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rio secreto.

Passou o resto do dia o r a n d o e m sua cape-


la, e acusou-se em confissão de olhares pecaminosos,
e n q u a n t o que sob sua o r d e m murava-se a p o r t a do ora-
tório na T o r r e da M e d i t a ç ã o . N o d i a seguinte, ao sair
da Missa de finados que fizera celebrar, veio passar
sua m ã o sobre a cal a i n d a úmida e r e s p i r o u aliviado.
Do que f o r a m testemunhas os emissários reais que
ele h a v i a m a n t i d o c o m o reféns em sua fortaleza; pois
três dias depois ele os c o n d u z i u à fenda secreta para
que dessem u m a olhada n o local; r e c u a r a m h o r r o r i z a -
dos. E após tê-los assim certificado da severidade da
Santa O r d e m para c o m seus m e m b r o s i n d i g n o s , con-
I
t i n u o u a tratá-los c o m h u m a n i d a d e até o dia em que
se r e n d e u às forças do Rei.

Afasta-te desse lugar de a m a r g u r a ! — s u s s u r r o u a


brisa que se i n s i n u a v a em suas p r ó p r i a s volutas, v i s t o
que ele f l u t u a v a sobre a irreconhecível ilha das Vacas.
As imensas florestas ao sul da c a p i t a l , os o u t e i r o s
inclinados e m direção à m u r a l h a s d o setentrião, a pró-
p r i a T o r r e do T e m p l o h a v i a m desaparecido: nesse vale
d o Sena, n e n h u m a pá de m o i n h o ; mas, a p e r d e r de
vista, u m relevo l a p i d a r eriçado de carcaças metálicas
ao longo das duas margens, mas u m f e r v i l h a r negrusco
t r a n s p a r e c i a m sob b r u m a s sulfúreas.
As palavras percebidas i m p r i m i r a m u m a e s p i r a l
mais larga à sua expectação: — Sois vós? — E n t ã o es-
tendeu-se acorde c o m esse estremecimento f a m i l i a r d o
ar: ele a t i n h a reconhecido e, abandonando-se à alegria
de tê-lo sido p o r ela:
— Ó sopro consolador q u a n d o à h o r a vesperal a
dúvida assalta nossos espíritos! Dizei-me: tantos flage-
los não f o r a m capazes de vencer a resistência dessa
raça cúpida, reproduzir-se-á ela a i n d a p o r m u i t o t e m p o ?

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Porque m u i t o s são os chamados e poucos os eleitos, p e m à tua vigilância e v e n t i l e m a l g u m a o b r a de carne,
u m n ú m e r o de nascimentos sempre variável segundo o eles se i n f i l t r a m n ã o apenas a dois o u três como q u a n d o
p e r m i t e lá embaixo a v i d a mais o u menos d u r a o u de- se a m a l g a m a m , mas a cinco, mas a sete n u m só ú t e r o ,
senvolta, t r a n q u i l a o u assasina, me reserva u m novo ávidos de se a r r o g a r e m u m e m b r i ã o sobre o q u a l se
afluxo de sopros em suspenso? Nesse caso, em que possam descarregar de suas culpas anteriores e se refa-
desordem se perde m e u zelo! E m que pensa o Criador? zerem u m a v i r t u d e : o mais f r e q u e n t e m e n t e , do seio
Os astros se afastam n u m a fuga desvairada ante o pu- de u m a pobre leviana qualquer, u m c o r p o demasiada-
l u l a r dessas almas dissipadas! Pois e n q u a n t o recua de m e n t e frágil é convocado a desempenhar a aparente
século e m século o dia d o j u l g a m e n t o , as mais antigas u n i d a d e de u m c o m p l e x o de sete almas, e tem-se u m a
e s p r e i t a m as mais recentes e, misturando-se p o r afini- natureza tempestuosa, exuberante, intratável, padecen-
dade, põem-se de a c o r d o para fazer desaparecer u m a d o o t u m u l t o de o u t r o s tantos sopros várias vezes exa-
na o u t r a sua responsabilidade, e, assim, a dois, a três, lados, diferentes pela o r i g e m , a idade e a espécie, sujei-
m u t u a m e n t e emaranhadas, f i n g i n d o u m t o d o indisso- tando-se a t o m a r p o r próprias as suas vicissitudes!
lúvel v ã o e vêm em m i n h a fortaleza desafiar m i n h a I m e d i a t a m e n t e d e s t r u í d o esse c o r p o tão provado, seu
e s c r u t a d o r a razão! Que despedaçamentos q u a n d o res- s o p r o sobe até a q u i , divide-se de a c o r d o com suas d i -
suscitarem! Se é que elas venham u m d i a a recuperar versas correntes, que logo se a t r i t a m , perseguem-se, até
cada u m a o seu pó, i n d i v i d u a l lá e m b a i x o , q u a n d o deve- se dispersarem e m o u t r a s mais violentas! Eis p o r que as
rão p r e s t a r contas d a q u i , como me esforço em vão de violações e os estupros d o b r a m , decuplicam-se, centu-
fazê-las compreender d u r a n t e a quarentena de cuja plicam-se no b a i x o m u n d o , insuficientes para f o r n e c e r
guarda estou i n c u m b i d o ! a v i a de semelhantes transformações; e p o r mais que
Ao dizer isso, havia-se elevado m u i t o acima das a u m e n t e m os nascimentos, o n ú m e r o de expirados que
torres de Notre-Dame. Mas levando-o a b r i s a para longe desejariam renascer excederá sempre o número dos cor-
dos r u m o r e s desse l u g a r m a l d i t o : pos que nascem ano após ano. Daí e n f i m p o r que a por-
ç ã o mais considerável, ao invés de buscar essa s o l u ç ã o
— H á m u i t o t e m p o j á eu aguardava esse m o m e n t o
bastarda, prefere as violações e os estupros de c i m a
de a m a r g o r e lassidão, eu a quem não cessa de como-
que m a n c h a m t u a fortaleza. Até o d i a em que Deus se
ver t u a grande paciência n o i n s t r u i r os sopros expira-
d i g n a r á a c r i a r u m a nova espécie, t e u encargo será cada
dos, ó Grão-mestre d o T e m p l o ! E eu não q u i s t a m p o u c o
vez m a i s penoso: a a n a r q u i a t u r b u l e n t a das almas, seus
p e r t u r b a r t u a confiança n u m a tarefa que te f o i designa-
da no d e v i d o tempo pelos T r o n o s e as Dominações. Mas adultérios, seus incestos no círculo que te coube irão
u m c i c l o de acontecimentos completou-se para nós. É e m crescendo! U m a vez que a m a i o r i a sente-se dispensa-
chegada a h o r a e n f i m de te prevenir: o número dos da de ressuscitar, Deus as abandona a seu p r ó p r i o
eleitos encerrou-se. A p a r t i r de então, o género h u m a n o juízo.
m u d o u de substância: esta agora não é m a i s passível de A brisa cessou u m instante. O s o p r o do Grão-mestre
danação que de santificação. Daí esse p u l u l a r i n f i n i t o , q u e d o u imóvel. — Éreis vós q u e m falava, esposa d o
que engana teu d i s c e r n i m e n t o ! Tão grande é o peso C é u ? Teresa, onde estais?
dos expirados, que d e s e q u i l i b r a a economia das esferas. Detonações alternavam-se c o m clamores, ululações,
Essa p r o d i g i o s a q u a n t i d a d e de almas g i r a e m vão sobre b a d a l a r de sinos; e m breve, rangidos de dentes, soluços
si mesma. Saibas que, p o r menos que os ventos esca- e risinhos surdos se d i r i g i r a m c o m o grandes ventos e m

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direção ao buraco de a r que ele m e s m o f o r m a v a na as modulações d a santa que ele pensara i n i c i a l m e n t e
suspensão perplexa e m que o h a v i a m deixado as últi- haver reconhecido. E, sentindo-se t o m a d o de veloci-
mas palavras da brisa. Mas já u m a cavalgada em t r o m - dade, g r i t o u :
ba dos Irmãos Sopros, bandeira desfraldada, acuava — Jamais q u a l q u e r dos Bem-aventurados, p o r
e r e u n i a em u m c ú m u l o de nuvens que d o u r a v a os fogos mais que quisesse, poderia sequer afastar seu o l h a r
d o poente essa vaga de alentos exalados; então, f o r m a n - da face de Deus!
do u m a m p l o f u n i l g r a ç a s à sua c o n d u ç ã o numerosa e — Ó p r e s u n ç ã o dos Doutores que nos d e c l a r a m
rápida, os cavaleiros os v e r t i a m em t o r r e n t e s no recinto p a r a sempre f i x a d o s no soberano B e m ! Se ele é a
da fortaleza. Esta m e r g u l h a v a p r o f u n d a m e n t e suas fun- m e t a de nosso q u e r e r , sua visão n ã o nos p r i v a da nossa
dações incertas e e r g u i a nas esferas o t o p o de suas vontade como os vis prazeres: Aquele que me com-
cinco t o r r e s . Aos olhos dos viajantes o u dos campone- p l e t a aumenta a i n d a mais m i n h a consciência daqueles
ses dos lugarejos v i z i n h o s , o aspecto de u m a ruína ma- que j a m a i s v e r i a m sua face! Ó insustentável felicidade
jestosa, enegrecida: e ninguém suspeitava o que havia p a r a a inteligência que Deus não q u e r r o m p e r ! S ó Deus
e m m i m se o p õ e a Deus!
p o r trás do menor t r e m o r da hera que a i n v a d i r a , nem
o que se passava nas salas aparentemente devassadas, A brisa que h a v i a conduzido esses acentos se trans-
a poucos passos de u m gado r u m i n a n t e . f o r m a r a em t a l r a j a d a que seu p r ó p r i o sopro f o i arre-
— Que irás fazer c o m eles? — Foi-lhe sussurrado messado sobre o c a m i n h o da r o n d a de sua fortaleza:
no silêncio que v o l t a r a . o vento aí era insuportável; parecia que ela mesma,
O ú l t i m o dos I r m ã o s cavaleiros acabara de cruzar u i v a n d o nas folhagens da floresta c i r c u n v i z i n h a , v o l -
a p o n t e levadiça: l e n t a m e n t e , no esforço gemebundo tava para a r r e m e t e r c o n t r a o flanco das torres e as-
das roldanas da p o t e r n a , o vasto retângulo de pranchas sobiar pelas seteiras. Essa d e m o n s t r a ç ã o de violência
r e t o m a v a sua posição v e r t i c a l . A água c i n t i l a n t e dos não era na verdade senão u m a intimação cortês d i r i -
fossos saudou c o m o que c o m u m s o r r i s o a lua que gida ao senhor daquele lugar; e, p o s t o que fosse capaz
subia. Por três vezes o s o m da t r o m p a ecoou nos pátios de penetrar aí n u m a b r i r e fechar de olhos, aguardava
internos. seu consentimento. Mas se ele a escutasse só mais u m
Mas b e m p r ó x i m o de sua própria respiração, u m instante, se prosseguisse nesse t i p o de raciocínio f o r a
g a r g a l h a r abafado r e b e n t o u sobre a r e l v a da canhada. de seu recinto, i m e d i a t a m e n t e se v e r i a desautorizado
R e t o r n a n d o então a ele n u m eflúvio mais cálido: n o seu cargo r e l a t i v a m e n t e aos T r o n o s e as D o m i n a -
— E agora s o l i c i t o t u a ajuda, Grão-mestre do Tem- ções. Ela deveria v i r solicitá-lo n o i n t e r i o r de sua for-
p l o ! Acolhe-me t a l c o m o acabas de recebê-los! Porque taleza, era essa u m a questão de d i r e i t o canónico e de
excluí-me do número dos eleitos e desviei-me da face obediência à santa d o u t r i n a . A s s i m , f i n g i n d o t a p a r os
de Deus! o u v i d o s , precipitou-se pela atalaia n u m a escada e m
A essas palavras pôs-se a fugir, assustado. Sem e s p i r a l . A pequena p o r t a bateu a t r á s dele.
dúvida — enquanto ele cedia à atração da ilha, desa- Mas fosse de bronze essa p o r t a de madeira, fossem
parecida j u n t a m e n t e c o m a fogueira evaporada de seu esses m u r o s talhados no diamante, nada do que sepa-
suplício — , da m a r g e m daquelas r i b e i r a s a l g u m sopro, rava o u isolava a q u i t i n h a q u a l q u e r consequência: sua
tão maléfico q u a n t o suave era o seu s u s s u r r o , o havia própria escapada não passava de u m gesto respondendo
seguido, buscando cercá-lo em sua tristeza: este i m i t a v a a u m gesto, e n e n h u m o u t r o " f o r a " prevalecia sobre o

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" d e n t r o " a não ser a intenção; ora, n e n h u m a intenção
se p o d i a realmente defender da p e n e t r a ç ã o p o r o u t r a :
a q u i t o d a intenção p e r m a n e c i a permeável a intenções.
Somente prevaleceria sobre a o u t r a a intenção do pas-
sado que mais intensamente esperasse o f u t u r o . Que
era, p o i s , o f u t u r o , senão a redenção p r e d i t a no passa-
do? Onde mais t i n h a o r i g e m a predição a não ser n o
passado? Mas que seria u m f u t u r o que n ã o tivesse sido
o b j e t o de nenhuma p r e d i ç ã o ? De que celeste região
emanava essa brisa que t o r n a v a sobre si mesma em
r a j a d a nas antigas folhagens da e s p e r a n ç a ? Como se
ela não houvesse desdobrado o f u t u r o senão a força de
d o b r a r o passado v a t i c i n a d o r como u m a servidão en-
c e r r a d a : assim, s o p r a n d o d o f u n d o desse mesmo encer-
r a m e n t o , ela arrancava daí as palavras, m o s t r a n d o , de
cá, a l i b e r a ç ã o . . .
E l e não t i n h a m a i s dúvida de que f o r a ela q u e m
lhe f a l a r a . Mas, e s t i m a n d o que demasiados eflúvios
hostis infestavam os arredores de sua fortaleza para
não c o n f u n d i r de p r o p ó s i t o semelhante ressonância, a
p o n t o de a m p l i f i c a r de m o d o berrante t u d o que apenas N ã o obstante houvesse ele sempre d e m o n s t r a d o a
balbuciasse u m a a l m a c o n t e m p l a t i v a , longe de arriscar- m a i s p r o f u n d a repugnância pelo m o d o i n s t r u m e n t a l
se a refleti-lo, o Grão-mestre fixou-se e m seu p r i m e i r o que se oferecia a q u i para dar f o r m a aos sopros expira-
m o v i m e n t o de h u m o r . dos, dizia consigo mesmo que se havia equivocado ao
P o r isso dirigiu-se resolutamente à sala dos Foles. negar-lhe q u a l q u e r eficácia e s p i r i t u a l , pelo aspecto dos
aparelhos, a p o n t o de não usá-lo n u n c a ; pois se esses
aparelhos p a r e c i a m levar demasiado exclusivamente
e m conta os acidentes físicos da substância informá-
vel, n o entanto, n ã o sendo isso e m si senão u m a evo-
c a ç ã o i n t e i r a m e n t e analógica da substância c r i a d a i m -
perfeita mas perfectível, esses utensílios, em v i r t u d e de
sua função s e r v i l , só operavam c o m t a n t o mais j u s t i ç a
na m e d i d a em que ele mesmo, s o p r o c r i a d o e p o r t a n t o
i m p e r f e i t o , não se elevava a u m a i m p a r c i a l i d a d e serena
o bastante p a r a descurar t o t a l m e n t e de seu serviço.
M a i s ainda: o m o d o i n s t r u m e n t a l viu-se a m p l a m e n t e
c o r r i g i d o pela presença de u m o b j e t o sagrado capaz
de c o n f e r i r p o r si só seu caráter e m b l e m á t i c o a t o d a

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" d e n t r o " a não ser a intenção; ora, n e n h u m a intenção


se p o d i a realmente defender da p e n e t r a ç ã o p o r o u t r a :
a q u i t o d a intenção permanecia permeável a intenções.
Somente prevaleceria sobre a o u t r a a intenção do pas-
sado q u e mais intensamente esperasse o f u t u r o . Que
era, pois, o f u t u r o , senão a redenção p r e d i t a n o passa-
do? Onde mais t i n h a o r i g e m a predição a não ser n o
passado? Mas que seria u m f u t u r o que não tivesse sido
o b j e t o de n e n h u m a p r e d i ç ã o ? De que celeste região
emanava essa brisa que t o r n a v a sobre si mesma em
rajada nas antigas folhagens da e s p e r a n ç a ? Como se
ela n ã o houvesse desdobrado o f u t u r o s e n ã o a força de
d o b r a r o passado v a t i c i n a d o r como u m a servidão en-
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cerrada: assim, soprando d o f u n d o desse mesmo encer-
r a m e n t o , ela arrancava daí as palavras, m o s t r a n d o , de
cá, a l i b e r a ç ã o . . .
E l e não t i n h a m a i s dúvida de que f o r a ela q u e m
lhe f a l a r a . Mas, e s t i m a n d o que demasiados eflúvios
hostis infestavam os arredores de sua fortaleza para
não c o n f u n d i r de p r o p ó s i t o semelhante ressonância, a
p o n t o de a m p l i f i c a r de m o d o berrante t u d o que apenas Não obstante houvesse ele sempre d e m o n s t r a d o a
balbuciasse u m a a l m a c o n t e m p l a t i v a , longe de arriscar- m a i s p r o f u n d a repugnância pelo m o d o i n s t r u m e n t a l
se a refleti-lo, o Grão-mestre fixou-se e m seu p r i m e i r o que se oferecia a q u i para dar f o r m a aos sopros expira-
m o v i m e n t o de h u m o r . dos, dizia consigo mesmo que se h a v i a equivocado ao
P o r isso dirigiu-se resolutamente à sala dos Foles. negar-lhe q u a l q u e r eficácia e s p i r i t u a l , pelo aspecto dos
aparelhos, a p o n t o de não usá-lo n u n c a ; pois se esses
aparelhos p a r e c i a m levar demasiado exclusivamente
e m conta os acidentes físicos da substância informá-
vel, n o entanto, n ã o sendo isso e m si senão u m a evo-
c a ç ã o i n t e i r a m e n t e analógica da substância c r i a d a i m -
perfeita mas perfectível, esses utensílios, em v i r t u d e de
sua função s e r v i l , só operavam c o m t a n t o mais j u s t i ç a
na medida em que ele mesmo, sopro c r i a d o e p o r t a n t o
i m p e r f e i t o , não se elevava a u m a i m p a r c i a l i d a d e serena
o bastante p a r a descurar t o t a l m e n t e de seu serviço.
M a i s ainda: o m o d o i n s t r u m e n t a l viu-se a m p l a m e n t e
c o r r i g i d o pela p r e s e n ç a de u m o b j e t o sagrado capaz
de c o n f e r i r p o r si só seu caráter e m b l e m á t i c o a t o d a

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a o p e r a ç ã o . M a q u i n a l m e n t e , esses aparelhos c u m p r i a m i m e d i a t o e secreto, d o qual somente ele t i n h a o poder;
um rito. sucedeu, pois, que, tendo desse m o d o reconstituído a
c o m u n i d a d e dos I r m ã o s cavaleiros, ao mesmo t e m p o
N a sala dos Foles, t a m b é m d i t a da Serpente de
bronze, aguardavam-no c o m outras tantas colunas t u r - v o l t o u a ver-se cara a cara com o sopro do antigo Co-
b i l h o n a n d o sobre si mesmas com m a i o r o u m e n o r len- mendador; t a n t o que, p o r esse m e s m o m o d o de i n f o r -
tidão, segundo suas respectivas dignidades: o Comen- m a ç ã o , sobre o q u a l repousava sua a u t o r i d a d e , ele pa-
d a d o r , o V i s i t a d o r da O r d e m e o Senescal. Ao f u n d o recia t e r i n t r o d u z i d o , com o s o p r o d o Comendador,
desta sala, u m a cruz — que, sem oferecer a f i g u r a do esse género de investigação t o t a l m e n t e oposto ao seu,
Salvador, só havia conservado a coroa de espinhos e ao q u a l a Serpente de bronze dava u m a aparência de
os q u a t r o pregos de sua paixão — sobranceava u m a r i t o . Que agora ele se apressara s u b i t a m e n t e a r e c o r r e r
imensa chaminé; aí, dois Irmãos serventes, cujos tur- a ela e a fazer j u s t i ç a ao Comendador, v i r t u a l m e n t e seu
bilhões zelosos afetavam o aspecto de b r a ç o s com as r i v a l , era a consequência do abalo que acabava de so-
mangas arregaçadas, j á se d i s p u n h a m a a g a r r a r os pu- f r e r ; caiu em cheio na a r m a d i l h a que quisera e v i t a r ;
nhos de u m d u p l o fole cujas válvulas de pele, q u a l enor- e desconfiando então de toda sua longa experiência de
mes testículos, i n t r o d u z i d a s sob o p a n o da chaminé, além-túmulo, p e n e t r o u na sala dos Foles como n o l o c a l
o c u l t a v a m seu c o n d u t o ; ao nível d o l a r repousava onde estaria o m a i s seguramente ao a b r i g o das solicita-
sobre as brasas d o r m i d a s u m a longa e sinuosa f o r m a ções espirituais dos espaços sem l i m i t e .
de f e r r o côncavo, a Serpente de bronze de Moisés, que,
segundo se dizia, S a l a d i n o mandara e n t r e g a r o u t r o r a Assim, logo que o v i r a m e n t r a r , o Comendador e
ao Grão-mestre Roncelin.' Aspirando as almas separa- os dois outros dignatários c o m p r e e n d e r a m que algo
das, vestidas e recolhidas nas cavidades d a t o r r e vizi- havia acontecido: pois como o Grão-mestre t u r b i l h o -
nha e c o m u n i c a n d o c o m a chaminé, o d u p l o fole ex- nava de m o d o cada vez mais denso, enquanto sua veste
pulsava a q u i , sobre o l a r , seus p r i m e i r o s vagidos pós- a d q u i r i a a f o r m a de seus c o n t o r n o s apagados, eles dis-
t u m o s : logo que a Serpente de bronze passava ao esta- t i n g u i r a m , n o a l t o , o d u p l o b r i l h o de seu olhar. E n t ã o ,
do de incandescência, u m dos serventes, m u n i d o de reagindo p o r u m a u m e n t a r de consistência, seus pró-
tenazes, adaptava sua cauda ao t u b o d o d u p l o fole; p r i o s turbilhões a d o t a r a m u m c o m p o r t a m e n t o seme-
era assim que, sob as percucientes confissões da alma lhante e, cada u m se havendo i n c l i n a d o ante ele, todos
separada, a serpente incadescente desenrolava seus a d e n t r a r a m o a l t o c o r o ao longo d a parede s i n i s t r a ,
anéis, n u m a curva sempre variável, segundo os quais de onde se p o d i a observar o c o m p o r t a m e n t o da Serpen-
o s o p r o e x p i r a d o supostamente traía o u o c u l t a v a o que te de bronze na c h a m i n é do f u n d o .
lhe restava de intenção.
Após haver cantado o Veni Creator Spiritus e reci-
t a d o os salmos da penitência, o C o m e n d a d o r c o n v i d o u
Fosse ele o a u t o r o u simplesmente o guardião de
o Grão-mestre a benzer os i n s t r u m e n t o s e os I r m ã o s
u m c o s t u m e supersticioso, o Comendador assumia, de
sua p a r t e , esse género de informação, ante a indiferen- serventes: estes, t e n d o golpeado três vezes o peito, a t i -
ça d o Grão-mestre, que dele caçoava. Pois, c o m efeito, v a r a m o d u p l o fole. I m e d i a t a m e n t e as imensas válvu-
r e i n v e s t i d o em seu cargo de Grão-mestre pelos Tronos las de pele se i n f l a r a m ao m á x i m o , c o m u m som u i v a n -
e as Dominações, seu p r ó p r i o sopro e x p i r a d o exercia te. E r a o p r i m e i r o m o m e n t o d o t u m u l t o . O I r m ã o ser-
para si u m m o d o de i n f o r m a ç ã o das almas separadas, vente do lado d e s t r o p a r o u sua m a n o b r a e c r u z o u os

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b r a ç o s . O Irmão servente d o lado s i n i s t r o i n i c i o u a sua, p r i o m o d o de i n f o r m a ç ã o secreta, tendo-lhes o r d e n a d o
que l i b e r t a v a o p r i m e i r o sopro v i n d o pelo t u b o . que abandonassem o local — , todos os cinco deslizaram
N o lar, as brasas se i n f l a m a m c o m veemência a toda pressa p a r a f o r a da sala — os três dignatários
sob a Serpente de b r o n z e ; ao chegar ao p o n t o de incan- j á t i t u b e a n d o de embriaguez, os dois serventes j á n ã o
descência, o Irmão servente do lado s i n i s t r o , agarran- se aguentando m a i s de h i l a r i d a d e .
do-a pela cauda c o m as tenazes, ajusta aquesta ao t u b o
d o f o l e ; lentamente o réptil metálico c o m e ç a a se con-
t o r c e r ; estremece e o n d u l a em vários rápidos anéis, — Por que escolheste v i r p o r este caminho?
à m e d i d a que u m g e m i d o ainda i n a r t i c u l a d o o percorre — Quando de f o r a eu te falava d e n t r o de t i , pre-
p o r i n t e i r o ; tenta enrodilhar-se n u m t r i p l o e, em segui- ferias buscar a q u i a certeza nesses vis i n s t r u m e n t o s !
da, n u m d u p l o anel, e e n f i m ergue sua cabeça oca e — Agora que está aqui v o u destruí-los, ó fogo ce-
incandescente; de sua fauce semicerrada escapa u m leste que ninguém saberia j a m a i s apagar, mesmo que
assobio prolongado: t u o quisesses! E n t r e tantos expirados, quando u m so-
— Tenho sede!. . . t r a d u z então o Comendador. p r o parecia i n s i n u a r no meu suas confissões, não m e
De u m a escudela colocada na p o n t a de u m a vara s u r p r e e n d i eu m u i t a s vezes a me escutar no erro? U m a
vertem-lhe u m gole de vinagre. I r r o m p i d o de suas pre- t a l desconfiança p a r a c o m meus fracos recursos fre-
sas, f u r i o s o o v a p o r hesita em t o m a r f o r m a , no entan- quentemente me r e s t r i n g i u a c o n s u l t a r essa testemunha
to é apenas u m prelúdio. Ante esse s i m u l a c r o , o Grão- metálica incandescente! Pensamentos terríveis acua-
mestre não pôde e v i t a r u m a espécie de d a r de.ombros. ram-me como a u m a n i m a l e n l o u q u e c i d o em seu c o v i l
T o d a v i a , i n c i t a d o pelo Comendador, faz a pergunta até o f u n d o dessa f o r j a discriminatória. E r a m os teus,
ritual: ó Teresa?
— É s tu? Quem q u e r que sejas, responde: segundo — T o m o p o r testemunha essa m e s m a Serpente de
t u , és t u realmente? bronze, dócil à t u a sábia i m p o s t u r a : assim o q u e r o
Repentinamente, arqueando-se n u m só anel enorme e m b l e m a d a q u i l o que devora seu p r ó p r i o t e r m o . Pois,
c o m o se fosse saltar, a Serpente abre a fauce, as man- v o m i t a n d o t u d o o que se recusa a v o l t a r de u m a vez
díbulas distendidas, e, n u m a eructação terrível, v o m i t a p o r todas, v o m i t o u - m e ela também c o m o se eu acabara
uma esfera de fogo. de e x p i r a r a i n d a u m a vez, pois que temes menos o
— A q u i estou! — g r i t a u m a voz v i r g i n a l . m u r m ú r i o dos defuntos que a advertência dos espíri-
T ã o i m p e t u o s a m e n t e havia ela p r o f e r i d o essas pa- tos. O que não toleravas o u v i r f o r a de seus l i m i t e s ,
eis que tens que escutá-lo de novo e, p i o r , no i n t e r i o r
lavras, d o f u n d o da esfera ofuscante, que fez retroceder
de teu recinto. Escuta: dois seres se a p r o x i m a m dele
os I r m ã o s sopros, t u r b i l h o n a n d o no solo, até a extre-
sem sabê-lo, que nesta mesma h o r a r e s p i r a m em seus
m i d a d e da sala; o r a , n ã o era de m a n e i r a alguma o
corpos. Por n e n h u m de teus meios rudes o u sutis con-
t e m o r , mas a p u r a decência, o que os m a n t i n h a pros-
seguirias reconhecer suas própria almas. E u sei os seus
ternados; pois era demasiado suave o f e r v o r emanado
destinos, eu sei as suas origens, eu sei a que injunções
dessa esfera e, como não aguentavam m a i s respirar o
p a r a aquém de seus nascimentos todos os dois obede-
o d o r penetrante que se espalhava n o espaço, assim
c e m ! Ele, u m a a l m a que eu havia arrancado a m i l
que v i r a m o sopro do Grão-mestre g i r a r r u m o ao lar extravios...
— o Comendador, i r r i t a d o p o r vê-lo v o l t a r a seu pró-

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— Que me vais d i z e r ? . . . — pôs-se a f r e m i r o sopro zonte de m i n h a v i d a em que ele se havia t r a n s f o r -
do Grão-mestre, pois, segundo a lei que rege as almas m a d o em sua desgraça. D u r a n t e m u i t o t e m p o após
separadas de seus c o r p o s , toda confissão pessoal, rece- m i n h a m o r t e , o b r i g o u - m e a f r e q u e n t a r suas noites deso-
b i d a f o r a de seu cargo, modificava i n f a l i v e l m e n t e sua ladas; q u a n t o mais eu rogava p o r ele, mais ele invo-
v o n t a d e à medida que ele seguia o que u m o u t r o sopro cava a f o r m a de m e u pó e mais l u g u b r e m e n t e se delei-
lhe confiava. tava c o m ela, lendo e relendo esta frase que, na since-
— T o r n a sem m e d o a subir c o m i g o as encostas r i d a d e falaciosa de m e u coração, eu havia escrito u m
de u m a d o r distante: não abusarei de t u a condição d i a , n a r r a n d o os desvios de m i n h a j u v e n t u d e : " . . . co-
nem de teu estado, e, longe de d i s t r a i r t u a atenção mecei a enfeitar-me e a desejar agradar p o r meio de
de teu santo ministério, consolidar-te-ei nele. O que te u m a boa aparência, cuidando m u i t o das mãos e dos
desvendo, ninguém j a m a i s o soube: t r i s t e história que cabelos e dos p e r f u m e s e de todas as vaidades de que
se i n i c i a p o r u m a m ú t u a m e n t i r a ; graves são suas con- p a r a isso pudesse d i s p o r . " Mas q u a n t o mais me t o r n a v a
sequências para além de nossas vidas. U m j o v e m teó- transparente e leve, mais meus despojos cinzentos ga-
logo, bastante hábil nos negócios deste m u n d o , dedi- n h a v a m consistência para seus sentidos fatigados.
cou-se a apoiar-me c o m u m tal zelo q u a n d o de minhas C o m o seu s i n i s t r o pesar havia afetado em demasia suas
p r i m e i r a s fundações, a nos a u x i l i a r c o m u m a tal abne- forças para que j a m a i s tentasse p r a t i c a r as vias que o
g a ç ã o na hora em que nossos perseguidores aspiravam Senhor havia t r a ç a d o ao meu pensamento; que ele sa-
a a r r u i n a r a r e f o r m a de nossa O r d e m , que eu não hesi- t u r a v a de tristeza sua memória a p o n t o de a r r u i n a r
tei e m escolhê-lo p a r a confessor de m i n h a s p r i m e i r a s seu e n t e n d i m e n t o ; mas que sua v o n t a d e se dedicava a
comunidades. Tão grande era m i n h a confiança que, na u m a d o r tão o b s t i n a d a quanto funesta — esta mesma
véspera de afastar-me de u m a dessas santas casas, é a lhe f o i i m p u t a d a c o m justiça e, q u a n d o e x p i r o u , m i n h a s
ele que me quero confessar; ele me detém; declara-se preces o b t i v e r a m p a r a ele u m novo prazo: absorvia a
i n d i g n o de me escutar: t u d o o que fez pelo Carmelo d o r de seu e n t e n d i m e n t o mas não a tristeza de sua me-
até agora, só o fez pela única d i v i n d a d e que venera: m ó r i a : pois, p u r a reflexão dessas palavras que eu h a v i a
eu mesma! Jamais teve fé nem o u t r a religião que não escrito o u t r o r a , c o m o não era senão nessa frase desde
essa! Que, se há verdadeiramente u m a providência, se- então indelével que ele respirava — , da mesma f o r m a
g u r a m e n t e é ao m e u lado que ele espera dela a l g u m que seu sopro n ã o deixava de buscar-me nos enganos de
sinal de sua improvável salvação. Que, de agora em
m i n h a j u v e n t u d e , essas palavras n ã o se despregaram
d i a n t e , cabe tão-só a m i m expulsá-lo o u conservá-lo, se
de sua inspiração; de sorte que ele f o i enviado u m a
não quiser ter sua p e r d i ç ã o sobre m i n h a consciência. . .
segunda vez à existência. Mas aí, amalgamado p o r afi-
N e m o expulsei, n e m o revi. Quaisquer que fossem as
nidade a u m espírito cujos poderes vaidosos sobres-
elevações, quaisquer que fossem as delícias c o m que me
saíam na sugestão, levou-o a c o n t r a f a z e r a m i m mesma
c u m u l a v a o Senhor; quaisquer que fossem também as
e m estado de êxtase, mediante u m detestável simula-
mortificações que eu m e infligisse de v o l t a , em m i n h a
c r o . Ora, a parte de tristeza que s u p u n h a esse artifício,
i n d i g n i d a d e : parecia que a mais f o r t e não igualaria
n u n c a o só pensamento de u m a t a l miséria. Cada d i a havendo-lhe sido novamente i m p u t a d a com justiça,
me afastava dele c o m mais dureza, e, ao cabo, não q u a n d o e x p i r o u o u t r a vez, coberto de glória t e r r e s t r e ,
d i s c e r n i a mais do que a s o m b r i a n u v e m sobre o h o r i - u m terceiro prazo lhe f o i concedido. N o entanto, as
palavras indeléveis subsistindo a i n d a em seu c o r p o ,

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desde que se v i u n o v a m e n t e amalgamado a u m espírito a i n d a o mesmo sopro como se respirasse naquelas
que, l i v r e , não t e r i a r e s p i r a d o senão p u r a piedade, esse palavras indeléveis; que, p o r e n t ã o , n a terceira exis-
a m á l g a m a deu l u g a r a u m a natureza ansiosa que a tência, se era r e a l m e n t e para esse mesmo infeliz que
ressonância perniciosa das mesmas palavras abismava eu a o b t i n h a da Misericórdia d i v i n a , nada excluía que
no r e m o r s o e no e s c r ú p u l o . Até o dia e m que os T r o n o s u m a q u a r t a , que u m a q u i n t a existência, e assim p o r
e as Dominações c o n c o r d a r a m em que u m a nova cria- d i a n t e , se sucedessem ao i n f i n i t o , e x p o n d o e reexpondo
t u r a lhe seria destinada lá embaixo. Deus em sua pres- ao ridículo a Misericórdia que eu i m p l o r a v a ! E, efetiva-
ciência sabia que esse novo prazo, j á que o concedia m e n t e , apostei assim c o n t r a a presciência d i v i n a , arris-
mais u m a vez às m i n h a s preces, eu j a m a i s poderia acre- cando-me a ganhar de m i m mesma; pois: o u b e m a
d i t a r que fosse o ú l t i m o : não quer efetivamente Ele memória dessas palavras se apagaria e n f i m p a r a que
que os espíritos bem-aventurados i n t e r c e d a m sem ces- seu sentido v e r d a d e i r o aparecesse nessa nova c r i a t u r a
sar pelos pecadores? Quereria p o r t a n t o Ele também destinada a essa a l m a infeliz — desde que esse s o p r o
que a mesma substância volte sempre a mesma apenas tantas vezes e x p i r a d o e r e i n s p i r a d o m e houvesse então
p a r a c a i r mais b a i x o , p o r q u e Ele sabe que cairá? Por esquecido: mas então essa alma não seria mais a mes-
que então concedeu-me Ele esse prazo? Seria para pro- m a — , o u bem o sentido dessas palavras indeléveis,
var que tantos e t a n t o s retornos à existência agravam longe de se m a n i f e s t a r , se obscureceria t o t a l m e n t e sob
a i n d a mais a f a l t a se ela não f o r c o m e t i d a de u m a vez a f o r m a dessa c r i a t u r a nova enviada p a r a salvá-lo, se
p o r todas, e não m u d a m e m nada a essência de u m ser é que esse infeliz espírito fosse a i n d a o mesmo para que
i m u t á v e l ? Mas seria esse ainda o m e s m o ser pelo q u a l ele me reencontrasse também nela — u m a vez m a i s !
eu intercedera, c o m o f o r a m as mesmas palavras que Pois, efetivamente: t u d o a que o u t r o r a eu havia r e n u n -
eu havia escrito que o depravaram? S e r i a m minhas ciado em m i n h a pessoa, consignando-o nessas palavras
p r ó p r i a s preces que, t a n t o quanto essa frase, o t e r i a m funestas, t u d o isso veio c o m p o r a substância dessa
m a n t i d o assim miserável através de tantos avatares? f i s i o n o m i a : p u r a e m sua beleza mas incrédula, essa
O u e n t ã o . . . desde que Deus não s a n t i f i c a o u condena c r i a t u r a i r i a pôr à p r o v a nele a escolha da " m e l h o r
mais n e n h u m ser, n ã o seria isso mais de m o d o a l g u m p a r t e " ; ele mesmo não resgataria sua p r i m e i r a e ú n i c a
u m a f a l t a que t e r i a assim crescido de u m sequaz a imutável existência enquanto não trouxesse de v o l t a
o u t r o sem que ninguém fosse absolutamente culpado u m a vez p o r todas essa incrédula à eternidade. Assim,
dela e doravante n ã o é mais do que efervescências per- pois, se u n e m . . . Mas eis o que se elevou até m i m
didas nos espaços sem limites? Se nada acontece que c o m o u m a queixa: eis o que Deus deve t e r q u e r i d o t a m -
Deus não queira e n ã o saiba, Ele, sabendo-o, também bém nesse caso p a r t i c u l a r , visto que o sabia em sua
q u i s isso: soube de a n t e m ã o que eu n ã o deixaria de presciência de todas as coisas: longe de haver r o m p i d o
rogar-Lhe, como soube t a m b é m , ao atender m i n h a pre- o sortilégio, essa união o consagra: . . .matéria desse sa-
ce, que p o r conseguinte se realizaria n u m a terceira c r a m e n t o , a perversidade!. . . Seu o l h a r , s i m , seu o l h a r
existência a q u i l o m e s m o que não p e r m i t i a m as condi- c o n t i n u a o mesmo, que abusara de m i m ! N ã o era a
ções da p r i m e i r a , a ú n i c a que deveria manter-se i m u - visão serena o que ele pretendia buscar em m e u espíri-
tável; que, desde a segunda existência concedida a esse to, n e m , como o j u r a v a , comigo! E r a m i n h a vergo-
sopro expirado e r e i n s p i r a d o a u m o u t r o , nada se f a r i a nha . . . e a vergonha das almas tornou-se o seu pasto. . .
n u n c a mais de u m a vez p o r todas, se é que subsistia Até a f i s i o n o m i a dessa j o v e m o i n c i t a a p e r p e t r a r en-

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f i m c o m ela o que ele pensa ter em vão q u e r i d o o u t r o r a eu seja, c o n t i n u o responsável pela paz dos círculos
c o m i g o ! Tudo o que lhe f o i recusado e n t ã o , ele o t o m a superiores. . . Ouvir-vos é j á pô-la e m dúvida!. . . Vossa
dessa c r i a t u r a , mas ele lhe fecha a eternidade que f o i potente palavra i n v e r t e a o r d e m dos c a m i n h o s . . .
tantas vezes aberta a si próprio! A s s i m , sucumbe à Então, p o r haver retraçado u m a d o b r a apagada
p r o v a . Pois, p u r a e íntegra, como faz o b e m pelo sim- de seu coração a esse turbilhão que a interrogava, ela
ples mover-se, p o r isso mesmo é incrédula! E obedecer p o r sua vez o percebeu t a l c o m o ele havia aparecido
p a r a o m a l a seu s i n g u l a r esposo é a i n d a , nela, u m a o u t r o r a no seio das chamas e m sua veste branca de
f o r m a de fazer o b e m ! Assim acredita ela realmente condenado: o c r â n i o calvo e, de u m a palidez acinzenta-
fazê-lo, como ele p r ó p r i o acredita fazer realmente o da, seu rosto de n a r i z enorme, de lábios finos; sob a
m a l ! Pois não é n u n c a senão a m i m mesma ausente f r o n t e lustrosa, os olhos em suas órbitas e x p r i m i a m
que ele t e m em vista, é m i n h a sombra que ele persegue apenas assombro e tristeza. Desse m o d o , o efeito d o que
depois de tantos séculos, são meus espíritos que ele ele lhe queria m o s t r a r produziu-se de i m e d i a t o .
quer u l t r a j a r ! Ele t a n t o desespera de n ã o ter p o d i d o Teresa b a i x o u lentamente as p á l p e b r a s e em segui-
usar-me como agora abusa dela à vontade! Empres- d a reergueu-as e olhou-o com c o m p a i x ã o . E e m b o r a
tava-a a seus amigos. . . eis que a o b r i g a a vender-se! ela mesma se soubesse i n t e i r a m e n t e vaporosa, o r u b o r
E d o mesmo m o d o que me havia exposto a todos os coloriu-lhe a face, u m r u b o r m u i t o a n t i g o , como se o
olhares, c o b r i n d o m e u pensamento c o m a máscara i n - sangue, o u t r o r a esquivo em presença de u m h o m e m ,
t e i r a m e n t e modelada de u m a v o l u p t u o s i d a d e culpada, houvesse r o m p i d o os gelos do o l v i d o e despertado de
faz dessa infeliz m i n h a infame r é p l i c a . . . Vede! Ó, sua sequidão tenebrosa.
vede!. . . Comido p o r tão sublime ingenuidade, o Grão-mes-
— N ã o , Teresa, não q u e r o ver nada! — gemeu o tre sentiu u m a certa dificuldade em f a l a r mais severa-
Grão-mestre, sufocando de t e r r o r , e, enroscado sobre m e n t e a essa a l m a soberba:
si m e s m o , suspirava: — Quem j a m a i s a c r e d i t a r i a , q u e m — Não é n o m í n i m o temerário pretender que t u d o
j a m a i s seria capaz de a c r e d i t a r que u m a serenidade tão o que cortastes de vós mesmo de a c o r d o com os voos
m a n i f e s t a estivesse a i n d a sujeita às hipérboles da com- de vosso espírito possa jamais t e r sido atribuído à
placência! E r a necessário que o espetáculo das natu- substância de u m a natureza tão i n t e i r a m e n t e contrária
rezas inconstantes revelasse vossa s o l i c i t u d e , que a per- à vossa? Não seria isso reter a q u i l o mesmo que havíeis
d i ç ã o dessas vontades que t a n t o l i s o n j e i a a firmeza das a b o l i d o para sempre? Que, p o r o u r o lado, u m sopro,
nossas. . . Ah! — fez ele de repente. o u t r o r a expirado, mas p e r v e r t i d o n o curso de sua exis-
tência carnal, se visse novamente r e u n i d o a o u t r a s
Novamente silenciosa, a esfera de fogo havia adqui- almas sucessivamente criadas; que assim viesse de t a l
r i d o u m t o m de o u r o lívido: o oval de u m rosto de- m o d o a afligi-las e m sua ignorância m ú t u a que nenhu-
senhava-se nela, os olhos fechados, os lábios entreaber- m a tivesse j a m a i s a certeza de t e r v i v i d o sua própria
tos. — Ei-la, pois, t a l c o m o me é p r o i b i d o vê-la! — existência de u m a vez p o r todas e m sua carne, n e m
s u s s u r r o u o sopro do Grão-mestre. — Que a Regra me de conhecer de o u t r o m o d o sua i m o r t a l i d a d e senão pu-
salve, ó santa Regra, que mesmo a q u i nos preserva rificando-a em existências u l t e r i o r e s . . . que estas, não
dos sobressaltos de u m coração c a r n a l . . . — E nova- obstante, se prestassem a u m a c o r r u p ç ã o m a i o r : con-
mente senhor de si: — Ô Teresa, p o r m a i s i n d i g n o que s i n t o ainda em a d m i t i - l o como a consequência necessá-

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r i a da inconstância das naturezas criadas, mas — em- i m p u r o s que absorverei! Ó M e s t r e , entre tuas mãos
b o r a eu não queira absolutamente corrsiderar-se seme- coloco m i n h a serenidade!
lhante inconstância f o i a t a l p o n t o invencível que su- — Então a i n d a não é o bastante! Queres fazer de
p l a n t o u positivamente a graça na substância — , ainda m i m u m p r e v a r i c a d o r ! — g r i t o u o Grão-mestre esba-
que Deus quisesse o u n ã o encerrar o n ú m e r o dos elei- forindo-se ao solo diante da fauce fumegante da Ser-
tos — e distantes estamos nós o u t r o s , a q u i , de jamais pente de bronze. Mas, invocando e m vão os traços d o
s u p u t a r esse número m i s t e r i o s o , como a t i cabe fazê-lo, doce rosto na esfera incandescente:
ó d o u t a Teresa — , u m t a l decreto de Sua própria sabe- — V i r g e m viveste! V i r g e m ressuscitarás! — u r r o u
d o r i a p o d e r i a sequer limitá-lo em Seu p o d e r i o absolu- ele. — Teu l u g a r n ã o é a q u i e n t r e meus I r m ã o s ! Se
to? Que digo? Reduzi-Lo a u m expediente tão pouco eu te abrigasse, a maldição d i v i n a c a i r i a sobre a Santa
d i g n o de Sua glória, p a r a que Ele buscasse no peccavi Ordem!
de suas c r i a t u r a s santificadas a m a t é r i a de u m a cria- — Como ousas l e m b r a r - m e m i n h a condição c a r n a l !
t u r a n o v a ? . . . Quando eu via em vós o espelho res- — p r o f e r i u a esfera, fazendo b r o t a r d o l a r chamas tão
plandescente das mais altas esferas da b e a t i t u d e , man- altas que o e m b l e m a metálico c o m e ç o u a derreter-se.
tínheis ainda esse a b o r t o no f u n d o da cloaca a p o n t o — Saibas que m i l h a r e s de corpos, masculinos o u f e m i -
de delegar-lhe, sob a f o r m a de u m a inconcebível re- ninos, não b a s t a r i a m aos meus poderes!
c r i a ç ã o de vós mesma, a q u i l o que há u m a eternidade
U m espesso v a p o r v o l u t e o u e lentamente s u b i u
havia regressado ao nada?
pela chaminé. H o u v e u m m o m e n t o de silêncio: ao l o n -
— A h ! Que eu aí regresse p o r i n t e i r o , Grão-mestre, ge o r i b o m b a r abafado de u m t r o v ã o e novamente o
que te i m p o r t a ? — f u l m i n o u o globo de fogo em que silêncio. E, de repente, u m a c r e p i t a ç ã o c o n t r a os v i -
o santo rosto dissipou-se de i m e d i a t o — Que eu seja trais e, p o r f i m , saltando sobre a p e d r a do lar e sobre
a b o l i d a p o r Deus! E l e só poderá a b o l i r - m e dando-se as cinzas, o g r a n i z o acumulou-se às dezenas e, logo, às
a Si mesmo! Que Ele se dê! Que preencha Ele mesmo centenas.
o vazio que deixarei! E agora, que eu m e perca nos De repente, o som da t r o m p a r e b e n t o u na n o i t e .
sopros que se a p r o x i m a m da dissolução: quando seus R e p e r c u t i r a m vozes chamando e dando ordens. U m
corpos os h o u v e r e m exalado, antes m e s m o que t u o galope ressoou nos pátios e, e m seguida, o r e l i n c h a r
i n t e r r o g u e s , u m a t a l discordância de vozes se elevará de corcéis.
d o f u n d o de sua e x p i a ç ã o que não conseguirás j a m a i s B a t e r a m , e n t ã o , à p o r t a da sala. Como n e n h u m a
d i s c e r n i r cada u m a ! Contraíram demasiada dívidas voz respondia, o Senescal e dois escudeiros se p r e c i -
p a r a que os sopros credores da d e p r a v a ç ã o não invis- p i t a r a m no i n t e r i o r . E n c o n t r a r a m o Grão-mestre esten-
t a m c o n t r a eles a q u i : p r o m e t i d a s aos piores turbilhões, d i d o sobre as lajes, o rosto c o n t r a o solo; a seu l a d o ,
suas almas serão deslocadas! É p o r isso que se eu, que a fauce escancarada e novamente f r i a da Serpente de
sou a única que posso vê-los, me m o s t r o a q u i t a l como bronze. O Senescal tocou-o levemente no o m b r o . O
Deus m e conhece, nada poderei fazer p o r elas: essas Grão-mestre l e v a n t o u a cabeça:
almas seriam incapazes de ver-me sem blasfemar! — Sire Jacques, o Rei acaba de chegar e vos pede
T e n h o que me a d i a n t a r à blasfémia, t e n h o que t o m a r asilo p o r alguns dias. A sublevação t o r n a a fazer-se
eu m e s m a sua f o r m a ! Assim, desviarei delas os sopros ouvir.

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— Sempre fala de sublevação q u a n d o de suas f u -
gas simuladas! — disse Sire Jacques pondo-se imediata-
mente de pé. — Pois b e m ! Reservai-lhe t o d a a ala direi-
ta e a t o r r e norte. L e v a i i m e d i a t a m e n t e a seu q u a r t o
u m c o f r e de escudos. Q u a n t o há naquele que chegou
de Chipre?
— Dez m i l l i b r a s ! — sussurrou o Senescal.
— Acrescentai-lhe aquele que chegou de Londres.
S e n ã o , nós o veremos p e r a m b u l a r p o r a q u i até o dia
de Todos os Santos! S e r á recebido c o m cortezia e cari-
dade: mas que estas p e r m a n e ç a m t a n t o q u a n t o possí- III
vel silenciosas e distantes. Preparai t u d o segundo os
r i t o s d o p r i m e i r o g r a u . N a d a de m i s t u r a r - l h e os signos
anunciadores do segundo! Fazei s u m i r os emblemas e
substituí-os p o r figuras que ocupem a imaginação. Se
fizer perguntas a esse respeito, respondei apenas gol-
peando o peito. Q u a n t o mais alguém se acusa, mais
ele sacode a cabeça c o m a r de e n t e n d i d o . Acredita ter
garantias. É quanto lhe basta. O Grão-Mestre c o n c e n t r o u t u d o o que ainda resta-
Tão-logo os despachou, o Grão-mestre dirigiu-se à va de vontade e m seu sopro sobre esse acontecimento
t o r r e d i t a da Meditação. Aí o u t r o r a u m o r a t ó r i o havia distante. Deixando-se levar pela c o r r e n t e de ar que asso-
sido m u r a d o , p o r o r d e m sua, às vésperas d o processo. biava na escada e m caracol r e e n c o n t r o u no mesmo lo-
Não p o d i a recordar-se de t e r inspecionado essa t o r r e cal que o u t r o r a a decisão que havia t o m a d o e c o m u n i -
após u m a eternidade. Q u a l q u e r u m em estado de sopro cado ao C o m e n d a d o r de m a n d a r m u r a r aquela p o r t a .
e x p i r a d o , o último dos vilões assim c o m o o Rei o u o A cena à q u a l ele m e s m o não havia assistido represen-
Papa, p o d e r i a ter p e n e t r a d o aí. Que ninguém jamais o tou-se como lhe h a v i a sido descrita mais tarde pelo Co-
houvesse feito era u m a certeza na m e d i d a e m que, afora m e n d a d o r — e o m e s m o desgosto invadiu-o, m i s t u r a d o
talvez os Irmãos, n e n h u m a reação perceptível nuns o u c o m curiosidade.
n o u t r o s havia traído p o r enquanto a visão dos vestígios
O u t r o r a , buscando o h o r r o r avidamente, sua curio-
no i n t e r i o r desse o r a t ó r i o . Essa p r e c a u ç ã o sem dúvida
sidade não pôde superar a aversão; agora ela se liber-
era necessária a cada vez que o Rei anunciava sua visi-
ta. Às vezes ele simplesmente lá estava, sem ter preve- tava da emoção d e f u n t a do desgosto. E eis que o hor-
n i d o de sua vinda. Depois de ter sido recebido como r o r lhe veio c o m o u m f l u i d o através da pedra: sem
m e m b r o de C o n f r a r i a , era-lhe p e r m i t i d o , c o m a veste esforço viu-se n o i n t e r i o r do oratório.
de T e m p l á r i o , confundir-se c o m a m u l t i d ã o dos Irmãos Sete massas confusas de cotas de m a l h a , de for-
sob p r e t e x t o de h u m i l d a d e . Havia conservado esse hábi- mas terrosas e de imensos f i l a m e n t o s capilares entre-
to e o p r a t i c a v a c o m m u i t o mais astúcia n o estado de mesclados de teias de aranha, de vegetações felpudas e
sopro expirado. m o f o s incolores c o b r i a m i n t e i r a m e n t e as lajes. U m b r i -

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