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Portugues Um Nome Muitas Linguas PDF
Portugues Um Nome Muitas Linguas PDF
Português: um nome,
muitas línguas
SUMÁRIO
Isso, obviamente, não é fácil porque a nossa cultura, tradicionalmente, tem sido intolerante
com muitas das variedades brasileiras do português. E transformou em fator de discriminação
social o modo como parte da população fala a língua.
Por outro lado, nossa cultura tem desmerecido, quando não ignorado, a multiplicidade de
línguas faladas na sociedade brasileira. Somos um país multilíngüe – aqui são faladas
centenas de línguas indígenas e dezenas de línguas de imigração, e há ainda remanescentes de
línguas africanas. Apesar disso, nós temos nos idealizado como um país monolíngüe.
Os efeitos negativos dessas representações culturais não são pequenos. Vários segmentos da
nossa população são prejudicados em razão do modo como falam a língua portuguesa; outros
são prejudicados porque, embora cidadãos brasileiros, não têm o português como sua língua
materna; por fim, a educação que temos dado a nossos estudantes não lhes oferece as
condições para transitar com segurança por entre as variedades do português que existem em
nosso país, em especial no domínio da língua escrita.
Ao mesmo tempo, será indispensável nos abrirmos positivamente para as muitas variedades
brasileiras do português, compreendendo como a língua existe socialmente e porque ela é tão
diversificada.
Teremos, desse modo, dado passos importantes para nos livrar de atitudes intolerantes e
discriminatórias. Mais ainda: tendo essa compreensão, vamos poder garantir que a escola
passe a valorizar nosso patrimônio lingüístico. Ao mesmo tempo, vamos poder assegurar que
ela seja, de fato, um centro de promoção do nosso português, da sua diversidade, da sua
riqueza, e ofereça aos estudantes uma educação lingüística que lhes dê trânsito livre e seguro
por entre as muitas variedades, faladas e escritas, que constituem a língua no Brasil. Só assim
terão eles condições de ampliar suas competências lingüísticas e de se tornar participantes
efetivos das nossas práticas socioculturais.
Embora tudo isso seja bastante claro e óbvio, todos sabemos das dificuldades que temos tido
para mudar as concepções, atitudes e comportamentos nesta área. Basta lembrar, nesse
sentido, que estas questões têm sido – há pelo menos trinta anos – extensamente debatidas
entre nós, em especial no contexto do ensino da língua. No entanto, persistem as atitudes
negativas, os problemas, as incompreensões e as dificuldades da escola para lidar com a
diversidade e para encontrar um norte que assegure uma boa educação lingüística aos alunos.
Estamos, assim, desafiados a contribuir para a mudança dessa situação.
Há ainda um outro aspecto que não podemos deixar de considerar quando tratamos da língua
portuguesa. Como resultado do colonialismo português, ela é hoje uma língua internacional.
Se é importante olharmos para dentro, observando e reconhecendo as variedades do português
que falamos no Brasil, é igualmente importante olhar para fora, buscando conhecer como o
português se materializa nos outros países em que é língua oficial, como expressa a
Para dar uma boa base à nossa discussão, é fundamental lembrar que não existe nenhuma
língua una e homogênea. Qualquer língua é sempre diversificada e heterogênea.
Nós damos às línguas um nome. E este nome é sempre singular (o português, o francês, o
tapirapé, o suaíli). Talvez seja por isso que nós tendemos a imaginar que a língua é uma
realidade una, singular, homogênea e tenhamos dificuldades para conviver com a diversidade.
A língua, no entanto, é sempre plural, diversificada e heterogênea. Por isso é que dizemos que
ela é, de fato, um conjunto de variedades. Não existe a língua de um lado e as variedades de
outro – a língua é o próprio conjunto das variedades.
Poderíamos, então, dizer que uma língua é, no fundo, muitas línguas. Ou, em outras palavras,
o nome singular (português) recobre um balaio de variedades diferentes (“o português são
muitos portugueses”).
E isso é assim porque a língua está profundamente enraizada na vida cotidiana, nas
experiências históricas e culturais de cada uma das comunidades que a falam. Como a vida, a
história e a cultura de cada uma dessas comunidades são muito diversificadas, assim também
será seu modo de falar.
Sabemos ainda pouco sobre o que constitui, de fato, esse núcleo. No entanto, acreditamos que
ele existe e julgamos que ele resulta da história, ou seja, as comunidades vão se desdobrando,
se estabelecendo em novos espaços, se diferenciando, se misturando e as variedades da
língua, acompanhando esses processos, vão saindo umas das outras, vão se afastando e se
aproximando, vão se interinfluenciando e se mesclando.
Dizemos, então, que falamos a mesma língua quando nossas variedades compartilham um
núcleo comum. É ele que nos permite negociar significações e construir a mútua
compreensão, mesmo quando, num primeiro momento, não conseguimos eventualmente nos
compreender.
Para entender isso mais claramente, imaginemos duas situações. Numa delas, encontram-se
um chinês, um alemão, um brasileiro e um árabe (cada um sabendo apenas sua própria
língua). Na outra, uma moradora de uma vila ribeirinha do Rio Amazonas (Brasil), um
pescador dos Açores (Portugal), um pedreiro de Maputo (Moçambique) e uma feirante de
Luanda (Angola).
A língua, obviamente, não é só diversidade. Há fatores que contribuem para que certas
variedades tenham ampla circulação social, ultrapassando em muito os limites da vida
cotidiana e das experiências locais.
Podemos fazer menção aqui a dois desses fatores. Nas sociedades modernas, os meios de
comunicação social (em especial o rádio e a televisão) recobrem um território vastíssimo (o
país inteiro) e alcançam as mais diferentes comunidades. As variedades da língua usadas
nesses meios acabam por exercer um papel unificador: por serem ouvidas no país inteiro, elas
constituem um fator de aproximação de comunidades distantes e diferenciadas.
É preciso ficar claro, porém, que essa unidade possibilitada pela tecnologia atual não dissolve
jamais a diversidade. A vida corrente, a história e a cultura locais continuam existindo e se
movendo em suas dinâmicas próprias. As comunidades vivem, no mundo da comunicação
moderna, no entrecruzamento contínuo dos fatores locais (que favorecem a diversidade) com
aqueles de caráter mais geral (que possibilitam uma certa unidade, um certo chão comum).
Outro fator que exerce um papel unificador é a escrita, em especial a que se destina a públicos
amplos, diversos e distribuídos para além de limites estritamente locais. É o caso de parte da
imprensa, das publicações acadêmicas (científicas e filosóficas), dos documentos oficiais de
governo e, em boa medida, da literatura.
Nestes materiais escritos, é costume privilegiar algumas variedades da língua. A escrita – para
alcançar os diferentes públicos a que se destina – tende a se distanciar das características
muito locais. A própria dinâmica histórica das práticas de escrita veio favorecendo a
configuração dessas variedades peculiares a ela, pondo alguns limites à diversidade.
Por fim, cabe comentar que a escola exerce também um papel unificador. Como sabemos,
uma de suas principais tarefas é introduzir as crianças no mundo da escrita, alfabetizando-as
(ensinando-as a ler e escrever) e letrando-as (dando-lhes acesso ao vasto universo da cultura
escrita e estimulando-as a efetivamente participar desse universo pela escrita de suas próprias
experiências). Ao cumprir estas tarefas, a escola difunde a escrita e, com ela, promove seu
papel unificador.
No entanto, essa ação primordial da escola não pode nem deve desmerecer a diversidade. A
escola tem de ser uma instituição receptiva às mais diferentes experiências culturais da
sociedade e, ao mesmo tempo, contribuir significativamente para ampliar a vivência
sociocultural dos estudantes, indo além de seus limites locais. Para isso, é importante que eles
compreendam, pelo menos, os seguintes tópicos:
- são errôneos e infundados os valores sociais negativos que recobrem algumas das variedades
do nosso português;
- de que modo as diferentes culturas que se expressam em português podem se aproximar por
compartilharem a língua?
- por que o Brasil, sendo um país multilíngüe, tem se idealizado como monolíngüe?
O eixo do terceiro programa será a diversidade lingüística do Brasil. Serão discutidos aspectos
de nossa história lingüística, de modo a dar relevo ao nosso patrimônio lingüístico. Ao mesmo
tempo, serão apontados e debatidos os conflitos que estiveram na base do processo que tornou
o português a nossa língua hegemônica.
O tema central do quinto programa é a relação da escola com o caráter multilíngüe do país e
com as diferentes variedades do nosso português. O objetivo maior é defender a importância
de a escola desenvolver uma atitude positiva frente ao modo de falar de seus estudantes,
considerando que ele é a expressão das experiências de vida da respectiva comunidade. Só
vencendo o silêncio histórico sobre nosso multilingüismo e a tradição de intolerância e
depreciação que afeta as variedades e os falantes do chamado português popular é que
teremos um chão firme para construir uma pedagogia capaz de assegurar aos estudantes o
trânsito livre e seguro entre as variedades. Nessa vivência, eles poderão ir se apropriando das
variedades faladas e escritas de ampla circulação social sem que seja necessário desvalorizar
ou proscrever as variedades que já dominam.
ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no
caminho. São Paulo: Parábola, 2007.
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação
lingüística. São Paulo: Parábola, 2007.
ILARI, Rodolfo & BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos/ a
língua que falamos. São Paulo: Contexto, 2006.
Nota:
A língua que designamos pelo nome de português é o desdobramento histórico dos falares
românicos (de origem latina) que se desenvolveram no noroeste da Península Ibérica, numa
área que abrange hoje o norte de Portugal e a Galiza (região da Espanha).
Dessa região, tendo por base o Condado Portucalense, avançaram para o sul, no século 12,
forças comandadas pelo conde Afonso Henriques envolvidas no processo histórico da
chamada Reconquista, ou seja, a retomada dos territórios ibéricos aos árabes.
A extensão das fronteiras do Condado para o sul terminou por dar forma a uma unidade
política que logo se consolidou como um reino autônomo, o reino de Portugal, quando, em
1139, depois da batalha de Ourique, o conde Afonso Henriques passou a usar o título de rei.
O deslocamento das fronteiras para o sul, a constituição do novo reino (que se estendia do Rio
Minho ao Algarve), a fixação do seu governo no centro-sul (primeiro em Coimbra e, depois,
em Lisboa) e a permanência da Galiza fora dos domínios de Portugal foram os principais
fatores que concorreram para quebrar, em parte, a unidade lingüística original. A essa língua
antiga os estudiosos costumam dar o nome de galego-português. Nela foi escrita, no século
Em cada entreposto, havia sempre poucos europeus. Apenas o suficiente para garantir a
dinâmica dos negócios. Só assim se explica que um país com cerca de dois milhões de
habitantes tenha sido capaz de dominar, sem concorrência, por praticamente um século, o
comércio marítimo internacional na chamada rota do sudoeste, ou seja, aquela que cobria a
costa africana e chegava à Índia, à Malaca, ao Timor e a Macau.
Se, de um lado, essa característica da expansão de Portugal fez a sua língua ressoar na África
e na Ásia, de outro, deu também origem, por força do intercâmbio com as populações locais, a
No século 17, Portugal perdeu para os holandeses boa parte dessa rota comercial. De seus
entrepostos asiáticos, manteve apenas Macau (até 1999), Timor-Leste (até 1975) e Damão,
Diu e Goa, na Índia (até 1961).
Com a perda dos entrepostos, retraiu-se também a presença da língua portuguesa na Ásia, que
já não era grande quando do domínio português, considerando que a população que a falava
como primeira língua sempre tinha sido numericamente pouco expressiva.
À medida que Portugal foi perdendo sua rota asiática para os holandeses, crescia sua presença
no Atlântico Sul, presença que se sustentava em dois eixos integrados (cf. Alencastro, 2000).
O primeiro foi a ocupação agrícola do Brasil a partir da segunda metade do século 16. Nesse
processo, uma economia de coleta (baseada no corte do pau-brasil e na exploração do trabalho
indígena) foi transformada numa economia de produção açucareira intensiva baseada no
trabalho escravo.
O segundo eixo era o tráfico de escravos africanos que fornecia a mão-de-obra demandada
pela economia açucareira da América. Sustentados pelos entrepostos da costa africana, os
comerciantes portugueses – ou, mais propriamente, luso-brasileiros – controlavam esse tráfico
praticamente sem concorrência e forneciam escravos não só para o Brasil (seu principal
destino), mas também para as colônias açucareiras nas Antilhas controladas por espanhóis,
franceses, holandeses e ingleses (cf. Silva, 2003).
Esse perfil profundamente heterogêneo de sua população e a situação dessas ilhas no contexto
colonial português no Atlântico (foram basicamente entrepostos do tráfico de escravos)
favoreceram o desenvolvimento de línguas crioulas de base portuguesa ainda hoje faladas
pela maioria das respectivas populações (a saber, o crioulo cabo-verdiano e o são-tomense).
Também o território da hoje Guiné-Bissau não foi mais que um entreposto, seja, num
primeiro momento, para o comércio do ouro com as populações saarianas, seja,
posteriormente, para o tráfico de escravos. A diversidade étnica e lingüística do território e o
fluxo do tráfico provocaram também ali o surgimento de uma língua crioula de base
portuguesa (o crioulo guineense) que é hoje falada pela maior parte da população, ao lado de
dezoito outras línguas africanas.
A guerra deixou Portugal cada vez mais isolado internacionalmente e, ao mesmo tempo,
esgotou o país. Basta dizer que 40% do orçamento português para o ano de 1970 eram
destinados aos gastos com a guerra na África (para detalhes desta situação, ver Maxwell,
2007).
Cada um desses novos países adotou a língua portuguesa como língua oficial. Apesar de ser a
língua do antigo colonizador, estes países consideraram que ela poderia ser útil para lhes
facilitar o intercâmbio internacional e mesmo a organização nacional, atribuindo a ela o
estatuto de língua comum em suas sociedades em geral multilíngües (estima-se – as
estatísticas são ainda frágeis – que são faladas perto de 15 línguas autóctones em Angola, 18
na Guiné-Bissau e 20 em Moçambique).
Em 1975, três dias depois da declaração da independência, o Timor-Leste foi invadido pela
Indonésia e brutalmente dominado até 1999, quando, num referendo conduzido pela ONU, a
maioria absoluta da população optou pela independência.
b) é a língua oficial de oito países (Portugal, Brasil, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste) e de Macau, que foi incorporado em 1999
à China como Região Administrativa Especial;
Em todos esses contextos, com exceção de Portugal e Brasil, o português é língua minoritária.
No caso das comunidades de imigrantes e das comunidades remanescentes, seu futuro é
incerto. Poderá continuar sendo falada (se essas comunidades mantiverem laços estreitos de
identidade, seja internamente, seja com os países donde se originaram) ou, em caso contrário
e sob pressão da língua majoritária, tenderá progressivamente a desaparecer – como tem
muitas vezes ocorrido com as línguas de imigração.
Nos países africanos e no Timor, estará sempre presente, como foco de relativa tensão, o
estatuto das demais línguas nacionais, patrimônio de que, certamente, nenhuma dessas
sociedades abrirá mão, considerando sua força identitária.
Do ponto de vista quantitativo, há hoje aproximadamente 220 milhões de pessoas que falam o
português, como primeira ou segunda língua, no mundo2. Isso torna o português a terceira
língua européia mais falada, perdendo apenas para o inglês e o espanhol. Com este
contingente de falantes, está entre as dez línguas mais faladas do mundo, ocupando
possivelmente a sexta posição.
Apesar de ser uma língua internacional e contar com esse expressivo número de falantes, há
peculiaridades que relativizam este seu peso quantitativo e embaraçam, de certa forma, a
possibilidade de ela adquirir uma maior projeção em meio às demais línguas internacionais.
De início, é preciso lembrar que praticamente 85% de seus falantes estão concentrados em um
único país – o Brasil. Parece inegável que essa alta concentração de falantes dá ao Brasil um
papel fundamental no futuro da língua e de sua difusão internacional. No entanto, o Brasil
parece não querer assumir esse papel. É ainda pouco institucionalizada a ação do país na
difusão da língua no exterior, na cooperação lingüístico-cultural sistemática com os demais
países de língua oficial portuguesa e mesmo na indispensável promoção da língua no interior
de suas próprias fronteiras.
Mas o Brasil tem também outros problemas que limitam seu protagonismo no âmbito da
gestão e difusão da língua:
– por fim, o Brasil até hoje não conseguiu resolver adequadamente a questão de sua norma de
referência. Há um conflito histórico entre a norma efetivamente praticada no país (a chamada
norma culta) e a norma gramatical definida artificialmente no século 19 (a chamada norma-
padrão) e ainda defendida por uma tradição estreita e dogmática, que tem adeptos no sistema
de ensino e nos meios de comunicação social. Embora essa defesa não tenha nenhum
resultado prático, ela tem efeitos negativos sobre o modo como tradicionalmente se representa
a língua no imaginário do Brasil. Nosso português costuma ser visto, com freqüência, como
cheio de erros e deformações. O país tem tido, ao longo de século e meio, grandes
dificuldades para reconhecer seu rosto lingüístico e, em conseqüência, para promover uma
educação lingüística consistente.
É paradoxal que o país tenha realizado, com financiamento público, extensos levantamentos
de sua complexa realidade dialetológica e sociolingüística; tenha feito, já na década de 1970,
um estudo de sua norma urbana falada; disponha de um amplo registro de sua língua escrita
nos últimos 50 anos e não tenha conseguido, ainda, reconhecer adequadamente seu rosto
lingüístico e reconfigurar suas referências normativas, abandonando o artificialismo criado no
século 19.
Um outro aspecto que embaraça a possibilidade de o português adquirir uma maior projeção
em meio às demais línguas internacionais é seu caráter de língua minoritária nos países em
De qualquer modo, é ainda longo o caminho para sua consolidação como língua comum
nestas sociedades. Além disso, são sociedades em que o analfabetismo é muito elevado (em
alguns casos, ele afeta mais de 50% da população), os sistemas educacionais são ainda de
restrito alcance social e os índices de pobreza alarmantes.
Essa situação aponta para a necessidade de uma cooperação sistemática e contínua entre os
países lusófonos, de modo a assegurar a promoção da língua interna e externamente. Os
primeiros passos foram dados com a criação, em 1996, da organização internacional
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Esta, no entanto, não conseguiu ainda
ser, por várias razões, mais que um belo projeto.
Sugestão de leitura
Referências Bibliográficas
Notas:
3 Estamos utilizando aqui os dados do INAF - Indicador de Alfabetismo Funcional, que é uma
pesquisa realizada periodicamente pelo Instituto Paulo Montenegro, vinculado ao IBOPE. Sua
edição de 2005 pode ser acessada no endereço eletrônico www.ipm.org.br – consultado por
nós em 02/02/2008.
4 Dados sobre a educação brasileira podem ser obtidos na página do INEP – Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira em www.inep.gov.br – consultado por
nós em 02/02/2008.
É José Saramago quem afirma, ao pensar sua relação com a língua portuguesa: “Quase me
apetece dizer que não há uma língua portuguesa; há línguas em português” 2. De certa forma,
o comentário do escritor português reforça as considerações já tão divulgadas acerca do
caráter múltiplo de nosso idioma, capaz de manter-se uno em sua enorme diversidade. O
português compõe, hoje, a cultura de várias nações, em diversas partes do mundo. Por isso,
creio que podemos ler aí também a referência à estreita relação entre língua e cultura e, por
conseguinte, entre língua e identidade. A língua portuguesa, em suas variações, possibilita a
manifestação de culturas diversas, sem, contudo, deixar de afirmar a possibilidade de diálogo
entre tais culturas.
Esse diálogo, no entanto, não deve ser visto como um instrumento de homogeneização ou de
anulação das diferenças. A célebre afirmação “minha pátria é a língua portuguesa” pode
ocultar a associação entre o uso do legado lingüístico do colonizador e a manutenção de
princípios e valores próprios do discurso imperialista, em que Portugal aparece como “dono”
da língua e os demais países, por a “usarem” e por terem sidos colonizados por ele, como uma
espécie de inquilinos de sua cultura. Nesse sentido, já o nosso José de Alencar, ao pensar as
relações possíveis entre nós brasileiros e a língua trazida por nosso colonizador, indagava: “O
povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba pode falar uma língua com igual
pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pêra, o damasco e a nêspera?”
Através da distância entre os verbos sorver e chupar e da seleção lexical, Alencar realça o
modo como as diferenças culturais, para além dos hábitos alimentares, podem ser assinaladas
pelo uso da língua. Quando a referência é à Europa, Alencar cita “sorver”, associando o verbo
a frutas de clima temperado; ao passo que o verbo “chupar” – manga, cambucá ou jabuticaba,
É importante considerar, portanto, que se Angola, Brasil, Cabo Verde, Goa, Macau,
Moçambique e Portugal, para citar alguns desses espaços habitados pela língua portuguesa,
partilham do uso de uma mesma língua é porque vivenciaram um passado colonial comum,
com tudo o que isso pode representar de uma memória marcada por afetos, mas, também – e
sobretudo no caso dos países africanos, em que a independência é ainda recente – pela
violência. É esse passado colonial, associado às especificidades de cada local, que irá
determinar o curso da língua portuguesa nas diversas regiões, influenciando o modo como
chega aos dias de hoje.
Vejamos, por exemplo, o caso de Cabo Verde, arquipélago situado no Oceano Atlântico e
inicialmente desabitado, onde o colonizador aportou para estabelecer um entreposto no
negócio da escravatura. Para lá foram levados escravos de grupos étnicos distintos, mistos, e
essa população, para sua própria sobrevivência, teve de renunciar às suas línguas maternas,
propiciando o nascimento de uma língua auxiliar que teve o nome de pitim. Com o passar do
tempo, o pitim passou por um processo de complexificação, com base no léxico do português,
dando origem a uma nova língua, o criollo. Assim, diferentemente do que ocorre em Portugal,
em Cabo Verde o português é língua segunda, desempenhando funções de língua oficial, mas
substituído no dia-a-dia pelo criollo.
Portanto, após esse breve percurso, parece claro que falar português em Portugal não é o
mesmo que falar português no Brasil ou, sobretudo, na África de língua portuguesa. Ao
usarmos uma língua em condições de monolingüismo, bilingüismo ou de multilingüismo,
estaremos diante de condições diversas, que impõem opções distintas, até mesmo em uma
perspectiva ideológica. Mais uma vez citando Marquilhas (Ibidem, p. 29), “falar português em
Portugal, independentemente do dialeto de origem, não implica uma escolha consciente entre
dois códigos distintos”. No Brasil, a opção por um socioleto culto é condição sine qua non
para que o indivíduo se integre a uma certa elite socioeconômica, ou seja, o nosso aparente
monolingüismo – que já sabemos ser falso – escamoteia a complexidade de nossas relações
sociais. Nas condições de plurilingüismo próprias de Angola e Moçambique, há possibilidade
de opção por códigos distintos por parte da população, o que significa que o uso do português
acarreta uma escolha significativa, reforçando a posição político-ideológica do indivíduo.
— Sois cristão?
E fizeram o Carnaval.
Aqui se manifesta a consciência de uma cultura mestiça que não abre mão de exercitar todas
as suas possibilidades, ao mesmo tempo em que, pelo viés da ironia, exerce um movimento de
apropriação antropofágica da língua do colonizador. É conhecida a proposta oswaldiana de re-
elaboração do que recebemos de fora – língua, arte, cultura em geral – a partir de um processo
em que o elemento estrangeiro entra em diálogo com o nacional, gerando um terceiro termo,
diferente, mas que contém os dois primeiros. A valorização de uma “língua brasileira”,
conforme é apresentada pelos autores dessa geração, parte de tal perspectiva, já de certo modo
vislumbrada por Lima Barreto e intuída por Alencar.
Mesmo ao apontarmos toda essa diversidade e as questões políticas que envolvem o uso do
português em suas diversas realidades, não é possível descartar o caráter integrador que o uso
de uma mesma língua pode gerar. Vivemos, como já o disse Benjamin Abdala Jr., em um
mundo de fronteiras múltiplas e, com isto, se torna indispensável considerar o valor
estratégico de associações supranacionais comunitárias. O que nos une aos países de língua
oficial portuguesa não é apenas o uso de uma língua em comum, ainda que isso facilite todo o
processo de trocas culturais: é bom lembrar, por exemplo, o sucesso das novelas e da música
brasileiras na maioria desses países e o modo como esses produtos acabam por interagir com
as culturas locais. O que nos une é também uma infinidade de laços advindos do
compartilhamento de séculos de história em comum e da experiência colonial, responsável
por um excesso de violência capaz de atingir a todos, colonizados e colonizadores.
Nesse sentido, mostra-se coerente a busca por estabelecer laços comunitários sob a égide da
língua portuguesa, desde que esta concorra para aproximar nações sem, no entanto, anular as
diferenças. Somos todos falantes de uma mesma língua e, no entanto, para cada um de nós –
brasileiros, portugueses, africanos ou asiáticos – ela se manifesta na inteireza de suas
singularidades.
Indicação de Leitura:
Referências bibliográficas
ANDRADE, Oswald. Poesias Reunidas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1966.
SANTOS, Afonso Carlos Marques dos et al. O que é esta tal comunidade? Identidade
nacional nos territórios de fala portuguesa. In: IV CONGRESSO LUSO-AFRO-
BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS, 1 a 5 de setembro de 1996, Rio de
Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: IFCS, 1998, p. 25-36.
Notas:
3 Xipalapala: trompa ou trombeta feita com o chifre do antílope palapala e utilizada para
convocar o povo.
4 Xigubo: dança de exaltação guerreira, que pode ocorrer antes ou depois da batalha.
São faladas no Brasil atualmente cerca de 200 línguas indígenas que devem ser preservadas
como forma de conservar a riqueza de nosso patrimônio cultural. Da mesma forma, as
comunidades lingüísticas de alemães, italianos, japoneses e de tantos que para cá vieram só
vêm enriquecer o mosaico cultural deste país, que tem se formado a partir do encontro de
diferentes povos. A importância de se reconhecer e preservar a diversidade e o plurilingüismo
no Brasil é cada vez maior, na medida em que o país está se tornando praticamente
monolíngüe, pois cerca de 98% da sua população tem o português como língua materna. O
reduzido e localizado plurilingüismo atual deixa no esquecimento o fato de que, no passado, o
português era apenas uma das muitas línguas que se falavam no Brasil.
A primeira gramática do quimbundo foi escrita em Salvador por um padre jesuíta, em 1694, o
que revela que nessa época a maioria dos escravos da cidade da Bahia falava essa língua. É
provável que o quimbundo também fosse usado em Alagoas, no quilombo dos Palmares, que
foi desbaratado nessa altura. Um português escreveu um manual de conversação da língua fon
em Vila Rica, em 1734, o que mostra que essa língua era corrente entre os escravos da região
mineira na primeira metade do século XVIII. Os primeiros líderes das revoltas de escravos
que aterrorizam a Bahia, entre 1807 e 1835, eram hauçás, convertidos ao Islã, e alfabetizados
em árabe. Foram sucedidos pelos iorubás, que protagonizaram a famosa Revolta dos Malês,
nome que designava os muçulmanos na sociedade baiana da época. E o médico Nina
Rodrigues, em um estudo antropológico pioneiro, registrou o uso de seis línguas africanas em
Salvador no final do século XIX, afirmando que o iorubá era de uso corrente entre os
africanos, seus descendentes e mestiços.
Mas, se até meados do século XIX o português tinha de conviver, muitas vezes em situação
de inferioridade, com as línguas indígenas e africanas, o colonizador foi impondo a sua
língua, em função do prestígio social e do poder econômico, sem deixar de recorrer à
violência e à repressão aberta à religião, à cultura e à língua dos povos dominados. Em 1757,
um decreto do governo do Marquês de Pombal proibia o uso da língua geral no Brasil,
A desarticulação das redes sociais e familiares dos africanos, durante a escravidão, e a força
da repressão à sua cultura fizeram com que nenhuma língua africana se conservasse no Brasil.
Sobreviveram apenas as línguas rituais no espaço de resistência dos terreiros de candomblé, e
duas comunidades rurais isoladas de afrodescendentes, em São Paulo e Minas Gerais, que
ainda usam uma língua secreta com base em um vocabulário de origem banto. Até a
contribuição vocabular africana para o português é pequena, restringindo-se às áreas em que a
sua influência é maior, a culinária e a religião: abará e acarajé, orixá, axé e Iemanjá (de
origem iorubá); e, obviamente, à escravidão: senzala, mucama, mocambo e quilombo (de
origem banto). Como os falantes das línguas banto foram mais representativos durante todo o
período da escravidão, são dessas línguas as poucas palavras que passaram a integrar o
vocabulário básico do português brasileiro: caçula, moleque, molambo, camundongo e
cachaça.
O extermínio e o processo de aculturação forçada dos povos indígenas em mais de 500 anos
de colonização também levaram ao desaparecimento da maioria das línguas indígenas no
Brasil. E das remanescentes, a maioria corre sério risco de extinção, contando muitas vezes
com pouco mais de uma dezena de falantes idosos. E a contribuição das línguas indígenas
para o vocabulário do português é quase que exclusivamente de origem tupi, restringindo-se,
como seria natural, à fauna e à flora: caju, abacaxi, mandioca, tatu, tamanduá etc.
A língua nas sociedades ditas civilizadas apresenta normalmente diferenças que refletem as
diversas formas de organização social. Existe, por um lado, a língua do espaço institucional e
do saber formalizado (usada no parlamento, nas repartições públicas, nos documentos oficiais,
no ensino, nas instituições de pesquisa, e no que se chama de alta cultura), que é chamada de
norma culta. A norma culta se distingue da linguagem familiar, da convivência informal entre
vizinhos, da língua da cultura e das festas populares, que podemos chamar de linguagem
coloquial. A norma culta é regida por um modelo do bom uso da língua, fixado pela tradição
literária, dos escritores clássicos, uma língua ideal, codificada nos livros de gramática, que
constitui o padrão normativo da língua, ou simplesmente norma padrão. As pessoas
escolarizadas procuram ajustar a sua fala e sobretudo a sua escrita ao padrão normativo, mas
nem sempre o que escrevem e principalmente o que falam está em conformidade com os
modelos prescritos pela tradição gramatical; daí a diferença entre a norma culta e norma
padrão, que muitas vezes escapa à compreensão dos gramáticos normativistas. Uma outra
divisão lingüística relevante é a que separa a cidade da zona rural. A normativização está
muito mais presente nos centros urbanos, onde se concentram os espaços institucionais, do
que no campo, onde a linguagem é mais conservadora e mais distante do padrão.
Do ponto de vista lingüístico, a diferença mais notável entre a norma culta e a norma popular
é a freqüência no emprego das regras de concordância nominal e verbal, que é um verdadeiro
divisor de águas na realidade lingüística do Brasil. Enquanto uma pessoa escolarizada diz
normalmente “meus filhos mais velhos já estão na escola”, uma pessoa sem escolaridade no
interior do país diz: “meus filho mais velho já está na escola”. Outra diferença é que,
enquanto na norma culta o pronome pessoal muda de forma quando muda de função sintática
(a chamada flexão de caso), isso muitas vezes não ocorre na linguagem popular. Assim, na
fala culta temos “nós estávamos discutindo, quando João nos encontrou”, e na norma popular:
“nós tava discutindo quando João encontrou nós”. Na norma popular, a indeterminação do
sujeito é feita normalmente sem a partícula se: “planta muita mandioca no Nordeste”; ao invés
de: “planta-se muita mandioca no Nordeste”. E em comunidades rurais afro-brasileiras
isoladas, muitas delas provenientes de antigos quilombos, as diferenças podem ser ainda mais
radicais, sendo possíveis frases como ‘eu trabalha muito no roça”, sem concordância verbal
com a 1ª pessoa e sem concordância de gênero; e “dei os meninos o remédio” (ao invés de
“dei o remédio aos meninos”).
Tudo isso faz com que a língua padrão seja quase uma língua estrangeira para um falante da
norma popular, criando sérios obstáculos para a alfabetização e para o ensino de língua
portuguesa nas escolas públicas da periferia das grandes cidades e da zona rural. Contudo,
mais grave ainda é o preconceito, que usa as diferenças lingüísticas como um poderoso
mecanismo de dominação e exclusão política e social. As formas da língua popular podem
atrair o estigma social sobre os seus usuários. Parte da elite brasileira, por exemplo, expressa
o seu descontentamento com a presença de um torneiro mecânico na Presidência da República
dizendo que quem não faz corretamente as concordâncias não é capaz de governar o país.
Mas todo esse preconceito não tem o menor fundamento lingüístico. Faz parte do
funcionamento de toda língua viva a possibilidade de dizer a mesma coisa de formas
Mas, se a difusão da norma culta tem um caráter democrático porque está relacionada ao
acesso ao conhecimento formal e à cidadania, o seu ensino não deve ser feito em função da
discriminação da norma popular e dos seus usuários. Nas últimas décadas, a consciência
social tem avançado muito em relação ao respeito às diferenças, não se admitindo mais que
uma pessoa seja discriminada pela cor da sua pele ou pela sua opção sexual, mas a língua
ainda permanece um espaço de intolerância, sendo normal uma pessoa ser ridicularizada por
sua forma de falar. Isso se deve à grande ignorância na sociedade em relação à pluralidade da
língua, alimentada pela mídia conservadora com seus programas de “auto-ajuda gramatical”,
que só reforçam o preconceito lingüístico. Tão importante quanto ensinar as formas da norma
culta é desenvolver no aluno a consciência e o respeito à diversidade lingüística. A fala do
povo deve ser respeitada como se respeita a cultura popular. E nomes como Patativa do
Assaré e Adoniran Barbosa demonstraram que é possível compor obras de grande valor
artístico e estético empregando a norma popular. Além disso, as diferenças entre as normas
culta e popular nada mais são do que o reflexo da história lingüística do Brasil.
Mas, se o comportamento lingüístico de nossas elites tem sido marcado pelo conservadorismo
e pela submissão ao cânone coimbrão, no outro pólo de formação de nossa realidade
lingüística, a língua portuguesa passou por profundas transformações ao ser adquirida por
milhões de africanos escravizados e de índios e ao tornar-se a língua materna dos seus
descendentes. A forma como a língua portuguesa foi imposta a esses segmentos no Brasil se
assemelha muito à forma como surgiram línguas como o crioulo francês do Haiti, o crioulo
inglês da Jamaica e o crioulo português do arquipélago de Cabo Verde.
Portanto, as características da fala popular sobre as quais recai o estigma social do preconceito
lingüístico nada mais são do que o reflexo mais notável do caráter pluriétnico e multicultural
da sociedade brasileira. E cabe à escola resgatar essa consciência histórica e promover o
respeito à diversidade cultural e lingüística. Isso não está em conflito com a tarefa de difundir
a norma culta como forma de ampliar o acesso ao conhecimento e à cidadania, pois a
democratização lingüística do Brasil passa necessariamente pela sua democratização social e
econômica, com o aprofundamento das políticas de distribuição de renda e a inclusão de
Sugestão de leitura
Nota:
1. Premissas
Neste texto, assumimos algumas premissas, que convém explicitar como ponto de partida.
• Todas as línguas variam no tempo e no espaço, seja este geográfico, social (dada a
conjunção de características de classe social, idade, gênero, profissão/ocupação, religião, etc.)
ou sociointeracional (afirmação de identidades, (as)simetria entre participantes, grau de
sintonia com o interlocutor, direitos e deveres em função do tipo de evento, entre outros
aspectos que serão abordados adiante, na discussão de exemplos).
• A variação pode levar ou não à mudança lingüística. A associação entre variação e mudança
pode ser observada, por exemplo, no uso de a gente em lugar de nós. Neste caso, trata-se,
evidentemente, de mudança ainda em andamento. Entretanto, a variação pode permanecer
estável e não acarretar mudança, como é o caso da redução dos ditongos, que há séculos tem
sido observada na língua falada. Assim, alternamos entre deixa ~ dexa, entre andou ~ andô,
• Nenhuma língua é estática, todas elas mudam ao longo do tempo. O inglês antigo tinha uma
distinção entre singular e plural para o pronome reto de segunda pessoa: thou (singular) e you
(plural); hoje a língua emprega exatamente uma e a mesma forma nos dois sentidos: you, mas
a forma antiga ainda ocorre em textos poéticos e religiosos, por exemplo. Em português, o
pronome reto vós, que herdamos do latim, caiu em desuso e, em seu lugar, cunhamos um
novo pronome, vocês, que empregamos Brasil afora, na fala e na escrita. Evidentemente, nas
duas línguas, inglês e português, essas mudanças se associaram a outras (por exemplo, vosso
> de vocês) e produziram novos estados de língua, não sua deturpação ou degeneração.
• A mudança lingüística produz diferença, mas não resulta nem em evolução, nem em
degradação da língua, isto é, as línguas não ficam nem melhores nem piores. E ficam mais
ricas, pois as formas antigas, enquanto delas houver memória ou registro, podem ser
empregadas de modo a produzir efeitos particulares na interação social, seja oral, seja escrita.
É o que se observa no nome de um blog como “Coleguinhas, Uni-vos!” 3, que se descreve
divertidamente como “picadinho diário de jornalismo e mídia em geral”. É marcante o
contraste entre a escolha do jocoso e irreverente diminutivo “Coleguinhas” ao lado do sisudo
e incitador imperativo seguido de pronome oblíquo correspondente à antiga segunda pessoa
do plural (“Uni-vos!”), palavra de ordem de reuniões, assembléias, passeatas, comícios, etc.
Seria o mesmo dizer “Coleguinhas, unam-se!”? Talvez sim, do ponto de vista de um sentido
estrito da construção; mas certamente não, do ponto de vista do que “se quer dizer”.
• A língua (qualquer língua) só existe de fato e plenamente no seio da vida social, nas práticas
sociais dos falantes, no uso que dela fazem, seja oral, seja escrito. Desvinculá-la de seu
contexto de uso, da ocasião, da relação entre “quem disse o que a quem”, com que propósito,
etc., é tirar-lhe o sentido e a razão de ser.
Nosso objetivo neste texto é esboçar um perfil da variabilidade do português no Brasil. Para
tanto, certos aspectos de nossa constituição como país precisam ser levados em conta. O
primeiro aspecto a ser destacado diz respeito ao nosso imenso território e às decorrentes
dificuldades, e até mesmo ausência de contato entre as comunidades. Tais dificuldades de
contato, em qualquer lugar do mundo, sempre reduzem as oportunidades de estabelecimento
de práticas sociais comuns, seja de linguagem, seja de manifestações artísticas, seja ainda de
modos de viver e de sobreviver. Não foi diferente no Brasil: tanto a distância entre
comunidades locais e entre a colônia e a metrópole, quanto o isolamento na zona rural e entre
os núcleos urbanos constituíram forças centrífugas, ou seja, forças que, por se afastarem do
centro original, favoreceram a diversificação lingüística do português.
Outro aspecto a considerar para traçar o perfil da variabilidade da língua no país diz respeito à
multiplicidade de culturas forjadas ao longo de nossa história. Contribuíram para isso os
diferentes momentos de ocupação da terra e de formação dos núcleos urbanos, em função de
diferentes atividades econômicas e objetivos políticos. Foram momentos de reunir ou de
separar etnias e línguas, chegando, nos casos extremos, a seu extermínio. Foram,
principalmente, momentos de consolidar o poder de uma reduzidíssima elite, que assim
agregava prestígio a tudo o que lhe dissesse respeito, inclusive à sua linguagem, em
contraposição à privação e à estigmatização da maioria da população, a começar,
evidentemente, por seu modo de falar. Essas forças, portanto, são claramente centrífugas,
divergentes, e levam à diversificação da língua.
Assim, o Brasil foi, na maior parte de sua história, um país multilíngüe em que o português
era língua minoritária. O próprio projeto de nação da elite luso-brasileira se construiu sobre a
desqualificação das outras muitas línguas que aqui foram faladas e de seus falantes. Desse
modo, a história social do Brasil impôs o português como língua oficial, sem dar à maioria
dos falantes oportunidades adequadas para a sua aprendizagem. Com isso, criaram-se
condições favoráveis à diversificação lingüístico-cultural de caráter social que hoje
caracteriza o país: reconhecemos nas mais diversas instâncias da vida a existência de um
continuum de variação que tem, num dos extremos, a chamada norma culta e, no outro, certas
variedades populares muito afastadas da culta. Mas note-se que as variedades populares não
devem ser confundidas com língua coloquial ou informal, porque fazer a oposição entre culto
e coloquial consiste em comparar coisas distintas, empregando, de um lado, o eixo das classes
sociais e, de outro, o eixo de grau de formalidade da linguagem como critério de julgamento.
Até aqui vimos que nossas condições sócio-históricas e territoriais favoreceram, de um lado, o
surgimento da variabilidade e, de outro, uma tendência à unificação.
A professora Rosa Virgínia Mattos e Silva, da Universidade Federal da Bahia, amplia nossa
compreensão da conjugação de forças e da atual configuração do português brasileiro ao
afirmar o que segue:
Numa perspectiva de mudança, com base nos estudos em que se fundamenta, defende
Dante Lucchesi a idéia de que a norma culta – ou seja, os padrões de uso dos segmentos
escolarizados, dos falantes das classes média e alta – tende a perder características que a
aproximam do padrão europeu original e a norma vernácula tende a adquirir
características que a aproximam da norma culta, num processo de convergência, mas com
nítidas diferenças quanto aos padrões de uso e aos sistemas de valores que subjazem a
eles4 (Mattos e Silva, 1998, p. 29).
Poderíamos aqui discutir vários exemplos, tais como a colocação dos pronomes oblíquos
(próclise versus ênclise) e a locução verbal estou fazendo em lugar da locução estar a fazer.
Vamos, porém, nos concentrar no caso do uso de a gente, porque ele permite exemplificar as
múltiplas faces dos fatos de uso da língua que estamos interessados em apresentar e comentar.
Ao contrário do que ocorre em Portugal, o uso de a gente como pronome pessoal é
generalizado em nosso país, não só nas variedades populares, mas também na chamada fala
culta, das classes média e alta e dos segmentos altamente escolarizados da sociedade. Estamos
nos referindo a ocorrências como as que se observam a seguir na fala de uma professora com
ensino superior completo, na faixa etária entre 36 e 55 anos, entrevistada em 1972 pelo
Projeto NURC6 em Porto Alegre (inquérito 45):
Inf.: bom... visita mesmo... a gente (1) visita tão pouco hoje em dia e ainda ainda domingo
passado ainda li no jornal um artigo... não sei se vo/ se vocês leram... a respeito justamente
de negócio de visita né?... e ah::... a gente (2) se encontra sempre todos os meses nesse
jantar... com os amigos... quer dizer que pouco fora disso a gente (3) não se encontra...
Há dois sentidos bem distintos nas ocorrências de a gente nesta parte da entrevista: em (1) o
pronome é usado para fazer referência genericamente a toda e qualquer pessoa. Em (2) e (3) o
pronome é usado para fazer referência a um conjunto específico de pessoas, no caso, a
informante e seu marido. Na entrevista, fica muito claro que ela está falando do casal, porque
dá muitos detalhes dessas atividades que os dois desenvolvem. Em qualquer dos casos, ela
poderia ter dito nós, pois este pronome também pode ser usado com referência genérica ou
específica. Sua escolha por a gente, então, atesta o quanto esse uso está consolidado no
português brasileiro, mesmo entre os chamados falantes cultos, mesmo em falas registradas há
mais de 30 anos.
90
80 82
70 67
60
50
% a gente
40
30
24
20
10
0
1900-1925 1926-1950 1951-1975
Gráfico 1 - Percentuais do uso de “a gente” conforme o ano de nascimento dos falantes - dados de Porto
Alegre do NURC e do VARSUL (cf. Zilles, 20076).
Todas as pessoas cuja fala foi analisada nesta pesquisa têm, no mínimo, Ensino Médio
completo; a maioria, contudo, tem Curso Superior completo, o que significa que fazem parte
da chamada elite culta da sociedade. Observa-se, no gráfico, um acentuado crescimento no
uso de a gente num intervalo de tempo de 75 anos. Assim, as pessoas que nasceram no
primeiro quartel do século 20, ao serem entrevistadas, seja na década de 1970, seja na de
1990, apresentaram percentuais bem baixos de uso do novo pronome (24%), em contraste
com o uso do pronome nós. O percentual de uso de a gente para os nascidos no segundo
quartel do século alcança já 67% e chega a 82% para os nascidos no terceiro quartel. Esse
percentual, que é altíssimo, pode ser interpretado como sinal de mudança em curso bastante
avançada. Pelo fato de esses falantes fazerem parte da classe mais escolarizada do país, sua
progressiva adesão ao novo pronome confirma o fato de que ele goza de prestígio na
sociedade.
A gente aparece, com valor de pronome pessoal pleno (eu+tu), em textos de literatura infantil,
como em “Tchau”, de Bojunga (2001): a certa altura de uma conversa entre mãe e filha, esta
diz àquela: “Sozinha como? e eu? e o Donatelo? a gente tá sempre junto, não tá?”
A gente ocorre também em textos que dão voz a crianças e criam vozes dirigidas a elas, como
no magistral conto de Carlos Drummond de Andrade (1989) intitulado “Na escola”. De um
lado, a fala dirigida pela professora aos alunos: “Muito bem. Será uma espécie de plebiscito.
A palavra é complicada, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião, a gente soma as
opiniões, e a maioria é que decide.” De outro lado, a fala do aluno, em que a concordância
usada espelha a subversão da ordem proposta: “ – Legal! – exclamou Jorgito. – Uniforme está
superado, professora. A senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer
jeito.”
Mas, como dissemos antes, o pronome a gente não ocorre em muitos outros tipos de texto, a
não ser com seu significado genérico. Essas diferenças, é claro, revelam contradições na
E *Nós então?
E *Nós queremos saber (hes), por exemplo, a origem da sua família. *A senhora nasceu
aqui em Porto [2Alegre2] (inint)?
O que precisa ser posto em destaque é que a avaliação social negativa dessa variação é
altamente consciente e consistente. Os dois exemplos a seguir o demonstram. Em primeiro
lugar, mais um trecho de entrevista feita na década de 1970 pelo Projeto NURC em Porto
Alegre, desta vez com um dentista e também professor universitário, entre 25 e 35 anos,
(inquérito 09):
Doc.: Quais os defeitos mais comuns que você conhece no modo de falar?
Inf.: Quais os defeitos mais comuns no modo de falar? ... éh... não há concordância... do
verbo com a pessoa... às vezes a pes/ são várias pessoas e usa-se o verbo numa pessoa só...
ou para uma pessoa... eu posso estar aqui... perfeitamente devido ao nervosismo estar
falando erradamente...
Talvez essa enorme pressão negativa contra a variação na concordância verbal esteja no bojo
de um fenômeno que o estudo da língua falada vem revelando, e que tratamos a seguir. Trata-
se da “difusão ativa de traços da língua padrão à fala popular”, como discute o Professor
Gregory Guy9 em um interessante texto sobre a questão da crioulização prévia do português
do Brasil.
Este resultado mostra o importante papel da escola no uso da linguagem, ainda que não seja
ela, a escola, a única responsável por esta mudança em andamento. O que precisamos nos
perguntar é se faz sentido continuar tratando a variação como erro, quando sabemos que
forças sócio-históricas contribuíram para o seu estabelecimento. Também é necessário nos
perguntar se queremos continuar gerando insegurança lingüística entre os falantes, geração
após geração. Tais perguntas precisam ser feitas porque os juízos de valor colados à
Uma generalização comum a respeito das características lingüísticas do Rio Grande do Sul é o
emprego do pronome tu. Entretanto, há no estado zonas de uso exclusivo de tu, zonas de uso
exclusivo de você e zonas em que as duas formas se alternam. Pelotas, RS, é uma cidade de
zona exclusiva de uso de tu. Será que o pronome tu é acompanhado de marca verbal de
segunda pessoa?
Há também uma relação entre classe social e maior ou menor freqüência da concordância de
segunda pessoa, como se pode ver pelo gráfico abaixo.
%
12 %
8%
7%
6%
4%
Gráfico 2: relação entre classe social e maior ou menor freqüência da concordância de segunda
pessoa.
Por fim, a distribuição da marca de segunda pessoa por classe social mostra a estratificação do
uso dessa forma lingüística. Ainda que os percentuais não sejam muito distintos e sejam bem
baixos, o decréscimo é evidente. Portanto, a retenção da marca de pessoa é um traço de fala
que, em Pelotas, está claramente associada a acesso a bens culturais e econômicos, bem como
a práticas sociais em que a interação assimétrica favorece o uso da marca de segunda pessoa
na fala dirigida a pessoas hierarquicamente superiores ou com mais poder.
Acima de tudo, é interessante notar que os falantes que mais usam a marca são mulheres de
classe média, particularmente, por exemplo, as com educação de nível superior, as que
trabalham em certo tipo de comércio (butique voltada para a classe média e alta). A retenção
da marca, portanto, é um ato de identidade através do qual essas mulheres projetam de si uma
imagem associada a um símbolo de poder culturalmente superposto, a chamada língua padrão
(a que associamos com os modelos apresentados nas gramáticas). Com isso, elas adquirem um
capital simbólico no jogo de poder da sociedade. Falamos em retenção da marca porque o
baixíssimo percentual de uso do morfema de segunda pessoa verbal (apenas 7%) na amostra
6. Variação e escola
Carlos Alberto Faraco11, em texto recentemente publicado, caracteriza com muita clareza a
tarefa que nos cabe como professores. Diz ele:
(...) nosso grande desafio, neste início de século e milênio, é reunir esforços para construir
uma pedagogia da variação lingüística que não escamoteie a realidade lingüística do país
(reconheça-o como multilíngüe e dê destaque crítico à variação social do português); não
dê um tratamento anedótico ou estereotipado aos fenômenos da variação; localize
adequadamente os fatos da norma culta no quadro amplo da variação e no contexto das
práticas sociais que a pressupõem; abandone criticamente o cultivo da norma-padrão;
estimule a percepção do potencial estilístico e retórico dos fenômenos da variação.
Mas, acima de tudo, uma pedagogia que sensibilize as crianças e os jovens para a
variação de tal modo que possamos combater os estigmas lingüísticos, a violência
simbólica, as exclusões sociais e culturais fundadas na diferença lingüística.
Cabe a todos nós que trabalhamos com educação a responsabilidade de oferecer ensino de
qualidade a nossos alunos. Para fazê-lo, é indispensável que desenvolvamos uma nova postura
frente aos fatos da língua portuguesa e das demais línguas faladas no Brasil, sua relação com
as identidades sociais e com as culturas que aqui convivem. É indispensável que nossos
alunos tenham sua cultura e sua variedade de língua respeitadas na escola para que se sintam
valorizados e possam aprender, descobrindo-se e descobrindo o mundo, compreendendo as
relações sociais, as desigualdades, os conflitos e as potencialidades de desenvolvimento
pessoal e comunitário em nosso país. Ouvi-los pelo que eles têm a dizer, e não pelo modo
como dizem, pode ser um bom começo. Mas não podemos ficar só no começo. Por isso, é
importante ouvi-los e discutir com eles os efeitos sociais e estilísticos dos diferentes modos de
Sugestões de leitura
Notas:
4 Mattos e Silva, Rosa Virgínia. “Idéias para a história do português brasileiro: fragmentos para
uma composição posterior”. In CASTILHO, Ataliba T. de. (org.) Para a história do português
brasileiro. São Paulo: Humanitas Publicações/ FFLCH/USP, 1998. V. 1. p.21-52.
6 Zilles, Ana M. S. O que a fala e a escrita nos dizem sobre a avaliação social do uso de a
gente. In: Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 42, n. 2, p. 27 a 44, junho, 2007.
7Projeto Variação Lingüística Urbana da Região Sul (VARSUL), desenvolvido na UFPR, UFSC,
UFRGS e PUCRS.
9 Guy, Gregory R. A questão da crioulização no português do Brasil. In: Zilles, Ana M. (org.)
Estudos de Variação Lingüística no Brasil e no Cone Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2005. p. 36.
11 Faraco, Carlos Alberto. Por uma pedagogia da variação lingüística. In: Djane A. Correa
(org.) A relevância social da lingüística: linguagem, teoria e ensino. São Paulo: Parábola
Editorial; Ponta Grossa, PR : UEPG, 2007. p. 46.
O Brasil multilíngüe
Costumamos pensar que em cada país fala-se uma única língua, mas não é bem assim. Em
quase todos os países do mundo falam-se duas ou mais línguas e há alguns onde são faladas
centenas de línguas, como é o caso da Índia, com mais de 200 línguas, e da Tanzânia, com
mais de 135 línguas.
Também costumamos pensar que o Brasil é um país monolíngüe, onde todos se comunicam
usando somente o português. Mas não é essa a realidade. No Brasil, hoje em dia, são falados
cerca de 200 idiomas, além do português. Estima-se que, quando os portugueses chegaram
aqui, há 500 anos, eram faladas no Brasil por volta de 1.078 línguas indígenas. Hoje as nações
indígenas sobreviventes preservam cerca de 180 línguas, conhecidas como línguas brasileiras,
muitas delas ameaçadas de extinção. Felizmente a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB, de 1996) e o Plano Nacional de Educação (Resolução 03 do Conselho
Nacional de Educação) garantem ensino de natureza intercultural e bilíngüe a mais de 174 mil
estudantes indígenas (Ver: Brasil/Minc, 2007).
A língua portuguesa, que a Constituição Brasileira (art. 13) declarou idioma oficial da
República Federativa do Brasil, tem aproximadamente 830 anos de idade2 [1], está entre as
dez mais empregadas do planeta e é a sexta língua materna mais falada do mundo. É língua
oficial de oito países lusófonos: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São
Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Timor-Leste.
O Brasil é o maior país de língua portuguesa em extensão territorial. Além disso, é também o
país onde vive o maior número de falantes de português (cerca de 182 milhões de habitantes
em 2004).
Não obstante o uso extensivo da língua portuguesa no Brasil, o país enfrenta um seriíssimo
problema na familiarização de grande parte de seu contingente populacional com a
modalidade escrita da língua.
Dados fidedignos sobre essa questão estão agora disponíveis no Mapa do Analfabetismo no
Brasil, que é uma iniciativa conjunta do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira), do Censo Escolar do MEC, do IBGE e do PNUD (Programa
de Desenvolvimento das Nações Unidas – United Nations Development Program – UNDP).
Segundo o referido mapa, o número de analfabetos varia bastante de região para região e é
inversamente proporcional ao Índice de Desenvolvimento Humano, IDH. Quanto mais baixo
No Nordeste, o número de analfabetos é muito maior que nas regiões Sul e Sudeste. Quanto à
renda familiar, calculada em salários mínimos, constata-se que o analfabetismo chega a ser 20
vezes maior nas famílias mais pobres.
Observe-se, também, que as mulheres apresentam uma taxa de alfabetização superior à dos
homens. Em relação à variável “raça”, constatou-se que existem três vezes mais brancos
alfabetizados do que negros e pardos, o que confirma o peso do fator raça na desigualdade
social no Brasil (segundo dados das pesquisas citadas).
Considerando-se a dicotomia rural x urbano no país, os dados mostram que, no meio rural
brasileiro, a taxa de analfabetismo é três vezes superior à da população urbana.
O analfabetismo funcional
Para se entender as razões desse imenso contingente de brasileiros que vivem à margem das
culturas de letramento ou participam delas apenas tangencialmente, devemos estudar as
circunstâncias da transposição do português para o Brasil Colônia. Em nosso país, desde o
início da colonização, a cultura rural prevaleceu sobre a cultura urbana. Os núcleos urbanos
no Brasil Colonial ficaram praticamente restritos à faixa litorânea. Nos grandes espaços
interioranos, à medida que as terras eram desbravadas e se sucediam os ciclos na produção
agropecuária, desenvolviam-se núcleos de cultura rural.
O ambiente de contato de línguas no Brasil Colônia era ideal para desencadear mudanças
rápidas no sistema da língua portuguesa. Não existem registros confiáveis desse contato de
línguas e da emergência de interlínguas, isto é, de variedades da língua portuguesa faladas por
indivíduos que não a tinham como língua materna, no caso, os indígenas. Mas, de fato, o
contato de línguas, a ausência de um sistema educacional e a ínfima circulação de textos
Longe do efeito padronizador da cultura letrada, cultivada pelas instituições urbanas que são
agentes letradores, a variedade da língua usada pelas populações rurais e interioranas era
bastante diferente da língua falada em Portugal não só na gramática, mas também no
vocabulário, com forte influência da língua geral.
Esse multilingüismo da sociedade brasileira nos séculos XVI e XVII torna-se mais complexo
com a chegada dos escravos africanos, que não eram portadores de língua e cultura
homogêneas porque provinham de diferentes grupos étnicos: os Yoruba, chamados nagô; os
Dahomey, denominados gegê e os Fanti-Ashanti, conhecidos como minas, além de outros
grupos menores, conforme nos ensina Darcy Ribeiro (1995), baseado nos estudos pioneiros de
Nina Rodrigues e Arthur Ramos. Como o tráfico negreiro durou cerca de três séculos, havia
na sociedade colonial uma interação permanente entre escravos de diferentes gerações.
Estima-se que cerca de 4 milhões de escravos foram trazidos para o Brasil e aqui distribuídos
pelas áreas de lavouras ou abrigados nas cidades, nas casas de família, como escravos
domésticos. Esse grande número de africanos trazidos para o Brasil nunca teve oportunidade
de aprender o português sistematicamente. As escolas, que já eram raras, não se abriam para
os escravos, que ganharam a liberdade já quase ao final do século XIX, sem que, contudo,
tivessem as condições de inserção no sistema de produção. Permaneceram à margem desse
sistema, longe das escolas e da cultura letrada, e contribuíram para formar os grandes
contingentes de mão-de-obra barata e pouco valorizada, mesmo depois que o país entrou,
tardiamente, na era industrial.
Quando nossos alunos chegam à escola, já têm uma competência comunicativa bem
desenvolvida. Já são capazes de se comunicar bem, no âmbito da família, e de conversar com
os amigos, colegas, professores, etc. Quando começam a ter contato com a língua escrita, ao
aprender a ler e escrever, vão-se valer dos conhecimentos que lhes permitem comunicar-se
oralmente para se comunicarem, também, por meio da língua escrita. Por isso, devemos
refletir muito sobre a integração entre os modos de falar que os estudantes já dominam e
novos modos de falar e modos de escrever que têm de incorporar ao seu repertório lingüístico,
de tal forma que estejam preparados para desempenhar as mais diversas tarefas na sociedade.
Nos modos de falar dos brasileiros em geral, cujas origens já vimos neste artigo, ocorrem
muitas regras variáveis. Estamos diante de uma regra variável na língua sempre que há duas
ou mais maneiras de se dizer a mesma coisa. Por exemplo, “Eu tô falano c’cê” / “Eu estou
falando com você”. Essa segunda variante tem prestígio, é valorizada e bem recebida,
enquanto a primeira, embora muito usada na comunicação oral, é considerada uma construção
A língua de uma comunidade é uma atividade social e, como qualquer atividade social, está
sujeita a normas e convenções de uso. Em qualquer língua podemos escolher entre usos mais
formais ou menos formais. Mas essa escolha não é totalmente livre. Ela é condicionada pelas
normas que definem quando e onde é adequado usar linguagem informal (não-monitorada) e
quando e onde se espera que os participantes da interação usem linguagem formal
(monitorada).
Toda vez que duas ou mais pessoas se envolvem numa interação verbal, cada uma delas cria
expectativas sobre a forma como ela própria e seus interlocutores vão-se comportar.
Queremos dizer que, em uma interação face a face, ou mesmo mediada pelo telefone ou pelo
computador, todas as pessoas envolvidas seguem normas sociais que definem o seu
comportamento, particularmente o seu comportamento lingüístico. Se todas elas consideram a
interação em que estão envolvidas como informal, tenderão a empregar formas lingüísticas
adequadas às interações informais. Se uma delas tiver uma interpretação diferente e
considerar a situação como formal, poderá vir a empregar formas inadequadas para a situação.
Da mesma maneira, em uma situação formal, se um interlocutor escolher usos lingüísticos
informais, sua fala resultará inadequada para a situação. Mas veja bem: às vezes uma pessoa
reconhece que a situação é formal, dispõe-se a monitorar-se, mas lhe faltam recursos
comunicativos próprios da fala monitorada.
Os recursos comunicativos
É por isso que a escola precisa empenhar-se na ampliação dos recursos comunicativos dos
alunos. Dispondo de uma gama mais ampla de recursos comunicativos, os estudantes, sempre
que precisarem e desejarem, saberão monitorar sua fala, ajustando-se às expectativas de seus
É no momento em que o estudante usa uma variante que a sociedade considera como “erro” e
o professor intervém, fornecendo a variante própria da escrita e dos estilos monitorados, que
as duas variedades se justapõem em sala de aula. Como proceder nesses momentos é uma
dúvida sempre presente entre os professores. Uma pedagogia que é culturalmente sensível aos
saberes dos educandos está atenta às diferenças entre a cultura que eles trazem consigo e a da
escola e mostra ao professor como encontrar formas efetivas de conscientizar seus alunos
sobre essas diferenças. Na prática, contudo, esse comportamento é ainda problemático para os
professores, que ficam inseguros sem saber se devem corrigir ou não, que erros devem
corrigir ou até mesmo se podem falar em erros.
Quando uma professora percebe o uso de regras não-padrão, nem sempre precisa corrigir o
aluno diretamente, mas pode retomar aquela contribuição, comentando-a ou ampliando-a.
Dessa forma, a professora está construindo um “andaime”, isto é, apresentando a variante
própria da língua escrita e também da fala monitorada, e chamando a atenção para as
diferenças entre as variantes.
Bibliografia
Notas:
2 Estou considerando aqui como marco inicial da língua portuguesa o documento “A Notícia de
Fiadores” de 1175 (Ver Ilari, R. e Basso, R., 2006).
Ministro da Educação
Fernando Haddad
Coordenador-geral da TV Escola
Érico da Silveira
Supervisora Pedagógica
Rosa Helena Mendonça
Acompanhamento Pedagógico
Carla Ramos
Copidesque e Revisão
Magda Frediani Martins
Diagramação e Editoração
Equipe do Núcleo de Produção Gráfica de Mídia Impressa – TV Brasil
Gerência de Criação e Produção de Arte