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Experimento sociológico

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 22 de maio de 2006

A maioria dos cientistas sociais não se dedica a outra coisa senão a explicar os acontecimentos como
efeitos de “causas” impessoais e anônimas, como por exemplo a “luta de classes” (com todas as variações
aí introduzidas pela moda e pelas conveniências táticas), escamoteando a ação concreta dos indivíduos e
grupos que dirigem o processo. Tudo aí parece derivar de estruturas, de leis, de estatísticas, reduzindo-se
os agentes reais a meros instrumentos, quase sempre inconscientes, de forças coletivas que os
transcendem imensuravelmente. A principal utilidade dessa construção fantasiosa é encobrir sob um
manto de invisibilidade a força dos próprios cientistas sociais enquanto “agentes de transformação”, bem
como a dos grupos e entidades que lhes dão sustentação editorial e financeira.

Os exemplos sucedem-se a cada semana, mas tornam-se mais enfáticos nos momentos de confusão e
pânico, quando essas criaturas das trevas emergem de seus sepulcros acadêmicos para vir explicar ao
mundo que não há nada de novo sob o Sol, que está tudo sob o controle infalível da ciência que
professam. Assim, diante do estado insurrecional triunfante produzido em São Paulo por uma iniciativa
estratégica bem articulada entre o governo brasileiro e três organizações milionárias, PCC, MST e FARC,
o sociólogo francês Loïc Wacquant, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, foi convocado
às pressas pela Folha de S. Paulo do dia 15 para acusar os culpados de sempre e ajudar as vítimas a não
enxergar os agentes efetivos por trás do processo.

A principal glória curricular do prof. Wacquant é ser autor de dois livros que explicam a criminalidade
como efeito da guerra dos ricos contra os pobrezinhos e ter recebido, em função de suas obras, um prêmio
da paupérrima John D. & Catherine T. MacArthur Foundation, badalado como “o prêmio dos gênios”.

Felizmente, a ciência social às vezes nos fornece o antídoto à sua própria vigarice. No caso, o antídoto é o
“experimento imaginário” sugerido por Max Weber para comparar a importância relativa de vários
fatores causais numa dada situação. Trata-se de fazer abstração mental de determinado fator e averiguar
se, sem ele, os acontecimentos teriam sido possíveis. Suponhamos a miséria e a desigualdade. Elas estão
presentes por igual em sociedades assoladas pela violência criminosa e entre povos mais pacíficos como
os indianos e os romenos. Mutatis mutandis, a criminalidade no Brasil não se expandiu nas áreas mais
pobres, mas justamente naquelas que, ao longo das últimas décadas, passaram da miséria absoluta a um
padrão de vida que, na Índia, seria considerado de classe média, como por exemplo as favelas cariocas.
Omitida a comparação, porém, restam dentro de cada área isolada sinais aparentes em quantidade
bastante para manter viva a impressão de que o crime é efeito da miséria. Acoplada a outro topos da
retórica esquerdista, o de que a miséria é causada pelo imperialismo americano, essa crença tem por efeito
despertar o ódio aos EUA e fomentar esperanças messiânicas numa nova ordem internacional paradisíaca,
a ser instaurada sob os auspícios da ONU, da China e da Rússia. Para a realização desse objetivo
trabalham incansavelmente várias fundações bilionárias, entre as quais Rockefeller, Carnegie, Soros e, é
claro, MacArthur. Seus esforços nesse sentido já foram bem documentados meio século atrás por uma
comissão do Congresso americano (v. René A. Wormser, Foundations: Their Power and Influence, New
York, Devin-Adair, 1958) e desde então não fizeram senão multiplicar-se em abrangência e quantidade de
recursos, incluindo dotações de dinheiro do próprio governo de Washington, que essas entidades sugam e
utilizam para seus próprios fins (de modo que esse governo acaba aparecendo como o culpado do que
fazem contra ele). Premiar uns quantos “gênios” que ajudem a revestir de honorabilidade científica a
trapaça essencial em que se assenta a operação é a parte menos dispendiosa do orçamento. O grosso do
dinheiro vai para fomentar diretamente movimentos subversivos e organizações pró-terroristas (v. a
estrutura da rede em www.discoverthenetwork.com).

Se, de acordo com o experimento weberiano, abstrairmos do quadro presente a atuação dessas fundações,
o resultado será simplesmente que a esquerda revolucionária do Terceiro Mundo não teria podido
continuar a existir e prosperar depois da queda da URSS e, portanto, a utilização do crime como
instrumento da subversão organizada, que é o seu principal modus operandi na última década, se tornaria
inviável.

O banditismo, assim, cresceu junto com o prestígio oficial da tese mesma que o explica pela luta de
classes. Alegando razões fundadas nessa teoria, o prof. Wacquant prevê um aumento da violência no
Brasil. Mas essas razões são desnecessárias. A violência crescerá junto com o número de idiotas que
acreditam no prof. Wacquant.

***

Se os praticantes da ciência wacquântica fossem sérios, estudariam um pouco de lógica da investigação


científica e saberiam que nenhuma correlação causal (entre pobreza e crime ou entre qualquer coisa e
qualquer outra) pode ser generalizada para um grupo abrangente de casos sem que esteja muito bem
provada ao menos em alguns deles individualmente. Ora, na escala individual a pobreza só pode ser
justificação direta e determinante do crime em exemplos excepcionais e raros – tão excepcionais e raros,
na verdade, que em todo país civilizado a lei os isenta da qualificação mesma de crimes. São os chamados
“crimes famélicos” – o desnutrido que rouba um frango, ou o pai sem tostão que furta um remédio para
dar ao filho doente. Em todos os demais casos, a pobreza, se está presente, é um elemento motivacional
que, para produzir o crime, tem de se combinar com uma multidão de outros, de ordem cultural e
psicológica, entre os quais, é claro, a persuasão pessoal de que delinqüir é a coisa mais vantajosa a fazer
nas circunstâncias dadas. Quando o hábito da delinqüência se espalha rapidamente numa ampla faixa
populacional, é claro que, antes dele, essa persuasão se tornou crença geral nesse meio, reforçando-se à
medida que as vantagens esperadas eram confirmadas pela experiência e pelo falatório. Ora, é de
conhecimento público que, entre a mesma população pobre, por exemplo das favelas cariocas ou da
periferia paulistana, duas crenças opostas se disseminaram concorrentemente nas últimas três décadas: de
um lado, o apelo do crime; de outro, a fé evangélica. Numa população uniformemente pobre, o número de
evangélicos praticantes que delinqüem é irrisório. Basta esse fato para provar que a correlação entre
pobreza e crime é uma fraude, um sofisma estatístico da espécie mais intoleravelmente suína que se pode
imaginar. Nenhuma ação humana é determinada diretamente pela situação econômica, mas pela
interpretação que o agente faz dela, interpretação que depende de crenças e valores. Estes, por sua vez,
vêm da cultura em torno, cujos agentes criadores pertencem maciçamente à camada letrada, como por
exemplo os bispos evangélicos e os cientistas sociais. Os bispos ensinam que, mesmo para o pobre, o
crime é um pecado. Os cientistas sociais, que os criminosos, agindo em razão da pobreza, são sempre
menos condenáveis do que os ricos e capitalistas que (também por uma correlação geral mágica) criaram
a pobreza e são por isso os verdadeiros culpados de todos os crimes. Essas duas crenças disputam a alma
da população pobre. Não é preciso dizer qual delas estimula à vida honesta, qual à prática do crime. Nos
bairros mais miseráveis e desassistidos, qualquer um pode fazer esta observação direta e simples: as
pessoas de bem repetem o discurso dos bispos, os meliantes o dos cientistas sociais (do sr. Marcola nem
preciso dizer nada, já que ele próprio é meio cientista social). Quando, do alto das cátedras, esses
senhores pregam a doutrina de que a pobreza produz o crime, não estão cometendo um inocente erro de
diagnóstico. Estão ocultando, com maior ou menor consciência, a colaboração ativa que eles próprios, por
meio dessa mesma doutrina, dão ao crescimento irrefreado da criminalidade. E, quando são premiados
por uma organização ostensivamente interessada em disseminar a subversão, como é o caso notório da
Fundação MacArthur, eu seria o último a negar que mereceram o prêmio.

***

Se, deixando de lado as generalizações etéreas, nos atemos à seqüência real dos fatos, a ordem temporal
de produção dos acontecimentos da semana passada aparece com o seguinte desenho:

1º. Desde a década de 30, atendendo a uma ordem de Stalin, a intelectualidade esquerdista mundial, onde
há mais cientistas sociais per capita do que lobos numa alcatéia, se dedicou ativamente a infundir em
todas as patologias sociais, como o crime e o racismo, a substância universalmente explicativa da luta de
classes. O esforço dos teóricos foi aí secundado por uma multidão inumerável de romances, filmes, peças
de teatro e canções populares que faziam a idéia penetrar profundamente no imaginário popular ao ponto
de se tornar um dogma inabalável. Nos países do Terceiro Mundo, justamente graças à profusão de
patologias sociais existentes, essa doutrina se impregnou com aderência maior ainda, tornando-se o tema
dominante, senão único, de várias culturas nacionais, entre as quais a brasileira (dediquei a esse tema uma
série de artigos publicados em 1994 sob o título “Bandidos e letrados”).

2º. Quando o ambiente cultural estava suficientemente preparado, a transformação do banditismo em


instrumento da luta de classes revolucionária passou da teoria à prática. No Brasil, especialmente, o
empenho organizado dos militantes de esquerda para arregimentar a serviço da subversão as gangues de
delinqüentes já é um fato abundantemente documentado desde a década de 60. Da esquerda o banditismo
absorveu não somente a doutrina e o discurso, mas também as técnicas de guerrilha urbana que
empregou, por exemplo, no movimento insurrecional da semana passada. O contato entre as gangues e os
grupos terroristas intensificou-se ao ponto de tornar-se institucional. A presença de técnicos das FARC e
das organizações terroristas islâmicas em vários grupos criminosos do Brasil já se tornou tão freqüente
que não suscita mais nenhuma reação de escândalo. Acostumamo-nos a isso como a um dado da natureza.

3º. Quando a esquerda latino-americana, em 1990, passou por um formidável upgrade com a fundação do
Foro de São Paulo, as organizações de narcotraficantes, seqüestradores e assaltantes acompanharam-na na
sua ascensão social, assentando-se ao lado de partidos legais como o PT e o PC do B nas assembléias do
Foro, coordenação estratégica do movimento comunista latino-americano. Desde então, todo
empreendimento subversivo de larga escala, no continente, é realizado sob a supervisão ao menos indireta
do Foro de São Paulo. Não há mais iniciativas isoladas: o banditismo avulso vai sendo sepultado na
memória coletiva como um resíduo de eras extintas. Por toda a parte o que se vê é integração, conexão,
unidade ideológica e estratégica.

4º. Como fundador e principal líder do Foro de São Paulo, o sr. Luiz Inácio Lula da Silva sempre esteve
muito bem informado do grau de organização que seus colegas de militância haviam conseguido
transmitir aos grupos de delinqüentes, nas cadeias ou fora delas. Mais informado ainda encontrava-se esse
cidadão pelo fato de ser presidente da República, tendo sob seu serviço direto os órgãos de inteligência e
a Polícia Federal, além, é claro, da figura insubstituível do seu ministro da Justiça, cuja convivência
íntima com os líderes maiores do banditismo nacional tem representado, para ele, mais que um estilo de
vida, um meio de próspera subsistência.

5º. Em vista disso, é absolutamente impossível que essas duas excelências ignorassem a preparação do
mais vasto movimento insurrecional já planejado neste país no último meio século, e que, portanto, fosse
com cândida inocência e desconhecimento das conseqüências que a primeira autorizou e a segunda pôs
em prática o indulto que colocou na rua, livres, armados e bem articulados, doze mil delinqüentes, entre
os quais os autores da carnificina.

6º. Mais impossível ainda é que os excelentíssimos ignorassem o detalhe mais lindamente perverso da
situação que geraram. Todo mundo sabe que, neste país, os policiais recebem uma quantidade irrisória de
munições, tendo de dispender do próprio bolso para garantir-se em situações de risco de vida. Ao ver-se
acossados, nas ruas, nos batalhões e nos postos, por inimigos decididos a tudo e incomparavelmente mais
armados e municiados, os policiais paulistas, naturalmente, correram às lojas de armamentos para trocar o
leite das crianças por meios elementares de defesa. Com enorme surpresa, descobriram que um
determinado item da lei do desarmamento, que até então jazia inerte num papel, tinha acabado de entrar
em vigor: não podiam comprar munição nenhuma sem autorização escrita da Polícia Federal.
Comerciantes de armas relatam que viram policiais saírem de suas lojas chorando, conscientes de que
estavam condenados à morte sem apelação. Se me disserem que o sr. ministro da Justiça ignorava essa
armadilha, responderei então que ele é o mais estúpido incompetente que já passou pelo seu cargo, já que
a entidade encarregada de fornecer as autorizações repentinamente exigidas e faltantes está sob o seu
comando direto. Mas somente um país muito louco, muito alienado, mantém nesse cargo, numa hora
dessas, o advogado pessoal do próprio chefe da inssurreição. Como defensor de Marcola, o sr. Márcio
Thomaz Bastos tem confiabilidade zero até mesmo para dar uma opinião imparcial quanto aos
acontecimentos da semana passada, quanto mais para reter em suas mãos, com avareza assassina, os
meios de defesa que teriam podido salvar centenas de pessoas.

7º. Aqueles que acima da suspeita racional coloquem a crença dogmática na idoneidade do governo
petista podem apostar numa conjunção fortuita de fatores, na santa e pura coincidência. Eu é que não.

***
P.S.- A situação de total desamparo em que o governo brasileiro deixa os policiais, entregando-os à mercê
dos criminosos, já é um fato oficialmente reconhecido pela justiça norte-americana. No fim de abril, um
tribunal da Flórida concedeu asilo político a um policial de Minas Gerais por reconhecer que, após matar
em tiroteio um importante líder do narcotráfico local, o infeliz estava tão desguarnecido quanto um pato
de plástico num estande de tiro. Voltarei ao assunto num próximo artigo. Como a promotoria abdicou de
recorrer da sentença, a decisão está incorporada à jurisprudência americana e valerá para os casos
subseqüentes. Os policiais brasileiros propositadamente deixados sem munição na hora do aperto já não
podem dizer que não têm a quem recorrer: esqueçam o sr. Márcio Thomaz Bastos, peçam socorro à
justiça de um país onde existe justiça.

Disponível em: http://www.olavodecarvalho.org/semana/060522dc.html. Acessado em: 06, maio de 2017,


às 20h28min.

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