Você está na página 1de 2

RITMOS E RUPTURAS

INÍCIOS DE TEXTOS
Musa, canta o despeito de Mariana, esposa do bacharel
Conrado Seabra, naquela manhã de abril de 1879. Qual a causa
de tamanho alvoroço? Um simples chapéu, leve, não
deselegante, um chapéu baixo. Conrado, advogado, com
escritório na rua da Quitanda, trazia-o todos os dias à cidade, ia
com ele às audiências; só não o levava às recepções, teatro
lírico, enterros e visitas de cerimônia. No mais era constante, e
isto desde os cinco ou seis anos, que tantos eram os do
casamento. Ora, naquela singular manhã de abril, acabado o
almoço, Conrado começou a enrolar um cigarro, e Mariana
anunciou sorrindo que ia pedir-lhe uma coisa.

▬Machado de Assis, Capítulo dos chapéus

Era a vez de Miss Somers fazer o chá. Datilógrafa nova - e


inepta - na firma, Miss Somers já estava com certa idade e tinha
uma cara meio tímida e de ovelha. A água que despejou da
chaleira ainda não havia fervido; a pobre Miss Somers nunca
sabia exatamente o momento em que a água começa a ferver
- uma das múltiplas preocupações que lhe afligiam a vida.

Serviu o chá e pôs-se a distribuir as xícaras com alguns


biscoitos já moles em cada pires.

▬ Agatha Christie, Cem gramas de centeio

Eu mergulho. Sou mergulhadora. Eu faço mergulhos.


Científicos. Eu sou cientista. Formada em ciências. Em biologia.
Em oceanografia. Especialização em oceanografia. Eu pesquiso
naufrágios. Eu pesquiso há muitos anos o que os cientistas
mergulhadores oceanógrafos chamam de naufrágio perfeito: é
quando a embarcação afunda e encosta no solo com um
ângulo de 90 graus e mantém suas características intactas. O
naufrágio perfeito é um pouco raro. É bem raro. Eu desconfio
que talvez ele seja mais comum do que se pensa. Não faço as
estatísticas, os levantamentos. Eu mergulho. Eu mergulho
bastante, não em todos os lugares, mas em alguns lugares
específicos, eu mergulho em alguns naufrágios específicos.

- Elisa Band, Naufrágio Perfeito

ESCRITA CRIATIVA | WWW.ESCRITACRIATIVA.NET.BR | CONTATO@ESCRITACRIATIVA.NET.BR


RITMOS E RUPTURAS

Estrutura monotona
O elevador chegou ao quarto andar. A porta se abriu. Um homem
alto saiu de lá. Sua mão vasculhou o interior da valise. A chave
brotou de dentro. A chave estava acompanhada de muitas outras.
O homem ergueu o braço. A chave adentrou a ranhura da porta
firme e sólida. Girou na fechadura. O homem adentrou a sala
escura. Acendeu o interruptor.

Com suave desaceleração, o elevador atingiu o quarto


andar. De dentro, saiu a figura: longilínea, cansada, banal.
Os sensores, num estalo, acionaram as lâmpadas do
corredor. Não ergueu a vista. Para quê? Já conhecia muito
bem o creme desbotado das paredes texturizadas, a fileira
de portas solenemente fechadas, a escada fria que o
espiava toda vez. Ainda que os olhos se voltassem para o
chão, mal se podia dizer que enxergasse o piso
marmorizado, tão comum naquelas construções da
década de 1950. Onde estava?, pensou. Suspirando,
desistiu da valise e mergulhou a mão ossuda no bolso
direito da calça. Através do pano, sentiu o contato da chave
contra a coxa, o ruído agudo de uma pequena colisão
entre as outras chaves do molho, a maciez da pelúcia, o
pequeno pé de coelho que deveria em algum momento
lhe trazer sorte. Bastava esperar. Esperar não era um
problema. Mas não no corredor. Num movimento ágil, os
pés se arrastaram sobre o capacho e o pequeno cubículo
que tomava como casa estava enfim ocupado.

▬ Tiago Novaes, Estrutura dinâmica ESTRUTURA DINÂMICA // TIAGO NOVAES

ESCRITA CRIATIVA | WWW.ESCRITACRIATIVA.NET.BR | CONTATO@ESCRITACRIATIVA.NET.BR

Você também pode gostar