lei 9.709/98 não dispor sobre tões, urge levantar o quão delicado é a
esse mérito, a não ser para o caso de elaboração das perguntas que serão objeto
alteração territorial (art. 4.º, § 1.º). Se o de plebiscito ou de referendo. Como sin-
resultado da consulta não fosse vinculante, tetizar, em forma de pergunta, o assunto
haveria um desvirtuamento do escopo do que está sendo debatido, a fim de facilitar
próprio instituto, bem como um esvazia- a contagem dos votos a favor ou contra as
mento do princípio da soberania popular, propostas apresentadas e evitar ambigüida-
previsto no caput do art. 14 da Constitui- des? Veja-se, por exemplo, a subjetividade
ção. Mesmo assim, qualquer resultado da questão formulada no referendo de
advindo de referendo ou de plebiscito, seja 17.03.1991 na URSS: “Considera necessá-
a favor ou contra a proposta apresentada, rio preservar a União das Repúblicas So-

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314 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

cialistas Soviéticas como uma federação a margem de escolha do cidadão no pro-


renovada de repúblicas igualmente sobera- cesso democrático.55
nas nas quais os direitos humanos e a Outro fator relacionado à transparência
liberdade dos povos de qualquer naciona- do processo de consulta popular refere-se
lidade serão integralmente garantidos?”. à divulgação de suas propostas, a qual deve
Ou mesmo esta outra questão, proposta em estimular o debate em igualdade de con-
consulta popular realizada no Município da dições tanto em relação aos grupos favo-
Califórnia: “Deve ser permitida a constru- ráveis quanto aos adversários do tema a ser
ção de um grande conjunto habitacional discutido. Os meios de comunicação exer-
perto do parque Bidweel, o que causará cem um importante papel para a divulgação
tremendo impacto em nosso parque e re- da campanha, daí a importância de garantir,
presentará elevado custo de infra-estrutura por meio de lei, um horário gratuito,
urbana?”.54 Em ambos os casos apresenta- distribuído igualmente para ambos os gru-
dos, tanto a resposta “sim” quanto a res- pos debatedores.56 Uma discussão aberta,
posta “não” dão margem a inúmeros sig- sem tentativas de fraudar o verdadeiro
nificados. significado das propostas apresentadas, evita
Há uma grande fragilidade no processo que o povo seja utilizado como massa de
de formulação das perguntas objeto de manobra ou como um legitimador incon-
consulta. Temos a via do voto único, dicional dos poderes constituídos, e isso
baseada em respostas “sim” ou “não”, a implica, inclusive, proteger as propostas do
qual se apresenta de forma mais simples; “show” e do artificialismo imposto pela
porém, pelo fato de tocar em pontos gerais, mídia, a qual, com sua “arte de fazer a
está mais suscetível a ambigüidades. Para propaganda”, consegue transformar qual-
que as perguntas possam especificar me- quer mensagem, mesmo que vazia de sig-
lhor o assunto, uma saída seria o método nificado, em verdades incontestáveis.
do voto alternativo, baseado em respostas A divulgação democrática das propos-
“sim” ou “não” decorrentes de perguntas tas requer, como pressuposto, a lisura de
vinculadas entre si. No entanto, o inconve- seu financiamento, o qual, no mais das
niente deste método está na confusão que vezes, resulta em um custo financeiro
pode causar quando da apuração dos resul- bastante elevado, a implicar a necessidade
tados caso as perguntas não estiverem bem de um rígido controle da origem das verbas
concatenadas. utilizadas na campanha. Os mecanismos de
A redação da proposta deve ser apresen- participação popular poderiam ser finan-
tada de forma bastante transparente, a fim ciados por verbas privadas? Neste caso,
de impedir qualquer margem de dubiedade como livrar os rumos da campanha dos
para o cidadão, já que a ambigüidade pode interesses setoriais da iniciativa privada?
ser uma tentativa proposital de esconder Provavelmente uma parte da solução reside
interesses contrários à vontade popular, o no estabelecimento de formas rígidas de
que resultaria em uma “falsa consulta”, controle da origem das verbas destinadas
aplicada com o objetivo único de legitimar às campanhas, bem como sua aplicação. O
interesses setoriais em detrimento do inte- Ministério Público, por sua posição de
resse público. Maria Victoria Benevides guardião dos interesses públicos, posição
aponta, em seu trabalho, que o voto alter- esta atribuída pela própria Constituição
nativo seria uma boa opção para ampliar Federal de 1988, seria um importante órgão

Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 3, jan./jun. – 2004 (Artigos)


MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 315

para colaborar nessa fiscalização. Além hediondos, inafiançáveis e insuscetíveis de


disso, os meios e comunicação em massa, graça ou anistia, para nele também incluir
como os jornais de grande circulação, o o homicídio qualificado. A coleta de as-
rádio, a televisão e a internet, poderiam ser sinaturas contou com o apoio da Rede
obrigados, por lei, a publicar periodica- Globo de televisão, fator que muito ajudou
mente os balancetes das campanhas. para que fosse alcançada a difícil porcen-
tagem de assinaturas57 exigida pelo art. 61,
6. Exemplos concretos da aplicação dos § 2.º, de nossa Constituição. Após, somen-
mecanismos de participação popular te em 1999 houve a repercussão de outro
no Brasil projeto de lei com base em iniciativa
popular. Fruto de uma campanha contra a
O Brasil não é um país com tradição na corrupção eleitoral, gerou a Lei 9.840/99,
utilização de mecanismos de participação que deu maiores condições à Justiça elei-
popular. Sob a égide da Constituição Fe- toral para coibir a compra de votos.
deral de 1988, são poucos os exemplos Nosso país, no entanto, ainda não possui
concretos relacionados a tais institutos. Ao nenhum exemplo concreto de realização de
que tudo indica, nosso Congresso Nacional referendo. Estamos todos na expectativa,
teme perder prerrogativas legislativas com uma vez que, de forma inédita, o Estatuto
a aplicação mais freqüente dos mecanismos do Desarmamento, recentemente aprova-
e busca refrear seu uso. do, prevê esta possibilidade ao dispor em
Em relação ao plebiscito, apenas um seu art. 28: “É proibida a comercialização
único caso ocorreu após a nova ordem de arma de fogo e munição em todo o
constitucional estabelecida em 1988. Refe- território nacional, salvo para as entidades
rimo-nos ao plebiscito previsto no art. 2.º previstas no art. 6.º desta Lei. Parágrafo
do ADCT, que levou os brasileiros às urnas único. Este dispositivo, para entrar em
em 1993 para escolher entre a república e vigor, dependerá de aprovação mediante
a monarquia constitucional, bem como referendo popular, a ser realizado em ou-
entre o parlamentarismo e o presidencialis- tubro de 2005”.
mo. O debate à época não se deu por Não será uma tarefa fácil, pois, pela
completo, pois, conforme a imprensa no- primeira vez, o Congresso Nacional terá
ticiou, muitos brasileiros, mesmo diante que organizar tal consulta popular, contan-
das urnas, sequer sabiam diferenciar com do, infelizmente, com um arcabouço ju-
exatidão cada uma das propostas apresen- rídico deficiente para tal, já que a Lei
tadas. 9.709/98 não oferece regras claras quanto
Quanto à iniciativa popular, apontamos ao procedimento a ser realizado para
a elaboração da Lei 8.930/94, fruto de viabilizar o referendo na prática. Muitas
uma intensa campanha liderada por Glória coisas deverão ser pensadas, como a di-
Perez, redatora de novelas para a Rede vulgação da campanha e a fiscalização
Globo de televisão e mãe da atriz Daniela sobre o financiamento das propostas.
Perez, assassinada cruelmente à época por A questão envolve a preocupação da
outro ator que com ela contracenava em população em conter os índices de violên-
novela redigida pela própria Glória Perez. cia e suas conseqüências nefastas à socie-
Tal lei deu nova redação ao art. 1.º da Lei dade. Pesquisas de opinião pública têm
8.072/90 e ampliou o rol dos crimes revelado que a grande parte de homicídios

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316 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

que ocorre no País resulta do uso indiscri- e ampliativa da participação popular no


minado de armas de fogo.58 Há, conse- cenário político brasileiro. É uma lei que
qüentemente, uma forte pressão popular em não estabelece de forma clara pontos im-
apoio ao movimento pelo desarmamento. portantes, os quais poderiam elucidar melhor
No âmbito estadual e municipal, os exem- o correto procedimento de cada um dos
plos também são escassos. Os casos mais mecanismos que a Constituição brasileira
freqüentes relacionam-se com a consulta adotou como diretriz do exercício da so-
plebiscitária para incorporação e desmem- berania popular em seu art. 14.
bramento de Municípios. Não há qualquer Para que a utilização do plebiscito, do
tradição na utilização dos mecanismos de referendo e da iniciativa popular seja uma
participação popular para a discussão de realidade mais contínua em nosso país, sem
questões de interesse social relevante em dúvida é necessário o fortalecimento de
âmbito mais local, o que é um desperdício, uma cultura democrática mais participativa,
pois, pela proximidade das questões, os função esta que tem na educação um papel
debates seriam mais envolventes, e seus essencial. No entanto, também é um pressu-
resultados estariam mais próximos dos an- posto para a viabilização do jogo democrá-
seios de determinada comunidade. Por exem- tico a fixação de regras e procedimentos
plo, um Município poderia ser conclamado claros que respaldem a atuação dos cida-
a discutir sobre a viabilidade de seu trans- dãos em todas as etapas relacionadas à sua
porte coletivo.59 Seria muito interessante tal participação política, como defendido de
discussão com a participação da opinião da forma muito clara por Norberto Bobbio em
população local, diretamente interessada nos seus escritos sobre a democracia. É nesse
efeitos da organização da prestação de tal sentido que reafirmamos a necessidade de o
serviço público. O incentivo ao amplo diá- Congresso Nacional brasileiro reapreciar a
logo político da micro para a macroesfera legislação federal que embasa nossos meca-
de convivência do cidadão (comunidade, nismos de participação popular, a fim de
bairro, Município, Estado, região, até che- elaborar regras normativas mais claras so-
gar no âmbito nacional) é um exercício que bre o assunto. Nosso arcabouço jurídico não
aprimora, incentiva e fortalece a soberania é suficiente nem está adequado para viabi-
popular, pilar de qualquer regime democrá- lizar uma cultura democrática mais partici-
tico. pativa, complemento indispensável à demo-
Pequenos passos estão se sedimentando cracia representativa nos dias de hoje.
em nosso país rumo à ampliação da utiliza- Tomando-se a democracia como um
ção dos mecanismos de participação popu- processo, podemos verificar que os anseios
lar, fator de suma importância para a con- que a embasam atualmente não são os
solidação da democracia. Participar do pro- mesmos que a sustentaram em Atenas, no
cesso decisório político é um direito e uma século IV a.C., cenário político no qual se
responsabilidade do cidadão para a concre- delineou uma forma de democracia direta
tização de nossa tão almejada cidadania. clássica, nem tampouco as mesmas aspira-
ções que fundamentaram a construção da
7. Conclusão democracia moderna no século XVIII, a
qual teve como pano de fundo a luta contra
A Lei 9.709, de 18.11.1998, infelizmen- o absolutismo monárquico com base no
te não viabilizou uma regulamentação sólida pensamento jusnaturalista liberal.

Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 3, jan./jun. – 2004 (Artigos)


MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 317

Vivemos em uma era na qual a tecno- No entanto, a sociedade é dinâmica, e


logia alcançou avanços extraordinários. o ser humano luta por mudanças e por sua
Podemos nos comunicar com diferentes inserção social. Assim, o paradigma de
partes do mundo em questões de segundo, cidadania em uma determinada época está
basta ter acesso às facilidades trazidas pela em constante transformação. É com base
rede mundial de computadores, conhecida nesse dinamismo histórico que podemos
como “Internet”. A distância geográfica resgatar o sentido inclusivo de cidadania,
não é mais uma barreira para a aproxima- fundamental para respaldar a ampliação do
ção entre os povos das mais diversas processo democrático, cujo sucesso tam-
culturas. Estamos na era da globalização! bém está diretamente relacionado ao aper-
A tecnologia trouxe avanços surpreen- feiçoamento dos mecanismos de participa-
dentes, vide, por exemplo, a medicina, com ção, instrumentos indispensáveis para for-
suas descobertas na área do genoma huma- talecer o princípio da soberania popular
no, as quais possibilitaram a cura de doen- neste momento histórico em que a demo-
ças antes consideradas letais; a engenharia, cracia representativa mostra sinais de des-
com a construção de equipamentos eletrô- gaste.
nicos de alta precisão. A tecnologia pode ser Essa busca pela consolidação de uma
uma grande aliada para ampliar a participa- cidadania plena desencadeia processos
ção democrática, pode ser um meio facili- sociais muito interessantes. Conforme apon-
tador para a contagem de votos nas eleições, tado por Bobbio em seu livro O futuro da
ou mesmo para registrar a opinião pública, democracia: uma defesa das regras do
sustentáculo dos mecanismos de participa- jogo,61 estamos assistindo, hoje, a uma
ção popular.60 No entanto, ela não está ao busca pela ampliação da democracia da
alcance de todos, haja vista a profunda de- esfera política do Estado para o campo das
sigualdade social em que vivemos atual- relações civis, o que implica a conquista de
mente, situação que se agrava pelo fato de espaços democráticos nos mais diversos
o paradigma de cidadania, hoje, estar base- locais de convivência, como na família, na
ado no poder econômico do indivíduo. escola, na igreja, no bairro, no local de
Apenas quem tem poder de compra pode trabalho etc.
desfrutar dos benefícios trazidos pela tecno- “O que acontece agora é que o processo
logia, mesmo os mais básicos possíveis. Por de democratização, ou seja, o processo de
mais paradoxal que possa parecer, em uma expansão do poder ascendente, está se
era na qual clamamos pela consolidação dos estendendo da esfera das relações políticas,
Direitos Humanos, bem como pela garantia das relações nas quais o indivíduo é con-
de paz mundial, para que a humanidade siderado em seu papel de cidadão, para a
nunca mais sofra as atrocidades decorrentes esfera das relações sociais, onde o indiví-
das duas grandes guerras mundiais ocorri- duo é considerado na variedade de seus
das no século XX, nosso padrão concreto de status e de seus papéis específicos, por
cidadania, infelizmente, está atrelado a va- exemplo de pai e de filho, de cônjuge, de
lores de consumo. Ser cidadão, hoje, no empresário e de trabalhador, de professor
sentido de ser respeitado e ter um grau de e de estudante e até mesmo de pai de
status no seio da sociedade significa ter estudante, de médico e de doente, de oficial
potencial para comprar os mais variados e de soldado, de administrador e de admi-
bens disponíveis no mercado. nistrado, de produtor e de consumidor, de

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318 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

gestor de serviços públicos e de usuário, quais assuntos devem, necessariamente,


etc. passar pelo crivo da participação direta dos
(...) Em outras palavras, podemos dizer cidadãos, a fim de obter legitimidade. O
que o que acontece hoje quanto ao desen- peso da balança a ponderar esta escolha
volvimento da democracia não pode ser deve estar equilibrado, pois, assim como é
interpretado como a afirmação de um novo importante garantir eficiência e rapidez às
tipo de democracia, mas deve ser entendido decisões sobre assuntos técnicos e políticos
como a ocupação, pelas formas ainda tra- relacionados à governabilidade, também é
dicionais de democracia, como é a demo- igualmente importante assegurar o amplo
cracia representativa, de novos espaços... diálogo democrático, com a efetiva parti-
Desse ponto de vista, creio que se deve cipação do maior número de cidadãos
falar justamente de uma verdadeira revira- possíveis, naqueles assuntos considerados
volta no desenvolvimento das instituições política e socialmente relevantes para a
democráticas, reviravolta esta que pode ser população. A moeda deve ser vista pelos
sinteticamente resumida numa fórmula do dois lados: a governabilidade não pode ser
seguinte tipo: da democratização do estado utilizada como uma desculpa para retirar
à democratização da sociedade.” do povo o poder de decisão sobre assuntos
de suma importância para a vida social
Dentro desse contexto, podemos dizer
(como no mais das vezes vem acontecen-
que existe viabilidade sim para a imple-
do), assim como o calor da discussão
mentação dos mecanismos de participação
popular não pode ser um círculo infinito de
popular, os quais, inclusive, podem ser
debates a pôr em risco a eficiência da
diretrizes para consolidar espaços mais
governabilidade.
democráticos não apenas na esfera gover-
namental, mas também na esfera das rela- Lembremos também da importância de
ções civis, o que significa trazer o diálogo aprimoração de tais mecanismos no âmbito
democrático para o dia-a-dia das pessoas dos Estados e dos Municípios, os quais,
e incentivar valores como respeito e tole- pela maior proximidade aos problemas
rância no microcosmo de vivência de cada locais, poderiam gerar deliberações políti-
indivíduo que compõe a sociedade. cas mais condizentes com os anseios dos
Na esfera governamental, no entanto, cidadãos. Consideramos que o potencial do
acreditamos que a utilização de tais meca- referendo, do plebiscito e da iniciativa
nismos é um complemento indispensável popular em âmbito local é muito grande,
para a manutenção do regime democrático e deveria ser melhor aproveitado, inclusive
contemporâneo. Primeiramente, porque não como uma forma pedagógica de fortalecer
é possível desmontar por completo o apa- a soberania popular.
rato da democracia representativa, haja Temos que ter a consciência, no entan-
vista a complexidade de nossa atual socie- to, de que os mecanismos de participação
dade, a demandar respostas rápidas, no popular não representam uma panacéia
mais das vezes, técnicas e dependentes de para todos os males democráticos. A con-
um conhecimento especializado que foge juntura política atual requer uma aliança de
da alçada de conhecimento do cidadão estruturas representativas com instrumen-
comum. tos de participação direta. Ressalte-se que
Daí a importância de uma legislação a implantação do regime democrático é um
sólida para determinar um rumo sobre processo e, por isso, também não podemos

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MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 319

concluir que a democracia semidireta é a 6. O futuro da democracia, p.18.


solução histórica definitiva para alcançar- 7. Provavelmente um dos maiores desafios
mos a “democracia ideal”. Como conse- a ser enfrentado por qualquer regime democrá-
qüência, os princípios democráticos devem tico do século XXI.
estar adaptados às peculiaridades de cada 8. Cf. art. 14 da CF de 1988: “A soberania
popular será exercida pelo sufrágio universal e
Estado, e de acordo com o momento pelo voto direto e secreto, com valor igual para
histórico em que este está inserido, o que todos e, nos termos da lei, mediante: I – plebis-
leva à conclusão de que não existe uma cito; II – referendo; III – iniciativa popular”.
única forma de democracia, mas, sim, 9. Curso de direito constitucional positivo,
diversas. Todavia, sejam quaisquer das p. 141-142.
formas adotadas, o fundamental é que 10. A conjuntura dos partidos políticos no
ofereçam garantia de prioridade e de res- Brasil ainda é frágil, o que os leva a criar
peito à dignidade humana. alianças e coligações na disputa pelo poder e
pelo voto do eleitor. Praticamente impossível a
um partido, hoje, manter-se, sozinho, hegemo-
NOTAS nicamente no poder, bem como seguir uma
linha ideológica única.
1. Segundo grande parte da doutrina polí- 11. Tais avanços foram contemplados na
tica, a democracia direta em Atenas só foi Constituição Brasileira de 1934 e, na mesma
possível pelo fato de a cidade ser pequena, com época, precedeu-se indiretamente, conforme a
um reduzido número de participantes, proximi- Constituição regulava, à eleição de Getúlio
dade dos locais de discussão, bem como pela Vargas para a Presidência da República. Tal
própria organização social da época, a qual Constituição estabeleceu a idade mínima de 18
considerava a política como a única atividade anos para o exercício do voto.
que trazia status ao cidadão. O comércio, a 12. As informações históricas encontram-se
atividade doméstica e demais afazeres eram disponíveis em: <http/ www.tse.gov.br>.
considerados depreciativos à época. Assim, o 13. Eduardo Bueno, História do Brasil, p.
cidadão ateniense tinha todo o seu tempo 274.
produtivo voltado à política. 14. Bolívar Lamounier, em seu texto A
2. Do contrato social: “Não se pode repre- democracia brasileira no limiar do século 21,
sentar a soberania pela mesma razão que não explica que o processo eleitoral está baseado na
se pode alienar, consiste ela essencialmente na tensão entre dois requisitos: a) incerteza (requi-
vontade geral, e a vontade geral não se repre- sito pressuposto): o voto é um processo de
senta; ou ela é a mesma, ou outra, e nisso não escolha do indivíduo, que requer a autonomia
há meio-termo”. do eleitor para escolher. Este não pode ser
3. Tocqueville é um importante pensador influenciado por pressões externas como com-
político que, posteriormente, sustentou ideolo- pra de votos, chantagem do empregador, coação
gicamente o modelo de democracia norte-ame- de facções, expectativa de obter algo em troca,
ricana. Em sua obra A democracia na América, clientelismo etc. Sem o requisito da incerteza,
publicada em 1835, defende a idéia de que a o processo eleitoral está viciado; b) inteligibi-
democracia é um processo de caráter universal lidade (requisito posterior): significa possibili-
e inevitável para todos os Estados, o qual dade de compreensão, deriva da palavra “inte-
caminharia em direção ao aumento da igualdade ligível”. Ao eleitor deve ser possível compreen-
de condições entre as pessoas. der as propostas políticas que lhe são apresen-
4. Considerações sobre o governo repre- tadas para, então, escolher o candidato que
sentativo, p. 109. considere melhor. É a inteligibilidade que “au-
5. Segundo Paulo Bonavides, a democracia toriza” um partido político a assumir o poder.
seria um direito de quarta geração e pressuposto 15. No sentido de que o sistema partidário
necessário para o respeito à dignidade humana. estaria fadado ao insucesso por não conseguir

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320 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

superar as deficiências do ser humano: desejo forma (república ou monarquia constitucional)


pelo poder, defesa de interesses pessoais etc. e o sistema de governo (parlamentarismo e
16. Pergunta-se: a crise do mandato político presidencialismo) que devem vigorar no país”.
poderia ser superada com a volta do mandato Este dispositivo constitucional, na realidade, foi
imperativo? Acreditamos que não, haja vista fruto de pressões da bancada monarquista, na
que, nas atuais sociedades, cada vez mais Assembléia Nacional Constituinte, que, pratica-
complexas, é importante que o representante mente na última hora, antes da finalização dos
político tenha autonomia para votar, e não fique trabalhos relacionados à forma e ao sistema de
preso a uma espécie de “lista” que lhe recomen- governo, fez força para inserir no texto cons-
daria os assuntos a serem aprovados ou não. O titucional a previsão de um plebiscito que
cerne da questão está em elaborar um mecanis- pudesse lhe abrir uma oportunidade para voltar
mo para garantir que o político, ao votar, esteja ao cenário político do País. A nosso ver, a
direcionado ao interesse coletivo, e não ao realização de uma consulta popular sobre o
interesse particular. Diante desta questão, apos- sistema de governo (parlamentarismo e presi-
tamos nossas esperanças na adoção de uma dencialismo) pode até ser considerada plausível
espécie de recall, com as devidas adaptações para o momento histórico, haja vista a busca da
desse instituto para o Brasil, de modo que o ampliação de espaços democráticos, ponto prin-
político fosse constantemente fiscalizado pelo cipal a balizar nossas novas diretrizes constitu-
povo durante o seu mandato, e, caso sua cionais à época. No entanto, a discussão para
conduta se distanciasse do interesse coletivo, a retomada da monarquia representou um con-
poderia, então, perder o poder. tra-senso em relação à nossa postura republica-
17. Curso de direito constitucional positivo, na, adotada desde 1881. Ressalta-se, também,
p. 131-132. para reforçar esse argumento, que a República
foi considerada uma cláusula pétrea em todas
18. Ibidem, p. 131-132.
as Constituições posteriores à sua Proclamação
19. Ponderamos que seria praticamente (ver art. 178, § 5.º, da Constituição de 1934;
impossível o uso da democracia direta em um art. 217, § 6.º, da Constituição de 1946; e art.
país com mais de 170 milhões de habitantes, 50, § 1.º, da Constituição de 1967).
mesmo com toda a tecnologia a seu dispor. Tal 26. Para Helly Lopes Meirelles, em seu
sistema demandaria a necessidade de se discutir livro Direito administrativo brasileiro, p. 168,
assuntos políticos todos os dias, o que geraria os atos normativos são atos administrativos que
uma estafa política nos cidadãos e acabaria por contêm um comando geral e abstrato do Exe-
ruir também o sistema de democracia direta. cutivo, com o escopo de explicitar a norma legal
20. O futuro da democracia, p. 6. a ser observada pela Administração e pelos
21. A democracia brasileira no limiar do administrados. Apesar de não serem leis pro-
século 21. Pesquisas, n. 5, p. 33-34. priamente ditas, possuem o conteúdo de lei e
22. Atualmente, o trabalho é uma atividade se equiparam a elas para controle judicial por
que absorve praticamente quase todo o tempo terem a mesma normatividade.
do cidadão. 27. Caio Márcio de Brito Ávila, Mecanis-
23. Mas nada impede que a cada estágio da mos de democracia participativa no direito
sociedade, de acordo com sua estrutura e com brasileiro, p. 51-52.
suas necessidades, sejam elaborados novos 28. Estabelece o art 3.º da Constituição de
modelos de participação política. A democracia 1967: “A criação de novos Estados e Territórios
é um processo que está em constante evolução. dependerá de lei complementar”.
24. Cf. Dalmo de Abreu Dallari, Elementos 29. Cf. art. 24, § 3.º, itens 3 e 4, da
de teoria geral do Estado, p. 130-132. Constituição do Estado de São Paulo.
25. Note-se, no entanto, que este plebiscito 30. O critério utilizado para a aferição dos
foi uma imposição do Poder Constituinte Ori- maiores 15 Municípios foi o número de eleito-
ginário, o qual determinou no art. 2.º do ADCT res por cidade em dezembro de 2003, segundo
que: “No dia 07 de setembro de 1993 o dados extraídos do endereço do TRE-SP na
eleitorado definirá, através de plebiscito, a internet (www.tre-sp.gov.br).

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MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR 321

31. Art. 10: “O Legislativo e o Executivo 40. O Estatuto do Desarmamento, por exem-
tomarão a iniciativa de propor a convocação de plo, prevê a realização de referendo na própria
plebiscitos antes de proceder à discussão e lei, suspendendo a vigência do dispositivo que
aprovação de obras de valor elevado ou que proíbe a comercialização de armas de fogo e de
tenham significativo impacto ambiental, segun- munição para civis até que tal assunto seja
do estabelecido em lei”. decidido por consulta popular, agendada para
32. Caio Márcio de Brito Ávila, Mecanis- outubro de 2005.
mos de democracia participativa no direito 41. Em termos de números, conferir tabelas
brasileiro, p. 62 (grifos nossos). do item 2.3 deste trabalho.
33. A cidadania ativa: referendo, plebiscito 42. Cf. art. 44, § 1.º, da Lei Orgânica do
e iniciativa popular, p. 34. Município de São Paulo.
34. Interessante mencionar que os Estados 43. Perceba-se que a incompatibilidade
Unidos, pelo modelo federalista adotado, rara- atinge tanto o referendo quanto o plebiscito, já
mente utilizam o instituto com abrangência que ambos os institutos estão regulados nos
nacional, sua prática é mais comumente encon- artigos supracitados.
trada nos Estados-membros da Federação, desde 44. A cidadania ativa: referendo, plebiscito
sua adoção até os dias de hoje. e iniciativa popular, p. 33.
35. O referendo foi adotado por vários 45. Cf. Caio Márcio de Brito Ávila, Meca-
países europeus após a Primeira Guerra: Tche- nismos de democracia participativa no direito
coslováquia, Espanha republicana, Alemanha brasileiro, p. 79-83.
(1919 – todavia, os constituintes não o coloca- 46. Art. 61, § 2.º, da CF/88.
ram na Constituição de 1949, após a desastrosa 47. Para uma melhor noção da distribuição
utilização do instituto por Hitler). Atualmente, dos eleitores nos 5 dentre os 15 maiores
encontra-se nas Constituições da Austrália, Municípios do Estado, conferir tabela do item
Canadá, Espanha, França, Itália, Grécia, Suíça, 2.3 deste trabalho.
Irlanda, Dinamarca, Finlândia, Luxemburgo, 48. Segundo o art. 1.º da Lei 9.709/98: “§
Países Baixos e diversos países da África de 1.º O plebiscito é convocado com anterioridade
expressão francesa. Cf. Maria Victória Benevi- a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao
des, A cidadania ativa: referendo, plebiscito e povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe
iniciativa popular, p. 41. tenha sido submetido”. “§ 2.º O referendo é
36. Os exemplos citados podem ser encon- convocado com posterioridade a ato legislativo
trados no artigo de Marco Maciel: O desarma- ou administrativo, cumprindo ao povo a respec-
mento e o referendo, publicado no jornal Folha tiva ratificação ou rejeição” (grifos nossos).
de S. Paulo em 03.08.2003. 49. Grifos nossos.
37. Este é um dos motivos que contribui 50. Peguemos como exemplo a aprovação
para que o referendo e o plebiscito sejam de um projeto de lei ordinária na Câmara dos
equiparados, o que gera uma grande confusão Deputados, a qual é composta por 513 deputa-
entre os dois institutos. dos. Suponhamos que se encontrem na sessão
38. Aponta José Afonso da Silva em seu 260 deputados, o que permite iniciar a votação,
livro Curso de direito constitucional positivo, pois está presente a maioria absoluta de seus
p. 65: “A Constituição não introduziu inovação membros. Neste caso, a aprovação de uma lei
de realce no sistema de sua modificação. Até ordinária será obtida com, pelo menos, 131
a votação no Plenário, anteprojetos e projetos votos favoráveis. Já para a convocação de
admitiam, expressa e especificamente, a inici- referendo mediante decreto legislativo, seriam
ativa e o referendo populares em matéria de necessários, no mínimo, 175 votos favoráveis.
emenda constitucional. No plenário, contudo, os A mesma situação poderia ocorrer se tomásse-
conservadores derrubaram essa possibilidade mos como exemplo o Senado Federal, composto
clara que constava do § 2.º do art. 74 do Projeto por 81 senadores.
aprovado na Comissão de Sistematização”. 51. A cidadania ativa: referendo, plebiscito
39. Cf. arts. 8.º e 10 da Lei 9.709/98. e iniciativa popular, p. 149-154.

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322 DENISE AUAD / JOÃO C. H. PEDROSA / MARIA DE LOURDES MARTIMIANO / ROGÉRIO F. TANGANELLI

52. Art. 61 da CF/88: “A iniciativa popular que é manual, mas também com o auxílio da
pode ser exercida pela apresentação à Câmara Internet e do sistema 0800 de discagem telefô-
dos Deputados de projeto de lei subscrito por, nica. A proposta pode ser benéfica para facilitar
no mínimo, um por cento do eleitorado nacio- a iniciativa popular, mas desde que preveja
nal, distribuído pelo menos por cinco Estados, meios seguros para a aferição das assinaturas,
com não menos de três décimos por cento dos a fim de evitar fraudes.
eleitores de cada um deles”. 58. Uma recente estatística fornecida pela
53. Segundo o art. 13, § 2.º, da Lei 9709/98: ONU aponta que 88,39% dos homicídios come-
“O projeto de lei de iniciativa popular não poderá tidos no país ocorreram com a utilização de
ser rejeitado por vício de forma, cabendo à Câ- armas de fogo.
mara dos Deputados, por seu órgão competente, 59. Vide art. 30, V, do texto constitucional:
providenciar a correção de eventuais improprie- “Compete aos Municípios – organizar e prestar,
dades de técnica legislativa ou de redação”. diretamente ou sob regime de concessão ou
54. Ambos os exemplos foram retirados do permissão, os serviços públicos de interesse
livro A cidadania ativa: referendo, plebiscito e local, incluído o de transporte coletivo, que tem
iniciativa popular, de Maria Victoria Benevides, caráter essencial”.
e encontram-se, respectivamente, nas páginas 60. Todavia, as máquinas jamais substitui-
182-183 e na nota de rodapé n. 24, referente rão o ser humano na “arte” de fazer política,
à página 187. pois esta depende da subjetividade humana, a
55. A cidadania ativa: referendo, plebiscito qual nenhuma máquina é capaz de decifrar. Os
e iniciativa popular, p. 181: “Creio que a computadores podem ajudar a colher dados, a
possibilidade de escolha aumenta a liberdade transmitir informações em um menor tempo,
decisória do povo. Em princípio, ela evita, mas não criam soluções para compor os dife-
ademais, um tipo de manobra que consistiria em rentes anseios políticos que fazem parte de cada
prejudicar determinado tema apresentado sob a um de nós.
forma de questão única, fechada, que suscitaria 61. Páginas 54-57.
o repúdio popular, previamente conhecido. Creio,
igualmente, que para muitas questões a inexis-
tência de alternativa ‘desmotiva’ a participação
Referências
popular – ou porque o eleitorado, desconhecen-
do os aspectos técnico-legais da questão, se
constrange em dar um voto ‘fechado’, ou ÁVILA, Caio Márcio de Brito. Mecanismos de
porque faz parte de uma cultura política a democracia participativa no direito brasileiro.
preferência por escolha entre alternativas”. 2002. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
56. Dispõe o art. 8.º da Lei 9.709/98: Direito da USP, São Paulo.
“Aprovado o ato convocatório, o Presidente do
BALBACHEVSKY, Elizabeth. Stuart Mill: li-
Congresso Nacional dará ciência à Justiça Elei-
berdade e representação. In: WEFFORT, Fran-
toral, a quem incumbirá, nos limites de sua
cisco C. Os clássicos da política: Burke, Kant,
circunscrição: (...) IV – assegurar a gratuidade
Hegel, Tocqueville, Stuart Mill e Marx. 10. ed.
nos meios de comunicação em massa conces-
São Paulo: Ática, 2002. v. 2, p. 189-223.
sionários de serviço público, aos partidos po-
líticos e às frentes suprapartidárias organizadas BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A
pela sociedade civil em torno da matéria em cidadania ativa: referendo, plebiscito e inicia-
questão, para a divulgação de seus postulados tiva popular. São Paulo: Ática, 1991.
referentes ao tema sob consulta”.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia.
57. Em relação à dificuldade imposta pelo Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 6. ed.
elevado número de assinaturas previsto no art. São Paulo: Paz e Terra, 1986.
61, § 2.º, da CF, há um interessante Projeto de
Resolução, proposto pelo Deputado Eduardo ––––––. Teoria geral da política: a filosofia
Gomes, o qual objetiva permitir a coleta de política e a lição dos clássicos. Organizado por
assinaturas não apenas pelo processo tradicional Michelangelo Bovero. Tradução de Daniela

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