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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais (ICS)


Departamento de Sociologia
Prof. Mariza Veloso Motta Santos
Teorias Sociológicas Clássicas – Pós Graduação

Trabalho final para avaliação da disciplina Teorias Sociológicas Clássicas

Aluno: Márcio Lino de Almeida Programa: PPGCDS Data: 05/07/2017


Orientador: Elimar Pinheiro do Nascimento

As concepções de modernidade de Durkheim, Weber e Simmel dentro do contexto do


declínio econômico discutido pelo movimento do Decrescimento

Apresentação

Como mestrando em Desenvolvimento Sustentável, a interdisciplinaridade faz parte da


minha vida a menos de um ano. Foi um tempo curto, porém intenso. Formado em Biologia, me
interessei pela minha área de mestrado exatamente pelo fato dela se desprender dos limites
disciplinares e buscar onde for preciso o conhecimento necessário para resolver o problema da
relação destrutiva entre homem e natureza. Dentro do Desenvolvimento Sustentável, escolhi
trabalhar com dois temas também plurais e multidisciplinares, que são a hipótese do declínio
econômico e o movimento do Decrescimento. Orientado por um sociólogo, tive que buscar na
pós-graduação o conhecimento necessário para poder trabalhar esses temas. Cursei disciplinas
de economia, metodologia em ciências sociais e, claro, sociologia. Para esta última, escolhi o
curso de Teorias Sociológicas Clássicas porque acredito que para entender o momento atual é
preciso antes saber de onde viemos e o que pensaram os grandes homens do passado.
Acredito que uma das coisas que faz de Durkheim, Weber e Simmel autores clássicos é o fato
deles serem estudiosos multidisciplinares, pois, apesar de se dedicarem principalmente à
sociologia, tais autores também liam e escreviam sobre história, filosofia, direito, artes,
economia e até mesmo ciências naturais. Hoje a ciência exige que nos especializemos em
poucos assuntos, mas conforme aprendemos mais sobre as outras áreas, descobrimos
profundidades antes ignoradas nos textos destes autores, sendo essa uma das razões do
deslumbre a cada releitura de suas obras clássicas.
Cursar Teorias Sociológicas Clássicas foi uma grande oportunidade de entrar em
contato com algumas das principais referências dos sociólogos, nomes que sempre ouvia ou lia
por ai, mas não conhecia. Foi também uma grata experiência poder compartilhar um mesmo
espaço com estudantes e professores de sociologia e participar das discussões ali travadas. E
também foi, sem dúvida, um grande desafio, pois eu estava completamente fora da minha
zona de conforto, entrando em contato com assuntos, conceitos e ideias pela primeira vez na
vida.

É claro que um semestre de estudos não é suficiente para apreender tudo o que estes
três grandes pensadores da sociologia têm pra falar, e minha falta de conhecimento prévio
provavelmente limitou meu aprendizado. O que proponho neste ensaio é mais um exercício
reflexivo do que uma análise precisa sobre um tema. Esforcei-me, aqui, para reinterpretar
meus objetos de estudo a partir de alguns dos conceitos e ideias dos autores explorados na
disciplina, mas tenho plena consciência de que não esgotei as possibilidades. Peço
humildemente para que a professora, ao corrigir este trabalho, leve em consideração minhas
limitações ao tratar dos temas aqui abordados. Não sou um sociólogo, mas um biólogo curioso
e que agora já sabe um pouquinho mais sobre Durkheim, Weber e Simmel.
Introdução

Vivemos em uma era única para a humanidade. Nunca na história do homem nossa
população foi tão grande, nem ocupamos tanto espaço em nosso planeta como ocupamos
hoje. A velocidade de inovação, de comunicação, de interação e de transformação cultural
nunca foi tão acelerada. Pela primeira vez o globo todo está conectado, e é possível nos
comunicarmos instantaneamente com virtualmente qualquer local do mundo. Vivemos em
uma era de excessos, de extremos, como descreve Hobsbawn (2008), numa sociedade do
espetáculo, como define Debord (1997). Para usar os termos de Durkheim, nunca nossa
sociedade global teve densidades moral e material tão grandes quanto nessa era. Alguns
entendem este momento como o ponto atual da longa caminhada da modernidade humana,
rumo a um futuro de progresso infinito. Outros, entretanto, interpretam este momento como
o pico de um processo socioeconômico que está prestes a entrar em declínio – e não no
sentido figurado.

Alguns estudiosos, interessados em agregar saberes de campos tão diversos quanto a


economia, a ecologia e a sociedade, acreditam que a opulência técnica, econômica e social
humana é insustentável e está inevitavelmente fadada ao colapso, sendo este apenas uma
questão de tempo. Os autores do movimento denominado Decrescimento exploram esta
questão: a hipótese do declínio econômico humano. Para eles, o momento atual da
humanidade, com toda sua fecundidade técnica e efervescência social, se baseia sobre uma
economia quase totalmente alimentada pela energia dos combustíveis fósseis, que é finita e
esta sendo consumida rapidamente, podendo se esgotar no próximo século. Aqueles mais
otimistas depositam suas esperanças sobre a possibilidade de substituir os combustíveis
fósseis por fontes renováveis de energia limpa, porém tal substituição ainda é hipotética e
possivelmente inatingível (HALL e DAY, 2009; TAINTER et al., 2003), especialmente se
considerarmos que a população mundial tende a continuar crescendo e, junto com ela, a
demanda por energia (BROWN et al. 2011). Assim, sem uma fonte de energia abundante e
barata como os combustíveis fósseis, a economia humana perderia velocidade, a população
mundial seria forçada a reduzir seu tamanho e a organização social muito provavelmente
sofreria mudanças drásticas, numa direção adversa àquela que vinha sendo trilhada nos
últimos 250 anos. Para os autores do Decrescimento, a única maneira de realizar essa
contração de forma próspera é por meio de uma profunda transformação cultural.
Minha proposta é utilizar alguns conceitos e ideias dos autores clássicos da sociologia
Émile Durkheim, Max Weber e Georg Simmel, para interpretar as ideias dos autores que
discutem a hipótese do declínio econômico dentro do movimento do Decrescimento.

Energia e sociedade

Para compreender a hipótese do declínio econômico é preciso antes entender as


relações existentes entre o desenvolvimento das sociedades humanas e o consumo de
energia. Tal relação de dependência é perceptível não apenas nos dados das nações atuais,
que mostram uma relação diretamente proporcional entre o crescimento do PIB e o aumento
do consumo de energia (BROWN et al., 2011), mas também ao longo do curso da história da
humanidade.

Os seres humanos revolucionaram suas sociedades e expandiram suas populações


conforme aprenderam a dominar diferentes fontes de energia para a realização de trabalho.
Inicialmente os grupos humanos dependiam apenas da energia química presente nos
alimentos, mas eventualmente passaram a utilizar o fogo e a força dos grandes mamíferos
domesticados, até chegarem ao domínio do vento e da água corrente para mover moinhos e
navios (KRAUSMANN, 2011). Este período, que compreende a maior parte da história humana
(desde o início, dezenas de milhares de ano atrás, até o século XVIII), pode ser classificado
como uma economia de energia orgânica (FOUQUET, 2011), caracterizada principalmente por
ser baseada em fontes de energia de fluxo, e não de estoque (com exceção da biomassa de
combustão, como folhas, raízes, troncos de árvores etc., que podem ser considerados
estoques de energia, porém de baixa concentração, o que limita seu uso ao aquecimento de
moradias, preparação de alimentos e combustível para fornalhas). Tome o Sol, por exemplo.
Apesar de sua energia ser abundante, ela é limitada no tempo (só está disponível durante o
dia) e não pode ser estocada para uso posterior (é impossível estocar energia solar para utiliza-
la de noite ou durante o inverno, quando os dias são mais curtos, por exemplo). O mesmo
acontece com o vento e com a água corrente, cujas intensidades mudam conforme as estações
do ano e cuja energia não pode ser estocada. Isso significa que as sociedades que existiram na
era da economia de energia orgânica tinham que se organizar para explorarem os limitados
fluxos de energia da maneira mais eficiente possível. Esta era foi marcada por lentos períodos
de crescimento e expansão da população humana e seu sistema econômico, pontuados por
momentos de declínio e colapso de algumas civilizações ao longo de milhares de anos (os
ciclos malthusianos) (FOUQUET, 2011).
Mais recentemente, dentro dos últimos 250 anos, uma nova fonte de energia passou a
ser utilizada em larga escala pela humanidade: os combustíveis fósseis. Estes se caracterizam
por serem altamente concentrados e formarem grandes estoques enterrados no chão, o que
significa que podem ser usados a qualquer momento, sob demanda, e entregam uma
quantidade de energia muito maior do que aquelas obtidas do Sol, do vento, das correntes
d’água e da biomassa (FOUQUET, 2011). A combinação de carvão mineral e máquinas a vapor
(e, posteriormente, o uso de outros combustíveis fósseis, como o petróleo e o gás natural, e a
invenção do motor a combustão) lançou a humanidade em um período de crescimento
econômico vertiginoso nunca visto antes: a economia dos combustíveis fósseis (FOUQUET,
2011). Ao longo desse período a escala econômica, a população mundial e o consumo de
energia cresceram exponencialmente - entre os anos de 1850 e 2000, a população aumentou
cinco vezes e o consumo de energia, vinte (HOLDREN, 2008). Na segunda metade do século XX
atingimos as maiores taxas de crescimento, alimentadas pelo uso dos combustíveis fósseis
(cerca de 84% de toda a energia consumida no mundo) e potencializadas pela união entre
ciência e desenvolvimento tecnológico.

Ao longo da história da humanidade, as expansões econômicas e populacionais foram


resultados da combinação de novas fontes de energia com avanços tecnológicos e a gradual
divisão do trabalho, que permitiram utilizar a energia disponível de maneira cada vez mais
eficiente (CHRISTIAN, 2011). Christian (2011), por meio de uma longa análise da história
humana, mostra que conforme a população mundial crescia, o número de encontros entre
sociedades diferentes também aumentava. Nesses encontros, tecnologias eram
compartilhadas e as mais eficientes se disseminavam pelo mundo. A maior eficiência produtiva
permitia produzir alimento para mais pessoas, e assim a população e as economias se
expandiam, fechando um ciclo virtuoso de desenvolvimento tecnológico, aumento de
eficiência produtiva e crescimento das populações mundiais.

Tal ciclo pode ser comparado à ideia de Durkheim de como a divisão social do trabalho
se dá na sociedade. De acordo com o autor, ela é o resultado da inter-relação entre volume
populacional, densidade material (número de indivíduos em relação ao espaço ocupado) e
densidade moral (frequência de encontros e trocas entre indivíduos) (DURKHEIM, 1984).
Conforme a divisão social do trabalho aumenta, aumenta também a eficiência produtiva
daquela sociedade. Em ambos os raciocínios a frequência de interação entre indivíduos tem
papel central. Porém, enquanto Christian dá maior importância ao aumento de produtividade
que tal divisão de trabalho traz à sociedade, Durkheim mostra que o mesmo processo é
fundamental para a manutenção da coesão social num contexto de crescente complexidade e
gradual fragmentação da consciência coletiva, que anteriormente era responsável por manter
o grupo unido. Em outras palavras, Durkheim mostra que a interdependência gerada pela
divisão social do trabalho é a responsável por manter a coesão do grupo no processo de
transição de uma sociedade de solidariedade mecânica para uma de solidariedade orgânica. O
autor vai além e afirma que a manutenção da coesão social, enquanto resultado da divisão
social do trabalho, é mais relevante do que o aumento de produtividade proporcionado por
ela. De qualquer forma, ambos os autores colocam a divisão do trabalho como processo
central no desenvolvimento das sociedades ao longo da história humana.

Mais recentemente, a enorme oferta de energia disponibilizada pela utilização dos


combustíveis fósseis potencializou o ciclo virtuoso de aumento da eficiência produtiva,
crescimento populacional e desenvolvimento tecnológico (ODUM, 2007). Com mais energia
disponível para o ser humano, mais alimento é produzido, mais pessoas podem ser
sustentadas (aumento do volume e da densidade material), mais encontros e trocas entre
indivíduos acontecem (aumento da densidade moral), mais o trabalho se divide e se
especializa e mais desenvolvimento tecnológico se dá. A potencialização deste ciclo virtuoso
por meio do uso dos combustíveis fósseis é um dos marcos da modernidade. O capitalismo
racional burguês, que também é um dos marcos moderno, foi um dos primeiros a se
aproveitar dessa nova fonte de energia ao utilizar o carvão mineral para mover as máquinas a
vapor durante a Revolução Industrial.

Vale ressaltar que a exposição acima não pretende reduzir a complexidade social e
econômica da modernidade ao uso de maiores quantidades de energia. Esta serviria
simplesmente como substrato sobre o qual as sociedades modernas vão se estruturar e se
organizar. A forma e a direção que essa organização vai tomar ainda são completamente
sujeitas à complexidade e à diversidade cultural das sociedades humanas em seus contextos
históricos, sendo os combustíveis fósseis apenas um fator potencializador dessa
transformação. Numa alusão a Marx, a maior oferta de energia seria uma característica da
infraestrutura material sobre a qual se sustenta a superestrutura da sociedade moderna.

A modernidade

Este período de rápido crescimento econômico e transformação cultural,


potencializado pela energia dos combustíveis fósseis, tem intrigado pensadores e os convidado
a refletir sobre suas origens e características fundamentais.
Para Durkheim (1984) a modernidade é explicada pela crescente intensificação da
divisão social do trabalho e da interdependência entre os indivíduos. Nesse processo a
consciência coletiva (ou representações coletivas) aos poucos vai se enfraquecendo e se
fragmentando em pequenos grupos, que continuam a viver juntos porque a nova organização
social torna os indivíduos mais dependentes materialmente uns dos outros. É interessante
notar essa contradição da modernidade: enquanto os indivíduos se tornam cada vez mais
autônomos em relação às suas crenças e costumes (representações individuais), eles também
se tornam mais dependentes entre si porque a produção material está mais dispersa pela
sociedade. Não é à toa que nessa sociedade de solidariedade orgânica as trocas são centrais,
pois é por meio delas que os diferentes indivíduos se conectam.

Tal concepção de modernidade dialoga com aquela trazida por Georg Simmel, que
também encontra na divisão do trabalho e na centralidade das trocas (mediadas pelo dinheiro)
características do mundo moderno (SOUZA e OELZE, 2005). Segundo ele, essa divisão torna os
trabalhadores cada vez mais especializados em uma pequena parte da produção, retirando sua
identificação para com o produto final, o que chamou de alienação. Como consequência, as
coisas produzidas vão assumindo autonomia e vida própria, ganhando cada vez mais
importância dentro da sociedade, algo que o autor identificou como a preponderância da
cultura objetiva (relativa às coisas) sobre a cultura subjetiva (relativa às pessoas). Assim, os
valores quantitativos vão tomando o espaço que os valores qualitativos ocupavam nas
sociedades. Para Simmel, porém, a divisão do trabalho é resultado da instalação da economia
monetária, que permitia dividir a produção em várias etapas separadas (SOUZA e OELZE,
2005). O autor explora o papel central que o dinheiro tem na sociedade moderna, assumindo a
função de mediador das relações sociais e causando, assim, o aprofundamento do
individualismo e da impessoalidade. Além disso, por servir como medida de comparação entre
objetos, o dinheiro nivela tudo e retira das coisas suas características próprias e
incomparáveis. Simmel chega a comparar o dinheiro com a figura de um deus para a
modernidade.

Para Simmel a cidade é outro elemento central da modernidade, pois é nela que a
economia monetária está mais instalada. Historicamente as cidades são antigas, porém
cresceram e se multiplicaram bastante depois da revolução industrial e da migração de
trabalhadores do campo para as cidades em busca de emprego. Neste ambiente urbano, o
cidadão se vê exposto a muitos estímulos, por vezes contraditórios, e como defesa o indivíduo
assume comportamentos negativos como o afastamento das relações afetivas e atitude blasé,
contribuindo para o aprofundamento do individualismo e da impessoalidade (SOUZA e OELZE,
2005).

Finalmente, Max Weber faz contribuições às reflexões sobre a modernidade que


também dialogam com as visões de Durkheim e Simmel. Para Weber, as principais
características da modernidade são a contínua racionalização do mundo e a multiplicidade de
valores (SELL, 2013). Se antes as diversas esferas da vida social de um grupo se organizavam ao
redor da religião em unicidade, com a modernidade tais esferas vão se separando e assumindo
autonomia - apesar de manterem certa dependência. Assim, separa-se a família, a economia,
as artes, a ciência, a política, a religião, sempre num processo de racionalização, que pode ser
entendido como um ajustamento dos meios aos fins. Sua análise desse fenômeno é feito com
base em diversas religiões do mundo, das quais ele escolhe o protestantismo como foco a fim
de entender as origens do capitalismo.

De acordo com Weber, o capitalismo não é definido pela ganância, busca do lucro,
existência de dinheiro ou capital, pois tudo isso já existia antes dele. Ele se caracteriza, antes
de tudo, pela racionalização do trabalho, fruto das crenças religiosas na vida reta e disciplinada
dos protestantes e no enriquecimento como sinal da predestinação divina (WEBER, 1967).
Assim, o surgimento do capitalismo racional burguês (formal, organizado, burocrático e
metódico) é um dos marcos da modernidade, e traz consigo fenômenos como a divisão do
trabalho em busca de maior produtividade.

Tais autores eram estudiosos e críticos da modernidade, porém viveram no século XIX
e não puderam ver o triunfal crescimento e expansão do capitalismo e da cultura ocidental
sobre o mundo ao longo do século XX. A segunda metade deste século testemunhou taxas
recorde de crescimentos econômico e populacional, mas com elas também vieram
consequências negativas, como o aprofundamento das desigualdades sociais, a degradação
das relações sociais e a destruição do meio ambiente. Ao final do século XX e início do XXI,
surgiram movimentos sociais e ambientalistas que criticavam o crescimento econômico e suas
consequências negativas para a sociedade e meio ambiente e alertavam para a necessidade de
se reduzir o tamanho da economia global. Dentre estes movimentos está o Decrescimento.

Decrescimento e o fim da modernidade

O Decrescimento é um movimento bastante recente. Nasceu na França em 2002,


adentrou a academia em 2008 e desde então vem ganhando espaço no meio científico (WEISS
e CATTANEO, 2017). Apesar de receber um nome único, ele forma um movimento bastante
difuso e não consensual (alguns autores até mesmo se recusam de chama-lo de movimento). O
Decrescimento se iniciou como uma provocação à ideologia do crescimento e como um
convite à imaginação de alternativas (LATOUCHE, 2009), mas com o tempo foi ganhando forma
e hoje já conta com uma extensa lista de propostas políticas (COSME, SANTOS E O’NEILL, 2017)
e até mesmo com um partido político na França.

O Decrescimento direciona suas críticas principalmente aos países desenvolvidos e às


elites dos países em desenvolvimento, aos quais o crescimento econômico já não traz
aumento da qualidade de vida (WEISS e CATTANEO, 2017). Seu discurso defende a autonomia
dos atores sociais, a descentralização do poder e da produção, a primazia da escala local e as
abordagens políticas “bottom-up”, o que mostra a importância dada ao empoderamento das
comunidades (COSME, SANTOS e O’NEILL, 2017).

Sua dimensão teórica aborda tanto os limites ambientais quanto os limites sociais ao
crescimento econômico. Os autores do Decrescimento acreditam que a escala econômica
global atual é insustentável e precisa contrair para evitar um colapso ambiental e econômico.
O esgotamento dos combustíveis fósseis e a provável impossibilidade de substituição por
fontes renováveis representam forças consideráveis que podem empurrar a economia e a
sociedade para o caminho do declínio. Tal contração econômica pode acontecer de maneira
próspera e colaborativa ou então ser imposta por catástrofes ambientais que impactariam a
capacidade produtiva da economia, gerando fome, guerras e outros desastres (MARTINEZ-
ALIER et al., 2010).

Apesar do tom catastrófico desse discurso, muitos autores do Decrescimento


enxergam o declínio com otimismo, pois seria uma forma de escapar dos excessos nocivos do
capitalismo e da modernidade. Estes autores se baseiam largamente em pensadores críticos
da modernidade e do desenvolvimento. Suas críticas dirigem-se aos excessos nocivos do
desenvolvimento (por exemplo, carros demais deixam as cidades lentas, medicações demais
deixam as pessoas debilitadas, educação demais deixa as pessoas alienadas) e também aos
excessos de publicidade, de globalização e de utilitarismo (LATOUCHE, 2009). Estes autores
também criticam a racionalidade estritamente econômica como ponto de partida da
microeconomia e o fenômeno do “economicismo”, que é a redução de todos os fatos sociais à
dimensão econômica. Eles defendem profundas mudanças no modo de vida da sociedade,
principalmente por meio do abandono dos valores de mercado, como a maximização do ganho
individual, o consumo, a competição e a acumulação, e encorajam a recuperação de valores
sociais conviviais, como a doação, o convívio, a cooperação, a reciprocidade e a simplicidade
(LATOUCHE, 2009). Segundo eles, a contração econômica próspera, justa e pacífica seria uma
consequência natural de uma sociedade que assumisse tais valores. Ou seja, para eles o
decrescimento é, antes de tudo, um processo de transformação cultural (NASCIMENTO, 2012).

Tanto Durkheim quanto Weber e Simmel apontavam a divisão do trabalho como uma
das principais características da modernidade, exaltando tanto seu lado positivo à sociedade
quanto o lado negativo. Os autores do Decrescimento, ao criticarem os excessos de
desenvolvimento, também criticam o excesso de divisão do trabalho. Para eles, a
superespecialização do trabalhador, exigida por diversos setores da economia moderna, leva o
indivíduo a ocupar a maior parte de seu tempo e seu conhecimento com atividades estreitas,
pontuais e igualmente específicas, retirando-lhe conhecimentos mais amplamente úteis, num
processo chamado de desabilitação (tradução livre do termo em inglês deskilling). Tal processo
torna o trabalhador dependente de seus empregadores, pois é incapaz de garantir suas
necessidades materiais básicas de outra forma que não seja vendendo seu trabalho
superespecializado (LATOUCHE, 2009). Esta condição se volta contra o trabalhador
especialmente em momentos de crise econômica, quando o desemprego aumenta. Simmel
adiciona a essa crítica o fato de que a quebra do processo produtivo em pequenas tarefas
realizadas por trabalhadores diferentes, apesar de aumentar a produtividade, afasta o
trabalhador do produto final, alienando-o em relação aos resultados de seu trabalho (SOUZA e
OELZE, 2005). Durkheim, por sua vez, pondera que conforme a divisão do trabalho se
aprofunda, o trabalho progride enquanto o trabalhador retrocede (DURKHEIM, 1984).

A divisão do trabalho é, segundo Durkheim, o processo que diferencia uma sociedade


de solidariedade mecânica para uma de solidariedade orgânica. Nesta última, a coesão social
não se dá por conta do compartilhamento das mesmas crenças e representações coletivas por
parte dos indivíduos, mas devido à interdependência que os trabalhos especializados geram
entre as pessoas (DURKHEIM, 1984). Solidariedade, nesse caso, não deve ser entendida como
ajuda ao próximo movida pela compaixão, como o senso comum leva a entender, mas sim
como o ato de se importar com o outro. Numa sociedade de solidariedade orgânica, as
pessoas se importam umas com as outras porque dependem delas para terem acesso aos bens
materiais necessários à sua sobrevivência. Este é, de certa forma, um ato egoísta e utilitário. A
sociedade moderna se mantém coesa porque os indivíduos são úteis uns aos outros. O
Decrescimento critica o utilitarismo e defende que as pessoas e o meio ambiente possuem
valores intrínsecos, independentes da sua utilidade econômica (LATOUCHE, 2009). Assim, o
movimento estende sua crítica ao próprio fator que, segundo Durkheim, mantém a sociedade
moderna unida.
Talvez seja possível argumentar que a divisão do trabalho seja um reflexo do
fenômeno mais amplo da racionalização do trabalho, identificada por Weber como uma das
características do capitalismo moderno (SELL, 2013). Segundo o autor, racionalizar é
conformar os meios aos fins, porém no caso do capitalismo os fins vão se perdendo e os meios
acabam se voltando para si. Em outras palavras, a produção e acumulação de riquezas se
tornam o objetivo da atividade econômica - Simmel também chega à mesma conclusão
(SOUZA e OELZE, 2005). Além disso, tal racionalização implica numa valorização do trabalho
disciplinado, da vida reta e da negação dos prazeres. O Decrescimento, por sua vez, defende a
redução da carga horária de trabalho a fim de liberar o trabalhador para se dedicar a
atividades prazerosas, que deem sentido à vida (LATOUCHE, 2009; COSME, SANTOS e O’NEILL,
2017). Ele defende também o abandono dos comportamentos de acumulação e de
maximização do ganho pessoal, próprios do capitalismo e da lógica de mercado. Para o
movimento, uma sociedade justa e sustentável só pode ser atingida com a retomada de
valores sociáveis, como a reciprocidade, a cooperação, a doação e a simplicidade (LATOUCHE,
2009).

A retomada de tais valores, defendida pelo Decrescimento, talvez implique numa


completa reformulação do que entendemos hoje como cidade, pois como Simmel aponta, ela
é o centro das sociedades modernas. Segundo o autor, os habitantes urbanos adquirem
comportamentos defensivos de afastamento das relações afetivas e atitudes blasé (SOUZA e
OELZE, 2005), opostas aos valores defendidos pelo Decrescimento. Não é à toa que este último
aponta o campesinato como modelo moral das sociedades do decrescimento (CARVALHO e
BOCCATO-FRANCO, 2012) e defende o êxodo urbano como forma de escapar da ideologia do
crescimento e se reconectar à natureza (LATOUCHE, 2009).

Para Simmel, as cidades são como são porque é nelas que a economia monetária esta
mais instalada (SOUZA e OELZE, 2005). Para ele, o dinheiro nivela todas as coisas e retira delas
a sua substância, aquilo que as faz incomparáveis. O dinheiro, para Simmel, tornou-se o
mediador das relações sociais, e chega a assumir uma condição de divindade dentro das
sociedades modernas. O Decrescimento defende o aumento das trocas não monetárias como
forma de reforçar os laços sociais e os valores não mercantis (LATOUCHE, 2009). Alguns
autores do Decrescimento definem o movimento como uma forma de fuga da economia,
fazendo assim alusão à negação dos valores de mercado e à primazia do dinheiro (FOURNIER,
2008; LATOUCHE, 2009).
Por fim, se a hipótese do declínio econômico se mostrar verdadeira e a oferta de
energia realmente diminuir, muitas esferas da vida social serão afetadas. A economia esfriará e
contrairá. Atividades supérfluas serão abandonadas e os fatores de produção serão aplicados
na produção de bens e serviços indispensáveis à sobrevivência da humanidade. Com uma
menor produtividade total, menos pessoas poderão ser sustentadas, de forma que a
população será reduzida e o controle de natalidade passará a ter muito mais importância do
que tem hoje. Menores populações levarão a menores densidades materiais e morais, de
forma que a divisão do trabalho deverá retroceder um pouco e as taxas de inovação decairão.
As populações urbanas diminuirão, e possivelmente algumas cidades deixarão de existir. O
êxodo rural acontecerá, pois as indústrias empregarão menos e a produção de alimentos
passará a exigir mais mão-de-obra para substituir os tratores e caminhões que hoje fazem o
serviço. Com menos energia disponível para o transporte, a produção e o consumo locais serão
uma realidade imposta, assim como a necessidade dos habitantes cooperarem para
sobreviverem. De certa forma é possível prever que a sociedade moderna como a conhecemos
deixará de existir ou ao menos sofrerá transformações profundas. Os autores do
Decrescimento são otimistas em relação ao resultado de tais transformações, porém algumas
coisas são mais difíceis de prever. O capitalismo continuará a existir? Ele já mostrou ter um
poder adaptativo muito forte e pode ser que perdure mesmo em um cenário de declínio. O
dinheiro continuará a ter a importância que tem nas sociedades modernas? Continuaremos a
valorizar a acumulação e o ganho individual? Seja como for, este é um cenário hipotético e
ainda muito distante.

Conclusão

A história da humanidade evidencia uma relação direta entre o desenvolvimento das


sociedades e o aumento do consumo de energia. Nos últimos séculos o mundo testemunhou
uma espantosa aceleração das taxas de inovação, transformação cultural e crescimento
econômico e populacional, possibilitadas pela exploração dos combustíveis fósseis. Tal
exploração potencializou os processos próprios da modernidade identificados por sociólogos
como Émile Durkheim, Max Weber e Georg Simmel, como a divisão social do trabalho, a
racionalização do mundo e do trabalho, o desenvolvimento do capitalismo burguês, a
urbanização, a instalação da economia monetária, a sobreposição da cultura objetiva sobre a
subjetiva etc.

Contudo, tal crescimento econômico excessivo trouxe consigo degradações sociais e


ambientais, que serviram como fonte de inspiração para movimentos críticos da modernidade
e da ideologia do crescimento, como o Decrescimento. Tal movimento evidencia um possível
cenário de declínio econômico causado pelo esgotamento dos combustíveis fósseis, e explora
as possibilidades de se realizar uma contração econômica de forma próspera e justa. Para o
Decrescimento, a formação de uma sociedade capaz de enfrentar tal cenário sem que sejam
causadas guerras e catástrofes ambientais depende de um abandono de valores e
comportamentos característicos da cultura moderna capitalista, e de uma transformação
cultural que retome valores sociáveis como a cooperação, a doação, a reciprocidade e a
simplicidade. Tal transformação pode significar o fim da modernidade como caracterizada
pelos autores clássicos da sociologia.

Referências

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