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Referência: ​BETEGH, Gábor.

Pythagoreans, Orphism, and Greek Religion

1. OBJETO
Gábor Betegh observa a intersecção entre o pitagorismo, o orfismo e a religião grega,
entendendo suas características centrais como um universo plural a partir da exposição de
diversos comentários, dos antigos aos recentes, sobre o tema. A tentativa de dissecar a
doutrina fundada por Orfeu e, paralelamente, a de Pitágoras, as coloca lado a lado, tendo em
vista a religião grega como um fenômeno social, a fim de engendrar as consonâncias e
dissonâncias que as envolve em uma densa cortina de fumaça. O autor considera o orfismo e
o pitagorismo como agentes de um mesmo fundamento teológico, estranho às comunidades
gregas tradicionais, cuja diferença principal residiria em sua formulação em gêneros díspares.

2. OBJETIVOS
Gábor Betegh inicia seu estudo sabendo as dificuldades de assumir uma posição exata em um
terreno insólito como o pressuposto pelo estudo das religiões antigas. Com base nisso, o autor
tenta reconstruir a linha temporal dos comentários acerca do assunto, desde a antiguidade até
as pesquisas mais modernas, com o intuito de formular uma visão mais ampla e geral sobre a
temática. Apesar de algumas das análises sobre o mesmo assunto terem sentidos
diametralmente opostos, algumas conclusões consistentes conseguem ser extraídas através
das fontes.
O autor do artigo pretende, primeiramente, examinar qual é o espaço, no sentido
sócio-cultural, tomado pelas doutrinas na antiguidade grega. Sendo assim, breves paralelos
com as tradições religiosas locais são ponderados, seguido do estudo aprofundado das
característica atribuídas ao orfismo e ao pitagorismo. O objetivo final concentra-se em
investigar quais são as características essenciais e genuínas dentro da esfera do orfismo e do
pitagorismo e o quais dessas características não apresentam fundamentação teórica.

3. NOTAS
Opiniões díspares recorrentes: algumas interpretações exaltam as proximidades e estreitam a
relação entre orfismo e pitagorismo. Outros fontes, entretanto, as acusam de ser
completamente opostas. Ao mesmo tempo os pontos de contato são, certas vezes, colocados
de lado em prol da disputa pelo consenso de qual doutrina foi a pioneira na performance das
características compartilhadas.
Descobertas arqueológicas mencionadas:
1) Bone Plates: estabelecem conexão entre Dioniso, culto órfico e ressalta o interesse no
pós-vida.
2) Gold Tablets: no artigo, Betegh cita dois, um encontrado em Hipponion e outro em
Pelinna. O primeiro faz menção aos báquicos, o segundo, por sua vez, menciona
Dioniso cultuado em rituais báquicos, testanto o quão longe vai a natureza dionisíaca
dentro do orfismo, embora o nome de Orfeu não tenha sido citado.
3) Papiro de Derveni: talvez o mais rentável em termos de informações históricas.
Evidencia que os poemas órficos circulavam por volta do século 5.

Walter Burkert: sua importância para os estudos sobre o tema são de valor inegável.
Associadas às descobertas arqueológicas, o contorno do orfismo parece estar muito mais
claro. Sendo assim, Burkert consegue aproximar o pitagorismo e o orfismo, acentuando suas
características religiosas e reservando algumas formulações de cunho filosófico.
Burkert também é responsável pela imagem dos três círculos (orfismo, pitagorismo e a seita
báquica) interseccionados em alguns pontos, mas cada um contendo sua individualidade.
Gábor Betegh, entretanto, alerta para conclusões precipitadas, afastando a ideia de que é
possível afirmar, com o material arqueológico acumulado, que a imagem desses círculos seja
sólida em alguma instância e não deve ser levada como referência, mas com cautela,
pressupondo desconsiderar a consistência interna dos círculos e as bordas tão fixas.
Ressalva: Betegh constantemente ressalta o caráter insólito do objeto de estudo. “[...] The
gamut of new and old evidences presses for a non-essencialist conception of Orphism. [...]”
(página 8)
Diferença importante: orfismo está focado em re-obter a pureza através de rituais; o
pitagorismo, por outro lado, se interessa em como manter a pureza a partir de ações
cotidianas.
Menção aos daimones, presentes em 70c Fédon, também é um problema discutido em Plato’s
Transposition of Orphic Netherworld Imagery (Alberto Bernabé).
4. ARGUMENTAÇÃO
5.1.​ Relação entre Orfismo, Pitagorismo e Religião Grega

Calíope, Orfeu, Aglaofemo, Pitágoras, Timeu e Platão constituem, segundo Gábor Betegh,
uma importante linha, dentro da tradição filosófica grega, responsável pela fundamentação da
atitude religiosa perante os deuses. Muito embora os próprios autores da era clássica não
demonstrem conhecimento vasto acerca de Orfeu, a quem viam como personagem
mitológico, e Pitágoras (já que suas fontes históricas apresentam inúmeros apontamentos,
mas nenhuma prova de sua veracidade diante dos feitos atribuídos a ele), as primeiras
evidências sobre essas duas figuras indicam uma relação estreita entre eles.
Apesar de insólito o terreno no qual se firmam os pilares dos estudos acerca do orfismo e do
pitagorismo, pode-se afirmar brevemente o caráter ritualístico de poemas, cuja autoria é
conferida a Orfeu, como responsáveis por ter algum efeito no destino da alma. Além disso, o
autor desses poemas é visto como uma autoridade motivadora de um conjunto de preceitos
religiosos. Já a respeito de Pitágoras, não se sabe até que ponto todos os membros das
sociedades pitagóricas aderiram às leis de conduta e não há razões para não acreditar que
diferentes orientações fossem seguidas dependendo da comunidade.
As ressalvas e inconstâncias são fruto do caráter aparentemente restrito das doutrinas,
combinado com o espaço ocupado por elas dentro da sociedade grega tradicional. Nesse
sentido, é importante ressaltar a disparidade entre a posição tomada dentro do círculo
Neoplatônico em contraste com a da grande maioria dos autores da mesma época. No
primeiro, os ensinamentos eram fundamentais e irreverentes no centro da tradição filosófica
grega, por outro lado, eram lidos como fenômenos marginais, apartados da sociedade dentro
da visão grega.
Heródoto enxerga o orfismo e o pitagorismo como estrangeiros na cultura helênica e alega
uma aproximação entre os rituais de proibição egípcios, baseados nas crenças escatológicas
proclamadas dentro dessas esferas. O historiador se pauta em uma tradição grega local:
“[...] Traditional forms of religious practice and belief that permeate the life of every Greek,
from birth to death, from dawn to evening, during festivals and on regular days, are firmly
rooted in the local traditions of the ​polis​. [...]” (página 5)
Dessa forma, ao vislumbrar o que a religião grega significa, é compreensível a posição
tomada por Heródoto ao considerá-las estranhas.
Por outro lado, a questão sócio-cultural parece parcialmente resolvida. O que o autor segue
indagando é o quão longe um membro da comunidade órfica e pitagórica estaria em oposição
à religião tradicional e excluído dos rituais institucionalizados.

5.2. Metempsicose

A importância de colocar a tradição experimentada na polis e as doutrinas é refletida em uma


análise mais cautelosa de certas características cegamente atribuídas ao orfismo e ao
pitagorismo, como restrições alimentares fortemente ligadas aos movimentos.
Sendo assim, dissecando o que o vegetarianismo representa na esfera órfica ou pitagórica, a
hipótese de lê-lo como resposta imediata à crença na transmigração da alma parece uma
afirmação prematura, uma vez que não há provas para afirmar que todos os preceitos fossem
aplicados igualmente a todas as sociedades que clamavam para si a alcunha pitagórica ou
órfica, além de informações dissonantes extraídas de diversas fontes, demonstrando um certo
“relaxamento” motivados pela engrenagem sócio-cultural:
[...] The very discrepancy among the sources indicates that there was a serious interest in
relaxing vegetarianism in such a way that it did not block participation in public rituals
involving animal sacrifice and feasting on the ritually slaughtered animals. [...]” (página 11)
Tal relaxamento aponta para possíveis direções dentro do campo da transmigração da alma e
metempsicose. O primeiro questionamento reside na possibilidade da transmigração para
corpos de animais, a qual Platão aparentemente aceita, mas sem aderir à restrição alimentar.
Xenocrates, discípulo de Platão, dissocia as duas imagens, alegando que o fato de todas as
criaturas encarnadas possuírem alma é um motivo suficientemente propício para tornar-se
vegetariano, sem implicar na aceitação da crença da metempsicose.
O destino da alma também sugere um questionamento de natureza similar.
[...] On once of the Olbia bone plates we read “Dio(nysius)”, then “truth” and then “body
soul”, whereas in the gravely damaged first columns of the Derveni papyrus the author
discusses eschatological topics including how to secure a safe passage for the soul by
appeasing imeding daimones (PDerv col. 6) [...] On one of the Olbia bone plate, we read “life
death life” below the world “truth” is inscribed. [...] On the Pelinna gold leaves the the soul
of the deceased is greeted by the words: “Now you have died and now you have been born, O
thrice happy on this very day””
Betegh afirma que renascimento pode ser entendido, aqui, de outra maneira que não
reencarnação, mas em uma segunda vida ainda no mundo dos mortos.

5.3. Filosofia Natural

A reinterpretação da filosofia natural, diferentemente do caráter performalístico encontrado


no tópico anterior, remete a um fenômeno literário, encabeçado tanto pelos poemas atribuídos
a Orfeu quanto pelas formulações filosóficas derivadas dos supostos ensinamentos
pitagóricos. Gábor Betegh concentra-se em dissecar três características principais
compartilhadas, como a presença de uma figura de autoridade, as interpretações atribuídas à
elas e a relação entre as considerações teoréticas retiradas de tais interpretações e seu contato
com o desenvolvimento filosófico, dando, por fim, origem a um novo conceito dentro das
práticas religiosas.
Dessa maneira, a importância da figura de autoridade refletida em Pitágoras e Orfeu, sendo
um elemento em comum entre as doutrinas, é acompanhada de interpretações, alegóricas ou
literais, acerca de seus respectivos representantes.
O autor seleciona uma passagem de Aristóteles e uma de Filolau para colorir de que maneira
a troca entre filosofia e religião era concebida. Na primeira citação, Aristóteles se refere ao
número três como sendo teleion ​completo e perfeito, utilizando em seu argumento principal
uma fonte pitagórica:
“For just as the Pythagoreans say, the whole and all things are delimited by the three; for end,
middle, and beggining have the number of the whole, which is that of the triad. Wherefore,
we use this number also in the worship of the gods, taking it from nature, as a law of it
(268ª10-15)²²” (página 19)
Os pitagóricos analisavam que o começo, o meio e o fim era a representação natural da
natureza em três atos, ou seja, um ciclo completo e perfeito, assim como para Aristóteles em
seu tratado teológico Nos Céus. Três também era o número de vezes que certas práticas
ritualísticas deveriam ser repetidas.
O número três recebe atenção especial em diversos textos mais próximos ao orfismo. No
papiro de Derveni e nos estudos do pseudo-aristotélico De Mundo, é encontrado “Zeus é a
cabeça, Zeus é o meio, todas as coisas existem em Zeus”, verso que representa um episódio
chave dentro da cosmogonia órfica. (fazer nota de rodapé página 20 + 21 citação 6)
Dentro do que foi exposto até então, surge um problema desencadeador de outras questões no
que concerne ao desenvolvimento da filosofia, tendo ressonância na filosofia pré-socrática, e
religião como elementos interconectados: como todas as coisas surgiram do mesmo princípio
e como todas as coisas são absorvidas dentro da mesma unidade? Como a principal
divindade, que governa o cosmos, ser o descendente, e não o princípio gerador?
Ou seja, costumes religiosos que regulavam a performance dos rituais, agora tornam-se
aplicações de um princípio numerológico, indicando que tais tradições religiosas derivam do
papel do número três na natureza, como comentado por Aristóteles.
Na passagem referente à Filolau, Betegh parafraseia como o primeiro estágio da cosmogonia
é associado ao calor advindo do centro de uma esfera, sendo o cosmos uma referência a
imagem de uma casa habitada por pessoas próximas. A noção do calor abordado por Filolau
também faz alusão à lareira, lar.
Além disso, “starting from the hearth” é um ditado grego, presente em Aristófanes (As
Vespas) e Platão (Eutífron), e no Hinos Homéricos, tendo Hestia como representante,
primeira filha de Cronos.
Motivado por considerações físicas e metafísicas, a ideia encontra lugar na filosofia pré
socrática e é ressignificada na tradição religiosa.
“[...] The mythologizing interpretation of major constitutive parts of the physical world and
renewed attribution of religious significance to them, is highly reminiscent of the
cosmological Pythagorean symbola that call the sea “the tears os Kronos”, the Bears “the
hands of Rhea”, the planets “the hounds of persephone”, the sun and the moon “the Isles of
the Blessed” and so forth (Arist. fr. 196 R³ = Porph. VP 4; cf. also Arist. Mete. 345ª14). It is
important to emphasize, however, that Philolaus’ Hearth is fully incorporated in a developed
physical, cosmological theory, whereas the Pythagorean symbola are enigmatic snippets.”
O que se nota até então é a formulação na qual cada doutrina está associada. Muito embora
Pitágoras ainda usasse linguagem mitológica, como indicado na citação acima, seus
predecessores não mais compartilham de sua linguagem, reescrevendo as especulações em
uma literatura mais próxima da filosófica.
“[...] The difference might reflect Orphic literature’s predilection for mythological narratives
about the gods, whereas properly theological considerations are strikingly missing from early
Pythagoreans documents.”
5. CONCLUSÕES
Tendo em mente o que distancia as doutrinas aqui analisadas da religião tradicional grega, é
importante estabelecer que as diferenças e semelhanças se sustentam fundamentalmente sob
dois pilares: o lado performativo e o lado literário. O lado performativo diz respeito às
práticas “estranhas” dentro da cultura local, como rituais específicos e dieta alimentar
baseados na crença do renascimento, independente do modo que ele é concebido. O lado
literário aponta em quais gêneros são expressados os fundamentos de cada uma delas.
Gábor Betegh nota que as conexões entre o orfismo e o pitagorismo se dão de maneiras mais
sutis do que o pressuposto. Afastando-se no conteúdo escatológico, apesar de compartilharem
a crença no pós-vida, ainda que díspares. Portanto, o contraste não reside essencialmente no
lado performativo analisado no tópico sobre a metempsicose, uma vez que raramente há
alguma interconexão entre elas sob esse ponto de vista.
Por outro lado, no sentido mais amplo da cosmogonia elaborada pelos seus seguidores,
alguns pontos de contato são sublinhados no que concerne à especulação cosmológica, o
princípio de tudo e a força motor que gera vida. A diferença literária é fundamental para
tornar mais tangível o que separa essas duas esferas dentro da tradição grega. Logicamente, a
reelaboração da linguagem religiosa e a reinterpretação de conceitos míticos não gera um
antagonismo denso.
Referência:​ BERNABÉ, Alberto. Plato’s Transposition of Orphic Netherworld Imagery

1. OBJETO
Alberto Bernabé examina, especificamente, as imagens do destino da alma após a morte
apresentadas em três diálogos platônicos, Górgias, Fédon, República e o pseudo-platônico
Axiochus, juntamente com a análise da intenção de cada uma das narrativas. Dessa forma,
Bernabé, além de encontrar pontos de contato e diferenças entre as doutrinas, é capaz de
observar quais características são salientadas e quais delas são ocultadas, segundo os
interesses dispostos por Platão em cada diálogo.

2. OBJETIVO
A análise da imagem do mundo infernal construída ao longo dos diálogos platônicos expostos
no artigo permite a assimilação das dissonâncias de uma narrativa para outra. Bernabé atribui
essa variação à uma estratégia filosófica que flutua de acordo com as intenções de Platão/
Sócrates. O autor do artigo, ao explorar separadamente cada uma das obras, acaba por
encontrar o princípio que motiva essas diferenças.
Embora não seja coesa, existem características que se repetem por todos os diálogos, às vezes
mais salientadas, às vezes menos. De qualquer maneira, o interesse de Bernabé reside no
paralelismo entre a escatologia platônica e o que as fontes oferecem sobre o orfismo, e
observar se há, dentro das características frequentes e dentro das menos utilizadas, influência
da doutrina. Por fim, apontar de que maneira ela se reflete.
Assim, a compreensão do que foi exposto sugere que um terceiro objetivo seja alcançado
como produto das investigações até então, sendo ele a ponderação sobre o quão longe as
influências órficas estão presentes na filosofia platônica.

3. NOTAS
Descobertas arqueológicas mencionadas:
1) Gold Tablets (Thurii) proclama a pureza, essência humana próxima à essência divina.
(Hipponium) noção escatológica de que as almas vão para o Hades após a morte do
corpo. (Pherai) afirma que o iniciado está livre das punições do pós-morte.
2) Papiro de Bologna: julgamento das almas, descrição das premiações e punições no
submundo, contém também uma descrição do submundo; encontrado em tempos
romanos, provavelmente possui influência judaica.
Górgias: Cálicles defende a posição que o comportamento humano não deveria conformar
com qualquer limitação moral, mas se preocupar com o cumprimento dos desejos. Sócrates, a
fim de dissuadi-lo, moderniza algumas interpretações órficas com seus próprios termos. Ideia
do julgamento no mundo dos mortos é fundamental, portanto, recebe atenção especial. Por
outro lado, não há menções relevantes a futuras encarnações.
República: dois conjuntos de escatologias são apresentados por Platão. A primeira, estranha
para ele, é alvo de críticas, enquanto que a segunda é condensada no mito de Er, sustentando
o argumento político platônico. Novamente, a ideia de recompensamento no submundo
emerge, deixando de lado as descrições do mundo dos mortos, como é de interesse
mencioná-las em Fédon, mas não aqui. O contexto político e moral é o que dá o tom ao
diálogo, todos os argumentos buscados em diversas fontes, entre elas o orfismo, são
utilizados para sustentar sua tese da cidade ideal e cidadãos perfeitos.
Axiochus:

4. ARGUMENTAÇÃO
Ao analisar propriamente o diálogo Fédon, nota-se a disparidade entre ele e os diálogos
anteriores. Apesar de alguns pontos não terem sido subtraídos completamente, seu valor
como interesses do diálogo em questão não parecia ser tão alto, e por conta disso, a
importância dada a eles foi reduzida, refletindo numa tímida menção.
Inicialmente, é necessário ter em mente que o diálogo é tensionado pela morte eminente de
Sócrates e o temor que ela irradia. Bernabé chama atenção para dois momentos: primeiro,
para a analogia entre iniciação religiosa e iniciação filosófica, depois, para a questão da
transmigração das almas. Esses dois momentos vão estar relacionados em algum momento
em Fédon, guiado pelas necessidades específicas do diálogo.
Bernabé afirma que Sócrates é levado a utilizar argumentos e referências órficas ainda que
sob uma roupagem diferente. A imagem elaborada por ele revela a extrema intimidade entre a
iniciação e ritualística dentro da esfera órfica e o conceito moral e iniciação filosófica,
indicando uma relação bastante análoga entre essas dicotomias, principalmente quando a
ideia do julgamento apresenta a possibilidade favorável àquele que se inicia, ou, no caso de
Sócrates, àquele que se dedica à filosofia.
“[...]The trial appears imprecise because it is obvious that his life does not deserve anything
other than the best of destinies; the certainty that he is not going to be punished permeates the
whole dialogue. By contrast, the idea of transmigration is pertinent in order to underline the
concept that the best fortune available to the soul is to abandon the body. Not only that, but
the disciples who lament the prison and death of Socrates are not conscious of the paradox
that he is going to be immediately really free, while they, seemingly free men, will remain
prisoners of their bodies and the miseries of life. Therefore, the clear addition of the idea of
reincarnation provides a more optimistic message than that of Gorgias, since even someone
who is wicked and suffers punishment will have an opportunity for improvement further
on.[...]” (página 120)
No caso, o julgamento da alma, uma ideia corriqueira em Górgias e na República, parece
estar indefinida em Fédon. Isso acontece devido ao pressuposto de que, tendo se dedicado à
busca do conhecimento através da filosofia, Sócrates teria um lugar garantido ao lado dos
justos e bons no mundo dos mortos. Além disso, a noção inequivocamente órfica do corpo
como prisão da alma também é amplamente explorada por Platão nas passagens em que
Sócrates aparece consolando os amigos, atribuindo um valor negativo ao corpo, lido como
um obstáculo no alcance do verdadeiro conhecimento.
A referência aos daimones é interpretada como uma possível interferência órfica no diálogo,
entretanto, apesar de serem encontrados em alguns textos órficos, como o papiro de Derveni,
não se sabe precisamente qual é a fonte buscada por Platão para reinterpretar essa noção.
“The fact is that numerous non-Orphic texts mention daimones, often personal ones, which
could have a function similar to that described by plato. It is, therefore, a tradition that
precedes Plato and that continues much longer afterwards.” (página 114)
O interesse órfico também reside no detalhamento do mundo dos mortos, emprestado à Platão
a partir de 113a. Apesar dos poetas da antiguidade clássica atribuírem o nome “Tártaro” ao
local descrito, o comentário de Aristóteles sobre a passagem reduz essa possibilidade,
favorecendo a ideia de que provavelmente a inspiração vêm de um poema órfico. Damascius
e, anteriormente, Proclus endossam o ponto de vista de Aristóteles, exaltando a contribuição
de Orfeu para a composição da imagem do submundo, ao abordar o caminho dos quatro rios
descritos em Fédon como sendo correspondentes aos “quatro elementos subterrâneos e aos
quatro ponto cardinais”, descrições encontradas em textos órficos.
A descrição do submundo e a teoria da metempsicose são interligadas por Platão. Após a
chegada das almas, conduzidas por seus guias (daimones), elas passam por um tipo de
verificação, sem muitas explicações de como e por quem, levando ou à purificação ou à
condenação. Por outro lado, aqueles que viveram vidas santas, tem sua morada em lugares
ainda mais justos garantido. Também é mencionada a possibilidade de reencarnação para a
maioria dos desencarnadas que chegam ao Lago Acherusian. Sendo assim, a jornada da alma
no mundo dos mortos e a geografia desenhada por Platão acabam coincidindo.
“Most likely, one of the reasons for the inclusion in the dialogue of a complex cosmology is
Plato’s inclination to create powerful imagery. His main purpose, however, seems ro be
situating the places where the soul receives rewards and punishments somewhere in the
general map of the universe. In order to configure it, the philosopher has partly taken
inspiration from images already existing in the poetic tradition, though he has also taken
advantage of new scientific ideas about the shape of the world.” (página 119)
A inserção de elementos órficos na cosmologia, especialmente na descrição do submundo,
comprova que apesar de não ser mencionado por Platão, Orfeu e o orfismo fazem parte de um
conjunto de metáforas para ilustrar o cenário escatológico.

5. CONCLUSÃO
Bernabé localizou alguns pontos essenciais para a compreensão de sua influência, como a
crença na imortalidade da alma, os cenários infernais, a alma como prisão do corpo e a
presença dos daimones. O denominador comum entre os diálogos é a crença na imortalidade
da alma, independente da maneira como a questão foi discutida e reverenciada por cada um
deles. Em algumas narrativas platônicas, o pós-morte pode aderir à visão de um “purgatório”,
em termos anacrônicos, enquanto em outros, é mais interessante para as intenções de Platão
assumir a crença em sucessivas reencarnações. Em Fédon, especificamente, por tratar
essencialmente da morte de Sócrates, é proveitoso manter a segunda visão.
Além disso, descrição da geográfica do submundo, tema de bastante interesse para os órficos,
é mencionada em todos os diálogos discutidos no artigo, mas recebe atenção especial em
Fédon, como maneira de indicar que iniciados e purificados, ou em termos platônicos,
aqueles que dedicaram suas vidas à filosofia, encontram sua morada ao lado dos deuses
(filosofia).
A termo “escatologia positiva”, utilizado por Bernabé para descrever a visão escatológica
acerca do destino das almas dos verdadeiros filósofos (aqui já se pressupõe a analogia com a
iniciação na doutrina órfica), afirmando ter um lugar privilegiado ao lado dos deuses, sem se
tornarem elas mesmas deuses. A relação com o corpo recebe, portanto, um valor negativo,
uma vez que o fato de estar encarnado é uma barreira entre o filósofo e o que é
verdadeiramente bom e virtuoso.
A diferença entre Platão e o orfismo reside no motivo que os leva a querer conhecer o destino
da alma. Enquanto para os seguidores da doutrina isso significa salvação, para Platão, como
já mencionado anteriormente, varia de acordo com o que é pedido do diálogo, no caso de
Fédon, um consolo para seus discípulos. Dessa forma, apesar de inúmeros elementos
retirados de outras literaturas, a presença órfica é inegável nas passagens analisadas. Mesmo
evitando menções ao nome de Orfeu, sua sombra aparece em inúmeras passagens, indicando
importância da doutrina para a descrição e sustentação de suas argumentações.
Referência:​ Dramatis personae of Plato’s Phaedon. SEDLEY, David.

1. OBJETO
Entendendo Platão como, além de um filósofo, um dramaturgo, a reinterpretação do diálogo
Fédon é exposta por David Sedley como uma ciência da condução de um diálogo.
Concentrando-se na escalação do elenco, especificamente, Sedley analisa a presença de
Fédon, Equécrates, Símias e Cebes, como peças valorosas para compreender a reorganização
do método de escolha das personagens disposta na filosofia platônica a partir de um dado
momento. Sendo assim, é de interesse do autor do estudo apresentar características e
informações adjacentes a respeito das personagens elencadas, além da releitura propriamente
dita do diálogo.

2. OBETIVO

Após expor ponderações acerca dos métodos interpretativos que serão utilizados, David
Sedley localiza em Fédon uma dos primeiros suportes dessa nova abordagem metodológica
de elencamento das personagens. A partir daí, o autor investiga como, quando e porquê uma
nova maneira de conduzir o diálogo é empregada por Platão.
Quanto a isso, há uma variação considerável de motivos para a escolha dos interlocutores,
geralmente, nos diálogos posteriores, surge como uma maneira de quitar alguma dívida
filosófica. Em Fédon, este motivo parece responder apenas metade da questão, uma vez que
os personagens não assumem posição de representantes de suas escolas, como é o caso de
alguns outros diálogos, mas aparentemente o parentesco filosófico, em especial devido ao
tema abordado, é o condutor da escolha.
“The answer must be that the methodology of the Phaedo is no longer the confrontational
dialectic of the early dialogues. It is now a cooperative dialectic. And in a cooperative
dialectic the main danger is not hasty disagreement, but hasty agreement.” (página 17)
Desta maneira, não só o parentesco filosófico é levado em consideração, mas a própria
maneira de desenvolvimento do diálogo é avaliada.
3. NOTAS
Ao expor o local de origem dos personagens na cela de morte de Sócrates, na resposta de
Fédon à Equécrates, David Sedley nota que a extensão geográfica__ se assemelha ao
percurso que a alma faz em sua jornada no Hades a fim de reobter a purificação.
“The myth purpots to be a lesson in true geography. The entire mediterranean occupies a tiny
hollow in the earth’s surface, around which we live “like ants or frogs round a pool”
(109a-b). There are other zones, both below and above our level, to which souls pass at the
appropriate stages of their purification, until they are finally altogether purged of their bodily
leaning.In this way, the familiar but morally insignificant horizontal geography evoked at the
beginning of the dialogue is to be replaced at the end by the myth’s new vertical geography,
one which will provide the necessary context for understanding the soul’s destiny.” (página
9) semelhança com a geografia infernal descrita pelos órficos??

4. ARGUMENTAÇÃO
O desenvolvimento filosófico nas obras de Platão é desenvolvido, como apontado por David
Sedley, em três momentos: o primeiro concentra-se em descrever Sócrates, o segundo,
marcado pela presença da Teoria das Formas, utiliza interlocutores como parceiros para
construção do diálogo, e por fim, a última situação é marcada pela revisitação de velhas
ideias sob uma novas metodologias e perspectivas. Fédon é alinhado ao segundo caso.
A partir de então, é notada uma diferença na composição narrativa:
“Where and how did the transition occur between the earlier and the later methods of
character-selection? In Plato’s great central work, the Republic, symbolic character-choice
had not yet become an established or prominent part of his dramatic technique. [...]
Nevertheless it is my contention - and this will be the main theme of my paper - that that birth
process had started a little earlier still, in the Phaedo.” página 6
Sendo assim, Platão lida com a possibilidade de projetar sua própria voz autoral após as
mudanças na condução do diálogo, através da interação entre personagens. Além disso, essa
reformulção do elenco socrático delegou, certas vezes, o papel secundário a Sócrates, fruto do
reconhecimento de que sua herança não era suficiente para dar continuidade ao
desenvolvimento filosófico no estágio em que a tradição platônica se encontrava. A presença
de personagens como representantes de tradições filosóficas teria sido uma alternativa
encontrada para solucionar este problema.
“In plato’s late work, then, the choice of speakers had a largely symbolic value, representing
his carefully thought-out apportionment of philosofical debts - what we might now call an
assignment of intellectual copyright.” página 6
A presença de Fédon e Equécrates, até então desconhecidos dos leitos de Platão, surgem
através do parentesco filosófico. Fédon era um filósofo independente, com sua própria escola
em Elis, possui trabalhos que abordam a dicotomia corpo-alma tão cara ao diálogo que leva
seu nome. Equécrates, por outro lado, foi conhecido por ter sido um discípulo de Filolau.
Símias e Cebes, também conhecidos por terem frequentado o círculo de Filolau, mal haviam
recebido alguma menção. A suposição que melhor tenta explicar a escolha dos dois parece
estar incompleta apenas com o argumento da dívida filosófica. A especulação de que Platão
quisesse demonstrar o quanto o círculo pitagórico não os deixou preparados, ou que os
ensinamentos pitagóricos eram insuficientes sem o suporte da Teoria das Formas é
desenvolvida por David Sedley.
Primeiramente, os tebanos não parecem convencidos da capacidade imortal da alma,
característica inalienavelmente pitagórica
“Although as accepted members of the Socratic circle these two cannot be assumed to speak
with a consistenly Pythagorean voice, Plato assures us that their doubts are the direct result of
their Pythagorean background, by portraying the undilutedly Pythagorean Echecrates in the
frame dialogue as fully and explicitly sharing those same doubts (88c-e). In short, what we
meet in Phaedo is the paradoxical spectable of Socrates having to persuade the Pythagoreans
of the truth of their own doctrine.” (página 11)
A estratégia platônica é redesenhada por Sedley. Ao aceitar a doutrina como sendo pitagórica,
Platão resolve reinterpretá-la com a herança socrática. Para isso, Símias e Cebes são
retratados como estudantes confusos e despreparados pelo próprio círculo pitagórico. Porém,
ao fim do diálogo, Sócrates os colocará no caminho certo para sanar suas dúvidas. Sendo
assim, eles são híbridos filosóficos, portadores dos ensinamentos de Sócrates e Filolau, mas
enquanto o último os confunde, o primeiro os ilumina.
“The philosophical lesson is clear. The immortality of the soul is a thesis which, for proof,
requires the support of Platonic doctrine, represented in the dialogue by Socrates. Above all,
it needs the thery of Forms, on which virtually all the dialogue’s aguments in one way or
another rely. And ancillary to this, it is immeasurably stregthened by Socrates’ demonstration
that all learning is recollection.” página 13
Além das semelhanças entre os dois personagens, David Sedley sublinha a importância do
que os torna tão diferentes.

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