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ANAIS

I Seminário

Internacional

Poder Popular
na América Latina
Introdução
Este documento sistematiza os artigos apresentados no I Seminário Internacional
Poder Popular na América Latina (SIPPAL), realizado entre os dias 25 e 28 de
novembro de 2014, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ).
O I Seminário Internacional Poder Popular na América Latina (SIPPAL) buscou
promover, através da reunião de intelectuais, lideranças e movimentos sociais, um
espaço de intercâmbio de reflexões e experiências sobre os caminhos para o
fortalecimento e consolidação do poder popular em Nuestra América.

No I SIPPAL, os artigos foram agrupados, conforme construção coletiva da comissão


organizadora, nos seguintes eixos:
- O Poder Popular nas Ruas: a luta dos Movimentos Sociais;
- Estado e Poder Popular: Reformas e Participação;
- Poder Comunitário, Movimentos Indígenas e Afrodescendentes;
- O papel das Universidades no fortalecimento do Poder Popular;
- Movimentos Sociais no contexto de governos progressistas;
- Comunicação e a construção do poder popular;
- As lutas travadas no campo latino-americano;
- Os movimentos contra a opressão de gênero, raça, etnia e opção sexual;
- Poder Popular e a democratização da economia;
- Conflito entre a ampliação da Democracia e o Capitalismo;
- Integração Regional e a unidade dos povos na América Latina.

Gostaríamos de ressaltar que os artigos que constam nos anais são apenas aqueles
que foram aprovados e apresentados no I SIPPAL. Por conta disso, embora tenham
sido enviados artigos para todos os onze eixos, alguns eixos não possuem artigos
nos anais porque não cumpriram estes critérios. Ao todo, temos 46 artigos
reproduzidos nestes anais, vindos de 8 diferentes paises.

Comissão Científica do I SIPPAL


Layssa Maia, Felipe Addor, Marina Freire e Dennis Rodrigues Martins

2
Comissão Organizadora do I SIPPAL
Adriene dos Santos Sá – Escola de Marcelo Durão – Movimento dos
Serviço Social - CFCH/UFRJ Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST
Beatriz Bissio – Diálogos do Sul e Marcos Botelho – Escola de Serviço
NIEAAS - DCP/IFCS/UFRJ Social - CFCH/UFRJ
Dennis Rodrigues – SOLTEC/NIDES Mariana Bruce – Núcleo de Estudos
Contemporâneos – NEC/UFF
Felipe Addor – Núcleo Interdisciplinar
para o Desenvolvimento Social- Milson Betancourt – Laboratório de
NIDES/UFRJ Estudos de Movimentos Sociais e
Territorialidades – LEMTO/UFF
Gláucia Lelis – Escola de Serviço
Social - CFCH/UFRJ Miriam Gontijo – UNIRIO
Humberto Santos Palmeira – Mónica Bruckman – Departamento
Movimento dos Pequenos de Ciência Política - DCP/IFCS/UFRJ
Agricultores/MPA
Rafael P.de Araújo – Grupo de
Layssa Maia – SOLTEC/NIDES Estudos do Tempo Presente
(GET/UFS); UNILASALLE e UFRRJ
Leile Silvia – Escola de Serviço Social
- CFCH/UFRJ Stefano Motta – Escola de Serviço
Social - CFCH/UFRJ
Lilian Luiz Barbosa – CASS JPN e
SOLTEC/UFRJ Valmíria Guida – Casa da América
Latina
Maria Angélica Paixão – Movimento
Universidade Popular

Avaliadores do I SIPPAL
Alan Tygel – UFRJ Dario Azzellini – Universidade
Johannes Kepler/Austria
Ana Claudia Teixeira – UNICAMP
Felipe Addor – UFRJ
Anabel Ribeiro – Universidade da
República/Uruguai Flávio Chedid – UFRJ

Andres Ruggeri – Universidad de Francilene Cardoso – UFRJ


Buenos Aires/Argentina
Gláucia Lelis Alves – UFRJ
Breno Bringel – UERJ
Henrique Novaes – UNESP
Carlos Addor – UFF
Ingrid Sarti – UFRJ
Cesar Peréz – University of South
Jesus Garcia – Cuba
California
José Antonio Moroni – Instituto de
Claudio Nascimento – Rede de
Estudos Socioeconômicos
Educação Cidadã
Kátia Marro – UFF

3
Laura Tavares – UFRJ Norberto Ferreiras – UFF
Leile Teixeira – UFRJ Omar Uran – Universidad de
Antioquia/Colômbia
Luciana Tatagiba – UNICAMP
Pavel López Flores – Universidade de
Luciano Fedozzi – UFRGS
Milão/Itália
Marcelo Durão – MST
Pedro Cunca – UFRJ
Marcos Botelho – UFRJ
Rafael Enciso – Venezuela
Mariana Bruce – UFF
Rafael Araújo – FGV
Mário Villalva – UNILA
Renato Dagnino – UNICAMP
Michel Thiollent – UNIGRANRIO
Rolan Denis – Universidad
Miguel Mazzeo – Argentina Bolivariana/Venezuela

Mila Ivanovic – Venezuela Rosina Pérez – UFRJ


Milson Betancourt – UFF Silvio Caccia Bava – Instituto Polis
Míriam Gontijo – UNIRIO Vanessa Sígolo – USP

4
Sumário
Eixo 1 O Poder Popular nas Ruas: a luta dos Movimentos Sociais .. 9
Cidadania e direito à cidade no contexto dos megaeventos esportivos no
Brasil: uma análise preliminar sobre a atuação do comitê popular da copa e
das olimpíadas do Rio de Janeiro ...................................................................... 10
Enzo Bello; Ana Beatriz O. Reis; Bernardo Xavier; Juliana P. Mulatinho; Kelly R. F.
de Souza; Laíze Gabriela B. Pinheiro e Marcela Münch de O. e Silva
Manifestações Sociais e Repressão Policial: Uma breve análise sobre os
acontecimentos durante a organização e realização dos megaeventos no
Brasil e a instauração de um "Estado de Exceção" .......................................... 24
Alana C. C. Santiago e Camila de A. S. Silva
Novas Compreensões das Jornadas de Junho: Formas alternativas de ação
política e crítica ao “espontaneísmo” das manifestações multitudinárias ..... 37
Gustavo F. de C. Dias
O sindicalismo brasileiro sente as correntes que o prendem.......................... 52
Valéria L. Peçanha
Os sentidos da indignação social no Brasil ...................................................... 62
Thiago B. Peres e Renata B. Lacerda
Repertórios de Ação Coletiva: Os dilemas em torno da utilização dos
protestos como forma de luta do movimento de moradia da cidade de São
Paulo...................................................................................................................... 77
Aldrey C. Iscaro
Resistencias Ciudadanas: Una la lucha por el reconocimiento de derechos: el
caso del desplazamiento forzado ....................................................................... 93
John Mario Muñoz Lopera
Violência institucional contra os movimentos sociais no Brasil ................... 112
Judite Rodrigues dos Santos e Íris Monteiro dos Santos

Eixo 2 Estado e Poder Popular: Reformas e Participação ............. 129


A Estruturação da Reforma Psiquiátrica Brasileira como um Movimento
Social ................................................................................................................... 130
Raquel S. Barretto
A Política Nacional de Participação Popular e o Controle Social: um Decreto
contra a Lei ......................................................................................................... 139
Gláucia M. Amaral, Sônia N. Leitão
Alienação, crise do capital e os desafios na luta pela emancipação humana...153
George F. Ceolin
Conferência Estadual da Mulher no Mato Grosso do Sul: uma construção
democrática? ...................................................................................................... 168
Fabiane Medina da Cruz
Educação Popular e Estado: contribuições para uma nova democracia...... 189
Betânia dos S. Cordeiro
5
Em busca do tesouro perdido da democracia: participação, justiça e poder
popular ................................................................................................................ 205
David J. S. Silva
Gramsci e as massas populares: uma leitura apartir do Caderno 11 (1932-
1933) .................................................................................................................... 225
Sérgio M. Turcatto
Novo Constitucionalismo Latino-Americano: O Estado Moderno em
contextos pluralistas.......................................................................................... 246
Gabriel Barbosa Gomes de Oliveira Filho
O fórum regional das Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde do
Estado do Rio de Janeiro: uma experiência exitosa de fortalecimento dos
princípios de controle e participação social .................................................... 263
Camila R. Estrela; Evelyn S. da Silva; Luana da S. Pimentel; Márcia L. Silva e
Quele C. G.Picoli
Participação e direitos humanos no Brasil: Análises da 11ª Conferência
Nacional de Direitos Humanos .......................................................................... 276
María Julia Giménez
Redes de convivência e desenvolvimento regional no Nordeste brasileiro 295
Lalitá Kraus e Tamara Egler
Revolución Bolivariana y Poder Popular en Venezuela: Avances y
contradicciones en lucha por la construcción del nuevo Estado Comunal y el
Socialismo .......................................................................................................... 307
Rafael Enciso

Eixo 3 Poder Comunitário, Movimentos Indígenas e


Afrodescendentes ......................................................................... 322
A Re-Existência dos movimentos indígenas na Bolívia ................................. 323
Bruna Cardoso
Análisis del discurso de la comandante Esther: Expresión de la lucha de la
mujer zapatista frente la hegemonía patriarcal ............................................... 335
Maria Ignacia Ibarra
Movimentos societais na gestação de novos mundos: um ensaio sobre a
forma comuna..................................................................................................... 346
Tiago C. Fernandes
Favela, território e núcleos de resistência e seu papel na construção do
poder popular. .................................................................................................... 363
Timo Bartholl

Eixo 4 O papel das Universidades no fortalecimento do Poder


Popular ........................................................................................... 382
Apropriação da Universidade pelo processo de luta do MST ........................ 383
Carmen Verônica dos Santos Castro

6
Aproximações sobre o papel da Universidade Pública na
contemporaneidade: o projeto político-pedagógico da Universidade Federal
do Paraná – Setor Litoral ................................................................................... 400
Adriana Lucinda de Oliveira e Luiz Alberto Esteves
Em defesa de uma política de extensão universitária pautada pela educação
popular - a experiência da PROEX-UNIFESP/BRASIL – prática, articulação e
participação direta... .......................................................................................... 419
Edson B. Da Rocha; Raiane P. S. Assumpção e Stéfane C. Fernandes
Novas epistemes, velhos desafios: universidades populares na América
Latina contemporânea. Os casos de MST e Madres de Plaza de Mayo [Escola
Nacional Florestan Fernandes e Universidad Popular Madres de Plaza de
Mayo] ................................................................................................................... 433
Eduardo Rebuá

Eixo 5 Movimentos Sociais no contexto de governos progressistas453


O apassivamento da classe trabalhadora via políticas públicas no curso de
uma década de governos petistas .................................................................... 454
Márcia P. S. Cassin
O MST nos anos 2000 e a contenção das lutas sociais: do antineoliberalismo
ao neodesenvolvimentismo .............................................................................. 472
Ana Elisa C. Corrêa

Eixo 6 Comunicação e a construção do poder popular ............... 490


A Voz dos Invisíveis: atividades de leitura da palavra potencializando novas
leituras de mundo .............................................................................................. 491
Francis P. C.Duarte
Contra-hegemonia: desvelando a ideologia do jornalismo informativo ....... 505
Cátia Guimarães
Mobilizações Sociais e seus impactos sobre o espaço urbano: Um caso na
Ribeira, RJ.......................................................................................................... .518
Daniel S de Sousa e Ulisses Fernandes
Movimento em Rede – Uma proposta de inclusão digital para a ação social
emancipadora ..................................................................................................... 531
Rubens Ahyrton Ragone Martins
Novas estratégias para uma comunicação popular e comunitária ................ 552
Camille C. P. Pereira

Eixo 8 Os movimentos contra a opressão de gênero, raça, etnia e


orientação sexual........................................................................... 566
'Marcha das Vadias' y Mujeres em el escenário politico ................................ 567
Camila R. Firmino e Gabriela V. Iglesias
Parada do Orgulho LGBT - Rio: um desfile-mobilização e suas estratégias de
transformação .................................................................................................... 582
Gisele S. Paris

7
Eixo 9 Poder Popular e a democratização da economia .............. 606
Empresas Recuperadas por Trabalhadores: o que a luta pelo trabalho
autogestionado tem a contribuir com o decrescimento ................................. 607
Raffaele E. Calandro
O Movimento das Comunidades Populares e a luta pelo Poder Popular...... 618
Mariana Affonso Penna

Eixo 10 Conflito entre a ampliação da Democracia e o Capitalismo636


A Estratégia Democrática e Popular e um inventário da Esquerda
Revolucionária: Socialismo ou Democracia? .................................................. 637
Caio Martins; Fernando Correa Prado; Isabel Mansur Figueiredo; Stefanno Motta e
Victor Neves de Souza
Algunos debates conceptuales sobre democracia, socialismo y hegemonía663
Alejandro Casas
Direitos humanos e desenvolvimento social: a democracia é viável dentro do
contexto capitalista? .......................................................................................... 680
Urá L. Martins
El poder político de las Finanzas: crisis democrática y social ...................... 694
Luis Enrique Casais Padilla
Estado, Elites e Capitalismo: o imbricamento da dominação de classe com
outras formas de subalternização social ......................................................... 710
David J. S. Silva
Sociedade capitalista contemporânea: a negação da consciência de classe e
os rebatimentos na luta de classes .................................................................. 733
Lívia N. Ávila

8
EIXO 1
O Poder Popular nas
Ruas: a luta dos
Movimentos Sociais

9
Cidadania e direito à cidade no contexto dos megaeventos esportivos no
Brasil: uma análise preliminar sobre a atuação do comitê popular da copa e
das olimpíadas do Rio de Janeiro

O Poder Popular nas Ruas: a luta dos Movimentos Sociais

Enzo Bello1, Ana Beatriz O. Reis2, Bernardo Xavier3, Juliana P. Mulatinho4, Kelly R. F. de
Souza5, Laíze Gabriela B. Pinheiro6, Marcela Münch de O. e Silva7

Universidade Federal Fluminense – UFF – Niterói-RJ – enzobello@gmail.com


1
2
Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense – UFF – Niterói-RJ – reis.aboliveira@gmail.com
3
Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense – PPGDC/UFF – Niterói-RJ – bernardo.xavier@gmail.com
4
Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense – PPGDC/UFF – Niterói-RJ – julianamulatinho@yahoo.com.br
5
Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense – PPGDC/UFF – Niterói-RJ - kellyfelix_uff@hotmail.com
6
Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense – PPGDC/UFF – Niterói-RJ – ize.benevides@gmail.com
7
Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal
Fluminense – PPGDC/UFF – Niterói-RJ - marcelamunch@gmail.com

Resumo
Este trabalho objetiva sistematizar os primeiros elementos da construção de um projeto de
pesquisa a ser norteado pela seguinte indagação: quais os efeitos práticos da reforma urbana
em curso na cidade do Rio de Janeiro, no contexto dos megaeventos esportivos internacionais,
em termos de respeito ou violação aos direitos fundamentais dos cidadãos cariocas?
Inicialmente, tem-se como objeto de análise o processo de formação e atuação do Comitê
Popular Rio Copa e Olimpíadas, que desponta como referência por catalisar práticas e
discursos de cidadania na resistência às intervenções do Estado e do capital na estrutura da
cidade. Adota-se a metodologia da pesquisa interdisciplinar com orientação epistemológica na
teoria crítica, congregando teoria e práxis, através da conjunção dos marcos teórico-
metodológicos do materialismo histórico e dialético e do pensamento descolonial. As
principais categorias teóricas são as de “direito à cidade”, “reforma urbana”, “cidade de
exceção” e “descolonialismo”. Adotam-se os raciocínios indutivo e dedutivo, numa
abordagem jurídico-sociológica pelos modos de pesquisa qualitativa e quantitativa, o que
envolve as técnicas de pesquisas de revisão bibliográfica, análise documental e observação
não participante.
Palavras-chave: Cidadania; Direito à cidade; Reforma urbana; Megaeventos;
Descolonialismo.

1 Introdução
Este trabalho apresenta uma sistematização dos primeiros passos da construção gradual de um
amplo projeto de pesquisa inserido no campo das práticas de cidadania envolvendo direitos no
contexto dos megaeventos esportivos internacionais no Brasil. Sua realização ocorre no
âmbito do Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Constitucionalismo Latino-
10
Americano (LEICLA), do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da
Universidade Federal Fluminense, que congrega professores doutores e mestres, mestrandos,
graduados e graduandos.
A partir da confirmação do recebimento de uma série de megaeventos esportivos
internacionais pelo Brasil (Jogos Mundiais Militares em 2011, Copa das Confederações da
FIFA em 2013, Copa do Mundo de Futebol da FIFA em 2014, Jogos Olímpicos e
Paraolímpicos em 2016), delineou-se uma nova conjuntura no país, especialmente na cidade
do Rio de Janeiro.
Trata-se de um contexto de profundas transformações na sociedade, manejadas por
instituições públicas e privadas, realizadas a partir de intervenções juridicamente respaldadas
nas estruturas físicas, geográficas e sociais da cidade. Caracteriza-se uma reforma urbana
similar à do início do século XX, ao imprimir à cidade um perfil privatista que segrega
espacialmente a população em razão de fatores como classe social, trabalho, renda e etnia,
através de práticas como a gentrificação e a higienização social.
Sob o manto dos discursos de modernização e revitalização de certas áreas da cidade e da sua
adequação às exigências dos cadernos de encargos das entidades esportivas internacionais
(FIFA e COI), os governos federal, estadual e municipal têm elaborado e implementado
políticas públicas em algumas searas centrais: segurança, mobilidade e construção civil.
A problemática geral de pesquisa elaborada neste momento incipiente pode ser condensada
nas seguintes indagações: Quais os efeitos práticos da reforma urbana em curso na cidade do
Rio de Janeiro em termos de respeito ou violação aos direitos fundamentais dos cidadãos
cariocas? Quem são os principais sujeitos políticos atuantes no âmbito da sociedade civil,
como se dão suas práticas e quais suas pautas em termos de direitos?
A hipótese inicial e provisória de pesquisa denota que (i) em meio às diversas modificações
que têm sido realizadas em termos de obras urbanas, verifica-se uma tônica de violação aos
direitos fundamentais de milhares de cidadãos cariocas, notadamente os direitos à moradia e à
liberdade de locomoção e expressão, nos processos de remoções forçadas e de patrulhamento
policial ostensivo em comunidades carentes; e (ii) nesse ambiente, identificam-se diversos
grupos políticos com uma atuação política voltada para a resistência popular às práticas do
poder público consideradas abusivas: partidos políticos de oposição, sindicatos, movimentos
sociais, órgãos de imprensa alternativos e coletivos. Alguns são sujeitos coletivos tradicionais
e outros têm se constituído recentemente, a partir do delineamento do contexto em questão,
adotando práticas comuns de resistência como protestos e debates, nos quais possuem
centralidade temas como o direito à cidade, o direito à moradia e o direito à liberdade.
Em um primeiro momento, propõe-se a realização de uma pesquisa exploratória junto ao
Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, que desponta como referência
em termos de catalisador de práticas e discursos de cidadania na resistência às intervenções do
Estado e do capital na estrutura da cidade. O objetivo é obter conhecimento acerca do que
consiste e de como funciona o Comitê, de modo a reunir elementos que permitam identificar
na realidade social as principais questões presentes nas relações entre práticas de cidadania
relativas a direitos e às intervenções estatais da reforma urbana realizada no contexto dos
megaeventos.
Em matéria de resultados, almeja-se com este artigo mapear os objetos real e teórico
inicialmente propostos e verificar a viabilidade do seu estudo para que, posteriormente, seja
definida uma pauta definitiva de pesquisas. Portanto, a presente proposta de pesquisa
justifica-se em razão da atualidade do tema e da relevância da sua repercussão na vida
cotidiana de milhões de pessoas. Ademais, tradicionalmente carente de pesquisas com perfil
interdisciplinar, a área de direito parece não estar produzindo muitas pesquisas a respeito
desse objeto.

11
Em razão da natureza e das características do objeto, a metodologia adotada é a da pesquisa
interdisciplinar com orientação epistemológica calcada na teoria crítica, congregando teoria e
práxis, através da conjunção dos marcos teórico-metodológicos do materialismo histórico e
dialético e do pensamento descolonial.
As principais categorias teóricas utilizadas neste momento da pesquisa são as seguintes: (i)
direito à cidade (David Harvey); (iii) reforma urbana e cidade de exceção (Carlos Vainer); e
(iii) descolonialismo (Walter Mignolo, Aníbal Quijano).
Em termos de estratégias e técnicas de pesquisa, adotam-se os raciocínios indutivo e dedutivo,
para a promoção de uma abordagem jurídico-sociológica que conjugará os modos de pesquisa
qualitativa e quantitativa. Inicialmente, será realizada uma pesquisa exploratória para uma
primeira aproximação com o objeto real (identificação de atores, práticas, e discursos), que
oferecerá acesso a dados que permitirão que se realizem pesquisas bibliográfica e documental.
Essa aproximação será efetuada através de pesquisa empírica por meio de observação não
participante e de entrevistas.
Consequentemente, as fontes de pesquisa primárias serão os documentos e relatórios de
observações e entrevistas colhidos perante o Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do
Rio de Janeiro, e as fontes de pesquisa secundárias consistirão em livros, artigos e demais
trabalhos acadêmicos a servirem de instrumental para a obtenção e análise dos dados a serem
coletados na pesquisa empírica.

2 Descrição do objeto: os megaeventos esportivos na cidade do Rio de Janeiro e o Comitê


Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro
O Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro nasceu a partir de articulações
oriundas do Fórum Social Urbano, que ocorreu na Cidade do Rio de Janeiro no ano de 2010,
como um ato de resistência e crítica ao V Fórum Urbano Mundial (FUM), realizado pela
Organização das Nações Unidas no mesmo ano. O Fórum Social Urbano ocorreu num
contexto segundo o qual o uso dos espaços da cidade é orientado pelo desenvolvimento
econômico e social hegemônicos, passando as políticas urbanas a serem determinadas pelos
interesses de grupos empresariais transnacionais, tendo como consequência o aumento das
desigualdades sociais e da vulnerabilidade de grupos minoritários, além da criminalização de
movimentos populares de resistência.
Tal conjuntura agravou-se pelas políticas urbanas de construção de um modelo de cidade para
atender interesses voltados para a organização de Megaeventos Esportivos, quais sejam: Jogos
Mundiais Militares em 2011, Copa das Confederações da FIFA em 2013, Copa do Mundo de
Futebol da FIFA em 2014 e Jogos Olímpicos e Paraolímpicos em 2016.
Nesse contexto, o Fórum Social Urbano buscou a construção de um espaço de livre e ampla
manifestação e debate, com o objetivo de construir uma nova perspectiva de cidade:
democrática, igualitária e comprometida com a justiça social, em contraponto à lógica da
cidade-empresa, marca dos debates ocorridos no âmbito do FUM.
Assim, foram criados os Comitês Populares da Copa e a Articulação Nacional dos Comitês
Populares da Copa (ANCOP). Tais Comitês são compostos por movimentos sociais diversos,
organizações não governamentais, instituições acadêmicas, lideranças populares e demais
atingidos pelas ações estatais, cujo âmbito de atuação é a resistência à construção de uma
cidade de exceção e aos impactos dos megaventos no espaço urbano em seus diversos
aspectos: moradia (remoções), trabalho (informalidade-camelôs), mobilidade urbana,
ambiente, segurança pública, entre outros.
No âmbito da pesquisa ora proposta, o objeto de análise escolhido foi, especificamente, o
Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, estabelecido na cidade do Rio
12
de Janeiro, local que concentra a maioria dos referidos megaeventos. As práticas do Comitê
Rio envolvem, com esse intuito, a denúncia das violações de diversos direitos ocorridas com
as reformas urbanas em curso para reordenação da cidade com vistas aos megaeventos. Tais
denúncias ocorrem, principalmente, pela divulgação de dossiês (entre 2012 e 2014, em três
edições), que apontam para práticas relacionadas aos megaeventos esportivos que atentam
contra o direito à moradia, o direito à participação/informação, bem como indicam o
desrespeito à legislação trabalhista e ambiental e o uso de dinheiro público para fins privados.
Além disso, o Comitê Rio pauta suas práticas na resistência a tais violações, o que se dá, por
exemplo, a partir da realização de atos e manifestações criativas como as Copas Populares
organizadas em 2013 e 2014, visitas a comunidades atingidas por remoções, organização de
cursos de formação de lideranças populares e realização de plenárias. A atuação do Comitê
Rio abrange a discussão sobre diversas searas, como segurança pública, mobilidade, meio
ambiente, trabalho e moradia, encontrando nesta última sua principal frente de resistência,
dando visibilidade à pauta política das remoções forçadas. O Comitê vem se destacando junto
a outros movimentos de luta pela moradia na cidade do Rio de Janeiro.
A escolha do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro como objeto de
pesquisa mostra-se, nessa conjuntura, atual e relevante, tendo em vista suas práticas de
resistência criativa em prol do direito à cidade e contra as reformas urbanas excludentes que
encontram respaldo nos megaeventos esportivos.

3 Aspectos metodológicos
Em razão da natureza e das características de seus objetos inicial e projetado, a pesquisa
proposta tem perfil interdisciplinar e visa a conciliar teoria e prática. A complexidade do
processo de reforma urbana em curso na cidade do Rio de Janeiro demanda que sejam
relacionadas aos respectivos fenômenos jurídicos categorias e ferramentas de análises
advindas de outras áreas do conhecimento, notadamente a sociologia, a ciência política e o
urbanismo.
Por ser adequada ao objeto de pesquisa proposto, indica-se como orientação epistemológica
uma conjunção do materialismo histórico e dialético com o pensamento descolonial. Busca-
se, com isso, conciliar a perspectiva crítica que concebe o direito como processo e produto
histórico ínsito à materialidade da vida social com as propostas de originalidade epistêmica
oriundas do pensamento latino-americano.
A partir da premissa epistemológica da “totalidade social” (MARX, 2003, p. 247-248), central
no método do materialismo histórico e dialético, sustenta-se o caráter não histórico das visões
científicas e filosóficas que compreendem o conhecimento de modo compartimentado. Assim
como as relações sociais são produzidas no plano do concreto, também os ramos do
conhecimento e suas categorias teóricas são forjados em meio (e como fruto) de relações de
poder correspondentes aos modos de produção da vida material. Os fenômenos sociais, como
o jurídico, não existem isoladamente, nem são produzidos de forma asséptica as interligações
com a economia, a política, a cultura etc.
Entende-se que a abordagem interdisciplinar de um fenômeno que assume feições típicas na
realidade brasileira deve corresponder a categorias originais, referentes às peculiaridades de
um processo histórico distinto daquele preconizado pelo discurso eurocêntrico da
universalidade. A título exemplificativo, o denominado “novo constitucionalismo latino-
americano” (SANTAMARÍA, 2011; BELLO, 2012) vem incorporando ao campo normativo
demandas e interesses outrora marginalizados na sociedade capitalista, reconhecendo
referenciais epistemológicos de povos ancestrais (“Pachamama”” e “Bien Vivir”) e direitos
fundamentais como o direito à cidade e à gestão democrática das cidades.
De forma mais específica pode-se elencar como categorias teóricas centrais: (i) direito à
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cidade; (ii) reforma urbana e megaeventos; e (iii) descolonialismo. Todos serão estudados de
forma conexa.
Quanto ao aspecto empírico do trabalho, pretende-se realizar uma pesquisa exploratória junto
ao Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, que consistirá não só no
estudo dos documentos já produzidos por ele, mas no acompanhamento de sua atuação
através de uma observação não participante. Esta se dará por meio do acompanhamento pelos
pesquisadores das atividades organizadas pelo Comitê, e, eventualmente, na realização de
entrevistas a seus integrantes.
Teoria e prática se alinharão por meio das reuniões do Laboratório de Estudos
Interdisciplinares em Constitucionalismo Latino-Americano (LEICLA), em que os resultados
parciais obtidos com a pesquisa serão discutidos à luz das categorias epistemológicas
elencadas como norte teórico da pesquisa.

4 Categorias teóricas: direito à cidade, reforma urbana e descolonialismo


Diversas categorias teóricas serão utilizadas ao longo da construção e execução da pesquisa
quando do seu delineamento mais profundo e completo, tais como “cidadania”, “sociedade
civil”, “movimentos sociais”, “coletivos”, “resistência”, “remoções forçadas”, dentre outras.
Todavia, neste momento incipiente, destacam-se as categorias “direito à cidade”, “reforma
urbana”, “cidade de exceção” e “descolonialismo”.
4.1 Direito à cidade
O direito à cidade nasce como um direito coletivo em resposta à intensificação do processo do
processo de urbanização ocorrido no século XX, e é assim compreendido por David Harvey:
A formatação das figuras deve seguir o padrão indicado a baixo. O título da figura deve vir
após a mesma.
O direito à cidade é, portanto, muito mais do que o direito de acesso
individual ou de grupo com os recursos que a cidade incorpora: é um
direito de mudar e reinventar a cidade além do desejo dos nossos
corações. É, além disso, um direito coletivo, em vez de um direito
individual, já que reinventar a cidade inevitavelmente depende do
exercício de um poder coletivo sobre os processos de urbanização. A
liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e as nossas cidades é, eu
quero dizer, um dos mais preciosos e ainda mais negligenciados de
nossos direitos humanos (HARVEY, 2012, p. 4).
Esse direito à cidade é dinâmico assim como as necessidades daqueles que constroem
diariamente a cidade. Sendo assim, “não pode ser concebido apenas como um simples direito
de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como direito à vida
urbana, transformada, renovada” (LEFEBVRE, 1991, p. 116-117).
Relaciona-se diretamente ao direito de participação, sendo o contexto da vida urbana o
ambiente profícuo para o desenvolvimento da cidadania ativa (BELLO, 2013, p. 61 e ss.)
capaz de resistir às reformas urbanas impostas pelo capital, bem como influenciar na
construção de um novo espaço urbano:

(...) o direito de cidade, isto é, o direito à participação nos processos


deliberativos que dizem respeito à cidade e a adoção do universalismo
de procedimentos como padrão de deliberação da coletividade urbana
sobre seus destinos; por outro lado, a questão distributiva traduzida na
quebra do controle excludente do acesso à riqueza, à renda e às
14
oportunidades geradas no (e pelo) uso e ocupação do solo urbano,
assegurando a todos o direito à cidade como riqueza social em
contraposição a sua mercantilização (SANTOS JÚNIOR; RIBEIRO,
2011, p. 13).
A configuração do espaço urbano é uma “instância ativa para a dominação econômica”
(MARICATO, 2002, p. 168) no sistema de produção capitalista, sendo que essa configuração
se realiza de maneira a atender os interesses do mercado em obter maior lucro reduzindo, cada
vez mais, os custos com a circulação de mercadoria.
Como consequência da necessidade de maior acúmulo, o espaço urbano estará sempre em
transformação para atingir aos objetivos do capital. Diante de uma crise, por exemplo, o
sistema irá impor uma nova readaptação do espaço urbano a fim de que se criem novas
oportunidades de geração de riquezas. Como ressaltado por Harvey:

(...) o desenvolvimento capitalista precisa superar o delicado


equilíbrio entre preservar o valor dos investimentos passados de
capital na construção do ambiente e destruir esses investimentos para
abrir espaço novo para a acumulação” (HARVEY, 2006, p. 54).
Nesse contexto, as cidades são pensadas e planejadas para priorizar o enriquecimento dos
detentores dos meios de produção em detrimento do direito daqueles que estão à margem do
processo produtivo da sociedade capitalista. As intervenções urbanísticas promovidas pelo
Estado e pela iniciativa privada são realizadas, recorrentemente, com o objetivo de criar novos
espaços que atendam a lógica do capital.
No processo de reorganização do espaço urbano, que acontece cotidianamente, o direito à
cidade é negligenciado a milhares de pessoas que, embora construam o espaço urbano, têm
sua circulação nele cada vez mais restringida. A segregação entre aqueles que podem pagar
pelo acesso à cidade e aqueles que não têm condições de desfrutar dos bônus da urbanização é
intensificada com a difusão do modelo de “planejamento estratégico” que tem como um de
seus pilares a promoção do marketing urbano pelo qual se promove a cidade pensada
enquanto uma mercadoria de luxo, cujo acesso é restrito a poucos (VAINER, 2002).
Aproximando-se do pano de fundo deste trabalho, os megaeventos como a Copa do Mundo de
Futebol da FIFA em 2014 e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos em 2016 apresentam-se
como grandes operações de rearranjo urbanístico em curso na cidade do Rio de Janeiro que
buscam, prioritariamente, atender aos interesses privados daqueles que lucram diretamente
com a realização desses eventos.
Como consequência tem-se, a violação do direito à moradia, por exemplo, que é um
fenômeno que atinge milhares de pessoas. Muitas famílias são removidas de suas habitações,
muitas vezes com intervenção policial, e ficam sem alternativa de moradia digna. Essas
remoções atingem prioritariamente a população de baixa renda e que não tem alternativa de
consolidar sua moradia em outro lugar:
Todos os dias, em todo o mundo, pessoas são removidas de suas casas
em função de processos de renovação urbana, implantação de
infraestrutura e mesmo de reconstrução pós-desastres naturais, sem
que alternativas de moradia digna sejam oferecidas. (ROLNIK, 2014)
Nesse sentido, a pesquisa pretende verificar justamente as práticas de resistência a tais
violações decorrentes da reforma urbana em curso no Rio de Janeiro, através da observação, a
priori, da atuação do Comitê Popular Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, que vem
despontando como ator político importante no tocante ao exercício do direito à cidade por

15
meio da mobilização política e da construção de uma cidadania participativa no espaço
urbano.

4.2 Reforma Urbana e Cidade de Exceção


No dia 03 de agosto de 2007, data em que o Brasil foi anunciado como sede da Copa do
Mundo de Futebol da FIFA de 2014, grande parte de sua população comemorou. Para além da
identificação cultural do brasileiro com o futebol, o megaevento foi ventilado pelos dirigentes
políticos brasileiros como a oportunidade de se realizar grandes obras que, após a Copa,
representariam um grande legado para a população. Mais tarde, em 02 de outubro de 2009,
com a eleição da cidade do Rio de Janeiro para sede dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de
Verão em 2016, os mesmos argumentos foram incansavelmente repetidos. No entanto, o
discurso da revitalização urbana mostrou-se falacioso e deixou oculto o lado perverso do
anunciado legado: desrespeito ao direito à moradia, à cidade, corrupção, desvio de dinheiro
público, enfim, todo um inesgotável complexo de arbitrariedades.
Desde a sua concepção, a realização da Copa do Mundo no Brasil e a sua consequente
reforma urbana não foi um projeto democrático. Essa afirmação pode ser ilustrada já na
gênese do processo da candidatura brasileira: o decreto presidencial1 sem numeração,
publicado em 06 de novembro de 2006, que criou o grupo de trabalho para elaboração de
projeto de políticas públicas de competência do governo federal, visando à candidatura do
Brasil como sede da Copa do Mundo de Futebol de 2014, não previa a participação direta da
sociedade civil. Da mesma forma, o plano olímpico do Rio de Janeiro foi unilateralmente
imposto pelo poder estatal (VAINER, 2011).
Historicamente, a demanda por reforma urbana no país, no contexto desenvolvido nas décadas
de 80 e 90, foi constituída por três eixos: “o reconhecimento dos direitos dos posseiros, a luta
contra a 'especulação imobiliária’ e a democratização do processo decisório sobre as políticas
urbanas”. 2 No polo oposto, o advento de um projeto neoliberal de política urbana que buscava
alinhar o país às necessidades do capital globalizado acabou por gerar uma série de
ambiguidades e contradições nesse processo (ROLNIK, 2012). Essas ambiguidades podem
ser vislumbradas no Estatuto das Cidades que, se por um lado veicula conquistas no campo da
legalidade e do direito à cidade, também consagra institutos tipicamente neoliberais, como a
operação urbana prevista em seu artigo 32, que permite a suspensão da vigência de
determinadas leis e usos de ocupação do solo e, ainda, a legalização de infrações a essas
legislações cometidas no passado (VAINER, 2014).
Já a reforma urbana carioca atualmente empreendida encontra suas raízes em 1993, quando o
poder municipal do Rio de Janeiro, inspirado no modelo de Barcelona, criou o primeiro Plano
Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, claramente atrelado às teses desenvolvimentistas
neoliberais (VAINER, 2011). Esse plano permitiu a consagração do modelo de cidade
empresa incluindo a noção de flexibilidade vinculada à ideia de expansão urbana espontânea
(VAINER, 2011). Importa aqui ressaltar a influência catalã, uma vez que, somente a partir das
Olimpíadas de 1992, realizadas em Barcelona, a promoção dos Jogos Olímpicos passa a
motivar uma modernização da infraestrutura da cidade sede (ROLNIK, 2009). A partir daí
forma-se o cenário ideal para a realização de uma transformação urbana que vem a
implementar um novo conceito de cidade.

1
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Dnn/Dnn11042.htm. Acesso em
18/06/2014.
2
ROLNIK, Raquel. “Megaeventos esportivos e cidades: impactos, violações e legados” In: Revista coletiva,
Recife, n.º 8, 2012. Disponível em:
http://www.coletiva.org/site/index.php?option=com_k2&view=item&layout=item&id=95&Itemid=76&idrev=11
. Acesso em 18/06/2014.

16
A reforma urbana carioca, longe de representar a transformação democraticamente oriunda de
demandas sociais, encarna uma modificação urbana radical promovida como estratégia de
atração de investimentos e reposicionamento das cidades através de sua renovação
urbanística. É nesse contexto que o Comitê Popular da Copa e Olímpiadas do Rio de Janeiro
têm empreendido suas atividades, buscando denunciar as arbitrariedades empreendidas e
apoiar os cidadãos lesados.
São muitas as transformações em curso para a realização da Copa e das Olimpíadas na cidade
do Rio de Janeiro. A título ilustrativo, pode-se indicar a reforma do complexo esportivo do
Maracanã, o projeto “Porto Maravilha”, a política de enfrentamento da segurança pública
simbolizada pelas Unidades de Polícia Pacificadoras (UPP´s), e as obras dos BRT´s (“bus
rapid transit”) das vias conhecidas como Transolímpica, Transcarioca e Transoeste.
Aqui, indica-se a informação trazida pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de
Janeiro (2014) pela qual se verifica que as empresas Odebrecht, Camargo Correa, OAS e
Andrade Gutierrez dominam as vinte maiores obras. Tais fatos serão estudados na forma da
denúncia de David Harvey (2013) que entende a realização de megaeventos como forma de
atender a interesses imobiliários, viabilizando a apropriação de territórios que os investidores
não possuiriam legitimidade para obter de outra forma.
A reforma urbana carioca será, então, estudada nos diversos eixos temáticos abrangidos pela
atividade do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro: ofensa ao direito à
moradia, fruto dos inúmeros deslocamentos forçados, ofensa ao princípio da participação,
oriunda da ausência de canais efetivos que permitam a influência popular direta, e a
criminalização da população pobre no contexto das ações das UPP´s.
Será adotada a perspectiva do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, pela
qual a reforma urbana é responsável pelo deslocamento forçado de milhares de famílias,
atingindo frontalmente seu direito à moradia e seu direito à cidade. Além disso, a ausência de
participação popular na definição do planejamento da transformação urbana denota a falta de
compromisso do poder público em realizar uma reforma que atenda as necessidades reais da
população. Nas palavras de Vainer, trata-se da:
(...) transformação da cidade em uma cidade voltada para a exportação
e não para os seus citadinos, é parte deste processo. Nesse ínterim,
fica o estímulo estatal à despolitização da cidade, uma vez que o poder
público age de acordo com a ideia segundo a qual “uma operação
urbana não se discute com o público.3
Percebe-se, então, que a reforma urbana oportunizou a consagração de um modelo no qual a
cidade se converte de espaço público em espaço privado, revelando uma cidade-empresa que
é, essencialmente, inimiga do exercício democrático da cidadania (VAINER, 2011). A partir
daí, evidencia-se que a reforma urbana é produtora de uma verdadeira cidade de exceção, na
qual:
Não obstante o funcionamento (formal) dos mecanismos e instituições
típicas da república democrática representativa, os aparatos
institucionais formais progressivamente abdicam de parcela de suas
atribuições e poderes. A lei torna-se passível de desrespeito legal e
parcelas crescentes de funções públicas do estado são transferidas a
agências “livres de burocracia e controle político” (VAINER, 2011, p.
10).

3
VAINER, Carlos. Cidade de Exceção: reflexões a partir do Rio de Janeiro. Disponível em:
http://br.boell.org/sites/default/files/downloads/carlos_vainer_ippur_cidade_de_excecao_reflexoes_a_partir_do_r
io_de_janeiro.pdf. Acesso em 19.06.2014
17
Nessa perspectiva, a pesquisa ora proposta pretende verificar a realização da reforma urbana
carioca tendo em vista a fragilização da própria democracia urbana, expressão da democracia
social e política (VAINER, 2014). As citações devem estar de acordo com as normas da
ABNT. Exemplo: De acordo com Fulano (1997), citar corretamente a literatura é muito
importante. Na verdade, citar trechos de trabalhos de outros autores, sem referenciar
adequadamente, pode ser enquadrado como plágio (BELTRANO, 2002).
4.3 Descolonialismo
A pesquisa será guiada ainda sob o marco teórico do descolonialismo, com o objetivo de
articular categorias importantes como a colonialidade do poder, a diferença colonial e a
desobediência epistêmica com o cenário urbano que caracteriza a cidade do Rio de Janeiro
nos últimos anos como uma cidade de exceção, e os movimentos de resistência a esse modelo
de desenvolvimento excludente.
O conceito de colonialidade, cunhado por Aníbal Quijano (2000), aparece como a outra face
(ocultada) de uma modernidade que, segundo o discurso dominante, fora o resultado de uma
trajetória emancipatória, marcada por eventos intraeuropeus, que culminara na formação de
um ser humano superior, porque dotado de uma razão evoluída.
Quijano vale-se da noção de modernidade como fenômeno associado ao surgimento de um
sistema-mundo no século XVI, com a expansão marítima, notadamente o “descobrimento da
América Hispânica”, que, ao contrário dos sistemas sociais anteriores, tem sua unidade
definida não político ou juridicamente, mas pelo aspecto econômico (WALLERSTEIN, 2007),
acrescentando a esta análise os conceitos de colonialidade e diferença colonial.
Alinhado de forma indissociável ao surgimento deste sistema-mundo, que se pode desde já
nomear de sistema capitalista, está a formação de um inédito centro da História Mundial,
ocupado pela Europa Latina e uma periferia constituída ao seu redor pela cultura dos povos
não europeus.
Dessa dicotomia Centro/Periferia derivaram outras de fundamental importância: homem
civilizado/bárbaro; homem branco/índios-negros, cuja função foi determinar uma distinção
entre conquistador e conquistado que justificasse a dominação do primeiro sobre o segundo e
a ocupação de papéis distintos por cada um num sistema global de divisão do trabalho.
Geograficamente, a periferia teria um papel já demarcado enquanto parte do mundo a ser
explorada; da mesma forma, índios e negros (classificados enquanto tais a partir do contato
com uma cultura externa – europeia) estariam naturalmente designados para o trabalho
forçado.
Para o autor, portanto, a divisão social do trabalho e a criação de identidades forjadas numa
distinção de raça associaram-se, de forma estrutural, permitindo a criação e manutenção de
uma relação de poder, que se mantém até a atualidade através da colonialidade do poder e da
diferença colonial.
Ao intitular-se Centro, afirmando sua cultura como superior, e o padrão de homem branco e
burguês, como o padrão do homem racional, a Europa ocidental assumiu um discurso
civilizatório que ensejaria e justificaria, mais tarde, sob o ponto de vista teórico, a dominação
e o massacre dos povos nativos dos territórios por ela ocupados. A civilização por ela
alcançada a obrigaria a desenvolver os povos primitivos, bárbaros, a impor-lhes sua forma de
pensar e de se relacionar socialmente, ainda que, diante de resistência, com o emprego da
violência. Tratar-se-ia de uma missão civilizatória.
Em suma, o que autores referenciais do descolonialismo querem apresentar como hipótese
essencial é a impossibilidade de se olhar para o fenômeno da modernidade sem vislumbrar a
sua outra face (obscurecida pelo discurso dominante) da colonialidade. Foi a manutenção de
uma relação de poder desigual entre a Europa ocidental e as sociedades/culturas não
18
assimiladas ao modelo eurocêntrico que permitiu, à custa da exploração destas últimas, o
triunfo da primeira como centro de poder mundial.
Trazendo estas categorias para um cenário mais recente, pós Guerra Fria, é possível ver a
globalização como ponto culminante deste processo que começou com a entrada da América
Latina como periferia de um poder mundial capitalista e eurocentrado, que teve e ainda tem
como elementos necessários à manutenção de relações de dominação a distinção de raça
alinhada à divisão social do trabalho.
O que outrora fora justificado por uma missão civilizadora atualmente continua a se justificar
por um discurso de direitos humanos cuja base ainda é restrita e discriminante, ou mesmo por
um discurso desenvolvimentista que pretende apontar os rumos que as periferias devem seguir
para alcançar a posição que hoje certos países ocupam como centrais na economia mundial.
Conforme identificado por Walter Mignolo:
Desenvolvimento foi – como sabemos – na América do Sul e no
Caribe, a palavra-chave da terceira onda dos planos globais do após 2º
Guerra Mundial, quando os EUA tomaram a liderança que era da
Inglaterra e da França, e substituíram a missão de civilização dessas
pela sua própria versão de modernização e desenvolvimento
(MIGNOLO, 2008, p. 293).
Este autor propõe a noção de desobediência epistêmica, numa tentativa de fomentar um
desapego tanto do ponto de vista teórico quanto prático das tradições eurocêntricas que se
colocaram desde sempre como único caminho a ser seguido. Trata-se de um movimento de
saída deste domínio, para que a crítica possa ser feita de fora dele.
De um lado ele estimula a aproximação com formas de pensar não gregas e latinas, que
estariam mais além de uma razão ocidental, e de outro, o que ele chama de um fazer
descolonial, que seriam projetos e práticas descoloniais que se caracterizam pelo não
desenvolvimento, pela valorização e reprodução da vida humana e não sua utilização
instrumental.
Deslocando-se a discussão para o contexto da pesquisa a ser desenvolvida vale retomar a
premissa de que na globalização neoliberal as cidades passam a ter um papel fundamental
para os processos de acumulação de capital.
A inclusão das cidades na política de crescimento econômico vem associada a dois
fenômenos, a redução do papel do Estado no atendimento a demandas urbanísticas e a
ascensão de um urbanismo marcado por mega projetos urbanos que escoam um excedente
financeiro global em busca de novos territórios para sua expansão e reprodução, cujo maior
exemplo, no Rio de Janeiro, é Porto Maravilha – obras de revitalização da zona portuária
(ROLNIK, 2014).
O ápice deste projeto se dá com a realização dos megaeventos esportivos, que não só
funcionam como um álibi para a alocação de recursos em obras de grande porte perante a
sociedade, como abrem caminho para a tomada de decisões importantes relacionadas ao
planejamento urbano num verdadeiro regime de exceção. Veja-se que, no Brasil, para sediar a
Copa de 2014, em todas as esferas de poder (federal, estadual e municipal) foram criados
órgãos especiais com atribuições de governo (VAINER, 2014).
E é justamente a fragilidade da democracia, e a maior vulnerabilidade a pressões externas de
governos de países periféricos como a África do Sul, Brasil, Catar, que explicam a sua escolha
para as Copas do Mundo a partir de 2002. Entidades como FIFA e COI tem maior facilidade
de pressionar estes países no sentido da adoção de medidas que lhe assegurem o lucro certo

19
com a realização dos megaeventos4. As medidas constituem-se em leis excepcionais que
protegem a marca FIFA e de seus patrocinadores, garantindo-lhes verdadeiros monopólios
comerciais em zonas próximas aos estádios, isenções fiscais, além do próprio financiamento
realizado pelas cidades-sede.5
Em contrapartida a essas vantagens, argumenta-se que os megaeventos trazem consigo um
legado positivo de projeção internacional das cidades, e uma convergência de investimentos
vitais para obras de infraestrutura e modernização do espaço urbano, discurso que inclusive
tem muito mais chance de adesão em países que possuem atrasos nessa área.
Todavia, neles é tão ou mais relevante a precariedade em serviços básicos, e a desigualdade e
a segregação espacial que enfrentam, além de não serem reduzidas, são acentuadas com
grandes obras que servem à valorização dos espaços em que são realizadas. De outro lado, as
grandes construções “padrão fifa” que prometem serem símbolos dessa modernização viram
elefantes brancos6 .
O que se infere deste cenário é que novamente a periferia entra enquanto tal num sistema
global, tendo seu papel de zona livre para exploração pelo capital reafirmado. A Copa e as
Olimpíadas são organizadas no Brasil nos exatos termos do interesse de entidades
internacionais como FIFA e COI, e de empreiteiras que, como já dito, nada pretendem além
do lucro através da alavanca da realização de grandes obras.
O resultado, por sua vez, aparece na realização de remoções forçadas em que os moradores
não têm acesso à informação e descobrem que suas casas serão removidas com uma pintura
feita por um funcionário da prefeitura na parede (ROLNIK, 2014), no prejuízo de
trabalhadores informais que são proibidos de fazer concorrência às marcas da FIFA no
perímetro demarcado na Lei Geral da Copa, no aumento da repressão policial às
manifestações de rua7, e, de modo geral, no incremento de um processo de gentrificação
urbana, em especial na cidade do Rio de Janeiro.
É a resistência local ao capitalismo global, que impõe um desenvolvimento que na prática tem
tido o efeito de acirrar as desigualdades urbanas nas cidades brasileiras e reforçar o nosso
papel periférico, negando direitos à maior parte da população, que se pretende estudar no
trabalho.

5 Conclusões: pautas para pesquisas

4
A Copa do Mundo no Brasil deve ser a mais lucrativa para a Fifa em sua história, com a expectativa de um
faturamento de 3,8 bilhões de dólares (R$ 7,6 bilhões), US$ 600 milhões a mais do que a receita gerada na Copa
de 2010 (África do Sul), e quase o triplo da receita da Copa de 2006 (Alemanha), conforme informação
disponível em http://direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2014/02/impactos-economicos-dos-megaeventos-
observatorio-das-metr%C3%B3poles.pdf.
5
A Fifa assumiu a chave dos 12 estádios da Copa do Mundo a partir de 21 de maio, restringiu o acesso somente
a pessoas autorizadas, mas não vem bancando sozinha os gastos em seu período de uso exclusivo. Uma conta de
mais de R$ 1 milhão sobrou para os representantes locais em custos que passam pela manutenção da estrutura e
chegam até a limpeza gera.http://espn.uol.com.br/noticia/421620_fifa-tem-controle-de-estadios-mas-repassa-
conta-de-r-1-mi-com-limpeza-para-governos. Do total de recursos previstos na Copa, R$ 9,8 bilhões são
financiamentos do governo federal para os governos locais (estaduais e municipais) e para a iniciativa privada.
http://direitoamoradia.org/wp-content/uploads/2014/02/impactos-economicos-dos-megaeventos-observatorio-
das-metr%C3%B3poles.pdf
6
Na África do Sul, dos dez estádios construídos, apenas três estão sendo utilizados atualmente – informação
fornecida por Mandla Hector Mndebele, coordenador de programa do ESSET (Serviço para a transformação
sócio-econômica) da África do Sul, no Debate “Copa pra Quem?”, realizado na Câmara Municipal do Rio de
Janeiro, no dia 16 de junho de 2014.
7
Vide o uso ostensivo de armas não letais ou ditas “menos letais” como balas de borracha, bombas de gás
lacrimogêneo, nas manifestações de 2013durante a Copa das Confederações, que chegaram a ferir gravemente
manifestantes e jornalistas que faziam a cobertura dos atos.
20
A proposta de realização de uma pesquisa exploratória junto ao Comitê Popular da Copa e das
Olimpíadas do Rio de Janeiro, que desponta como referência em termos de catalisador de
práticas e discursos de cidadania na resistência às intervenções do Estado e do capital na
estrutura da cidade, denota uma conclusão provisória e parcial, na busca de sintetizar o
contexto de negação de direitos no que se refere ao território da cidade, administrada a partir
da lógica empresarial.
Os megaeventos representam o ápice desta cidade da exceção. As decisões sobre alocação de
recursos e gastos com a Copa de 2014 passaram ao largo da participação da sociedade e dos
próprios mecanismos formais institucionais, sendo marcadas pela realização de obras de
grande vulto – obras viárias, de ampliação de aeroportos, de instalação/reforma de
equipamentos esportivos, e de interesse turístico, como é o caso da Área Portuária. Estas,
além de beneficiarem apenas as empreiteiras encarregadas de sua execução e aqueles
interessados na valorização imobiliária de áreas como Barra da Tijuca, Recreio e Jacarepaguá,
têm sido a grande justificativa para a remoção forçada de mais de 4.000 famílias na cidade do
Rio de Janeiro8.
Portanto, a meta de transformar a cidade do Rio de Janeiro numa vitrine para investidores tem
sido perseguida às custas de milhares de famílias, transferidas para lugares mais distantes do
centro da cidade, com infraestrutura e serviços escassos. Muitas delas possuíam títulos que
demonstram a regularidade de sua posse, que têm sido ignorados pela Prefeitura municipal,
em um claro processo de gentrificação.
Em resistência a esse projeto desenvolvimentista que trata os indivíduos como objetos que
podem ser invisibilizados, escondidos sob uma imagem artificial de cidade sem
desigualdades, os atingidos continuam reivindicando o seu reconhecimento como sujeitos de
direitos. É nessa resistência, por vezes na ação política direta, criativa, que a pesquisa
pretende centrar sua atenção, a partir do acompanhamento da atuação do Comitê Popular da
Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, que vem se construindo como importante ator no
embate com o modelo excludente de cidade.
A pauta que está por detrás dessa resistência é o direito à cidade; não a essa cidade que está
posta, mas a algo a ser construído, na linha de uma prática desobediente, fora dos padrões
desenvolvimentistas, valorizando o humano, recriando suas possibilidades de relação social, o
que reforça a relevância da pesquisa, bem como seu alinhamento teórico com as categorias
apresentadas.

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8
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21
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xoes_a_partir_do_rio_de_janeiro.pdf. Acesso em 18/6/2014.
_____. Rio promove “limpeza urbana” e será mais desigual em 2016. Disponível em:
http://www.viomundo.com.br/denuncias/carlos-vainer-com-pretexto-dos-megaeventos-rio-
promove-limpeza-urbana-e-sera-cidade-mais-desigual-em-2016.html. Acesso em 19/06/2014.
_____. Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento
Estratégico Urbano. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A
cidade do pensamento único: Desmanchando consensos. 3ed. Petrópolis: Editora Vozes,
2002.
WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retórica do poder. São Paulo:
Boitempo, 2007.

23
MANIFESTAÇÕES SOCIAIS E REPRESSÃO POLICIAL: UMA BREVE ANÁLISE
SOBRE OS ACONTECIMENTOS DURANTE A ORGANIZAÇÃO E REALIZAÇÃO
DOS MEGAEVENTOS NO BRASIL E A INSTAURAÇÃO DE UM “ESTADO DE
EXCEÇÃO”

Alana C. C. Santiago¹, Camila de A. S. Silva²

¹Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS, Feira de Santana-BA – lannasantiago@gmail.com


² Universidade Estadual de Feira de Santana-BA- UEFS, Feira de Santana-BA – mila_ba12@hotmail.com

Resumo
O presente trabalho tem por objetivo fazer uma breve análise a respeito dos acontecimentos
sociais durante a organização e realização dos megaeventos no Brasil, dando ênfase ao
tratamento dispensado pelo Poder Público às várias manifestações sociais realizadas nesse
contexto. Examinar-se-á acerca do direito constitucional à manifestação e os limites de
interferência do Poder Público quando do exercício desse direito, enfatizando as recorrentes
arbitrariedades das autoridades policiais no combate a essas manifestações. Para tanto, far-se-
á, inicialmente, um percurso histórico sobre o direito à manifestação, expondo, ao fim, acerca
do tratamento dado a este direito atualmtente, com foco nos períodos de realização dos
megaeventos no Brasil. A partir dos acontecimentos noticiados pelos meios de comunicação,
bem como as atitudes adotadas pelo Poder Público para coibir tais atos, e com fulcro nas
disposições constitucionais sobre o tema, constatou-se a existência de elementos que podem
configurar um “estado de exceção”. São patentes as violações ao direito à manifestação, em
razão de interesses de grupos econômicos.

Palavras-chave: Megaeventos; Direito à Manifestação; Estado de Exceção; Arbitrariedades


no Exercício da Função Policial; Violações de Direitos Humanos.

1 Introdução
Muito se tem noticiado acerca das diversas violações de direitos fundamentais durante a
organização e realização dos megaeventos sediados no Brasil. Um dos abusos patentes neste
contexto consiste na repressão violenta de toda e qualquer manifestação através do poder de
polícia do Estado, traduzida na arbitrariedade com a qual as autoridades policiais vêm
reprimindo os protestos sociais. Dessa forma, vemos: “violência, prisões arbitrárias,
cerceamento ao trabalho de advogados e jornalistas, descumprimento de prazos legais para
alvarás de soltura e até uso de bombas com prazo de validade vencido”9. É uma realidade
onde se constatam abusos gratuitos, prisões políticas, repressão intensa, pelo simples motivo
de estar na rua, espaço público de exercício da cidadania, para manifestar. Em verdade, a
violação de diretos humanos se faz presente em vários momentos durante a organização e
realização de megaeventos. Além do exemplo supracitado, tem-se registrado também:
remoção forçadas de milhares de moradores das suas residências, em razão da preparação das
cidades para sediar os jogos; repressão dos trabalhadores informais no exercício das suas
atividades laborais; precarização do trabalho nas obras destinadas ao evento; a “higienização

9
CHICO (2013). Texto retirado de: http://issuu.com/chicoalencar/docs/representacao_ao_pgr.
24
urbana” ou “faxina social” nas imediações dos locais destinados à realização do evento,
caracterizada pela remoção forçada dos moradores de rua e trabalhadores informais.
Nessa conjuntura, verifica-se uma situação de estado de exceção, de violações aos direitos da
pessoa humana em razão dos interesses daquele que detêm o poder econômico, em contramão
do Estado Democrático de Direito, consagrado na nossa Carta Magna. Pode-se dizer que, essa
realidade é um dos reflexos da política neoliberal, pela qual o Estado prioriza as exigências
das empresas econômicas envolvidas na realização do evento, em detrimento da garantia dos
direitos fundamentais dos seus cidadãos.
O ordenamento jurídico brasileiro prevê a liberdade de reunião pacífica, da qual deriva o
direito à manifestação. Esse pode ser extraído do art. 5º, XVI da Constituição Federal, que
consigna:
“todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público,
independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à
autoridade competente”.
Junto a esse, encontra-se o direito à liberdade de expressão, disposto no art. 5º, IX, da mesma
Carta, “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença”. Tais previsões têm caráter de cláusula pétrea.
Na mesma ambiência, a Lei Geral da Copa, Lei nº 12.663, de 05 de junho de 2012, prevê no
seu art. 28, §1o, “É ressalvado o direito constitucional ao livre exercício de manifestação e à
plena liberdade de expressão em defesa da dignidade da pessoa humana”.
No entanto, o que se vê, na prática, é a uma constante violação do direito à manifestação.
O aparato policial têm, sem qualquer prerrogativa legal, ao contrário, violando todas as
garantias dos cidadãos, criminalizado os protestos populares, fazendo uso de todo o tipo de
violência contra os manifestantes.
Há um desrespeito aos direitos humanos, por parte do Poder Público, uma vez que delibera no
sentido de restringir o direito de manifestação. Nesse sentido, merece registro o entendimento
de alguns Deputados Federais, quando da representação dirigida à Procuradoria Geral da
República acerca das ações violentas de agentes de polícia durante protestos na cidade do Rio
de Janeiro:
O respeito aos direitos humanos deve reger as condutas do Estado Brasileiro em
todas as suas ações. A função da Polícia é garantir a segurança dos manifestantes e
não coibir violentamente as marchas.10
O direito à manifestação deve ser assegurado pelo Poder Público, por ser um dos instrumentos
do exercício da democracia, uma vez que permite as pessoas irem as ruas reclamar pelos seus
direitos:
O tema da liberdade de reunião e de manifestação é, sem dúvida, um dos temas
centrais do Estado de direito democrático, pois é através do exercício desta liberdade
que os cidadãos podem exprimir livremente a sua opinião, criticar o poder, fazer
exigências, enfim, erguer a voz contra a injustiça e a opressão. Sem liberdade de
reunião e de manifestação não há verdadeira democracia: diz-me que liberdade de
reunião e de manifestação praticas no teu país e dir-te-ei que democracia
alcançaste.11
Nesse sentido é a preocupação desta breve análise. Inicialmente, tratar-se-á do direito à
manifestação, seus aspectos históricos e constitucionais, bem como seus limites e a forma
como vem sendo violado. Na sequência, discorrer-se-á acerca do estado de exceção e a sua

10
CHICO (2013). Texto retirado de: http://issuu.com/chicoalencar/docs/representacao_ao_pgr.
11
SOUSA (2012)
25
relação, neste contexto, com as várias violações do direito à manifestação ocorridas durante a
preparação e realização dos megaeventos. Por fim, analisar-se-á a postura do Poder Público
com relação ao exercício do direito à manifestação.
2 Direito à Manifestação
2.1 Aspectos Históricos do Direito à Manifestação
A manifestação é um importante instrumento de luta dos cidadãos, pois, nesse ato, os
cidadãos expõem os descontentamentos a uma determinada realidade. Tal instrumento tem
sido utilizado historicamente para combater governos autoritários, reivindicar direitos e
pleitear mudanças na forma de organização da sociedade.
O direito à manifestação deriva das liberdades de reunião pacifica e de expressão, que, por
suas vezes, consistem em direitos civis e integram os pilares da democracia.
No Brasil, o direito a reunião apareceu pela primeira vez na Constituição de 1934, que
inaugurou o texto de caráter social, como vemos a seguir:
Art. 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:, 11) A todos é lícito se reunirem
sem armas, não podendo intervir a autoridade senão para assegurar ou restabelecer a
ordem pública. Com este fim, poderá designar o local onde a reunião se deva
realizar, contanto que isso não o impossibilite ou frustre.
Uma vez constituído na Carta Magna de 1934, o direito a reunião aparece nas Constituições
posteriores. Apesar de a Constituição de 1967 ter sido, marcadamente, uma Constituição
arbitrária, fruto de um governo arbitrário, manteve em seu texto o direito a reunião pacífica:
Art. 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
§ 27 - Todos podem reunir-se sem armas, não intervindo a autoridade senão para
manter a ordem. A lei poderá determinar os casos em que será necessária a
comunicação prévia à autoridade, bem como a designação, por esta, do local da
reunião.
Porém, é sabido por todos que o período do Golpe Militar de 1964 foi caracterizado,
principalmente, pela supressão dos direitos civis e a repressão cruel de todo e qualquer ato
contra o governo através do Poder de Policia. Sendo assim, o direito a reunião foi duramente
reprimido.
Mesmo nesse contexto, surgiram os movimentos político-sociais. Esses protestavam contra as
práticas estatais do Governo Militar e lutavam pelo retorno do regime democrático, através de
uma luta intensa pela garantia das eleições direitas e ela promulgação de uma nova
Constituição, que refletisse a vontade político-social e restabelecesse as liberdades públicas,
bem como os direitos civis, suprimidos com o Golpe Militar.
A nova Constituição do Brasil, promulgada então em 1988, devolveu aos cidadãos brasileiros
as liberdades políticas, os direitos civis e consagrou os direitos fundamentais.

2.2 Direito à Livre Manifestação como Direito Fundamental


A Constituição de 1988 apresentou uma nova concepção de Direito e, também, de Estado
alinhado à soberania popular e à democracia, ao trazer em seu texto, no artigo 5º, um longo
rol de direitos fundamentais, dentre os quais a liberdade de reunião e de expressão, dos quais
deriva o direito à manifestação. Dessa forma, o direito à manifestação tornou-se um direito
fundamental de todo cidadão.

26
Pode-se elencar quatro funções principais dos direitos fundamentais12:
a) Função de defesa ou de liberdade - diz respeito à relação entre o Estado e o titular do
direito, impedindo, assim, que aquele suprima determinadas ações do cidadão. Impede a
atuação abusiva do Estado. No tocante ao direito a reunião, esse exige “respeito a todo
processo prévio ao evento e de execução da manifestação. O Estado não há de interferir nesse
exercício.”13;
b) Função de prestação - implica a realização de direitos por meio do Estado, ou seja, autoriza
o individuo a exigir do Estado a garantia-realização de um determinada direito. É o que
acontece com os direitos sociais e implica uma atuação positiva do Estado. O direito a
reunião apresenta um aspecto que é o de direito a prestação do Estado. Esse “deve proteger os
manifestantes, assegurando os meios necessários para que o direito à reunião seja fruído
regularmente.”14;
c) Função de proteção perante terceiros - consiste no dever do Estado de garantir aos titulares
de direitos fundamentais, através de medidas positivas, a proteção do exercício de tais
direitos. No bojo do direito de reunião, significa que, se frustrado por terceiros, cabe ao
Estado protegê-lo;
d) Função de não discriminação - impõe que o Estado trate todos os cidadãos de forma
igualitária.
Verifica-se, assim, que os direitos fundamentais desenvolvem múltiplas funções na sociedade
e na ordem jurídica, inclusive a de garantir aos cidadãos a prerrogativa de pressionar o aparato
estatal a fim de que este cumpra com os seus deveres.
Como já exposto, todo cidadão tem direito à livre manifestação. Nessas ocasiões, grupos de
indivíduos buscam a visibilidade das suas reivindicações, no intuito de que todos conheçam as
causas pelas quais se luta. É instrumento popular através do qual a sociedade manifesta o seu
descontentamento ou o seu apoio a alguma conjuntura de interesse público. Estes espaços
permitem o questionamento de decisões do Poder Público, bem como os reclames acerca de
situações fáticas.
Não se pode olvidar, portanto, que tal direito, protegido constitucionalmente, é um direito
inalienável e inerente a todas as pessoas. Além disso, o direito de manifestação é tido como
um direito humano universal, consagrado na Declaração Universal de Direitos Humanos, nos
seus arts. XVIII, XIX e XX:
Artigo XVIII
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este
direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar
essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância,
isolada ou coletivamente, em público ou em particular.
Artigo XIX
Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a
liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Artigo XX
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de reunião e associação pacíficas.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associação.

12
MENDES (2011)
13
Ibis Idem
14
Ibis Idem
27
Por tal razão, deve-se frisar que tal direito, antes mesmo de ser positivado na Constituição, já
era reconhecido como um direito inerente à natureza da pessoa humana, sendo livre o seu
exercício e devendo ser respeito por todos. Ou seja, tal direito existe anteriormente aos
ordenamentos jurídicos nacionais, e esses devem reconhecê-lo, consagrá-lo e garantir o
exercício do mesmo pelos cidadãos15.
Como visto, a Constituição Brasileira de 1988 reconheceu o direito humano fundamental à
manifestação, elencando-o como um direito fundamental. Para tanto, assegurou o direito à
liberdade de expressão e de reunião. Ademais, a fim de garantir o pleno gozo desse direito por
seus cidadãos, a Carta Magna, no artigo 220, §2º, dispôs que é vedada toda e qualquer censura
de natureza política, ideológica e artística:
Art. 220 - A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob
qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o
disposto nesta Constituição.
(...)
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
A liberdade de manifestação deve ainda ser entendida como o exercício da democracia em um
país, uma vez que permite aos cidadãos lutarem pelos seus direitos e questionarem situações
políticas e sociais. é o meio através do qual as pessoas podem expor as suas opiniões acerca
das deliberações políticas, econômicas e sociais:
A livre opinião pública é fundamental para o controle do exercício do poder e é
tributária da garantia da liberdade de expressão e também do direito de reunião, pelo
qual se assegura às pessoas a possibilidade de ingressarem na vida pública e
interferirem ativamente nas deliberações políticas, pressionando por uma variante de
ação estatal.
A liberdade de reunião pode ser vista como "instrumento da livre manifestação de
pensamento, aí incluído o direito de protestar". Trata-se de "um direito à liberdade
de expressão exercido de forma coletiva". Junto com a liberdade de exptessão e o
direito de voto, forma o conjunto das bases estruturantes da democracia16
O direito à manifestação é um direito individual, mas exercido de forma coletiva e está ligado
ao direito de reunião. Caracteriza-se pelo agrupamento transitório de pessoas conscientes dos
objetivos do movimento, de forma coordenada, através de prévia convocação, com objetivos
em comum, devendo ainda ser pacífica e não se utilizar mais armas. Ademais, apesar de não
necessitar de autorização, deve ser comunicada previamente às autoridades públicas e não
pode inviabilizar a ocorrência de uma reunião anteriormente convocada para o mesmo local.
Por fim, pode ser estatística ou dinâmica, desde que sempre se limite o espaço onde irá
ocorrer. Sobre o tema, merece registro as lições de Mendes17.
O direito de reunião exige respeito a todo processo prévio ao evento e de execução
da manifestação.
O Estado não há de interferir nesse exercício — tem-se, aqui, o ângulo de direito a
uma abstenção dos Poderes Públicos (direito negativo).
O direito de reunião possui, de outra parte, um aspecto de direito a prestação do
Estado. O Estado deve proteger os manifestantes, assegurando os meios necessários
para que o direito à reunião seja fruído regularmente. Essa proteção deve ser
exercida também em face de grupos opositores ao que se reúne, para prevenir que
perturbem a manifestação.
Assim, verifica-se que os direitos fundamentais são instrumentos de exercício da democracia
que, por suas vezes, consagram a soberania popular.

15
FILHO (1999). Texto retirado do site
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_04/direitos_fundamentais.htm>.
16
MENDES (2009)
17
MENDES (2009)
28
2.3 Os Limites do Direito à Manifestação
No entanto, deve ter em conta o fato de precisar estar associado ao exercício da boa-fé e da
ordem pública.
Isso porque, o direito à livre manifestação convive com as demais garantias individuais e
coletivas consagradas na Carta Magna. Por tal razão, assim como os demais direitos, não é um
direito absoluto, devendo ser exercido em consonância e com respeito aos outros.
Pois, quando dois princípios constitucionais ou direitos fundamentais entram em
colisão, não significa que um deva ser desprezado. O que ocorrerá é que devido a
certas circunstâncias um prevalecerá sobre o outro, terá precedência, naquele caso,
mas sempre se buscando a concordância de ambos de uma maneira harmônica e
equilibrada.
(…)
Pois o princípio da proporcionalidade é utilizado quando há colisão de direitos
fundamentais, sejam eles de 1ª, 2ª ou 3ª geração, individuais ou coletivos. Afinal,
sabe-se que os direitos fundamentais não são ilimitados ou absolutos. Encontram
seus limites em outros direitos, também fundamentais. Mas para que possam ter
efetivação, isto é, aplicabilidade, devem ser ponderados quando estiverem em
choque, colisão18.
Há, portanto, a possibilidade de tal direito à manifestação sofrer limitações, uma vez que,
atendendo ao principio da proporcionalidade, pode haver restrições quando há colisão com
outros direitos ou valores constitucionalmente protegidos:
A matização ou limitação dos direitos fundamentais entre eles do direito à livre manifestação
deve está orientada para alcançar um objetivo legítimo, que pode ser a proteção de outro
direito fundamental ou de algum outro bem que tenha tutela constitucional, como o direito à
privacidade e à intimidade, que também recebe tutela na Constituição, visando-se inclusive,
coibir o excesso, o abuso19.
O que se verifica, no entanto, durante os protestos ocorridos nesse contexto da realização dos
megaeventos no nosso país, não é a limitação do exercício desse direito, mas a tentativa de
impedimento do mesmo, através do uso da força estatal policial, de forma truculenta e
arbitrária, desproporcional às alegações de desordem suscitadas pelo poder público.
Ao mesmo tempo em que o governo público deve zelar pela ocorrência da manifestação,
combatendo pontualmente os atos de vandalismo e desordem que possam surgir durante o
protesto, cabe também a avaliação da atuação dos prepostos da polícia, verificando se, os
mesmos, nessas ocasiões, agiram em conformidade ao exercício regular da sua função.
Ou seja, deve-se combater qualquer ato de vandalismo contra patrimônios públicos ou
privados, por parte dos manifestantes, como também, no tocante ao desempenho das funções
de policia, o abuso de autoridade, as lesões corporais nos manifestantes e o constrangimento
ilegal:
Quem danifica prédios públicos responde pelo crime de dano qualificado previsto no
artigo 163, III do Código Penal e quem comete a mesma ação contra bens privados
responde pelo “caput” do artigo 163 do referido código.
O ato de pichar e/ou conspurcar prédios públicos ou monumentos é disciplinado
pelo artigo 65 da Lei 9.605/98 (Lei de Crimes Ambientais) e tem pena de detenção
de 3 meses a 1 ano, e multa, cabendo ainda a agravante se o bem é tombado em
virtude de seu valor artístico, arqueológico ou histórico (como é o caso do teatro
municipal de São Paulo).

18
CAMPO (2004)
19
FILHO (2014). Texto retirado de: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/8348/O-rolezinho-e-o-direito-
de-livre-manifestacao>
29
A título de esclarecimento, cabe lembrar que o grafite não constitui crime,
entretanto, deverá ter o objetivo de valorizar o patrimônio público ou privado
mediante manifestação artística, com consentimento do proprietário do bem privado
ou no caso de bem público com sua autorização.
Quem ainda aproveita a situação para invadir lojas e sair com patrimônio alheio,
comete o crime de furto, com a pena aumentada ou até mesmo presente a figura
qualificada (artigo 155 do Código Penal § 1º e seguintes)20.
Por outro lado, os policiais respondem judicialmente, quando há abuso de autoridade por
esses agentes, podendo incorrer nas condutas típicas elencadas nos arts. 3º e 4º da Lei
4.898/65, Lei do Abuso de Autoridade, e ainda em caso de lesão corporal (artigo 129 do CP) e
o constrangimento ilegal (artigo 146 do CP).
A atuação do poder de polícia do Estado deve estar adstrita a acompanhar a manifestação e
impedir atos ilícitos que porventura venham a ocorrer, garantindo assim o exercício do direito
à manifestação, além da segurança pública e dos manifestantes:
O direito constitucional deve ser exercido de forma plena, sem excessos. A
população merece ser ouvida, contudo, quem se aproveita desta situação deve ser
punido conforme os mesmos ditames legais, tendo em vista a diferença entre a
vontade e consciência de exercer um direito pátrio previsto na Constituição Federal
e a vontade e consciência de cometer um ato ilícito, seja o ambiente, lugar e época
que for21.
Desta forma, o Poder Público deve garantir o exercício do direito constitucional à
manifestação, reconhecendo a sua importância no contexto democrático do país, sendo
inclusive um dos pilares da cidadania.
A liberdade de expressão, em suas variadas vertentes, é essencial para a manutenção
do regime democrático. Especialmente quando demonstrada por meio de reuniões e
de manifestações, auxilia o desenvolvimento da consciência dos cidadãos, que
passam a ter acesso a novas informações, podem externar o que pensam, o que
desejam para o país. As manifestações instigam o debate de temas polêmicos pela
sociedade. Qualquer espécie de censura injustificada à liberdade de reunião deve ser
reprimida, assim como qualquer abuso ou crime cometido por seus participantes. E é
o bom senso, baseado nos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, que
deve prevalecer na análise concreta de cada situação22.
3 Violação do Direito à Manifestação
Como salientado anteriormente, tem-se noticiado acerca dos atos policiais no sentido de coibir
as manifestações ocorridas no contexto dos megaeventos. Tal conduta do Estado tem sido
constatada, de forma latente, desde as manifestações de junho de 2013, iniciada pelo
Movimento Passe Livre (MPL), contra o aumento da tarifa do transporte público, que
ocorreram em diversas cidade do país, e em que onde foram constatadas inúmeras violações
contra os manifestantes. Tal situação ocorreu também durante a Copa das Confederações,
onde se manifestavam contra a realização do Mundial no Brasil. Os protestos, assim como o
assédio policial, continuam acontecendo e sofrem com a resposta policial que se mostra cada
vez mais opressora e arbitrária23.

20
SUZUKI (2013). Texto retirado do site: <http://atualidadesdodireito.com.br/claudiosuzuki/2013/06/27/atos-
contrarios-ao-direito-constitucional-de-livre-manifestacaopraticas-ilegais/>.
21
SUZUKI (2013). Texto retirado do site: <http://atualidadesdodireito.com.br/claudiosuzuki/2013/06/27/atos-
contrarios-ao-direito-constitucional-de-livre-manifestacaopraticas-ilegais/>.
22
HORBACH (2013). Texto retirado do site: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-06/observatorio-
constitucional-restringir-manifestacoes-nao-inconstitucional>
23
LOWY (2014). Texto retirado de: <http://blogdaboitempo.com.br/2014/01/23/o-movimento-passe-livre/>
30
Questiona-se no sentido de até que ponto seriam legítimas as interferências estatais nesses
atos.
O que se têm verificado, na prática, são abusos e arbitrariedades no tratamento a esses
movimentos. O aparato estatal tem usado da força para tentar impedir tais protestos, ao invés
de atuar conforme as previsões constitucionais, ou seja, acompanhar a manifestação e impedir
atos ilícitos que porventura venham a ocorrer, garantindo assim o exercício do direito à
manifestação, além da segurança pública e dos manifestantes.
Diversas matérias relatam o que acontece em dias de manifestação, apontamos algumas de
fontes diferentes:
Notícia acerca das manifestações pela Tarifa Zero, ocorridas em junho de 2013:
Nas manifestações pela Tarifa Zero e pelo cancelamento dos aumentos das
passagens, o Estado novamente alegou a necessidade de conter a violência, agora
dos “vândalos” e “desordeiros”, para autorizar a violência indiscriminada contra os
manifestantes, imprensa e qualquer pessoa que saia às ruas nos dias e espaços destes
palcos políticos. E quando, estupefata, a sociedade reaje ao “abuso da violência”, os
secretários de segurança pública vêm a público reconhecer os excessos e dizer que
os casos serão encaminhados para as ouvidorias das polícias. Cabe notar que a
repressão aos movimentos sociais é ação comum do Estado democrático. Pouco
mais de um ano atrás, a mesma “sociedade estupefata” falava de Pinheirinho e a
invasão de universidades pela PM24.
Após muita confusão na concentração, os manifestantes iniciaram a passeata por
volta das 18h30 saindo do Theatro Municipal em direção à avenida Paulista,
pegando a Barão de Itapetininga e a rua da Consolação. Para tentar impedir que os
manifestantes tomassem o sentido centro da rua da Consolação, os policiais
dispararam balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. Houve correria e os
grupos se dispersaram para a rua Augusta e para a Praça Roosevelt, onde ocorreram
novos confrontos25.
Notícia sobre a manifestação que ocorreu em dia 17/06/2014, dia do jogo da Copa
do Mundo entre Brasil e México, em Fortaleza/CE:
Nesta terça-feira (17), a Arena Castelão se preparava para receber mais um jogo da
Copa do Mundo: Brasil x México. Do lado de fora do estádio, no entanto, quem deu
um show de abuso e arbitrariedade foram as tropas policiais. Com 23 adultos detidos
e 12 adolescentes apreendidos, a manifestação organizada por movimentos sociais
foi reprimida violentamente pela Polícia e dispersada antes mesmo do começo da
partida26
Notícia sobre a manifestação ocorrida em 23 de junho de 2014 em São Paulo,
conhecida como “11° ato #NAOVAITERCOPA vai ter protesto”:
O deslocamento do ato se deu de forma pacífica desde o início até o fim, sem
nenhum tipo de incidente ou confronto, até que, na dispersão, no acesso ao metrô,
policiais civis de forma covarde, detiveram duas pessoas sem o cumprimento de
nenhuma prerrogativa legal. Se não bastasse a prisão infundada, um policial atirou a
esmo por duas vezes na intenção de intimidar os manifestantes. Fato este nos faz
refletir na diferença entre um cidadão comum e um policial atirar
desnecessariamente para o alto. É certo que, para o cidadão esta seria uma ação

24
TELES (2013). Texto retirado de: http://blogdaboitempo.com.br/2013/07/08/as-manifestacoes-o-discurso-da-
paz-e-a-doutrina-de-seguranca-nacional/
25
TRUFFI (2013). Texto retirado de: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2013-06-13/quarto-grande-
protesto-contra-aumento-da-passagem-em-sao-paulo.html>
26
Na Rua (2014). Texto retirado de: <http://www.urucum.org/narua/panorama-das-violacoes-aos-direitos-
humanos-nas-manifestacoes-em-fortaleza/>.
31
capitulada como crime, já na posição do policial a sociedade vem aceitando toda
sorte de arbitrariedades27.
Devem, portanto ser reavaliadas as práticas dos órgãos estatais, através da atividade Policial,
no tocante à repressão das manifestações durante os megaeventos, a exemplo da Copa do
Mundo 2014. Tais repressões são eivadas de ilegalidade, uma vez que frustram o exercício de
um direito fundamental do cidadão, sem qualquer fundamentação razoável.
No âmbito da realização do Mundial, tais práticas estão sendo realizadas para assegurar que
manifestações não atrapalhem ou inviabilizem o andamento normal do evento. Na verdade,
por trás disso, existem também interesses econômicos.
Em virtudes das exigências da FIFA (Fédération Internationale de Football Association) para
a realização da Copa do Mundo 2014 no Brasil, e para atender as demandas e os interesses
desse grupo econômico, o Poder Executivo Brasileiro vive um disfarçado estado de exceção.
Uma das consequências dessa preponderância dos interesses econômicos sobre os direitos e
garantias fundamentais consagrados na Carta Magna é o combate das manifestações pelos
policiais. Isso porque, segundo a Lei Geral da Copa, Lei nº 12.663, de 05 de junho de 2012,
cabe à União a responsabilidade sobre qualquer dano causado, por ação ou omissão, à FIFA,
seus representantes legais, empregadores ou consultores:
DA RESPONSABILIDADE CIVIL
Art. 22. A União responderá pelos danos que causar, por ação ou omissão, à FIFA,
seus representantes legais, empregados ou consultores, na forma do § 6o do art. 37
da Constituição Federal.
Art. 23. A União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a FIFA, seus
representantes legais, empregados ou consultores por todo e qualquer dano
resultante ou que tenha surgido em função de qualquer incidente ou acidente de
segurança relacionado aos Eventos, exceto se e na medida em que a FIFA ou a
vítima houver concorrido para a ocorrência do dano.
Parágrafo único. A União ficará sub-rogada em todos os direitos decorrentes dos
pagamentos efetuados contra aqueles que, por ato ou omissão, tenham causado os
danos ou tenham para eles concorrido, devendo o beneficiário fornecer os meios
necessários ao exercício desses direitos.
Art. 24. A União poderá constituir garantias ou contratar seguro privado, ainda que
internacional, em uma ou mais apólices, para a cobertura de riscos relacionados aos
Eventos.
Desta forma, em virtude de tais exigências da FIFA, de ser ressarcido todo e qualquer
prejuízo a essa organização econômica, o Governo Brasileiro tem adotado a postura de
reprimir qualquer tipo de manifestação contra o evento e durante o evento, a fim de evitar
prejuízos e responsabilidades, violando assim o direito à livre manifestação.
Além disso, a FIFA exigiu um determinado tipo de comportamento aos torcedores, conforme
previsão do art. 28 da Lei Geral da Copa, que poderão ser tolhidos e reprimidos, caso não o
sigam28.
4 Estado Democrático de Direito e Estado de Exceção: conceitos
A Constituição Federal de 1988 instituiu no Brasil o principio do Estado Democrático de
Direto, submetendo, dessa forma, todos os cidadãos e os agentes que atuam nas esferas dos
três poderes aos valores e princípios por ela consagrados, dentre os quais o Princípio da

27
ADMIN (2014). Texto retirado de: < http://advogadosativistas.com/enquanto-o-brasil-joga-e-a-democracia-
que-esta-em-jogo-estado-de-excecao-na-copa/>
28
SERRÃO (2014). Texto retirado de <http://www.alertatotal.net/2014/04/governo-prepara-repressao-pesada-
para.html>
32
Dignidade da Pessoa Humana. Ficam submetidas à Constituição, inclusive, todas as leis
elaboradas pelo poder legislativo, uma vez que, não sendo observados os valores
constitucionais quando da edição dessas normas, podem elas ser consideradas
inconstitucionais. Deve-se, pois, ter em vista, sempre, os valores, princípios e todas as outras
previsões constitucionais, a fim de se garantir a plena democracia. Ademais, a Carta Magna
de 1988 consagrou a hierarquia das normas, a separação dos poderes e a realização dos
direitos fundamentais.
Portanto, tanto os cidadãos como as autoridades públicas só podem atuar em conformidade
com o direito vigente e em observância aos direitos e garantias constitucionais.
No entanto, o próprio texto constitucional traz a previsão de situações excepcionais, nas quais
será permitida a adoção de medidas necessárias à garantia da soberania estatal, ainda que em
desacordo às previsões constitucionais.
É o chamado estado de exceção, situação contrária ao Estado de Direito, que se permite em
situações de emergência nacional, para a Defesa do Estado e das Instituições Democráticas.
Nesse contexto, o Poder Executivo, dentro dos limites constitucionais, pode restringir
garantias, direitos e liberdades dos cidadãos:
Em situações de excepcionalidade e crise, que ponham em ameaça a soberania de
um Estado, o chefe do poder executivo poderá utilizar-se temporariamente do
mecanismo constitucional do estado de exceção, que uma vez em vigor suspenderá
direitos e garantias constitucionais até que novamente seja alcançada a ordem
interna. Na visão de Canotilho, tal período se constitui através de uma “previsão e
delimitação normativo-constitucional de instituições e medidas necessárias para a
defesa da ordem constitucional em caso de situação de anormalidade que, não
podendo ser eliminadas ou combatidas pelos meios normais previstos na
Constituição, exigem o recurso a meios excepcionais”29.
Essas situações de emergência ou crise exigem tomadas de decisões rápidas, que seriam
prejudicadas se atendidas as formalidades legais para a aprovação de uma decisão, comuns no
Estado de Direito. O Poder Executivo, então, decreta o Estado de Exceção, situação
temporária, permitindo assim a rapidez das tomadas de decisões e a concentração de poderes.
O nosso ordenamento prevê duas espécies de Estado de Exceção, o Estado de Defesa e o
Estado de Sítio, previstas nos arts. 136 e 137 e ss. da Constituição Federal, respectivamente.
5 Os Megaeventos e a Restrição do Direito à Manifestação: Repressão Policial e
Instauração de Estado de “Exceção”
Em situações de Estado de Exceção, o Poder Executivo poderá restringir o direito de reunião,
que, como já exposto, está intimamente ligado ao exercício do direito à manifestação:
Art. 136 § 1º - O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua
duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da
lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:
I - restrições aos direitos de:
a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;
(...)
Art. 139 - Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no Art. 137, I,
só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:
(...)
IV - suspensão da liberdade de reunião;

29
BAHIA (2013). Texto retirado de: <http://jus.com.br/artigos/25287/estado-de-excecao-uma-afronta-a-
supremacia-dos-direitos-fundamentais#ixzz35sR2Smvf>
33
O que se têm verificado durante a organização e realização dos megaeventos no Brasil são as
recorrentes repressões violentas das manifestações sociais, inviabilizando, assim, o exercício
do direito à manifestação.
No entanto, como já exposto, a única situação em que o ordenamento jurídico brasileiro prevê
a possibilidade de limitar tal direito é o caso de decretação de Estado de Exceção, seja ele o
Estado de Sítio ou Estado de Defesa, situação essa que não se configura com realização dos
megaeventos.
Apesar de sem qualquer amparo constitucional, o Poder Público tem atuado no sentido de
impedir e coibir tais protestos sociais, impondo à sociedade medidas que só seriam aceitáveis
em caso de Estado de Exceção. Há, pois, um flagrante Estado de Exceção disfarçado e
indevido.
A fim de atender as exigências dos organizadores e patrocinadores dos megaeventos, e na
tentativa de evitar qualquer transtorno que possa prejudicar o andamento esperado desses
acontecimentos mundiais, o Poder Público tem se valido do aparato policial para violar
direitos e garantias fundamentais do cidadão, através da força, no sentido de exercer
livremente o seu direito à manifestação.
Nestes contextos, o Governo Brasileiro tem adotado a postura de reprimir qualquer tipo de
manifestação contra o evento e durante o evento, a fim de evitar prejuízos e
responsabilidades, violando assim o direito à livre manifestação. Tem-se, desta forma,
criminalizado tal direito, usando-se de prerrogativas do Estado de Exceção.

6 Considerações Finais
São vários os protestos sociais realizados no contexto dos megaeventos. Pessoas têm ido as
ruas reclamar melhorias sociais e contestar as posições permissivas adotadas pelo governo,
em privilégio aos interesses dos organizadores e patrocinadores desses eventos.
Diante das noticias veiculadas pela mídia acerca do combate às manifestações pelo aparato
policial do Estado, e depois de delineados os contornos do direito à manifestação, impõe-se
uma análise a respeito da atuação da polícia nesses atos, verificando-se se a mesma está em
consonância com a sua função.
É preciso analisar se os agentes da polícia têm agido em conformidade com a lei
constitucional, apontando e combatendo os excessos e abusos de agentes do Estado.
Não se pode permitir que direitos fundamentais dos cidadãos sejam obstruídos ou
inviabilizados em virtude de interesses econômicos. E, é isso que tem, por várias vezes,
acontecido, conforme noticiado.
De forma truculenta e arbitrária, tem-se verificado a sucumbência do Estado Democrático de
Direito em favor dos ditames de organizações econômicas quando da preparação e realização
dos megaeventos.
Ademais, tem-se verificado que o Poder Público tem desrespeitado, em diversos momentos,
as previsões constitucionais, permitido e apoiando tais desmandos. As leis de mercado e os
interesses econômicos dos organizadores desses megaeventos têm silenciado as garantias
constitucionais, podendo-se concluir pela existência de um estado de exceção, no qual há
inúmeras violações de direitos humanos, como é o caso do combate ao direito à manifestação.

7 Referências Bibliográficas
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34
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35
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13/quarto-grande-protesto-contra-aumento-da-passagem-em-sao-paulo.html>. Acesso em: 10
jun. 2014.

36
NOVAS COMPREENSÕES DAS JORNADAS DE JUNHO: Formas alternativas de
ação política e crítica ao “espontaneísmo” das manifestações multitudinárias

Gustavo F. de C. Dias1

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia –


1

g.fernandescdias@gmail.com

Resumo:
As manifestações multitudinárias que ocorreram em junho de 2013 em todo o Brasil,
posteriormente convencionadas como “jornadas de junho”, acabaram por representar um novo
marco não só na história dos movimentos sociais brasileiros, como também na análise
acadêmica desses movimentos. Contudo, o repertório de ação e a cultura política mobilizados
por esses atores, muitas vezes difusas, rizomáticas e que se disseminavam através de redes
ocultas e submersas, foram subvalorizados em decorrência de um viés metodológico que
privilegia velhas formas de organização política, caracterizadas pela centralidade e unidade. A
ênfase ao “espontaneísmo” e a fatores externos como a violência policial proferida por parte
de alguns acadêmicos que escreveram sobre essas manifestações ilustram essa orientação
analítica, na qual o protagonismo de atores como o Movimento Passe Livre foi depreciado por
conta de sua não adequação às formas tradicionais de organização política. O presente artigo
tem como objetivo problematizar essa concepção, além de contextualizar o cenário no qual
essas novas formas de atuação política emergiram, em especial no Rio de Janeiro, com o
intuito de possibilitar novos caminhos analíticos que melhor compreendam esse fenômeno de
importância inquestionável na história dos movimentos sociais no Brasil.
Palavras-chave: Jornadas de junho; Movimento Passe Livre; Estado de exceção; Cultura
política; Movimentos sociais.

Rio de Janeiro
2014

1. Introdução
As manifestações multitudinárias que ocorreram em junho de 2013 em todo o Brasil,
posteriormente convencionadas como “jornadas de junho”, acabaram por representar um novo
marco não só na história dos movimentos sociais brasileiros, como também na análise
acadêmica desses movimentos. Novos movimentos sociais se organizaram, muitas vezes por
redes ocultas e invisibilizadas, disseminando formas alternativas de ação política que vieram a
contestar um novo paradigma vigente na gestão urbana, baseado em parcerias público-
privadas, prontificando-se assim a colocar como pauta de discussão a questão do “direito à
cidade”.
É nesse sentido que o Movimento Passe Livre (MPL) salta aos olhos como um
protagonista fundamental na compreensão das jornadas de junho. Ao trazer para o cerne do
37
debate a questão da mobilidade urbana através da reivindicação pelo passe livre, um
confronto direto aos novos modelos de planejamento urbano baseado na competividade e na
estratégia de mercado foi deflagrado no cenário político brasileiro. Ambos os processos se
desenvolveram de forma simultânea.
A argumentação a ser desenvolvida no presente artigo aponta para como essas novas
formas de organização surgiram como alternativa ao esgotamento dos canais tradicionais-
institucionais de ação política, cada vez mais marcados pela exclusão e pela despolitização,
ocorridas em decorrência de uma nova concepção de gestão da cidade. Contudo, o repertório
de ações empregado não só pelo MPL, mas por outros movimentos similares a este,
caracterizado pela horizontalidade e descentralização, foi menosprezado por parte da
produção acadêmica, em detrimento de análises que prestigiavam mais a “espontaneidade”
dessas manifestações maciças e o papel de fatores externos ao movimento como fatores
determinantes na sua propagação.
O presente trabalho é desenvolvido no sentido de questionar o estadocentrismo
presente na lógica analítica empregada na compreensão das mobilizações populares, além de
problematizar as novas formas de gestão da cidade, marcadas pela despolitização do público e
naturalização da exceção. Divido, dessarte, a argumentação em três seções centrais: 1) breve
exploração teórica do estado de exceção e do monopólio da violência pelo estado; 2)
problematização dos enquadramentos metodológicos utilizados na análise das jornadas de
junho; e 3) articulação dos postulados desenvolvidos nas duas primeiras seções a partir do
caso específico do Rio de Janeiro. Na conclusão, finalizo o trabalho com algumas
considerações finais.

2. Uma breve exploração teórica do Estado de Exceção


O filósofo italiano Giorgio Agamben nos provê uma reflexão proveitosa para os
objetivos desse artigo sobre o “estado de exceção”. A questão central levantada pelo autor
trata de quando o excepcional é constituído como regra, onde a exceção é apresentada como
“a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”, ocupando, dessa forma, “essa terra de
ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida”
(AGAMBEN, 2004). Medidas jurídicas excepcionais não podem, portanto, ser plenamente
compreendidas apenas no plano do direito uma vez que o estado de exceção não é um direito
especial e sim a própria suspensão da ordem jurídica.
Contudo, Agamben vai além dessas constatações. Sua argumentação aponta não
apenas para a transformação do excepcional em regra como uma das características
fundamentais do estado de exceção, mas também para a conversão do estado de exceção em
regra do Estado contemporâneo. Forma-se, assim, baseada na noção de “ditadura comissária”
de Carl Schmitt (1985), uma “ditadura constitucional”, que é concebida com o intuito de
garantir a ordem constitucional vigente. Dessarte, o autor demonstra como que o totalitarismo
moderno está baseado no processo de naturalização do estado de exceção, que, por sua vez,
possui suas origens em situações onde países e regiões se viam em crise, em especial nas
guerras, tanto civis quanto exteriores. Segundo as palavras do próprio Agamben, o
totalitarismo moderno

pode ser definido (...) como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma
guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos,
mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não
integráveis ao sistema político. Desde então, a criação voluntária de um estado de
emergência permanente (ainda que, eventualmente, não declarado no sentido
técnico) tornou-se uma das práticas essenciais dos Estados contemporâneos,
inclusive dos chamados democráticos (ibid.).

38
Uma vez configurado esse “estado de emergência permanente”, mesmo que este não
seja tecnicamente declarado, o recurso a medidas excepcionais é instalado e legitimado,
transformando o que antes era “uma medida provisória e excepcional para uma técnica de
governo” (ibid.). Dessa forma, quando o estado de exceção vira regra, o mesmo apresenta-se
mais como técnica de governo do que como uma medida excepcional adotada frente a alguma
situação emergencial ou de crise. A exceção vira, assim, uma prática política não só
normalizada como também aparentemente fundamentada e legitimada pelo próprio direito.
O recurso ao estado de exceção passa a ser utilizado ao longo do século XX em outras
situações consideradas análogas à guerra, como crises econômicas e políticas. Essa
reapropriação do estado de exceção é realizada com base na metáfora militar, onde paralelos
são traçados entre a economia ou a política e a guerra. O discurso do presidente estadunidense
Franklin Roosevelt, conferido no auge da crise dos anos 30, ilustra essa metáfora, quando diz
estar no “comando do grande exército de nosso povo para conduzir, com disciplina, o ataque
aos nossos problemas comuns” (ibid.). Roosevelt afirma ainda que caso o Congresso
estadunidense fosse incapaz de adotar as medidas necessárias para solucionar a crise, o
próprio iria pedir uma extensão de seus poderes executivos para “travar a guerra contra a
emergência, poderes tão amplos quanto os que me seriam atribuídos se fôssemos invadidos
por um inimigo externo” (ibid.).
Por sua vez, Carlos Vainer (2011) demonstra como que a discussão do estado de
exceção extrapola o campo da filosofia e do direito, dado que a literatura marxista em muito
já se debruçou sobre a questão ao analisar a natureza e as formas do estado capitalista. O autor
destaca que é na obra do sociólogo e filósofo grego Nicos Poulantzas (1977) que se encontra
o “mais sistemático e consistente esforço para, a partir de um resgate do debate marxista,
conferir um quadro teórico à análise do estado capitalista, e do estado de exceção em
particular” (VAINER, 2011)30.
Ao contrário dos que afirmam os estudiosos do totalitarismo, o estado de exceção não
constituíra, para Poulantzas, um fenômeno externo e alienígena ao estado capitalista moderno.
Pelo contrário, o estado de exceção representa uma nova configuração do estado capitalista
onde este ganha novos sentidos e eficácias, tornando-se uma característica inseparável na
garantia da autonomia relativa do Estado. Essa autonomia relativa encontra no estado de
exceção um maior espaço para se proliferar e ganhar novas e mais amplas dimensões.
No referente às origens das formas de estados de exceção no capitalismo moderno,
Bob Jessop, ao realizar uma análise do clássico livro Estado, Poder e Socialismo, também de
Poulantzas (1979), evidencia um processo de caráter histórico e específico. O autor afirma
que a produção de uma forma excepcional de Estado se dá a partir de uma crise de hegemonia
no interior do bloco de poder, onde “nenhuma classe ou fração de classe consegue impor sua
‘liderança’ sobre os outros membros do bloco no poder, seja por meio de suas próprias
organizações políticas, seja por meio do Estado democrático-parlamentar” (JESSOP, 2009).
Temos, assim, uma impossibilidade na construção de uma resolução das contradições entre as
classes dominantes, mesmo sob o Estado democrático, o que implica em uma redefinição dos
meios através dos quais os interesses dominantes se fazem presentes, redefinição essa, por sua
vez, que acaba desembocando no estado de exceção.
Essas crises refletem-se no cenário político e no aparato estatal. Entre os sintomas,
podemos ter: crise da representação partidária; tentativas de várias forças sociais para
contornar os meios partidários e influenciar diretamente o Estado; e, por último, esforços de
diferentes aparatos do Estado para impor a ordem política independentemente de decisões
provenientes dos canais institucionais de poder. Essas implicações podem “minar a unidade

30
Segundo Vainer, termos clássicos como “cesarismo”, “bonapartismo”, “bismarckismo” e “caudilhismo”, esse
último empregado na América Latina, são utilizados para representar diferentes regimes políticos que se
enquadrariam na definição de “estado de exceção”.
39
institucional e de classe do Estado, mesmo onde ele continua a funcionar, e provocar uma
ruptura entre altos escalões no sistema estatal e seus níveis inferiores” (ibid.). Assim sendo, o
estado de exceção emergente, ao substituir os meios tradicionais de representação de
interesses, faz com que ocorra uma

expansão de redes de poder e correias de transmissão paralelas que se cruzam e


vinculam diferentes ramos e centros. Isso produz grande centralização do poder
político e multiplica seus pontos de aplicação no Estado. Tudo isso serve para
reorganizar a hegemonia, para neutralizar divisões internas e para provocar curtos-
circuitos em resistências internas, além de assegurar a flexibilidade em face da
inércia burocrática (ibid.).

A normalização do estado de exceção faz surgir uma outra questão que diz respeito à
aplicação dessas medidas excepcionais. Conforme dito, o estado de exceção representa uma
suspensão da própria ordem jurídica como um todo; contudo, mesmo podendo ser enquadrado
como “ilegal”, a legitimidade de sua aplicação perdura uma vez que o Estado assim o faz com
o discurso de garantir a ordem constitucional vigente e no sentido de proteger tanto a si
quanto o suposto bem comum compartilhado pela sociedade de seus inimigos, sejam externos
ou internos. A discussão sobre a legitimidade da violência exercida pelo Estado torna-se,
assim, fundamental para a compreensão do processo supracitado. O que diferencia, portanto, a
violência produzida pelo estado da violência produzida por qualquer outro indivíduo ou
grupo? Charles Tilly (1985; 1990) busca responder essa pergunta na análise sobre como o
próprio Estado moderno se formou ao longo dos séculos XIX e XX.
Tilly demonstra como que o desenvolvimento histórico da dinâmica das guerras, desde
a Idade Média, beneficiou Estados que possuíam recursos suficientes para financiar os custos
de guerra que cada vez mais se elevavam31. Instituições típicas dos Estados-nação modernos
foram criadas para sustentar os gastos das guerras (“war making”), como o sistema tributário.
Como resultado, o monopólio dos meios de violência tendeu a se concentrar nas mãos dos
aparatos desses Estados-nação, o que tornou credível a divisão entre forças “legítimas” e
“ilegítimas”. No começo do processo de construção dos Estados (“state making”), “muitos
partidos compartilhavam o direito de usar a violência, a prática de usá-la rotineiramente para
alcançar seus objetivos, ou os dois ao mesmo tempo. Esse contínuo corria por bandidos e
piratas para reis via coletores de taxas, detentores de poderes regionais e soldados
profissionais” (TILLY, 1985).
Contudo, em resposta às mudanças na dinâmica das guerras e aos elevados custos para
a manutenção desses conflitos, os governantes europeus acabaram por reduzir a sua
dependência da administração indireta através de duas estratégias principais: extensão de seus
domínios oficiais para as comunidades locais e encorajamento na criação de forças policiais
subordinadas ao governo central ao invés de patronos individuais. Com a centralização e
monopolização desses poderes, o uso da violência pelo Estado-nação se legitima, sendo que
Tilly define legitimidade como sendo a “probabilidade que as outras autoridades irão agir para
confirmar as decisões de uma dada autoridade” (ibid.). Assim sendo, o Estado-nação emerge
como a única instituição apta a empregar a violência para alcançar os seus fins.
As considerações desenvolvidas nessa seção serão úteis para tratar da questão
específica do que Carlos Vainer (2011) denominou como “cidade de exceção”; no entanto, o
autor sobressalta para a “impossibilidade de transpor as análises teóricas [supracitadas] (...)
para um exame das formas de exercício do poder e da organização do estado na escala de uma
cidade” (VAINER, 2011). Apesar disso, concordamos com o autor quando afirma que é
possível extrair algumas pistas interessantes a partir dessas explorações teóricas no referente à
compreensão dos processos por trás da concepção de “cidade de exceção”. Todavia, antes de

31
Tilly aponta, entre outros fatores, a invenção da pólvora e dos exércitos profissionais maciços como
determinantes que elevaram os custos das guerras.
40
adentrar nesse assunto, faz-se necessário realizar uma breve análise das mobilizações e
manifestações populares que vieram justamente como resposta a essa nova configuração tanto
nacional, quanto regional, caracterizada pela normalização do excepcional e pelo emprego da
violência na manutenção da ordem.

3. Novos sentidos para as Jornadas de Junho


As jornadas de junho marcaram um momento importante na história da sociedade
brasileira. Não se espanta, portanto, que toda uma extensa literatura acadêmica já tenha sido
escrita sobre os protestos que marcaram o ano de 2013. Contudo, alguns autores apontam para
uma certa dificuldade interpretativa em relação a análise das manifestações multitudinárias.
Além da complexidade de pesquisar um contexto em constante movimento, Zibechi (2013)
afirma que “as análises pecaram por uma excessiva generalização e em algumas ocasiões
atribuíram um papel quase mágico às ‘redes sociais’ para ativar milhões de pessoas”. Outros
autores assinalam um peso excessivo dado aos efeitos da repressão policial e à reação à essa
repressão (LACERDA & PERES, 2014).
Para tanto, uma série de orientações metodológicas e analíticas foi elaborada por esses
estudiosos de modo a permitir uma melhor compreensão do que se convencionou denominar
como “jornadas de junho”. É nesse sentido que os cuidados propostos por Bringel (2013)
visam evitar um conjunto de miopias na análise das manifestações que surpreenderam o país
afora em 2013. O autor destaca quatro miopias centrais, a saber: miopia temporal
presente/passado; miopia da política; miopia do visível; e miopia dos resultados.
A primeira miopia tende a sobredimensionar as lutas atuais, as apresentando como
novos “mitos fundadores”. A segunda delimita a ação política apenas à sua dimensão político-
institucional, excluindo assim qualquer possibilidade de compreensão da reinvenção da
política e do político a partir de práxis sociais emergentes. Já a miopia do visível diz respeito
a limitação das mobilizações contemporâneas à sua face visível apresentada nas ruas e nas
praças, “sendo incapaz de captar os sentidos das redes submersas, suas identidades e os
significados das dimensões invisíveis para um observador externo” (ibid.). A última miopia,
consequente das anteriores, refere-se à restrição da interpretação dessas mobilizações aos seus
impactos políticos e às dimensões “mensuráveis” da ação coletiva.

3a. Crítica à espontaneidade das manifestações multitudinárias a partir da noção de


processo histórico
Raúl Zibechi (2013), por sua vez, chama a atenção para a problemática de tratar essas
manifestações em massa a partir de sua “espontaneidade”, ou seja, conceber as mobilizações
como fenômenos que emergiram subitamente devido a fatores pontuais e externos (no caso, o
aumento da passagem de ônibus, a articulação via redes sociais e a repressão policial) e de
forma fragmentada, sem uma coesão ou uma centralização das pautas reivindicadas 32. Ao
percorrer a história do Movimento Passe Livre (MPL), personagem fundamental das jornadas
de junho, desde a sua fundação em 2005 em uma plenária do Fórum Social Mundial, em Porto
Alegre, o autor demonstra que, na verdade, “não existiu espontaneidade e sim uma
massificação dos movimentos” (ibid.)33. A emersão de revoltas populares em reação ao
aumento da passagem de ônibus e das más condições desse serviço não é um fenômeno novo
na sociedade brasileira; pelo contrário, desde 2003 o país vem vivenciado uma série de

32
O artigo de Javier Alejandro Lifschitz (2013) é um exemplo de argumentação que estabelece uma relação
causal entre repressão policial e reação à repressão. Já os artigos de José dos Santos e Valmaria Santos (2013) e
Leonardo Sakamoto (2013) ilustram essa sobrevalorização do papel das redes sociais nas manifestações.
33
Devido aos limites desse trabalho, a trajetória história do Movimento Passe Livre não é amplamente debatida.
Para uma maior compreensão desse processo, ver, além do artigo de Zibechi, os textos de Leo Vinicius (2005),
Lucas Legume e Mariana Toledo (2011), Adriana Saraiva (2013) e, por fim, um texto do próprio Movimento
Passe Livre-SP (2013).
41
manifestações, bloqueios de avenidas e ruas, destruição de catracas, depredação de ônibus e
ocupações de terminais de transporte. Inclui-se aqui grandes revoltas como as de Salvador em
2003, de Florianópolis em 2004 e 2005 e de São Paulo em 201134.
Entre agosto e setembro de 2003, 40 mil pessoas foram para as ruas de Salvador,
Bahia, protestar contra o aumento da passagem de 1,30 para 1,50 reais. Os manifestantes
ocuparam ruas e avenidas, bloquearam pontos centrais para a circulação da cidade e
enfrentaram as forças policiais. Essa onda de protestos ficou conhecida como “Revolta do
Buzu” e é considerada por ativistas como a grande referência no nascimento do movimento
pela passagem gratuita (NASCIMENTO, 2009). Já em Florianópolis, a Campanha pelo Passe
Livre Estudantil ganhava forma desde 2000, onde a organização Juventude Revolução, ligada
ao Partido dos Trabalhadores (PT), desenvolvia um trabalho local ao levar o debate sobre o
passe livre a colégios além de promover pequenas passeatas. Este trabalho criou as condições
para que, em 2004, entre 15 e 20 mil estudantes se mobilizassem em manifestações em uma
cidade de 400 mil habitantes, episódio posteriormente denominado como “Revolta da
Catraca” (CRUZ & CUNHA, 2009; COLETIVO MARIA TONHA, 2013). Ambos os
momentos são tidos como referências-chaves na fundação do Movimento Passe Livre (MPL-
SP, 2013).
Em São Paulo, cidade a qual ocupou um espaço de grande visibilidade durante as
jornadas de junho, o setor regional do MPL vinha realizando debates sobre o passe livre desde
2005, organizando paralelamente manifestações em 2006 e 2010. Em 2011, o MPL-SP
conseguiu reunir mais de 5 mil pessoas em um protesto. No mesmo ano, manifestações em
Belém e em Porto Velho conseguiram reverter o aumento das tarifas na primeira cidade e
suspendê-lo por duas semanas na capital rondoniense (LACERDA; PERES, 2014). Dessarte,
torna-se claro que mobilidade urbana e passe livre são temas que não surgiram apenas a partir
das mobilizações populares de 2013. Adalberto Cardoso (2013) demonstra como que a
questão do ônibus, considerada como o grande estopim das manifestações de julho quando
sua tarifa foi aumentada em várias cidades brasileiras, constitui-se em um objeto de revolta
antiga que perdura na população nacional. Pesquisando em um jornal de grande circulação
pelo termo “ônibus incendiado”, o sociólogo depara com 559 ocorrências entre novembro de
2011 e junho de 2013. Esse índice implica em

quase uma notícia por dia sobre depredação de ônibus, em média. A grande maioria
dos incêndios foi provocada por “criminosos”, “bandidos” ou “traficantes”, termos
intercambiáveis na cobertura do jornal, e por vezes eles ganham estatuto de grande
acontecimento (CARDOSO, 2013).

O que Cardoso argumenta é que a questão da mobilidade é uma questão cara e central
para a população brasileira, o que a transforma não em um estopim qualquer, mas em algo
que é central na vida dessa população, uma vez que ela representa um

elemento de uma síndrome de recursos inscritos no território que dá materialidade


ao que as jornadas de junho popularizaram como “direito à cidade” (...) Sem
mobilidade os espaços da cidade se tornam privilégios de uns (quando plenos de
recursos) ou condenação de outros (quando privado deles), e a impossibilidade ou a
dificuldade reiterada de trânsito entre uns e outros pode consolidar mundos
segregados, mesmo que em termos jamais absolutos, já que a “miséria” ou o
“privilégio” são parte da compreensão do mundo disponível aos citadinos, e a
“opressão” de uns é vivida como injusta porque comparada com o “privilégio” de
outros (ibid., grifos do autor).

Resgatar historicamente a trajetória e os sentidos das revoltas relacionadas ao sistema


de transporte coletivo, em especial o ônibus, mostra-se fundamental, dado que “percorrer os
34
Nesse sentido, assim como Lacerda e Peres (2014), também concordamos com José Arbex Jr. (2013) quando
este afirma que as manifestações de junho já vinham se anunciado há tempos.
42
caminhos dos fluxos de inspiração que cada mobilização produz sobre as outras nos fornece
elementos para irmos além da face visível das manifestações” (LACERDA; PERES, 2013),
evitando, dessarte, a miopia do visível. Além disso, auxilia também a nos prevenir de outra
miopia, no caso, a temporal presente/passado, ao analisar as manifestações como um processo
em movimento. Torna-se evidente como que as jornadas de junho se beneficiaram de um
acúmulo produzido por mobilizações anteriores a essas que, por meio de suas redes, ocultas
ou não, produziram uma nova cultura política que surgiu como alternativa aos modos de luta e
de organização existentes que não conseguiam mais dar resposta aos desafios impostos pela
configuração social vigente35.
Nesse sentido, Zibechi afirma que as revoltas que ocorreram em 2003 e 2004, além da
fundação do MPL em 2005 “rechaçaram categoricamente a cultura organizacional burocrática
ao destacarem a horizontalidade, ou seja, uma direção coletiva e não individual, o consenso
para que maiorias não sejam consolidadas, e a autonomia frente ao Estado e a partidos
políticos” (ZIBECHI, 2013). Boa parte dos elementos constituintes das manifestações
multitudinárias de 2013 provém desse acúmulo prévio, o que torna equivocado categorizar as
jornadas de junho como um novo “mito fundador”.
Na mesma direção, Bringel analisa esses protestos com base na distinção analítica
proposta por Doug McAdam entre “movimentos iniciadores” e “movimentos derivados”,
onde os “primeiros seriam responsáveis por identificar brechas, realizar enquadramentos
provisórios, agitar e encorajar a mobilização social” enquanto os segundos são os
“derivados”, “intérpretes criativos” do cenário aberto pelos primeiros, quando estes são bem-
sucedidos (WALSH-RUSSO, 2004; BRINGEL, 2013). O Movimento Passe Livre seria,
assim, um dos “movimentos madrugadores que acenderam a chama da mobilização social” no
cenário brasileiro, onde “por meio da reivindicação do passe livre estudantil, [o MPL] abriu
um campo de conflito e de debate mais amplo sobre o transporte coletivo urbano”
(BRINGEL, 2013).

3b. Crítica ao estadocentrismo: uma nova cultura política descentralizada e fragmentada


Contudo, apesar do protagonismo do MPL, seu repertório de ações transcendeu as
fronteiras do próprio movimento e foi apropriado por outros grupos e organizações,
espontâneas ou não, que estavam desenvolvendo processos similares36. A experiência
organizativa do MPL acabou por influenciar militantes envolvidos em outros tipos de ações
políticas que não diziam respeito apenas à questão do transporte público (ZIBECHI, 2013). O
ponto central aqui, apontado por Bringel, é que

ao contrário do previsto pelas teorias dos movimentos sociais, os movimentos


derivados aproveitaram-se, no Brasil, dos espaços abertos pelas mobilizações
iniciais, sem, contudo, manter laços fortes, enquadramentos sociopolíticos, formas
organizativas, referências ideológicas e repertórios de mobilização que os una ao
MPL e/ou a outros iniciadores. Essa aparente desconexão relaciona-se a um
fenômeno que gostaria de denominar como desbordamento societário, ou seja,
quando na difusão de setores mais mobilizados e organizados a setores menos
mobilizadores e organizados, os grupos iniciadores acabam absolutamente
ultrapassados (BRINGEL, 2013, grifos do autor).

O processo relatado por Bringel em muito advém da forma como os próprios


movimentos iniciadores, no caso o MPL, se organizaram. No Segundo Encontro Nacional do
Movimento Passe Livre, organizado em julho de 2005 em Campinas, São Paulo, o grupo

35
Raúl Zibechi (2013) aponta a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT)
como exemplos ilustrativos de modos de luta e organização, criadas após o fim da ditadura civil-militar, que não
dão mais conta de responder a esses desafios.
36
Entendo por repertórios como um conjunto de formas de ação coletiva familiares, que estão disponíveis à
disposição das pessoas ordinárias (ALONSO, 2012).
43
presenciou sua primeira tentativa de cooptação por parte de partidos da esquerda radical que
buscavam modificar as resoluções deliberadas em Porto Alegre37. Diante dessa ameaça, a
plenária reafirmou as suas posições de horizontalidade e de independência, além de decidir
que o movimento se constituiria a partir de uma “federação de grupos”, com um Grupo de
Trabalho federal ao invés de uma coordenação, evitando um caráter mais hierárquico no
referente ao modelo organizacional do movimento (MPL, 2005).
O próprio MPL, por conseguinte, faz parte dessa nova cultura política que ressalta não
só uma maior horizontalidade e descentralização dos modelos organizacionais, como também
opera em espaços politizados além dos canais políticos tradicionais-institucionais. As ruas, as
praças, os espaços públicos de discussão, como os colégios, tornam-se o locus da práxis
política. O processo de transcendência das formas de ação de uma organização como o MPL
faz parte do próprio repertório de ações do mesmo. O levante de junho e as redes que foram
sendo construídas no Brasil retomaram “uma matriz mais libertária e autônoma, polêmica e
complexa para o conjunto da esquerda brasileira”, onde emerge “um novo tipo de ação
política viral, rizomática e difusa” (BRINGEL, 2013).
O fato das jornadas de junho terem sido avaliadas a partir da sua “espontaneidade” –
onde fatores externos, como a repressão policial e o papel das redes sociais, ganharam um
sobrepeso indevido em relação a fatores internos ao movimento, como o processo de
articulação, organização e disseminação que começou a ser construído muito antes de 2013 –
muito se deve à forma como os movimentos sociais são vistos por parte da esquerda tanto
política quanto acadêmica. Zibechi, em outro texto, constata que não são poucos os dirigentes
políticos e acadêmicos que criticam a fragmentação e dispersão que os movimentos sociais
estão sofrendo. Além disso, “ambos os fatos são observados como problemas a superar
através da centralização e da unificação” (ZIBECHI, 2007). Argumentamos que essa
fragmentação e dispersão, todavia, fazem parte dessa nova cultura política e do novo
repertório de ação, para o qual o Movimento Passe Livre se apresenta como exemplo.
Isto posto, não é de se surpreender que fatores externos tenham sido sobrevalorizados
na compreensão das jornadas de junho; o caráter horizontal e descentralizado do MPL
impossibilitou que alguns acadêmicos e militantes pudessem conferir o protagonismo
apropriado ao Movimento na fomentação das manifestações multitudinárias, mesmo que este
depois tenha sido superado pelos movimentos derivados. Concordamos com Zibechi (2007)
que a criação e recriação dos laços sociais constituintes de um movimento não
necessariamente necessitam de nenhum tipo de articulação voltada para a centralização ou
para a unificação. A concepção de militância proposta pelo MPL caminha nesse sentido, ao
basear a sua ética na rejeição da separação entre “palavras e fatos (...), entre a vida pessoal e a
coletiva, e também entre quem toma as decisões e quem as executa, aspectos que marcham na
contracorrente da cultura política hegemônica, mesmo nos partidos de esquerda” (ZIBECHI,
2013).
A incapacidade de conferir o devido lugar de destaque a um movimento horizontal e
descentralizado vem da hegemonia de uma lógica analítica “estadocêntrica, que pressupõe a
unidade-homogeneidade do social e, assim, dos sujeitos” (ZIBECHI, 2007). Considera-se que
a regra do ser sujeito implica em algum grau de unidade, homogeneidade e não-fragmentação.
As dificuldades interpretativas das práticas e dos sentidos referentes às jornadas de junho
derivam da combinação desse viés analítico estadocentrista com a miopia do visível (onde são
ignoradas as redes submersas que vêm sendo construídas há anos) e com a miopia da política
(onde a análise é restrita apenas ao político-institucional, evitando assim a chamada
“reinvenção da política”, ou seja, a busca de novos espaços para atuação política uma vez que
o acesso aos canais tradicionais-institucionais são restritos à apenas uma parcela minoritária
da população). Conforme afirma Zibechi, “tanto os partidos de esquerda como os acadêmicos

37
Os partidos eram o Partido Operário Revolucionário (T-POR) e a Construção ao Socialismo (CAS).
44
interessados nos movimentos sociais seguem sustentando uma suposta centralidade da
política, como se os movimentos não fossem políticos e como se a inexistência de um ‘plano
detalhado’ e, por tanto, de uma direção, convertesse os movimentos em não-políticos”
(ZIBECHI, 2007).
Torna-se necessário, portanto, mudar as formas através das quais analisamos e
enfocamos esse objeto em especial, de modo a permitir visualizar as invisibilidades e os
lugares ocultos que constituem esses novos movimentos sociais e que escapam à
conceptualização acadêmica, estadocentrista e unitária. Esses movimentos já demonstraram
serem portadores de uma ampla potencialidade no referente à modificação do mundo social.
Portanto, segundo Bringel (2013), estamos diante de um grande desafio teórico e político,
pois o cenário atual nos exige “adaptar e renovar nossas formas de luta e de interpretação das
ações coletivas diante de atuações mais invisíveis, com maior protagonismo da agência
individual, da configuração de novos atores, de militâncias múltiplas e organizações mais
descentradas (conquanto não espontâneas) e de repertórios mais mediáticos e performáticos”
(BRINGEL, 2013). Em vista disso, novos referenciais teóricos e metodológicos necessitam
ser elaborados para dar conta da complexidade dos fenômenos que estão sendo construídos e
que culminaram nas grandes revoltas das jornadas de junho que presenciamos em 2013 Brasil
afora.

4. O caso do Rio de Janeiro: cidade-empresa e revolta popular


A hipótese desenvolvida aqui é a de que o esgotamento dos canais tradicionais de ação
política, como sindicatos e partidos políticos, em conjunto com a despolitização dos espaços
públicos decorrente de uma nova concepção de gestão da cidade e da normalização da
exceção, demandou uma resposta à altura por parte dos novos movimentos sociais para dar
conta de sustentar suas reivindicações diante dessa reconfiguração da cena institucional
política. Novas propostas de organização política, descentradas e horizontalizadas, surgem
com base em um descontentamento generalizado com as formas de atuação tradicionais.
O processo vivenciado pela cidade do Rio de Janeiro, em decorrência da sua escolha
para organizar uma série de grandes eventos, a seguir, os Jogos Pan-Americanos de 2007, os
Jogos Mundiais Militares de 2011, a Copa das Confederações de 2013, a Copa do Mundo de
Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, transformou expressivamente o espaço urbano
e o contexto político carioca; apesar de já ter sido ressaltada a problemática de considerar
apenas fatores externos como determinantes na disseminação de manifestações
multitudinárias, a hipótese é a de que esse processo vivenciado pela capital fluminense em
muito influencia as formas de mobilização populares que ali se desenvolveram.
Carlos Vainer (2011) explora de forma sistemática o processo pelo qual a cidade vem
passando desde 1993, tendo o Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro como momento
simbólico, senão fundador de uma nova concepção de cidade e planejamento urbano. Trata-se
de um projeto lento, complexo e contínuo de constituição de um bloco hegemônico que vem a
oferecer à “cidade em crise” um suposto destino promissor. O modelo a ser implantado é
chamado de “planejamento estratégico”, onde,

no lugar do planejamento moderno, compreensivo, fortemente marcado por uma


ação diretiva do estado, expressa, entre outros elementos, nos zoneamentos e nos
planos diretores, um planejamento competitivo, que se pretende flexível, amigável
ao mercado (market friendly) e orientado pelo e para o mercado (market oriented)
(VAINER, 2011).

Mais do que mero planejamento econômico, a atitude estratégica adotada pelos setores
dominantes trata-se de uma estratégia de poder. Na transição desse processo, podemos
observar uma série de substituições: no lugar do controle político e burocrático, eficiência
econômica e eficácia social; no lugar da rigidez institucional, flexibilidade estratégica de
45
modo a aproveitar as “janelas de oportunidade”; no lugar da busca pelo “interesse em
comum”, ter-se-ia o reconhecimento e legitimação da multiplicidade de interesses; no lugar da
razão e da norma geral, temos a negociação dos acordos caso a caso. As intervenções públicas
passam a ser guiadas pelas exigências dos atores privados, fazendo com o que o
desenvolvimento urbano seja entregue ao mercado. O que estamos presenciando é a
efetivação da concepção “cidade-empresa”, ou seja, uma nova forma de gestão de cidade que
emerge com a promessa de resolver a estagnação e a crise econômica.
Como resultado da instauração da cidade-empresa, implica-se a negação radical da
cidade enquanto espaço político. A flexibilidade inerente ao empreendedorismo urbano e à
essa nova concepção de gestão da cidade transfigura-se em um “permanente e sistemático
processo de desqualificação da política” (ibid.). O empreendedor político deve ser, antes de
tudo, um empreendedor econômico, um líder carismático capaz de mobilizar legislações e
recursos na solução da “crise urbana”. Contudo, a proposta de flexibilização, em sua forma
legal, acarreta em uma modificação da legislação e das práticas urbanísticas onde a “lei veio
legalizar o desrespeito à lei; ou melhor, veio legalizar, autorizar e consolidar a prática da
exceção legal” (ibid.)38. Ou seja, a exceção como regra. Torna-se fortuito, portanto, voltarmos
à discussão da exceção apresentada no princípio do presente artigo.
Vainer constata nessa nova concepção da cidade-empresa um requisito necessário para
o sucesso do modelo proposto: a crise urbana. Conforme o autor, “sem crise (...) é impossível
construir a unidade da pátria urbana em torno de um líder carismático ao qual, de certa
maneira, o conjunto das classes urbanas delegariam o poder para, de maneira ágil e flexível,
conduzir a cidade à vitória na competição com as demais cidades” (ibid.). Temos, assim, uma
“sensação generalizada de crise”, que prepara o terreno para esses novos modelos de gestão
da cidade. Realizando um paralelo com os postulados de Agamben sobre o estado de exceção,
a crise urbana é a metáfora da crise econômica e política, a qual autoriza como necessidade
emergencial uma nova forma de constituição do poder na/da cidade. Estado de exceção para
cidade de exceção, onde esta se afirma

como uma nova forma de regime urbano. Não obstante o funcionamento (formal)
dos mecanismos e instituições típicas da república democrática representativa, os
aparatos institucionais formais progressivamente abdicam de parcela de suas
atribuições e poderes. A lei torna-se passível de desrespeito legal e parcelas
crescentes de funções públicas do estado são transferidas a agências “livres de
burocracia e controle político” (ibid.).

É nesse sentido que a cidade dos megaeventos intensifica e generaliza a cidade de


exceção ao fazer com que organizações como a Federação Internacional de Futebol (FIFA) e
o Comitê Olímpico Internacional (COI) recebam do governo municipal isenções e favores
fiscais, monopólio dos espaços publicitários e monopólio de equipamentos esportivos
resultantes de investimentos públicos. A Lei Geral da Copa, demanda da FIFA para a
realização de suas competições nos países-sedes, cria uma nova legislação que viola
diretamente o Estatuto do Torcedor. Além disso, os monopólios para a concessão de serviços
em regiões da cidade ferem os direitos do consumidor (VAINER, 2013). Não satisfeita, as
remoções forçadas de 200 a 250 mil pessoas nas cidades-sedes da Copa violam o direito à

38
Vainer cita o exemplo do Estatuto da Cidade, onde se lê “Poderão ser previstas nas operações urbanas
consorciadas, entre outras medidas: I) a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação
do solo e subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerando impacto ambiental dela decorrente;
II) a regularização de construções, reformas ou ampliações executadas em desacordo com a legislação vigente”
(Lei 10.257).
46
moradia e à cidade39. Estamos diante, portanto, de uma “ilegalidade legal”, ou, como diria
Agamben, quando o excepcional é constituído como regra.
Não se espanta, portanto, a intensidade das manifestações e mobilizações populares
que a cidade do Rio de Janeiro presenciou durante as jornadas de junho de 2013.
Manifestações que, diga-se de passagem, foram reprimidas de forma brutal pelas forças
policiais, onde a polícia era apresentada tanto pelo governo quanto pela grande mídia como o
agente mantenedor da ordem pública. A violência policial mostrava-se como aceitável em
favor da manutenção da ordem e da paz enquanto atos de resistência realizados por
manifestantes eram tidos como vandalismos e criminosos (VIANA, 2013).
Como Charles Tilly, supracitado, bem demonstra, apenas o Estado-nação possui a
legitimidade do emprego da violência e da força; qualquer inimigo, no caso, interno, contrário
à ordem vigente, é prontamente reprimido sob o discurso de “proteger” a sociedade e seus
societários de seus inimigos, no caso, os “vândalos”. Contudo, conforme a argumentação
desenvolvida na seção anterior, fatores externos como a legalização do excepcional e a
violência policial não esgotam a compreensão das jornadas de junho. Assim como no resto do
Brasil, os protestos do Rio de Janeiro ganham novos sentidos se adotamos uma perspectiva
retrospectiva e histórica, onde passamos a conceber essas mobilizações como um processo em
constante movimento.
Citando alguns exemplos de mobilizações prévias às jornadas de junho, manifestações
contra remoções forçadas já vêm tomando conta de diversas comunidades e favelas, como no
Horto, em Manguinhos, no Morro da Providência, na Vila Autódromo, no Morro da Indiana,
no Morro da Babilônia, entre outras. No Morro do Borel, do Alemão, de São Carlos e da
Coroa, moradores denunciaram em atos públicos a violência policial, antes e depois da
implantação das Unidades de Política Pacificadora (UPPs). Os moradores do Morro do
Turano reagiram ao toque de recolher implementando pela UPP resistindo às forças policiais
(LACERDA & PERES, 2014).
Além disso, movimentos que colocam a favela como principal ponto de pauta foram
criados, com o intuito de denunciar a gentrificação, as remoções forçadas e a violência
policial, como o Favela Não Se Cala, em 2012, e a Rede de Comunidades Impactadas, em
2013. Temos também a resistência dos camelôs por meio do Movimento Unidos dos Camelôs
(MUCA), criado em 2003, além de manifestações contra políticas de recolhimento
compulsório de pessoas em situação de rua, contra o fechamento de escolas e de hospitais
públicos e contra a reintegração de posse de ocupações urbanas (ibid.). Portanto, assim como
no resto do Brasil, a cidade do Rio de Janeiro vem construindo redes, ocultas e submersas, de
mobilização política que tiverem seu início antes mesmo dos protestos de 2013.
Em suma, muitos dos movimentos que se originaram antes das revoltas populares, que
trouxeram milhões de pessoas para as principais avenidas do Rio de Janeiro, se mobilizaram
em torno de pautas que dizem respeito diretamente às questões relacionadas com a violação
de direitos humanos básicos decorrente dessa nova concepção de cidade-empresa. Ou seja,
“desafiados pela cidade de exceção, pela cidade-empresa e pela democracia direta do capital,
eles [os movimentos] agora as desafiam. Querem outra cidade, outro espaço público”
(VAINER, 2013). A “cidade neoliberal”, assim chamada por Vainer (2013), acabou por
aprofundar e agudizar profundamente as desigualdades e os problemas notórios que nossas
cidades herdaram de quatro décadas de desenvolvimentismo excludente: favelização,
informalidade, serviços precários, degradação ambiental, violência urbana, congestionamento
e tráfico e custos cada vez mais crescentes de um transporte público de péssima qualidade e
espaços urbanos segregados (ibid.).

39
Para uma análise extensa da violação sistemática de direitos humanos relacionada aos megaeventos realizados
na cidade do Rio de Janeiro, ver os dossiês anuais preparados pelo Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio
de Janeiro (2012; 2013; 2014).
47
Dessa forma, com o fechamento provocado pela despolitização da cidade-negócio das
vias políticas tradicional, novas métodos de organização e atuação política eram necessários.
O diálogo político-institucional deu lugar à ação descentrada, rizomática e horizontal, de
modo a permitir que esses movimentos possam politizar espaços, antes esquecidos, na busca
por seus direitos, suas pautas e suas reivindicações. A rua e a praça tornam-se o locus
primordial desse novo tipo de cultura política. Logo, não é possível definir apenas um ou dois
elementos determinantes na propagação das revoltas populares das jornadas de junho de 2013;
temos diante de nós uma ampla magnitude de fatores, não só os externos e visíveis, como a
repressão policial e a mobilização nas redes sociais, mas também a nova reconfiguração
política, econômica e social que nossas cidades estão vivenciando, além de como os
movimentos sociais estão lidando com esse novo cenário, se beneficiando de um acúmulo
histórico de repertórios, possibilidades e potencialidades de ações coletivas e políticas que
vêm se desenvolvendo através de redes muitas vezes submersas e ocultas há anos.

5. À guisa de conclusão
Vale destacar, todavia, que as hipóteses e ponderações levantadas nesse presente
trabalho possuem limites, dado que necessitam de um maior esforço acadêmico e da
construção de uma agenda de pesquisa que permita averiguar e testar esses postulados. O
objetivo desse trabalho foi de levantar questões e problematizar alguns procedimentos
metodológicos com o intuito de auxiliar investigações futuras. Entretanto, podemos finalizar
com ao menos uma certeza: um olhar multidimensional torna-se basilar para conseguirmos
chegar perto de esgotar a complexidade e a heterogeneidade do que foram as jornadas de
junho de 2013 no Brasil.
A importância representada por esse evento fará com que o mesmo seja (re)analisado
múltiplas vezes por estudiosos dos movimentos sociais. Contudo, certos cuidados
metodológicos se fazem necessários de modo a permitir uma melhor compreensão desse
fenômeno. Enquanto uma lógica analítica estadocentrista, unificadora e centralizadora
perdurar, as potencialidades e multiplicidades contidas nos movimentos que compuseram
essas revoltas populares serão sistematicamente depreciados. Uma releitura baseada no
redesenho do processo histórico, a partir de uma perspectiva retrospectiva, nos permitirá
evitar essas armadilhas, permitindo ir além das miopias para investigar ações, práticas e
relações que são concebidas e disseminadas muitas vezes em redes ocultas e submersas,
fornecendo novos sentidos para a ação e organização política.
O acompanhamento histórico do Movimento Passe Livre, desde a sua fundação até o
seu protagonismo nos protestos de 2013, em especial na cidade de São Paulo, desenvolvido
aqui e por outros autores ilustra esse cuidado analítico. O mesmo pode ser averiguado no caso
da cidade do Rio de Janeiro, mesmo que nesta outros atores estão ação40. Trata-se de um
desafio teórico e político nada óbvio, mas que é necessário ser enfrentando de modo a
podermos melhor adaptar as nossas lutas e nossas reflexões sobre uma questão a nós tão cara:
a modificação da realidade social para um mundo mais igualitário e inclusivo.

BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, Giorgio. (2004), Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo.

ALONSO, Angela. (2012), “Repertório, segundo Charles Tilly: história de um conceito”.


Sociologia e Antropologia. Vol. 2, nº 3, pp. 21-41.

40
O Movimento Passe Livre só começou a se fazer presente na cidade do Rio de Janeiro a partir de junho de
2013, mês de sua fundação nesse setor regional.
48
ARBEX JR., José. (2013), “Conjuntura no Brasil pode desembocar em crise revolucionária”.
Viromundo, julho de 2013. Disponível em < http://www.viomundo.com.br/politica/jose-
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51
O sindicalismo brasileiro sente as correntes que o prendem

Valéria L. Peçanha1
1
Colégio Pedro II - Niterói-RJ - vallpecanha@gmail.com

RESUMO: O movimento sindical brasileiro, após um largo período de baixa atividade se


moveu. Segundo dados do DIEESE, publicados em 2012 sobre o volume das greves, temos no
ano de 2012 um marco político que supera a baixa atividade do movimento sindical que durou
quase duas décadas. Em 2013, ano que seria reconhecido pela eclosão das lutas populares,
ocorre uma histórica alta na atividade política da classe trabalhadora, surpreendente e repleta
de peculiaridades, tais como o espontaneísmo, o antipartidarismo, as inovações nas estratégias
de comunicação e de mobilização que caracterizam os novos atores das ruas. Desse processo
derivam os choques e estranhamentos entre frações da classe trabalhadora organizada com
suas múltiplas formas, e também as cruéis e sistemáticas perseguições promovidas por setores
reacionários da grande mídia, das forças de segurança pública, dos governos e da Justiça. Os
rebatimentos destas manifestações não tardaram a exercer sua força sobre o sindicalismo e a
nos revelar muito mais sobre as necessidades de organização da classe trabalhadora na
atualidade. Nos ecos dos gritos das ruas, o movimento sindical se moveu e sentiu as correntes
da institucionalidade burguesa e da fragmentação da classe trabalhadora.

Palavras-chave: Manifestações; Sindicalismo; Luta de classes.

Até bem pouco tempo os estudos sobre sindicalismo pareciam profundamente


ultrapassados, havendo certo declínio quanto ao volume e amplitude das produções acerca da
ação sindical. Este cenário marcou minha trajetória desde o início do meu interesse em
pesquisar sindicalismo, quando me deparei com uma descrença geral na relevância do objeto
que havia escolhido, com argumentações que equiparavam as pesquisas sobre o movimento
sindical a “chutar cachorro morto”, além de óbvia persuasão para que mudasse para algo mais
“atual” e “relevante”. Apoiada na minha inserção no movimento sindical da educação iniciada
junto com a minha experiência como docente nas escolas públicas, resolvi insistir.

Passei os últimos anos tentando conhecer a história do movimento sindical, me


debruçando sobre as múltiplas formas assumidas pelo sindicalismo a fim de encontrar os
elementos mais basilares da organização de autodefesa dos trabalhadores na ordem capitalista.
Nesse ínterim me deparei com um relativo consenso entre os estudiosos do sindicalismo: a
fragmentação da classe trabalhadora era um elemento motivador das dificuldades de
organização do nosso tempo. Era necessário superá-la, diziam todos e eu concordava. Ao fim
concluíamos: era necessário que o movimento sindical retomasse sua direção revolucionária
já que, tal como Marx havia afirmado ainda no século XIX, esta era a única forma de superar
os limites economicistas do sindicalismo e elevá-lo ao nível da luta política contra a ordem
52
capitalista - a luta de classes à qual deveria se somar. Em síntese, esse era o sentido da ação
sindical que lamentávamos perdido nas décadas do avanço neoliberal, dispostos a fazer
reviver embora não soubéssemos como.

Este ciclo de estudos resultou na minha dissertação de mestrado desenvolvida no


PPGSS da ESS/UFRJ sob a orientação do Prof. Dr. Mauro Iasi, intitulada Crise do
sindicalismo e crise do capital: análise crítica da luta sindical em defesa do trabalho na
ordem capitalista e defendida em maio/2013. A partir deste rico aprendizado pude
compreender que, de fato, os momentos em que o movimento sindical se tornou mais
importante pra luta de classes foram aqueles em que a luta corporativista por melhores
salários e condições de vida foi travada sem se constituir como ponto máximo da estratégia
dos trabalhadores, mas ao contrário esteve vinculada a um projeto político do qual estes
mesmos trabalhadores eram sujeitos. Este foi o caso do novo sindicalismo brasileiro nos anos
70 e 80. Entretanto, o refluxo das lutas dos trabalhadores brasileiros diante do avanço
neoliberal nas duas últimas décadas significou um retrocesso das lutas sociais em geral,
fossem pelas necessidades salariais mais imediatas ou por um projeto político de sociedade.

A reascensão das lutas sindicais no Brasil

Pois bem! O movimento sindical brasileiro, após um largo período de baixa atividade
se moveu, como o demonstram a multiplicação das greves que têm se estendido pelo Brasil
nos últimos anos. Neste sentido, o DIEESE publicou no ano passado (2013) o Balanço das
Greves em 2012, em que apontou a ocorrência de 873 greves naquele ano e uma tendência de
ascendência da atividade sindical no período entre 2009 e 2012. Segundo o estudo:

“Foram contabilizadas 86,9 mil horas paradas em 2012. Há, neste indicador, a
confirmação de uma tendência de aumento nas horas paradas que vem sendo
percebida mais claramente desde 2009. A série histórica também revela que o
total anual de horas não trabalhadas em 2012 é o maior desde 1991.”
(DIEESE, 2012).

Neste sentido, tomando-se os dados oficiais sobre o volume das greves como
indicador da ação sindical, temos no ano de 2012 um marco político que supera a baixa
atividade do movimento sindical que durou quase duas décadas. Assim, em comparação ao
período anterior destaca-se que:

“A quantidade se aproxima dos primeiros anos do Plano Real – entre 1994 e


1996, o total de paralisações sempre superou mil. O número de horas não
trabalhadas (86,9 mil) foi o maior desde 1991.” (Vitor Nuzzi em matéria
publicada pelo site Rede Brasil Atual em 23/05/2013).

Entretanto, como é do conhecimento de todos, seria o ano subsequente 2013,


53
reconhecido pela eclosão das lutas populares, com uma histórica alta na atividade política da
classe trabalhadora, surpreendente e repleta de peculiaridades, tais como o espontaneísmo, o
antipartidarismo, as inovações nas estratégias de comunicação e de mobilização que
caracterizam os novos atores das ruas. Em 2013, tanto nas ruas das principais capitais
brasileiras quanto nas redes sociais, acontece um encontro de forças da esquerda brasileira.
Desse encontro derivam os choques e estranhamentos entre frações da classe trabalhadora
organizada com suas múltiplas formas, e também as cruéis e sistemáticas perseguições
promovidas por setores reacionários da grande mídia, das forças de segurança pública, dos
governos e da Justiça.

Os rebatimentos destas manifestações, que são por vezes entendidas como difusas e
confrontadoras do conceito de classe social e da viabilidade das formas organizatórias já
consagradas, não tardariam a exercer sua força sobre a forma de ação sindical e a nos revelar
muito mais sobre as necessidades de organização da classe trabalhadora na atualidade. Nos
ecos dos gritos das ruas, o movimento sindical se moveu e sentiu as correntes da
institucionalidade burguesa a se exercer de muitas formas e principalmente através do arbítrio
do poder judiciário.

Assim, seguiu-se ao aguerrido 2013 - cujos números oficiais ainda aguardamos, uma
vez que até o presente momento (setembro/2014) o DIEESE não publicou os números
referentes às greves desse ano histórico - o ano de 2014, que se iniciou repleto de lutas
travadas por trabalhadores em defesa de seus interesses em distintas áreas.

Greve ilegal? Perseguição patronal!

Dentre os casos que mais ganharam repercussão estão os professores das redes
municipal e estadual no RJ, que estiveram em greve entre maio e julho de 2014, os
rodoviários da cidade do Rio de Janeiro que realizaram diversas paralisações como forma de
pressionar as negociações salariais entre os maio e junho de 2014, os metroviários de SP que
também no mês de junho de 2014 realizaram diversas paralisações motivadas por
reivindicações de reajuste salarial. Em todos estes casos diversas instâncias do Poder
Judiciário atuaram em favor do patronato, decretando em distintas cortes a ilegalidade destas
greves e, em geral, sancionando penalidades aos sindicatos principalmente sob forma de
vultuosas multas. Vejamos:

“Os funcionários da rede estadual de ensino que estão em greve terão que
voltar ao trabalho nesta quarta-feira (27), segundo a presidente do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, Leila Mariano. A desembargadora considerou que a
paralisação é ilegal. Segundo a deliberação, se os funcionários não retomarem
as atividades serão considerados faltosos e o sindicato responsável pela
categoria receberá multa de R$ 300 mil por dia.” (Trecho de matéria
54
publicada no site G1 em 27/05/2014 sobre as decisões do TJRJ acerca da
greve dos professores).
E também:

“O Tribunal Regional do Trabalho do Rio (TRT) julgou ilegal e abusiva a


greve dos rodoviários do município. O julgamento do processo movido
pelo sindicato das empresas de ônibus (Rio Ônibus) contra a entidade que
representa a categoria (Sintraturb) foi realizado na tarde desta segunda-feira,
na Seção Especializada em Dissídios Coletivos, no Centro. A decisão proíbe
ainda novas paralisações, sob pena de multa diária de R$ 50 mil ao
Sintraturb. Os dias não trabalhados pelos funcionários também serão
descontados.” (Trecho de matéria publicada no site do Jornal O Dia em
06/06/2014 sobre as decisões do TRT-RJ acerca da greve dos rodoviários do
município do Rio de Janeiro).
Do mesmo modo:

“O TRT-SP (Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo) decidiu, por 8


votos a 0, que a greve dos metroviários da capital paulista, que neste domingo
(8/6) completa quatro dias, é ilegal e abusiva. A decisão também determinou a
aplicação da multa diária de R$ 100 mil para que a categoria trabalhasse 100%
durante os horários de pico (70% em outros horários), o que não ocorreu.
Horas depois, o sindicato dos metroviários decidiu, por assembleia, continuar
a paralisação. O tribunal se reuniu em sessão extraordinária. A reunião contou
com também a participação de representantes do Metrô e do Sindicato dos
Metroviários, que, mais uma vez, não chegaram a um acordo para reajuste
salarial.(...) Caso os metroviários mantenham a greve, a multa passará a ser de
R$ 500 mil por dia, segundo o TRT.” (Trecho de matéria publicada no site do
Jornal Última Instância em 08/06/2014 sobre as decisões do TRT-SP acerca
da greve dos metroviários de SP).
Entre os meses de maio e junho de 2014, presenciamos no contexto da Copa do
Mundo, a retomada de atividades paredistas entre diversas categorias de trabalhadores. Em
face das reivindicações dos trabalhadores brasileiros por melhores salários e condições de
trabalho, desencadeou-se neste período uma onda de decretos de ilegalidade das greves que
nos chama a atenção pela uniformidade no tratamento dado pelo judiciário brasileiro a greves
tão distintas entre si no que tange suas pautas, suas categorias e seus históricos de
mobilizações. Concluímos, portanto, que neste período a decretação de ilegalidade das greves
constituiu um dos mecanismos mais recorrentes da perseguição patronal, embora não tenha
sido o único. Ao contrário no âmbito patronal, o posicionamento do Poder Judiciário parece
ter encorajado o patronato a todo tipo de arbitrariedades, tais como demissões, descontos
salariais, inquéritos administrativos etc., configurando deflagrada retaliação política e
desrespeito aos direitos dos trabalhadores brasileiros.

Assim, em 12 de junho de 2014 o governo alardeava as demissões dos professores


grevistas:

“A secretaria estadual de Educação do Rio de Janeiro informou que está


abrindo processo administrativo para demitir 146 professores que tenham
faltado mais de dez dias consecutivos desde o dia 12 de maio, quando foi
55
deflagrada greve da categoria. Segundo a assessoria de imprensa da pasta, os
profissionais "vão responder por abandono de emprego" e terão os salários
cortados.” (Trecho de matéria publicada no site UOL Educação em
12/06/2014).
Desconsiderando-se as múltiplas particularidades de cada movimento, as greves
despertaram uma reação unívoca, sendo consideradas pela Justiça brasileira como ilegais,
abusivas, sofrendo a imposição de pesadas multas sobre suas instâncias sindicais, além de
autoritárias exortações de retorno imediato ao trabalho. Esta uniformidade despótica que
caracteriza o tratamento dispensado aos trabalhadores pelo Estado brasileiro se concretizou
como uma deliberada obstaculização de reivindicações democráticas.

É curioso como, na democracia capitalista do século XXI, vêm se destinando a todo e


qualquer foco de mobilização popular um tipo de reação que não titubeia em contrariar as leis
constitucionais que constituem o marco regulatório da sociedade democrática. No calor dos
acontecimentos, Souto Maior publicou no Blog da Boitempo um artigo intitulado As
ilegalidades cometidas contra o direito de greve: o caso dos metroviários, em que apontou -
tendo como referência a greve dos metroviários de São Paulo - que o que se efetivou naquele
contexto foi a própria negação do direito de greve, constitucionalmente garantido pelo artigo
9º da Constituição Federal de 1988, que afirma que: “É assegurado o direito de greve,
competindo aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os
interesses que devam por meio dele defender”.

Desrespeitando o pacto democrático, a fração burguesa apossada da burocracia estatal


negou direitos consolidados historicamente pelas lutas dos trabalhadores e impôs sobre a
população um Estado de exceção - justificado pelas leis e demandas da Copa - que se
configurou como uma barbárie institucional. Assim, presenciamos a ampla utilização das
distintas esferas da máquina pública para a garantia de interesses privados em deliberado
prejuízo dos trabalhadores, que passaram a ser perseguidos politicamente pelas vias do
próprio Estado. É este o caso dos professores grevistas das redes municipal e estadual do RJ
que estão sofrendo processos administrativos por abandono de emprego, quando na verdade
suas ausências foram decorrentes da greve sobre a qual os respectivos governos tinham total
ciência.

Nestas mesmas redes, profissionais em estágio probatório foram ameaçados de


demissão sob a falsa justificativa de faltas injustificadas durante o período em que estiveram
em greve. O que estes servidores perseguidos pelas vias da instituição têm em comum? São
grevistas, trabalhadores que exigem seus direitos e por isso vêm sofrendo o mais cruel tipo de
retaliação: uma ampla negação dos direitos do trabalho que lhes ameaça a subsistência, a
carreira e a vida, enfim.
56
Figura 1: Professores reunidos em manifestação no Rio de Janeiro em 2014.

Instaurada a negação da democracia e suprimidos os direitos, tal como apontou


Ricardo Antunes no artigo Direito de se conformar publicado em O Estado de São Paulo em
14 de junho de 2014, o Estado brasileiro estaria reservando à população brasileira o direito a
se conformar. E de fato, diante da forte repressão estatal e da persistente fragilidade
organizatória da esquerda brasileira, não é difícil entender o impulso de tantos trabalhadores
por uma resposta imediatista do tipo “se a Justiça ordenou, voltemos ao trabalho!”.
Entretanto, cabe lembrar que esse não foi o caso dos garis do Rio de Janeiro na vitoriosa
greve durante o período do carnaval de 2014: eles resistiram à chantagem patronal, às
perseguições que se impuseram chegando a ameaçar 300 garis de demissão e, a despeito de
toda repressão, conseguiram o reajuste exigido. Na verdade conseguiram bem mais do que
isso, nos deram uma aula de mobilização política com amplo senso de autonomia, firmeza,
estratégia, e a sua vitória os fortaleceu enquanto categoria é verdade, mas ainda os
transcendeu e fortaleceu a luta dos trabalhadores brasileiros em geral.

Cabe-nos então, reforçar esta urgente denúncia: a tentativa deliberada de dissuadir o


movimento grevista pelas vias estatais - que constitui um arco de forças institucionais que se
estende da ostensiva repressão policial até a perseguição administrativa, incluindo os poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário - contraria os direitos constitucionais da classe
trabalhadora.

57
O que presenciamos é a própria ameaça do direito de greve que constitui a ameaça da
possibilidade dos trabalhadores defenderem os seus interesses na sociedade capitalista. Em
caso de derrota dos trabalhadores, é possível que se abram as portas de nova etapa da relação
entre capital e trabalho no Brasil. Uma etapa histórica em que a dominação do capital sobre o
trabalho se exerce de um modo ainda mais duro, direto, como já vemos acontecer nos países
europeus em crise tais como Grécia, Portugal, Espanha e até mesmo nos Estados Unidos.

Velhas correntes e o prenúncio de novos tempos

O uso deliberado do Estado como “comitê da burguesia” esvaziado da aparência


conciliadora entre capital e trabalho revela a superação ou pelo menos a defasagem do pacto
fordista, erguido sobre o tripé capital, estado e trabalho. A questão que se coloca então é: se a
ordem capitalista parece não reservar mais espaço para acordos e demais tipos de conciliações
entre as classes fundamentais, então o que fazer das instâncias sindicais no capitalismo do
século XXI? Será possível recompor este espaço?

A burocratização do movimento que se reflete no vasto contingente de direções


sindicais que apossadas do aparelho sindical atuam de maneira alheia e até mesmo contrária
àquelas que deveriam representar, além da fragmentação das forças de organização classista
expressas nas competições político-partidárias e da fragmentação da classe trabalhadora em
si. De todo modo, cabe-nos destacar que a reascensão das lutas sindicais não foi de forma
alguma motivada pela atuação das instâncias tradicionais do sindicalismo, mas constituem um
rebatimento das manifestações de massa nas instâncias organizatórias da classe trabalhadora.

Talvez o principal indicador desse “mover que sente as correntes” esteja nos conflitos
entre base e direção, que presenciamos em casos recentes nas greves de diversas categorias.
Diante da ausência de combatividade das direções sindicais é a própria base sindical que têm
promovido greves, pressionando suas direções em alguns casos e em outros em aberto
conflito e ruptura com as mesmas. Este elemento pode ser observado no percurso da greve
dos rodoviários do município do Rio de Janeiro, que se estende desde que a negociação
salarial entre SINTRATURB (Sindicato dos Motoristas e Cobradores de Ônibus da cidade do
Rio de Janeiro) e Rio Ônibus foi rejeitada por grupos dissidentes da base dos rodoviários que
não aceitaram o acordo firmado por seu sindicato.

De um modo parecido, também os garis da Comlurb na greve histórica durante o


Carnaval de 2014, afirmando não se sentirem representados pelo SEEACMRJ (Sindicato dos
Empregados de Empresas de Asseio e Conservação do Município do Rio de Janeiro)
decretaram greve à revelia de sua direção e saíram vitoriosos. E até mesmo em sindicatos de
tradição combativa como o SEPE (Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do RJ)
58
podem-se sentir as mudanças na direção política do movimento em função da pressão
exercida pela radicalização de frações atuantes da base dos trabalhadores. Os anseios de luta
da classe trabalhadora vêm contrariando suas direções sindicais e, inclusive, “passando por
cima” destas.

Passado um ano das manifestações de massa que ganharam as ruas do país, a disputa
pelo significado do movimento permanece, bem como apenas se iniciaram as tentativas de
entendê-lo e caracterizá-lo. Entre estes esforços também se inclui considerável hostilidade que
se estende desde grupos conservadores, tais como o conglomerado midiático que desde o
início se lançou numa campanha deliberada de criminalização destas manifestações, até
parcelas da esquerda tradicional, que veem confrontados seus referenciais de participação e de
representação política. Em geral, diz-se que as mobilizações carecem de organização, razão
pela qual estariam destinadas a entrar em declínio. Para confirmar tal prognóstico bastaria que
se observasse a quantidade decrescente de manifestantes ou a desordem das massas, ou ainda
a falta de consciência de classe que caracterizariam estes movimentos. Em tudo isso se oculta
o fator fundamental de um possível esvaziamento das ruas: não se trata tanto de carência de
organização, mas da violência de Estado dentre tantos fatores possíveis. E ainda assim as
manifestações persistem! Muito embora, as correntes estejam se mostrando extremamente
desafiadoras.

Considerações Finais

Às vésperas da Copa se intensificaram as críticas lançadas contra as manifestações e


greves que se multiplicaram naquele período, reunidas sob o mote “não vai ter copa”. E
afinal, o que tinha a Copa a ver com as condições de trabalho mais permanentes dos
brasileiros para que, de repente, surjam tantas greves em diversos setores da economia? Cabe-
nos contribuir para esclarecer tal questão. É através da ação sindical que os trabalhadores
reivindicam sua parcela dos frutos da expansão capitalista - a que lhe cabe sob a forma dos
salários -, e o poder de barganha dos trabalhadores anda em alta neste período quando, em
plena Copa do Mundo mais do que nunca, os trabalhadores são imprescindíveis. Deste modo,
ainda que estas greves pareçam confusas e carentes de orientação estratégica, elas são a
própria expressão do senso de estratégia dos trabalhadores brasileiros.

Sustentamos então que, para além dos destinos destas mobilizações, estas já teriam
exercido efeitos importantes que nos caberá apontar neste espaço. Quais foram de fato, até o
presente, os efeitos gerados pelas novas mobilizações populares urbanas para a luta de
classes?

Cabe retomar dois elementos presentes na luta de classes que se destacam na obra de
59
Rosa Luxemburgo e que tem tudo a ver com as questões levantadas: espontaneísmo e
organização. Em primeiro lugar, as recentes mobilizações têm sido caracterizadas como
espontaneístas e, embora tal termo seja utilizado de forma pejorativa, é justamente o
espontaneísmo deste movimento que vêm demonstrando potencial de mobilização das massas.
Em segundo lugar, trata-se de repensar a organização da classe trabalhadora no século XXI.
Se tomarmos como exemplo o olhar atento de Rosa Luxemburgo sobre as novas formas de
mobilização das massas do seu tempo (as greves de massa apareciam em 1905 na Rússia
como elemento determinante da luta de classes que estenderia até a Revolução Russa) nos
caberá uma necessária e urgente reflexão sobre a organização política da classe trabalhadora
no século XXI. Muito se fala da necessidade de superação da fragmentação e de reconstrução
da capacidade de organização da classe trabalhadora, mas pouco se reconhece do potencial
apresentado até aqui pelas mobilizações recentes, com suas novas formas de mobilização e
organização. São justamente elas as grandes motivadoras das lutas anticapitalistas que
presenciamos no Brasil nos últimos anos: são a fonte do movimento, da ação e da nova
consciência política que vemos surgir no nosso tempo. E a despeito desta ampla desconfiança
gerada - até mesmo entre frações da esquerda brasileira - e de todas as tentativas de
criminalização por parte da grande mídia e do Estado, uma nova consciência política
anticapitalista surge no século XXI e se legitima no seio da classe trabalhadora, provocando
mudanças expressivas na cultura política do povo brasileiro, tensionando o status quo,
compelindo ao movimento todo o complexo cenário da política nacional e impulsionando a
resistência dos trabalhadores brasileiros. Enfim, tudo se move, tudo se acirra e muito das
contradições que nos tangem se revela. Movimento! E como a própria Rosa Luxemburgo nos
diz: quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem.

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sp+greve+do+metro+e+ilegal+e+abusiva+metroviarios+mantem+paralisacao.shtml –
consultado em junho/2014.

http://blogdaboitempo.com.br/2014/06/08/as-ilegalidades-cometidas-contra-o-direito-de-
greve-o-caso-dos-metroviarios-de-sao-paulo/ - consultado em junho/2014.

http://educacao.uol.com.br/noticias/2014/06/12/rede-estadual-do-rj-deve-demitir-146-
professores-grevistas.htm - consultado em junho/2014.

http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,direito-de-se-conformar,1511591 – consultado em
junho/2014.

http://www.sul21.com.br/jornal/garis-usam-os-quatro-dias-do-carnaval-para-movimento-
historico-no-rio-de-janeiro/ - consultado em março/2014.

61
Os sentidos da indignação social no Brasil

Thiago B. Peres1, Renata B. Lacerda2

1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IESP/UERJ, Campus de Botafogo, Rio de Janeiro-RJ –
thiagobperes@hotmail.com
2
Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPGSA/UFRJ, Campus do Centro, Rio de Janeiro-RJ –
relacer@hotmail.com

Resumo
A presente pesquisa uma interpretação possível acerca dos “protestos que marcaram o país”.
A argumentação divide-se em dois planos analíticos distintos e complementares. O primeiro,
historiográfico, segue os cuidados metodológicos propostos por Bringel (2013), cujo objetivo
principal é corrigir uma série de miopias presentes nas análises sobre o que vem se
convencionando denominar as jornadas de junho. Baseando-nos em relatos, cartazes,
bandeiras e palavras de ordem de movimentos sociais que compuseram a organização dos
protestos, o segundo plano observa como demandas já existentes convergiram nessas
mobilizações e como as principais pautas foram sendo construídas neste processo. Nosso
objetivo é demonstrar as relações entre as mobilizações e demandas históricas e as
mobilizações recentes enfatizando a multiplicidade de perspectivas e de possibilidades abertas
pelo que vem se convencionando denominar as Jornadas de Junho. Desse modo as
manifestações multitudinárias serão tratadas como um processo histórico, inteligível em sua
complexidade somente quando abordado em retrospectiva.
Palavras chave: Jornadas de Junho; Ação Coletiva; Direito à Cidade, Poder Popular, Redes
Sociais Digitais.

1 Introdução
A presente pesquisa expõe interpretação possível, entre muitas, acerca dos “protestos que
marcaram o Brasil”. A argumentação divide-se em dois planos analíticos distintos e
complementares. O primeiro, historiográfico, segue os cuidados metodológicos propostos por
Bringel (2013), cujo objetivo principal é evitar uma série de miopias ao analisar o que vem se
convencionando denominar as jornadas de junho. O segundo plano, etnográfico, permite
observar convergências entre as mobilizações de junho de 2013 e demandas reivindicadas há
anos – por vezes, décadas – por vários coletivos. Desse modo, as manifestações
multitudinárias são tratadas como um processo histórico, inteligível somente quando
abordadas em retrospectiva.
De acordo com Bringel (2013), a dificuldade interpretativa relativa às manifestações de junho
não é resultado apenas da complexidade de se examinar um contexto em constante mudança.
É também a consequência de uma série de miopias, a saber: miopia temporal
passado/presente; miopia da política; e a miopia do visível. A primeira tende a
sobredimensionar as lutas atuais classificando-as como novos mitos fundadores; a segunda
restringe a política à sua dimensão político-institucional, impossibilitando a compreensão da
reinvenção da política e do político a partir das práxis sociais emergentes. A miopia do visível
refere-se à limitação interpretativa das mobilizações contemporâneas à sua face visível (nas
ruas e nas praças), sendo incapaz de captar os sentidos das redes submersas, suas identidades
e os significados das dimensões invisíveis para um observador externo. (BRINGEL, 2013, p.
44).

62
Concordamos com a ponderação de Arbex Jr. (2013), segundo a qual as manifestações no
Brasil vinham se anunciando há tempos, embora “só retrospectivamente os sinais ganhem
visibilidade”. Dessa forma, analisamos as manifestações como um processo, corrigindo
historicamente nosso foco interpretativo por meio da associação entre as primeiras
manifestações impulsionadas pelo Movimento Passe Livre (MPL) e as mobilizações
anteriores, as quais, por meio de suas redes (visíveis e subterrâneas), produziram o acúmulo
necessário para que transbordasse nas manifestações multitudinárias. Em sua argumentação,
Bringel analisa os protestos de junho de 2013 apoiando-se na distinção analítica proposta por
McAdam (1995) entre movimentos iniciadores (“initiator” movements) e movimentos
derivados (“spin-off” movements):
Os primeiros seriam responsáveis por identificar brechas, realizar enquadramentos
provisórios, agitar e encorajar a mobilização social, e, quando bem-sucedidos [...],
passariam a acompanhar-se dos segundos, os derivados, “intérpretes criativos” do
cenário aberto. Haveria, assim, movimentos madrugadores que acendem a chama
da mobilização social. No caso brasileiro, há certo consenso que um dos principais
atores iniciadores foi o Movimento Passe Livre (MPL), movimento social autônomo
que, por meio da reivindicação do passe livre estudantil, abriu um campo de conflito
e de debate mais amplo sobre o transporte coletivo urbano. (BRINGEL, 2013, p. 44,
grifos do autor).
Vejamos esse ponto mais detidamente. O MPL de São Paulo começa a fazer debates acerca da
possibilidade de se estabelecer o passe livre desde 2005 na cidade de São Paulo. Sua carta de
princípios é redigida e aprovada na Plenária Nacional pelo Passe Livre, no V Fórum Social
Mundial, realizado em Porto Alegre. Em 2006, foi criada a Frente de Luta Contra o Aumento,
que realizou uma série de manifestações em São Paulo nos dias 25 e 30 de novembro, assim
como no dia 1º de dezembro, além de outros atos regionais. Em janeiro e fevereiro de 2010, o
MPL/SP organizou outros protestos contra o aumento das tarifas por meio da criação, junto
com outros grupos políticos, da Rede Contra o Aumento da Tarifa. No final de 2010, houve
mais três manifestações no centro da cidade.
No início de 2011, seguiram-se manifestações semanais com a mesma pauta e exigindo a
abertura de diálogo com o secretário de Transportes e com Gilberto Kassab – na época,
prefeito de São Paulo. Mesmo sofrendo repressões sucessivas durante as manifestações, tanto
pela polícia militar quanto pela guarda civil, outros grupos se mobilizaram junto ao MPL,
conseguindo reunir mais de 5 mil pessoas no centro da cidade de São Paulo no 7º ato de
201141. Nesse mesmo ano, manifestações em Belém e em Porto Velho conseguiram reverter o
aumento das tarifas na primeira cidade e suspendê-lo por duas semanas na segunda.
Contudo, já em 2003, em Salvador, contínuas manifestações – denominadas pelos militantes
de Revolta do Buzu – com milhares de pessoas fecharam as vias públicas protestando contra o
aumento da tarifa e paralisando a cidade por três semanas. Se mesmo com a intensidade das
manifestações não se obteve a redução da tarifa do transporte público, a experiência de
Salvador inspirou, um ano depois, em 2004, a realização de protestos pela redução das tarifas
em Florianópolis – conhecidos como a Revolta da Catraca. A pressão exercida pelos milhares
de manifestantes – a prefeitura decretou ponto facultativo para funcionários estaduais,
suspensão das aulas de colégios municipais e estaduais, e a “Câmara dos Dirigentes Lojistas
orientou os comerciantes do centro da cidade a não abrirem as portas” (LUDD, 2004, p. 15)
― concretizou-se na suspensão do reajuste por meio de uma medida judicial levada a cabo
pelo juiz federal Jurandi Borges Pinheiro: “Ocupando terminais e bloqueando a ponte que dá
acesso à ilha, os protestos forçaram o poder público a revogar o aumento e serviram de base
para a fundação do MPL no ano seguinte” (MPL-SP, 2013, p. 15).
As revoltas em Salvador e em Florianópolis, portanto, são lembradas como referências-chave
para a fundação do movimento. Percorrer os caminhos dos fluxos de inspiração que cada

41
Para uma cronologia das manifestações organizadas pelo MPL, ver MPL-SP (2013, p. 18).
63
mobilização produz sobre as outras nos fornece elementos para irmos além da face visível das
manifestações: a ênfase na repressão e a mobilização via redes sociais digitais como vetores
privilegiados do protesto.
Vejamos dois exemplos42: em Lifschitz (2013), acompanhamos a história da trajetória de Guy
Fawkes, católico inglês que pertencia a um grupo religioso que lutava contra a proibição dos
direitos políticos papistas cujo plano era explodir a “Câmara dos Lordes quando o rei
anglicano Jaime I estivesse reunido com os parlamentares” (LIFSCHITZ, 2013, p. 705).
Enforcado, Fawkes é alçado a símbolo cuja história inspirou o romance gráfico V de
vingança, de Alan Moore, e o filme homônimo dirigido por David Lloyd em 2006. Em seu
artigo, Lifschitz aborda o uso de máscaras de Fawkes por alguns manifestantes. Entretanto,
em termos de análise crítica, as jornadas de junho aparecem como uma relação de causa e
efeito de repressão policial e reação à repressão:
Causa 1: protesto pelo aumento do preço das passagens de ônibus. Efeito 1: passeata
pela redução do preço das passagens de ônibus. [...]
Causa 4: a violência policial é registrada nas redes sociais e provoca fortes reações
na mídia internacional. Efeito 4: nas manifestações seguintes, a polícia faz “corpo
mole” (expressão popular que bem caracteriza uma atitude de resignação e
complacência), permitindo que grupos avancem nas ruas como um poder demolidor
e destrutivo. (LIFSCHITZ, 2013, p. 701).
No artigo de José dos Santos e Valmaria Santos, podemos conferir, por meio de mapas e
ilustrações, a geograficidade dos protestos contra o reajuste da tarifa do transporte – que,
segundo os dados levantados, ocorreram, “pelo menos, em 104 cidades de 17 estados,
conforme levantamento do Portal G1, em três de julho de 2013” (SANTOS; SANTOS, 2013,
p. 18). Podemos conferir também o papel das redes sociais digitais nas manifestações –
chamado de meio comunicacional e entendido como uma fase atual do espaço geográfico, em
que a informação e os instrumentos de comunicação (computadores, notebooks, celulares,
smartphones etc.) constituem objetos técnicos presentes, possibilitando redes de
comunicações entre sujeitos socioespaciais diversos. (SANTOS; SANTOS, 2013, p. 8).
Segundo os autores, conectadas umas às outras, as pessoas interagem e articulam-se de forma
descentralizada, horizontal. As redes sociais digitais alterariam as escalas, dissolveriam
fronteiras, sendo “extremamente usadas, nesse meio técnico-científico-informacional, como
mecanismo de poder e lutas por melhorias” (SANTOS; SANTOS, 2013, p. 20). De fato, há
relevante papel das redes como meio de organização das manifestações. Conforme pesquisa
realizada pelo Ibope43, 86% dos manifestantes se mobilizou por meio de redes sociais como o
Facebook e o Twitter, e os que utilizaram alguma rede social para convocar outras pessoas
somam 75%.
Entretanto, a reação à repressão e o uso de redes sociais digitais para convocar protestos são a
face visível das manifestações – elementos importantes, mas sobre-estimados. Ao interpretá-
las historiograficamente, como veremos no caso do Rio de Janeiro, compreendemos os fluxos
que inspiraram outras movimentações pelo Brasil, as quais emergiram dialogicamente tanto

42
As miopias sugeridas por Bringel (2013) são adotadas neste artigo como “cuidados metodológicos” para nossa
análise sobre as manifestações. Selecionamos dois artigos como exemplo da ausência desse rigor metodológico.
Cabe salientar a estratégia muito comum, porém grosseira, de acusar de reducionismo uma teoria previamente
reduzida. Entretanto, os dois artigos são abordados aqui menos por sua miopia que por serem representativos na
ênfase de determinados elementos (nesse caso, a repressão e as redes sociais digitais) nas interpretações das
manifestações.
43
A pesquisa foi realizada nas capitais de sete estados (SP, RJ, MG, RS, PE, CE, BA) e em Brasília na quinta-
feira, dia 20 de junho de 2013. Foram entrevistados 2.002 manifestantes com 14 anos ou mais, com margem de
erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos. Segundo o Ibope, as entrevistas foram feitas por uma
equipe de entrevistadores treinada para a abordagem desse tipo de público. Mais detalhes em:
<http://g1.globo.com/brasil/no-ticia/2013/06/veja-integra-da-pesquisa-do-ibope-sobre-os-manifestantes.html>.
Acesso em: junho de 2013.
64
pelos laços de solidariedade (contra a repressão) quanto pelos de inspiração – o acúmulo do
debate sobre mobilidade urbana para além das redes sociais digitais (VIANA, 2013),
conforme veremos mais adiante. Porto Alegre, São Paulo, Goiânia, Natal, Belém,
Florianópolis, Brasília, Rio de Janeiro, Teresina, Maceió, Curitiba, Recife, Fortaleza, além de
outras cidades, inclusive do interior, foram marcadas por grandes manifestações a partir de
2013 por meio desses fluxos – ainda que com especificidades locais quanto aos agentes que
tiveram mais destaque no processo e às suas formas de atuação.

2 Miopia temporal presente/passado: o caso do Rio de Janeiro


Na cidade do Rio de Janeiro, a pauta sobre mobilidade urbana passou a ganhar espaço com o
Fórum de Lutas contra o Aumento da Passagem, em janeiro de 2012, que se voltou contra os
aumentos nas barcas, nos ônibus e no metrô. Ao lado dos exemplos de outras cidades quanto à
redução das tarifas de transporte, houve, no Rio de Janeiro, uma convergência entre diversas
mobilizações anteriores à primeira grande manifestação no dia 10 de junho na Cinelândia.
Através de um breve relato das manifestações, demonstraremos essa convergência por meio
dos cartazes44, bandeiras e palavras de ordem entoadas pelos manifestantes, que, ao lado de
outras bandeiras mais pontuais, exigiam o cumprimento de demandas específicas e
reivindicadas há anos – por vezes, há décadas – no Rio de Janeiro. Analisar essa convergência
também nos permitiu corrigir o foco do que Bringel aponta como miopia temporal
presente/passado – uma miopia que tende a sobredimensionar as lutas atuais considerando-as
novos mitos fundacionais:
Se isso, em geral, acontece com os jovens, gerações que participaram de outras lutas
sociais de relevância societária tendem sempre a compará-las, supervalorizando
aquelas nas quais estiveram mais diretamente envolvidos (algo habitual no Brasil
com as lutas contra a ditadura). Em ambos os casos, há um problema sério de
memória histórica e de transvase intergeracional da militância. (BRINGEL, 2013, p.
44).
Portanto, para corrigir nosso foco interpretativo, faz-se necessário destacar essas lutas e
observar suas convergências com as jornadas de junho. Encontramos uma primeira
convergência nas lutas contra a remoção dos indígenas e na tentativa de demolição do prédio
da Aldeia Maracanã.
Completamente abandonado (vidros quebrados, paredes pichadas, fachada deteriorada, lixo
acumulado), o prédio foi ocupado por indígenas em 20 de outubro de 2006. Com o auxílio de
militantes de outros movimentos sociais, os indígenas realizaram mutirões de limpeza para a
reapropriação do local. Sensibilizado com a manifestação do grupo, Pedro Cabral,
superintendente do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), recebeu-o
“em sua sede no centro do Rio de Janeiro e deu parecer favorável para a construção do centro
de culturas indígenas” (BARRETO; LOPES, 2013, p. 1). Por muitos anos os subsídios para a
reforma do prédio foram aguardados.
Segundo Barreto e Lopes,
enquanto isso o grupo de ocupantes recebia visitas de simpatizantes que
apresentaram ideias para revitalização do espaço, não dependendo apenas da venda
do artesanato, mas realizando cursos, palestras, para as escolas e universidades do
Rio de Janeiro. [...] A localização do espaço ocupado pela Aldeia Maracanã é de
extrema importância para os povos indígenas por seu valor histórico. Contudo, este
local também é alvo de grande especulação imobiliária, pois a proximidade ao bairro
central da Capital, a proximidade do trem e metrô, e principalmente por ficar ao lado

44
A pesquisa faz parte de um projeto maior sobre o que vem se convencionando denominar as jornadas de junho
(LACERDA; PERES, 2014). Agradecemos à todos que contribuíram com este trabalho e em especial à fotógrafa
e cientista social Stéphanie Nicolato Chauvin (www.stephaniechauvin) por seus comentários e pelo
fornecimento de fotos dos cartazes e dos protestos.
65
do Estádio do Maracanã, torna-se um atrativo para os grandes empresários da região.
(2013, p. 3-4).
A disputa pelo local por interesses privados foi acentuada em virtude da eleição do Rio de
Janeiro como sede da Copa de 2014. A notícia da remoção dos indígenas e da demolição do
prédio veio com a justificativa da otimização do escoamento dos torcedores para assistirem
aos jogos no estádio do Maracanã de acordo com o padrão da Federação Internacional de
Futebol (Fifa). Na manhã de 12 de janeiro de 2013, chegam os primeiros carros da Polícia
Militar do Rio de Janeiro para cumprir a ação de reintegração de posse. Contudo,
sensibilizados com a resistência dos indígenas do local, militantes de partidos políticos e
movimentos sociais, estudantes, professores, pessoas com pouco ou nenhum contato com uma
organização política deslocaram-se de várias regiões da cidade para impedir o cumprimento
da reintegração. Mídias alternativas denunciaram abusos por parte dos policiais. Fotos e
vídeos de indígenas algemados, pés descalços sobre o asfalto, sofrendo com o gás
lacrimogêneo e com o spray de pimenta ou bradando palavras de ordem de resistência
correram o mundo tanto pelas redes sociais digitais quanto pelos grandes veículos de
comunicação. Depois de dois meses de intensa mobilização e “sob os holofotes de canais
internacionais, indígenas e ocupantes foram expulsos” (BARRETO; LOPES, 2013, p. 6).
Cabe acentuar que outras remoções, por ordem da prefeitura, vêm ocorrendo por toda a cidade
em razão dos interesses vinculados à Copa do Mundo e às Olimpíadas e aos projetos de
revitalização da zona portuária (ver MONTEIRO; ANDRADE, 2012; FERREIRA, 2010;
VASCONCELLOS DA SILVA, 2010; entre outros). Mobilizações contra as remoções já
emergiram no Horto, em Manguinhos, no Morro da Providência, na Vila Autódromo, no
Morro da Indiana, no Morro da Babilônia, além de resistências em outras favelas.
Mobilizações foram organizadas ainda no Borel para lembrar a chacina sofrida em 2003. No
Morro do Alemão, no Morro São Carlos e no Morro da Coroa, moradores denunciaram
violência policial – antes e depois da instalação da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP)
(RODRIGUES; MOTTA, 2013). É importante lembrar que outras comunidades já resistiam
aos efeitos das UPPs nos últimos anos, especialmente em 2011; além de desaparecimentos,
assassinatos e agressões físicas e/ou verbais pela Polícia Militar, são destacados por
moradores de favelas ocupadas pela UPP o encarecimento da vida e as proibições às suas
atividades culturais, como o baile funk (FREIRE, 2011). No Morro do Turano, por exemplo,
moradores reagiram ao toque de recolher pela UPP, no Dia dos Pais, “atirando pedras, paus e
garrafas nos policiais, que tiveram que correr da multidão” (GRANJA, 2012). Em 2013, é
criada a Rede de Comunidades Impactadas, por meio de encontros entre militantes de favelas
desde o Fórum Social Urbano de 2010, assim como o movimento Favela Não Se Cala,
articulado no final de 2012, o qual busca articular os interesses de moradores de diferentes
favelas para lutarem contra as remoções – inclusive indiretas, associadas ao processo de
gentrificação (DAVIS, 2006).
Paralelamente a isso, temos as resistências de camelôs – sobretudo por meio do Movimento
Unido dos Camelôs (Muca), criado em 2003 – e os movimentos relacionados às pessoas em
situação de rua contra políticas de repressão da prefeitura (mais recentemente, com o Choque
de Ordem). Podem-se citar ainda os atos contra o fechamento de escolas, como o Colégio
Estadual Vicente Licínio Cardoso, na Saúde45, no início de 2013 e contra o fechamento de

45
Até maio de 2013, foram fechadas 50 escolas da rede estadual do Rio de Janeiro. Cf. “Em processo de
'otimização', RJ já tem 50 escolas fechadas”. Terra, 30 maio 2013. Disponível em: <http://noti-
cias.terra.com.br/educacao/em-processo-de-otimizacao-rj-ja-tem-50-escolas-fecha-
das,9269173f1e5fe310VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html>. Para um exemplo de protesto referente, entre
outras pautas, ao fechamento do Colégio Estadual Vicente Licínio Cardoso, cf. “Ato contra as remoções de casas
e fechamento de escolas da Zona Portuária”, 20 out. 2013. Disponível em: <http://tudonosso.no-
blogs.org/page/3>. Acesso em: 28 de maio de 2014.
66
hospitais públicos, como o Instituto de Assistência dos Servidores do Estado do Rio de
Janeiro (Iaserj) em julho de 201246.
Outra pauta presente nas manifestações está relacionada às ocupações urbanas. Moradores de
ocupações, muitos despejados violentamente47 depois de decisões judiciais de reintegração de
posse – mesmo quando o imóvel não cumpre sua função social e, portanto, segundo a
Constituição Federal de 1988, deveria ser destinado à moradia popular –, compareceram às
manifestações entoando “Se morar é um direito, ocupar é um dever”. Também foram
marcantes nos últimos anos os protestos contra a homofobia e o machismo. As experiências
das marchas LGBT realizadas anualmente (no Dia Mundial do Orgulho LGBT, 28 de junho) e
das Vadias (HELENE, 2013; FERREIRA, 2013) – organizada a partir dos protestos
realizados em Toronto (Canadá) e iniciada no Brasil em junho de 2011 – também tiveram
visível importância nas manifestações de 2013, junto com outros grupos feministas e
transfeministas (JESUS; ALVES, 2010).
Entretanto, abordar a movimentação de mobilizações e de lutas anteriores e contextualizá-las
não é suficiente para verificarmos a convergência entre demandas reivindicadas há décadas no
Rio de Janeiro e as manifestações multitudinárias. Esperamos, portanto, que um breve relato –
orientada para os cartazes, bandeiras e palavras de ordem das manifestações em junho – nos
permita demonstrar essa convergência48.

3 A construção das manifestações dentro e fora das ruas: junho de 2013


É interessante atentar para o fato de que as primeiras manifestações do Rio de Janeiro, no
início de junho de 2013, contavam com poucos participantes (a primeira continha cerca de
cem pessoas), e a palavra de ordem que se propagou ao longo dos atos impulsionados pelo
Fórum de Lutas contra o Aumento da Passagem (realizados comumente às segundas e
quintas-feiras) foi “Vem pra rua”. Mais especificamente, os dizeres dos cartazes e as palavras
de ordem eram “Vem pra rua, vem, contra o aumento”, “Se a tarifa não baixar, o Rio vai
parar”, “O meu ‘direito’ de ir e vir aumentou para R$2,95”; ou seja, demandava-se a
revogação do aumento da tarifa de R$2,75 para R$2,95. Clamava-se pela adesão irrestrita de
pessoas que compartilhavam dessa causa única em torno do transporte. Ainda que outras
pautas tenham ganhado força posteriormente, muitas das quais já vinham sendo demandadas
há anos ou décadas, conforme exposto na seção anterior, a pauta central, estabelecida e
propagada no próprio nome do fórum, eram os 20 centavos.
No entanto, após o discurso polêmico de Arnaldo Jabor, no dia 13 de junho, declarando que
“os revoltosos de classe média não valem 20 centavos”49, os manifestantes e seus apoiadores
passaram a proclamar “Não são só 20 centavos”, enumerando outras causas em questão, desde
o fim da desigualdade social ao fim da corrupção. Cartazes como “Não é por centavos, é por
direitos”, “Copa pra quem?”, “Não é só por 20 centavos, é pelo fim da violência policial”,
“Enfia 20 centavos no SUS”, “Não é Egito. Não é a Grécia. É o Brasil saindo da inércia”, “O
Brasil acordou contra a roubalheira”, “Eu sou contra a PEC 37 porque não aceito corrupção”
se multiplicaram pelas ruas.

46
Cf. “Domingo tem caminhada em Copacabana em defesa do IASERJ”, 27 ago. 2012. Disponível em:
<http://www.seperj.org.br/ver_noticia.php?cod_noticia=3223>. Acesso em: 28 de maio 2014.
47
Recordemos a remoção de cerca de cinquenta famílias que ocupavam o prédio do Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS), desativado há quinze anos e localizado no centro do Rio de Janeiro. Sob balas de borracha e spray
de pimenta, oito manifestantes foram presos, uma defensora pública do Estado foi agredida e “as cinquenta
famílias que moravam no edifício foram postas para fora” (DEFENSORES, 2010).
48
49
Disponível em: <http://cbn.globoradio.globo.com/comentaristas/arnaldo-jabor/2013/06/13/REVOLTOSOS-
DE-CLASSE-MEDIA-NAO-VALEM-20-CENTAVOS.htm>. Acesso em: 20 ago. 2013.
67
Nesse ponto, houve certa inflexão no teor das manifestações e, à medida que as repressões aos
atos se intensificavam e se visibilizam – chegando ao ápice em termos de visibilidade no
próprio dia 13 (quinta-feira), quando uma jornalista da Folha de S. Paulo foi atingida por uma
bala de borracha da PM em São Paulo, além de outros jornalistas agredidos ou presos –,
milhares de pessoas começaram a, de fato, atender ao clamor “Vem pra rua”. Com isso, o
próprio Jabor mudou o discurso publicamente, afirmando, em 17 de junho em entrevista à
rádio CBN, que errou50 e que as manifestações eram, sim, por muito mais do que 20 centavos,
uma vez que o próprio caráter das manifestações se havia modificado. Dessa forma, as
manifestações foram crescendo exponencialmente e, no Rio de Janeiro, observou-se que, de
cerca de cem manifestantes na primeira semana de junho, passaram a integrar os atos mil (10
de junho), 10 mil (13 de junho), 100 mil (17 de junho) e 1 milhão (20 de junho) de pessoas,
segundo afirmaram diversos movimentos sociais. De acordo com o portal de notícias G1, o
ato do dia 10 de junho contou com 300 manifestantes. No dia 13, o comando da Polícia
Militar contabilizou 2 mil pessoas. O comandante do 5o Batalhão da Polícia Militar, coronel
Camargo, estimou um público entre 40 e 50 mil pessoas no protesto do dia 17, e 1 milhão e 50
mil pessoas no dia 20, ou seja, 16,6% da população carioca, estimada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE) em 6,323 milhões de habitantes – portanto, mesmo com a
variação das estimativas referentes à quantidade de participantes conforme as versões em
disputa pela representação desses eventos, pode-se afirmar o crescimento exponencial dos
protestos.
Em pesquisa realizada pela Pinterest51 no Rio de Janeiro, 33% dos presentes no protesto do
dia 20 de junho têm idade entre 19 e 24 anos, e 38,8% estão entre 25 e 34 anos; 70,4% estão
no mercado de trabalho; e a renda familiar de 64,6% é de até três salários mínimos; e 23,8 %
têm renda familiar entre quatro e cinco salários mínimos. Esses dados nos permitem assegurar
que as manifestações do mês de junho não foram compostas de setores da tradicional classe
média52 carioca, cujos rendimentos vão além dos três salários mínimos, estando mais perto do
que Braga (2012) denomina “precariado”: jovens trabalhadores com baixa remuneração, cujas
condições de trabalho e contrato são precárias, além da alta rotatividade e do intenso ritmo de
trabalho. São trabalhadores e trabalhadoras com extensa jornada de trabalho acompanhada de
longas viagens até a chegada em casa. E amanhã tudo de novo. Como Adalberto Cardoso
aponta, a tarifa de ônibus foi o estopim, mas não um estopim qualquer. Pesquisando em jornal
de grande circulação pelo termo “ônibus incendiado”, o sociólogo encontra 559 ocorrências
entre novembro de 2011 e junho de 2013:
Isso dá quase uma notícia por dia sobre depredações de ônibus, em média. A grande
maioria dos incêndios foi provocada por “criminosos”, “bandidos” ou “traficantes”,
termos intercambiáveis na cobertura do jornal, e por vezes eles ganham estatuto de
grande acontecimento.
[...] A palavra central, aqui, é mobilidade, elemento de uma síndrome de recursos
inscritos no território que dá materialidade ao que as jornadas de junho
popularizaram como “direito à cidade”. [...] Sem mobilidade, os espaços da cidade
se tornam privilégio de uns (quando plenos de recursos) ou condenação de outros
(quando privados deles), e a impossibilidade ou a dificuldade reiterada de trânsito
entre uns e outros pode consolidar mundos segregados, mesmo que em termos
jamais absolutos, já que a “miséria” ou o “privilégio” são parte da compreensão do

50
Disponível em: <http://www.pavablog.com/2013/06/17/arnaldo-jabor-eu-errei-e-muito-mais-do-que-20-
centavos>. Acesso em: 20 ago. 2013.
51
Em um total de 498 questionários, com intervalo de confiança de 95%, a pesquisa foi realizada entre 16h e
20h30 no dia 20 de junho de 2013. Disponível em: <http://pinterest.com/pin/418975571554441712>. Acesso
em: 13 fev. 2014.
52
Os limites do presente artigo nos impedem de trazer à tona o debate sobre o que vem se convencionando
denominar “nova classe média” – classe em crescente expansão nos últimos dez anos no Brasil cujo poder de
consumo foi ampliado por mecanismos como o recente processo de valorização do salário mínimo e a difusão do
crédito. Para uma análise crítica sobre esse debate, ver Pochmann (2012) e Souza e Arenari (2010).
68
mundo disponível aos citadinos, e a “opressão” de uns é vivida como injusta porque
comparada com o “privilégio” de outros. Os moradores do Grajaú paulistano
depredaram seis ônibus em protesto contra as enchentes porque não conseguiram
chegar em casa, direito inalienável do citadino. E não conseguiram chegar pela
combinação perversa de condições precárias de habitação com serviço precário de
transporte. (CARDOSO, 2013, p. 23-25, grifos do autor).
Não é coincidência que a ideia do próprio MPL em São Paulo era justamente discutir a
necessidade do passe livre como direito à cidade, além de evidenciar que as altas tarifas
impostas inviabilizam o deslocamento de muitas pessoas para o trabalho ou forçam o corte de
gastos em áreas importantes do orçamento para permitir o pagamento das passagens de ônibus
para toda a família, seja para a escola, para o trabalho, seja para o lazer. Com a inflexão do
“Não é apenas por vinte centavos, é por direitos”, outras pautas ganharam as ruas, e não
relacionadas apenas à mobilidade urbana, mas à educação e à saúde públicas, à
desmilitarização da Polícia Militar, à democratização da mídia e contra as remoções.
Tornaram-se mais comuns nos atos os cartazes, faixas e palavras de ordem relacionadas a
temas como: “Era um país muito engraçado, não tinha escola, só tinha estádio”, “Quando seu
filho ficar doente, leve ao estádio”, “Saúde e educação de qualidade para todos”, “Fim da
PM”, “A PM que bate aqui é o PM que mata na favela”, “A verdade é dura: a Rede Globo
ainda apoiou a ditadura”, “O povo não é bobo: abaixo a Rede Globo”, “A favela nunca
dormiu”, “Eduardo Paes, vai pro inferno e remove o Satanás”.
Depois da aprovação do projeto denominado “Cura gay”, em 18 de junho, na Comissão de
Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, presidida por Marco Feliciano, as pautas do
movimento LGBT também se expandiram e se tornaram mais recorrentes nas redes sociais e
nas ruas, mesmo entre pessoas que não tinham contato anterior com a militância LGBT:
“Queremos cura para a fome”, “Mais felicidade, menos Feliciano”, “Liberdade não tem cura.
Fora, Feliciano!”, entre outros.
Por outro lado, irromperam os mais variados – ainda que com o foco na corrupção – e, por
vezes, contraditórios clamores pelo antipartidarismo nos protestos. O último parece ter se
colocado abertamente nas ruas desde o dia 17 de junho (terça-feira), quando militantes do
Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU) tiveram suas bandeiras arrancadas à
força e foram agredidos fisicamente em frente à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de
Janeiro (Alerj). Muitos manifestantes que estavam ao redor não perceberam a agressão e até
aplaudiram as bandeiras abaixadas. Lincoln Secco também cita esse episódio em São Paulo:
“Na manifestação de 20 de junho, a direita mostrou uma face dupla: grupos neonazistas
serviam para expulsar uma esquerda desprevenida, enquanto inocentes ‘cidadãos de bem’ de
verde-amarelo aplaudiam” (SECCO, 2013, p. 74).
A partir do ato do dia 17 de junho, que reuniu cerca de 100 mil pessoas, e da divulgação da
agressão ocorrida, começa a emergir nas plenárias do Fórum de Lutas e nas redes sociais uma
problematização do clamor indiscriminado “Vem pra rua, vem”, buscando-se reforçar cada
vez mais as pautas sociais e as alternativas para conter a agressão a militantes de partidos
políticos. É preciso salientar que, no Brasil, há um “reduzido índice de adesão às organizações
político-partidárias” (BAQUERO; VASCONCELOS, 2013, p. 6) por diversos motivos53, mas
o que antes era uma crítica de parte dos manifestantes contra a tentativa de liderança do
Fórum de Lutas pelos partidos (sobretudo PSTU e Partido Socialismo e Liberdade – PSOL),
que se revezavam nos canais abertos de televisão e nas mesas das plenárias, parecia ter
começado a se confundir com um antipartidarismo, não raro, violento. Com isso, tornou-se
corrente, nas plenárias do Fórum de Lutas e em canais de debate na internet, a propagação da
53
Ainda segundo Baquero e Vasconcelos, entre os principais elementos que inibem o fortalecimento dos
partidos, podem-se citar: seu caráter regional; programas partidários desconhecidos da maioria da população; a
ausência de incentivo à participação das pessoas em sua organização; a presença de uma ideologia híbrida, mais
vinculada à defesa de interesses pessoais e corporativos “e que não correspondem a qualquer organização real do
corpo eleitoral” (2013, p. 7).
69
distinção entre antipartidarismo e apartidarismo, vinculando o último aos princípios do
movimento que impulsionou as jornadas de junho a fim de repudiar a violência aos partidos e
aos movimentos sociais em geral.
Depois do ato do dia 20 de junho, que contou com cerca de 1 milhão de pessoas – mesmo
com a revogação do aumento da passagem no dia anterior –, quando todos os militantes de
partidos (um militante do PSTU foi internado por causa das agressões), além do Movimento
dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), foram
agredidos fisicamente por neonazistas ou skinheads, assim identificados pelos presentes por
sua aparência e/ou tatuagens da suástica – e também por milicianos infiltrados, como bem
aponta José Maria de Almeida em artigo da revista Piauí (VIEGAS, 2013) –, foi levantada em
reuniões de organizações políticas e nas redes sociais a necessidade de criar uma “união de
esquerda” que defendesse militantes e bandeiras de todas as organizações diante dos
agressores. A tentativa de união entre PSOL, PSTU, Partido Comunista Brasileiro (PCB),
Partido dos Trabalhadores (PT), Partido da Causa Operária (PCO) e Partido Comunista do
Brasil (PC do B) também se deu como resposta à presença cada vez mais frequente de faixas e
cartazes com dizeres de aversão aos partidos nos atos, como “Fora, todos os partidos”, “Fora,
PT”, “Meu partido é meu país”. Se já no dia anterior ao grande ato na Av. Presidente Vargas
circulava nas mídias sociais digitais o relato de um militante ameaçado caso vestisse a camisa
de seu partido e levantasse sua bandeira, no dia seguinte milhares de manifestantes, incluindo
aqueles sem filiação partidária ou vinculação com sindicatos e outros movimentos sociais,
passaram a temer por essa tendência – também observada em outras cidades, como em São
Paulo, resultando no afastamento temporário do MPL das ruas. Em nota em sua página do
Facebook, o MPL afirma:
que é um movimento social apartidário, mas não antipartidário. Repudiamos os atos
de violência direcionados a essas organizações [partidos políticos e movimentos
sociais] durante a manifestação de hoje, da mesma maneira que repudiamos a
violência policial. Desde os primeiros protestos, essas organizações tomaram parte
na mobilização. Oportunismo é tentar excluí-las da luta que construímos juntos. 54
A violência policial a que se refere a nota do MPL foi sentida em todas as manifestações
mencionadas anteriormente, desde a Revolta do Buzu, em 2003, aos dias atuais. Velha
conhecida dos movimentos sociais, a repressão policial contra os protestos foi tratada na
mídia como espetáculo de brutalidade. Na manifestação do dia 6 de junho de 2013, o prof.
Pedro Eugênio foi atingido na coxa direita por uma bala de borracha55. Esse foi um caso de
grande repercussão na mídia nos dias subsequentes. No decorrer de outros protestos,
entretanto, a ocorrência de pessoas atingidas por bala de borracha nem sequer era mais
mencionada, tamanha sua frequência. Em São Paulo, no dia 13 de junho, houve cerca de cem
feridos, entre eles sete jornalistas (dois atingidos por balas de borracha na cabeça), segundo o
jornal Folha de S. Paulo56.
Cabe lembrar que, com essa visibilidade da repressão policial, especialmente contra a
imprensa, a grande imprensa mudou o discurso sobre as manifestações. Até o dia 13, como a
própria Folha de S. Paulo alardeava, eram todos considerados “vândalos” ou, de acordo com
Jabor, “rebeldes sem causa. Depois das agressões, porém, passaram a diferenciar a minoria
“vândala” da maioria “pacífica”. Em “The illegitimaticy of violence, the violence of
legitimacy” (CRIMETHLNC, 2013), vemos como o discurso da violência e da não violência é

54
“Nota n. 11: sobre o ato dessa 5a-feira”. Movimento Passe Livre São Paulo. Disponível em: <https://www.fa-
cebook.com/passelivresp/posts/533187120070877>. Acesso em: 13 de janeiro de 2014.
55
“Detidos e feridos em protesto no Centro”. O Globo, 6/6/2013. Disponível em
http://oglobo.globo.com/rio/detidos-feridos-em-protesto-no-centro-8615741>. Acesso em: 17 out. 2013.
56
“Protesto deixa cerca de cem feridos no centro de SP, diz movimento”. Disponível em: <http://www1.fo-
lha.uol.com.br/cotidiano/2013/06/1294893-protesto-deixa-cerca-de-cem-feridos-no-centro-de-sp-diz-movi-
mento.shtml. Acesso em: 17 out. 2014.
70
atraente, sobretudo porque oferece um modo fácil de reivindicar e argumentar de um ponto de
vista moral. No dia 27 de junho, em Belo Horizonte, um rapaz de 21 anos caiu de um viaduto
ao tentar fugir da polícia. Internado por 19 dias, não resiste aos ferimentos e morre57. Aos 30
anos, Fernando Candido morre por problemas respiratórios causados pela inalação de spray de
pimenta e gás lacrimogêneo na manifestação do dia 20 de junho no Centro do Rio de
Janeiro58. O fotógrafo Yasuyoshi Chiba, da agência francesa France-Presse, é atingido por um
cassetete na cabeça enquanto tentava ajudar outros manifestantes59. São numerosos casos e
relatos de manifestantes e de jornalistas feridos, que tiveram escoriações ou fraturas ou
perderam a visão durante as manifestações. Não é nosso objetivo sermos exaustivos. Segundo
Túlio Vianna (2013), os casos mencionados ocorrem não porque há o policial bom e o policial
mau que comete excessos que devem ser apurados, mas sobretudo porque a lógica do
militarismo é treinar soldados para a guerra onde há um inimigo, e esse inimigo desse ser
aniquilado. O próprio treinamento da Polícia Militar é absolutamente violento:
O foco do treinamento militar é centrado na obediência e na submissão [...]. Os
recrutas são submetidos a constrangimentos e humilhações que acabam por destituí-
los de seus próprios direitos fundamentais. E, se o treinamento militar é capaz de
convencer um soldado a se deixar tratar como um objeto na mão de seu comandante,
é natural também que esse soldado trate seus inimigos como objetos cujas vidas
podem ser sacrificadas impunemente em nome da sua bandeira. (VIANNA, 2013).
Desse modo, seguindo a lógica do treinamento, existe uma hierarquia definida que vai do
coronel ao capitão, ao tenente, e assim prossegue, até chegarmos ao soldado. Os únicos que
estão abaixo do soldado na ordem hierárquica são os civis; em outras palavras, o inimigo. O
respeito irrestrito a essa ordem tem como primeira consequência direta o desrespeito aos
direitos civis. Não é à toa que existem tantos relatos de violência policial, inclusive após o
término dos protestos – ameaças de morte, de estupro, agressões físicas e verbais. Vale
mencionar que a mesma polícia de que o Conselho de Direitos Humanos da Organização das
Nações Unidas (ONU) pediu a extinção60 em virtude da atividade de policiais dentro de
esquadrões da morte é destacada para assegurar a ordem pública nas manifestações. Em se
tratando das jornadas de junho, na madrugada do dia 24 para o dia 25, a megaoperação
realizada por cerca de 400 agentes do Batalhão de Operações Especiais (Bope) na favela
Nova Holanda, com o pretexto de perseguir supostos criminosos que teriam feito um arrastão
na Av. Brasil, resultou em treze mortes (nove de acordo com o jornal O Globo)61 em meio ao
tiroteio, segundo moradores da Maré. Com esse massacre, as favelas ganharam maior
destaque durante as manifestações, repercutindo com mais força a pauta de “Desmilitarização
da PM” ou “Fim da PM já!” nas redes sociais e nos cartazes levados para os atos seguintes,
sendo agregada às pautas do Fórum de Lutas na plenária do dia 25 de junho, quando mais de
mil pessoas participaram e moradores da Maré informaram a quantidade de mortos e o terror
vivenciado na madrugada anterior. Também chamaram os presentes para o ato na manhã do

57
Morre jovem que caiu de viaduto durante manifestação em BH. G1 MG, 27/6/2013. Disponível em:
<http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2013/06/morre-jovem-que-caiu-de-viaduto-durante-manifesta-cao-
em-bh.html. Acesso em: 17 out. 2013.
58
Manifestante do Rio morre por complicações pulmonares após inalar gás lacrimogêneo. R7 Notícias,
2/8/2013. Disponível em: http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/manifestante-do-rio-morre-por-complicacoes-
pulmonares-apos-inalar-gas-lacrimogeneo-02082013. Acesso em: 17 out. 2013.
59
Fotógrafo de agência francesa é agredido pela PM em protesto no RJ. Folha Política.org, 23/7/2013.
Disponível em: http://www.folhapolitica.org/2013/07/fotografo-de-agencia-francesa-e.html. Acesso em: 17 out.
2013.
60
Conselho da ONU recomenda fim da Polícia Militar no Brasil. 30/5/2012. Disponível em:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2012/05/paises-da-onu-recomendam-fim-da-policia-militar-no-bra-sil.html
Acesso em: 31 out. 2013.
61
Polícia Civil admite que inocentes morreram em confronto na Maré, RJ. 26/6/2013. Disponível em:
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2013/06/policia-civil-admite-que-inocentes-morreram-em-con-fronto-
na-mare-rj.html. Acesso em: 20 ago. 2013.
71
dia 26, no Centro, que tinha como propósito denunciar o ocorrido, além de um ato ecumênico
na terça-feira, dia 2 de julho, na própria favela Nova Holanda, organizado pelo Observatório
das Favelas, no qual a presença de várias viaturas e de dezenas de agentes da PM e da Força
Nacional chocou a maioria dos não moradores que foram prestar solidariedade aos mortos
pela ação do Bope.
Nas manifestações anteriores, vale destacar, já havia a presença de militantes de causas da
favela com faixas sobre o tema da violência policial, como já mencionado. Contudo, as
próprias palavras de ordem propagadas pelos carros de som nos atos ofuscavam essa crítica ao
darem mais ênfase às demandas por transporte, saúde e educação públicos de qualidade e pela
democratização da mídia. Após as mortes na Maré, no entanto, a pauta das favelas se
fortaleceu e se ampliou no Fórum de Lutas e nas ruas, e foi visível o maior número de faixas
sobre o tema, assim como o destaque nas próprias redes sociais digitais. Também no dia 25 de
junho, cerca de mil moradores da Rocinha e do Vidigal protestaram em frente ao prédio do
então governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, localizado no Leblon, bairro nobre
carioca. No local, estavam acampados alguns manifestantes que haviam ocupado a rua em
frente ao prédio desde o dia 21 de junho (sexta-feira). Nos cartazes, evidenciavam-se a
insatisfação com a construção do teleférico pelo Programa de Aceleração do Crescimento 2
(PAC 2) e a exigência de que o dinheiro público fosse destinado a melhorias necessárias de
infraestrutura, creches e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) nessas favelas. Por jogral,
afirmaram: “Queremos o que é nosso”, “Queremos saneamento básico”, “Queremos UPA
com aparelho”, “Queremos pavimentação da rua” e “Não queremos teleférico”. A crítica à
falta de direitos básicos mesmo com a instalação das UPPs já começava a aparecer nas ruas
por parte dos próprios moradores e militantes ligados aos movimentos de luta pelas favelas,
havendo uma faixa em que estava escrito “Cadê a luz? Só a polícia não adianta”.
Nos atos que se seguiram, as palavras de ordem contra a repressão policial nas favelas e pela
melhoria das condições de vida nessas localidades passaram a ser mais propagadas também
nas manifestações realizadas no centro do Rio de Janeiro, antes focadas nas demandas por
mobilidade urbana e agora ampliadas aos trabalhadores e trabalhadoras moradores de
favelas62. Lembremos os cartazes: “No Brasil, há pena de morte nas favelas”, “Na favela a
bala é de verdade”, e as palavras de ordem “Não é mole não! Pedi transporte público e me
deram o caveirão!”.
Por fim, cabe mencionar o crescimento da tática Black Block nas manifestações
(THOMPSON, 2010). É importante destacar que essa tática não se fez presente nos primeiros
atos ocorridos em junho – ao menos não com esse nome e referência a outros países e
períodos em que ativistas empregaram a tática Black Block –, tendo surgido de forma mais
visível a partir do ato do dia 17 de junho, quando passou gradualmente a ser conhecida e
reconhecida por alguns manifestantes. Nas manifestações anteriores, já havia quem se valesse
dessa tática. No entanto, nos dias antecedentes ao dia 17 e no próprio dia 17, começou a haver
rumores nas redes sociais e na rua de que “os Black Blocks” – entendidos inicialmente como
um grupo, e não como uma tática – estariam vindo de outros estados, como São Paulo, a fim
de contribuir para a resistência dos atos no Rio de Janeiro. Parecia que o teor dos atos estava
se modificando nesse sentido, ao passo que a tática Black Block ia se fazendo cada vez mais

62
O objetivo do presente artigo é demonstrar as relações entre mobilizações e demandas históricas e as
mobilizações recentes. Para tanto, circunscrevemo-nos em um período previamente determinado: o mês de junho
de 2013. Por causa do objetivo proposto e dos limites deste artigo, não podemos tratar a enorme inflexão
ocasionada pelo “caso Amarildo” nas manifestações. Pedreiro, negro e morador da favela da Rocinha no Rio de
Janeiro, Amarildo é conduzido por policiais para a sede da UPP em 14 de julho de 2013. Depois desse dia, nunca
mais foi visto. Investigações apontam que o pedreiro foi torturado por sufocamento com saco plástico e choques
elétricos. Ao todo, 25 policiais foram acusados de envolvimento no assassinato de Amarildo – entre eles está o
subcomandante da UPP, o tenente Luiz Felipe de Medeiros. O desaparecimento do pedreiro tornou-se símbolo
dos casos de abuso de autoridade e violência policial. Para saber mais sobre a prática de ocultação de cadáveres,
conferir Araújo (2012). Até a presente data, o corpo de Amarildo não foi encontrado. “Cadê Amarildo?”
72
reconhecida, nos atos que se seguiram, como a defesa dos manifestantes ante a ação da Polícia
Militar, assim como também passou a ser alvo de críticas por parte dos manifestantes, pela
grande imprensa e por agentes estatais.
Assim sendo, percebe-se, com base nesta leitura das manifestações realizadas em junho de
2013 no Rio de Janeiro, que os atores que deram forma aos atos e as pautas, assim como as
tensões ocorridas entre eles, expressam tanto uma continuidade com realidades diversas e
reivindicações já existentes quanto a construção de tensões e de relações distintas daquelas
anteriores às manifestações, convergidas em novas demandas e pautas que não estão
relacionadas somente à mobilidade urbana, mas também ao direito à cidade, à crítica à
desigualdade social e à mercantilização da vida coletiva, à exigência do cumprimento de
direitos constitucionais adquiridos e à emancipação humana por meio da criação de novas
utopias. As ruas, reuniões (formais ou informais) e redes sociais digitais passaram a constituir
espaços em que se tornou possível o encontro e às vezes o embate entre atores diferentes,
tanto indígenas, estudantes (secundaristas e universitários), trabalhadores quanto moradores
de favelas/periferia, militantes LGBT, anarquistas, partidos, sindicatos e outros movimentos
sociais.

4 Considerações finais
O presente texto propôs uma interpretação possível acerca do que vem se convencionando
denominar jornadas de junho. Nosso objetivo foi demonstrar as relações entre mobilizações e
demandas históricas e as mobilizações recentes – em um período previamente determinado: o
mês de junho – argumentando, por um lado, que a historiografia nos permite evitar algumas
miopias interpretativas e abordar as manifestações em sua complexidade mesmo em uma
conjuntura política que se move rapidamente. Por outro lado, baseando-nos em um breve
relato, revelamos, com base em cartazes, bandeiras e palavras de ordem, a multiplicidade de
perspectivas e de possibilidades abertas pelas manifestações.
Entretanto, argumentar que houve uma convergência de mobilizações históricas com as
movimentações recentes não é desconsiderar o papel das participações individuais e pontuais
– que, na verdade, tiveram papel central na mobilização e na difusão dos protestos. Nosso
objetivo foi enfatizar que as manifestações não ocorreram em meio a um vazio político que
rompeu com uma suposta passividade da população. Analisar os protestos
historiograficamente também nos permitiu ir além das interpretações normativas ou baseadas
em uma casualidade simples: a participação cresceu em proporção geométrica em relação à
repressão policial; ou conferir primazia às redes sociais digitais, esvaziando o protagonismo
dos atores. A participação individual, a repressão aos protestos e a conectividade proveniente
das novas mídias digitais foram elementos importantes das mobilizações, mas não exclusivos.
Os eventos de junho não só manifestaram tensões que existiam na sociedade, mas também
contribuíram para construir novas tensões e novas possibilidades de atuação. É como Bringel
nos adverte:
[...] é um grande desafio teórico e político, pois exige adaptar e renovar nossas
formas de luta e de interpretação das ações coletivas diante de atuações mais
invisíveis, com maior protagonismo da agência individual, da configuração de novos
atores, de militâncias múltiplas e organizações mais descentradas (conquanto não
espontâneas) e de repertórios mais mediáticos e performáticos. Somente assim será
possível captar os sentidos da indignação social contemporânea (BRINGEL, 2013,
p. 45).

73
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76
Repertórios de Ação Coletiva: Os dilemas em torno da utilização dos protestos como forma de
luta do movimento de moradia da cidade de São Paulo

Aldrey C. Iscaro1

¹ Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, IPPUR - Universidade Federal do Rio de Janeiro -
UFRJ, Cidade Universitária - Rio de Janeiro-RJ – aldreycris@hotmail.com

Resumo
Este paper tem como objetivo explorar e analisar uma das principais ações coletivas que
compõe o repertório de lutas de um dos mais atuantes movimentos sociais urbanos da cidade
de São Paulo, o movimento de moradia.
Buscaremos, neste paper, explorar os dilemas em torno desta ação coletiva, a saber, as ações
de protesto, – um dos meios acionados pelos movimentos sociais, juntamente com outras
formas de ação coletiva, como as participações institucionais, para visibilidade e conquista de
suas demandas, – em especial, no nosso caso, principalmente questões ligadas ao direito à
moradia e também relacionadas ao direito à cidade e à reforma urbana.
Para a realização deste paper, utilizaremos como metodologia análise bibliográfica e pesquisa
de campo, de forma a entender não somente a questão da estratégia do protesto como forma
de luta, mas suas implicações dentro das relações deste movimento social, sua história, sua
atuação e as implicações das ações de protesto dentro da composição do repertório de ação
coletiva deste movimento.
Palavras-chave: Ação coletiva; Protesto; Movimento de moradia.

1 Introdução
Atualmente, temos assistido cada vez mais a uma generalização e ampliação de
movimentos sociais urbanos, que, através de sistemas de práticas sociais contraditórias tentam
converter a ordem dada pelas contradições específicas da problemática urbana.
Estas problemáticas urbanas, geradas a partir do aumento da urbanização, podem ser
entendidas, em um primeiro nível, como as questões relacionadas às condições de vida da
população. Os movimentos sociais, então, agem como impulsionadores das mudanças sociais
e da inovação da cidade, no que se refere ao conjunto das necessidades coletivas.
E são estas novas contradições sociais que determinam novos formatos de conflito e
modos de ação coletiva. É nesta perspectiva que se encontra nosso objeto de estudo, o
movimento de moradia de São Paulo. Seu início se deu nos anos oitenta, a partir das lutas de
moradores de cortiços que sofriam com várias questões urbanas, dentre elas: altas taxas de
água, luz, IPTU, além de despejos sem aviso prévio. Estes fatores, simultaneamente com os
muitos problemas acerca da habitação e o modo pela qual a cidade é urbanizada, vividos pela
cidade de São Paulo, como crescimento das periferias, pouca infraestrutura, domicílios
resididos em áreas de risco, grande quantidade de pessoas vivendo em cortiços, áreas
mananciais, loteamentos irregulares ou clandestinos e baixa renda salarial foram o que
geraram a consciência da luta pela casa própria e do resgate de cidadania daqueles que vivem
marginalmente na sociedade.
Desta crise habitacional, portanto, advém a mobilização popular como consequência, e
com ela, o movimento de moradia de São Paulo, objeto aqui a ser pesquisado. Baseados,
então, em seus direitos de cidadãos, muitas pessoas que até então estavam, na expressão de
77
Ana Doimo (1995) e Maria da Glória Gohn (1991), ‘sem vez e sem voz’, se mobilizam em
diferentes lutas, mas incidindo em um mesmo bem: a moradia.
Pesquisar o movimento de moradia, é, com isso, é mais que analisar as lutas por
moradia, mas também a modificação e reapropriação do espaço urbano pelos movimentos
populares. A cidade, assim, deixa de ser somente um espaço físico-geográfico, mas passa a
ser um espaço construído e reconstruído pelas relações sociais e modificado pelos
movimentos populares por moradia, introduzindo um novo significado, requalificação e
perspectiva da cidade. A luta, então, vai além do direito à moradia. Ela é o direito à cidade.
O objetivo deste paper, assim, é explorar um dos principais repertórios de ação
coletiva utilizadas atualmente pelo movimento de moradia da cidade de São Paulo, bem como
os dilemas e questões envolvendo esta estratégia de ação para pontuar suas demandas, em
principal, em relação ao direito à moradia e ao direito à cidade. Para tal, utilizaremos como
metodologia a pesquisa bibliográfica e pesquisa de campo.

2 Os dilemas em torno da utilização dos protestos como forma de luta do movimento de


moradia da cidade de São Paulo
O conceito de movimento social com o qual operamos tem como referência as análises
de Della Porta e Diani (1999), os quais definem movimento social como um tipo específico de
ação coletiva, caracterizado pela combinação de quatro elementos. O primeiro é a concepção
de movimento social como redes de interação informais dentre os diferentes indivíduos,
grupos e organizações presentes no movimento. Tais redes promovem a circulação de fontes
essenciais para a ação dos mesmos, tais como informação, recursos materiais e conhecimento;
e, deste modo, contribuem para a criação de pré-requisitos para mobilização, além de
proporcionar a elaboração de pontos de vista específicos e estilos de vida próprios.
O segundo elemento é que um movimento social requer um arranjo de crenças
compartilhadas e de um sentimento de pertencimento, visto que é através deste processo de
redefinição simbólica que há a possibilidade da emergência das identidades coletivas, e,
juntamente, a definição de um ator coletivo. O terceiro elemento para definir movimentos
sociais é o engajamento dos atores em conflitos63 políticos e/ou culturais, seja para promover
ou até se opor a mudanças sociais. E o último é o uso do protesto como estratégia da ação
coletiva.
Uma das consequências dessa definição, descrevem Della Porta e Diani (1999), é que
ela nos permite diferenciar um movimento social de uma organização. Os movimentos
sociais, assim, são redes de interações que podem incluir, e no geral incluem, organizações
formais, mas não se reduzem a elas. As organizações possuem fronteiras visíveis, objetivos
claramente definidos, estruturas mais ou menos profissionalizadas, corpo diretivo, etc. Já os
movimentos são, por definição, fenômenos fluidos, são interações por meio dos quais atores
com diferentes identidades e orientações elaboram um sistema compartilhado de crenças e um
sentido de pertencimento que excede as fronteiras de qualquer grupo ou organização.
Nesse sentido é que podemos falar do movimento de moradia – no singular – e de
organizações do movimento de moradia, no plural. Um indivíduo, por exemplo, pode
pertencer ao movimento de moradia, sem pertencer a uma organização específica ou, pelo

63
Entenderemos aqui por conflito atores em oposição por desejarem obter o controle de um mesmo interesse.
Para isso é necessário a definição de uma arena compartilhada por estes, bem como a percepção uns dos outros
como diferentes, mas, simultaneamente, interligados pelo desejo do controle de conjunturas, valores e interesses,
como descrevem Della Porta e Diani (1999) e Melucci, 1989.
78
contrário, uma identidade organizacional pode erigir-se a tal ponto como central que o
‘sentimento de pertencimento” se dê fundamentalmente em relação a ela e não ao movimento
de moradia.
Os movimentos sociais, assim, fazem o uso de diferentes repertórios de ação coletiva
com o objetivo de terem suas demandas atendidas. Tilly (1995, 2006) define a noção de
repertório de ação coletiva como um conjunto de ações coletivas que são aprendidas,
compartilhadas, e empreendidas através de um processo de escolha dentre os indivíduos. Os
repertórios, além disso, são criações culturais aprendidas. Assim, as pessoas aprendem ao
longo do tempo como organizar marchas públicas, como realizar petições, como presidir
encontros formais, etc. A cada contexto histórico, explica Tilly (1995b), as pessoas aprendem
maneiras de agir coletivamente. Os repertórios, comenta Tilly (2006), podem variar em
relação ao lugar que os repertórios são realizados; ao tempo, ou seja, o contexto político no
qual os repertórios ocorrem; e ao par, isto é, o interlocutor da ação coletiva.
Os protestos, desta maneira, são um tipo ação coletiva que compõe o repertório dos
movimentos sociais. Trata-se, assim, dizem Della Porta e Diani (1999), de métodos não
convencionais de intervenção no processo decisório governamental. Mas o protesto não é uma
estratégia de ação exclusiva dos movimentos sociais. Outros atores, tais como partidos
políticos ou grupos de pressão também fazem uso do protesto, e, ocasionalmente, compõem
alianças com movimentos sociais em algumas causas. No entanto, o protesto, em sua forma
mais inovadora e radical, é considerado como repertório de ação típico dos movimentos
sociais, com vistas a uma tentativa de acesso aos canais de decisão estatais, uma vez que estes
atores têm pouco ou nenhum poder de influência nestas decisões, descrevem Della Porta e
Diani (1999).
A preferência por uma forma de protesto em detrimento da outra, isto é, a opção da
realização de uma marcha, uma ocupação, uma barricada, etc. é pensada e escolhida dentre
várias opções estratégicas, explanam Della Porta e Diani (1999). Esta escolha é feita, dentre
os vários fatores, através do objetivo que o protesto procura alcançar. Além disso, este
formato procura convencer as autoridades políticas sobre o conteúdo da reivindicação; sua
forma tem que ser legítima por parte de seus simpatizantes em potencial; o protesto tem que
ser recompensador para aqueles que estão no movimento; e também deve se apresentar como
novo para os olhos da mídia, tarefas estas nem sempre compatíveis.
Nesse sentido é que os autores chamam a atenção para os dilemas estratégicos na
escolha do formato do protesto, relatam Della Porta e Diani (1999). Estas escolhas são
limitadas por vários fatores internos e externos ao próprio protesto, já que os diferentes
repertórios de ação disponíveis são finitos em tempo e espaço, e ainda, seguidos pelas
tradições dos ativistas e cristalizadas nas instituições. As marchas públicas são o exemplo
mais comum de protesto que foi aperfeiçoado e institucionalizado pela elaboração de
estruturas e rituais tais como os comícios de encerramento e os comissários das marchas. Os
repertórios de protestos são, além disso, reproduzidos ao longo do tempo, uma vez que uma
forma de protesto pode ser reutilizada e reciclada novamente em outros protestos, ou até
adaptado se a forma de protesto já obteve legitimidade por parte da sociedade. No entanto,
apontam Della Porta e Diani (1999), a existência prévia de um repertório influencia as
escolhas dos tipos de protestos a serem realizados: as referências aos repertórios do passado
são tanto um constrangimento quanto um recurso dos movimentos sociais.
Enquanto protestos já considerados como legítimos e aceitáveis são um fator que
influencia na escolha do protesto a ser realizado pelos movimentos sociais, desempenhar
protestos inovadores também é uma questão levada em consideração na realização de um
79
protesto. Constantemente há a experimentação de novas formas de ação, mas elas são
empreendidas em pequenas formas, nas margens das ações já legitimadas e tradicionalmente
performatizadas pelos movimentos sociais, descrevem Della Porta e Diani (1999). Ainda,
novas táticas de protesto são frequentemente criadas com o intuito de ir ao encontro do
critério midiático de “newsworthness”. Um evento de protesto deve envolver táticas radicais,
um grande número de pessoas ou ser inovador e ou disruptivo para obter a cobertura da mídia,
pois tanto o conteúdo da mensagem transmitida pelo protesto quanto à publicidade do protesto
são questões importantes para os movimentos sociais. Assim, um protesto de tipo mais
moderado, que tende a agradar mais os simpatizantes e atrair suporte ao movimento,
raramente será uma preocupação jornalística, isto é, será noticiável; ao contrário de protestos
radicais, que chamam a atenção da mídia, mas desagradam grande parte do movimento social.
Hoje, o movimento de moradia é o principal movimento social atuante na cidade de
São Paulo. Dentre as várias organizações que compõem este movimento, podemos identificar
Fórum de Cortiços, o Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC), o Movimento de
Moradia do Centro (MMC), o Movimento dos Sem-Teto do Centro (MSTC), a Frente de Luta
por Moradia (FLM), a União para as Lutas de Cortiços (ULC), e uma entidade articuladora
dos movimentos de moradia do Estado de São Paulo, a União dos Movimentos de
Moradia/SP64 (UMM/SP), como os principais movimentos de moradia atuantes no centro65 da
cidade.
Estes movimentos de moradia articulam as suas estratégias de luta baseando-se na
concepção de reforma urbana, concepção esta que legitima a ocupação destes espaços ociosos
pelos movimentos, em função dos direitos de cidadania. Essa perspectiva de lutar por moradia
no centro está baseada na segregação espacial centro-periferia, explica Frúgoli Jr (2006). Esse
padrão de segregação reside no fato de que áreas centrais da cidade foram, ao longo do tempo,
foco de investimentos privados e públicos, concentrando, desta maneira, a infraestrutura, os
serviços, a renda, etc. em detrimento da periferia, nos quais não feitos pouquíssimos ou
nenhum investimento. A periferia da cidade, deste modo, era região destinada aos pobres,
visto que essa parte da cidade tinha os custos de terra mais reduzidos por causa de sua
carência de infraestruturas urbanas. A segregação, pontua Frúgoli Jr (2006), não se daria
somente, então, nas condições de vida da população, mas também no isolamento geográfico
destas áreas periféricas, o que resultava em uma maior dificuldade na vida dessas populações.
Estas ocupações tem por objetivo chamar a atenção da mídia para a causa, e assim,
transmitir para a esfera pública as demandas do movimento de moradia, fazendo com que as
políticas públicas para as camadas mais pobres sejam efetivadas e que haja a participação do
movimento nos processos de decisão relacionados aos tipos e destinos de investimentos na
política urbana.
A luta ganhou seu impulso e sua força na segunda metade da década de 90, com uma
intensa articulação dos movimentos na área central para garantir o direito a morar no centro

64
A União dos Movimentos de Moradia/SP (UMM/SP), entidade articuladora municipal da luta por moradia
surge em 1982. Esta, no entanto, somente teve sua fundação oficial em 1992, passando a ser uma articuladora de
nível estadual, sendo que hoje organiza 38 municípios do Estado de São Paulo.
65
Bloch (2007) utiliza como fonte a obra de Comim (2004), Diagnósticos, Oportunidades e diretrizes de ação:
Os Caminhos para o Centro, para denominar o que seria o centro de São Paulo: assim, por um ponto de vista
geográfico, o centro era definido pela circunscrição da sub prefeitura da Sé, compreendendo, além disso, os
distritos Sé, República, Liberdade, Bela Vista, Consolação, Santa Cecília, Cambuci e Bom Retiro. Entretanto,
devido à razões históricas algumas vezes são considerados os distritos do Brás e Pari, que formalmente
pertencem à subprefeitura da Mooca.
80
da cidade de São Paulo. Acho que a identificação dos prédios vazios no centro foi um dos
principais pontos da luta pela garantia do direito de morar no centro, quer dizer, um processo
de esvaziamento da área central, de desvalorização das regiões e de degradação do centro
levou os movimentos de moradia a uma luta por melhoria das condições de vida no centro da
cidade e por morar no centro da cidade de São Paulo. O mercado também olhou para o centro
mais ou menos nesse período, olhando o centro também com outros olhos: não por esse viés
do direito à moradia, mas buscando empreendimentos imobiliários ligados, principalmente, à
área cultural, à área de requalificação de patrimônio, mas no sentido de garantir o retorno,
vamos dizer assim, do acesso dos setores médios da classe média à área central. Então há uma
disputa nesse território muito pesada, a partir de 1995, entre os movimentos no centro, relata
Bloch, 2007.
Na segunda metade da década de noventa os movimentos de moradia começaram a ter
como estratégia de luta ocupações de imóveis vazios, em especial edifícios públicos. A
reivindicação destas ações estava baseada no direito à moradia nas áreas centrais, visando a
utilização dos atributos da localização do centro, isto é, a oferta de empregos, os serviços
públicos como educação e saúde, a acessibilidade urbana, etc.
Em 1997, foi realizada a primeira ocupação no centro de São Paulo: cerca de mil e
quinhentas famílias organizadas pela União para a Luta de Cortiços (ULC) ocuparam durante
51 dias um casarão na Rua do Carmo, na região da Sé, centro da cidade de São Paulo.
“[Nós, MMC,] Começamos a lutar por moradia, aí, nesse meio tempo
a gente foi vendo que na cidade de São Paulo, principalmente no
centro de São Paulo, vários prédios desocupados aí, ociosos, e muita
gente sem moradia sendo despejado porque o preço do aluguel do
cortiço é muito alto e as famílias ganhavam um salário e não podia
pagar, tinha seus filhos e não podia pagar. Foi quando nós decidimos
fazer a primeira ocupação, né, foi junto à ULC, foi um prédio da
Secretaria da Fazenda aqui na rua do Carmo.”66 (BLOCH, 2007, pag
101).
Aquino (2008), em entrevista com Verônica Kroll, trata especificamente desta
primeira ocupação em 1997 realizada pela União para a Luta de Cortiços (ULC):
“Eu tenho orgulho, assim, dessa entidade ser a primeira entidade de
ocupar prédio público, abandonado, no centro da cidade. Começamos
no dia 8 de março de 97. Por quê? Primeiro porque a gente se deparou,
e se depara até hoje, com muitos prédios abandonados, muitos imóveis
sem função social no centro da cidade, enquanto as periferias já se
encontraram com municípios vizinhos.
Então, a partir de 97, o que aconteceu? Era uma avalanche de despejos
nos cortiços. Nós não tínhamos o que fazer com essa população. Para
você ter uma idéia, tinha dia que tinha três despejos de cortiço. E era...
parecia aquilo que eu te falei, um caminhão de boi indo para o
matadouro, aquilo era o despejo. O que eu sempre costumo dizer é que
a população do cortiço, ela está muito mais vulnerável para ir para a
rua, para ir para o albergue. Ou voltar para outro cortiço. Porque a

66
Entrevista com liderança do Movimento de Moradia do Centro (MMC). Data: 26/08/2005. Local: sede do
MMC, na Rua do Ouvidor, 63, centro (prédio ocupado). Duração da entrevista: 1h30 (das 10h30 às 12h).
Entrevistadores: Daniel Lage, Janaina Bloch e Roberta dos Reis Neuhold.
81
porta da saída é essa. E essa população vale menos do que o lixo da
cidade de São Paulo. Se você pegar quanto a prefeitura investe na
questão social da cidade e o quanto ela gasta com o lixo da cidade,
quem tem mais valor? Com certeza é o lixo... E aí nós começamos
essa discussão.
A outra questão que nós pegamos, nós fizemos uma luta muito grande,
que era a questão do Estatuto da Cidade. Que aprovava e não
aprovava. O Fundo Nacional de Habitação Popular, que nós coletamos
um milhão de assinaturas. E a outra questão, contra os despejos da
cidade de São Paulo. Nós chegamos a fazer atos na porta do poder
judiciário, na porta dos juízes, para parar os despejos. Quando não
tinha onde colocar essa população, nós começamos a fazer ocupações,
é... a ocupar outros prédios... do Estado, vazios. O único prédio
particular que nós do Fórum de Cortiços ocupamos foi o Hotel São
Paulo, o resto tudo era prédio, que foi feito desocupação, os prédios
do Estado.” (AQUINO, 2008, pag 53).
Inicialmente, o objetivo era ocupar imóveis vazios para morar. No entanto, várias
ocupações se tornaram “depósitos de gente”, nas palavras de Verônica Kroll, isto é, moradias
precárias e provisórias, sempre ameaçadas por ações de despejo, além de existirem constantes
casos de violência e tráfico de drogas: assim, as ocupações não eram “moradias dignas”. Essa
conjuntura, por causar desgastes entre os membros dos movimentos passa a ser reavaliada,
então, no fim da década de noventa e início do ano 2000. Os movimentos, por isso, decidiram
fazer ocupações breves, com duração de poucos dias, com a finalidade somente de dar
visibilidade para a questão da moradia e pressionar o poder público.
Existem vários dilemas postos ao se utilizar da ocupação como moradia, a saber, as
precariedades do lugar, a violência doméstica e os perigos do tráfico de drogas:
“O Fórum dos Cortiços, graças a Deus, resolveu a última ocupação
agora em julho, que era a Rua da Abolição que durou quase seis anos,
que ia fazer agora, dia 24 de outubro. Bom, aí, eu te digo, ocupar
prédio pra morar dentro, nunca mais. Porque é assim, por exemplo, o
Casarão, virou um ponto de tráfico de droga (...) Foi se complicando
de uma forma que vai ficando difícil, porque que o Governo faz, “tá
bom, vocês ocuparam um prédio público?”, então ele vai deixando,
quatro, cinco, seis anos, que o povo se cansa de morar naquela
situação precária, que não é lugar pra se colocar gente pra morar
porque é a situação de risco, de risco... Morreu gente, morreu pessoas
nossas contaminadas, que perdeu perna, que perdeu mão, por causa
desses lugares muitos anos fechado. E ele aposta na população se virar
contra o movimento. Dizer o seguinte 'vocês chamaram nós, tá
dizendo que a gente teria uma casa, e qual a casa que vocês tão dando
pra gente?' Foi isso o que o Governo fez. Então eu digo muito claro, e
aí, por exemplo, no meio de todo esse povo que vem, você não
consegue dizer assim quem é o traficante ou quem tá envolvido com
droga, você começa a conviver com as famílias e lá dentro que você
começa a ter clareza, por exemplo, na Abolição nós tínhamos três
famílias, bastou. Era uma das melhores ocupação que nós tínhamos,
na Abolição, quer dizer, primeiro, quando o tráfico viu que não ia
82
conseguir entrar fez o quê? Matou o porteiro, aí ninguém mais quis
ficar na portaria e aí eles entraram pra dentro. E nós do movimento
íamos fazer o quê? nada. Pra resolver aquilo lá na ocupação com a
CDHU nós precisamos... A CDHU precisou entrar um dia assim sem
saber e mesmo assim, o dia que a gente avisou teve quarto que os
traficante falou assim 'aqui nesse quarto vai cadastrar 11 pessoa' e aí a
CDHU chamou e falou assim 'e agora? Morar 11 num quartinho
menor do que esse aqui, mora 11 pessoas? Com filho e com tudo?'
Claro que não, ninguém é besta. Aí o que nós combinamos com a
CDHU, 'tá bom, então vocês vão marcar um outro cadastro, sem
avisar, e vão entrar lá dentro, vocês vão bater as lista nossa, que nós
temos da ocupação, quem é nossa família e quem não é'. E assim nós
conseguimos resolver a Abolição. Então eu te digo uma coisa, eu já
posso até... não digo que ocupação tá descartada, fazer ocupação
política, mas pra morar, nunca mais. Porque eu sofri muito com o
Hotel São Paulo, com a morte do Alan, que morreu lá dentro afogado,
depois do Nascimento, que foram três presos, mais de três pessoa pro
hospital, depois Abolição, não morreu só o porteiro, ali morreram
mais de dez pessoas.”67 (BLOCH, 2007, pag 112).
Os tipos de protesto realizados pela União para a Luta de Cortiços (ULC) consistem
em ocupações pontuais, com dia e horário marcados, mobilizando cerca de 300 a 400 pessoas,
devido às ocupações acontecerem durante a semana. Além disso, há uma agenda que é
seguida pelos Movimentos como um todo:
“Nós fomos para Brasília esses anos que o Lula entrou. No primeiro
ano e no segundo, fomos porque tinha um projeto de lei de iniciativa
popular que era o Fundo Nacional de Moradia Popular e que está
fazendo 14 anos em outubro agora, que, graças a Deus, foi
sancionado, tá lá, dia 14 agora, que passou, de agosto, nós fomos à
Brasília na marcha que em todos os anos nós fazemos. Nós tivemos 15
audiências, durante os dias 15 e 16. Uma delas foi com o presidente
Lula, uma delas foi com o Severino, outra delas foi com o ministro da
Cidades, Márcio, que foi trocado, e a outra delas foi com o ministro do
Planejamento, a outra delas foi com a SPU.
Nós ocupamos dia 12 de agosto o INSS aqui funcionando, e falamos:
ou vocês fazem ou nós não saímos e ocupamos com 200 pessoas. Aí
pegamos presidente do INSS, superintendente, todo mundo ali na boca
da botija, foi aí que eles anunciaram o começo da obra que estava
parada, vamos trabalhando para que o governo federal tenha uma
marca aqui em São Paulo. Eu não vi e vocês não viram nada do tipo
que o governo construiu algo em São Paulo. Vamos acreditar que esse
INSS, 9 de julho, Brás, Conselheiro Crispiniano, Vila Monumento, no
Ipiranga, um terreno na Moóca que nós indicamos, que essas coisa
saiam do papel de verdade.

67
Entrevista com liderança do Fórum de Cortiços. Data: 15 de setembro de 2005. Local da entrevista: sede do
Fórum de Cortiços (Rua Bento de Freitas, 35, Largo do Arouche). Duração da entrevista: 1h30 (das 17h30 às
19h). Entrevistadores: Roberta dos Reis Neuhold e Daniel Lage.
83
Nesse caso, se nós quisermos fazer alguma ação específica a gente
avisa a União [dos Movimentos de Moradia] e a gente vai fazer, mas
eu acho, (...) que os movimentos respeitam uma agenda geral. Por
exemplo, ontem foi dia 7, foi o Grito dos Excluídos, todos os
movimentos foram para a rua, nós fomos, a ULC encontrou com a
União. Dia 3 de outubro é o Dia dos Sem-Teto e vamos sair todos
juntos. Dia 31 de maio, dia nacional de políticas públicas, todos nós
juntos. Dia 1 de abril temos uma característica, de fazer uma ocupação
simbólica na União, dia tanto é o dia da Aids, tudo a gente participa,
dia tanto é o dia da marcha... Então, nós participamos muito mais em
conjunto. É aquilo que eu falei lá atrás, é muito mais forte você fazer
uma ação em conjunto do que individual. Individual você se torna
mais fraco, mais fragilizado.” 68(BLOCH, 2007, pag 99-100)
Esta mudança na finalidade das ocupações foi um dos principais aspectos que
desencadearam novos “rachas” no interior do movimento de moradia. Duas dissidências
surgiram, favoráveis ao uso da ocupação como moradia e como estratégia de luta por políticas
públicas habitacionais: o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC), com fundação em
novembro de 2000, “racha” do Fórum de Cortiços, e o Movimento de Moradia da Região
Centro (MMRC), surgindo em 2003 por causa das divergências com o Movimento de
Moradia do Centro (MMC), ambos filiados à Frente de Luta por Moradia (FLM).
A principal forma de protesto do Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC) é
a ocupação. Além disso, foi destacada a necessidade de serem realizados protestos com pautas
ampliadas, aliando a luta por moradia com lutas relacionadas às condições de vida da
população:
“Nós fazemos vários tipos de protesto, mas que seja focado mais na
moradia. E outra coisa que eu luto com os companheiros é que a gente
saiba diferenciar, o que nós temos que diferenciar, de fazer uma coisa
casada com a outra, que é a moradia, a saúde, a educação, o transporte
e as tarifas, que tá absurda, então o movimento não tem que só fazer
luta pela moradia, porque tenho moradia, não tenho emprego, ou
tenho emprego e não tenho a moradia, você tem a casa, não tem o
posto médico, você tem a casa e tá pagando um absurdo de taxas,
então acho que o movimento tem que acampar uma luta séria em cima
desses focos, mas quando nós fazemos qualquer manifestação é em
cima da moradia e, quando começou, não era nem tanto pela moradia,
era movimento de moradia, mas tinha suas lutas voltadas para serviço
na favela, a urbanização das favelas, pras taxas absurda, se fazia mais
serviço na favela, nos cortiços, pensão, e hoje, então, esqueceu da
favela, esqueceu dos cortiço e esqueceu das pensões da vida, que têm
por ai... Não luta pra diminuir a tarifa do ônibus, não luta pra diminuir
a luz, a água, que eu acho que isso é luta do movimento...”69
(BLOCH, 2007, pag 105-106).

68
Entrevista com liderança da União para a Luta de Cortiços (ULC). Data: 08/09/05. Local: sede da ULC, na
Rua Libero Badaró, 92, sala 11, centro. Duração da entrevista: 1h30 (das 10h30 às 12h). Entrevistadores: Daniel
Lage, Janaína Bloch e Roberta dos Reis Neuhold
69
Entrevista com liderança do Movimento de Moradia da Região Centro (MMRC). Data: 22 de Setembro de
2005. Local da entrevista: sede da FLM e dos movimentos a ela filiados. Avenida São João, 1495. Duração da
84
Já o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) prioriza protestos que confrontem
movimento e governo, sendo que sua principal forma de protesto é a ocupação. De 1997-
2005, considerando o tempo em que o Movimento Sem-Teto do Centro (MSTC) ainda fazia
parte do Fórum de Cortiços, podem ser listadas as seguintes ocupações: da Conquista, da
Santa Rosa, da Nove de Julho, da Prestes Maia, da Brigadeiro Tobias, do Parque do Gato, da
Associação Casa Verde, do Bresser, da Bela Vista e da Barão de Piracicaba. Dentre as
listadas, somente a Brigadeiro Tobias, Parque do Gato e Nove de Julho já foram conquistadas
para moradia.
O Fórum de Cortiços, o Movimento de Moradia do Centro (MMC) e a União para a
Luta de Cortiços (ULC), com surgimento na década de oitenta e com filiação a União dos
Movimentos de Moradia (UMM) e a Central de Movimentos Populares (CMP) utilizam
somente a estratégia da ocupação de imóveis vazios com finalidade de pressão ao poder
público e para a formulação de políticas habitacionais, e não mais como moradia.
Dentre as ações da União dos Movimentos de Moradia (UMM) há realização de mais
de 30 ocupações em prédios no centro de São Paulo no período de 1995-2005:
“As nossas ocupações se conceituam a partir de 96, 97, 98, 99.
Fizemos grandes ocupações. Depois em 2001 e, agora em março, nós
fizemos duas ocupações grandes, uma no Brás e outra na periferia de
São Paulo, numa área da rede ferroviária. Também em abril de 2003,
(...) o alto do abril vermelho, que era no campo e na cidade. Então nós
sempre combinamos a mobilização de um lado (...) acompanhada de
uma série de propostas que o movimento vai fazendo para poder
avançar a sua luta.”70 (BLOCH, 2007, pag 119).
A partir de 2001, um novo elemento pauta os repertórios de ação do movimento de
moradia: a aprovação, no Congresso Nacional, do Estatuto da Cidade, compreendendo
instrumentos a serem utilizados pelo movimento, tais como o IPTU progressivo, a nova
concepção da função social da propriedade, o Plano Diretor Estratégico para cidades com
número maior que 20.000 habitantes, e, com isso, uma nova configuração jurídica para o
trâmite de apropriação das áreas provadas, etc. Esta conquista foi realizada em conjunto com
entidades nacionais que lutam pela Reforma Urbana, e juntamente com ela, a transformação
do contexto legal da luta social nas cidades, como o Movimento de Moradia.
O Estatuto da Cidade, assim, não altera somente o conteúdo reivindicatório dos
protestos, mas também altera a articulação das lutas na cidade: a incorporação de novas pautas
para a política urbana com um todo não somente abarca novos mecanismos de pressionar o
Estado, mas através da proposição de uma nova agenda de políticas públicas para a cidade,
permite a aliança com atores sociais distintos, devido à ampliação da pauta do movimento de
moradia com a inclusão da problemática da Reforma Urbana.
Se na década de noventa o conteúdo dos protestos ampliou-se, abarcando as
reivindicações do direito à moradia no centro da cidade, a nova conjuntura de lutas reflete as
novas discussões acerca do Estatuto da Cidade e as concepções da Reforma Urbana: o
entendimento da política urbana e social e as propostas para tais políticas públicas estão em
um plano muito maior – reivindica-se o direito à cidade.

entrevista:1h15 ( das 10h30 as 11h15). Entrevistadores: Daniel Laje, Janaina Bloch, Roberta Neurold
70
Entrevista com membro da União dos Movimentos de Moradia (UMM), em 04/11/2005. Local: sede da
Central dos Movimentos Populares, na Rua Fiação da Saúde, 335, Saúde. Duração da entrevista: 1h30 (das
11h30 às 13h). Entrevistadores: Daniel Lage e Roberta dos Reis Neuhold.
85
O centro de São Paulo foi considerado área de grande importância durante a gestão do
Executivo Municipal de Marta Suplicy (PT, 2001-2005). Vários programas foram formulados
para a promoção do centro, como o Programa Ação Centro, coordenado pela Empresa
Municipal de Urbanização (EMURB). Trata-se de Programa que visa fundamentalmente a
reforma de edifícios vagos e cortiços, produção de habitação, reabilitação do patrimônio
histórico, programas socioculturais, projetos de locação social, a partir de uma metodologia de
reabilitação integrada do habitat que privilegia a participação dos grupos locais nas definições
das transformações urbanas a serem realizadas.
Marta Suplicy assume o governo municipal em um contexto de enorme déficit
habitacional: de acordo com o levantamento da FIPE, no ano de 1994, devido ao desemprego
estrutural e à grave situação econômica enfrentada pelo país, o número de moradores em
cortiços na cidade de São Paulo chegava a 600.000 pessoas. Já a população habitando em
favelas, segundo as pesquisas do Centro de Estudo da Metrópole, 1.160.000 pessoas, e, além
disso, a própria Prefeitura de São Paulo identificava uma população - previamente excluindo
os moradores de favelas - de 1.600.000 pessoas vivendo em loteamentos irregulares. A este
quadro devem ser somados dois elementos do contexto da política brasileira: os governos
estadual e federal encontravam-se, na época, sob administrações opositoras: o PSDB.
Devido à orientação participativa deste governo municipal do PT, houve um momento
de abertura às demandas dos grupos populares, tanto para negociação quanto para priorização
dos programas na área central da cidade. Nesta mesma época foi criado o Conselho Municipal
de Habitação, no ano de 2002, composto por 48 membros, sendo um terço por representantes
do poder público, outro terço vindo das entidades da sociedade e o outro terço por
representantes eleitos pela população, sendo que na primeira votação participaram mais de 33
mil votantes.
Há, além disso, uma ênfase da participação popular na confecção do programa de
governo da gestão municipal petista. Na formulação da política de habitação e urbana as
reivindicações do Movimento de Moradia foram contempladas: a questão da habitação na
área central; a redefinição do papel do Conselho Municipal de Habitação e do Fundo
Municipal de Habitação com vistas a efetivar e ampliar o controle social; dar continuidade nas
obras da gestão municipal Maluf e Pitta interrompidas e elaborar um Plano Integrado de
Habitação para o município.
Neste período houve uma trégua por parte dos movimentos populares em relação ao
governo. Foram realizados somente protestos esporádicos demandando mais verba nos
momentos que antecediam a votação do orçamento municipal na Câmara de Vereadores, além
da entrega de uma carta à prefeita e a realização de um ato, constituído na ocupação
temporária de dois prédios abandonados no centro da cidade.
Há, no entanto, uma diferenciação de um período petista para o outro no que se refere
ao movimento de moradia. Várias lideranças do movimento encontravam-se na própria
administração do governo, o que fragilizava o movimento, pois estes vínculos eram usados
para pressionar as ações governamentais, ao mesmo modo que estas pessoas desencorajavam
o movimento a fazer o uso dos protestos, pois os protestos poderiam ter efeitos negativos e
desgastar a gestão petista, fragilizando, assim, o governo popular perante os movimentos
sociais, que eram a base do governo.
Isso fica evidente na fala de José, liderança da União dos Movimentos de Moradia de
São Paulo (UMM-SP):

86
“Era um risco grande, né. De a gente acabar entrando em confronto
muito forte com a Prefeitura. E desgastar muito mais que... o
programa dela já não falava muito de habitação. Então eu acho que
poderia ter pressionado mais, feito ocupação, só que desgastava muito
mais. A gente tinha uma avaliação que ela ganhando o segundo
mandato aí seria muito mais fácil, e infelizmente nós acabamos
pecando talvez por não exigir mais da Marta, pressionando mais. E,
por outro lado, pecando porque não conseguimos reeleger ela,
reeleição”. (CAVALCANTI, 2006, pag 125)
A boa governança da gestão petista estava marcada pelo fato de que os atores e
interlocutores estarem inseridos na política institucional e serem a favor deles. A única forma
de atuar politicamente, então, era a via institucional. Os protestos, então, deixaram de
acontecer, visto que os momentos de tensão marcados pelo confronto da ação direta foram
substituídos pela inserção de agentes do movimento dentro do próprio quadro institucional do
governo. Protestar, neste momento, seria, então, ficar contra o próprio movimento e um
governo popular.
Uma liderança da União dos Movimentos de Moradia de São Paulo (UMM-SP) faz a
seguinte interpretação sobre as mobilizações neste período:
João (Liderança da UMM-SP): “É. E nesse ano a União (de 2005) já
fez cinco mobilizações...Duas nos quatro anos de governo...No
governo federal já fizemos acampamento...porque tinha uma
interlocução com o governo muito intensa...porque é...é...há sempre
aquela dúvida. Qual é o grau de autonomia do movimento...onde as
lideranças são petistas, onde vão trabalhar no governo e como isso
interfere no grau de pressão e mobilização do movimento social em
governos ditos populares. (...) Mas no primeiro momento o risco é
dizer o seguinte: há governo popular diminui o grau de pressão, há
governo conservador de direita aumenta o grau de pressão. É fato
também que é possível você enxergar o maior avanço das políticas
sociais nos governos ditos populares. Comparativamente, os avanços
do governo, Marta em relação aos avanços do governo Pitta e Maluf,
eles são infinitamente...e mesmo agora no governo Serra, ainda não
sabemos até onde ele vai chegar mas... ninguém sabe se ano que vem
ele é candidato a presidente...vai passar para o PFL a Prefeitura e você
vai ver o que vai virar... São muito diferenciados, o grau de amarrar
acordo com as associações no governo popular eles são mais
construídos do que em um governo conservador né, de repente isso
também gera um outro tipo de pactuação evitando uma pressão maior.
Só estou mostrando que...”
Entrevistador: “De fato diminuiu a intensidade de manifestação de
pressão do governo na gestão Marta.”
João (Liderança da UMM-SP): “É. Isso é um fato.” (CAVALCANTI,
2006, pag 122).
O saldo da política habitacional de Marta Suplicy foi a aprovação do Plano Diretor
Estratégico, juntamente com os Planos Diretores Regionais. Entretanto, especificamente em
relação à luta pela moradia, pouco mudou, uma vez que os elementos constitutivos da luta por
87
moradia não foram viabilizados até a finalização da gestão, ora por depender da conclusão de
procedimentos administrativos, ora por necessitar de marcos regulatórios a serem aprovados
pelas esferas do Executivo e/ou do Judiciário.
Uma grande realização do Movimento de Moradia neste período foi a sua intensa
participação na Conferência Municipal de Habitação, realizada de 7 a 9 de setembro de 2001.
Para tal, a prefeitura organizou Pré-Conferências em várias regiões da cidade, totalizando a
presença de 20.000 pessoas e a eleição de 2.230 delegados, sendo em sua grande maioria
membros do movimento de moradia.
Na Conferência Municipal de Habitação foram levantadas, discutidas e apresentadas
as seguintes sugestões e reivindicações para a problemática urbana: participação na
elaboração do Plano Diretor; implementação dos instrumentos previstos no Estatuto da
Cidade; definição de uma política de subsídios para a habitação; estímulo à autogestão;
formulação de uma política de terras; revisão do Fundo Municipal de Habitação e do
Conselho Municipal de Habitação; formulação de um programa para as áreas de preservação
ambiental; descentralização administrativa, etc. Todavia, somente foi levada à plenária final
os pontos que remetiam à participação popular no governo, e o único ponto que tratava da
habitação, que destinava 5% do orçamento municipal para a política habitacional, que foi
aprovado e que constava no documento final da Conferência, nunca chegou a ser aprovado.
No final desta gestão, as ações da União dos Movimentos de Moradia (UMM) se
concentraram em garantir a continuidade dos programas para o centro de São Paulo,
independente da vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) nas próximas eleições. Além disso,
também lutavam para garantir programas com recursos do governo federal, através da
viabilização do Programa de Arrendamento Residencial (PAR), atingindo, desta forma, as
famílias de três a cinco salários mínimos.
Já o governo municipal 2005-2006 de José Serra (PSDB), seguinte ao de 2001-2005
de Marta Suplicy (PT), foi marcado pela expulsão dos moradores das ocupações e de prédios
invadidos, houve, além disso, uma higienização do centro e da reprodução da segregação e da
desigualdade, juntamente com o fechamento do canal de comunicação governo e movimentos
sociais.
Nesta época, há atuação da União dos Movimentos de Moradia (UMM) em dois
protestos importantes: no dia 7 de Março de 2005, cobrando das três esferas de governo, isto
é, municipal, estadual e federal políticas de habitação na cidade de São Paulo, e em Junho de
2005; ainda havendo nos dias 15 e 16 de Agosto de 2005 uma Marcha Nacional da Reforma
Urbana, que foi até Brasília.
A atuação na luta por moradia da União dos Movimentos de Moradia é marcada por
duas entradas:
“A União tem duas formas de luta. Uma no campo institucional,
então, a gente tenta garantir legislação ligada ao tema da moradia, por
exemplo, a aprovação do Fundo Nacional de Moradia Popular,
garantir que o Conselho tenha uma gestão transparente garantir
recursos no orçamento, então essas lutas são feitas mais no campo
institucional do movimento. E a outra é a forma direta, através das
passeatas, das mobilizações e da ocupações.” 71 (BLOCH, 2007, pag
94-95)

71
Entrevista com membro da União dos Movimentos de Moradia (UMM), em 04/11/2005. Local: sede da
88
Nesta mesma época, o Fórum de Cortiços realiza protestos para pressionar o governo
municipal de José Serra:
“Olha, a gente, por exemplo, nós fizemos um ato no Governo Serra,
né, Prefeito. Por quê? Parou todos os programa que a gente tinha e não
tem nada, nós tínhamos um monte de programa, prédio
desapropriando, mutirão, favela regularizando, então tudo isso parou
e a gente fez o ato pra retomar essas negociações que nós tínhamos. E
aí pouco se resolveu porque eles estão fazendo o que eles bem
querem. Por exemplo, nós estamos programando um ato no Geraldo
Alckmin, então a gente vai discutir, quais são os problema, né?” (...)
Não consegue andar nas negociações, já pedimos reunião e já fizemos
mil reuniões, e a coisa tá parada? Aí a gente faz o ato de manifestação
de cobrança do Governo. É sempre de cobrança, com certeza!”72
(BLOCH, 2007, pag 111-112)
Na mesma linha de governo de José Serra segue o prefeito Gilberto Kassab (Dem,
2006-2009, 2009-...), de higienização do centro de São Paulo e de valorização do patrimônio
histórico. Devido a estas políticas sociais desenvolvidas pelos governos do PSDB e
Democratas, os protestos do movimento de moradia se intensificam, uma vez que estes
governos são de posições ideológicas contrárias as do movimento e não estão abertos ao
diálogo com a sociedade civil, e, portanto, não implementando políticas sociais em conjunto
com a sociedade civil organizada. Os protestos, assim, vêm como tentativas de abertura de
diálogo com o governo, de modo a reivindicar a incorporação das questões dos movimentos
às políticas públicas.
3 Considerações finais
Mesmo sendo um movimento social muito heterogêneo e ocorrendo, ao longo do
tempo, “rachas” e processos de segmentaridade dentro de um processo contínuo de oposição e
segmentação dentro do movimento de moradia em função de suas divergências políticas, ele
ainda pode ser visto como um sujeito coletivo por compartilhar de uma mesma identidade
coletiva: a luta por moradia digna.
O processo desta luta por moradia digna pode ser visto de acordo com alguns cenários:
(a) na década de setenta se iniciam as primeiras mobilizações, realizadas por
moradores de favelas, em torno de problemáticas relacionadas à infraestrutura das casas,
sendo que posteriormente, as lutas passam a ter seu foco na reurbanização das favelas,
passando para uma demanda mais ampla, isto é, da infraestrutura da moradia para a posse da
moradia;
(b) na década de oitenta emerge o processo de ocupações, e o conteúdo dos protestos
abarca não somente a posse da moradia, mas também a construção de moradias dignas;
(c) no meio da década de oitenta novas ocupações são realizadas, começando, assim, a
ocorrer ocupações em sedes de órgãos públicos, com o objetivo de pressionar o governo para
o atendimento das propostas do movimento de moradia;

Central dos Movimentos Populares, na Rua Fiação da Saúde, 335, Saúde. Duração da entrevista: 1h30 (das
11h30 às 13h). Entrevistadores: Daniel Lage e Roberta dos Reis Neuhold.
72
Entrevista com liderança do Fórum de Cortiços. Data: 15 de setembro de 2005. Local da entrevista: sede do
Fórum de Cortiços (Rua Bento de Freitas, 35, Largo do Arouche). Duração da entrevista: 1h30 (das 17h30 às
19h). Entrevistadores: Roberta dos Reis Neuhold e Daniel Lage
89
(d) a década de noventa é marcada também por um deslocamento nas lutas, que
passam a acontecer no centro da cidade, demandando por moradia digna no centro, local onde
se concentra as políticas sociais e infraestrutura da cidade, demanda esta justificada pela
enorme quantidade de prédios ociosos no centro e pelos parâmetros da reforma urbana;
(e) a partir do ano de 2000, com a criação do Estatuto da Cidade, assim, não se amplia
somente o conteúdo reivindicatório dos protestos, mas também altera a articulação das lutas
na cidade: a incorporação de novas pautas para a política urbana com um todo não somente
abarca novos mecanismos de pressionar o Estado, mas através da proposição de uma nova
agenda de políticas públicas para a cidade. Assim, o entendimento da política urbana e social
e as propostas para tais políticas públicas estão em um plano muito maior – o conteúdo dos
protestos, abarcam o direito à cidade.
Os movimentos sociais se deparam com uma série de dilemas estratégicos na escolha
do formato do protesto, como pode ser visto no que se refere à utilização da ocupação no
movimento de moradia. Estas escolhas são limitadas por vários fatores internos e externos ao
próprio protesto, já que os diferentes repertórios de ação disponíveis são finitos em tempo e
espaço, e ainda, seguidos pelas tradições dos ativistas, uma vez que uma forma de ação de
protesto pode ser reutilizada novamente em outros protestos, ou até adaptado se a forma de
protesto já obteve legitimidade por parte da sociedade. A escolha do repertório a ser utilizado,
de certa maneira, dependerá de fatores culturais e da disponibilidade de fontes materiais para
os grupos realizarem os protestos.
Além disso, a importância de espaços de socialização entre as diversas esferas que
lutam por moradia são essenciais para discussão de possíveis soluções para estes problemas
coletivos e a deliberação de ações e reivindicações articuladas, buscando maior visibilidade ao
conflito e o atendimento das demandas.
Uma vez que agir coletivamente requer algum tipo de identidade ou consciência
coletiva, e esta identidade coletiva não é algo mecanicamente construído e não desenvolve
automaticamente, a sua criação é um dos desafios fundamentais do movimento social. A sua
importância reside na definição coletiva das queixas que produzem um sentimento de um
‘nós’ e das atribuições causais a um ‘eles’ na qual é dada a responsabilidade para as queixas
coletivas e onde estas são traduzidas em um conflito político. As atribuições causais, ao serem
disseminadas pelos atores sociais e políticos geram circunstâncias e categorias sociais para o
significado político. Ainda é nestas atribuições causais que é produzido um potencial de
indignação moral compartilhada e uma consciência oposicional, que é crucial para a
identidade coletiva no contexto dos movimentos sociais, o que faz da identidade coletiva um
elemento significativamente relevante.
Neste paper, pudemos ter uma percepção inicial das estratégias de ação coletiva do
movimento de moradia. No entanto, o protesto não deve ser tomado como única forma de
ação, mas sim ele pode ser combinado a outros métodos, de forma a alcançar as
reivindicações do movimento.

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92
Resistencias Ciudadanas. Una la lucha por el reconocimiento de derechos:
el caso del desplazamiento forzado.
Dedicado a Ana Fabricia Córdoba, mujer, esposa, madre
y ante todo, una tejedoras de esperanzas
y luchas sociales, una voz más silenciada,
por la negligencia del Estado
y la intolerancia de la guerra

John Mario Muñoz Lopera¹

¹ Trabajador Social. Magister en Ciencia Política. Doctorando en Gobierno y Administración Pública,


Universidad Complutense de Madrid. Docente e investigador. Integrante del grupo de Investigación, Cultura,
Política y Desarrolla Social. Universidad de Antioquia.

Introducción.
El conflicto armado73 en el Colombia, es de vieja data, así, en los gobiernos recientes no lo
haya reconocido, sólo ahora bajo el gobierno del presidente Santos se le reconoce, (más como
una jugada estratégica para la ley de víctimas, que como posible salida del mismo).
En esta confrontación bélica del país, se pueden ubicar grupos que están en una disputa por el
poder político y económico (insurgencia, paramilitares, narcotráfico y la fuerza pública)
libran un enfrentamiento por el control territorial de lugares estratégicos, no solo por la lógica
“ideológica” de la guerra, sino por el cultivo y las rutas de distribución de cocaína, por el
diseño y desarrollo de macroproyectos, como el canal interoceánico, hidroeléctricas, los
cultivos de palma africana, entre otros. Igualmente, en estos híbridos de la guerra se da el
apoyo de los paramilitares, a partidos políticos afines a sus intereses de dominio y expansión.
(La llamada la parapolítica)
En este contexto, empieza en la década del ochenta un “nuevo” ciclo de violencia en la
historia del país, quizá uno de los más sangrientos y demenciales, y el que mayor número de
personas en situación de desplazamiento forzado ha dejado.

El desplazamiento forzado por el conflicto en Colombia representa no solo la agudización del


conflicto armado en el país, sino una verdadera crisis humanitaria: esta confrontación bélica
ha dejado más de cuatro millones de desplazados (segunda en el mundo después de Sudan), al
igual que una alarmante cantidad de asesinatos, masacres, desaparecidos, y 7 millones de
hectáreas de tierra, que los diversos actores del conflicto le han usurpado a esta población.
La estructura del texto se desarrolla cuatros momentos: en el primero se realiza una
aproximación al debate de la ciudadanía, vista desde los abordajes contemporáneo, Es decir,
la republicana, liberal y la democrática, tomando como punto de central, la obra seminal de

73 La preocupación académica e investigativa sobre el conflicto armado en Colombia ha sido muy


prolífera, sobre todo en las tres décadas más recientes. Las investigaciones, como lo veremos el
capítulo 2, tienen diversas aristas: están las que explican la evolución del conflicto armado en
Colombia, aquellas que se refieren al vacío del Estado, otras a problemas de pobreza y exclusión, y
otras que giran en torno a la disputa de los actores armados por el poder. Véanse: Camacho, 1991,
1997, 1999; Vargas Velásquez, 1999; Zulúaga, 2004; Arocha, 1998; Cubides, 1998; Alonso, 1997; Deas,
1999; De Sousa Santos, 2001; Gutiérrez, 2006; Jaramillo, 1998; Leal, 1999; Montenegro, 2001;
Papacchini, 1997; Pécaut, 1987, 1999, 2008; Pizarro, 1996; Posada, 2002; Rubio, 1999; Sánchez, 1987;
Uribe, 2003; Valenzuela, 1994; González, 1989; Guzmán, 1994; Kalyvas, 2001; Sarmiento, 1995, 2001;
Romero, 2003; Ortiz, 2001; Ramírez, 2002; Angarita, 2001; Nieto, 1999; Rangel, 2005; Corporación
Nuevo Arco Iris, 2010; González y Bolívar, 2003; García, 2006; Garay, 2009.
93
Marshall. En un segundo planteamos como ha sido la forma de domesticación de los
ciudadanos, no sólo por medio del Estado, sino de la economía, los medios de comunicación,
entre otros. Luego, abrimos el debate sobre otras formas de pensar la ciudadanía fuera de las
amarras de los marcos políticos-jurídicos del Estado-Nación, se expone igualmente, los
fundamentos teóricos desde donde se van a abordar las lecturas sobre las resistencias
ciudadana, tratando de argumentar, que en estas formas alternas del ejercicio de la ciudadanía,
se pueden desarrollar subjetividades políticas por fuera de las convencionales.
En el tercer lugar, se realiza unos breves comentarios sobre el desplazamiento forzado en
Colombia, dejando de entrada claro que se da por el conflicto armado que vive el país, y que
más que una consecuencia de la guerra, es una estrategia de control y dominación, territorial-
económica, social y política, por parte de los diversos grupos que hacen parte directa o
indirectamente del conflicto armado. Seguidamente, mostraremos vía testimonios como se
han desarrollados estas expresiones de resistencia ciudadana, por parte de estas poblaciones.
Para terminar, se harán unas consideraciones finales, que pretender ser más que unas
conclusiones definitivas; una invitación para seguir indagando por estos temas que la
academia viene banalizando o peor aún, naturalizando. Es decir, es imperativo no solo
reconocer, dinamizar y aportar, desde la reflexión académica a estas formas de lucha por los
derechos, como es caso de las poblaciones desplazadas, como también a otras formas de
resistencia ciudadana, frente al poder y la dominación en cualquiera de sus manifestaciones.

1. El debate contemporáneo de la ciudadanía y la domesticación del ciudadano.


La ciudadanía que se ha convertido según Kymlicka (1997: 5) en una palabra que resuena a lo
largo de todo el espectro político.
La ciudadanía es uno de los temas que genera más controversia, y por ello uno de los más
importantes en la política contemporánea mundial. Fenómenos como la crítica al Estado de
Bienestar, el colapso del socialismo real, el surgimiento del nacionalismo en Europa del este,
las sociedades multiculturales y sobre todo, el proceso de globalización, han contribuido a que
se retome la discusión.74
El concepto de ciudadanía está relacionado con la idea de los derechos individuales, y con una
noción de vínculo con una comunidad en particular. En este sentido, es preciso indagar la
manera en que se crean las condiciones necesarias para el ejercicio de la ciudadanía, y el
modo en que se agencia, se desarrolla y consolida en las expresiones de resistencia ciudadana
de la población desplazada.
Para ello, la pregunta por la ciudadanía precisa de elementos teóricos como los desarrollados
por T.H. Marshall en relación a la ciudadanía y la clase social, en un texto aparecido en el
decenio de 1950, y que para autores como David Held. Giddens, entre otros, constituye un
punto de partida ineludible.
Lo primero que hace Marshall en el análisis de la ciudadanía es construir una delimitación de
los componentes o elementos que conforman o dan cuerpo teórico a la misma, entre los que se
encuentran los elementos impuestos por la historia y por la lógica: el elemento civil, el
político y el social. El primero, está compuesto por los derechos necesarios para las libertades
individuales: Libertad de la persona, de expresión, de pensamiento y de religión. Derecho a la

74 El texto sobre ciudadanía que se presenta, está basado en el artículo publicado por John Mario Muñoz Lopera,
titulado “La paz bajo la sombra indeleble de la guerra: una experiencia en la construcción de ciudadanía en la
comunidad de paz de San José de Apartado”. En: Boletín de Antropología. Universidad de Antioquia. Medellín
Vol. 22 # 39. 2008
94
propiedad privada y a establecer contratos válidos y derecho a la justicia (Marshall, 1998: 23).
El derecho a la justicia, es clave, puesto que en él se sustentan otros derechos, posibilitándole
al ciudadano exigir y defender otros. El segundo, los derechos políticos, entendidos como los
derechos a participar en el ejercicio del poder político, en calidad de miembro de un cuerpo
investido de autoridad política, o como elector (Marshall, 1998:23), es decir, los derechos
políticos que dan la posibilidad al ciudadano de elegir y ser elegido en cargos públicos,
derecho que le da la posibilidad mínima de participar en la toma de decisiones. El tercero y
último, es el derecho social que tiene que ver con lo económico y la seguridad social. Este
abarca todo el espectro, desde el derecho a la seguridad y a un mínimo bienestar económico,
hasta compartir plenamente la herencia social y garantizar la manera de vivir conforme a los
estándares de calidad de vida aceptados como buenos por la sociedad (Marshall, 1998:27).
No obstante y pese al “logro” de derechos de ciudadanía, existen muchas críticas a esta, por
considerar que los “derechos” ciudadanos siguen entrampadas en el marco institucional y del
capital privado, que requieren para sus intereses un ciudadano domesticado.
De acuerdo a lo anterior, hablar de la ciudadanía bajo los parámetros del pensamiento liberal
en el mundo contemporáneo, es preciso reconocer las imposiciones y condicionamiento del
Estado y del capital al ciudadano. Es decir, estas dos estructuras de poder, desarrollan unos
dispositivos para domesticar al ciudadano y lograr, no sólo la aceptación de las reglas de
juego en la sociedad, sino que igualmente generan mecanismo de control y dominación, para
que el ciudadano, acepte, respecto e incluso defienda, estos escenarios predeterminados de
participación política, de explotación y de consumo que impone las clases dominantes.
Como bien lo plantea Capela, los ciudadanos no deciden ya las políticas que presiden su vida.
El valor o perdida de sus ahorros, las condiciones en que serán tratados como ancianos, sus
ingresos, el alcance de sus pensiones de jubilación, la viabilidad de las empresas en las que
trabajan, la calidad de los servicios de la ciudad que habitan, el funcionamiento del correo, de
las comunicaciones y los transportes estatales, la enseñanza que reciben sus hijos, los
impuestos que soportan y su destino (….) Todo ello es producto de decisiones en las que no
cuentan, sobre las que no pasan, adoptadas por poderes inasequibles y a menudo inubicables.
Y los ciudadanos votan. Pero su voto no determina ningún “programa de gobierno” (Capela,
1993: 136)
Es decir, nos encontramos con una amalgama de dispositivos que vienen de diversas
estructuras y formas de poder, en una sociedad supuestamente democrática y de pensamiento
libre, donde las estructuras de poder, tiene claro que su cometido, es que el ciudadano
domesticado piense incluso que es libre, para tomar sus decisiones y hacer pensar y actuar a la
sociedad en general, bajo estos campos discursivos justificatorios del pensamiento liberal-
racional.
Como dice Capela “Los ciudadanos - siervos son los sujetos de los derechos sin poder. De la
delegación en el Estado y el mercado. De la privatización individualista.
Los ciudadanos han doblado en siervos al haber disuelto su poder, al confiar sólo al Estado la
tutela de sus “derechos”, al tolerar una democratización falsa e insuficiente que no impide al
poder político privado modelar la “voluntad estatal”, que facilita el crecimiento, supraestatal,
de ese poder privado.
Los seres humanos han quedado dotados de “ciudadanía” ante el Estado, cuando no es ya el
Estado, un soberano: cuando cristaliza otro poder, superior o distinto, supraestatal e
internacional, esencialmente antidemocrático, que persigue violentamente sus fines
particulares.” (Capela, 1993: 152)

Agrega Capela que el “Estado, aséptico, dice entretanto ser “anónimo”. Que no gobiernan los
hombres sino las leyes, hechas por los representantes de todos, del pueblo soberano. “Todos”
es la palabra (pero también contiene elementos míticos); ese “todos” de la igualdad capitalista
95
moderna –que, por otra parte, no coincide, ya se ha dicho, con toda la población- es la clave
del mito de la ciudadanía. Para poder verse como ciudadano en el espejo mágico del relato
mítico contemporáneo cada persona ha de realizar dos notables series de operaciones: una de
despojamiento y otra de revestimiento.” (Capela, 1993: 139)
Despojarse, haciendo una lectura desde Hobbes, era la entrega de la soberanía del sujeto al
gran Leviatán, al gran Estado omnipresente, para que lo protegiera y le diera seguridad, en un
hermanamiento colectivo.
“La “soberanía “, que reside en el “pueblo”, en los ciudadanos, pesa mediante el voto igual a
la congregación de los representantes, al Parlamento: este poder del Estado” es quien
establece las leyes del “gobierno de leyes”, cuya obediencia es para el ciudadano obedecerse
así mismo” (Capela, 1993. 144)

Este problema, plateado por Rousseau, es que hacer cuando ese Leviatan de mil cabeza,
cuando ese a quien delegados nuestra soberanía, al despojarnos de nuestra capacidad de
defendernos, se vuelve contra nosotros, o gobierna para unos pocos. La trampa parece estar
tendida, y para buscar refrendar la dominación del ciudadano, se le reviste y se le dota de los
discursos de “derechos”, que no es otro cosa, que silenciar y atomizar, otras formas de
subjetividad política del ciudadano, por fuera de la “libertad” y “derechos” diseñada por las
estructuras de poder.
Estos derechos que supuestamente debe de garantizar el Estado, no se cumplen en una mínima
parte, pero el Estado si obliga al ciudadanos a que cumpla con sus deberes, sobre todo
aquellas que tienen que ver (por mencionarlo solo uno) con el pago de impuestos, se
esperaría entonces, que estos se revertieran en políticas sociales estatales, no en corrupción
estatal, captura del Estado y demás formas de usurpación del recaudo público.

En esta deliberación, se entenderá por ciudadanos domesticados, aquellos sujetos, que desde
la racionalidad de la modernidad, se le otorgó una gama de derechos, por parte de los Estados
modernos, pero tales derechos fueron instrumentalizados por unos dispositivos
fundamentados en discursos de derechos y libertades, predeterminados por las estructuras de
poder y control, y el ciudadano creyó que tales libertades y derechos, tenían un referente para
su cumplimiento al Estado, despojándose de su participación en la vida pública o creyendo
que las dispositivos legales y políticos, eran el manto que protegía su condición de
ciudadanos, esto por creer en ese gran hermano o la comodidad de la esfera privada.

De esta manera, podemos complementar las formas de domesticación del ciudadano, haciendo
alusión de manera general a las siguientes características:

 El poder “económico” empresarial es absoluto en los centros de trabajo (donde no hay


“derecho de libertad” que valga: no hay libertad de expresión, ninguna decisión
productiva que votar, etc.): ese poder selecciona a los trabajadores, les señala las
ocupaciones y ritmos específicos sin indagar preferencias, establece sanciones y las
promociones, decide los despidos (pasada la etapa de concurrencia del capital, en la
etapa organizada (…) mediante su “poder económico” el empresariado se apropia en
exclusiva del saber científico, y cultural en general, que surge del proceso productivo
en conjunto. (Capela, 1993:146)

 El relato político del capitalismo pone el supuesto de que todo poder político es
público; que el “poder privado” (irrelevante para la dogmatica política) está si acaso,
encapsulado en una esfera propia: es “poder económico”, “poder cultural” etc. Que

96
pertenecen al ámbito privado y permanecen en él. Es éste el supuesto afectado. El
poder “privado” no queda encapsulado por las urnas. (Capela, 1993: 144)

 Los medios de comunicación, que a través de sus encantos banales, van moldeando la
conducta de los sujetos sociales, a la realidad que ellos quieren imponer, y necesita
para sus propósitos de silenciar, generar o hacer de los ciudadanos consumidores de
información, sin que estos reflexionen sobre su significado y contenido.

 Los marcos normativo y dispositivos jurídicos como formas de control y dominación


social (predefinen la participación) no hay posibilidad de despliegue de la ciudadanía,
por fuera de la amarras legales establecidas por el Estado-Nación.

 Poca posibilidad de participación política, por el control y el dominio político de


partidos y grupos de económicos, enquistados en poder históricamente, (ambos
apoyados en algunas ocasiones en grupos al margen de la ley, como los paramilitares,
tal como aconteció en el País recientemente)

 La forma como está diseñado y configurado el modelo económico capitalista


neoliberal y las formas y medios de consumo, mantienen al ciudadano atomizado en la
esfera privada, resolviendo asunto de sobrevivencia material y como una nueva forma
de esclavitud moderna.

 Las promociones de ciudadanía ofertadas desde el Estado, no solo constriñen la


ciudadanía, sobre cómo y de que forma participar, sino que aquel que se aparta de
dichos directrices, es visto como terrorista, para usar la palabra favorita de los
gobiernos imperialista, y sobre la que cabalga su dominio expansionista.

 La violencia, la guerra y el conflicto en Colombia, son medios de presión, no sólo de


los grupos armados, sino de los gobiernos locales para poder controlar, subordinar y
dominar, la participación del ciudadanos a sus designios, generalmente a través del
silenciamiento por medios de las armas (masacres, desapariciones, torturas físicas y
sicológicas, entre otras.)

 La desigualdad social histórica, es otra forma de domesticación de aquellos


ciudadanos, que han estado excluidos, no solo de los derechos, sino de la
participación, creando una condición de ciudadanos de segunda y de tercera.

La ciudadanía, no es en sí misma, más que un indicio precario de libertad. La ciudadanía


universal abstracta que sólo levemente democratiza la sociedad; que no penetra, por ejemplo,
en la familia, ni el trabajo doméstico, donde la autoridad, sigue siendo preliberal pese a estar
definida en las representativas leyes etc. (Capela, 1993: 149)

Sin embargo, como veremos en el siguiente acápite, la resistencia ciudadanía buscar, filtrar
esas estructuras de poder, es lo que Franz Hinkelammert llamo “la vuelta del sujeto reprimo y
aplastado, del ser humano como sujeto de esta racionalidad, que se enfrenta a la irracionalidad
de lo racionalizado. Es esta perspectiva, la liberación llega a ser la recuperación del ser
humano como sujeto.
( Hinkelammert, 509: 2006)
97
Para esta reflexión, consideramos que la política, su ejercicio y pertinencia en la realidades
sociales contemporánea, no se da como se vienen advirtiendo en los mecanismo y formas de
participación predefinidos, esto a lo sumo, sirve para garantizar un mínimo de derechos y de
paso legitimar los dispositivos institucionales. Consideramos que la política se hace
manifiesta en el intersticio de la tensión-distensión entre la sociedad y el Estado, es decir,
donde no medie ningún mecanismo de subordinación, coerción o predisposición, permitiendo,
el libre despliegue de la ciudadanía, sin ataduras a los compromisos institucionales.
2. Ciudadanías en resistencia: una lucha política por el reconocimiento de derechos.
La disertación expuesta en el acápite anterior sobre ciudadanía, permite proponer y empezar a
indagar por otras formas de expresión de ésta, si bien tienen algunos puntos de encuentro, con
las teorías expuestas atrás, existen otras formas de escenificar la ciudadanía, que para este
caso llamaremos expresiones de resistencia ciudadanas, que se diferencian de las formas
tradicionales enmarcadas en el horizonte institucional y en los mecanismos creados para que
el ciudadano ejerza su función política, tal como se viene exponiendo.
Para fundamentar la discusión de expresiones de resistencia ciudadanas, tomamos algunos
planteamientos elaborados por Scott, Holston, Mafessoly y Randle
La resistencia ciudadana tiene matices que están en permanente renovación, según la
dinámica que imprimen los acontecimientos de cada momento, y cómo los sujetos que la
protagonizan, encuentra diferentes estrategias para romper las cadenas del silencio,
evidenciando realidades que la mayoría de las veces pasan desapercibidas por el común de la
sociedad. Son precisamente, esas estrategias lo que nos llama la atención a la hora de analizar,
las expresiones de resistencia ciudadana, son las formas de tejer poder desde lo aparentemente
invisible, sutil ó simbólico. Es decir, la manera en que los sujetos constituyen un poder que, si
bien no es reconocido por el Estado ni por amplios sectores de la sociedad, es legítimo al
interior de las comunidades en que se gesta, y es motor de fortalecimiento como sujetos
colectivos en resistencia, que reclaman y reivindicación sus derechos o incluso indicen en la
creación de otros.
Al respecto, las planteamientos de James Scott (2000: 21) resultan bastante pertinentes, ya
que se introduce en el tema a partir del marco de las relaciones de poder, en las que tanto
dominadores como dominados recrean ciertos códigos de comunicación para mantener, en
apariencia, las relaciones dadas, al tiempo que cada una de las partes va dinamizando su
estrategia de dominación y resistencia, sin que la otra lo perciba abiertamente.
El discurso de los dominados que muchas veces se produce en la sombra gris del anonimato,
produce desde la perspectiva de la resistencia ciudadana unas formas silenciosas y simbólicas
de manifestar sus desavenencias con los que ostentan el poder, exponiendo de esta forma y a
través de acciones de resistencia, unos repertorios que buscan cuestionar y confrontar el poder
de los dominadores.
El discurso oculto termina manifestándose abiertamente, aunque disfrazado.
Así pues, siguiendo esta línea de razonamiento, sugiero que interpretemos
los rumores, el chisme, los cuentos populares, las canciones, los gestos, los
chistes y el teatro como vehículos que sirven, entre otras cosas, para que los
desvalidos insinúen sus críticas al poder al tiempo que se protegen en el
anonimato o tras explicaciones inocentes de su conducta (Scott, 2000: 21-
21).
Estas formas alternas de manifestar la resistencia frente al poder, usadas por los excluidos y
dominados, son la otra cara de la ciudadanía, que está por fuera de la órbita estatal. El Estado
ha tratado de invisibilizar o neutralizar a los ciudadanos que plantean una crítica a las
98
estructuras del poder, crítica esta que incluye al mismo Estado. Estas expresiones alternas de
ciudadanía es lo que Holston denomina ciudadanías insurgentes: es la construcción de
imaginarios de los excluidos a través de su propia experiencia, aparte del Estado, donde los
ciudadanos están informados y son competentes para tomar decisiones sobre ellos mismos y
articular sus organizaciones, considerando su experiencia organizada como la base de un
ejercicio ciudadano, dentro del cual se participa y se crean instituciones sociales y leyes que
producen las condiciones de la vida urbana (Holston, 2008:248).
Para Holston, al igual que para Scott, estas formas de manifestar la resistencia ciudadana,
tienen que ver con una nueva forma no sólo de reclamar derechos sino de exigir la
incorporación de otros, y coinciden en la manera de manifestar dichos reclamos.
Se instaura entonces, lo que se conoce como una nueva pedagogía de la
ciudadanía, con la inclusión de actividades como el teatro callejero,
grupos juveniles, producciones musicales, peticiones puerta a puerta y
foros de discusión y debate; estos nuevos métodos, de participación
cívica, desarrollaron significativamente un nuevo ideario acerca de las
necesidades socioeconómicas de las clases pobres urbanas, llevándolas a
un análisis que se inscribe dentro de la lógica de los derechos humanos
(Holston, 2008: 250)
En la perspectiva teórica de Holston y Scott se evidencia, cómo la resistencia y sus
expresiones de ciudadanía no se reducen solamente a la teatralización de la política, y cómo
ésta no se restringe a los espacios públicos estatales. Además existe una dimensión y un
campo de posibilidades de acción de la resistencia por debajo de la macropolítica, que
encuentra la forma de incursionar y trastocar las esferas amplias de la macropolítica.
bajo la tutela de la sociedad, los mismos factores que producen el
entramado del régimen político, movilizan la ciudadanía insurgente.75 Las
mismas fuerzas que de manera efectivamente fragmentan y dominan las
clases rurales pobres, al mismo tiempo las incitan a demandar una vida
ciudadana real, que no se refleja únicamente en el ejercicio del voto, éstos
ciudadanos mediante el proceso de construcción de construir los espacios
residenciales, construyeron una ciudad, que además se convierte en la polis,
en su sentido ideal, con un planteamiento diferente del concepto de
ciudadanía (Holston, 2008:313).
La resistencia ciudadana, no están negadas a la posibilidad de negociar con el Estado asuntos
propios de cada grupo poblacional (políticas públicas), es decir, entre sus estrategias está
garantizar que los derechos se cumplan o, al menos, ejercer presión para el posible
cumplimiento de los mismos, dentro del marco legal y según las fuerzas que intermedian estas
negociaciones.
Por otro lado, la resistencia ciudadana se plantea como una forma de lucha, ya no de grandes
organizaciones, sino de pequeños grupos e incluso de individuos que reclaman por sus
intereses grupales, esto dentro y fuera de los escenarios de participación creados por el
Estado. En este sentido, Scott aduce que la resistencia esta en redes informales de la familia,
vecinos, amigos y la comunidad, en lugar de una comunidad formal, estas ofrecen una
estructura y una protección a la resistencia. Como se realiza en pequeños grupos,
individualmente y, si es masiva, recurre al anonimato de la cultura popular o a verdaderos
disfraces; la resistencia está bien diseñada para frustrar la vigilancia (Scott, 2000: 236).

75Es pertinente hacer la salvedad que cuando James Holton plantea su propuesta de ciudadanía insurgente, esta
en ningún momento referencia a ciudadanos armados o que utilizan formas de expresión violenta para alcanzar
sus cometidos.
99
Los espacios sociales del discurso oculto son aquellos lugares donde ya no
es necesario callarse las réplicas, reprimir la cólera, morderse la lengua y
donde, fuera de las relaciones de dominación, se puede hablar con
vehemencia, con todas las palabras. Por lo tanto, el discurso oculto
aparecerá completamente desinhibido si se cumplen dos condiciones: la
primera es que se enuncie en un espacio social apartado donde no
alcancen a llegar el control, ni la vigilancia, ni la represión de los
dominadores; la segunda, que ese ambiente social apartado esté integrado
por confidentes cercanos que compartan experiencias similares de
dominación. La primera condición es lo que permite que los subordinados
hablen simplemente con libertad; la segunda permite que tengan, en su
compartida subordinación, algo de qué hablar (Scott, 2000: 149).
Son precisamente esos espacios por fuera del control y la vigilancia de los que ostentan el
poder, en donde los dominados elaboran sus propios códigos identitarios y configuran sus
repertorios para intentar que sus acciones y expresiones de resistencia ciudadana, que
generalmente están inmersas en un contexto de violencia, lleguen a su cometido y de esta
forma, protejan no sólo sus reivindicaciones, sino su seguridad personal.
La resistencia ciudadana es la manera como los ciudadanos satisfacen individualmente o en
forma de acuerdo grupal —fragmentando sus necesidades y deseos—, sus derechos
fundamentales, sus exigencias sociales y políticas, a través de sus propios medios acordados
en el mismo momento de la acción. Incluso este tipo de ciudadanía, la mayor parte de las
ocasiones, es más eficaz para satisfacer las necesidades de una colectividad diferenciada en
relación con una ciudadanía formal u oficial (Maffesoli, 2005: 27).
Por tanto, el punto neurálgico de la resistencia ciudadana en contextos de violencia
prolongada, conflicto y guerra, como en Colombia, es plantear expresiones de ciudadanía que
están incluso por fuera de las reconocidas por el Estado. Estas tienen que ver con una lucha
que trasciende las fronteras normativas e institucionales del Estado y ponen sus
reivindicaciones en contextos internacionales para la protección de sus vidas y sus derechos.
La resistencia ciudadanas, no se restringida a los modelos de la ciudadanía republicana y ni
liberal referenciadas anteriormente. No está atomizada ni circunscrita a las fronteras
territoriales e imaginadas de la Nación, donde las expresiones de ciudadanía tendrían sus
acciones en la construcción institucional creada para ello, en la que cualquier tipo de
expresión diferencial al marco legal sería un atentado contra ese orden establecido de
participación y reconocimiento restringido de derechos; o, lo que podría ser más nocivo, en la
que estos derechos de ciudadanía estuvieran entrampados en la maraña institucional,
oficialmente estipulados, pero no en la práctica.
En esta dirección, Maffesoli (2005: 30) plantea que la ciudadanía ya no puede continuar
funcionando bajo la ideología del Estado-nación, pues hay que tomar en cuenta este
policulturalismo étnico y, desde ese punto de vista, América Latina es un laboratorio de
observación para el mundo occidental intelectual en Europa. Aunque esta zona del continente
fue heredera de la llamada ciudadanía moderna, los modos de funcionamiento políticos
cotidianos ya no funcionan bajo este registro.
La resistencia ciudadana no solo transciende lo espacial del Estado-nación, sino que incorpora
dentro de sus formas de expresión, lucha y organización, diversas acciones como las
manifestaciones artísticas, que usan para mostrar desde lo performático, la música, el teatro,
entre otras, el flagelo en el que están inmersos por culpa de los actores armados y por falta de
garantías de seguridad por parte del Estado. Una manera simbólica, ritualizada, de
organización y denuncia pretenden hacer escuchar sus problemáticas.

100
Para Michael Randle (1998: 25) la resistencia civil es un método de lucha política colectiva y
un elemento de construcción de ciudadanía política que moviliza a la población civil
retirándole consenso a un poder establecido, para socavar sus fuentes de poder.
En el marco de estas realidades surgen propuestas alternas que reivindican, desde las
manifestaciones colectivas e individuales, otras maneras de hacer la política. Es decir, los
contornos de la política no solo están referenciados a los dispositivos que brinda el Estado,
sino que están dados en las expresiones de ciudadanía que de manera natural controvierten
con el Estado; esta tensión permanente, de encuentros y desencuentros de estructuras de
poder, define los contornos de la política, y le da sentido, a la razón de ser al ciudadano
político.
3. Desplazamiento forzado en Colombia: expresiones de resistencia ciudadana por
visilibización y el reconocimiento de derechos.
Desde hace más de dos décadas, el desplazamiento forzado ha devenido como un hecho de
barbarie y tragedia humanitaria, además, es una de las problemáticas que ha despertado el
interés de varios sectores sociales, como la academia, algunos organismos internacionales, la
Iglesia, entre otros. El desplazamiento ha sido reconocido, en términos internacionales, como
una situación de migración forzada, y de ahí que sea Colombia uno de los países que más
población desplazada interna genera, con una brecha considerable en los componentes y
características que desencadenan este flagelo.
Colombia ha mantenido periodos de agudización de la violencia, pero también de relativa
calma, estos últimos son cortos y pareciera que atenúan la constante confrontación; sin
embargo, la violencia se perpetúa y en cada nuevo periodo se torna más compleja. Así, se
habla de dos periodos que han ocasionado el desplazamiento forzado: por un lado, la década
del cincuenta, en la que se sitúa la época de La Violencia, caracterizada por ser un
enfrentamiento de índole político; por otro, la década del ochenta hasta hoy, asociada al
conflicto armado y al fenómeno del narcotráfico.
En el primer periodo se evidencia la configuración de unos actores a partir de diferencias
políticas, y que se convierte —aunque es preciso vincular otros factores— en la base para la
constitución de grupos insurgentes que manifiestan su descontento con las condiciones
políticas, económicas y sociales de la época. En este periodo se inicia el éxodo de población a
las ciudades.
El segundo periodo comprende dos fenómenos desencadenados a partir de la década del
ochenta: el afianzamiento del narcotráfico y el conflicto armado entre múltiples actores, con
innumerables injerencias en la estructura política, económica y social del país. Esta situación
desencadena una segunda oleada migratoria que empieza a manifestarse en el
sobrepoblamiento y la reconfiguración de los grandes centros urbanos en función de las
dinámicas bélicas.
El desplazamiento forzado de ambos periodos tiene amplias diferencias. Son fenómenos de
naturaleza diferente y acudir al uno no significa entender el otro (Rubio, 2004); no obstante,
algunos estudios coinciden en unas características comunes: la pervivencia histórica, la
continuidad, la larga duración y la agudización que presenta en cada periodo (Naranjo, 2007).
El conflicto armado es por excelencia la principal causa para que se presenten cambios
estructurantes en las bases sociales, políticas, culturales, entre otras, y se ha convertido en la
problemática más degradante de la sociedad colombiana, puesto que ha derivado en una
perpetuación generacional, la cual es muy posible que permanezca por largos años.
El conflicto armado ha escalonado vertiginosamente hasta copar el territorio colombiano, lo
que conlleva a la configuración de dinámicas y zonas de expulsión-recepción de población
desplazada de acuerdo a las diferencias regionales; estas se denominan “geografía del
101
conflicto”, las nuevas territorialidades y la gobernabilidad alterna. Este hecho obedece a
decisiones estratégicas de las organizaciones armadas, y además a las condiciones nacionales
y regionales o públicas y privadas que ayudaron a la expansión territorial de los armados
(IEPRI, 2006).
La tendencia del conflicto armado en Colombia requiere varias lecturas que, además de
mencionar actores, escenarios y dinámicas bélicas, destaquen las interrelaciones que se
observan del fenómeno según elementos explicativos desde los cuales se comprenda el
desplazamiento forzado. Si bien el conflicto es la causa principal para desplazarse, es preciso
evitar la interpretación lineal que sugiere, pues hay que tener en cuenta varios factores que
forman parte de este amplio hecho, como las políticas internacionales y los actores
económicos.
El desplazamiento forzado está asociado, en la mayoría de las regiones, con las dinámicas
bélicas de los grupos armados, que hacen parte de las particularidades del conflicto, entre las
cuales se encuentra: la expansión vertiginosa a lo largo del territorio colombiano, la
multipolaridad de actores y las dimensiones del desplazamiento forzado. (Villa, Sánchez,
Jaramillo, 2007)

Sin embargo, a pesar de sufrir constantes violaciones a los derechos humanas, de ser
despojados de sus tierras, de ser tratados como indigentes en muchas ocasiones en los sitios
donde llegan (de competir por recursos con los “llamados pobres históricos”), de perder sus
lazos familiares y socioculturales. Estas poblaciones, deciden a pesar de la adversidad y de los
nuevos contextos de violencia, en los sitios donde están tratando de rehacer sus vidas.
Comienzan a juntarse y a desarrollar y madurar procesos de organizativos a través de
expresiones de resistencia ciudadana, para lograr ser escuchados y reclamar los derechos
vulnerados por las dinámicas bélicas del país.
En esta dirección, algunos testimonios recogidos como los veremos seguidamente, muestran
formas expresiones de resistencia, que rompen con muchas de las formas tradicionales. Esta
lucha por el reconocimiento de los derechos y por la incorporación de otros, se desarrolla en
contexto de violencia prolongada.
Teñir de colores las expresiones de resistencia o la confrontación en la calle, supone ocupar
los espacios públicos de la ciudad, mediantes riadas humanas que subsumen y engullen los
signos políticos distintos, de grupos o movimientos específicos, para acabar constituyendo la
imagen de una multiplicación de subjetividades políticas. (Expósito, 2003: 7)
La resistencia es más saber hacerla, porque no es como mucha gente cree que
resistir es enfrentar, resistir es perdurar, es durar, es sobrevivir. Yo creo que resistir
es sobrevivir pero sabiéndolo hacer, porque yo he creído siempre en la libertad de
que la acción tiene que tener un propósito (entrevista a lideresa desplazada).
La fuga o la huida, es en sí misma, una acción de resistencia frente a un enfrentamiento
bélico, que quiere de una u otra forma involucrar a la población civil en la guerra. Los actores
armados en Colombia tienen diversas maneras de involucrar a la población civil como parte
activa de la guerra: están aquellas que, a través del miedo y la coerción, obligan a muchas
personas a hacer parte de algunos grupos armados, y si no aceptan, los amenazan, en otras
casos, se da por la misma pobreza en que vive la mayoría del campesinado en Colombia, pues
los “señores de la guerra” venden esta como una posibilidad para salir de la miseria en la que
están inmersos.
Las tomas y las movilizaciones, incorporadas por la población en situación de desplazamiento
forzado, como parte de su estrategia política, tuvieron diversos propósitos, entre ellos: lograr
la ayuda humanitaria del Estado, tener visibilización y reconocimiento no solo por parte del

102
Estado, sino por la sociedad en general, en relación con los derechos que le fueron
conculcados.
Si uno no se metiera a las calles y reclamara, si uno no le hace ver al Estado
verdaderamente que la gente no está tan ciega como ellos creen, porque el Estado
pensó, ellos dijeron, estos campesinos estaban dormidos, esta gente no conoce y
esto va hacer facilito, los tiramos a la calle, los matamos y ya. Resulta que el enano
se les creció, se les volvió grande el enano, porque la gente con este desplazamiento
llegó a la ciudad, tuvo conocimiento y empezaron a tener mucho conocimiento por
lo mismo que uno ha pasado, uno lo vivió en carne propia, entonces esto no puede
seguir así, cómo vamos a dejar que sigan acabando con nuestras familias, con
nuestra gente campesina. (Entrevista a líder desplazado).
Si bien la lucha de los desplazados por sus derechos y por el reconocimiento de tal condición
fue débil organizativamente en sus inicios, un estudio de Ortega (2006) señala que entre 1995
y 2004 se identificaron 112 acciones colectivas contenciosas de personas desplazadas,
acciones que se situaron preferencialmente en Bogotá (26) y Antioquia (25), le siguen
Santander (14) y Chocó (9); en los otros departamentos se registran frecuencias menores, con
7 acciones para esa década. Los repertorios más usuales fueron las tomas institucionales (59),
las protestas públicas (16), las invasiones masivas (16), las acciones legales (12), las marchas
(6) y los bloqueos a carreteras (6). Estas expresiones públicas constituyen una evidencia más
de la capacidad de protesta específica de la población en desplazamiento forzado, a lo cual
habría que agregar aquella que se articula a procesos de protesta social más amplios y donde
es frecuente encontrar grupos de desplazados que hacen presencia activa (Ortega 2006, citado
por Osorio, 2007: 550).
Estas tomas tenían como propósito central, que la comunidad desplazada, fuera escuchada por
los organismos competentes, en las soluciones de sus problemáticas y lograr visibilización y
reconocimiento, como población que no solo ha sido desterrada de sus territorios, sino a la
cual se le ha violado varios derechos, por tanto, la idea de ser visibilizados tenía una
connotación de dignidad.
Tal como expone Osorio, la toma generó una reterritorialización del espacio físico y social
desde el cual se van improvisando diferentes manifestaciones colectivas en medio de las más
evidentes: permanecer en un lugar que no es el suyo, para demandar lo que consideran justo,
en la toma se conforma un patrimonio social a través de interacciones cotidianas. A la vez que
se teje y refuerza el referente identitario de desplazado como víctima con derechos y con
dignidad, se van estableciendo fronteras internas en medio de la heterogeneidad, como la
procedencia regional, sus experiencias de persecución por los actores armados que originaron
el desplazamiento, apenas naturales en medio de un conglomerado tan diverso (Osorio, 2007:
267).
Nuevos sujetos sociales imaginan, elaboran y difunden nuevas herramientas cognitivas, de
subversión, de comunicación, específicas de las nuevas condiciones históricas. Trabajan
diversos tipos de desobediencias que sirven también a la emergencia de nuevos sujetos
políticos. (Expósito, 2003: 9)
La visibilización y el reconocimiento tienen una importancia fundamental en las personas
desplazadas forzadamente, ya que a través de ellos logran ser reconocidas como comunidades
vulnerables, a las cuales se les ha violado una serie de derechos. Igualmente, puede verse en la
visibilización y el reconocimiento, más que una lucha individual, la lucha de un nosotros, de
un yo colectivo que reclama derechos. En esos procesos de reclamación se van construyendo
unos referentes, códigos y símbolos que identifican esta población como un colectivo, con
unos lazos que los unen, una condición de vulnerabilidad que marca el horizonte de la lucha
por los derechos y posibilita que se den apuestas desde lo que los reúne como iguales en
103
relación con la problemática que defienden y por la cual luchan, pero reconociendo que son
diversos en cuanto a referentes culturales y sociopolíticos.
Yo sigo luchando pues yo sigo resistiendo hasta lo máximo y yo les digo hagamos,
vamos al Ministerio del Interior, vámonos a pie a Bogotá y yo vea yo como estoy
de viejita y yo soy capaz de medirme a eso pero hay que visibilizar todo (entrevista
a lideresa desplazada).
Para las comunidades que sufren el flagelo del desplazamiento forzado, ser reconocidos tiene
una connotación importantísima, ya que es la forma como la sociedad en general, los medios
comunicación, los organismos de derechos humanos y la opinión pública se van enterando de
su situación, así logran reconocimiento y apoyo en su condición de despojados y a la vez se
pueden ver como iguales ante los otros, en cuanto a los derechos y a la condición de
ciudadanos.
El reconocimiento como individuo y colectivo, como un nosotros, tiene múltiples
connotaciones; además de incidir en el acceso a los derechos, pone en escena pública nacional
e internacional el valor que tiene para la población desplazada los sitios desde donde fueron
desarraigados, más allá de los derechos materiales violentados que no se subsanan con la
ayuda básica y temporal de la atención humanitaria, ellos conceden un lugar muy importante a
sus referentes culturales y sociales, a las construcciones ancestrales con los otros y a la
relación con el entorno, que ha delineado lo que son como individuos y colectivo, algo que
fue arrancado de un solo tajo, cuando fueron desterrados de sus lugares.
Nosotros hacíamos las tomas para que vieran a la gente desplazada, que la
problemática que nosotros teníamos era del Estado, que fuéramos reconocidos,
entonces ahí fue que se empezó a hacer una negociación, empezamos a negociar de
que fuéramos reconocidos como desplazados, entonces fue ahí donde empezaron a
meternos en el sistema, ahí fue donde empezamos a aparecer en el sistema en la
Red de Solidaridad. (Entrevista a lideresa desplazada).
Para las comunidades que sufren el flagelo del desplazamiento forzado, ser reconocidos tiene
una connotación importantísima, ya que es la forma como la sociedad en general, los medios
comunicación, los organismos de derechos humanos y la opinión pública se van enterando de
su situación, así logran reconocimiento y apoyo en su condición de despojados y a la vez se
pueden ver como iguales ante los otros, en cuanto a los derechos y a la condición de
ciudadanos.
Bueno, muchachos, lo que nos pasa a nosotros cuando hacemos esas tomas, esas
mingas, marchas, porque me encantan a mí las tomas, porque ahí es que nos
fortalecemos (entrevista a líder desplazado, comuna 13).
El mayor recurso disponible de esta población reposa en su capacidad para resistir
colectivamente el mayor tiempo posible. Ellos suponían avanzar en su conformación como
“comunidad política”, es decir, en su poder, tanto para sus relaciones internas como para la
gestión y discusión con instituciones del Estado y con otros grupos de potenciales aliados. Así
se definió una mínima organización, la de los voceros, una instancia más imaginada que
concreta para poder generar algunos procesos de concertación con las instancias
gubernamentales y no gubernamentales. Las resistencias familiares y de pequeñas redes que
no tenían opciones de lugar a donde ir, condujeron a una lógica de ocupación persistente sin
apostarle a un proceso organizativo explícito, haciendo gala de la “potencia” en un acuerdo de
lucha común para no salir (Osorio, 2007: 266).
La forma de expresión de resistencia ciudadana, por los derechos no solo se queda en lo
organizativo, para demandar del Estado los compromisos que le corresponden en el marco de
la política pública, sino que lo organizativo también se ha dado en escenario micro, entre
104
familias, cuadras, barrios, grupos étnicos, etc., es decir, la condición de vulnerabilidad y las
acciones de resistencia, que la seguían se movían en varios frentes, por medio de la
solidaridad, encontrarse y verse como iguales, como aquellos a quienes no solo se han violado
sus derechos, al ser desterrados, sino que aún siguen perseguidos por el estigma de ser
desplazados.
La unidad es el éxito de todo porque sea política, sea social, mientras uno trabaje
individualmente no hay nada, mientras haya el apoyo de todo, el apoyo de las
masas, de los intelectuales, la resistencia, el éxito es la unidad (entrevista a líder
desplazado, comuna 3).
Elevar las denuncias ante los organismos internaciones ha permitido que sus problemáticas
estén en el escenario internacional y que su lucha por la ciudadanía política no esté restringida
y delimitada al marco espacial del Estado-nación y a las condiciones jurídico-políticas que se
le imponen como ciudadanos. Se estaría de este modo ante expresiones de ciudadanía en
resistencia, que transcienden las fronteras de lo nacional, y ante una forma de manifestación
de ciudadanía más allá de las tradicionales.
La ciudadanía debe ser desterritorializada (menos nacional y más igualitaria), de tal manera
que la diáspora jurídica de millones de personas desplazadas pueda llegar a su fin. La
ciudadanía debe ser “descanonizada” (menos sagrada y más democrática), de manera tal que
el pasaporte y la visa dejen de ser un fetiche jurídico de acuerdo con el cual la vida cambie y
del cual depende la dignidad humana de muchas personas. La ciudadanía debe ser
reconstruida de manera socialista (más consecuente socialmente y menos única), para que la
doble o la triple ciudadanía pase a ser la regla y no la excepción (De Sousa Santos, 1998:
147).
nosotros estuvimos el año pasado en el Congreso de la república, en el salón
elíptico, estuvimos cuatro días rindiendo declaraciones y dando testimonios,
tuvimos gente de todos los departamentos, representantes de todos los
departamentos reunidos ahí, cuatro días ahí con nueve magistrados de nueve países,
estuvieron pidiendo esos testimonios, se fueron aterrados con los testimonios de la
gente, con las declaraciones de lo que les ocurrió y entonces se ponían a llorar y no
podían terminar lo que estaban contando, entonces ellos nos llamaron por allá
detrás del salón. Le hicieron una condena a este país tremenda. (Entrevista a líder
desplazado).
Estas expresiones de resistencia ciudadana hacen parte de la estructura de oportunidades
políticas, es decir, aprovechan los dispositivos internacionales de los derechos humanos para
lograr que sus denuncias tengan mayor impacto; este nuevo contexto permite, por
consiguiente, que aquellas reclamaciones por la infracción a los derechos humanos, que
estuvieron atrapadas en las marañas institucionales de los Estados-nacionales, lleguen a
instancias que pueden incluso sancionar a estos por la vulneración de los derechos de sus
ciudadanos, tal como se vio en el testimonio anterior.
La resistencia ciudadana, vista desde la perspectiva que viene desarrollando la población en
situación de desplazamiento forzado, no se desarrolla por grandes organizaciones, ni con el
respaldo o reconocimiento del Estado, sino que esta, como se viene advirtiendo, se despliega
en pequeñas escalas sociales, sea individual, familiar, barrial, dentro o fuera de los escenarios
locales. Es decir, estas comunidades van incorporando los diversos disfraces de la resistencia
ciudadana, que están en permanente renovación y construcción, debido a los contextos de
violencia que tienen que sortear y en los cuales está en riesgo la desarticulación de la
organización por los actores del conflicto o por el mismo Estado, o incluso por el riesgo a
perder la vida. En esta medida, a través de dichas acciones de resistencia ciudadana, buscan
burlar la vigilancia de los “señores de la guerra” y a la vez constituir formas alternas de
105
manifestar la condición de ciudadanía, no únicamente como referencia al Estado, sino sobre
todo a ellos mismos, al colectivo del cual son gestores y parte.
La pervivencia del espíritu de comunidad, a pesar de la violencia y de los procesos de
fragmentación, no está erosionada; la gente sigue respondiendo a un principio de comunidad,
de solidaridad, de sentirse miembro de un yo colectivo, de una comunidad de vecinos, que en
sí es un acto político, aunque en muchos casos los mismos desplazados no lo perciban como
tal.
Los desplazados cargan con un acumulado histórico, cultural, de vivencia del territorio de
donde proceden; es decir, en ellos no hay un corte de la memoria, lo que han sido lo traen
consigo y todo esto es reconstruido en un nuevo escenario; muchas veces esto es la fuerza que
les permite seguir perviviendo, resistiendo y desarrollando nuevas acciones de resistencia
ciudadana individual y colectiva.
Las expresiones de resistencia ciudadana utilizadas por la población en situación de
desplazamiento forzado se están renovando paulatinamente, ya que la estrategia de estos es
lograr ser escuchados, tener reconocimiento, instar al Estado para que cumpla con la política
pública y, de paso, lograr revertir la desciudanización a la que han sido sometidos por la
guerra.
Entre las estrategias de resistencia ciudadana están aquellas que se ubican en el marco jurídico
tradicional de la reclamación de derechos, es decir, las amparadas en los mecanismos de
participación legales creados por el Estado y las que se desarrollan por las vías de hecho,
como algunas de las que se han mencionado atrás. Sin embargo, hay otras que tienen que ver
con expresiones diferentes, que van incorporando a la población en situación de
desplazamiento forzado de acuerdo con las oportunidades políticas o la necesidad de
mimetizar sus acciones, ya que, como se viene diciendo, se actúa en contextos de violencia.
La resistencia civil o la resistencia que uno hace en los barrios, pues uno de pronto
habla con la gente y trata de inducirlos a estar en la lucha y no olvidar nuestros
principios, porque uno tiene como un principio y eso lo lleva a uno ahí (entrevista a
líder desplazado).
La obra (teatro) era como uno lo vivió en carne propia y sabe cómo fue el
desplazamiento de allá que llegaban los paramilitares a las fincas o el ejército
desplazaba la gente y entonces así mismo nosotros lo hicimos. Había un grupo que
llegaba a las fincas o llegaba a las casas, conseguimos unas pistolas de juego e
hicimos de palo y bueno con morral y con sus hijos. Igualmente, como fue el
desplazamiento, entonces hicimos esa obra de teatro, la masacre, ahí, mostramos
cómo fue la masacre de El Golazo (región uraba). (Entrevista lideresa desplazada)
La búsqueda de nuevas formas de denunciar y exigir el cumplimiento de los derechos
conculcados ha llevado a la población desplazada a moverse en formas ocultas, simbólicas,
que tienen que ver con el uso de códigos y maneras de escenificar el lenguaje verbal y
corporal con el que se identifican como un nosotros, y a la vez, con estas expresiones de
resistencia, neutralizan o confunden al extraño. Estas acciones que tienen que ver gestos,
rumores, chismes, cuentos, canciones, ritos etc., es lo que Scott llama la “infrapolítica”.
Sabemos que tenemos que hacer acciones de grupo, pero no podemos publicarlas
demasiado, ni saber cuándo es que las vamos a hacer, sino que nosotros mismos
sabremos el momento preciso, y en esto nos tenemos que unir no solamente la
población desplazada, sino los grupos sindicales, las universidades y los grupos
sociales, para que pueda esto tomar un renombre no territorial, sino a nivel nacional
y a nivel internacional (entrevista a líder desplazado).

106
La ciudadanía así expresada estaría más cercana a una concepción práctica y cotidiana de esta,
no tanto en los grandes discursos, sino en la circulación social, en la construcción del día a
día, en los compromisos y la lucha por las necesidades cotidianas, individuales y colectivas, y
no en las ofertas de formación ciudadana que vienen desde la institucionalidad estatal, sea por
lo poco que ha hecho el aparato estatal para que sus ciudadanos le crean, porque en muchos
países como el colombiano se ha carecido de tal oferta, o porque a través del ejercicio de
formación ciudadana, el Estado pretende silenciar y domesticar al ciudadano y de esta forma
tener el control y el dominio de sus acciones.
Entender la ciudadanía desde una perspectiva más amplia permite comprender cómo a partir
de diversas prácticas políticas se configuran estrategias de acción que legitiman o buscan
legitimar otras formas de pertenencia no necesariamente estatales (Sassen, citado por
Quiceno, 2009: 44).
En el proceso de reclamo por los derechos, las expresiones de resistencia ciudadana van
incorporando diferentes formas y estrategias de manifestar su inconformidad con la condición
de desplazados y con el incumplimiento por parte del Estado de sus obligaciones legales y
constitucionales. Una de estas formas tiene que ver con realizar manifestaciones en lugares
donde las demandas puedan ser escuchadas y donde las acciones garanticen que los medios de
comunicación, como mínimo, registren la noticia, esto da mayor contundencia a las
expresiones y busca solidaridad y apoyo en la sociedad.
Nosotros lo hacemos en puntos claves porque es donde llegan los medios de
comunicación y son los puntos prohibidos pero ahí es donde nos pueden escuchar,
nosotros nos tomamos la UAO ¿con qué propósito?, de que nos escuchen a nivel
nacional y en Bogotá, que nos escuchen cuál es la problemática de los desplazados
(entrevista a líder desplazado).
Las acciones de resistencia ciudadana tienen dos ámbitos: las institucionales y las no
institucionales. Las primeras tienen un carácter formal reconocido ante el Estado que les
confiere legitimidad. Las segundas se desarrollan por fuera de los espacios formales, públicos,
y mezclan los rumores, comentarios, empatías y antipatías, etc. Allí surgen unas redes de
alianza y confrontación que van reacomodando las relaciones de poder. (Osorio 2007: 536)
Hace falta concientizar a la gente, que es que uno no tiene por qué ponerse a pedir
limosna, porque se supone que son unos derechos que tenemos, entonces que nos
los den, que la persona sí resulte verdaderamente beneficiada y no que se
beneficien otros por culpa de uno […] yo pienso, el sistema es concientizar el
pueblo, es la concientización del pueblo en qué derechos tienen, cómo deben ellos
actuar, por qué están en situación de desplazamiento (entrevista a lideresa
desplazada, comuna 3).
La concientización tiene que ver con una recuperación, cualificación y contextualización de
las expresiones de resistencia ciudadana, que se fortalecen con los procesos que se van
desplegando en el reclamo de los derechos; esto tiene que ver con los procesos educativos y
de aprensión de formas legales, asociativas y organizativas, como una estrategia de movilizar
recursos para que el reclamo de derechos transgredidos sea pertinente y eficaz.
La concientización también se teje en el día a día, en las relaciones entre los vecinos, en la
construcción individual y colectiva frente a un proyecto comunitario; esta construcción va
gestando la unión de esfuerzos en los intercambios culturales, en la colectivización de los
problemas individuales y familiares. Todos estos procesos van cimentando el sujeto colectivo,
que vive, padece y que tiene como opción, una lucha por el reconocimiento como comunidad,
a la cual le han vulnerado sus derechos.

107
Hay un trabajo muy grande porque el primer acto de hacerlo es educar la gente y
concientizarlos que la historia de un país se puede cambiar es con acciones no de
hecho solamente, sino de una conciencia que no se venda, que no se deje comprar,
que no se deje vender; ese es uno de los pasos que hay que seguir a caminar y para
concientizar la gente, muy difícil por el hambre del país (entrevista a lideresa
desplazada).
La toma de conciencia tiene que ver con una dignidad que pretende ser deconstruida,
menoscabada, violentada, usurpada, por ello la dignidad se convierte en un bastión
fundamental que guiará la lucha de los desplazados en la defensa y reconocimiento de
derechos.
El conflicto armado en Colombia ha generado unas huellas de dolor, muerte y despojo que
difícilmente olvidarán las comunidades desplazadas, ya que la problemática sigue latente y
poco se ha hecho para resarcir a las víctimas de este flagelo. Pero a pesar de todas las
adversidades por las cuales ha tenido que pasar la población desplazada, una cosa sí parece
estar clara, y es que en la memoria individual y colectiva ha quedado incrustada la resistencia
ciudadana como una condición de lucha por los derechos que trasciende incluso el marco
normativo, y ha permitido que aquellos que vinieron del campo, únicamente con el dolor de lo
perdido, trabajen en la posibilidad de estar juntos y de construir desde lo individual y
colectivo, formas de reconocerse y ser reconocidos, como personas que fueron desarraigadas,
no solo de sus permanencias, sino de sus derechos.
Nosotros como desplazados nos preocupa llegar a perder la dignidad. ¿Por qué se
pierde? Porque como digo no tenemos otro pensamiento que conseguir el pan de
cada día y entonces me voy para el recorrido (pedir limosna) y por allá regáleme
una papita, llegan a la casa con qué tiempo tiene una madre de familia que viene
por allá bien cansada con harto calor con un costal al hombro. (Entrevista a lideresa
desplazada).
En esta dirección, la dignidad no surge de la nada, pues la gente al desplazarse lleva
simbólicamente todo en la mente, el territorio del cual fue desplazada, el referente de
pertenencia a una comunidad; por eso cuando reclama la dignidad como un componente
fundamental de la resistencia y de la ciudadanía, está reclamando el respeto a su condición de
sujeto de derechos, que le han sido negados.
La dignidad estaría, por tanto, en un terreno de orden más filosófico, como la posibilidad de
que el ser, se pueda realizar plenamente, es decir, que sus derechos sean respetados y que
dicho reconocimiento de derechos no sea solo de manera formal o material, sino como
persona que siente y padece día a día en su condición humana más profunda.
Que si yo me pongo a llorar sentada y no me muevo, ¿qué voy a hacer?, me voy a
tullir, voy a estar ahí, pobrecito el otro, a mí no me gusta que me digan pobrecita,
porque yo no soy pobrecita. […] yo pienso que uno nace con eso de la dignidad,
porque yo digo si yo me rebajo o yo tengo fe, yo creo en muchas cosas y creo que
debo luchar, eso me hace a mí fuerte, en el momento de cualquier cosa, yo siento
que debo de seguir ahí, de seguir adelante con dignidad (entrevista a lideresa
desplazada).
una de las cosas que se pretende cercenar con el desplazamiento forzado es precisamente la
dignidad, el respeto de sí mismo como persona, pues al despojar a alguien de lo material y lo
humano se pone en juego su dignidad, se deshumaniza, se coloca en una condición de
apátrida, de no estar en ningún lugar del mundo y no tener a quién reclamarle el ejercicio de
los derechos, por ello la defensa de la dignidad es tan importante para muchas de las personas
que se encuentran en la condición de desplazadas. Más que una opción política, la defensa de

108
la dignidad es una forma de no perder la batalla contra los violentos, e incluso va más allá: es
no perder la condición de sujeto libre, autónomo y pensante.
4. Consideraciones finales.
Las expresiones de resistencia ciudadana descritas en este texto son muestra de los procesos
de maduración, fortalecimiento y consolidación, en el sumario de participación y defensa de
los derechos como población vulnerada. Estas expresiones que inicialmente se movían más en
la coyuntura, en la ayuda humanitaria, en las necesidades básicas. Posteriormente la
comunidad desplazada, fue incorporando estructuras organizativas más formales para
reclamar derechos que les fueron conculcados, y fueron cualificando y potenciando sus
acciones, por medios legales o por las vías de hecho. Este aprendizaje significó la posibilidad
de pensar ya no como individuos, sino como colectividad: apostarle a un proyecto más
colectivo de comunidad desplazada.

Con la crisis del Estado-nación y en todo el proceso de crisis de la ciudadanía estatal en


general, habría que reivindicar o retomar una visión de la ciudadanía a partir de la gente
misma, ya que dicha condición debe pensar ante todo, en relación con el otro, con los otros,
no exclusivamente con el Estado. La idea de ciudadanía concebida así, rompe con la idea
Estado-céntrica de la ciudadanía.
Todo este trasegar como población desplazada ha generado que estas comunidades tengan
otra forma de ver la política y de desarrollar su condición de ciudadanía; en todo este proceso
de lucha han gestado apuestas diferentes de ciudadanía en resistencia, que no tienen como
referente único y exclusivo el reconocimiento por parte del Estado y el marco legal y jurídico
que este impone. Esto es precisamente lo que creemos que se debe explorar en nuevas
investigaciones: las expresiones de ciudadanía no delineadas por el Estado, ciudadanías
forjadas en la permanente disputa por los derechos con el Estado; solo de esta manera las
expresiones ciudadanas libres de cualquier tipo de subordinación cobrarían sentido y
permitirían abrir espacios para un ejercicio de la política más abierto y menos domesticado o
silenciado por los regímenes políticos.
No podemos dejar de mencionar dos puntos muy importantes sobre la ciudadanía y la lucha
por el reconocimiento: el primero tiene que ver con que la ciudadanía se define en relación
con una comunidad de iguales, con un nosotros, con un yo colectivo; también se define con
referencia a otro diferente.
El segundo es que la clave de estas expresiones alternativas de ciudadanía es el
reconocimiento, sobre todo en un mundo contemporáneo que ya no funciona monolíticamente
sino en lo plural. La ciudadanía ya no es singular, ya se trata de ciudadanías plurales, y
pluralidad significa reconocer al otro y ser reconocido por el otro, pero para ser reconocido
por el otro y reconocer al otro, necesariamente debo construirme como yo y como un
nosotros, como actos individuales que, a la vez, tienen proyección colectiva.
De esta manera queda claro que en esta lucha por los derechos conculcados que están
desarrollando los desplazados, se anidan expresiones de ciudadanía fuera de las
convencionales, tanto en la forma de reclamarla como en la de concebirla. Sin embargo, no
podemos cerrar la discusión sobre una fundamentación teórica de una nueva ciudadanía;
queda, más bien, un debate abierto sobre estas expresiones de ciudadanía en resistencia en
contextos de violencia prolongada como la colombiana.
Probablemente con todas estas experiencias y expresiones de resistencia ciudadana, que
hemos descrito de manera global, en la población en situación de desplazamiento forzado,
podemos estar eventualmente en presencia de una forma más completa, políticamente
hablando, de concebir la ciudadanía.

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111
Violência institucional contra os movimentos sociais no Brasil

Judite Rodrigues dos Santos¹


Íris Monteiro dos Santos²

1
Mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás – UFG, Campus II, Goiânia-GO –
jud.rs@hotmail.com
2
Graduado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás – Puc-GO, Campus Universitário
I – Goiânia-Go – irismonteiro301@gmail.com

Resumo
O presente trabalho analisa a questão social no Brasil que redunda em movimentos
sociais que certamente vão defrontar a ordem social vigente, injusta, perante um Estado
precário em oferecer segurança social nos meios urbanos. É feito um apanhado da trajetória
dos movimentos sociais no Brasil que acaba por evidenciar os processos políticos brasileiros e
a relação entre Estado e sociedade na formação da cidadania. A tradicional relação elitista e
autoritária da instituição do poder na sociedade brasileira claramente se demonstra. Daí buscar
compreender a atuação dos movimentos sociais, especificamente os que se reivindicaram
marxistas nas manifestações de junho de 2013 e adotaram uma postura radicalmente oposta às
instituições políticas existentes no Brasil; eles vêm enfrentando o poder do Estado e se
colocando frente à sua reação repressiva e violenta na luta por direitos sociais no Brasil.
Trata-se de um estudo que vai abordar essa capacidade reivindicatória existente na atuação de
tais movimentos sociais, mesmo diante da condição atual que não oferece espaço de
legitimidade para divulgação e aceitação de propostas revolucionárias da estrutura da
sociedade.
Palavras-chaves: Movimentos sociais. Cidadania. Poder popular. Estado. Repressão.

Observa-se na mídia em geral uma gama de informações relativas à violência


institucional contra os movimentos sociais no Brasil em seu período democrático pós-
ditadura-militar iniciada em 1964. Acontecimentos divulgados na mídia de multidões de
manifestantes, em países da Europa, sendo rechaçadas pela polícia contribuem para uma
reflexão sobre a reação repressiva do Estado brasileiro aos movimentos sociais. São
divulgados vários movimentos ocorridos pelo Brasil que resvalam em tensos conflitos dos
manifestantes com a polícia. Nota-se a orientação do poder público em usar as instituições
legalmente constituídas e legitimadas pelo sistema democrático para reprimir esses
movimentos, com a utilização de meios violentos.
Os movimentos sociais que hoje estão ocupando as ruas no Brasil estão permeados por
vários grupos que vêm se reorganizando desde alguns anos em busca de uma sociedade
socialista ou anarquista. O fato de alguns postarem nas redes sociais mensagens (em vídeos,
imagens e textos) claramente favoráveis aos regimes políticos chinês e cubano atuais traz uma
reflexão sobre uma tendência diferente da atmosfera nublada que as intercorrências pós-queda
do Muro de Berlim impôs aos movimentos sociais marxistas. A autoridade pública,
racionalmente constituída na sociedade moderna ocidental em seu papel de monopolizar e
controlar a força para o bem comum, vem sofrendo críticas de abuso quanto ao uso dessa
força contra aqueles que manifestam suas insatisfações em plena democracia. Daí o interesse
em analisar sociologicamente o fenômeno da repressão aos movimentos sociais no Brasil,
provindos de grupos que, além de se reivindicarem marxistas ou socialistas nas
manifestações de junho de 2013, vem adotando uma postura radical oposta aos institutos
112
políticos e ideológicos existentes na sociedade brasileira, e acabaram tomando notoriedade
nos últimos anos em mobilizações que se radicalizaram em tensos conflitos contra as forças
do governo.
A existência histórico-social dos movimentos sociais na sociedade brasileira, inserida
no contexto latino-americano, é de fundamental interesse para esse trabalho, que busca
entender como os movimentos sociais nasceram e se projetaram no cenário nacional. Dois
conceitos são fundamentais para se perceber essa dinâmica: questão social e cidadania. A
forma com que o Brasil veio construindo sua cidadania tem a ver com o processo de formação
e atuação dos movimentos sociais, como esclarecem os estudos de Gohn (1995; 2008), Bem
(2006), Dagnino (2001) e Paoli (1991). Com a ajuda desses autores, podem-se elucidar os
marcos históricos das ações coletivas desde a colonização até a derrocada do socialismo na
geopolítica global.
As lutas pela autonomia na colônia e as lutas pela abolição da escravatura enunciaram
a presença tímida dos ideais iluministas no Brasil, não se podendo considerar aqui a existência
de uma base societária de ideal e formação propriamente burguesa. A conquista da
independência do Brasil não pode ser debitada das massas ou, melhor dizendo, a sua
participação existiu mas não foi decisiva, assim como a instauração da República foi resultado
de dissidência dos estamentos políticos, corroborada pela perda de legitimidade do governo
monárquico, devido à pressão pelo fim da escravidão exercida pela Inglaterra que contrariava
os estamentos que lhe davam sustentação política. (Faoro, 1997)
Com a implantação da República, a cúpula no poder controlava as situações políticas
e, ao povo, restava a cidadania emprestada aos coronéis; o Exército se encarregava de
defender as instituições públicas. O inacabado liberalismo do período não conseguia se
desenraizar do escravismo para transpor o modelo político colonialista: os “trabalhadores
eram homogeneizados como pobres genéricos, merecedores de caridade, assistência e favor,
mas jamais direitos” (PAOLI, 1991, p. 123). Porém o surgimento do movimento operário, que
veio se contrapor à situação política vigente, persistira no enfrentamento de dura repressão e
assim conseguiu ganhar espaço e formar sua identidade (PAOLI, 1991). É com a Revolução
de 30 que já se podia vislumbrar ao trabalhador a presença de alguns direitos, tanto que eles
conquistaram, ainda que de forma regulada (SANTOS, 1979), uma cidadania que lhes
conferia um papel no processo produtivo. Embora reconhecendo a forma autoritária com que
os direitos dos trabalhadores no governo getulista foram estabelecidos, constata-se que “a
sociedade brasileira criou a sua noção real de cidadania” (PAOLI, 1991, p. 124).
A ditadura militar estabelecida a partir de 1964 tomou das lutas sociais a sua
visibilidade (GOHN, 1995). Mas as forças sociais latentes promoviam, ainda que
timidamente, formas de resistência e a oportunidade política (TARROW, 1998) que surgiu
com a crise econômica que se instalou no país a partir de 1973, gerou “a uma perda de
legitimidade do regime entre amplos setores sociais” (BEM, 2006, p. 115). A partir dos anos
70, a autonomia de luta no país, com a erupção de uma série de movimentos sociais que
acompanharam o processo de redemocratização, buscava “uma cidadania que privilegiava o
fortalecimento do papel da sociedade civil na condução da vida política do país” (DAGNINO,
2001, p. 91). Nos anos 80, os movimentos sociais no Brasil, buscando a interação entre a
democracia institucional representativa e a democracia deliberativa, foram capazes de
construir novos direitos sociais, tendo em vista a crença na participação popular. Nesse
período, não vieram à tona valores novos, mas houve o resgate daqueles antigos: liberdade de
expressão, direitos humanos, cidadania e autonomia (GOHN, 1995).
Todas as conquistas puderam contar com a presença dos movimentos sociais que se
debatiam com a questão social que “está na base dos movimentos sociais da sociedade
brasileira e remete à luta em torno do acesso à riqueza socialmente produzida.” (RAICHELIS,

113
2006, p.18) Embora a atuação de movimentos sociais nunca tenha sido aceita pelas elites que
compõem o Estado, ela está presente na formação da cidadania, sendo a sua supressão uma
terrível ameaça à democracia (TARROW, 1998). As sociedades têm a tendência a conservar
as formas de domínio tradicionais (WEBER, 1979) presentes em sua formação sociocultural.
Os movimentos sociais estão na essência da contestação aos valores sociais existentes
(LÜCHMANN, 2011). De fato, em todas as conquistas da cidadania brasileira, era evidente a
presença dos movimentos sociais:
A despeito de inúmeras interpretações que atribuem as conquistas realizadas
às elites, por serem esclarecidas ou maquiavélicas, antecipando-se aos
conflitos e decretando regras de controle social por meio dos políticos, foram
as lutas dos trabalhadores, pertencentes às camadas populares ou médias da
população, que conquistaram as leis surgidas." (GOHN, 1995, p. 200)
Passada a fase de entusiasmo com a redemocratização do Brasil, notou-se grande a
responsabilidade social e política do povo brasileiro perante a Constituição de 1988 que
anunciou uma noção teleológica à democracia brasileira, vez que o que se espera alcançar
para todos é justiça social, embora ela dependa da participação popular para ser efetivada
(BARZOTTO, 2003). Juntando esse fato aos efeitos psicológicos sobre os movimentos sociais
após a queda do Muro de Berlim e a crise cubana, teve início uma tendência não
declaradamente classista, com lutas esparsas, não ideológicas, empreendidas em sua maioria
pelas classes médias. Embora a sociedade brasileira tenha também conquistado uma cidadania
ativa nos conselhos populares, comunitários e institucionais e na participação em decisões
sobre orçamentos e projetos urbanos, ficando o Estado na mediação das políticas de gestão da
cidade. (GOHN, 2008)
Com a ajuda dos movimentos sociais, o Brasil vem construindo a sua cidadania. À
cidadania tutelada dos anos 30 (SANTOS, 1979) tomou lugar hoje uma outra renascida da
teoria liberal moderna e reconstruída com a noção de direito à diferença. As alterações na
estrutura da sociedade e na ordem econômica estão geralmente trazendo inquietações
intelectuais para investigar os impactos dessas mudanças devido à atuação de tais
movimentos. Daí acresce à discussão o desenrolar das teorias da ação coletiva que
acompanharam as mudanças na estrutura político-econômica global, com o intuito de
encontrar um caminho adequado ao estudo dos movimentos sociais no contexto atual da
sociedade brasileira, especificamente quanto ao seu enfrentamento nas ruas e nos processos
judiciais.
A intensificação das relações globais e suas consequências econômico-sociais levaram
os teóricos da ação coletiva a extensos debates em torno da dificuldade em manter o modelo
clássico de interpretação dos movimentos sociais (GOHN, 2008). Os autores Gohn (2008),
Alexander (1998) e Gadea e Scherer-Warren (2005) realizam um diálogo crítico com a
construção teórica do sociólogo francês Alain Touraine sobre os movimentos sociais na
América Latina. As teorias contemporâneas dos movimentos sociais realizaram a
secularização do modelo clássico (ALEXANDER, 1998), vez que utilizam uma explicação
racional, distributiva e materialista, abandonando a teleologia revolucionária; a maior parte
dos seus adeptos faz uma abordagem cultural.
A abordagem touraineana em direitos culturais, segundo a qual os movimentos sociais
são formadores de uma nova cultura reprodutiva do pensamento coletivo, chamou à atenção
dos pesquisadores latino-americanos, já que o multiculturalismo defendido pelo autor está
voltado à existência cultural reivindicada por nações expatriadas, que ao longo da história
incendiaram guerras no mundo ocidental: “Pensamos é nas situações menos institucionais, na
formação ou no desenvolvimento daquelas ‘comunidades’ e daquelas minorias formadas na
sequência de migrações, de expulsões e exílios.” (TOURAINE, 2005, p. 168). Esse enfoque
tenta criar um modelo de explicação para questionamentos a respeito dos direitos das
114
mulheres, homossexuais, indígenas, afrodescendentes e ambientais, que está acima dos
referentes aos direitos sociais e econômicos, embora sem descartá-los. Os Sujeitos desses
direitos culturais podem articular-se entre si, mas não estão vinculados a partidos políticos,
sindicatos e estruturas estatais, e mesmo assim atuam na transformação das instituições
sociais vigentes (GOHN, 2008). Entende-se que os grupos étnicos têm direito a participar dos
benefícios da modernidade a eles imposta, sem que ela os prive da sua particularidade.
“Quanto à etnicidade, para Touraine não há democracia sem o reconhecimento da diversidade
entre as culturas e da dominação que existe entre elas. O sujeito deve combinar
instrumentalidade e identidade.” (GADEA; SCHERER-WARREN, 2005, p.44).
O esforço intelectual desse trabalho é o de apresentar uma proposta diferente do
modelo clássico que atenda às novas demandas da sociedade contemporânea. Com esse
objetivo, busca-se traduzir os movimentos sociais em geral como expressão da sociedade
civil, que é apresentada por GOHN (2008) como um dos conceitos relacionados ao tema da
democracia deliberativa: “A noção de democracia deliberativa surge nos círculos acadêmicos
e intelectuais num momento de crise das ciências sociais em relação às teorias explicativas
macroestruturais” (GOHN, 2008, p. 119). Trata-se de uma tendência a uma linha de
pensamento observada em PATEMAN (1992), que reforça a teoria clássica da democracia a
partir de evidências empíricas que visualizam a participação em escala local e assim
comprovam a sua essencialidade para a sustentação da democracia representativa:
“aprendemos a participar, participando (...) o sentimento de eficácia tem mais probabilidades
de se desenvolver em um ambiente participativo” (PATEMAN, 1992, p.139).
Voltando a refletir com Paoli (1991) sobre a possibilidade universalista dos
movimentos sociais, cabe destacar a tradição autoritária brasileira na relação entre sociedade
civil e Estado, que enfrenta grande dificuldade na formulação de uma nova noção de
cidadania de forma independente, mas vem demonstrando uma força que luta pela efetivação
de uma sociedade política autônoma. Os movimentos sociais, a autora afirma sua importância
política para o país, vez que eles foram capazes de forjar mudanças na sociedade brasileira
quanto às “práticas judiciárias do Estado e as práticas de implantação das políticas sociais
dirigidas às classes populares” (PAOLI, 1991, p. 128).
Ao mesmo tempo em que se debatem com a polícia nas ruas, os integrantes dos
movimentos sociais se tornam hoje independentes em suas interpretações jurídicas; procuram
organizar assessoramento jurídico para criar uma cultura interpretativa própria das leis,
tomando por base os direitos sociais, que levam à justiça social no sentido constitucional dado
por Barzotto (2003). E para dar maior visibilidade às suas demandas, muitos desses
movimentos, auxiliados pelas novas tecnologias da informação, realizam suas mobilizações
em redes de movimentos sociais, já que “percebem cada vez mais a necessidade de se
articularem com outros grupos com a mesma identidade social ou política, a fim de ganhar
visibilidade, produzir impacto na esfera pública e obter conquistas para a cidadania”
(SCHERER-WARREN, 2006, p. 113).
Ao teorizar sobre a contemporaneidade do Sujeito das ações coletivas que vai
articular-se aos grupos para criar as situações específicas na busca de seus direitos, tem-se
uma base de conhecimentos necessária a encaminhar a análise das formas como o poder
público, representando o Estado, poderá reagir aos embates que porventura venham a ser
travados nessa luta. Segundo Weber, o Estado se define como “a political organization with
compulsory membership (Anstaltsbetrieb) when and in so far as its administrative staff
successfully claims a monopoly over the legitimate physical coercion necessary for the
implementation of its laws and decrees…” (WEBER, 2005, P. 230) Esse, o caráter específico
do Estado, ao qual se acrescentam outros traços: de um lado, comporta uma racionalização do
direito com as consequências que são a especialização do poder legislativo e judiciário, bem
como a instituição de uma força militar encarregada de proteger a segurança dos indivíduos e
115
assegurar a ordem pública. Como afirma Migdal (1994), a definição de Estado, mesmo que
largamente elaborada em diversas teorizações, geralmente recai na tipologia weberiana.
Assim com as ações coletivas mudaram o sentido e o significado de suas ações e
reações, tendo em vista o fenômeno da globalização, e por isso motivaram um longo debate
frente à sustentação das teorias clássicas, também o Estado passou a ser questionado. Nas
constantes análises sobre a redefinição do papel do Estado, percebe-se uma preocupação em
transpor a noção burocrático-industrial do Estado gerencial, mas o que se observa, em geral, é
a formulação dessa alteração em questões relativas à administração da economia. No caso da
burocracia política, enquanto o Estado existir, ele mantém, ainda que precariamente, o
monopólio da força (Castells, 1999). O que muda com as novas tecnologias da informação é o
mote que elas dão a uma série de variações na forma de reprimir os movimentos sociais.
Então, dependendo da estrutura de organização de certos movimentos sociais, poderá haver
um alto desnível entre a vigilância realizada pelo Estado e a possibilidade de alerta e
prevenção a ataques por parte deles.
Castells (1999) pondera o papel repressor do Estado moderno frente às novas
tecnologias da informação, vez que ele adquire grande capacidade de vigilância, inclusive
com a troca de informações interpaíses, porém sofre a concorrência do crime organizado que
também tem largo acesso às inovações tecnológicas. Para manter-se, o Estado precisa usar a
força, mas nem sempre consegue ser impositivo o suficiente para extinguir a ação de grupos
paralelos ao seu domínio, sob pena de perder a sua legitimidade pelo emprego ostensivo da
força. O Estado necessita e faz uso da violência, mas não tem mais o controle irrestrito sobre
suas fronteiras, sendo a interação de grupos de movimentos sociais com a prática e a
experiência com o crime organizado bastante plausível.
Numa visão antropológica oferecida por Migdal (1994), não há Estado capaz de
controlar todas as regras por ele mesmo estabelecidas, pois realiza essa tarefa por meio dos
“legitimating universes”, conceituados por Berger e Luckman (apud MIGDAL, 1994), que
surgem a partir do amálgama entre a imposição pelo Estado de sua ordem simbólica à
sociedade e o que esta consegue refazer e incutir nele em termos de renovação da cultura
política. Esse universo simbólico fornece ao Estado a moção de legitimidade para realizar o
controle sobre seus membros por meio de um conjunto de regras culturalmente aceitas.
Ao buscar conhecer, tanto quanto possível, as categorias clássicas que possam
contribuir com o estudo, esse trabalho se orienta na perspectiva de compreensão dos novos
movimentos sociais, quando eles assim podem extrair o Sujeito de que trata a teoria de
Touraine (2005). O Sujeito analisado aqui nesse estudo são os grupos que lutam contra o
Estado burguês atual, muitos buscam o socialismo, seguindo uma linha em geral marxista,
sem especificar abordagens leninista, trotskista, gramsciana, ou se declaram anarquistas.
Seguindo as análises de Coutinho (2008b) sobre as diferentes linhas de pensamento marxista,
percebe-se que nas propostas lançadas publicamente nas movimentações de rua por meio de
seus cartazes, dizeres, palavras de ordem, as diferentes correntes marxistas procuram construir
a sua ideia de poder popular e atualizar o discurso em busca do convencimento das várias
formas de luta contra o Estado burguês capitalista.
Esse trabalho aborda as ações de grupos que se reivindicam marxistas e se declaram
contra as instituições político-capitalistas existentes e vem atuando nas organizações
populares das frentes de luta. Sendo assim acabam estabelecendo atuações conjuntas com
grupos assumidamente anarquistas, quando seus objetivos se alinham nas movimentações e
protestos de rua, principalmente em sua verborragia opositora ao estado burguês-capitalista.
As frentes de organização popular procuram congregar diferentes linhas de
pensamento e ação, buscando unidade de luta em seu objetivo de combate às chamadas
estruturas capitalistas formadas na sociedade brasileira. São exemplos a Frente Independente
116
Popular (FIP), a Frente de Luta pela Moradia (FLM) e o Movimento Passe Livre (MPL).
Neste trabalho, os grupos que integram estas frentes estão sendo observados como expressão
da sociedade civel, já que fica clara a sua atuação pública reivindicatória de direitos
constitucionalmente instituídos no Brasil desde 1988, como liberdade de expressão, direito à
educação de qualidade, moradia, transporte, saúde e tantos outros direitos sociais. Sendo a sua
atuação reivindicatória uma expressão de direitos legítimos a serem efetivados, cabe
perguntar:
Por que os institutos repressores do Estado brasileiro estão se pondo tão brutalmente
contra esses movimentos sociais e, paralelamente aos institutos legais, por que a atuação
ilegal incentivada por integrantes do poder é tão ou mais fortemente repressora desses grupos?
Desde o declínio do socialismo como alternativa de modelo societário e de
organização do Estado no mundo, que o discurso em torno do marxismo de um ponto de vista
ontológico tem sido desacreditado. Carlos Nélson Coutinho tenta mostrar como os conceitos
de Estado e revolução se articularam e evoluíram na reflexão marxista. Procura avaliar o
dualismo de poderes na transição para o socialismo, escreve um ensaio para “tentar
demonstrar que democracia e socialismo não apenas não são incompatíveis, mas de como
carecem um do outro para afirmar plenamente suas potencialidades” (2008a, p. 20). O autor
explica que a condição de teorização gnosiológica a respeito da dualidade de poderes foi
formada e calcificada na Rússia Revolucionária. Assim, para Lênin, antes da formação da
ditadura do proletariado, é formada essa dualidade com a formação dos sovietes, que tornou
possível a revolução de 1917. Coutinho (2008) acredita que não se deve considerar a chamada
democracia formal como inerente ao capitalismo, embora muitos dos avanços da
democratização da sociedade moderna tenha se dado a partir das revoluções burguesas e
outros avanços sejam originados na luta das classes trabalhadoras contra o poder burguês no
contexto capitalista.
Para o materialismo histórico, contudo, não existe identidade mecânica entre
'gênese' e 'validade'. Foi o próprio Marx quem observou que a arte de
Homero não perdeu seu valor universal – e conservou até mesmo sua função
de modelo – apesar do desaparecimento da sociedade grega primitiva na qual
essa arte teve sua gênese. Embora deva ser concretizada em cada esfera do
ser social, essa observação histórica de Marx tem alcance metodológico
geral. Se isso é verdade, não está em contradição com o método marxiano
afirmar que nem objetivamente, com o desaparecimento da sociedade
burguesa onde tiveram sua gênese, nem subjetivamente, para os atores
empenhados nesse desaparecimento, perdem seu valor universal muitas das
objetivações ou formas de relacionamento social que compõem o arcabouço
institucional da chamada 'democracia burguesa' (COUTINHO 2008a, p. 21)
Pode-se dizer, de acordo com a interpretação de Coutinho (2008a) sobre a formulação
teórica de Marx e Engels, que as instituições democráticas, mesmo que estabelecidas na
vigência de um poder burguês, são conquistas provenientes da evolução material da
sociedade, já que um outro poder que emana da formação do sistema de classes está em
constante luta. Nenhuma das conquistas sociais são particulares e pertencentes a uma ou outra
classe social. “As múltiplas objetivações que formam a democracia moderna surgem como
respostas, dadas em determinado nível concreto do processo de socialização do trabalho, ao
desenvolvimento correspondente dos carecimentos de socialização da participação política”
(COUTINHO, 2008a, p. 23). Por isso a observação do autor quanto ao uso da palavra
'democratização', em lugar de democracia, conforme esclarece, Lukács prefere utilizar. Ele
atesta o valor universal da democracia e reforça a ideia de que ela não pertence ao
capitalismo, aos burgueses ou a qualquer classe que seja, mas deve-se constatar que “nas
sociedades capitalistas de hoje, a conservação e o desenvolvimento das instituições
democráticas, os quais são assegurados em grande parte, e frequentemente em oposição à
117
burguesia, pela luta organizada dos trabalhadores.” (COUTINHO, 2008a, p. 23).
Os admiradores dos escritos de Marx e Engels historicamente se viram em
dificuldades até para expor o erro teórico que confunde marxismo-leninismo e o pensamento
marxiano. “Ora considerar como válida ainda hoje a estratégia revolucionária proposta no
Manifesto é, no mínimo, prova de agudo anacronismo.” (COUTINHO, 2008a, p. 41) O autor
analisa a trajetória intelectual de Marx e Engels que revelam em estudos posteriores ao
Manifesto que os pensadores admitem a necessidade de rever conceitos e prática
anteriormente propostos. Em nota de rodapé Coutinho (2008a) expõe o fato da mudança
radical da sociedade do século XIX para o XX que cada vez possibilitava uma maior
socialização da política e cita trecho de Engels do prefácio do livro de Marx-Engels em “As
lutas de classe na França” que evidencia as alterações de formulação teórica sobre a
pauperização e as novas propostas de estratégia política.
Marx levou em conta tais alterações, sobretudo no plano econômico:
em 'O capital', cujo primeiro volume é de 1867, não comparece mais a
teoria da pauperização absoluta. Engels, em 1895, indicou
abertamente as alterações no plano político; afirmou que eram
anacrônica a tática e a estratégia proposta no 'Manifesto', e chegou a
dizer que 'todos os Estados modernos […] são produto de um contrato
[…] entre os príncipes e o povo'” (COUTINHO, 2008a, p.42).
O autor também exemplifica a consideração feita por Marx no “Manifesto de
lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores” sobre a limitação legal da jornada
de trabalho como uma conquista política de luta da classe trabalhadora. Em trecho de Marx
está registrado que “pela primeira vez, em plena luz do dia, a economia política burguesa
sucumbia ante a economia política da classe operária” (MARX, Apud COUTINHO, 2008a, p.
43)
Porém Coutinho observa que as conquistas de direitos sociais com o Welfare State
fazem parte da imposição sobre as classes subalternas no interior da sociedade capitalista. A
crise de legitimação por que passa tal sistema mostra que ele representou um elemento de
adequação temporária das reivindicações das classes trabalhadoras, selecionado e conciliado
com o sistema capitalista, e não faz parte da história da evolução das conquistas dessa classe,
de modo que “só numa democracia de massas, onde o protagonismo político passa cada vez
mais para um Estado controlado pela sociedade civil e seus atores, é possível fazer com que
uma política consequente de reformas de estrutura conduza gradualmente à superação do
capitalismo” (COUTINHO, 2008a, p. 48). Assim fica claro que socialismo e democracia
precisam caminhar juntos. “Um reformismo que tem como objetivo explícito aprofundar a
democracia e superar o capitalismo é um reformismo revolucionário (grifo do autor). Nas
sociedades onde o Estado se 'ampliou', como é o caso do Brasil, esse reformismo radical é o
novo nome de revolução” (COUTINHO, 2008a, p. 48). Porém muitos grupos de movimentos
sociais vêm acusando o Estado brasileiro de limitação, aos moldes do Regime Militar, às
possibilidades de reivindicação das massas, como se vê em trecho do Manifesto do I Encontro
da organização Frente Independente Popular (FIP-RJ), ocorrido em dezembro de 2013 e
janeiro de 2014:
Ante os protestos populares crescentes a única resposta apresentada pelo
Estado reacionário brasileiro tem sido o aumento implacável da repressão. A
50 anos do terror do golpe militar, as manifestações continuam a ser tratadas
como questão de “segurança nacional”. A Lei de Exceção da FIFA (“Lei
Geral da Copa”) e a legislação antiterrorismo instalaram um estado de
exceção que lembra os duros anos da ditadura militar. (Manifesto da FIP-RJ)

118
Segundo Coutinho define democracia, “a presença efetiva das condições sociais e
institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na formação do
governo e, em consequência, no controle da vida social” (2008a, p. 50), há algo a considerar
sobre a dita ampliação do Estado brasileiro. Essa ampliação é mais clara no campo político,
da passagem da ditadura para um Estado fundado em uma Constituição democrática. À época
em que o artigo foi escrito, 1998, a Constituição da República reestabelecia uma confiança
nas instituições do país. Como afirma o autor: “A democracia pode ser sumariamente definida
como a mais exitosa tentativa até hoje inventada de superar a alienação na esfera
política.”(COUTINHO, 2008a, p. 50). E a democracia que florescia no Brasil trazia uma
gama de possibilidades políticas, assim como vinha sendo novidade a proposta do Partido dos
Trabalhadores (PT) de realizar eleições, tendo como apoio as suas bases, sem ajuda dos
grandes grupos econômicos. E outra novidade era a proposta de Orçamento Participativo
lançada pelas prefeituras eleitas por este partido, que inclusive foi copiada por várias cidades
em outros países. A posterior publicação na mídia anos mais tarde de notícias relacionadas à
participação de vários líderes do partido em esquemas de corrupção, incluindo envolvimento
de empresas em “Caixa 2” revelou a presença do poder econômico influindo até em
campanhas de partidos considerados populares. Em entrevista à revista Caros Amigos,
Coutinho expressa sua decepção com Lula e o PT. Explica a situação atual da esquerda no
mundo todo como uma minoria muito pouco ouvida. Assim o partido que ajudou a fundar
com a cisão do PT, o PSOL, ficou na mesma situação do partido de Gramsci na Itália76. Assim
é questionável a noção de que o Estado brasileiro tenha se ampliado em certo contexto, sem
considerar a extensão dessa ampliação.
A própria noção que Coutinho (2008a) apresenta de cidadania oferece uma
compreensão de como ainda é restrita essa ampliação do Estado brasileiro. Como explica o
autor, a cidadania representa a possibilidade que o contexto histórico oferece de os cidadãos
se apossarem dos bens socialmente construídos. Significa que cada época estabelece as
condições para que uns se apossem dos bens da sociedade. Quanto mais se alargar o campo de
conquistas dos membros da sociedade para se apossarem desses bens, maior será a
abrangência da democracia conquistada. Esse campo de abrangência representa o processo
pelo qual a democratização se encontra. “A cidadania não é dada aos indivíduos de uma vez
para sempre, não é algo que vem de cima para baixo, mas é resultado de uma luta permanente,
travada quase sempre a partir de baixo, das classes subalternas, implicando assim um processo
histórico de longa duração.” (COUTINHO, 2008a, p. 51). Até mesmo porque a noção de
cidadania surgiu muito antes dos tempos modernos. Como explica Coutinho (2008b), na
Grécia antiga ela abrangia apenas os direitos de participação no governo. Não incluía os
direitos civis, construídos no processo de revolução burguesa e nem os direitos sociais,
construídos pela legitimação da crítica marxista ao sistema e aos ideais burgueses. Hoje trata-
se de ressaltar os direitos culturais, construídos pela inserção das reivindicações dos grupos de
culturas de origem não ocidental pelos seus direitos, prejudicados pela ocidentalização da
Modernidade (SCHERER-WARREN, 2011). Direitos estes que não se alinham a conceitos de
origem liberal ou socialista. Nessa ordem cronológica dos direitos conquistados pela
cidadania no mundo moderno, citada por Coutinho (2008a), feita por T. H. Marshall, vem
primeiro os civis, depois os políticos e por último os sociais. Nela não se incluem os direitos
culturais, só para se ter uma noção de quão lento é o processo de construção social de valores
humanos para a formação da cidadania.
O objetivo intelectual traçado por Coutinho de “não apenas identificar alguns traços
dessa crise, mas também registrar os indícios que apontam para uma reconstrução da

76
Trecho de entrevista concedida à revista Caros Amigos disponível em
http://www.piratininga.org.br/novapagina/leitura.asp?id_noticia=5580&topico=Entrevistas
Acessado em 22/08/14

119
estratégia socialista” (2008a, p. 72) coaduna-se com os objetivos práticos de enfrentamento
propostos pelos movimentos sociais aqui estudados que tentam criar legitimidade para ação
em torno da luta por direitos sociais. Carlos Nelson Coutinho em sua trajetória intelectual e
política acompanhou transformações significativas que ocorreram no contexto geopolítico
mundial. Não o abandonou a disposição em mostrar em seus estudos o outro lado de Marx
ofuscado pelo ideal bolchevique e emudecido devido à derrocada do socialismo no mundo.
Procurou esclarecer a diferença entre o restrito marxismo-leninismo e a amplitude da teoria
marxiana em si, em função da qual se estende a crítica contundente de Rosa e Gramsci ao
modelo soviético. Ele apresenta a lucidez desses dois socialistas em perceber os erros
relacionados ao distanciamento da democracia a que o regime se submeteu: “Rosa constata e
lamenta que graves limitações à democracia, impostas em grande parte pela situação
específica da Rússia, tenham sido transformadas pelos bolcheviques em princípios
permanentes de qualquer revolução proletária.” (COUTINHO, 2008a, p. 74).
Ele visualiza a revolução passiva apontada por Gramsci (2012) que promove a
ampliação do Estado capitalista nos escritos de Marx que pode deixar de se reduzir a uma
“máquina burocrático-militar” (aspas do autor p. 35) – daí a possibilidade de se alcançar o
socialismo até mesmo por via pacífica. No que Coutinho registra em uma nota de rodapé
informação que Marx admitiu essa possibilidade num discurso em Amsterdã no dia 8 de
setembro de 1873. Assim Coutinho (2008) prossegue em sua análise marxiana em A guerra
civil na França quando Marx afirma que a forma estatal assumida na Comuna de Paris é “a
forma política afinal descoberta para levar a cabo a emancipação econômica do trabalho”
(apud COUTINHO, 2008b, pág. 35). Assim, é questionável a generalização que Lênin e os
bolcheviques fizeram da experiência da Revolução Russa de 1917, afirmando serem suas
características universais para uma transição ao socialismo:
Um dos pontos que tanto Rosa quanto Max Adler indicam como exemplo da
não-universalidade da experiência bolchevique é o modo de conceber a
relação entre democracia conselhista (ou soviética) e democracia
representativa (ou formal); não se trataria de “destruir” as antigas
instituições da democracia formal, como pretendia Lênin em seu combate ao
parlamentarismo, mas de articulá-las com as novas formas de democracia
direta encarnada na experiência dos conselhos ou sovietes” (2008b, p. 43-4).
Seguindo os estudos de Coutinho (2008a; 2008b), notam-se duas correntes possíveis
de pensamento de acordo com a situação transitória no processo de revolução socialista: ou se
caminha para a ditadura do proletariado ou se encaminha numa evolução própria do
capitalismo, que aproveita as estruturas democráticas existentes. Nesse último caso, a própria
luta dos sindicatos, as lutas urbanas em suas conquistas sociais dia a dia, em seu
apoderamento das leis de Estado, e as mudanças na estrutura do poder são apresentadas como
mudanças da ordem social capitalista: “Parece-me importante que essa socialização da
política – ou seja, essa expansão da democracia, que resulta, como vimos, das lutas das
classes trabalhadoras – é potencialmente oposta ao capitalismo.” (Coutinho, 2008b, p. 78).
Rosa entendeu essa ditadura como uma necessidade prática concreta da situação
histórica dada. Diz no seu livro A revolução russa:
É um fato absolutamente incontestável que sem liberdade ilimitada de
imprensa, sem completa liberdade de reunião e de associação, é
inconcebível a dominação das grandes massas […] Liberdade somente
para os partidários do governo, para os membros de um partido, por
numerosos que sejam, não é liberdade (Apud COUTINHO, 2008b,
p.86).

120
Coutinho (2008a) analisa a trajetória de Rosa e Lênin; entende que Rosa fez uma
crítica muito dura aos processos revolucionários na Rússia, mas foi assassinada antes de
conhecer o esforço de Lênin em rever as suas teorizações do processo revolucionário russo
como universalizantes de uma transição ao socialismo: Lênin dizia que na Rússia foi de certa
forma fácil conquistar o poder, mas construir o socialismo algo difícil. Já no Ocidente seria o
oposto.
Essas indicações ainda que sumárias de Lênin iriam se tornar uma teoria
sistemática em Antonio Gramsci: as reflexões do grande pensador italiano
me parecem as mais adequadas para pensar a transição ao socialismo em
países desenvolvidos, ou, mais precisamente, em países com um elevado
grau de socialização da política. (COUTINHO, 2008b, p.87)
Ao contrário de Coutinho (2008a; 2008b) que busca nos escritos de Marx e Engels
algo que possa adaptar o pensamento a um caminho social-democrata, há autores que, ao se
oporem aos rumos levados pela revolução socialista russa, se empenham em mostrar erro
nessa concepção. Nildo Viana (2007) procura apresentar as razões dos autores que
vivenciaram o processo revolucionário russo e se posicionaram criticamente à formação de
uma elite burocrática e privilegiada no centro de poder do Estado socialista após a Revolução
de 1917. Um aspecto instigante que Viana (2007) aponta é a crítica que muitos fizeram à
formação de uma intelligentsia dentro do partido que, inclusive, deu origem a uma nova
classe social: a burocracia. Assim, dentro desse mesmo aspecto crítico constrói-se a ideia de
que o bolchevismo formou um capitalismo de Estado. “Lênin e o Partido Bolchevique
privaram os trabalhadores russos da conquista fundamental – a organização da produção pela
classe operária”. A solução para a reconquista revolucionária seria dada pelo
“reestabelecimento da democracia proletária” (VIANA, 2007, p. 146) e redirecionamento da
política externa:
A política externa deveria mudar de direção e a Internacional Comunista
deveria abandonar sua política de frente única. Seria necessário romper
como as ideias de reformas parciais, como a aliança a socialistas moderados
e como a busca de ganhos econômicos limitados. Era preciso ir direto ao
combate ao capitalismo, para não enfraquecer a esperança e o ânimo do
proletariado. A revolução social nos países avançados deveria ocorrer
imediatamente, não num futuro distante, e esta deveria a política da
Internacional Comunista. (VIANA, 2007, p. 146)

Porém, como mostra Viana (2007), à medida que crescia a repressão aos dissidentes,
também era considerável a cisão entre os pontos de vista revolucionários:
A repressão se tornava cada vez mais forte, já antes da morte de Lênin.
Miasnikov faria protestos na prisão, greve de fome, críticas e comparações
entre as ações bolchevistas e fascistas, até, em 1928, conseguir finalmente
fugir. Mais tarde, na Europa, encontraria Trotsky, já exilado e em nítida
oposição a Stalin. Apesar de algumas concordâncias entre ambos não
entraram em acordo, pois, para Miasnikov, a ideia trotskista do 'Estado
Operário com deformações burocráticas' era insustentável: o que existia na
Rússia era um capitalismo de Estado dominado por uma elite burocrática.”
(VIANA, 2007, p. 147)
Com a afirmação de uma ordem mundial econômico-política capitalista a partir dos
anos 90, os grupos de ideologia marxista, considerados radicais em sua oposição à ordem
burguesa, vêm apresentando suas propostas, como guardiães da democracia representativa, já
que o espaço de aceitação de suas propostas revolucionárias da ordem vigente é limitado ao
interior dos grupos aos quais pertencem, divulgando-as entre seus pares nas redes sociais e em
seus sítios e blogues. A organização Movimento Popular Revolucionário Estudantil (MPER),
por exemplo, se apresenta como marxista-leninista e maoísta.
121
Embora os movimentos que se manifestam atualmente estejam permeados por grupos
e organizações de diferentes ideologias (opostas ao pensamento de Marx, inclusive) que se
debatem em torno da função do Estado foi estabelecida uma coordenação geral para as
movimentações de rua em que se unem radicalizando-se contra as estruturas de poder
vigentes. A Frente Independente Popular – RJ (FIP), por exemplo, foi fundada em fevereiro de
2013, no auge das grandes manifestações de rua que tiveram sua culminância em junho do
mesmo ano. Ela “se transformou hoje em um dos principais pólos do ativismo combativo” na
cidade do Rio de Janeiro e no Brasil, como os próprios membros a definem no sítio da
organização77. É uma frente que organiza manifestações de rua. Em texto do citado Manifesto,
traça sua linha de ação, faz uma caracterização da luta e nega linha estrita de orientação para o
movimento: “Um caminho a seguir construído por centenas de ativistas das mais diferentes
orientações ideológicas e políticas.”78 Nela se reúnem vários grupos considerados radicais por
contestarem de forma incisiva a constituição burguesa do Estado. Entre as várias lutas a serem
travadas expressas no Manifesto do I Encontro da FIP-RJ, as que estão mais diretamente
relacionadas ao enfrentamento direto contra o Estado:
Contra a repressão policial dentro e fora das manifestações, contra a
CEIV (Comissão Especial de Investigação de Atos de Vandalismo em
Manifestações Públicas) e a ilegal lei das máscaras – com a “tática do
cordão”, que aplicamos em vários de nossos atos, barrando as revistas ilegais
da polícia contra os manifestantes;

Pela libertação dos presos políticos e extinção dos processos e inquéritos,


com debates nas universidades, manifestações em solidariedade aos
companheiros presos em 07/09 e 15/10, dentre outros, incluindo a
emocionante panfletagem e agitação política no Complexo Penitenciário de
Bangu;

Contra o terrorismo de Estado de ontem e de hoje e pela punição dos


torturadores do regime militar, tendo como atividade central a Manifestação
histórica de 7 de setembro de 2013, que interrompeu o desfile militar;
Contra a violência policial (UPPs etc.) e as remoções, intervindo em
Manguinhos, Horto, Aldeia Maracanã e na Favela do Metrô-Mangueira;

No Brasil, os meios de comunicação de massa que desde o início da introdução do


rádio começou o seu uso pelo poder político nos discursos diários de Getúlio Vargas para o
convencimento das massas de sua proposta populista e ao nacionalismo. Daí para frente, com
chegada da televisão ao Brasil, esses meios de comunicação de massa estiveram atrelados ao
poder político e econômico (ORTIZ, 1988). Assim, entre os interesses reunidos na FIP-RJ está
o apoio a um órgão de divulgação independente das estruturas de poder vigentes que é o
jornal “A Nova Democracia”. Esse jornal publica ideias e fatos relegados pelos meios de
comunicação de massa. A FIP- RJ é uma frente que reúne grupos que vêm se organizando há
muitos anos no Brasil e são considerados radicais em sua luta contra o Estado. Ela congrega
afiliações em Alagoas, Goiás, Pará e Pernambuco. Semelhante a essa integração de
movimentos, a Frente de Luta pela Moradia em São Paulo congrega a luta conjunta de vários
grupos motivados pelo direito à habitação buscando promover ocupações de prédios públicos
vazios e abandonados. O Movimento Passe Livre (MPL) da mesma forma reúne vários grupos

77
Organização Frente Independente Popular – RJ:http://frenteindependentepopular.noblogs.org/
Acesso em 22/08/14

78
Ver no sítio da organização organização Frente Independente Popular – RJ o “Manifesto” do I Encontro da
organização, ocorrido entre dezembro de 2013 e janeiro de 2014: http://frenteindependentepopular.noblogs.org/

122
que lutam pelo direito ao transporte urbano. Buscando essa união de valores voltados para os
direitos sociais, as greves de categorias profissionais as mais diferenciadas têm recebido apoio
de muitos desses movimentos sociais que participam dessas frentes citadas.
No sítio da organização Movimento Passe Livre (MPL), ele se define como “um
movimento social autônomo, apartidário, horizontal e independente, que luta por um
transporte público de verdade, gratuito para o conjunto da população e fora da iniciativa
privada”. O princípio básico de luta desse movimento é o de que todos têm o direito de ir e
vir. O objetivo desse movimento, se alcançado, irá de fato pôr em prática o direito de ir e vir
previsto na Constituição brasileira para todos, mas exercido hoje somente por pessoas que
possam pagar por seu deslocamento. A efetividade das conquistas a serem alcançadas depende
de reunir os diferentes grupos de variadas correntes teóricas e práticas políticas numa luta
conjunta pelo ideal comum. Entre os princípios norteadores do movimento está o de buscar
tomar decisões pelo método do consenso. Na falta deste, utiliza-se a votação. Dentro desse
princípio democrático, tornou-se expressa a aceitação de ativistas filiados a partidos políticos.
Não diferente dos demais movimentos aqui analisados, o MPL nega a possibilidade de
alcançar os seus objetivos por meio de lançamentos de candidaturas parlamentares ou apoio a
qualquer político ou candidatos.
O método proposto é o de realizar manifestações de rua. Assim como a FIP-RJ tem
receio a respeito da verdadeira independência da imprensa comercial, o Movimento Passe
Livre estabelece que ele “deve utilizar mídias alternativas para a divulgação de ações e
fomentar a criação e expansão destes meios”. E deve também usar de cautela no “contato com
a mídia corporativa”, já que essa mídia jamais deixou de lado a antiga conduta que a vincula
ora ao empresariado ora ao governo e aos políticos, desde que os meios de comunicação de
massa se instalaram no Brasil (Ortiz, 1988).
Os enfrentamentos que se debatem nas ruas contra as forças do Estado no Brasil
assumem um caráter diferenciado quando neles estão envolvidos grupos que se organizam
com o objetivo claro de combater as estruturas políticas tradicionais arraigadas na cultura
brasileira, quais sejam: clientelismos e mandonismos. A ilegalidade e a violência tornam-se
elementos comuns nesses enfrentamentos. O mandonismo enraizado na política brasileira
(CARVALHO, 1997) pode vir à tona em momentos de tensão das forças do Estado contra as
ações dos movimentos sociais. O Jornal do Brasil publica matéria em que a OAB (Ordem dos
Advogados do Brasil) se pronuncia em nota de repúdio a prisões de ativistas que considera
arbitrárias diante das quais aponta a ilegalidade nas provas para conduzir um inquérito policial
referente ao crime de formação de quadrilha.
O presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB do Estado do Rio
de Janeiro, Marcelo Chalreo, declarou à imprensa que: "As prisões têm
caráter intimidatório, sem fundamento legal, e têm nítido viés político, de
tom fascista bastante presente. O objetivo é claramente afastar as pessoas
dos atos públicos". (Jornal do Brasil, 14/07/14)

Vivemos hoje um estado de direito em que a democracia está “garantida”, mesmo se


os integrantes do poder, como é comum no Brasil, conseguem burlar a constitucionalidade das
leis, confundir a falta de justeza de suas ações perante direitos constitucionalmente instituídos,
pois se mantém a aparência de legalidade. O alcance atual dos movimentos sociais aqui
estudados tem seu limite nas questões estruturais. Não há legitimidade para convencer a
grande massa a uma revolução socialista, mas os grupos considerados radicais, marxistas ou
anarquistas, prosseguem em sua luta, tendo em vista mudar o significado e a forma de
interpretar as leis vigentes, visando a uma transformação, ainda que parcial, nas estruturas
arcaicas de poder tradicionalmente constituídas na política brasileira, tais como clientelismos
e caciquismos. Para isso, os seus integrantes se colocam dispostos a enfrentar a polícia,
123
querendo deixar que a violência contra seus corpos faça visível à sociedade os seus clamores
por direitos que, mesmo já assegurados constitucionalmente, ainda não são garantias legais.
A defesa incontestável da democracia como valor universal tal como defende
Coutinho (2008a) é um caminho seguro para manter um sistema socialista, caso ele seja
alcançado. Trotski afirma que “a dualidade de poderes é uma condição peculiar a crises
sociais, característica não exclusivamente da Revolução Russa de 1917” (apud COUTINHO,
2008b, p. 37). Na história das revoluções socialistas que o mundo já presenciou após a
formação do poder dual, tal como apontado por Trotski, e constituição de exército de
guerrilhas que derrubaram o poder burguês, o que se sabe sobre a constituição de uma
ordenação socialista cujo poder esteve de fato sob o controle dos trabalhadores foi algo
transitório e passageiro: como o fora a instauração da Comuna de Paris (MARX, 2002) e dos
sovietes na Rússia revolucionária (DANTAS, 2007). Também na Revolução Cubana, foram
formados os Conselhos de Piso de Fábrica (GUEVARA, 1980) que se desfizeram no decorrer
da composição de poder solidificada por uma elite burocrática, tendo à frente os líderes dos
partidos comunistas, cubano e soviético.
Nessas revoluções, ao derrubar a classe burguesa que estava no poder, a necessidade
transitória de formação da chamada ditadura do proletariado possibilitou a formação
permanente de estruturas de poder dominadas por uma burocracia do partido comunista ou
pela intelligentsia, formando sistemas nem de fato socialistas ou capitalistas, mas
denominadas capitalismo de Estado, socialismo de Estado etc. Praticamente, uma terceira
classe foi criada, dentro de uma concepção elitista de poder, que impediram o proletariado de
seguir como classe protagonista da implantação e manutenção da nova ordem social
alcançada. É esse o aspecto com o qual provavelmente os grupos chamados “radicais” no
Brasil atual estão preocupados quando buscam unidade, com a criação das frentes de luta, que
reúnem diferentes grupos de movimentos sociais que seguem linhas de ação e pensamento os
mais variados.
Quando se vê a tendência a mudar muitas opiniões que inicialmente eram fechadas,
como por exemplo, a carta de princípios do MPL que possui aceitação expressa de indivíduos
com filiação partidária, percebe-se a preocupação com o que a história da luta socialista
mostrou a todos. E faz coro à tese de Coutinho (2008a) de defesa incontestável da democracia
como valor universal para a manutenção de uma sociedade socialista.
De fato (e lamentavelmente para o marxismo revolucionário) quando se fala
em Revolução Russa, o que permanece estigmatizado ou como legado deste
acontecimento histórico é a ditadura genocida do partido único (Stálin e o
PCUS burocratizado) e não a luta dos sovietes pela tomada do poder.
Tampouco sobrevêm referências expressivas acerca dos primeiros anos dos
conselhos de trabalhadores da República Soviética, que, em meio a inauditas
dificuldades materiais e sociais herdadas do capitalismo, tentava conformar
um novo tipo de Estado, o Estado dos conselhos dos trabalhadores (isolado
pela derrota da revolução europeia na virada da década de 20 e
paulatinamente substituída pela ditadura burocrática com origem no próprio
movimento operário e do partido). (DANTAS, p. 287)

Os países capitalistas geralmente conseguem se recuperar das crises econômicas e


abalos sociais, conciliando as mais diversas formas de entendimento teórico e prático, como
foi o caso do Welfare State, da reestruturação produtiva e dos reformismos social-democratas
que se efetivaram no mundo capitalista contemporâneo. Os grupos e movimentos socialistas
ainda não mostraram, essa união de forças, para fazer um caminho coletivo de combate ao
inimigo comum que identificam como estruturas burguesas. Quando o governo atual do Brasil
lança a proposta de formação de um Plebiscito Popular a ser referendado por conselhos
populares, esse evento pode figurar um ato político de tentativa de arranjo do poder
124
estabelecido – junto às chamadas “leis de exceção”, como as leis contra o uso de máscaras já
em vigor em alguns estados no Brasil e em discussão para um projeto federal, e o
enquadramento dos ativistas como formadores de quadrilha – para acalmar as tensões
populares crescentes nos últimos anos. Isso poderá gerar intenso debate sobre a inclusão ou
exclusão dos movimentos mais radicais nesses conselhos nas suas táticas e estratégias de luta
ou criar uma cisão entre os movimentos em geral quanto aos que são capazes de conciliar seus
interesses com os do governo e os que de fato se opõem ao poder constituído.
Os movimentos sociais aqui analisados, ao buscarem um direcionamento teórico e
prático para as suas ações, seguem um caminho tortuoso, pois para ter força precisam reunir
nas mesmas ações combativas diferenciados grupos de diferentes correntes teóricas e práticas.
As várias interpretações dos escritos de Marx, assim como as várias formas de luta, estão em
busca de um rumo a seguir que forme unidade na luta, no qual aqueles que anseiam por
mudanças profundas no sistema capitalista brasileiro possam confiar. E o que resulta é que
paulatinamente essa confiança vem crescendo nesses movimentos, gerando enorme
preocupação por parte do poder em suas várias figurações repressoras, legais e ilegais, de
combater ferrenhamente a atuação deles.

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Preso político, microbiólogo fala da humilhações que sofreu no cárcere – Acesso em


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Preso político, professor desabafa após quatros dias encarcerado no presídio de Bangú.
http://www.youtube.com/watch?v=5gEjRJ3pAnw
Acesso em 18/11/13

Preso político, pizzaiolo é solto e diz que prisões arbitrárias darão mais força ao movimento.
http://www.youtube.com/watch?v=XYMuJ5oMI9s

RJ: Imagens exclusivas da resistência popular contra a privatização do petróleo:


http://www.youtube.com/watch?v=fK2YDR10IEg&feature=youtu.be
Acesso em 22/10/13

Professores municipais de Goiânia ocupam plenário – 3.


http://www.youtube.com/watch?v=x860ksYCJmU&feature=share
Acesso em 18/11/13

Murilo: torturado pela Polícia na Secretaria de Segurança Pública de SP.


https://www.youtube.com/watch?v=EUutmUF8zc4. Acesso em 06/09/14

A culpa também é sua#VaiTerCopa#...


https://www.youtube.com/watch?v=JMq1_82Io_M
Acesso em 06/09/14

Organização do Movimento Passe Livre.


http://www.mpl.org.br/
Acesso em 06/09/14

SP: Ato contra lei que proíbe uso de máscaras tem Praça Roosevelt sitiada
https://www.youtube.com/watch?v=KZ_jdj-zLiY&feature=youtu.be
Acesso em 06/09/14

SP: Ato contra lei que proíbe uso de máscaras tem Praça Roosevelt sitiada:
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Acesso em 06/09/14
127
Estado de exceção: Dezenas de ativistas são presos em casa no Rio de Janeiro:
https://www.youtube.com/watch?v=jo8-OjdRMo8
Acesso em 06/09/14

OAB garante que não há evidências concretas para prisão de ativistas:


http://www.jb.com.br/rio/noticias/2014/07/14/oab-garante-que-nao-ha-evidencias-concretas-
para-prisao-de-ativistas/
Acesso em 08/19/14

128
EIXO 2
Estado e Poder
Popular: Reformas e
Participação

129
“A Estruturação da Reforma Psiquiátrica Brasileira como um Movimento Social”

Raquel S. Barretto¹
¹ Mestranda em Saúde Pública – ENSP/ Fiocruz – Rio de Janeiro – RJ, psicóloga formada pela Universidade Federal
Fluminense – Niterói – RJ - psi_quel@yahoo.com.br

Resumo
Uma das conquistas no campo da saúde, que podemos destacar diante do cenário mundial é no setor da
saúde mental. Um longo período demonstra o histórico de sofrimento social e ao mesmo tempo a
inconsistência no modelo praticado. A tortura, o descaso e a precariedade reverberam diretamente na
população. No Brasil, os anos 60 são o palco de movimentos sociais, que ganham força a partir da década
de 70. Os movimentos denunciam o sistema e, a sociedade clama por mudanças diversas. No mesmo
período, a crise na Divisão Nacional de Saúde Mental, assim como os maus tratos em manicômios,
demonstram a instabilidade do setor. Nesse período, grande parte dos leitos para internação, estava nas
mãos do capital privado. Esse será o campo propício ao nascimento de movimentos populares, em prol de
serviços que dêem conta de novas possibilidades. A partir daí origina-se um dos poucos movimentos na
saúde de ordem social. Esse movimento consegue reunir grupos cada vez maiores de cidadãos, que lutam
por mudanças estruturais e, de fato o resultado é positivo, uma vez que caminham até a Lei 10.216,
reestruturando todo o modelo de assistência à saúde mental.
Palavras-chave: Reforma Psiquiátrica; Participação social; Reestruturação; Saúde; Coletivo.
1 Introdução
A saúde mental é propulsora de diversas investigações. Seu processo histórico envolve exclusão e
marginalização dos sujeitos, que se situam no campo da diferença, diferença esta criada no imaginário
social, que toma força em diferentes épocas. Assim como em determinado momento a sociedade
acompanhou o processo de enclausuramento dos denominados “portadores de desrazão”, também
denunciaram, décadas mais tarde, a situação grave na qual estas pessoas viviam. A reestruturação da
assistência à saúde mental na Europa repercutiu em outros países.
No Brasil, a precariedade no setor psiquiátrico, misturada aos baixos salários, à crise econômica, política
e social em um momento de previdencialismo e baixa cobertura do setor público trazem à tona a
saturação do modelo existente. Inicialmente, trabalhadores se unem na luta da Reforma Psiquiátrica, tal
movimento amplia a sua proporção, de modo que irá englobar gradualmente familiares, pacientes e
demais cidadãos, independente de classe social, profissão ou status. É uma luta dentro da saúde, marcada
pela organização social. Tornou-se um modelo, uma vez que o movimento social ganhou visibilidade e
resposta por parte do Estado.
O artigo foi elaborado no ano de 2014, parte de uma pesquisa qualitativa, onde durante tal período foi
realizada a leitura crítica de textos e produções, visando reunir informações bibliográficas para a sua
construção. Tem por objeto: A Reforma Psiquiátrica, como um movimento social brasileiro. O objetivo
central é a “discussão da Reforma Psiquiátrica brasileira, no contexto de luta social, como um movimento
que possibilita a reprodução em outras áreas”.
Os objetivos secundários desse trabalho são: incluir a Reforma Psiquiátrica e as mudanças pela qual
passou ao longo da história, analisar a Reforma Psiquiátrica e entendê-la sob a ótica da participação
social, questionar os rumos atuais do controle social no Brasil.

130
2. Processo histórico
A história nos auxilia dentro de um quadro teórico que diz respeito aos processos e transformações na
saúde mental. As fundamentações se iniciam com a Grécia antiga, onde as pessoas com transtornos
mentais eram consideradas “portadoras de dons ou castigos divinos” e assim, eram marcadas socialmente.
Em uma passagem de Platão no Fédro, a loucura tem exaltação como divina quando Sócrates diz:
"os maiores dentre os bens, chegam a nós por meio da loucura, que é concedida por um dom divino... de
fato, a profetisa de Delfos e a sacerdotisa de Dodona, enquanto possuídas pela loucura, proporcionaram
a Grécia muitas belas coisas, tanto para os indivíduos como para a comunidade...” (PLATÃO.
FÉDRO, 245 A)
É através do delírio ou da alucinação que alguns homens entrariam em contato direto com os Deuses ou a
loucura “maníaca” seria um castigo dos mesmos. Segue-se um modelo até o início da Idade Média, onde,
agora, existe uma nova nomenclatura social para essas pessoas: "portadores da desrazão". No contexto
das ruas, permaneciam livres, tinham autonomia sobre si e sobre seus corpos e podiam transitar nos
espaços públicos (embora, a “loucura”, sempre tenha trazidos as marcas da diferença). Geralmente os que
possuíam melhores condições econômicas residiam sozinhos ou com seus familiares e, os mais pobres ou
aqueles que não mantinham laços familiares, vagavam e perambulavam sem destino. É no final da Idade
Média, que essa visão a respeito da loucura tomará outro rumo. Nesse período, tudo aquilo que não era
passível de explicação, tornou-se passível de exclusão. Assim, a loucura e o que tornava o homem
diferente diante do contexto social era expurgado. Esses homens “diferentes” são largados nas ruas ou
trancafiados em asilos, ou leprosários, sob péssimas condições: sem comida, ventilação, iluminação.
Nesse processo histórico, sem seguir exatamente a linha do tempo, mas, enquadrando os momentos mais
importantes na “história da loucura” é que se torna possível o entendimento acerca da transição do divino
ao “anormal” ou “patológico”, sempre levando em conta o caráter social das mudanças.

2.1 Isolamento, Medicina e Psiquiatria


Entre os séculos XVII e XVIII os loucos estão isolados em Santa Casas, misturados às prostitutas,
vagabundos e infratores. Nesse momento, a questão também envolve a política de tirar das ruas o grande
número de “marginais” e, manter longe da sociedade esses homens que não trabalhavam ou geravam
renda.
Com a Idade das Luzes e o interesse médico científico, o louco agora, é denominado nas escrituras como
“doente mental” embora a terminologia ainda não seja tão usada, os médicos acreditam que pode haver
cura para esse quadro. Os “doentes mentais” são transferidos para os Hospitais. Esses hospitais ou asilos
eram semelhantes às cadeias, murados ou cercados de grades para evitar que os pacientes fugissem.
Prevalecia o modelo biomédico e, a autonomia dos pacientes cabia não aos próprios, mas, aos médicos,
assim como o poder decisório sobre o que julgavam ser o “melhor” tratamento. Mas, os “tratamentos” até
então praticados eram desumanos, com base em eletro choques, sangrias, camisa de força e há inclusive
alguns relatos sobre a lobotomia.
É Philippe Pinel quem irá de certa forma revolucionar o sistema dos alienados, com base nas idéias
emergentes na França, nos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que envolveram lutas de classes
na Europa e, indiretamente chegam ao Brasil para contribuir no cenário apresentado. Em 1847 Pinel,
descreveu pela primeira vez sobre a nova modalidade dentro da medicina: a psiquiatria. Ainda assim,
havia a internação dos loucos com delinqüentes (categorização do senso comum). Porém, os tratamentos
foram modificados: as amarras saíram de cena, se aboliu a camisa de força, as sangrias e outros
procedimentos classificados cruéis e violentos. Mas, destituir a violência praticada dentro dos asilos não
significa libertar os pacientes para o além muro. Os pacientes estavam longe do convívio familiar, da
131
possibilidade de reinserção na comunidade ou no trabalho. Somente após grandes crises mundiais, no Pós
Guerra, pensa-se na reorganização da sociedade, vários movimentos sociais se apropriam das lutas nas
ruas, em prol das mudanças estruturais, o que também contribui na reformulação de setores, como a
saúde.
Diversas medidas surgiram após Pinel, como as Comunidades Terapêuticas Inglesas, Psicoterapia
Institucional, Psiquiatria de Setor na França, a Psiquiatria Comunitária nos EUA e a Antipsiquiatria na
Inglaterra, mas, é o movimento de Desinstitucionalização com Basaglia na Itália que se torna o marco
principal. Franco Basaglia afirma sempre que os manicômios produzem segregações e são locais de
violência, portanto, na esfera social deveriam ser combatidos. Basaglia “derruba os muros” dos
Manicômios e produz um novo modelo, ao constatar que os Manicômios eram um modelo defasado.
Seriam necessárias menos internações e a estruturação de um trabalho transdisciplinar, psicológico e
social. Era necessário romper com os estigmas da própria sociedade que ainda via nos doentes
psiquiátricos a imagem de pessoas agressivas ou ociosas e, era reconhecer sim a doença mental, porém,
antes dela enxergar o cidadão que também possui a sua autonomia e os seus direitos, que também faz
parte da sociedade.

3. A Reforma Psiquiátrica Brasileira como um movimento de participação social


Embora tenha incorporado a mesma lógica biomédica, explicitada anteriormente, através da exclusão
social e hegemonia dos “tratamentos” desumanos, no Brasil, a Reforma Psiquiátrica aconteceu de modo
mais lento. Porém, o que marca (até hoje a Reforma) foi a participação social. Podemos afirmar que o
“grito” pela Reforma Psiquiátrica brasileira foi ouvido nas ruas, por grupos de profissionais, de sujeitos
com transtornos mentais, familiares, além de outros coletivos populares (mesmo que em pequenos
números), em prol da mudança no sistema vigente.
A situação dos manicômios, no final dos anos 50 era crítica:

“tinham como características a “superlotação, deficiência de pessoal, maus-tratos, condições de


hotelaria tão más ou piores quanto às dos piores presídios, a mesma situação que Teixeira Brandão3
denunciava quase 100 anos antes” (Resende, 1987: 60).

Desde a sua inauguração, em 1903, o Manicômio de Barbacena – MG foi o palco de 60 mil mortes, por
descaso, negligência e falta de preparo na aplicação de diversos tratamentos, que eram administrados aos
pacientes sem a conduta adequada. Nesses local, assim como em diversos outros manicômios, os sujeitos
eram mantidos em péssimas condições de higiene, com frio e fome. Nos anos 60, o número de pacientes
nesse hospital era de 5.000 e, contabilizava-se cerca de 15 mortos por dia.
Na mesma década, ocorriam movimentos populares no Brasil. No período seguinte ao Golpe Militar de
1964 a medicina previdenciária domina no país, os serviços de psiquiatria e outras especialidades são
limitados e, fazem parte do setor privado. A sociedade vivia então um momento previdenciário e de foco
na privatização dos setores e serviços, onde o acesso era limitado. O alto gasto com a contratação de
serviços e hospitais faz com que o país entre em crise, a partir dos anos 70. É no bojo dessa crise política,
econômica e estrutural, em um momento de Ditadura Militar, que serão travados movimentos de reação
popular, exigindo um novo modelo de saúde.
Em 1978, a crise do DINSAM (Divisão Nacional de Saúde Mental) propicia a eclosão de movimentos
diversos, formados por trabalhadores da Saúde Mental, que irão denunciar a precariedade do sistema
psiquiátrico, assim como as péssimas condições de trabalho.
132
As questões políticas estão em voga na luta e, se fazem presentes quando abordam a democratização e
anistia a presos políticos. Ao mesmo tempo o debate sobre a loucura, a violência institucional e a
segregação a que ela está submetida, ultrapassa os muros do Hospital Psiquiátrico, das universidades e
ganha domínio público, através de uma série de denúncias na imprensa (Devera 2005).
Em 1979, protagoniza-se então a Reforma Psiquiátrica pelo I Encontro de Trabalhadores da Saúde
Mental, na cidade de São Paulo, formando, a partir daí o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental
(MTSM).
O MTSM foi o primeiro movimento em saúde com participação popular, não sendo identificado com um
movimento ou entidade de saúde, mas pela luta popular no campo da saúde mental (...) (Amarante,
1995).
A repercussão desses movimentos faz com que a partir de 1983 comece a se pensar em serviços
substitutivos.
Imersos pela Reforma Sanitária Brasileira, o ano de 1986 é de extrema importância. O INAMPS, através
das diretrizes e Ações integradas propõe a redução de internações psiquiátricas e, desenvolvimento de
ações extra-hospitalares, que integrem também outros setores. Nesse mesmo ano, temos a 8ª Conferência
Nacional de Saúde, que conta com a participação de 176 delegados instituídos nos encontros estaduais e
municipais, profissionais, usuários dos serviços, aberta a participação popular, a partir dela teve origem o
lema “por uma sociedade sem manicômios”. Instituiu-se também o “Dia Nacional da Luta
Antimanicomial”. Em 1987 foi criado o primeiro Centro de Atenção Psicossocial no Brasil e, em junho
de 1987 aconteceu no Rio de Janeiro a I Conferência de Saúde Mental, a nível nacional, incluindo no
debate não só a saúde mental, mas, temas inerentes ao Estado, cidadania e economia. O texto final coloca
a necessidade dos profissionais repensarem o contexto de dominação ao qual estariam submetidos:
“O reconhecimento da função de dominação dos trabalhadores de saúde mental e a sua revisão crítica,
redefinindo o seu papel, reorientando a sua prática e configurando a sua identidade ao lado das classes
trabalhadoras (...) É mister (...) deve-se resgatar para a saúde sua concepção revolucionária, baseada na
luta pela igualdade de direitos e no exercício real da participação popular, combatendo a
psiquiatrização do social, a miséria social e institucional.” (Brasil, 1988:15)
Em 1989 na cidade de Santos, os gestores fecharam o Hospital Psiquiátrico do município, pensando na
desinstitucionalização e, implantaram o Núcleo de Atenção Psicossocial. Essa experiência repercutiu em
outros municípios e estados brasileiros. Em 1989, o projeto de Lei do Deputado Paulo Delgado,
regulamentando os direitos das pessoas, com transtornos mentais, dá entrada no Congresso Nacional (o
tempo de espera é longo, sendo aprovada apenas 12 anos mais tarde).
Em 1992, a II Conferência de Saúde Mental, contou com 1500 participantes e, agora abria espaço para os
usuários dos serviços de saúde mental, assim como seus familiares, frente ao movimento.
Os CAPS em 2000 são eleitos pelo Ministério da Saúde “dispositivos centrais para a
desinstitucionalização”.
Após longos 12 anos, a Lei 10.216, do deputado Paulo Delgado finalmente foi aprovada pelo Congresso
Nacional. Embora com ressalvas, torna-se extremamente primordial, ao dispor sobre os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionar o modelo assistencial em saúde.
Se antes, os indivíduos com transtornos mentais permaneciam isolados em manicômios e, excluídos do
convívio social, agora, a Lei preconiza a desinstitucionalização, como forma inclusiva no convívio com
familiares, na comunidade e no trabalho, inclusive a preferência para o tratamento se dá em serviços
comunitários. No seu artigo 3º, a Lei fala sobre a responsabilidade do Estado em desenvolver a política de
saúde mental, assim como a promoção de ações aos portadores e, para isso, conta com a participação da
sociedade e dos familiares.
133
4. A continuidade das participações sociais no âmbito da Saúde

4.1 Refletindo a participação social na saúde


A Reforma Psiquiátrica brasileira caminhou junto à Reforma Sanitária, mas, delimitou seus próprios
contornos. Podemos afirmar que a Reforma Psiquiátrica foi o primeiro grande movimento na saúde
brasileira, que contou com a participação popular, onde tivemos uma combinação de classes sociais e
hierarquias unidas, face ao contexto de modificação de um sistema que já não era mais possível. Médicos,
enfermeiros e profissionais atuantes, caminhavam ao lado de pacientes e grupos sociais diversos,
formados por anônimos, que no contexto da desconstrução, reorganizam movimentos. Conforme a idéia
de rede, associada a uma planta, diversas ramificações vão ligando e atingindo mais pessoas e setores,
convidando a todos para que suas vozes sejam ouvidas. Vozes essas que vem das ruas, que organizam
encontros, que se movimentam.
É extremamente difícil pensarmos o quanto foi necessária a coesão social para trazer à tona, em tempos
de Ditadura, denúncias sobre o sistema privatizado, que necessitava ser reestruturado e transformado.
Alguns leitores já haviam nascido e acompanharam esse período, outros são intimados a pensar como, no
período da Ditadura, os grupos conseguiram se unir, diante das angústias comuns, podemos ressaltar
novamente a dificuldade existente nesse cenário brasileiro, marcado pelo poder político opressor, que
intervinha em todas as manifestações de ideais e aflições demonstrativas de oposição ao que o Governo se
propunha. Mesmo com toda a resistência, o coletivo submergiu para desconstruir e propor a dinâmica da
construção e reformulação do pensamento, das idéias, das práticas, que norteavam a saúde mental (ou
ausência dela), mas, que no fundo também demonstravam por traz do setor específico da saúde mental, “o
grito” para a precarização do sistema de saúde existente. Precarização no serviço, nas condições de
trabalho, no descaso aos usuários, assim como a exclusão social, já que a época marcou um sistema
previdencialista. Inicialmente, preconizada por profissionais, e logo a união dos grupos oprimidos (seja de
sujeitos que passaram pela tortura do estigma em saúde mental) ou de “cidadãos comuns” faz com que a
situação seja então problematizada.
Movimento este que vem dos espaços públicos vai ganhando forma e se tornando unido. Tal movimento
de luta a favor da nova assistência psiquiátrica ganha voz e corpo. A união para se chegar ao pensamento
comum se dá nas Conferências, nos Encontros, nos Congressos, reunindo um número maior de
participantes. Diferente de muito outros movimentos, essa não é uma Reforma que parte de um grupo de
intelectuais, o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira se consagra por ser um movimento que
parte do micro para o macro ou, como mencionado no senso comum, “de baixo para cima”.
Ao longo dos anos, tal movimento conseguiu ser ouvido e, a própria esfera Governamental, mesmo que
diante das constantes mudanças dos Governantes, mesmo que a passos lentos, mostrou ao social que as
indagações e questionamentos acerca da “militância” na saúde mental era ouvida e tinha visibilidade,
prova disso foram as normas e Leis que vieram após os Movimentos e encontros, assim como a
implantação gradual de novos serviços e dispositivos para atendimento aos indivíduos com transtornos. A
Lei 10.216 conforme mencionada anteriormente preconiza a desinstitucionalização, assim como prevê a
importância social.
Atualmente, os CAPS, contam com eventos para atrair a comunidade: festas juninas, saraus, os próprios
usuários deste serviço adentram a sociedade com blocos de rua, através da música, da venda de
artesanatos e culinária. Existem grupos abertos, de usuários e familiares, que dão voz social para que o
processo decisório das atividades inerentes aos serviços também caibam aos cidadãos. A agregação e
134
construção de vínculos e redes sociais colaboram também na minimização causada pelo estigma da
“doença mental”.

4.2 O paradoxo da paralisação


Mas, em algum momento o paradoxo se dá no estacionamento do controle social nesse campo. No dia 18
maio os grupos são convocados a ir às ruas, na luta antimanicomial, onde os usuários, profissionais e
familiares mostram para a comunidade o que tem feito e, sugerem que “esse movimento é de todos”.
Sabemos que na saúde mental, assim como em todo o sistema de saúde, existem dificuldades diversas,
mas, a atualidade talvez necessite de uma participação mais efetiva nesse sentido. Foi a participação
popular que fez com que a Reforma Psiquiátrica de fato caminhasse para a consolidação, inclusive de
uma rede, que hoje está ligada aos demais serviços de saúde (nos diversos níveis de complexidade, com
ênfase na atenção primária). Mas, não podemos esquecer que a saúde não é estática e, em todo o
momento o sistema se atualiza, trazendo inovações para o sistema; As práticas assistenciais, assim como
os serviços de saúde oferecidos não são os mesmos de 40 anos atrás, a modernização gera novas
temáticas que precisam ser discutidas, analisadas e “re-pensadas” sob a “ótica” dos que utilizam tais
serviços.
Na Saúde Mental, um dos temas pouco explorados, que necessita de maior visibilidade consiste nos
manicômios judiciários, que apresentam condições deploráveis e alto índice de adoecimento, mas, pouco
se é falado sobre a necessidade de reestruturação, tampouco a situação atual é divulgada.
Não “é de hoje” que os grupos sociais pedem visibilidade por parte do Governo, as lutas são históricas,
tanto que a Constituição de 1988 reconhece que
“Todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição”. (Art. 1º da Constituição de 1988).
Porém, esse discurso de que o poder do povo se dá nas urnas e na hora da votação, é muito reducionista.
Sabe-se que existem representantes do povo, mas, a força do povo deveria acabar por aí? Ao passo que
elegeu seu representante? É importante viabilizar a participação e controle social em todos os momentos.
O SUS preconiza a importância do controle social, para que se possa repensar o sistema e melhorar as
condições e a acessibilidade aos serviços. Na Lei 8.142 (28 de dezembro de 1990) os Conselhos de Saúde
aparecem como espaços de participação popular, porém, observa-se, conforme debatido na Revista Radis
(edição 144), que os próprios Conselhos vêem dificuldades nessa aproximação com os cidadãos, no
controle social, o que os leva a pensar em mecanismos possíveis para integrar a participação popular.
Durante uma pesquisa, realizada pelo Ministério da Saúde, entre os anos de 2013 e 2014, perguntamos
dentro de um questionário fechado para usuários de Unidades Básicas de Saúde, em municípios
brasileiros, se “participavam de algum Conselho de Saúde, ou se existia no território algum grupo de
saúde que contava com a participação popular” e 99% dos usuários demonstraram desconhecimento total
no que seria o Conselho de Saúde, também não souberam responder acerca da existência de qualquer
mecanismo ou local de participação popular em seus municípios, o que afirma o distanciamento entre a
teoria e a prática dos Conselhos de Saúde.
As manifestações de junho de 2013 foram importantes para trazer á tona a percepção popular sobre os
setores que necessitam passar por reestruturação (e a saúde é um dos principais), tais vozes também
demandaram “maior participação popular nas políticas públicas”. Porém, novamente temos o contraponto
da “voz social” ter se calado.

135
Diferente de outros países vizinhos, não temos grupos que se reúnem frequentemente, e dão visibilidade
pública às necessidades internas, como é o caso das “Mães de Maio”, na Argentina, onde suas demandas
se dão de forma coletiva, incluindo as necessidades na saúde mental.
Se o movimento da Saúde Mental brasileira teve força e alcançou reconhecimento, necessitamos de
outros movimentos ou do acompanhamento de tais para que possamos garantir a continuidade da
democracia, uma vez que “não há democracia em nenhuma área sem a participação popular”.

5. Considerações finais
A Saúde mental sempre demonstrou a força social no seu contexto. Ao compreendermos historicamente o
processo dos sujeitos que saem do convívio social para a exclusão, há um processo social de “marcas
sociais”, onde a doença mental denota um caráter negativo. Não há como julgar um processo, que envolve
o social sem entender o contexto histórico e cultural presente.
Com séculos de exclusão, a Europa inicia diversos movimentos visando estabelecer um novo modelo
psiquiátrico. Esse movimento chega ao Brasil, na época de Ditadura, e em meio às crises sociais, políticas
e econômicas, a sociedade civil exige a reestruturação do modelo vigente. Lado a lado com a Reforma
Sanitária, a Reforma Psiquiátrica seguirá seu próprio trajeto, reunindo inicialmente profissionais que
atuavam no setor de psiquiatria, porém, demonstrando as precariedades de um sistema previdenciário
vigente, que incluía a todos os cidadãos. No “bojo” das críticas e movimentos pela Reforma Psiquiátrica,
familiares, usuários dos serviços e demais cidadãos se unirão gradualmente, na luta em prol dos direitos
dos usuários e, por serviços de saúde de qualidade na atenção e assistência psiquiátrica. Através de
passeatas, reuniões, Conferências, esses grupos continuam a lutar e “as vozes que emanam dos cidadãos”,
serão ouvidas na Reformulação do sistema.
No Brasil, a Reforma Psiquiátrica foi de fundamental importância, uma vez que no contexto da saúde
todo o movimento em prol da reestruturação foi proveniente dos cidadãos. Podemos afirmar que a
Reforma Psiquiátrica teve intensa participação social e, se configurou em um movimento de demanda
social.
A Reforma Psiquiátrica trouxe grandes conquistas, como o fechamento de muitos serviços manicomiais e
a construção de uma nova rede de assistência e atendimento em saúde mental, ao longo dos anos esses
serviços e usuários tem se organizado para demonstrar socialmente as suas atividades, assim como incluir
os demais cidadãos nos seus debates.
Vivenciamos um momento onde a participação popular não parece tão efetiva como na Ditadura, diante
da Reforma Psiquiátrica. O ano de 2013 foi palco de movimentos sociais, onde as principais demandas
foram à melhoria/ reestruturação no setor da saúde, assim como a participação popular nas políticas
públicas, mas, a sensação é de que as manifestações cessaram e, o contexto de paralisação se faz presente.
A Reforma Psiquiátrica demonstrou que grupos unidos, incluindo cidadãos, como um todo, são capazes
de promover diversas transformações. Faz-se necessário a mobilização coletiva, a discussão de idéias, os
encontros, reuniões (abertas a todos), as passeatas, enfim, toda a movimentação social em prol da
mudança. Na comemoração dos Sessenta Anos da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, em
setembro de 2014, Eduardo Fagnani debateu “A crise do capitalismo atual sobre a saúde e o SUS” e,
problematizou que o Brasil ainda é um país de desigualdades, com acesso desigual aos serviços de saúde.
Ainda que o país seja um dos poucos que conseguiu manter as conquistas a partir de 1988, uma das
grandes dificuldades ainda é cumprir o que está escrito. Em 2013 os movimentos sociais demandaram
inclusão nas decisões políticas, mas, na contramão, uma das maiores dificuldades dos Conselhos de Saúde
e outros órgãos ainda consiste na criação de meios e dispositivos que propiciem essa aproximação social.

136
Diante dos movimentos sociais e da dificuldade em articular o controle social nas decisões públicas,
permanece uma lacuna. Na Reforma Psiquiátrica, essa lacuna foi minimizada e o Estado respondeu as
solicitações do coletivo, porém, foi necessário que as lutas continuassem, ao longo de anos.
Vivemos um momento onde mais do que nunca o controle social é necessário. Os sistemas, leis e
Constituição brasileira são ricos e. englobam a participação popular, porém, é importante que os grupos
sociais se manifestem, repensem os seus direitos, e dêem visibilidade permanente às suas necessidades para
além do que se encontra nos parágrafos e artigos documentais. A Reforma Psiquiátrica é um exemplo de
que a demanda social organizada é capaz de provocar reestruturações importantes.
Se no senso comum formulamos a afirmação de que “a democracia vem do povo”, é necessário que os
cidadãos façam valer essa democracia e lutem para que as lacunas entre o diálogo com o Estado sejam
reduzidas, de modo que o discurso direto faça parte do cotidiano, principalmente nas políticas públicas,
como uma articulação democrática possível.
As lutas precisam ser constantes e contínuas, para que haja resposta. Por tempos, os pacientes com
transtornos mentais foram chamados de “os esquecidos”, por tempos deixamos o passado brasileiro
“esquecido” e, o questionamento é “se o direito democrático” também deve ser esquecido? Direito este
que, como vimos não se dá somente nas urnas, mas, todos os dias. Decerto o Neoliberalismo propaga
valores individuais, junto a Globalização, que reproduz algo semelhante aos modelos tão criticados nas
indústrias de produção: uma massificação de iguais e individualizados, que competem entre si e se isolam
em suas “zonas de conforto”, mas, cabe a nós problematizar esses modelos. Como pensadores sociais,
profissionais das mais diversas áreas, docentes, líderes de movimentos ou grupos, e, principalmente como
membros da sociedade, devemos sensibilizar o “outro”, uma vez que o incômodo se dá no individual,
assim como pode ser calado no individual.
Não basta ir às ruas apenas uma vez, durante semanas ou um mês, logicamente o ato de ir às ruas já é capaz
de deflagrar no “outro” a necessidade de um movimento, mas, esse movimento como o próprio nome já
diz, não deve cair na paralisação ou na ordem do esquecimento. Os movimentos que alcançaram
repercussão ao longo da nossa história e, conseguiram ser ouvidos, vieram do povo, “partiram de baixo”,
foram movimentos unidos, que explicitaram um objetivo comum, fruto do diálogo entre todos e, talvez a
necessidade hoje seja resgatar os movimentos de 20, 30 anos atrás, ou até mais e, assim como foi trazido
aqui, analisar os pontos fortes que os fizeram ganhar voz e corpo.

“Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons.


Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito
bons.
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda.
Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os
imprescindíveis.”

Bertold Brecht

137
6. Referência bibliográfica

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2006;
138
A Política Nacional de Participação Popular e o Controle Social:
um decreto contra a Lei

Gláucia M. Amaral¹, Sônia N. Leitão²

1
Instituto Federal do Espírito Santo - IFES, Campus Piúma, Piúma-ES – gmamaral@ifes.edu.br
2
Universidade Federal Fluminense – UFF – Niterói-RJ – sonianleitao@yahoo.com.br

Resumo
Diante dos recentes embates entre cientistas sociais, políticos, juristas, dentre outros, sobre as
implicações do Decreto nº 8.243/2014, de 23 de maio de 2014, da Presidência da República,
que instituiu a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação
Social, o artigo pretende analisar o documento à luz do conceito de controle social. Serão
apreciações baseadas em artigos teóricos, experiências no exercício do controle social no
Sistema Único de Saúde (SUS) e posições explicitadas em artigos de opinião publicadas em
jornais de grande circulação. Destacamos os pontos do decreto considerados mais relevantes,
conceituamos o controle social a que se refere o artigo, apresentamos um breve histórico das
lutas pelo controle social no SUS, a sua efetivação na Constituição Federal de 1988 e, por fim,
pontuamos os limites tanto do exercício do controle social quanto do decreto. A defesa do
decreto apoia-se na ideia de que o Estado deve garantir uma participação equânime de todos
os segmentos sociais, independentemente de seu poder econômico, político ou social. Nessa
perspectiva, o decreto não se caracterizaria como uma forma de golpe à democracia.
Entretanto, para os críticos do decreto, este representa uma tentativa de cooptação dos
movimentos sociais e da sociedade em favor das políticas governamentais.
Palavras-chave: Controle Social; Participação Social; Conselhos de Saúde.

1 Introdução
O Decreto Presidencial nº 8.243, de 23 de maio de 2014, que instituiu a Política Nacional de
Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), estabelece
um novo modelo de estruturação da participação da sociedade junto ao governo federal, em
todos os estados e municípios da federação.
Com o objetivo de “fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de
diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”, fica
nele estabelecido que sociedade civil, para efeito da PNPS e do SNPS, é “o cidadão, os
coletivos, os movimentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas redes e
suas organizações.”.
Um dos destaques do decreto é a multiplicidade de significados no uso do conceito
“sociedade civil”, que aparece vinte e quatro vezes ao longo do texto, em diferentes contextos.
É sabido o quanto esse conceito, nos diversos ramos das ciências sociais, é polissêmico e,
portanto, de difícil delimitação e fechamento.
Baseado nas reflexões de Gramsci sobre a noção de sociedade civil, Semeraro (1997) afirma
que:

139
sociedade civil é, antes de tudo, o extenso e complexo espaço público
não-estatal onde se estabelecem as iniciativas dos sujeitos modernos
que, com sua cultura, com seus valores ético-políticos e suas
dinâmicas associativas, chegam a formar as variáveis das identidades
coletivas (SEMERARO, 1997, p.3).
Está garantido na sociedade civil, portanto, a atuação de suas representações e seus aparelhos
privados de hegemonia, nos espaços de construção de consenso, numa práxis que eleva a
condição das massas pela possibilidade de exercer a direção intelectual e moral. Uma práxis
na qual a ação e o intelectual são partes constitutivas e concomitantes.
Embora outros conceitos, igualmente complexos, mereçam uma discussão mais aprofundada
tais como os de participação social - utilizado vinte e duas vezes -, movimentos sociais e
cidadania ativa, aprofundaremos o conceito de controle social, visto sua utilização no
exercício do controle sobre as políticas de saúde, a partir da qual analisaremos aspectos do
decreto.
O conceito de controle social aqui utilizado corresponde à ressignificação proposta por
Correia (2000) como “a possibilidade de a sociedade organizada intervir nas ações do Estado,
no gasto público, redefinindo-o na direção das finalidades sociais, resistindo à tendência de
servir com exclusividade à acumulação de capital” (CORREIA, 2000, p. 19). Para a autora, os
espaços de controle social tornaram-se uma arena de resolução de conflitos, de pactuação e de
desenvolvimento. Cabe ressaltar que este conceito difere do utilizado em outros campos das
ciências sociais, como a economia ou a ciência política, nos quais, grosso modo, significa a
normatividade que o Estado exerce sobre os cidadãos e suas instituições, enfim, sobre a
sociedade.
Central para o escopo do decreto, os conselhos de políticas públicas são definidos como
“instância colegiada temática permanente, instituída por ato normativo, de diálogo entre a
sociedade civil e o governo para promover a participação no processo decisório e na gestão de
políticas públicas” (Art. 2o, inciso II)79. Desse modo entendemos que os conselhos que
vigoram no Sistema Único de Saúde (SUS) estão inseridos no âmbito do decreto.
Embora seja da competência da Presidência da República, dispor, mediante decreto, sobre a
organização e o funcionamento da administração federal, quando o ato não implicar no
aumento de despesa e nem na criação ou extinção de órgãos públicos, argumentamos que o
presente decreto extrapola tal competência ao instituir um Comitê Governamental de
Participação Social – CGPS – e uma Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais –
MMDS, vide abaixo, aos quais os conselhos ficarão submetidos.
Art. 9º Fica instituído o Comitê Governamental de Participação
Social - CGPS, para assessorar a Secretaria Geral da Presidência da
República no monitoramento e na implementação da PNPS e na
coordenação do SNPS.
§ 1º O CGPS será coordenado pela Secretaria Geral da Presidência da
República, que dará o suporte técnico-administrativo para seu
funcionamento.
Em seu artigo décimo, o decreto define as diretrizes mínimas que devem ser observadas na
reorganização dos conselhos de políticas públicas, já constituídos, como é o caso do SUS:
“Ressalvado o disposto em lei, na constituição de novos conselhos de políticas públicas e na

79
Grifamos.
140
reorganização dos já constituídos devem ser observadas, no mínimo, as seguintes diretrizes:”.
80
Dentre as diretrizes mínimas, chama atenção o fato de nada constar sobre o caráter
consultivo ou deliberativo dos conselhos de políticas públicas.
No que tange a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais – conforme o artigo destacado
abaixo - chama atenção ser uma instância colegiada interministerial que tem como
responsabilidade coordenar e encaminhar reivindicações dos movimentos sociais, assim como
monitoramento de suas respostas, um dos papéis dos conselhos presentes no SUS.
Art. 19. Fica instituída a Mesa de Monitoramento das Demandas
Sociais, instância colegiada interministerial responsável pela
coordenação e encaminhamento de pautas dos movimentos sociais e
pelo monitoramento de suas respostas.
Para iluminar o debate e consolidar nossa posição frente ao decreto, faz-se necessária uma
apresentação das instâncias de participação popular já existentes na área da saúde e de sua
contribuição a um efetivo controle social.
2 A construção do controle social no SUS: um breve histórico
A construção do controle social na saúde tem uma trajetória que inicia na Conferência
Nacional de Saúde, convocada por lei federal de 1937, ocorrida em 1941. Inicialmente tinha
caráter de consultoria feita por pessoas de notório saber que auxiliavam os governos na
implementação das políticas de saúde, tanto em períodos democráticos quanto ditatoriais.
Resultante da conjuntura social e política da época, em 13 de janeiro de 1937, a Lei Federal nº
378, reformulou o Ministério da Educação e Saúde Pública, no governo Vargas.
Institucionalmente, foi criado o Conselho Nacional de Saúde (CNS), embora o mesmo tenha
sido regulamentado apenas em 08 de abril de 1954, no segundo governo Vargas, sob o
Decreto nº 34.347.
Esse conselho era composto por dezessete membros e tinha como "finalidade assistir o
ministro de Estado na determinação das bases gerais dos programas de proteção à saúde". O
presidente do CNS era o Ministro Educação e Saúde Pública e sua composição contemplou
diretores gerais dos departamentos Nacional de Saúde e Nacional da Criança, oito escolhidos,
por “notório saber na área de saúde”, indicados pelo Presidente da República ou pelo Ministro
e seis, com a mesma forma de indicação, mas entre os titulares de cargos no Ministério da
Educação e da Saúde Pública. Os conselheiros recebiam remuneração, em forma de
gratificações. (IPEA, 2002).
A partir de meados da década de 1970, acontecia importante efervescência na sociedade
brasileira motivada pela resistência ao regime de ditadura militar, que resultou no surgimento
de vários movimentos organizados em defesa dos direitos dos cidadãos. As pessoas se
reuniam nos sindicatos, nos movimentos de mulheres, nas Comunidades Eclesiais de Base
(CEB), nos novos partidos políticos, no movimento dos médicos residentes, dentre tantos
outros, na busca de resolução para os problemas que afligiam o seu dia a dia, como por
exemplo, o dramático quadro na assistência à saúde.
As conferências nacionais de saúde passaram a ter novo papel a partir dos anos 1980 ao
incorporar a população usuária dos serviços de saúde, em suas discussões (fase da
redemocratização brasileira).
O movimento da Reforma Sanitária Brasileira surgiu nesse contexto, inspirado pelos
princípios da Reforma Sanitária Italiana, que teve entre seus maiores expoentes o médico do

80
Grifamos.
141
trabalho e parlamentar do Partido Comunista D’Italia (PCI), Giovanni Berlinguer, conforme
afirma Paiva (2012) em seus escritos sobre a influência de Antonio Gramsci na construção do
movimento operário italiano de saúde no trabalhador.
No período entre 17 e 21 de março de 1986, aconteceu a VIII Conferência Nacional de Saúde
(VIII CNS) com grande representação dos segmentos organizados da sociedade - mais de
4.000 participantes - e com predominâncias das ideias emanadas do Movimento da Reforma
Sanitária. Este último conseguiu inscrever seus princípios básicos, que seriam ampliados,
mais tarde, no processo da Assembleia Nacional Constituinte.
Uma das grandes realizações da VIII Conferência foi propor que o novo CNS incorporasse
representação da área social, dos demais níveis de governo e de representações nacionais da
sociedade civil organizada. Em suas novas funções, estariam “orientar e desenvolver o
sistema de saúde, bem como avaliar seu desempenho, definir políticas, orçamentos e ações”
(IPEA, 2002, p. 50).
Em 1986 também ocorreram eleições para o Parlamento, nas quais os eleitos cumpririam a
dupla função de serem deputados federais e constituintes.
Em l988, a Constituição Federal (CF), norteada pelas discussões da VIII CNS, em seu art.
196, estabeleceu a saúde como um direito do cidadão e dever do Estado e os princípios da
universalidade, da equidade e da integralidade que a regeriam:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença
e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e
serviços para sua promoção, proteção e recuperação. (BRASIL, 1988,
art. 196).
Se no art. l97, a CF determinou que coubesse ao Poder Público dispor sobre “sua
regulamentação, fiscalização e controle devendo sua execução ser feita diretamente ou através
de terceiros, e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado”, no art. 198
estabeleceu que os serviços e as ações públicas de saúde, integrassem uma rede regionalizada
e hierarquizada, constituindo um sistema único. Esse sistema, descentralizado, com direção
única em cada esfera de governo, faria o atendimento integral e teria a participação da
comunidade na gestão do sistema. Assim, estava criado o SUS e estabelecido o controle da
sociedade sobre as ações do Estado.
Posteriormente, a Lei Orgânica da Saúde (LOS), de nº. 8.080, de l9 de setembro de 1990, veio
regulamentar as ações de saúde, o gerenciamento e a descentralização. Esta lei dispõe sobre as
condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o
funcionamento dos serviços correspondentes. O sistema obedece às diretrizes da
descentralização, com direção única, onde estados e município possuem gestor em cada esfera
de governo e visa ao atendimento integral e à participação da comunidade. Entretanto, como o
então presidente Fernando Collor vetou vários artigos que tratavam da participação popular
no SUS, contidos na lei 8.080/90, neste mesmo ano foi promulgada uma lei específica para
tratar do assunto, a lei nº. 8.142/90.
Nela define-se como ocorrerão as transferências intergovernamentais de recursos financeiros
no SUS; a participação da comunidade na gestão do sistema de saúde, através dos conselhos
de saúde; a conferência de saúde (em cada nível de governo, convocada pelo Executivo ou
pelos respectivos conselhos de saúde, a cada quatro anos); o conselho de saúde (colegiado
composto por representantes do governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e

142
usuários) com caráter permanente e deliberativo; o Conselho Nacional de Secretários de
Saúde (CONASS) e o Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde
(CONASEMS), ambos com representação no Conselho Nacional de Saúde (CNS); e a
representação paritária dos usuários nos conselhos de saúde e nas conferências.
Estabelece, também, que para receberem recursos financeiros, os municípios, estados e o
Distrito Federal devem contar, entre outros requisitos, com os conselhos de saúde implantados
de acordo com a lei. Abaixo uma representação dos conselhos e conferências de saúde, em
cada esfera de governo.

Figura 1: Esquema do Modelo Hierarquizado e Descentralizado do SUS


Os conselhos de saúde são órgãos colegiados e permanentes do SUS que possuem
composição, organização e competências fixadas na Lei Federal 8.142/90. É através destes
órgãos que a participação popular ou o controle social, estabelecido na CF de 1988, se efetiva
no setor saúde.
Os conselhos de saúde têm como objetivo formular estratégias e procedimentos de controle da
execução das políticas de saúde, em suas instâncias correspondentes, o que inclui os aspectos
financeiros e econômicos. Suas decisões, por definição, serão homologadas pelo Poder
Executivo. Neste sentido, Correia (2000) aponta para a contradição no fato de a lei garantir o
caráter deliberativo dos conselhos, mas restringir tal poder, quando submete suas deliberações
ao crivo do poder executivo. Nesse sentido, não obstante a manutenção de seu caráter
deliberativo, se considerarmos a PNPS, as deliberações do CNS passarão por mais uma
instância restritiva.
As deliberações do CNS devem ser homologadas pelo ministro. Dentre as deliberações da IX
Conferência Nacional de Saúde, convocada após forte pressão popular e dos conselhos de
saúde, realizada entre os dias 09 e 14 de agosto de 1992, consta que as decisões dos
conselhos, quando não homologadas, retornariam ao colegiado pleno para nova apreciação e
deliberação, e só assim, seriam novamente encaminhadas ao Executivo.
Na Norma Operacional Básica (NOB) nº. 1/1993, ficou evidente um fortalecimento maior
tanto da municipalização quanto da descentralização das ações. Nela criaram-se duas
instâncias de pactuação: a primeira foram as Comissões Intergestores Bipartite (CIB),
compostas por gestores do estado e dos municípios, cujas propostas são aprovadas nos

143
conselhos de saúde do estado correspondente e a segunda, a Comissão Intergestores Tripartite
(CIT), de âmbito nacional, formada paritariamente por representantes do Ministério da Saúde,
Conselho Nacional dos Secretários Estaduais de Saúde e Conselho Nacional de Secretários
Municipais de Saúde. A CIT necessita da aprovação do Conselho Nacional de Saúde, para
programar suas propostas. Nestas comissões os gestores objetivam principalmente a harmonia
do sistema. Em caso de impasse nestas instâncias de deliberação, o CNS é a instância máxima
de decisão, abaixo apenas das conferências nacionais de saúde.
Assim, “de baixo para cima”, as formulações da política no âmbito da saúde passam a
acontecer nas conferências e conselhos municipais, atravessam as conferências e conselhos
estaduais, chegam à Conferência Nacional de Saúde e ao Conselho Nacional de Saúde (CNS).
São as três etapas necessárias no processo de reconhecimento, debate e deliberação relativo às
necessidades de saúde, que orientam a definição de políticas e recursos para o atendimento
das demandas sociais.
O Ministro da Saúde, Jamil Haddad, em 23 de dezembro de 1992, homologou a Resolução
33/1992, do CNS que foi atualizada, em 04 de novembro de 2003, pelo Ministro da Saúde,
Humberto Costa, sob o número 333/2003.
A partir da Resolução 33/1992, os conselhos de saúde, além de terem composição paritária
com o segmento dos usuários, devem ter seu presidente eleito dentre seus membros, em
reunião plenária. O número de conselheiros deve ser definido em cada estado ou município,
de acordo com situação específica, sendo aconselhável não ultrapassar 20 membros ou ser
inferior a 10. A representação de entidades ou órgãos poderá variar de acordo com a realidade
local, porém deve respeitar a paridade. Nela, as vagas para a participação nas conferências e
nos conselhos de saúde deverão ser distribuídas de forma paritária entre usuários,
trabalhadores e gestores do sistema de saúde, com 50% de entidades de usuários do sistema
de saúde; 25% de entidades dos trabalhadores de saúde; e, 25% de representantes dos
governos, e de prestadores de serviços privados, conveniados ou sem fins lucrativos.
Os representantes serão indicados pelas suas entidades e por ser considerada atividade de
“relevância pública”, nenhum conselheiro poderá ser remunerado.
O conselho deverá ter dotação orçamentária, um colegiado pleno (que se reúne
obrigatoriamente uma vez ao mês) e uma secretaria executiva (subordinada ao conselho) com
assessoria técnica. O funcionamento será baseado em regimento interno que definirá, entre
outros pontos, a duração e o mandato dos conselheiros, o quórum mínimo para que as
deliberações do pleno sejam aceitas.

144
Figura 2: Divisão tripartite nos Conselhos de Saúde e Conferências
A criação dos conselhos deverá ser estabelecida por lei estadual ou municipal, segundo o
caso, e referendado pelo Executivo, a quem cabe também indicar as representações do
segmento dos gestores. As reuniões do conselho devem ser abertas ao público.
Esta Resolução também possibilita criar os conselhos regionais, locais e distritais, incluindo
conselhos distritais sanitários indígenas sob controle social. Em relação à criação e
reformulação dos conselhos de saúde, explicita que o Poder Executivo deverá acolher as
demandas da população, consubstanciado nas conferências de saúde, embora não estabeleça a
obrigatoriedade no cumprimento das deliberações.
Ainda por esta Resolução, os segmentos da sociedade civil que poderão pleitear os assentos
são: associações de portadores de patologias; associações de portadores de deficiências;
entidades indígenas; movimentos sociais e populares organizados; movimentos organizados
de mulheres em saúde; entidades de aposentados e pensionistas; entidades congregadas de
sindicatos (centrais sindicais, confederações e federações de trabalhadores urbanos e rurais);
entidades de defesa do consumidor; organizações de moradores; entidades ambientalistas;
organizações religiosas; trabalhadores da área de saúde: (associações, sindicatos, federações,
confederações e conselhos de classe); comunidade científica; entidades públicas, de hospitais
universitários e hospitais campo de estágio, pesquisa e desenvolvimento; entidades patronais;
entidades dos prestadores de serviço de saúde, e Governo.

3 O Modelo de Participação Popular no SUS: uma breve análise


A trajetória de construção do SUS produziu um modelo que, em tese, consegue articular a
informação e o diálogo tanto no eixo vertical quanto no horizontal. Aos conselhos em seus
vários níveis incorporam-se plenárias e conferências aglutinadoras.
Num exercício constante, a atuação dos conselheiros pode acontecer numa lógica que
possibilite a construção de uma nova hegemonia, já iniciada junto as suas representações.
Gramsci alertou que o mundo dos burgueses, mesmo ao prescindir da sabedoria vai adiante, o
que não acontece com o do proletariado, para quem “não ser ignorante é um dever” (2004,
p.29). Nesse percurso as classes subalternas têm nos conselhos de saúde um espaço de
145
enfrentamento ideológico, fundamentado na metodologia que Gramsci (2004) apresentou, que
parte da formação do estágio econômico-corporativo ao ético-político, na busca da construção
de uma “reforma intelectual e moral” (idem). Para o pensador, a hegemonia representa um
sistema complexo de mediações e relações, que, em última análise, compreende também uma
capacidade de dar direção, de ser dirigente. Neste sentido, a atuação dos conselheiros pode
interferir numa política pública de saúde que favoreça aos mais simples.
Assim, o aprendizado para o autogoverno pode acontecer no exercício do controle social, na
medida da complexidade e intensidade das relações e das mediações políticas presentes nos
conselhos e conferências de saúde. Há possibilidade de uma nova práxis política, no sentido
do controle das ações do Estado, embora seja importante considerar também os limites dessas
instâncias de deliberação. Ao analisar a dificuldade de organização de um Estado parlamentar
e a corrupção nele existente, Gramsci, em seus escritos pré-carcerários, afirma: “Estes hábitos
burgueses foram recolhidos pelo movimento operário” (2004, p.22).
Não obstante haver experiências que demonstrem ser possível o controle social controlar as
ações do Estado no campo da saúde (LEITÃO, 2004), autores apontam para o fato de que os
conselhos encontram-se submetidos à tutela do Poder Executivo, em suas diferentes esferas –
municipal, estadual e federal. Tal afirmação pode ser lida em entrevista de conselheiros de
saúde na reportagem “Sob tutela oficial” (O Globo, 26/07/2013, p. 3) ou na apresentação do
livro Troca de Favores (LUZ, 2012). Outros estudos apontam para resultados semelhantes, ao
afirmar que, por vezes, os conselhos servem para que o Executivo fique à mercê de interesses
inconfessos de relações marginais (GERSCHMAN, 2002).
Nesse sentido, o decreto deixa explícita a possibilidade de utilização do espaço das instâncias
de participação em benefício de interesses particulares, como podemos observar dentre as
diretrizes para organização dos conselhos: “A participação de dirigente ou membro de
organização da sociedade civil que atue em conselho de política pública não configura
impedimento à celebração de parceria com a administração pública.”.
Embora haja legalidade nas representações postas nos conselhos de saúde, as relações de
compadrio entre os conselheiros e o Poder Executivo tem estendido a este fórum de resolução
de conflitos a crise de representatividade e legitimidade que tem abatido os partidos políticos
e os governos de forma geral.
A posição de centralidade do Poder Executivo na gestão da verba pública lhe confere um
grande poder de sedução, cooptação sobre os conselheiros, até mesmo pela expectativa de
ganhos diretos e indiretos. Em certa medida, essa centralidade traz para os conselhos embates
típicos do pacto federativo brasileiro.
Ocorre que questões conjunturais determinam a discussão sobre a partilha de recursos
públicos e ocupam lugar de destaque nas discussões políticas e da sociedade. Como exemplo,
apresentamos dados de 2003, que não nos foi possível atualizar, mas “do total arrecadado pela
Receita Federal antes da Constituição de 1988, 25% eram de contribuições e 75%, de
impostos. Hoje, são 55% de contribuições e 45% de impostos”. (O Globo 27/7/2003, p.18).
Observe que as contribuições, diferentemente dos impostos, são exclusivas da União, portanto
não têm obrigatoriedade de serem repassadas aos demais entes federados.
O conceito de federalismo é essencial para compreender o funcionamento do SUS,
principalmente, nas mediações que acontecem nos conselhos de saúde, nas comissões
intergestores bipartites (compostas por estados e municípios) e tripartite (composta por
governo federal, representação nacional dos estados e representação nacional dos municípios)

146
e nas plenárias de conselhos. Os embates políticos frutos do pacto federativo irradiam-se
nestas instâncias e reproduzem suas tensões.
A exemplo da realidade do federalismo brasileiro, na saúde, a alternância do movimento
pendular centralização/descentralização ou “sístole e diástole”, como descrevem Kugelmas e
Sola (2000, p.69), também pode ser evidenciado. O processo de descentralização, ocorrido na
área de saúde, teve significativo avanço a partir da CF de 1988, como parte integrante do
pacto federativo. Sob o olhar de Médici (1995) há quatro argumentos marcantes para sua
defesa; os governos locais, pela proximidade com as demandas da sociedade facilitariam o
controle social; melhor adaptação das políticas sociais às especificidades regionais; maior
possibilidade de atender às demandas locais, garantia do uso racional dos recursos e a
diminuição dos gastos com uma máquina pública pesada e ineficaz.
Se, na prática, o debate sobre a destinação das verbas públicas e outros processos decisórios,
permanecer sob a égide do desconhecimento, não há como efetivar o exercício do controle
social sobre as ações do Estado. É, portanto, fundamental garantir a ampla circulação dessa
informação, tanto em seu sentido vertical quanto horizontal.
Quanto mais forte for a percepção de que esta guerra fiscal reflete o pacto federativo e, em
última instância a disputa pelos recursos públicos, mais amplamente poderá ser exercido o
controle social sobre esses recursos.
Correia (2000, p.28) aponta para o fato de que “as tentativas da sociedade organizada de
interferir no destino dos recursos públicos são, na maioria das vezes, neutralizadas,
dissimuladas e fragilizadas pelas classes dominantes”. Neste sentido analisamos tanto a
entrada da oposição ao governo federal com um Decreto Legislativo para anular o decreto
presidencial, quanto a derrota do governo federal no plenário da Câmara dos Deputados, na
votação que dizia respeito ao decreto referente à PNPS, na madrugada dia 29 de outubro de
2014. Por entender que os espaços dos conselhos e conferências são, não apenas de disputas
pela direção política, pela hegemonia, mas também de cooptação e convencimento, não nos
furtamos referenciar mais uma reflexão de Gramsci.
É natural, portanto, que os fascistas se reconciliem com os socialistas:
a fraqueza intrínseca de uns e de outros será menos evidente. Nem uns
nem outros têm mais uma função a desempenhar no país: portanto,
tornaram-se precisamente partidos de governo e de ‘resultados’.
(GRAMSCI, 2004 p.73).
Importante analisar palavras tão enfáticas à luz da realidade política atual da sociedade
brasileira. De alguma forma, estamos falando de uma conjuntura advinda de um grande
período de recuo crítico das massas subalternas, embora também de baixo poder de
convencimento dos partidos políticos e dos governos em torno de seus projetos políticos.
Conjuntura essa que favorece manobras de cooptação das lideranças dos movimentos sociais
e populares, principalmente, se temos em mente as jornadas de reivindicações de junho de
2013. Pudemos observar que o instrumento da força policial foi duramente utilizado, numa
demonstração clara de baixo poder de persuasão dos governos. Gramsci oferece uma dura,
mas pertinente observação:
A pequena burguesia se incrusta no instituto parlamentar: de
organismo de controle da burguesia capitalista sobre a Coroa e sobre a
administração pública, o Parlamento se torna um bazar de mexericos e
de escândalos, um meio para o parasitismo. (GRAMSCI, 2004, p.30).

147
Assim, não convém abandonar a defesa de toda uma trajetória, toda uma experiência de luta
em defesa das classes oprimidas, como aconteceu no movimento pelo sistema de saúde no
Brasil, para, em troca, receber a “moeda miúda do “atual”, como nos fala Benjamin (1994).
Como moedas de troca, vimos várias lideranças de movimentos populares e de partidos ou
sindicatos em cargos de confiança nos vários níveis de governo, o que deixa as classes
subalternas a mercê do aparato policial legítimo do Estado.
Sobre a repressão que se exerce sobre os trabalhadores com o intuito de impedir sua
organização, Gramsci lembra que a classe dominante se utiliza de um fenômeno que
denomina de “estabilização e de recomposição”, através de reformas no “ordenamento
administrativo” e com isso torna viável a “exclusão dos subversivos dos conselhos municipais
urbanos” (GRAMSCI, 2004, p.315).
Estudos recentes sobre os conselhos de saúde têm apresentado diagnóstico desanimador. Luz
(2012), no prefácio de Conselho de Favores, fez uma síntese das incoerências normativas e
disputas corporativas, econômicas e profissionais presentes nos conselhos de saúde, e alerta
para o fato de que muitos conselheiros não têm se pautado pelo princípio da “coisa pública”
ou do “bem comum”. De acordo com esta autora
[...] pode existir toda uma cultura política oriunda de interesses sociais
mais profundos, radicados numa estrutura social não tão ‘moderna’
quanto o instrumento institucional criado para garantir a participação
social na política de saúde. Interesses que formam um aparente
mosaico social irregular e desconexo de pressões para que as
finalidades originais do instrumento não se cumpram, arqueadas sob o
peso das pressões que se exercem, ou atuam de forma frontalmente
opostas aos objetivos iniciais do mesmo. (LUZ, 2012, p.9)
Essa tradição arcaica, da qual nos referimos anteriormente, se fortalece a cada dia e demonstra
que a mudança de cultura é um trabalho profundo para gerações e não se pode esperar que
aconteça em curto espaço de tempo. Muito menos, o exercício de autogestão, próprio de
sociedade mais igualitária e cidadã. Del Roio (2007) aponta para o fato de que não basta nos
rebelarmos contra o velho, é fundamental nos empenharmos na construção da nova ordem.
Para ele, “É preciso também, e ao mesmo tempo, que se materialize a nova subjetividade, o
que significa organizar a vida material e cultural sobre novas bases” (DEL ROIO, 2007, p.70).
E aqui cabe a lembrança que a cultura não se confunde com entretenimento, ao contrário, é
uma práxis em que coexiste o fazer e o pensar.
Emblemático e atualíssimo o escrito intitulado O povo dos macacos, no qual Gramsci, em sua
fase pré-carcerária, em 1921, em seus Escritos Políticos, escreve:
Corrompido até a medula, completamente a serviço do poder
executivo, o Parlamento perde qualquer prestígio junto às massas
populares. Estas massas se convencem de que o único instrumento de
controle e de oposição aos arbítrios do poder administrativo é a ação
direta, a pressão feita de fora. A semana vermelha de junho de 1914,
contra os assassinos [9], é a primeira e grandiosa intervenção das
massas populares no cenário político, em oposição direta aos arbítrios
do poder, como o objetivo de exercer realmente a soberania popular,
que não encontra mais nenhuma expressão na Câmara dos Deputados:
pode-se dizer que, em junho de 1914, o parlamentarismo entrou na
Itália na rota de sua dissolução orgânica – e, com o parlamentarismo,
também a função política da pequena burguesia. (GRAMSCI, 2004).

148
Uma leitura conjuntural crítica, realista - que não se confunda com pessimista -, como
convém a uma ideologia igualitária, pode favorecer estratégias e táticas pertinentes,
principalmente em momentos críticos, de mudança de cultura. É um trabalho profundo, para
gerações e não se pode esperar que, efetivamente, aconteça em curto espaço de tempo. Menos
ainda, o exercício de autogestão que, em um pensar coletivo, não esquecerá o seu passado e os
seus mortos. Histórias alternativas à dos dominadores e próprias dos oprimidos, dos
movimentos populares, numa nova práxis, num processo longo de ruptura contra as forças
dominantes, para que afinal, a sociedade civil “a partir do seu acúmulo de experiências e de
lutas, se organize como povo/nação, ou seja, como sociedade civil que se faz Estado” (DEL
ROIO, 2013, p.78).
Escrever a história dos subalternos, dos simples, requer manter vivas as narrativas próprias da
classe, como nos alerta Walter Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado
de exceção” em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de
história que corresponda a essa verdade” (BENJAMIN, 1994, p.226). No Brasil atual
assistimos novamente surgir tal necessidade de defesa dos direitos das classes subalternas, dos
trabalhadores, através de suas representações mais diretas, diante do distanciamento da classe
política, de seus representados. Até mesmo quem se pronuncia pelo aumento da participação
popular nas decisões do Estado, se trai diante da possibilidade de união do novo, do efetivo
aumento de participação social nos espaços de decisão política.
Instigante a afirmação sobre os conselhos populares mencionados no decreto, feita pelo atual
Ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, “Transitar
do poder consultivo para o deliberativo é complicado. Aí sim, haveria muita chiadeira.”.
(Jornal O Globo 16/06/14 pag. 4.). Por que a chiadeira, caso os conselhos fossem
deliberativos? Parece concordar como o argumento, pois afirma que a transição de conselho
consultivo para deliberativo é complicado. Talvez esteja implícito em sua fala o receio do
que podemos ler n’O programa de L’Ordine Nuovo, texto no qual, ao registrar a palavra de
ordem dos conselhos de fábrica, em Turin, em relação ao controle da produção nos anos
1919/1920, Gramsci (2004, p,247) afirma que é fundamental: “a organização de massa de
todos os produtores tendo em vista a expropriação dos expropriadores, a substituição da
burguesia pelo proletariado no governo da indústria e, portanto, necessariamente, no governo
do Estado” (2004, p. 247). Como governo, ele está em alerta para o fato de que:
As palavras de ordem servem apenas para pôr em movimento e dar
orientação geral às grandes massas; mas tudo estará perdido se o
partido responsável não cuidar da organização prática dessas massas,
não criar uma estrutura que as discipline e as torne permanentemente
poderosas. (GRAMSCI, 2004, p.252).
Daí o cuidado dos governos em não discutir o caráter dos conselhos. Se consultivo, apenas
discute e pondera, se deliberativo sua decisão tem força de lei.
A política de saúde vem apresentando altas avaliações negativas das gestões nos vários níveis
de governo. Sua lógica mercantilista atual partiu do diagnóstico da necessidade da diminuição
do tamanho da máquina pública, iniciada com o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do
Estado, através do Ministério da Administração e da Reforma do Aparelho do Estado, em
1995.
Nessa reforma a saúde e a educação foram incluídas no Setor dos Serviços Não-Exclusivos do
Estado. Com isso, a saúde e a educação passariam a serviços ofertados majoritariamente pelo
mercado, o que propiciaria a diminuição de atuação do setor público e a ampliação do espaço
149
privado. Neste caso, estar-se-ia subvertendo os preceitos constitucionais nos campos da
educação e da saúde invertendo o caráter complementar do setor privado.
Na efetivação do controle social distorções apareceram, visto que o seu exercício é, no seu dia
a dia, uma opção por um modelo de Estado. Há diferença entre ações de Estado e ações de
Governo, que não necessariamente são coincidentes. Em um modelo de democracia
participativa a circulação da informação e a forma privilegiada de diálogo com o Estado é
através da sociedade organizada, e este vem se mostrando um desafio para a sociedade
brasileira.
4 Considerações finais
A análise preliminar do decreto à luz de nossa experiência no controle social no campo da
saúde sugere que o maior ponto de discórdia em relação a PNPS é a disputa de poder entre os
trinta e dois partidos políticos existentes atualmente no Brasil. Trata-se de uma disputa pela
hegemonia política e neste cenário, a ampliação dos espaços de efetivo controle social
tornam-se indesejáveis. A força que o Executivo exerce na democracia brasileira acaba por
assustar os partidos de oposição, visto a possibilidade cooptação dos conselheiros que atuam
nestes espaços de pactuação. Apesar das justificativas contrárias do Poder Executivo há o
receio do Legislativo de perda de protagonismo e privilégios. Para o Poder Legislativo o
decreto assume a função de atrair a participação popular para a defesa de propostas da atual
gestão do governo e de coerção social na medida em que determina as formas de organização
da sociedade, o que não é um despropósito se considerarmos estudos apresentados
anteriormente.
Cabe lembrar também a forma como a PNPS veio à luz, através de um instrumento pouco
participativo, que foi um Decreto Presidencial. A forma comumente adotada, principalmente
em contexto eleitoral, é o envio, ao legislativo, de um projeto de lei.
A polêmica em torno da afronta ao Poder Legislativo não se fundamenta pelo simples fato de
que os conselhos não legislam. Quando muito apontam para encaminhamento de projetos de
lei, através dos respectivos legislativos. Se o CNS foi de fato o que inspirou o decreto sabe-se,
pelo seu acompanhamento, que não há conflito de finalidade nas duas instâncias.
Outro ponto de estrema relevância nessa discussão é o caráter apenas consultivo dos
conselhos propostos na PNPS. Se considerarmos o campo da saúde, do meio ambiente, da
infância e adolescência é um retrocesso, visto que os conselhos ligados a estas políticas
públicas tem o caráter deliberativo. Participar é diverso do controle social aqui discutido. É
importante para o efetivo exercício do controle social que os conselhos mantenham seu
caráter deliberativo, assim como é importante para a democracia que se aprofunde o controle
social. Ou não, a depender da intencionalidade!
Por fim, ao vincular o Conselho Nacional de Saúde, órgão estruturante do SUS, a outro
sistema - o SNPS, e submete-lo, juntamente com a Conferência Nacional de Saúde à
coordenação da Secretaria Geral da Presidência da República, a PNPS transforma o modelo
de controle social do SUS em uma participação social na prática tutelada, apesar de
nominalmente ampliada. O que nos leva a concluir que a PNPS, anunciada como um avanço
democrático no diálogo entre a sociedade civil e a administração pública federal, promove de
fato um retrocesso, pois “descobriram” que o controle social, no formato proposto, é a uma
forma eficaz de controlar a sociedade. Houve uma recentralização de decisão, em relação à
participação social. Descentralizaram fóruns de discussão em tantas políticas públicas, com as
várias representações da sociedade e, a partir do decreto, voltam a se concentrar sob uma só
política.
150
Entendemos que participação social não se confunde com controle social como defendido
neste artigo. Conclamar a sociedade a uma participação que não possibilita o atendimento às
suas demandas, a não ser que interesse ao Executivo é alimentar uma falsa ideia de
democracia participativa, na qual o Executivo capitaliza o bônus e socializa o ônus das
medidas implementadas. Um exemplo é a constante desconstrução sofrida pelo SUS em
direção ao mercado privado de saúde, subentendem-se planos privados de saúde, do qual o
Brasil é o segundo mercado mundial.
Não só como sociedade organizada, mas também como cidadãos emancipados, ficamos
submetidos aos limites impostos pelo decreto à nossa participação na vida política? Em um
contexto de baixa representatividade e legitimidade dos partidos políticos e governos, é
temerário propor uma participação por decreto como se um governo fizesse a autoavaliação e
autoprescrição como um meio de resolver o seu problema.
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152
Alienação, crise do capital e os desafios na luta pela emancipação humana

George F. Ceolin

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Campus Praia Vermelha, Rio de Janeiro-RJ –
georgeceolin@yahoo.com.br

Resumo

Aborda-se o pensamento marxiano enquanto desvelamento da superação da forma estranhada


da objetivação humana. A crítica à economia política é apresentada enquanto expressão da
investigação dessa objetivação alienada na particularidade da sociedade burguesa, onde a
subsunção do trabalho ao capital inverte a relação entre sujeito e objeto e reifica o produto e
as relações sociais. Na análise da categoria trabalho, busca-se a sua apreensão enquanto
atividade da vida produtiva no intercâmbio entre o ser social e a natureza, e suas
determinações particulares enquanto atividade produtiva alienada na ordem do capital. Nesse
sentido é que a contradição capital e trabalho ganha contornos precisos na necessária
superação do trabalho assalariado como condição objetiva da emancipação humana.

Palavras-Chaves: Alienação, Crise do Capital, Emancipação

1 Introdução

O desenvolvimento da crítica em Marx tem como eixo central o problema da superação da


forma alienada da objetivação humana. A maturidade do pensamento marxiano da crítica à
economia política é expressão da investigação dessa objetivação na particularidade da
sociedade burguesa. A alienação enquanto produto do processo econômico determinada pela
própria morfologia social que a produz.

Nesse sentido, a contradição capital e trabalho ganha contornos precisos enquanto condição
de superação do próprio trabalho e da condição de trabalhador, fundamento material da
alienação na sociedade capitalista.

Não obstante, a tradição marxista consolidada após a Revolução de 1917 privilegiou a


mediação do Estado e a consequente luta politica no embate às formas de exploração da classe
trabalhadora como via para a transição socialista. A luta pela extinção do trabalho assalariado,
fundamento objetivo do estranhamento e da alienação, na qual os humanos perdem a si
mesmos, ficou deslocado da centralidade do debate e da luta pela emancipação humana.

Essa inversão ontológica entre a base material de produção da vida e sua expressão nas
relações sociais dela decorrente, constitui em limite, com graves consequências para a
revolução emancipatória.

A análise das determinações do trabalho assalariado enquanto condição objetiva de alienação


e estranhamento do ser social, tanto de si mesmo, quanto de sua própria espécie, na
particularidade da sociedade totalitária mercantil, faz-se condição sine qua non na luta pela
sociedade emancipada.
153
Por isso, a compreensão dos fundamentos e contornos que condicionam à alienação do
trabalho e das relações sociais na sociedade contemporânea é desafio imprescindível para o
marxismo no século XXI.

2 A objetivação enquanto metabolismo constitutivo das potencialidades do ser social

A mediação universal do ser humano no intercâmbio com a natureza dá-se pela objetivação da
atividade produtiva do homem. Essa objetivação, independentemente de qualquer forma
social determinada, é um processo em que o ser humano, por sua própria ação, “medeia,
regula e controla seu intercâmbio material com a natureza” (MARX, 1968, p. 202). Nesse
sentido,

o processo de trabalho (...) é condição necessária do intercâmbio material entre o


homem e a natureza; é condição natural eterna da vida humana, sem depender,
portanto, de qualquer forma dessa vida, sendo antes comum a todas as suas formas
sociais (MARX, 1968, p. 208).

Pela mediação do trabalho, o ser humano não só efetua uma transformação da forma da
matéria natural, mas realiza, ao mesmo tempo, seu objetivo na matéria natural, imprimindo ao
material o projeto que tinha na mente, que determina a espécie e o seu modo de operar, e ao
qual, portanto, tem que subordinar sua vontade (MARX, 1968, p. 202).

O trabalho exige a atividade orientada para um fim, que se manifesta como atenção durante
todo o tempo de trabalho. E isso é tanto mais necessário quanto menos o trabalhador se sente
atraído pelo conteúdo e pelo método de execução de sua atividade, mas que lhe oferece, por
isso mesmo, possibilidade de fruir da aplicação das suas próprias forças físicas e espirituais
(MARX, 1968, p. 202).

Os elementos constituintes do processo de trabalho são a atividade orientada para um fim, ou


seja, o próprio trabalho humano, a matéria que se aplica no trabalho, isto é, o objeto de
trabalho; e seus meios ou instrumentos de trabalho (MARX, 1968, p. 202).

No processo de trabalho, após a atividade humana operar uma transformação no objeto, por
meio de um instrumento, subordinada a um determinado fim, o processo extingue-se no
produto. O produto é um material da natureza adaptado às necessidades humanas pela
mudança de forma, é um valor de uso. O trabalho está incorporado no objeto sobre o qual
atua, está objetivado (MARX, 1968, p. 205).

O engendrar prático de um mundo objetivado é a prova do ser humano como um ser genérico
consciente, que se relaciona com a sua própria essência como ser genérico.

A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a vida engendradora de vida. No modo


da atividade vital encontra-se o caráter inteiro de uma species (sic), seu caráter
genérico, e a atividade consciente livre é o caráter genérico do homem (MARX,
2004, p. 84).

Esse engendrar prático-objetivo é a efetivação do humano enquanto ser genérico consciente,


“(...) um ser que se relaciona com o gênero enquanto sua própria essência ou [se relaciona]
consigo enquanto ser genérico” (MARX, 2004, p. 85).

154
O objeto de trabalho é a objetivação da vida genérica humana: “quando o homem se duplica
não apenas na consciência, intelectual[mente], mas operativa, efetiva[mente], contemplando-
se, por isso, a si mesmo num mundo criado por ele” (MARX, 2004, p. 85).

Portador do ser social, historicamente constituído, cada indivíduo é tanto singularidade quanto
universalidade e só existe enquanto ser social que se objetiva. Para Marx (2004), a essência do
ser social está no processo de socialização – fazer recuar as barreiras naturais na atualização
de crescentes possibilidades de novas objetivações – explicitação dinâmica e movente de uma
estrutura histórica de possibilidades: a objetivação, a sociabilidade, a universalidade, a
consciência e a liberdade.

O homem faz de sua atividade vital mesma um objeto de sua vontade e de sua
consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade com a
qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem
imediatamente da atividade vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser
genérico. Ou ele somente é um ser consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto,
precisamente porque é um ser genérico. Eis porque a sua atividade é atividade livre
(MARX, 2004, p. 84).

A atividade criadora sempre engendra valor, pois é a partir do conhecimento do complexo


causal da realidade dada que se torna possível o pôr de novos nexos causais pelo trabalho.
Nesse sentido, o trabalho como pôr teológico coloca a possibilidade de escolhas entre
alternativas concretas (NETTO, 1994).

Aqui está posto a atividade produtiva do ser social em seu metabolismo com a natureza como
elemento estruturante das formas sociais, que ainda que, reproduzem-se para muito além
desta determinação, tem nela, a base material fundante para as formas de objetivações e das
relações sociais constituídas.

Todo o processo de constituição humana deriva da interação do homem com a natureza,


sendo, sua atividade criadora, a forma humana de se manter e de definir e orientar suas
necessidades. Necessidades estas que, uma fez satisfeitas, repõe novas necessidades.

Sendo, pois, a atividade criadora a expressão da especificação do ser social, o movimento


histórico é a produção e reprodução dos seres humanos por si mesmos. E, nesse sentido, a
história é sempre um campo aberto de possibilidades.

3 Aienação e desefetivação das potencialidades humanas na ordem do capital

O capital é um modo de controle do metabolismo social que instaura formas históricas


qualitativamente novas de intercâmbio dos seres humanos com a natureza, da relação dos
seres humanos entre si, e com sua própria atividade produtiva.

Na sociedade que surgiu com o capitalismo industrial ocorre o recuo significativo das
barreiras naturais em virtude do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social. A
natureza é, cada vez mais, constituída por determinações sociais.

No entanto, o cerne essencial e a finalidade intrínseca da base material de produção da ordem


do capital é a produção de mais-valor. Nessa ordem sociometabólica, a natureza tende a sofrer
as determinações de um metabolismo social voltada para a acumulação ampliada de mais-
valor, subsumindo as forças produtivas à sua lógica da valorização, e convertendo a
efetivação do ser social, pela objetivação de sua atividade criadora, em desefetivação do

155
humano, em um processo em que a atividade produtiva aliena e estranha o produtor de seu
produto.

3.1 Subsunção do trabalho ao capital

A produção e a circulação de mercadorias constituem as condições históricas que dão origem


ao capital (MARX, 1968, p. 165). Assim, apreender as determinações e lógica de reprodução
do capital é fundamental e fundante para a compreensão dessa temporalidade histórica. O
mercado adquire uma importância determinante, tornando-se a mediação suprema da
acumulação de mais-valor e de estruturação do nexo produtivo e reprodutivo social.

No sistema do capital, tudo tende a tornar-se mercadoria. A determinação fundante da


sociedade capitalista é a transformação do próprio trabalho em mercadoria, a qual, pela
instauração do “trabalho livre”, possibilita a venda e compra da força de trabalho, condição
indispensável de produção de mais-valor.

Marx (1968, p. 165-197) apresenta a fórmula geral do capital na indicação: D-M-D’ – na qual
D é igual a dinheiro, M é mercadoria e D’ é dinheiro acrescido de mais valor ou mais-valia.
Ainda que seja de forma bastante simplificada, a fórmula apresenta o princípio estruturante da
sociabilidade burguesa. Ela expressa a lógica do capital, qual seja, o movimento do dinheiro
que busca se reproduzir no mercado em forma de mercadoria, pela subsunção da própria força
de trabalho enquanto mercadoria.

O trabalho, na forma de mercadoria, sofre uma mudança radical em suas determinações. A


mercadoria em questão é muito particular, pois não é um objeto possuído pelo trabalhador,
mas é o próprio trabalhador em sua determinação particular, como força de trabalho.

Por força de trabalho ou capacidade de trabalho compreendemos o conjunto das


faculdades físicas e mentais, existentes no corpo e na personalidade viva de um ser
humano, as quais ele põe em ação toda a vez que produz valores de uso de qualquer
espécie (MARX, 1968, p. 187).

Nesse sentido, ocorre a alienação da própria subjetividade do trabalhador, já que a força de


trabalho é o que permite a explicitação do trabalho, portanto, da própria explicitação da vida
do trabalhador.

(...) o operário se vê obrigado a vender, em lugar de uma mercadoria, sua própria


capacidade de trabalho como mercadoria. Isso se deve a que, por um lado, vê como
propriedade alheia todos os meios de produção, todas as condições objetivas do
trabalho, assim como todos os meios de subsistência, o dinheiro, os meios de
produção e os meios de subsistência; e isto porque toda a riqueza objetiva surge aos
olhos do operário como propriedade dos possuidores de mercadorias. A premissa é
que o operário trabalha como não proprietário, e as condições de seu trabalho se lhe
antepõem como propriedade alheia (MARX, 1978, p. 33-34).

O trabalho alienado inverte a relação do sujeito com seu objeto de trabalho a tal ponto que, o
homem, com ser consciente, “faz da sua atividade vital, da sua essência, apenas um meio para
sua existência” (MARX, 2004, p. 85).

Justamente pelo fato do trabalho estranhado reduzir a atividade livre a um meio, ele faz da
vida genérica do homem um meio de sua existência física.

156
Os meios tornam-se os fins últimos, e os fins humanos são transformados em simples meios
subordinados aos fins. A inter-relação original do ser humano com a natureza é transformada
na relação entre trabalho assalariado e capital (MÉSZÀROS, 2006, p. 81-82).

O processo de produção capitalista é necessariamente precedido pela especificidade da esfera


da circulação, já que o capitalista, por meio da aquisição da força de trabalho, compra
precisamente a condição subjetiva do processo de produção, premissa que determina a
passagem da esfera da circulação à produção. A relação de compra e venda da força de
trabalho é uma relação entre pessoas e não entre coisas. Portanto, o capital é uma relação
social, mais precisamente, uma relação entre classes sociais.

Segundo Marx (1978, p. 36):

O capital não é nenhuma coisa, do mesmo modo que o dinheiro não o é. No capital,
como no dinheiro, determinadas relações sociais de produção entre pessoas se
apresentam como relações de coisas para com pessoas, bem como determinados
relacionamentos sociais surgem como propriedades sociais naturais das coisas. Sem
trabalho assalariado, nenhuma produção de mais-valia existe, já que os indivíduos
se relacionam como pessoas livres; sem produção de mais-valia não existe produção
capitalista, e por conseguinte, nenhum capital e nenhum capitalista!

Capital e trabalho assalariado nascem em uma só operação e são duas faces da mesma
realidade. O processo de trabalho, quando ocorre como consumo de força de trabalho pelo
capitalista, revela dois fenômenos peculiares, segundo Marx (1968): a) o trabalhador trabalha
sob o controle do capitalista, a quem pertence o seu trabalho durante o tempo em que o
trabalhador vende o valor de uso de seu trabalho; b) o produto do trabalho é de propriedade do
capitalista, e não do produtor direto, que incorpora o próprio trabalho aos elementos mortos
constitutivos do produto (matéria-prima e meios de trabalho), que lhe pertencem igualmente.

Ocorre que, no modo de produção, em que o cerne essencial e finalidade intrínseca é a


produção de mais-valor, os valores de uso das mercadorias somente são considerados como
substrato material detentor de valor.

Como a própria mercadoria é unidade de valor de uso e valor, seu processo de produção deve
ser unidade de processo de trabalho de produzir valor de uso e, ao mesmo tempo, um processo
de produzir valor (MARX, 1968, p. 211).

O valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho materializado em


seu valor de uso, isto é, pelo tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção
(MARX, 1968, 211). Na produção de um produto, deve ser considerado o tempo de trabalho
socialmente exigido nos diferentes processos particulares de trabalho separados no tempo e no
espaço, que devem ser percorridos para produzir cada elemento constitutivo do processo de
trabalho de sua produção, como diversas fases do mesmo processo de trabalho.

A forma geral do valor surge como resultado do sistema produtor de mercadorias. O valor de
cada mercadoria particular só adquire expressão geral à medida que as outras mercadorias
expressam seu valor por meio do mesmo equivalente. Desse modo, o valor das mercadorias só
pode ser expresso pela totalidade de suas relações sociais.

Todo trabalho útil é reduzido à sua condição comum de dispêndio de força humana de
trabalho. O processo de trabalho, como processo de valorização, ainda que o valor de uso
esteja incorporado no produto como substrato material do valor, não se distingue de outros
processos de trabalho qualitativamente diferentes, como constituintes do mesmo valor global.
157
Nessas condições, já não se trata de conteúdo, natureza e qualidade, mas apenas de sua
quantidade, ou seja, de trabalho abstrato (MARX, 1968, p. 213).

Em sua dimensão abstrata, o trabalho só interessa como dispêndio da força de trabalho e não
como trabalho especializado (MARX, 1968, p. 214). A única razão pela qual o valor assume a
base material desse ou daquele valor de uso, é tão somente sua afirmação como valor, ou mais
precisamente, sua expansão como capital. A transformação do dinheiro em capital se dá como
resultado direto da compra e uso da mercadoria força de trabalho, fundamento do processo de
criação de valor.

A força de trabalho é uma mercadoria que contém em si duas grandezas inteiramente


diferentes. O seu valor, como mercadoria, é determinado pela quantidade de trabalho
socialmente necessário para a manutenção dos meios de subsistência do trabalhador e de sua
prole, condição necessária para o uso de tal mercadoria, bem como de sua continuidade pelas
gerações. Entretanto, o seu valor de uso, ou seja, o trabalho vivo que ela pode prestar é fonte
de valor e de mais valor que ela mesma contém.

Segundo Marx (2006, p. 214),

o valor da força de trabalho é determinado pela quantidade de trabalho necessária


para a sua conservação e reprodução, mas o “uso” dessa força de trabalho só é
limitado pela energia e pela força física do operário. O “valor” diário ou semanal da
força de trabalho é completamente diferente do “funcionamento” diário ou semanal
dessa mesma força de trabalho; são duas coisas completamente distintas, como são
coisas diferentes a ração consumida por um cavalo e o tempo que este pode carregar
o cavaleiro. A quantidade de trabalho que limita o “valor” da força de trabalho do
operário de modo algum limita a quantidade de trabalho que sua força de trabalho
pode executar81.

Por isso, no processo de produção, troca-se mais trabalho por menos trabalho, fundamento do
processo de exploração capitalista. Esse é resultado específico que o capitalista busca nos
conformes das leis eternas da troca de mercadorias. Como comprador, o capitalista paga toda
mercadoria pelo valor, e como qualquer outro comprador de mercadoria, consome seu valor
de uso. O vendedor da força de trabalho, como de qualquer outra mercadoria, realiza seu valor
e aliena seu valor de uso. Não pode receber um, sem transferir o outro (MARX, 1968, p. 215-
217). A troca de equivalentes no processo de circulação torna-se uma troca de desiguais no
processo produtivo. O D (dinheiro), da fórmula geral do capital, transformado pelo trabalho
despendido pela força de trabalho em M (mercadoria), transforma-se em D’ (valor valorizado
ou capital). Dessa forma, o dinheiro transforma em capital (MARX, 1968, p. 218-219).

3.2 A contradição interna da lógica de reprodução do capital

De início, a intervenção do capitalista não muda os métodos dos processos de trabalho


(MARX, 1968, p. 209). A natureza geral do processo de trabalho não muda apenas pelo fato
de o trabalhador executá-lo para o capitalista e não para si mesmo.

O processo de trabalho, como determinação técnica, mesmo inserido em um processo


capitalista de produção, mantém ainda as formas em que se processava antes que a relação

81
O texto citado é parte do relatório lido por Marx nas sessões do Conselho Geral da Primeira Internacional, nos
dias 20 e 27 de junho de 1865. Publicado pela primeira vez em folheto à parte, em Londres (1898), com o título
de Valor, preço e lucro, é a primeira exposição pública de Marx das bases da sua teoria da mais-valia
(ANTUNES, 2004, p. 72; MARX, 2006, p. 69).

158
capitalista interviesse. Embora os meios de produção sejam o substrato material do capital,
portanto, separados do trabalhador e se erguendo diante dele como coisas alheias ao próprio
trabalho, no tocante à determinação do processo de trabalho, é o operário quem utiliza os
instrumentos, em uma relação que mantém o trabalho vivo como sujeito do trabalho
(subsunção formal do trabalho ao capital). O processo produtivo, como processo de trabalho,
desenvolveu-se sob formas técnicas que o capital ainda não conseguia tornar homogêneas a si
mesmo (NAPOLEONI, 1981, p. 68).

No processo de valorização, a relação inverte-se: não é o operário quem utiliza os meios de


produção, mas são os meios de produção que utilizam o operário, como portador de trabalho
abstrato, cuja função é apenas conservar e aumentar o valor do capital.

Nas palavras de Marx (1978, p. 18-19),

No processo de trabalho efetivo, o operário consome os meios de trabalho como


veículo de sua atividade, e o objeto de trabalho como a matéria na qual seu trabalho
se apresenta. [...] Do ponto de vista do processo de valorização, entretanto, as coisas
se apresentam diferentemente (...) não é o operário quem utiliza os meios de
produção: são os meios de produção que utilizam o operário. Não é o trabalho vivo
que se realiza no trabalho objetivo como em seu órgão objetivo; é o trabalho
objetivo que se conserva e aumenta pela absorção do trabalho vivo, graças ao qual se
converte em um valor que se valoriza, em capital, e como tal funciona. Os meios de
produção aparecem unicamente como absorventes da maior quantidade possível de
trabalho vivo. Este se apresenta apenas como meio de valorização de valores
existentes e, por conseguinte, de sua capitalização.

Como a mais-valia não tem outra determinação possível além de sua quantidade, o processo
de trabalho encontra-se comprimido no interior da forma da subsunção formal do trabalho. A
busca de aumentar a escala de reprodução de mais-valor, além de qualquer limite, determina a
passagem da subsunção formal à subsunção real do trabalho ao capital.

Todos os métodos para elevar as forças produtivas do trabalho social conforme a lógica do
sistema do capital tem seu fundamento na elevação da produção do mais-valor. Na subsunção
real do trabalho ao capital o trabalho não se encontra apenas inserido em um processo
produtivo, cuja finalidade é a produção de mais-valor, mas a própria técnica, como processo
de relação trabalho vivo e meios de produção, é transformada pelo capital, a ponto de tornar
homogênea a relação formal já existente entre trabalho e capital. A técnica produtiva é
especificamente capitalista, na qual a subsunção do trabalho ao capital se dá não apenas no
terreno econômico, mas na própria materialidade do processo de trabalho (NAPOLEONI,
1981, p. 68).

As forças produtivas do trabalho social crescem por força da aplicação da maquinaria e da


divisão técnica do trabalho, realizando-se plenamente a subsunção real do trabalho e, com ela,
um modo de produção especificamente capitalista, onde as forças produtivas são convertidas
em forças produtivas do capital.

Segundo Marx (1968, p. 726):

A conversão contínua da mais valia em capital se patenteia na magnitude crescente


do capital que entra no processo de produção e se torna base da produção em escala
ampliada, dos métodos que a acompanham para elevar a força produtiva do trabalho
e acelerar a produção de mais valia. Se certo grau de acumulação do capital se revela
condição do modo de produção especificamente capitalista, este reagindo causa
acumulação acelerada do capital. Com a acumulação do capital desenvolve-se o
modo de produção especificamente capitalista e com o modo de produção

159
especificamente capitalista a acumulação do capital. Esses dois fatores, na proporção
conjugada dos impulsos que se dão mutuamente, modificam a composição técnica
do capital, e, desse modo, a parte variável se torna cada vez menor em relação à
constante.

No modo de produção especificamente capitalista, a composição técnica e do valor do capital


revela-se um processo dinâmico e contraditório. De um lado, a produtividade do trabalho
social cresce, e, de outro, o decréscimo do trabalho vivo impulsiona a tendência de queda da
taxa média de lucro.

No curso da acumulação do sistema capitalista, o desenvolvimento da produtividade do


trabalho social torna-se a mais poderosa alavanca da acumulação. A produtividade do trabalho
se expressa pelo volume relativo dos meios de produção que um trabalhador transforma em
produto, com o mesmo dispêndio da força de trabalho, em um tempo dado.

Nas palavras do autor:

a grandeza crescente dos meios de produção, em relação à força de trabalho neles


incorporada, expressa a produtividade crescente do trabalho. O aumento desta se
patenteia, portanto, no decréscimo da quantidade de trabalho em relação à massa dos
meios de produção que põe em movimento, ou na diminuição do fator subjetivo do
processo de trabalho em relação aos seus fatores objetivos (MARX, 1968, p. 723).

No entanto, se de um lado, o crescente incremento dos meios de produção, em relação ao


trabalho vivo neles incorporados, expressa a produtividade crescente do trabalho, de outro,
reflete na composição do valor do capital, com o decréscimo da parte variável em relação à
parte constante.

Com a produtividade crescente do trabalho não só aumenta os volumes dos meios de


produção que ele consome, mas cai o valor desses meios de produção em
comparação com seu volume. Seu valor aumenta em termos absolutos, não só em
proporção com seu volume. O aumento da diferença entre capital constante e capital
variável é, por isso, muito menor do que o aumento da diferença entre a massa dos
meios de produção em que se converte o capital constante e a massa da força de
trabalho em que se transforma o capital variável. A primeira diferença cresce com a
segunda, porém em grau menor. Mas, se o progresso da acumulação reduz a
magnitude relativa da parte variável do capital, não exclui, com isso, o aumento de
sua magnitude absoluta (MARX, 1968, p. 724-725).

A conjugação mútua desses fatores modifica a composição orgânica do capital, tornando o


capital variável cada vez menor em relação ao constante.

Todos os meios de elevação da produtividade do trabalho são meios de aumentar a grandeza


absoluta do trabalho excedente, portanto, meios “para produzir capital com capital”, de
aceleração da acumulação.

O contínuo e crescente ingresso de mais-valia no processo de produção torna-se base da


produção em escala ampliada, e de elevação da produtividade e aceleração de produção de
mais valor. Desse modo, cada acumulação torna-se meio de nova acumulação, e a
produtividade é produtividade do capital.

3.3 Trabalho estranhado e alienação

O domínio do capital sobre o trabalho é o domínio das condições objetivas e subjetivas dos
capitalistas sobre os operários no processo real de produção capitalista (MARX, 1978, p. 20).
160
No processo capitalista de produção, como essencialmente processo de valorização, é
processo de domínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo, do trabalho passado sobre o
trabalho presente, do trabalho já objetivado sobre o trabalho que está em processo de
objetivação. Portanto, o processo capitalista é um processo de estranhamento, tanto no sentido
de o trabalho só contar como produtor de uma coisa exterior a si mesmo, quanto de que a
parte do trabalho que já se converteu em coisa domina a outra parte do trabalho que ainda não
se objetivou, portanto, ainda é trabalho vivo. O trabalho vivo não tem outro sentido senão ser
meio para aumentar o valor correspondente ao trabalho morto.

Nas relações capitalistas de produção, “o trabalhador torna-se a mais miserável mercadoria”.


A miséria do trabalhador põe-se na relação inversa da potência e grandeza da sua produção.
“O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais sua
produção aumenta em poder e extensão”, afirma Marx (2004, p. 80).

O trabalho não produz somente mercadorias, mas produz a si mesmo como mercadoria. “Com
a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo
dos homens”, assinala Marx (2004, p. 80, grifos do original).

Desse modo, o objeto que o trabalho produz em sua objetivação, defronta-se com o
trabalhador como um ser estranho, como um poder independente de seu produtor. O produto
do trabalho é o trabalho que se fixa no objeto, faz-se coisa. A efetivação do trabalho aparece
como desefetivação do trabalhador, a objetivação, como perda do objeto, a apropriação, como
estranhamento ou alienação.

A apropriação do objeto tanto aparece como estranhamento que, quanto mais objetos o
trabalhador produz, tanto menos pode possuir e tanto mais fica sob o domínio do seu produto,
do capital (MARX, 2004, p. 80). Assim,

quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando [...], tanto mais poderoso se torna
o mundo objetivo, alheio [...] que lê cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele
mesmo, seu mundo interior, [e] tanto menos [o trabalhador] pertence a si próprio
[...]. O trabalhador encerra sua vida no objeto; mas agora ela não pertence mais a
ele, mas sim ao objeto. [...] ele não é o que é o produto do seu trabalho. Portanto,
quanto maior este produto, tanto menor ele mesmo é. A exteriorização [...] do
trabalhador em seu produto tem o significado não somente de que seu trabalho se
torna um objeto, uma existência externa [...], mas, bem além disso, [que se torna
uma existência] que existe fora dele [...], independente dele e estranha a ele,
tornando-se uma potência [...] autônoma diante dele, que a vida que ele concedeu
ao objeto se lhe defronta hostil e estranha (MARX, 2004, p. 81, grifos do original).

Portanto, “a relação imediata do trabalho com os seus produtos é a relação do trabalhador com
os objetos de sua produção” (MARX, 2004, p. 82).

O estranhamento não se revela apenas na relação com os produtos de seu trabalho, mas
também, e, sobretudo, na própria atividade produtiva, no ato da produção.

o produto do trabalho é a exteriorização, então a produção mesma tem de ser a


exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização. No
estranhamento do objeto do trabalho resume-se somente o estranhamento, a
exteriorização na atividade do trabalho mesmo (MARX, 2004, p. 82).

Segundo Marx (2004), pelo fato de o trabalho ser externo e não pertencer ao seu ser, o sujeito
que trabalha não se afirma no seu trabalho, mas nega-se nele. O trabalho não é a satisfação de
uma carência, mas somente um meio para satisfazer as necessidades fora dele. A externalidade
do trabalho aparece para o trabalhador como se o trabalho não fosse seu, mas de outro, como
161
se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a outro. É a perda de si mesmo, o
estranhamento de si mesmo (MARX, 2004, p. 83).

A terceira determinação do trabalho estranhado – que é decorrente das duas já analisadas – é o


estranhamento do ser humano pelo próprio ser humano, de seu ser genérico. Aquilo que é
produto da relação do humano com o seu trabalho, produto de seu trabalho e consigo mesmo,
vale como relação do humano com outro humano, como trabalho e objeto do trabalho de
outro humano. O ser humano está estranhado de seu ser genérico, isto é, o ser humano está
estranhado do outro, assim como cada um deles está estanhado da própria essência humana
(MARX, 2004, p. 83-86).

Todo estranhamento de si mesmo e da natureza aparece na relação que o ser humano outorga
a si e à natureza com os outros seres humanos dele diferenciados. Marx (2004, p. 87)
esclarece:

No mundo prático-efetivo [...] o auto-estranhamento só pode aparecer através da


relação prático-efetiva [...] com outros homens. Através do trabalho estranhado o
homem engendra, portanto, não apenas sua relação com o objeto e o ato de produção
enquanto homens que lhe são estranhos e inimigos; ele engendra também a relação
na qual outros homens estão para a sua produção e seu produto, e a relação na qual
ele está para com estes outros homens. Assim como ele [engendra] a sua própria
produção para a sua desefetivação [...], para o seu castigo, assim como [engendra] o
seu próprio produto para a perda, um produto que não pertence a ele, ele engendra
também o domínio de quem não produz sobre a produção e sobre o produto. Tal
como estranha de si a sua própria atividade, ele apropria para o estranho [...] a
atividade não própria deste.

O trabalho alienado na sociedade burguesa, não se constitui somente em um elemento da


alienação do humano, mas também em um elemento da alienação da própria mercadoria.

O caráter misterioso que o produto do trabalho apresenta ao assumir a forma mercadoria


provém da própria forma mercadoria. “A igualdade dos trabalhos humanos fica disfarçada sob
a forma da igualdade dos produtos do trabalho como valores [...]”, diz Marx (1968, p. 80). A
quantidade de dispêndio da força de trabalho toma a forma da quantidade de valor dos
produtos do trabalho, e as relações entre os produtores, nas quais se afirma o caráter social
dos seus trabalhos, assumem a forma de relação social entre os produtos do trabalho. Assim,

a mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do


próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e
propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a
relação social entre os trabalhos individuais dos produtores e o trabalho total, ao
refleti-la como relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu
próprio trabalho. Através dessa dissimulação, os produtos do trabalho se tornam
mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos
sentidos. [...]. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a
forma fantasmagórica de uma relação entre coisas (MARX, 1968, p. 81).

O fetichismo do mundo das mercadorias decorre do caráter social próprio do trabalho que
produz mercadorias. A igualdade de diferentes trabalhos particulares assenta-se em uma
abstração que despreza a desigualdade existente entre eles e os reduz ao seu caráter comum de
dispêndio de força de trabalho, de trabalho abstrato. Ao igualar, na relação de troca como
valores, seus diferentes produtos, igualam seus trabalhos particulares, de acordo com sua
quantidade comum de dispêndio de força de trabalho (MARX, 1968, p. 82).

Netto (1981, p. 42) expõe:

162
o que os produtores realizam, sem a menor consciência, é a equalização do trabalho;
só que esse processo, na dinâmica mesma da troca, é deslocado, transferido da
interação dos produtores para a materialidade dos produtos em presença. Está posto
o fetichismo: relações sociais entre pessoas convertem-se em relações sociais entre
coisas (relações factuais, “naturais”). [...] o segredo a que se credita aquela
aparência misteriosa [na forma mercadoria] – é histórico-social: a universalização
da produção mercantil (grifos do original).

A condição de ter valor só se fixa nos produtos do trabalho quando eles se determinam como
quantidade de valor. A forma valor é, em suma, forma equivalente geral. Portanto, mercadoria
determinada, cuja forma natural se identifica socialmente à forma equivalente, torna-se
mercadoria-dinheiro. A forma geral do valor transforma-se em forma dinheiro do valor. A
expressão simples e relativa de uma mercadoria que esteja exercendo a função de mercadoria-
dinheiro é a forma preço (MARX, 1968, p. 77-79).

O autor afirma:

é essa forma acabada do mundo das mercadorias, a forma dinheiro, que realmente
dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em consequência, as relações
sociais entre os produtores particulares, ao invés de pô-las em evidência (MARX,
1968, p. 84).

Os produtos dos trabalhos úteis tornam-se mercadorias, por serem produtos de trabalhos
privados, independentes uns dos outros. “O conjunto desses trabalhos particulares forma a
totalidade do trabalho social”, declara Marx (1968, p. 81).

As relações de dependência entre as pessoas são convertidas, pela mágica do valor e do


dinheiro, em relações de independência entre pessoas e de dependência entre coisas. As
relações sociais entre pessoas são reificadas pela mediação do dinheiro, convertendo-se em
relações sociais entre coisas.

A alienação é um complexo de causalidades e resultantes históricos e sociais que se


desenvolvem quando os agentes sociais particulares, por não captarem as mediações sociais
que os vinculam à totalidade da vida social, não conseguem discernir e reconhecer nas formas
sociais o conteúdo e o efeito da sua ação e intervenção. Assim, essas formas aparecem-lhes
como alheias e estranhas (NETTO, 1981, p. 74-75).

O fetichismo é a concretização histórico-social da expressão da alienação engendrada na


especificidade do modo capitalista, a reificação. A sociedade burguesa constituída, sem anular
as formas alienadas oriundas das sociedades que a precederam, instaura processos alienantes
particulares postos pelo fetichismo e que redundam em formas alienadas reificadas (NETTO,
1981, p. 76).

As formulações do fetichismo permitem apreender os fenômenos próprios do mundo burguês


consolidado. Afirma Vásques (2007, p. 452): “o fetichismo econômico não passa da forma
concreta da alienação nas condições da produção mercantil numa sociedade capitalista
desenvolvida”.

No fetichismo, a sociedade capitalista expressa uma forma determinada e particular de


alienação, que escraviza os indivíduos tanto pelas condições objetivas da sua inserção no
processo produtivo, quanto pelas condições subjetivas de internalização, decorrentes dessa
inserção e das suas relações sociais.

163
Na imediaticidade da vida social, universalizam-se os processos alienantes e alienados
peculiares ao modo de produção capitalista, que se encontram na base do mistério da forma
mercadoria.

O caráter de coisa que as relações sociais adquirem na forma mercadoria é, agora, o


caráter das objetivações humanas: elas se coagulam numa prática social que os
agentes sociais particulares não reconhecem como sua. O fetichismo mercantil passa
a ser o fetichismo de todo o intercâmbio humano (NETTO, 1981, p. 85).

A sociedade burguesa constituída repõe a factualidade alienada e alienante com que a forma
mercadoria mistifica as relações sociais em todas as instâncias e níveis sociais, na
especificidade da reificação.

As manifestações fenomênicas que dão visibilidade à mercadoria tornam invisíveis suas


relações sociais constitutivas de valor. Sua forma aparente não coincide com sua realidade
efetiva. Desse modo, o fetichismo significa o desdobramento da vida humana em uma vida
alienada, na qual os humanos se perdem a si mesmos.

4 Limites e contradições da luta política pela emancipação humana

A alienação humana na sociabilidade burguesa é um fato objetivo, constitutivo do modo de


ser estrutural dessa ordem. Com o desenvolvimento das contradições do capital e a
agudização de sua crise estrutural a alienação se radicaliza e a fragmentação do real em
dimensões que aparecem autonomizadas atesta a invisibilidade da relação das esferas de
produção e representação da vida social, expressão da cisão das relações de produção dos
meios necessários à subsistência da vida e as relações e representações construídas pelo
humano acerca dessas relações. O humano é abstraído de sua relação imediata com os outros
humanos e com sua comunidade (MARX, 2010, p. 48). O humano burguês, enquanto
indivíduo que se produz e reproduz pela mediação da esfera política, é o domínio do homem
abstrato, do humano que só se reconhece nas relações constituídas pela forma política,
enquanto forma específica da produção de valor (MASCARO, 2013). “a vida política se
declara como um simples meio, cujo fim é a vida da sociedade burguesa” (MARX, 2010, p.
51).

o homem político constitui apenas o homem abstraído, artificial, o homem como


pessoa alegórica, moral. O homem real só chega a ser reconhecido na forma do
indivíduo egoísta, o homem verdadeiro, só na forma do citoyen abstrato (Marx, 2010,
p. 53).

A tradição marxista posterior a Revolução Russa de 1917 consolidou a luta política das
classes, tendo como mediação o Estado, a via privilegiada da perspectiva de superação da
ordem do capital. Esse caminho representou importantes conquistas num período histórico de
constituição da classe para si.

No entanto, o limite próprio da forma política, determinou uma sobreposição desta sobre a
luta proletária revolucionária. Nesse sentido, faz-se necessária à crítica no “plano prático,
plano que inspirou a planificação, a manipulação da sociedade pelo Estado” (LEFBVRE,
1973, p. 10).

Quanto mais poderoso é o Estado e, portanto, quanto mais político é um país, tanto
menos está disposto a procurar no princípio do Estado, portanto no atual
ordenamento da sociedade, do qual o Estado é a expressão ativa, autoconsciente e
oficial, o fundamento dos males sociais e a compreender-lhes princípio geral. O
intelecto político é político exatamente na medida em que pensa dentro dos limites

164
da política. Quanto mais agudo ele é, quanto mais vivo, tanto menos é capaz de
compreender os males sociais (MARX, 2010, p. 62).

O caráter limitado do intelecto político deve-se justamente ao fato de se constituir enquanto


expressão de relações burguesas. “a ciência burguesa suprimiu os nexos íntimos, essenciais,
entre a economia e a política, e a subordinação ontológica da segunda à primeira” (TONET,
2010, p. 16).

A luta de classes pela extinção do trabalho assalariado subsumiu-se à luta contra as formas de
exploração do capital sobre o trabalho assalariado, pela mediação do Estado, ou seja, pela
mediação da política enquanto forma de respostas no enfrentamento das contradições que não
se resolvem.

Sendo assim, a luta política dos trabalhadores não ataca as contradições fundamentais que
produz sua própria condição de trabalhador. Seu alcance limita-se ao quantum da distribuição
do produto do trabalho apropriado pela burguesia terá acesso, mas não muda a condição de
exploração e expropriação do produto de seu trabalho, bem como da forma estranhada
decorrente.

“Uma negação adequada da alienação é, portanto, inseparável da negação radical das


mediações capitalistas de segunda ordem”, ou seja, do trabalho assalariado (MÉSZÁROS,
2006, p. 82).

Já na Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução, Marx define a tarefa principal da


filosofia como uma crítica radical das formas e manifestações não sagradas da autoalienação,
e ressalta que “a emancipação do alemão coincide com a emancipação do homem”, e que “o
sonho utópico da Alemanha não é a revolução radical, a emancipação humana universal, mas
a revolução parcial, meramente política, que deixa de pé os pilares do edifício”. Nessas idéias
estão contidos os pressupostos para a compreensão da transformação da parcialidade em
pseudouniversalidade, e que a política é apenas um aspecto parcial da totalidade dos
processos sociais, não sendo possível a superação da alienação exclusivamente em termos da
política.

A questão de uma transcendência positiva da alienação no mundo real deve partir da


compreensão de que a forma dada do trabalho (trabalho assalariado) está para a atividade
humana em geral como o particular está para o universal. (MÉSZÀROS, 2006, p. 78).

A luta pela emancipação humana exige a superação da forma política enquanto relação social
própria de uma determinada forma social.

Mas a comunidade da qual o trabalhador está isolado é uma comunidade


inteiramente diferente e de uma outra extensão que a comunidade política. Essa
comunidade, da qual é separado pelo seu trabalho, é a própria vida, a vida física e
espiritual, a moralidade humana. E assim como o desesperado isolamento dela é
incomparavelmente mais universal, insuportável, pavoroso e contraditório do que o
isolamento da comunidade política, assim também a supressão desse isolamento e
até uma reação parcial, uma revolta contra ele, é tanto mais infinita quanto infinito é
o homem em relação ao cidadão e a vida humana em relação à vida política
(MARX, 2010, p. 75-76).

A luta política dos trabalhadores restrita aos limites da ordem burguesa, só pode ter como
consequência a consolidação da concepção burguesa de mundo. Para que a classe
trabalhadora tenha condições de superar as relações sociais existentes, faz-se necessário
romper com a forma política burguesa, de modo que se possa “compreender essas condições
165
na própria realidade, a partir da demonstração de que ‘todas as representações dos homens –
jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas, etc. – derivam, em última instância, [...] de seu
modo de produzir e trocar os produtos” (ENGELS e KAUTSKY, 2012, p. 14-15).

A revolução social emancipatória só pode ser uma totalidade concreta dos humanos em
verdadeira comunidade (MARX, 2010, p. 76), enquanto aparelhos privados de hegemonia
(GRAMSCI, 2000, p. 119) que contenha elementos que perturbe e transgridam o domínio
burguês.

5 Referências Bibliográficas

ANTUNES, R. A Dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: Expressão


Popular, 2004.

ENGELS, F.; KAUTSKY, K. O socialismo jurídico. Tradução de Lívia Cotrim e Márcio


Bilharinho Naves. São Paulo: Boitempo, 2012.

GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere - Os Intelectuais. O Princípio Educativo. Jornalismo. V.


2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.

LEFEBVRE, H. A re-produção das relações de produção. Tradução de Antônio Ribeiro e M.


Amaral. Porto/Portugal: Escorpião, 1973.

MARX, K. O Capital. Volume I, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

______. O Capital. Livro 1, capítulo VI (inétido), ed. brasileira, trad. de Eduardo Sucupira
Filho. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.

______. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Tradução de Jesus Ranieri. São Paulo:


Boitempo, 2004.

______. Trabalho assalariado e capital & salário, preço e lucro. São Paulo: Expressão
Popular, 2006.

______. A Ideologia Alemã. Tradução de Álvaro Pina. São Paulo: Expressão Popular, 2009.

______. Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da Prússia e a Reforma Social”. De um


prussiano. Tradução de Ivo Tonet. São Paulo: Expressão Popular: 2010.

______. Sobre a questão judaica. Tradução de Nélio Schneider e Wanda Caldeira Brant. São
Paulo: Boitempo, 2010.

______. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Tradução de Rubens Enderle e Leonardo de


Deus. São Paulo: Boitempo, 2010.

MASCARO, A. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.

MESZAROS, I. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006.

NAPOLEONI, C. Lições sobre o Capítulo VI (Inédito) de Marx. São Paulo: Livraria Editora
Ciências Humanas, 1981.

166
NETTO, J. P. Capitalismo e Reificação. São Paulo: Ciências Humanas, 1981.

______. Razão, ontologia e práxis. In: Serviço Social & Sociedade, nº 44, ano XV, São Paulo:
Cortez, 1994.

TONET, I. A propósito de “Glosas Críticas”. In: Glosas críticas marginais ao artigo “O rei da
Prússia e a Reforma Social”. De um prussiano. Tradução de Ivo Tonet. São Paulo: Expressão
Popular: 2010.

167
Conferência Estadual da Mulher no Mato Grosso do Sul: uma construção democrática?

Fabiane Medina da Cruz¹

¹ Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD. Grupo de Pesquisa Antonio Gramsci – GEA. Pesquisa
financiada pela FUNDECT/CAPES. medinafabicruz@yahoo.com.br.

Resumo
O presente trabalho foi pensado no sentido de contribuir com o entendimento sobre aspectos
da configuração da relação entre feminismo, Estado e participação política dos movimentos
sociais de mulheres que atuam no Brasil, com a finalidade de compreender melhor essa
relação. Nesse sentindo, optou-se pela escolha do tema de pesquisa, o processo político das
Conferências de Políticas Públicas para as Mulheres no Mato Grosso do Sul, em nível
estadual, abrangendo as algumas das etapas municipais que a constituíram.
Palavras-chave: Movimento feminista, participação política, Estado neoliberal.

1 Introdução

Procuramos pontuar nesse trabalho, que existem estratégias diferentes de influir no


resultado do ambiente da política, que vão de fatores que se configuram pelo êxito ou fracasso
das ações, como também dos modos como se relacionam as mobilizações populares, com a
estrutura do Estado, tanto quanto, com o esqueleto legislativo, e até mesmo, com o grau de
abertura do sistema político que impulsiona. Podendo ainda o resultado das mobilizações ser
fruto da concorrência entre os diferentes interesses que se encontram dispersos dentre o jogo
político (LALANDER, 2010).

Consorte, para compreender melhor o processo de envolvimento de determinada


localidade e suas respectivas articulações no campo da política, é importante considerar, além
do contexto histórico do sistema geral analisado, também os pequenos processos que
conformam eventos maiores de expressão nacional da corrente política. Consequentemente,
essa proposta se funda, de antemão, na maneira como se expressa a natureza organizativa dos
grupos sociais que participam do que conhecemos no Brasil enquanto “construção
democrática”. Objeto de um número significativo da disposição atual das análises e
característica de investigação da teoria social contemporânea, principalmente nas periferias
latinas.

As conferências de políticas públicas para as mulheres é um exemplo de mobilização


desse tipo. Trata-se de uma articulação do movimento de mulheres e feminista que encontra

168
ramificações dentro do Estado. Ao mesmo tempo em que oferece oportunidades ao Estado de
ramificar-se dentro das articulações ‘autônomas’, da sociedade civil.

Muitos estudos consideram esses canais de participação, fenômenos deliberativos


proeminentes, no que tange a “inovações democráticas do repertório político”.

O próprio movimento social (ou as organizações autônomas da sociedade civil) adota


uma postura de bastante veemência em relação ao envolvimento que estabelece com a política
nesse contexto. Criando uma crescente sensação de reciprocidade entre as forças estatais e
coletivas, na atualidade do confronto político.

Dos dez anos que seguiram, ultimamente, muito tem se falado em como esses eventos
têm contribuído para mobilizar a sociedade. Assim como, os efeitos em relação à perspicácia
da ação desses entes coletivos em preencher numerosas plenárias pelo país.

Nesse meio tempo, assistimos, junto à teoria social, uma crescente bibliografia
entusiasta desse tipo de mobilização.

No entanto, apesar do grau de entusiasmo, optamos por pensar essa história a partir de
uma parte da formação das bases que sustentam esse cenário: como se inserem nesses
eventos, as mulheres das classes subalternas?

A realização dessa pesquisa se deu durante o desenvolvimento de um trabalho técnico


contratado pela Coordenadoria Estadual do Mato Grosso do Sul, para mobilização das
Conferências de Políticas para as Mulheres. O projeto chamado de “Apoio à Criação e ao
Fortalecimento de Organismos de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher”, fomentado
pela SPM/PR, a partir do programa 1433 - Cidadania e Efetivação de Direitos das Mulheres
tinha por objetivo, formar subsídios para criação do Primeiro Plano Estadual de Políticas para
as Mulheres, o qual teria materialização a partir do diagnóstico captado dentro do processo de
articulação das conferências.

O trabalho gerou um relatório sobre o “Perfil das Mulheres que participaram da


construção do Plano Estadual de Políticas Públicas para as Mulheres”, entregue ao final do
exercício da função, além de um caderno de campo, em que foram fichados detalhes das
percepções que fazem parte agora, da construção desta pesquisa.

2 Mulheres e democracia

169
A história do movimento feminista tem ligação muito próxima com a democracia e a
participação. Um dos maiores lemas dos direitos da mulher foi o direito ao voto, na chamada
primeira onda do feminismo, substanciado pelo apelo do sufrágio universal. A declaração
Sêneca Falls, nos Estados Unidos, e o projeto de lei de John Stuart Mill, na Inglaterra,
marcam a defesa da participação da mulher na democracia representativa.

Trazendo esse debate para atualidade, destacamos que o ano de 2011 foi o mais
recente calendário para grande parte das mobilizações populares que conhecemos por
Conferências de Políticas Públicas. Esse calendário se repete a cada quatro anos. E a
Conferência da Mulher é uma das mais novas agendas de reuniões dessa natureza, pois,
prematuramente se encontra na sua terceira edição.

A ideia de conferências de políticas públicas tem seu deslanche no legado da


Conferência da Saúde, que data de 70 anos atrás, quando, em 1937 o artigo 90 da lei n.° 378
instaura a cultura da “participação popular” nos espaços democráticos fomentados pelo
governo federal.

No que tange às jornadas da política de gênero, os eventos dessa edição se iniciaram


no mês de Julho, e seguiram-se até a reunião das numerosas delegações, que conciliou cerca
de 3.000 participantes, em Brasília, no final do ano.

Mato Grosso do Sul, foi responsável por 51 dessas participantes. Delegação que foi
sendo filtrada durante os processos municipais e regionais de mobilização pelas cidades do
interior.

Esses processos se sucederam em 21 dos municípios do estado. Dos quais, 14 deles


foram acompanhados presencialmente pela autora desta pesquisa, e se tornaram matéria para a
construção do presente relato.

No total, foram realizadas 24 conferências, sendo três delas, temáticas, onde uma
dessas aconteceu no Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi, e reuniu 30
participantes. De acordo com o quadro geral82 das realizações, 3.291 mulheres participaram
das etapas que construíram a conferência estadual de Mato Grosso do Sul.

A composição das conferências de políticas para as mulheres são instruídas a partir de


um regimento interno, formulado e difundido pela Secretaria Nacional de Política para as
Mulheres da Presidência da República (SPM/PR), que estabelece, entre outras coisas, como

82
Diponível no DOEMS 7.980.

170
devem ser formadas as delegações que irão fazer parte das etapas seguintes de mobilização,
respectivamente, estadual e nacional. Não são todas as mulheres que são levadas às etapas
seguintes, até Brasília, o modelo adotado para a seleção é o modelo de candidatura,
articulação política entre as outras participantes e eleição da representante que irá “defender
os interesses do seu grupo nas reuniões subsequentes”. Para a votação das personagens
políticas, há um conjunto de legendas as quais as mulheres precisam identificar sua
candidatura, ensaiando o pleito tradicional eleitoral.

Cada uma dessas legendas corresponde um setor da “sociedade civil organizada”, que
por sua vez, dizem respeito aos organismos da sociedade, civil e política, fracionadas em
interesses variados. Segundo a descrição dos segmentos sociais que podem compor a
delegação de mulheres até a etapa nacional, as candidaturas precisam alinhar-se entre os
seguintes organismos:

1 Movimento feminista
2 Acadêmicas e pesquisadoras da área de relações de gênero das
universidades
3 Comitês de mulheres de partidos políticos
4 Movimento de mulheres negras
5 Movimento de mulheres indígenas
6 Movimento de mulheres rurais
7 Comitês de mulheres de sindicatos e associações de classe
8 Movimento de mulheres lésbicas
9 Movimento populares de mulheres (associações comunitárias
e moradoras, clube de mães)
10 Conselhos dos direitos da mulher
11 Reeducandas do sistema semiaberto
12 Demais categorias
Fonte: DOEMS 7.980

O regimento estabelece ainda que a composição da delegação deve observar as


dimensões de maioria da sociedade civil, em contrapartida com aquelas que encontram-se
vinculadas ao Estado. Nesse caso a delegação de titulares eleitas para representar as mulheres

171
sul-matogrossenses, que foi a Brasília, contou com trinta mulheres (ou 60%) que
correspondiam à identidade política considerada “Sociedade Civil”. Sendo a outra parcela
preenchida por integrantes do governo, funcionárias de “secretarias parceiras da política para
as mulheres”, e também das gestoras de políticas públicas que atuam nos municípios.
Correspondendo a vinte e uma (ou 40%) delegadas “governamentais”.

3 A participação de gênero nos espaços de governo

Em Mato Grosso do Sul há vinte e seis organismos gestores da política para as


mulheres, sendo um de responsabilidade estadual, e está vinculado a Subsecretaria da Mulher
e da Promoção da Cidadania, sendo os demais 25 outros organismos distribuídos pelas
cidades83, incluindo a capital, Campo Grande. Esses organismos são denominados de
Coordenadorias de Políticas para as Mulheres.

Em geral é uma determinação das diretrizes de implantação, que esses órgãos gestores
estejam vinculados diretamente ao gabinete do poder executivo. Pois dessa forma, acredita-se
dispor de mais ‘autonomia’ em relação às outras secretarias, que, segundo o principal
argumento de criação dos organismos de política de gênero, alimentam outros tipos de
interesses na condução das ações. Centrando ênfase na importância de um órgão específico.

Aliás, ‘autonomia’ é a palavra de ordem da Política para as Mulheres. Na edição atual


das conferências o termo marca a estrutura dos blocos de discussão que ficam divididos em
quatro tipos de autonomias:

Tema 1: Autonomia Econômica e Social: igualdade no mundo do


trabalho e desafios do desenvolvimento sustentável (Eixo 1 do II
PNPM: Autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho com
inclusão social; Eixo 6 do II PNPM: Desenvolvimento sustentável no
meio rural, na cidade e na floresta, com garantia de justiça
ambiental,soberania e segurança alimentar e Eixo 7 do II PNPM:
Direito à terra, moradia digna e infra-estrutura social nos meios
rural e urbano, considerando as comunidades tradicionais).
Tema 2: Autonomia Cultural (Eixo 2 do II PNPM: Educação
inclusiva, não-sexista, nãoracista e não-homofóbica e Eixo 8 do II
PNM: Cultura, comunicação e mídia, igualitárias,democráticas e não
discriminatórias)

83
Lista de organismos de política para as mulheres em anexo.
172
Tema 3: Autonomia Pessoal (Eixos 3 do II PNPM: Saúde das
mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos e Eixo 4 do II PNM:
Enfrentamento de todas as formas de violência contra as mulheres)
Tema 4: Autonomia Política, institucionalização e financiamento
de políticas públicas para as mulheres (Eixo 5 do II PNPM:
Participação das mulheres nos espaços de poder e decisão e Eixo 11
do II PNM: Gestão e monitoramento do Plano) (SPM/PR, 2013, p.
7).

A conferência pelo interior do estado não foi diferente, o tema da autonomia foi o que
substanciou os diários oficiais para a chamada das reuniões municipais.

Autonomia também é a principal justificativa para a criação dos organismos de


políticas de gênero e da sua característica estrutural.

é importante que o mecanismo esteja vinculado à Secretaria-


Executiva, ou estrutura equivalente, como forma de assegurar a
interlocução necessária com todas as áreas da instituição, finalísticas
ou não (SPM/PR, 2011, p. 54).

O fato de a Secretaria de Políticas para as Mulheres ser um organismo de relativa


autonomia em relação às demais secretarias e ministérios, se constitui num fator simbólico
para a teoria política feminista, e é contemplado com bastante entusiasmo no discurso das
feministas técnicas da secretaria. Entre, os argumentos válidos que a justificam está presente
uma certa altivez em relação ao organismo nacional ter contar com status de ministério.

A decisão por vincular os organismos diretamente às secretarias executivas se deve ao


fato de, assim, poder ter mais liberdade (autonomia) no planejamento e condução das ações
formuladas pela pasta, tendo em vista a compreensão por parte do Comitê de Articulação e
Monitoramento do Plano Nacional de Política para as Mulheres, que tal iniciativa favorece na
interferência direta da captação de recursos a partir do Plano Plurianual, no intuito de
influenciar os demais setores do governo com as políticas de gênero. Assim, as metas que são
aconselhadas pelo documento de Orientações Estratégicas para a Institucionalização da
Temática de Gênero nos Órgãos Governamentais, incluem:

173
a) Interferir na formulação do Plano Plurianual em relação à
proposição de políticas que considerem a perspectiva de gênero; b)
Estimular a reflexão conjunta entre as diferentes áreas da instituição a
respeito da incorporação da perspectiva de gênero nas ações
desenvolvidas e em outras que possam vir a ser implementadas,
favorecendo o reordenamento da programação institucional em
direção à transversalização de gênero no conjunto das políticas
desenvolvidas; c) Garantir a articulação permanente entre todas as
áreas da instituição – finalísticas ou não – para o planejamento,
execução e monitoramento integrado de novas ações ou a adequação
de ações já desenvolvidas em benefício das mulheres ou da igualdade
de gênero; d) Desenvolver ações de capacitação das equipes –
permanentes ou não – dos órgãos governamentais na temática de
gênero, raça e etnia aplicadas à elaboração de políticas públicas,
incluindo o planejamento e a dimensão orçamentária; e) Definir, junto
às diferentes áreas, as prioridades de execução anual do Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres e coordenar as atividades de
elaboração das propostas da instituição para as novas versões do Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres. Essa atividade se dá em
momento subsequente à realização das Conferências Nacionais de
Políticas para as Mulheres; f) Capacitar as equipes – permanentes ou
não – para preenchimento do Sistema de Acompanhamento do Plano
Nacional de Políticas para as Mulheres e acompanhar a alimentação
trimestral dessa ferramenta de monitoramento; g) Encaminhar
servidoras/consultoras/estagiárias que apresentem denúncias ou
demandas relacionadas ao aprimoramento das relações internas de
trabalho às instâncias responsáveis (ouvidorias, recursos humanos,
entre outras) e capacitar as equipes dessas esferas para o atendimento
qualificado e humanizado (SPM/PR, 2011, p. 53).

As coordenadorias tem um aspecto então, digamos, pedagógico direcionado às outras


secretarias que tratam de temáticas que se relacionam com a questão de gênero, e que são
atingidas pela fixação da questão da transversalidade.

A transversalidade é a maneira como serão abordadas as ações consideradas


estratégicas pelo movimento de mulheres e feminista em relação à execução da política de
gênero. Segundo consta no documento de Orientações...,

transversalidade é, antes de tudo, um pacto de responsabilidades


compartilhadas que deve envolver, no caso da Política para as
Mulheres, todos os órgãos do governo e todos os entes federativos,
garantindo-se a participação social. Isso porque somente uma ação
174
conjunta de todos os setores pode obter sucesso em mudar a realidade
de desigualdade entre homens e mulheres, tão candente e, ao mesmo
tempo, tão cotidiana em nosso país (SPM/PR, 2011, p. 6).

A transversalidade pode ser entendida também como uma agenda de mudança


cultural, pano de fundo principal da teoria feminista desenvolvida nos últimos tempos, e
perseguida pela ciência política das relações de gênero em diversos níveis de sua mobilização.

O pensamento feminista, se funda pela transformação das mentalidades, e acredita que


o trabalho pedagógico de formular novas consciências, em que as mulheres são reconhecidas
enquanto donas de sua própria autonomia, se finda pela construção de uma nova sociedade,
em que a hierarquia entre os sexos não mais existirá. Foi nesse ponto que as teorias das
democracias contemporâneas se encontraram com a teoria feminista.

As teorias contemporâneas das democracias trabalham sob o mesmo pretexto de que


seja construído um espaço, ao menos em hipótese, onde as hierarquias entre as relações
políticas sejam abrandadas, e que, enfim, as pessoas possam reunir-se para debater quais os
melhores atos serão tomados para resolver impasses como, por exemplo, onde serão aplicadas
as verbas, e quais as emergências de infra-estrutura podem ser sanadas pela administração
pública. Em síntese, essas propostas deparam-se com uma série de limitações. Uma delas e a
mais célebre é que tentam conciliar ideais sociopolíticos dentro de um sistema pouco
humanizado de organização social, como é o sistema capitalista.

Viana (2003) argumenta que os conceitos são históricos e transitórios, entretanto, é


preciso diferenciar entre um conceito expressivo e um conceito antecipador, ou expressão de
um ideal. Pois, há muitas significações para a expressão democracia, “palavra que possui uma
carga valorativa positiva muito grande”.

A democracia burguesa se metamorfoseou em três formas principais, a


saber: a) A forma democrática censitária (também chamada de
“democracia parlamentar” e “estado constitucional”) e “liberal” que
vai até meados do século 19; b) A democracia partidária liberal que
predominou do final do século 19 até a Segunda Guerra Mundial; c) A
democracia partidária burocrática, que se instaurou após a Segunda
Guerra Mundial (VIANA, 2003, p. 37)

175
Um estudo cunhado por um expoente dos modelos participativos de democracia na
América Latina, Leonardo Avritzer, procura destacar uma dessas adaptações da democracia,
tendo em vista realizar os ideais de igualdade e justiça, o mesmo contido nos referenciais da
teoria política feminista, que tem como tema chave a defesa da criação de canais institucionais
de participação dentro do sistema político estatal. Como exercício que faltava para a
legitimação da cidadania, defendido através da ideia de autonomia dos indivíduos. Empregado
enquanto sinônimo de autonomia, o julgo de os indivíduos não serem manipulados pelo
elitismo do sistema de representação, ao mesmo tempo em que exercem controle e influência
ao mecanismo de gestão da sociedade.

4 As conferências e como funcionam

A Conferência da mulher é uma das rodadas participativas de convenções destinadas


aos movimentos sociais de ocuparem os espaços de democracia criados pelo Estado, mas essa
forma de convenção temática não é a única, há conferências para cada um dos recortes de
identidade coletiva na atualidade, além da de gênero. Entre elas, da juventude, idoso,
igualdade racial, etc.

Aqui, a ideia de identidades grupais serem celebradas em espaço público estatal dá


resposta a uma outra formulação bastante em voga, o envolvimento da Sociedade Civil com o
Estado.

Muito se veio questionando a respeito do isolamento do mecanismo estatal em


escolher e aplicar as políticas de bem comum.

Como temos em consideração que o Estado é um ente burocrático e elitizado, as novas


teorias da democracia, procuraram ‘ocupar’ o espaço da comunidade política com substâncias
populares, e uma saída que foi encontrada para preencher esses espaços foi a participação dos
movimentos sociais por via dos canais que visam “democratizar a democracia”. Além dessa
modalidade participativa (as conferências), ainda encontramos outros níveis de organizações
que aceitam essa paridade entre sociedade civil e sociedade política na configuração. São eles,
os conselhos deliberativos e o orçamento participativo84.

No que se tratam das conferências, em síntese, essas convenções funcionam da


seguinte maneira: A população é chamada para fazer corpo nos espaços criados para interação
entre organismo estatal e sociedade civil. O Estado faz divulgação dessa chamada, via edital,
publicada pela imprensa oficial, que logo se estende aos outros tipos de mídia eletrônica,

84
Para maiores detalhes a respeito de quê se tratam os conselhos deliberativos e o orçamento participativo,
consultar trabalhos desenvolvidos por Leonardo Avritzer, Evelina Dagnino e Maria da Gloria Gohn.
176
como sites de notícias e blogs de organizações sociais, sindicais e partidárias. Há uma
articulação institucional que subsidia a difusão entre os organismos interessados, sendo elas,
as demais secretarias governamentais, e as coordenadorias da política de gênero firmadas nos
municípios.

A partir de então, as secretarias, coordenadorias e órgãos parceiros, preparam as


reuniões e divulgam suas chamadas locais, que seguem a mesma orientação das chamadas
nacionais e estaduais. Em síntese, as coordenadorias adaptam seus decretos de convocação a
partir do modelo de decreto nacional e estadual, sucessivamente.

As reuniões mesclam mulheres da população não-governamental, e as funcionárias


públicas, gestoras e servidoras de vários setores do governo.

Parte das mulheres a qual se identificam como ‘sociedade civil’, não possui vínculos
formais com os setores estatais, significa que não estão ligadas ao Estado por via de contrato
de trabalho, como as servidoras e/ou as gestoras, mas não significa que não estão ligadas à
sociedade política de modo geral. Muitas das participantes, ainda, são agenciadas através dos
programas sociais, pois estão incluídas nos cadastros de assistência social – uma secretaria de
envolvimento expressivo com a causa das mobilizações – que divulgam entre as beneficiárias
do bolsa família, data e hora em que acontecerão as reuniões, conseguindo reunir uma
considerável plenária85. As que exercem algum papel de liderança política junto à
comunidade, fazem parte de organizações não estatais institucionalizadas, tais como
Associações (de bairro, rural, da igualdade racial, do trabalho, das localidades residenciais –
como das moradias denominadas ribeirinhas), Sindicatos, Partidos Políticos e/ou Ongs86, etc.

Segundo o governo federal, na figura da Secretaria Especial de Políticas para as


Mulheres, a finalidade da participação dos grupamentos sociais na política pública se define a
partir da seguinte questão:

As políticas públicas são formas de exercício do poder político, que


transformam diretrizes e princípios norteadores em ações, regras e
procedimentos, com o objetivo de incidir sobre a realidade e modificá-
la. Criam mediações entre Estado e sociedade, uma vez que buscam
responder às demandas sociais, passando por um processo de
interpretação pelos atores políticos e técnicos, que dão unidade de
sentido a um fim perseguido, sistematizando diversos elementos
(SPM, MANUAL, p. 3).
85
Por exemplo, em Dois Irmãos do Buriti, das 60 participantes, 17 delas declaram ser beneficiárias do bolsa
família.
86
Ongs/Oscips
177
Potyara Pereira (2008) contextualiza que esse processo de criar mediações entre
Estado e sociedade é a base da teoria política moderna. O exercício de o Estado responder às
demandas sociais emerge da concepção de direitos, formulados por T.H Marshall, e tornou-se
referência nas discussões políticas e sociológicas associadas à teoria da cidadania desde o
período pós-guerra.

As políticas públicas são frutos dessa corrente. É sob essa referência, que se insere a
participação política das mulheres desde os apelos do início do século (a primeira onda do
feminismo).

Essa vertente se apóia na ideia de que os indivíduos são agentes de sua própria
provisão. Sendo que para atuarem como cidadãos, precisa-se um espaço proporcionado pelo
Estado, onde este, se vê obrigado a garantir o acesso às formas práticas da política
governamental.

É nesse sentido que os organismos políticos da sociedade civil são convocados por
parte dos governos, por meio de chamadas públicas, como há citado, para ocupar ‘lugares
enquanto cidadãos’. Sendo que um dos canais de triagem dessas demandas sociais que darão
unidade de sentido a um fim perseguido, correspondem às conferências, como a que
mencionamos nesse presente trabalho.

As conferências são fóruns temáticos de consultas populares que funcionam como


termômetro do envolvimento popular com o sistema de governo em vigor. E muito embora
elas sejam classificadas como ‘novos modelos’ democráticos, pois que juntam perspectivas do
modelo oficial (representativo) com modelos deliberativos e/ou participativos, com efeito,
elas envolvem um público considerável na ideologia do sistema de representação.

5 Conferências da Mulher, inovações democráticas?

O ambiente político é recheado de sentidos configurados pela atuação dos indivíduos e


grupos, que, organizados, buscam identificar as oportunidades de mover-se em direção ao
alcance de alguma influência no cenário político.

Não há dúvidas sobre a contribuição do pensamento feminista nos indícios do


significado de que “ser mulher” tenha variando conforme contextos históricos diversos, e que
178
essas mudanças corroboram no alcance de conquistas da demanda de inclusão do sujeito
feminino nos espaços, marcadamente delimitado ao sexo masculino.

No entanto, “em todas as fases por que atravessou o pensamento feminista ao longo da
sua existência histórica, foi sempre a mulher socialmente privilegiada que exprimiu os anseios
e as demandas feministas” (CYFER, 2010, p. 11).
Desde meados da década de 1980 o movimento feminista vem sendo interpelado por
acusações de exclusão na construção da base de seu engajamento político.

Segundo denúncias desferidas ao movimento, a opção pela doutrina liberal de filosofia


política absorvida pelo engajamento da articulação feminista colabora com a ideologia
dominante do sujeito moderno universal. Nesse caso, a acusação é que a construção simbólica
da mulher universal, assim como, o homem universal, serve aos interesses da classe
hegemônica.

Recentemente acompanhamos de perto, através do movimento de mulheres zapatistas,


no México, que as mulheres não precisam ser romantizadas. E como sujeitos das relações
sociais são também afetadas pelos interesses de classe, dos Estados nacionais e da expansão
capitalista. Aproximando um contingente expressivo às lutas por emancipação da
subalternidade, fazendo frente em antigos redutos masculinos e denunciando projetos de
dominação por meio da negação de propriedades, expropriações e apropriações
epistemológicas, renovando o glossário de significados de ‘ser mulher’ e de ‘luta social’.

Vuorisalo-Tiitinen (2011) sobre o Feminismo Zapa elucida que, se pararmos para


pensar por que sofrem as mulheres indígenas, nos deparamos com uma resposta evidente:
“Por que são mulheres, indígenas e pobres”. A tripla marginalização tornou-se marca do
conceito de gênero do discurso das indígenas revolucionárias zapatistas. Efeito que articula
elementos de etnicidade e classe, e que não se separam da luta pela resistência ao mecanismo
neoliberal de crescimento econômico das nações ocidentais. Segundo investigadores, que
trabalham com o Feminismo Zapa, entre as três categorias que se encontram com a luta
zapatista, classe é a que define melhor a mobilização das mulheres índias mexicanas. Por
suposto, as indígenas que fazem frente na luta do Exercito de Libertação Nacional (ELZN),
procuram não destacar a sua aspiração por autonomia, da luta do movimento que inclui
homens e mulheres na frente de resistência ao neoliberalismo, que acende através do alarde à
divisão internacional do trabalho, através da globalização do território.

O conceito cunhado pelo movimento feminista anglo-saxão, conforme fora criado a


partir da década de 1970, e conhecido mundialmente como conceito principal do feminismo,

179
responde à metafísica do conceito de gênero e das vicissitudes simbólicas de exclusão da
mulher – categoria teórica, sem, infelizmente tocar nos pontos substanciais da realidade em
que vivem essas mulheres, e como estão posicionadas dentro da relação com seus territórios e
localidades regionais, muito menos de pensá-las desde a lógica da mão-de-obra necessária que
sustenta as diferenças entre as classes no terreno da divisão internacional do trabalho.

Helleieth Safiotti, feminista brasileira, especialmente atenta ao antagonismo dentro do


movimento de mulheres no Brasil, descreveu que há um reformismo que emana do interior do
movimento feminista. Assumindo este, um caráter pequeno-burguês, que se contenta com
conquistas de direitos formais, restritos, apelando às insuficientes avaliações de autonomia.
Destaca Safiotti, que “na verdade não existe um feminismo autônomo”, no que tange a
opressão exclusivamente de gênero, como pressupõe grande parte do pensamento feminista
hoje, que procura rotular suas estratégias de mobilização “desvinculado de uma perspectiva de
classe”. Pois, a solidariedade entre as consciências das mulheres, acabam por estar
relacionadas à condição socioeconômica que cada uma procura defender (GONÇALVES,
2011).

E muito embora a ação feminista esteja na vanguarda de potenciais relevantes de


mudança, será apenas a partir da dialética, entre classe, gênero, raça e etnia, que se encontrará
a verdadeira ênfase dos ideais de autonomia.

Safiotti compreende que a partir da tríade que envolve reflexões inseparáveis entre
patriarcado, racismo e capitalismo, desvendaremos que as desigualdades entre homens e
mulheres estão situadas numa ordem determinada pela produção, troca e consumo, que vão
além das evidencias das percepções simbólicas da produção das subjetividades entre homens
e mulheres. Mesmo porque os sujeitos, masculino e feminino estão ambos construídos pelo
esquema concorrencial da identidade que exclui e inviabiliza a existência do outro. E que tais
analogias não se configuram em detalhes.

Pelo contrário, se aplicarmos as arguições levantadas por Safiotti, as mesmas vividas


pelas mulheres indígenas, como há citado, iremos perceber que as demandas assumidas pelo
referencial de gênero do movimento feminista, colabora em manter excluídas as mulheres
reais que habitam territórios que não são os textuais. Mulheres que se encontram à margem do
alcance do “empoderamento”, empregado no discurso da política de gênero. No sentido da
falta de quantidades relativas de sujeitos femininos nos espaços onde são executadas as
políticas, ou seja, na formação de uma forte e articulada Bancada Feminina no congresso.
Mas, sem perceber que a demanda pelo preenchimento dos espaços de poder, não significa

180
ações que modifique a precariedade dos serviços públicos que é acessado, quase
exclusivamente por mulheres, e de baixa renda.

Na conferência de 2011 a coordenadoria de política para mulheres do Mato Grosso do


Sul lançou o processo de mobilizações feministas pelo estado. O Art. 2º, do edital de
convocação lançado no diário oficial prevê a seguinte justificativa para a chamada do
acontecimento:

I - análise da realidade social, econômica, política, cultural e dos


desafios para a construção da igualdade de gênero;
II - avaliação e aprimoramento das ações e políticas que integram o II
Plano Nacional de Políticas para as Mulheres e definição de prioridades
para as mulheres sul-mato-grossenses.

O trecho procura destacar que o plano de políticas para as mulheres no Brasil,


encontra-se em estágio avançado de construção e deliberação, marcado pela definição de
prioridades para as estratégias que representem as mulheres da situação regional.

No entanto, o que merece destaque nesta avaliação, é que a realidade social no Mato
Grosso do Sul é um caso bastante complexo. E do ponto de vista da subalternidade, há uma
demanda por autonomia tanto mais urgente que a simbólica, ainda mais negada e
negligenciada. Trata-se de uma região tradicionalmente agrária e formada por conglomerados
de latifúndios, que faz a sua população expressivamente subalterna.

E muito embora estarmos convencidos a considerar a questão de gênero como questão


de ordem dentro do memorial das lutas sociais contemporâneas, consideramos também, que
temos uma questão sobrepujante que se reflete na realidade social das mulheres desta região,
fazendo da questão local uma questão de impacto preponderante na organização política dos
grupos sociais, incluindo os movimentos de mulheres.

A questão agrária é o centro histórico das dificuldades no Brasil, frente a qualquer que
seja o processo de democratização.

A aliança entre capitalistas e proprietários de terra perpetua a presença viva e atuante


das estruturas do passado e representa um pacto de classes no sentido de coadunar interesses e
bloquear a divisão da terra, o que torna nossa questão agrária um problema nacional, político
e de classe. A ausência de políticas de apoio às pequenas propriedades familiares delimita as
condições sociais no campo contribuindo para que o Estado deixe de privilegiar uma parcela
181
importante do direito à propriedade, e assim assegurar mão-de-obra barata e abundante para a
camada dominante (ALMEIDA, 2009).

Segundo fontes do IBGE, o estado do Mato Grosso do Sul é segundo estado em nível
de expansão da safra de cana-de-açúcar, com aumento da área plantada em 36%, ou 78.439
hectares, se comparados no movimento das culturas de feijão, café e arroz, que apresentam
retração de 73,49% entre o período de 1990 a 2007. Demonstrando que vem crescendo
progressivamente a expansão de culturas empresariais em detrimento do condensamento de
cultivos de alimentação, desenvolvidas especialmente pelo trabalhador/a camponês/a (Idem).

Outros indícios que o latifúndio é privilegiado pela política de Estado está presente nas
operações de crédito que foi disponibilizado para o setor rural no ano de 2008 em forma de
refinanciamento de dívidas que beneficiaram 2,8 bilhões de contratos. Medida provisória
sancionada durante o governo Lula que refinanciou R$ 66 bilhões dos empresários rurais,
contra R$ 13,4 bilhões da agricultura familiar e assentados da reforma agrária. Por sua vez, o
mercado de terras vem exorbitando o valor médio do ha em cidades como Três Lagoas pólo
do setor da produção da celulose e papel, que salta do valor médio de R$ 1.200,00 atingindo a
cota de R$ 3.713,00 na negociação entre empresas como a Internacional Paper e Votorantim,
para a construção da maior fábrica de papel e celulose do mundo, entre 2003 e 2005. Sendo
que no entorno da cidade o hectare varia entre 60 e 100 mil reais segundo fontes disponíveis
em Almeida (2009).

Por outro lado, crescem as denuncias de que a reforma agrária está parada e que o
governo federal deste período, não atingiu a meta de assentar 400 mil famílias como previsto
no II Plano Nacional de Reforma Agrária – IIPNRA (IDEM).

Kliksberg (2007) relata que um conjunto de desigualdades interage, fortalecendo-se


umas às outras e criando círculos perversos de inequidade. Esse conjunto de eventos levam
que os jovens e crianças pobres não terminem seus estudos primários, logo não conseguem
mais do que trabalhos marginais e mal pagos, não têm proteção social, e tendem a formar
famílias que reproduzem as condições de pobreza iniciais. Por outro lado, as grandes
desigualdades embargam a mobilidade social, disseminando desesperança e impotência.

Esses elementos concorrem em produzir um “reflexo em termos de participação e na


tomada de decisões”. Desse modo, “debilidades socioeconômicas severas significarão
carência de informação, educação, acesso a redes influentes, contatos limitados, gerando,
assimetrias de poder que reforçam as assimetrias socioeconômicas e vice versa” (p. 546).

O autor citando uma análise recente da Universidade de Havard indica que,


182
em sociedades muito polarizadas pela desigualdade, amplos setores
têm limitada informação, pouca capacidade de organização, e são
débeis para monitorar os grupos minoritários que concentram os
ingressos. E nas elites, por sua vez, este quadro de poder concentrado
com pouco controle social pode gerar incentivos para práticas
corruptas, porque cria uma situação de quase impunidade
(KLIKSBERG, 2007, p. 546).

E apesar dos avanços dos processos de democratização, com uma participação mais
progressiva e tecnicamente mais inclusiva, que muitas vezes são impulsionadas inclusive, por
lutas populares, das sociedades civis cada vez mais ativas e articuladas na América Latina na
exigência por sistemas políticos que dêem mais garantias ao cidadão, pressionando por
maiores comprometimentos das lideranças políticas e estabelecimento de canais de controle
do envolvimento do Estado com as demandas sociais. À frente pelo pulsar de um novo perfil
descentralizado das regiões e municípios, mantém-se por detrás dessa ações, altos níveis de
pobreza e pobreza extrema que continuam exaltadas, apesar do crescimento econômico dos
últimos anos.

Em sua obra “18 Brumário de Luis Bonaparte”, Marx assinala que uma definição
descritiva de identidade coletiva87 transverte seu significado, de forma que seja empregado
sob formas de distinção de hierarquias, ou como status diversificados entre os grupos, em
sentido de sua pertença, ou identificação. Isso faz com que os membros dos grupos que foram
distinguidos (em sentido inferior), sirvam de contraste àquele que foi privilegiado, não em
função de criar uma identificação capaz de unir forças revolucionárias entre elas, mas como
elemento que fragmenta o reconhecimento dessas energias.

Gramsci procura refletir que todos os homens88 são intelectuais (GRAMSCI, 1979, p.
07). No entanto, apenas alguns ocupam o lugar de intelectual na sociedade. Isso implica numa
forma diferente de identificação do status social de certas pessoas. Implica também que esse
grupo de pessoas, será responsável por formular conceitos acerca de outrem. Definições que o
formulador quando não parte da proximidade das condições reais de vida do sujeito descrito,
concorre por mantê-lo no lugar de objeto89, ou aquilo que lhe é exterior. Reduzindo realidades
em assuntos, matéria, escopo de pesquisa.

87
em sentido literal ele utiliza “de classe”.
88
Infelizmente, naquele período, a literatura e produção de textos não contavam com uma linguagem inclusiva e
não sexista. Desse modo, utilizavam a palavra ‘homem’ para caracterizar o ‘ser humano’. Hoje em dia, apesar
várias inquietações a respeito da norma ‘masculino padrão’ da escrita, ainda não chegamos ao ponto de
desenvolver um vocabulário válido e consensual dessa proposta linguística.
89
hoje em dia não é mais correto se falar em objeto, o termo foi substituído por sujeito na virada
lingüística do início do século, mas quanto ao significado, há várias controvérsias de que esse jogo
183
Para ilustrar, consideremos que o Plano de Política para as Mulheres, são propostas de
“melhorias das condições de vida das mulheres” que pertencem ao conjunto da população
geral das mulheres da nação. Logo, as condições de vida dessas mulheres fazem parte do que
são chamadas de questão de cidadania. Tomemos a questão da cidadania, conforme delimitam
seus conceitos, como uma questão de alargamento das garantias sociais e políticas à
população. Em contraste ao alcance efetivo das políticas do Estado em direção às classes ou
grupos subalternos.

Se tomarmos a dimensão do significado de subalterno, utilizado pelo gênero, podemos


acreditar num saldo positivo da participação da mulher, se balanceado pelo resultado bruto do
alcance de inclusão abstrata (política de inclusão de gênero) das garantias políticas da
população geral de mulheres (participação da mulher na esfera pública).

Muitos estudos que tratam do assunto, assim como a política de gênero praticada por
organismos feministas, assumem tal risco. Pontuando as conquistas e as principais mudanças
que auferiram na “cultura política”, no que chamam de “gênero nos espaços de poder”. Esses
estudos, grosso modo, fazem isso parecer um caso progressista de inclusão de um “ator” –
antes banido, ou impedido – de conseguir, enfim, transitar da condição de figura domesticada,
à condição de figurante político.

Mas, se nos perguntarmos: o que é gênero? E porque ele foi parar no Estado? Ou,
quais os potenciais de mudança que o gênero propõe para a questão das filas de emprego,
hospitais, creches?

Quantas creches, escolas, ônibus escolares a teoria de gênero propõe para as mulheres da
periferia? Quantas mães indígenas são contempladas pelo “empoderamento da mulher”?

Ao fazer essas perguntas, nos deparamos com as perspectivas do feminismo zapa,


observamos que as mulheres das periferias muito se identificam com as noções de classes
sociais e apresentamos uma proposta:
Lembra Gramsci que,

sobre os ‘planos políticos’ ligados aos partidos e movimentos sociais


que atuam no governo, eles não podem ser elaborados e fixados
precedentemente em todos os detalhes, mas só no seu núcleo e rasgo
central, porque as particularidades da ação dependem, em certa
medida, dos movimentos do adversário (GRAMSCI, 1980, p. 14).

tenha mudado, e que sujeito signifique dono de sua significação. Maiores detalhes dessa conversa
podem ser acompanhados em Spivak, Cyfer, Said, etc.

184
Assim, a solução entre racionalidade e reflexão ponderada, só pode ser encontrada na
identidade entre política e economia. “A política é ação permanente e dá origem a
organizações permanentes, na medida em que efetivamente se identifica com a economia”
(IDEM, p. 14). Desenvolvendo uma reforma cultural, uma elevação da condição civil das
camadas mais baixas da sociedade. Isso só pode ser possível se a modificação social estiver
andando junto com o programa de reforma econômica.

Mas quando a política é determinada por um Estado liberal, uma visão dogmática, e
não dialética toma conta do conceito de Estado, sendo o seu melhor designo a expressão de
“guarda noturno”, isto é, uma organização coercitiva e tutelar do desenvolvimento dos
elementos da sociedade. Isso não significa o surgimento de um novo liberalismo, ou
neoliberalismo, mas sim, “uma era de liberdade orgânica” (IBIDEM, p.150).

Portanto, o mais importante é fazer a leitura coerente dos processos de participação


popular. Muito mais do que crer estar criando formas autônomas e originais de cultura
política. Pois,

criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente


descobertas “originais”. Significa também e especialmente difundir
criticamente verdades já descobertas, “socializá-las”, por assim dizer e
fazer com que se tornem em bases de ações vitais, elemento de
coordenação e de ordem intelectual e moral. Que uma massa de
pessoas seja conduzida a pensar coerentemente e de uma maneira
unitária o real presente é um fato “filosófico” bem mais importante e
“original” do que a descoberta, feita por um “gênio” filosófico, de
uma nova verdade que permanece patrimônio de pequenos grupos de
intelectuais (GRAMSCI, 1974, p. 28).

É compreensível que o apelo pelo entusiasmo de presenciar espaços institucionais, que


antes eram extremamente fechados à permeabilidade de blocos e camadas sociais, hoje tenha
alguma relação com os setores da população na construção de seus governos. No entanto, não
há como negar que esses espaços ainda são restritos à atuação dos movimentos populares em
questão de incluir demandas da sociedade mais geral, em vista dos serviços ofertados pelos
governos em suas localidades distintas.

6 Considerações Finais
185
Em síntese, as estratégias de participação não são suficientes para se consolidar dentro
do plano liberal representativo. Por enquanto apenas servem para consolidar o ideal de
autorização. Pois os movimentos societários quando se vinculam ao sistema liberal perdem
seus caracteres de autonomia, conforme observa Pereira (2007).

Hoje o grande desafio é a criação de um modelo democrático que favoreça a


participação política e a inserção das classes e grupos subalternos nos temas da política. Tal
problema pode-se dizer que foi gerado pela necessidade de controle constante dos
representantes nas tomadas de decisões coletivas.

Ao exame dessa perspectiva o que ainda continua ambíguo é o movimento de


mulheres ou feminista.

Há várias abordagens para o movimento em questão, podemos arriscar que


basicamente ele se fragmenta em tantas proposições quanto à teoria geral dos movimentos por
identidade.

No artigo de MacAdam, Tarrow e Tilly os autores consideram que “o movimento das


mulheres desempenha um trabalho de reconhecimento ou mudança de identidades coletivas”
(Idem, 2009, p. 23), e chama atenção que isso não é uma invenção dos ‘novos’ movimentos
sociais dos anos 1980, pois que existe um trabalho de criação de identidade acontecendo entre
muitos grupos desde o início do século XIX. Já Domingues (2007), por exemplo, observa que
o movimento feminista, poderoso nos 1980, se ongizou e declinou em termos de criatividade e
mobilização cultural e política (IDEM, p. 183).

Dessa forma, a sugestão da atuação do movimento no Brasil é de que as estratégias


adotadas pelo movimento feminista se inscreve à guisa de reformas e mudanças importantes a
nível cultural de denúncia dos abusos e invisibilidades das mulheres na historia social,
relegando o sujeito feminino a espaços de tutela do sistema patriarcal. Estratégia que ocupou
lugar de destaque na ‘abertura política’ ou redemocratização dos espaços de decisão,
promovendo resistência e insistência espetacular na busca pela adição das flexões de gênero
ao conceito de cidadania, trazendo à tona, demandas de todos os sujeitos excluídos e
subalternizados, a exemplo do movimento negro por direitos civis e inclusão histórica
nacional.

No entanto, a configuração do movimento feminista sob bases liberais de política


estatais, acabou criando uma enorme lacuna entre as mulheres participativas dos setores da
elite, e as mulheres das classes subalternas. Uma vez que o sistema burocrático e elitista da

186
democracia moderna e os modelos limitados de democracias tendenciais, não dispõem de
espaço para as bandeiras das classes trabalhadoras.

Outra característica que se formou do movimento feminista, foi sua forte relação com
o sistema de mercado, sendo essa a principal perspectiva que o vincula às políticas estatais.
Confundindo os conceitos que trabalha de autonomia.

Em síntese observa-se que existem classificações pontuais entre novas atitudes e


atitudes tradicionais, mas o caso do movimento feminista é um caso emblemático, visto que
não se posiciona dentro do terreno das lutas de classes e nem são de todo ‘novas’ (nem tão
originais) as suas posições atuais.

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188
Educação Popular e Estado: contribuições para uma nova democracia

Betânia dos S. Cordeiro¹

¹ Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS – Porto Alegre-RS – bcordeiro_es@yahoo.com.br

Resumo
Entendida como conceito, meio e ferramenta, a Educação Popular é debatida, no presente
artigo, a partir de sua contribuição no fortalecimento da participação popular, do poder
popular e da radicalização da democracia. As problematizações que dão sustentação ao
trabalho dizem respeito, especialmente, às categorias Estado, Educação Popular, sociedade
civil, movimentos sociais, participação popular, poder popular e democracia. O foco está na
relação da Educação Popular e seus atores com o Estado, principalmente, a partir da década
de 1990, no Brasil. Situa-se, brevemente, o percurso histórico da Educação Popular, no
Brasil e também apresenta-se uma sintética definição de Educação Popular. Em um outro
nível, busca-se situar o contexto sócio-histórico da relação entre a Educação Popular e o
Estado; aborda-se o período de revisão conceitual, metodológica e estratégica enfrentado
pelo campo da Educação Popular e conclui-se apontando a relevância da Educação Popular
na construção de uma cultura de incidência em políticas públicas e de participação.

Palavras-chave: Educação Popular; Estado; Democracia; Participação Popular.

1 Introdução
Eduardo Galeano, escritor uruguaio que costuma surpreender leitores por falar da realidade por meio
da ficção, um dia propôs um mundo ao avesso90. Trata-se do mundo que Alice deixa para trás ao
seguir o coelho até o País das Maravilhas, ou seja, este mundo. E Galeano é preciso ao descrevê-lo:
o mundo ao avesso nos ensina a padecer a realidade ao invés de transformá-la, a
esquecer o passado ao invés de escutá-lo e a aceitar o futuro ao invés de imaginá-lo:
assim pratica o crime, assim o recomenda. Em sua escola, escola do crime, são
obrigatórias as aulas de impotência, amnésia e resignação. Mas está visto que não há
desgraça sem graça, nem cara que não tenha sua coroa, nem desalento que não
busque seu alento. Nem tampouco há escola que não encontre sua contraescola.
(GALEANO, 2010, p.08)
Ao mesmo tempo em que anuncia o mundo ao avesso, o autor também proclama a esperança
lembrando que tudo tem dois lados ou mais, que as alternativas sempre existem, nem que precisem ser
criadas. Este texto vem falar de alternativas. Vem falar de uma Educação Popular que caminha na via
da criação. Na via da resistência e da criatividade (NASCIMENTO, 2013). Na via do avesso deste
mundo ao avesso.
Falar em alternativas significa projetar outro mundo, diferente do que estamos vivendo. Implica,
necessariamente, falar em mudanças. Há mais de quatro séculos a sociedade vem se organizando por
meio do sistema capitalista, que se altera com o tempo, mas, como já sinalizava Mészáros (2004), não
rompe as cadeias do capital. Na atual fase de acumulação do capital, convivemos com altos índices de
desemprego, com a flexibilização do trabalho, com a globalização da economia, com o fortalecimento

90
“De Pernas Pro Ar: A escola do mundo ao contrário”, 2010, L&PM Editores

189
do capital financeiro, com o aumento da concentração da renda, com a rápida degradação do planeta,
com o crescimento exponencial do consumo, com a mercantilização da cultura, da arte, do lazer e das
subjetividades.
O neoliberalismo – nome próprio desta fase do capital – comemora como vitória do sistema o aumento
da produtividade, o avanço tecnológico, a popularização de bens culturais. Entretanto, essas
“conquistas” adquirem aspecto positivo somente quando analisadas isoladamente. Observadas no
conjunto da organização social do planeta, elas são peças de uma engrenagem marcada por intensa
desigualdade, violência e opressão dos seres humanos. O aumento da produtividade, por exemplo,
beneficia a poucos e não a maioria. Analisado numa perspectiva humana e não mercadológica, ele vai
de encontro aos interesses globais (PLASTINO, 2005). De fato, numa perspectiva humanista, não há
mesmo que se falar em vitórias.
Não é do interesse da Humanidade um sistema que aumenta as desigualdades entre
indivíduos, países e regiões, que incentiva mais a produção de bens supérfluos do
que de primeira necessidade, que acelera a concentração de riqueza e a
oligopolização da economia, que exacerba a violência multifacética, degrada a ética
social e faz dos seres humanos inimigos na luta impiedosa pela sobrevivência em
sociedades nas quais a solidariedade fica reduzida a iniciativas caridosas. O aumento
do desemprego, da marginalidade, da desassistência, da violência, do desespero, da
solidão, do consumo maciço de drogas – legais e ilegais – e do alcoolismo não é o
resultado provisório de um processo de ajuste e muito menos um fenômeno isolado,
desvinculado das políticas praticadas pelo neoliberalismo hegemônico. (Ibidem,
p.123)
Esse complexo cenário é a continuidade da hegemonia do capital que tem, segundo Mészáros (2004),
como núcleo central do seu metabolismo social o tripé: capital, trabalho assalariado e Estado.
Modificar essa hegemonia, com vista a construção de outra sociedade, é tarefa que implica mudanças
nessas três dimensões.
O avanço deste pensamento está na constatação de que não basta somente suplantar o capitalismo
enquanto sistema econômico – como aconteceu com as sociedades pós-capitalistas do Leste Europeu –
é necessário uma transformação na forma de se conceber o trabalho, a propriedade e a mercadolização
da vida. Esta transformação radical exige mudanças econômicas, sociopolíticas e também culturais. É
preciso “questionar, criticar e transformar o núcleo primário dos valores e significados que habita no
mais profundo dos costumes, dos hábitos e modos de viver e pensar na sociedade capitalista”
(NASCIMENTO, 2011, p.74). É preciso reinventar o modo de viver e conviver.
No grande universo de possibilidades de reinvenção do modo de viver, a Educação Popular se
apresenta como uma concepção político-teórico-metodológica de educação para a construção de
mundos possíveis. Paulo Freire, reconhecido por seus estudos e militância na área, tendo o olhar
apontado para uma outra sociedade, apostava na ação educativa como forma de vencer a imobilidade
do pensamento hegemônico neoliberal. Com clareza da dimensão contraditória e dialética do ato
educativo, afirmava que “se a educação não pode tudo, alguma coisa fundamental a educação pode. Se
a educação não é a chave das transformações sociais, não é também simplesmente reprodutora da
ideologia dominante” (FREIRE, 2006, p. 112).
Ao destacar em seus estudos e práticas a dimensão política da educação, Freire nutria a Educação
Popular de elementos políticos e pedagógicos com potencial de transformar a realidade e de recriar
novas formas de poder. Para além de um método de alfabetização e ensino, a Educação Popular
passava a ser um emaranhado de conceitos e práticas capaz de propor outra forma de interlocução
entre a formação de pessoas e a atuação política na sociedade. Estamos, de fato, falando de uma
pedagogia liberta do cárcere do ensino e devolvida à aprendizagem e a ação (MEJÍA, 1994).
Negando o saber imposto e reconhecendo o saber das experiências, Freire defende o conhecimento
criado a partir do diálogo e fortalece a perspectiva democrática do ato educativo. Ao invés de amputar
a capacidade dos seres humanos de imaginar e criar alternativas, a Educação Popular pode dotá-los de
ferramentas intelectuais e éticas para se desenvolverem politicamente, para terem mais autonomia,
190
para se protegerem da chamada “aderência” (FREIRE, 2005), para tomarem suas decisões de maneira
mais consciente e menos imposta. Por meio dela, pode estar sendo dado um passo a mais na direção da
consolidação de uma democracia mais radical e menos formal.
Relacionar a Educação Popular à radicalização da democracia, nos leva, forçosamente, a relacioná-la
também ao debate sobre o Estado. A disputa do Estado, sua transformação ou mesmo sua supressão
são desafios que se colocam no horizonte da luta por outra sociedade. Sader (1999) complexifica o
debate sinalizando a existência de diferentes níveis de democracia que podem se dar em cada projeto
de Estado. Neste ponto, o cerne da questão não é somente o aparelho institucional, mas sim as relações
de poder que ele articula.
Pensar a crise das nossas sociedades a partir do Estado é um ponto de partida
possível, contando que ele seja considerado a ponta do iceberg das relações sociais e
políticas, e não um aparato formal desvinculado e contraposto à sociedade civil e às
classes sociais (Ibidem, p. 129).
Para o autor, os principais objetivos de um “Estado democrático” seriam ampliar e garantir os direitos
básicos de cidadania; regular o mercado e articular, em escala mundial, o processo de socialização do
poder. Avançando um pouco mais, Sader fala de um “Estado radicalmente democrático” que atuaria
em um movimento de integração social, “que supõe um redirecionamento econômico em função do
mercado interno”, e de redistribuição de renda. Também atuaria num movimento para fora, na busca
de “afirmação da aliança dos setores majoritários da população com forças similares em outros
países”.
Sair de um Estado mínimo, como o que tem sido desenvolvido em tempos de neoliberalismo, até um
Estado forte capaz de garantir e produzir processos de socialização da política e do poder é uma luta
permanente que os movimentos sociais e populares têm travado.
Nesta linha, a Educação Popular tem constituído um campo no qual o Estado é disputado, no Brasil e
em outros países da América Latina. Atualizar o debate que envolve a Educação Popular e o Estado é,
segundo Streck, “uma reflexão que traduz o atual estágio da Educação Popular, quando esta se debate
entre incidir nas políticas públicas e muitas vezes, paradoxalmente, assumir a crítica da ineficiência e
ineficácia dessas políticas e da atuação dos governos” (STRECK, 2013, p. 365).
Para seguir na reflexão sobre a relação entre Estado e Educação Popular, nos parece necessário uma
contextualização a respeito dos dois campos. A tentativa a seguir é de situar histórica e politicamente
esta relação, no Brasil.
2 Educação Popular: surgimento e definição
Autores apontam diferentes momentos históricos que poderiam servir de marco zero para o que temos
chamado de Educação Popular. Para Conceição Paludo (2001), o início da modernidade brasileira é
um possível cenário para o nascimento de uma outra abordagem educativa, com um viés mais popular.
Embora a maioria da literatura se fixe nos anos 1960/1970 e parte dos anos 1980 na
realização dos estudos e debates sobre a concepção de Educação Popular, é possível
localizar a emergência desta concepção desde antes da Proclamação da República, no
bojo do movimento forte das lutas pela libertação dos escravos, na prática do
movimento socialista, composto em sua maioria por brasileiros, que foram os que
hegemonizaram (1889-1909) o nascente movimento operário daquele período.
(Ibidem, p. 84)
Raúl Mejía volta ainda mais no tempo ao afirmar que, se Paulo Freire é o pai da Educação Popular, o
seu avó seria Simón Rodrígues91. “É importante reconhecer na Educação Popular não uma prática de
agora ou dos últimos quarenta anos, mas uma dinâmica que, nos últimos duzentos anos, tem estado
presente na teia social da América Latina” (MEJÍA, 2009, p .206).

91
Filósofo e educador venezuelano, nascido em 1769, foi professor de Simón Bolivar.

191
Há ainda uma infinidade de autores que localizam este despertar de uma nova concepção educativa, na
década de 60, no Brasil, com um movimento liderado por Paulo Freire, a partir do Nordeste, e que se
espalharia pelo Brasil, até a instalação da ditadura militar92 e por outros países.
Passados alguns anos, ou séculos (a depender da abordagem), as disputas e as tensões que atravessam
a Educação Popular promovem alterações nas suas perspectivas pedagógicas, nas suas práticas
metodológicas, nos seus atores, mas, aparentemente, há características permanentes que dão
consistência à Educação Popular e fazem ser possível afirmar que ela não findou com a chegada do
século XXI. Ao contrário, se estruturou como um campo de conhecimento com um acumulado
próprio, estabelecido desde o sul do planeta, caracterizando um paradigma latino americano
pedagógico marcado pela identidade, pela história, pelo contexto e pela luta no continente (MEJÍA,
2013).
Sendo assim, é possível falar de elementos que caracterizam a Educação Popular. Recorremos a
Zitkoski (2011) para uma síntese desta definição93. Segundo o autor, a Educação Popular é um
trabalho de base orientado pela distinção de classes sociais; é ação que objetiva organizar política e
socialmente as classes trabalhadoras; é a atuação consciente dos trabalhadores na defesa de seus
direitos; é um processo educativo que liberta o homem em todos os sentidos, conscientiza e promove a
participação política; está voltada para a realidade do povo; é uma educação que promove autonomia;
se realiza a partir do nível sociocultural dos educandos; é vivenciada através dos saberes dos
educandos, por meio do diálogo; está articulada com os movimentos sociais para potencializar o
projeto de transformação social.
Desta definição, podemos destacar dois elementos que são chão para a caminhada da Educação
Popular: o contexto político, social, cultural e econômico no qual ela se realiza e a possibilidade de
transformá-lo. A Educação Popular acontece em um momento histórico definido e nem poderia ser
diferente, se partimos do pressuposto de que sua razão se define pela contestação e resistências à
realidade injusta (CARRILLO, 2013), se dando mediante ao diálogo e a partir das experiências dos
atores envolvidos no processo educativo (FREIRE, 2005).
Ao ser ferramenta de compreensão e análise da realidade opressora (função conscientizadora94), a
Educação Popular é também instrumento para a organização social (função organizadora) e,
consequente, transformação da realidade. Em última análise, a instrumentalização da Educação
Popular deveria procurar “uma maior inadequação ao sistema opressor e, ao mesmo tempo, uma
adequação maior aos processos através dos quais se mobiliza a ação transformadora” (BARREIRO,
1974, p. 23).
Entendendo a realidade como ponto de partida da Educação Popular e a transformação da mesma
como ponto de chegada, temos no meio deste caminho uma série de elementos que combinados geram
os conflitos e as tensões próprias dos processos dialéticos de transformação. Desta forma, nos interessa
reconhecer e analisar as constantes disputas e mudanças nas correlações de força dentro da sociedade
que vão dando forma ao que temos chamando de Educação Popular ao longo dos anos. E este percurso
é longo e cheio de meandros. Por isso, tentaremos, a seguir, situar o contexto sócio-histórico desta
reflexão.
3 De que momento histórico estamos falando?

92
O golpe militar acontece no Brasil em 1 de abril de 1964. O país passa a viver sob uma ditadura civil militar
que interrompe o fluxo de um governo com tendências populares, persegue os movimentos sociais e os
partidos políticos e exila lideranças, como Paulo Freire.
93
Para a elaboração de nove itens que definem a Educação Popular “enquanto um paradigma de educação
engajado politicamente junto aos movimentos sociais populares”, Zitkoski utiliza escritos de Carlos
Rodrigues Brandão, Paulo Freire e Raúl Mejía (ZITKOSKI, 2011, p. 20).
94
É de Moacir Gadotti a classificação das funções da Educação Popular, em GADOTTE & TORRES, 1992).

192
No Brasil, especificamente, no curso do século XX, o debate da Educação Popular vai ganhando
vigor. A partir da década de 30, vai se concretizando no país um projeto de desenvolvimento
econômico, baseado na substituição de importações, acompanhado da ideologia do nacional
desenvolvimentismo (PALUDO, 2001). Ao final de 30 anos, eram altas as taxas de analfabetismo e
vinha-se de um histórico de políticas públicas na área da educação com foco na formação de mão de
obra qualificada ou semi-qualificada para o mercado de trabalho e para a indústria, em expansão.
Tratava-se de uma formação técnica e aligeirada, que não só não formava os homens nas dimensões
técnica, cultural e social (NASCIMENTO apud FISCHER & TIRIBA, 2011), como os mutilava
cognitiva e politicamente.
Da organização dos movimentos sociais e do questionamento a este projeto de desenvolvimento, na
década de 1960, temos registradas importantes experiências educativas que vão atualizar a proposta
educacional executada na época e dar robustez à Educação Popular, no país. Citamos algumas delas:
em 1960, temos a criação do Movimento de Cultura Popular, no Recife; em 1961, a campanha “De pé
no chão também se aprende a ler”, em Natal; também em 1961, a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil cria o Movimento de Educação de Base; em 1962, temos a Campanha de Educação Popular da
Paraíba e a Campanha de Alfabetização da UNE; em 1963, acontece a famosa Experiência de
Alfabetização de Adultos pelo Sistema Paulo Freire, em Angicos e em 1964, a criação do Plano
Nacional de Alfabetização, iniciado no Rio de Janeiro.
Esses movimentos operaram um salto qualitativo em relação às campanhas e
mobilizações governamentais contra o analfabetismo de jovens e adultos ou de
educação de base, promovidas na década de 50. Foram propostas qualitativamente
diferentes das ações anteriores. E o que as fez radicalmente diferentes foi o
compromisso explicitamente assumido em favor das classes populares, urbanas e
rurais, e o fato de terem orientado sua ação educativa para uma política renovadora.
(FÁVERO, 2000, p. 160)
Aparentemente, a maior parte das experiências educativas populares que tiveram destaque na história,
nestes anos, estavam relacionadas ao ponto de chegada que falávamos: a transformação da sociedade
capitalista. Eram experiências que tensionavam no sentido de garantir avanços sociais, econômicos e
políticos favoráveis às classes subalternas; vinculavam-se aos movimentos sociais organizados e
tratavam de demandas coletivas, ligadas a necessidades estruturais de contingentes de pessoas carentes
(GONH, 2013).
Outro vínculo importante a ser ressaltado é o existente entre estas experiências e o Estado. Neste
momento, houve apoio, financiamento e incentivo do Estado para a realização de atividades pautadas
por um novo ideário educativo. Exemplo disso é: ainda em 1963, a Educação Popular foi base para a
realização do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), criado no governo de João Goulart. O
projeto, capitaneado por Paulo Freire, tinha a meta ousada de alfabetizar milhares de adultos por meio
da criação de 20 mil círculos de cultura, que aconteceriam, a princípio, nas áreas urbanas e
posteriormente nas zonas rurais.
Mas, embora partisse de uma relação estreita com as forças progressistas que governavam o país neste
momento, a Educação Popular fincava suas raízes, profundamente, nos movimentos sociais estando
comprometida com a classe trabalhadora e tensionando as disputas na sociedade em favor dela.
“Embora continuassem sob o patrocínio do Estado, sob seu financiamento, esses movimentos
transcenderam o controle estatal e imiscuíram-se na sociedade civil, aprofundando suas raízes”.
(SCOCUGLIA apud STRECK, 2010, p. 301).
Fruto da disputa de projetos de sociedade, irrompe no Brasil, em abril de 1964, o golpe civil militar
que marcará a história do país pela violenta repressão aos movimentos sociais e organizações
populares e pela abertura econômica ao capital internacional. O caráter autoritário e arbitrário da
ditadura esvazia quase que totalmente o poder popular de diálogo, participação e intervenção no
Estado. Da mesma forma, a proposta educacional que vinha sendo desenvolvida no país é atingida
com toda a força pelo golpe. Os anos seguintes ao golpe, são marcados pela reorientação da política
educacional e pelo arrefecimento das influências da Educação Popular. Em 1967, o governo militar
193
cria o Movimento Brasileiro de Alfabetização95 (MOBRAL), que se desenvolve na contramão do
Programa Nacional de Alfabetização e das bases epistemológicas anunciadas por Paulo Freire desde
sua tese96. A política educacional passa a ter como base a Teoria do Capital Humano e foco na
formação tecnicista.
Ainda assim, as experiências de Educação Popular que restaram podiam se divididas em, pelo menos,
dois grupos:
no final dos anos 50, duas eram as tendências mais significativas da Educação
Popular: a primeira entendida como educação libertadora, como "conscientização"
(Paulo Freire) e a segunda, como educação funcional (profissional), isto é, a
formação de mão de obra mais produtiva (Unesco). Na década de 1970 essas duas
correntes continuaram, a primeira entendida basicamente como educação não-
formal, fora da escola, e a segunda, como suplência da educação formal.
(GADOTTI, 2013, p. 2)
A década de 70 chega anunciando no cenário internacional uma grave crise econômica, com a
estagnação do crescimento de países chamados de Primeiro Mundo e altas taxas de inflação. O Estado
de Bem Estar Social, implementado em alguns países após a Segunda Guerra Mundial e caracterizado
pela intervenção do Estado na economia e na promoção de direitos sociais, também se vê em crise. Há
a emergência dos chamados novos movimentos sociais, que questionam, basicamente, a normatização
da vida social e individual (PALUDO, 2001). Começa a nascer o neoliberalismo.
No Brasil, nesta época, temos a falência do modelo de desenvolvimento baseado na industrialização
por meio da substituição de importações, a abertura do mercado interno, a desnacionalização de
setores estratégicos, a privatização das políticas sociais e o acirramento da dependência econômica e
política (Idem). Perseguida, a Educação Popular que resistia à violência do governo militar junto com
movimentos populares fortalece a luta pela retomada da democracia.
Na década de 80, o governo militar já apresenta sinais de falência e as forças populares avançam. Em
1980 é criado o Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) surge em
1983 e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1985. Em 1988, o Congresso
Nacional aprova uma nova Constituição Federal que trazia em seu texto avanços conquistados pela
classe trabalhadora, entre eles, a obrigatoriedade e gratuidade do Ensino Fundamental. As eleições de
1989 marcam a disputa de dois projetos políticos: um neoliberal e outro popular (PEREIRA &
PEREIRA, 2010). Nas urnas, é o projeto neoliberal que ganha a disputa com a eleição de Fernando
Collor de Mello, que implementa no país um programa de desestatização, abre o mercado nacional às
importações, reduz a ação do Estado tanto na economia como na execução de políticas sociais, gera
taxas altíssimas de desemprego e amplia as margens de excluídos social e economicamente.
Apesar da eleição de Collor, as forças populares organizadas não se desmobilizaram completamente e
continuaram a fazer a disputa da hegemonia na seio da sociedade a ponto de, em 1992, encherem ruas
do país de pessoas que levavam os rostos pintados e exigiam a saída do presidente do Planalto.
O fortalecimento da luta popular durante a década de 80 ultrapassa os muros das escolas e invade a
educação pública, disputando espaço com um projeto educacional que marginalizava as classes
populares e contribuía com a manutenção da ordem social vigente.

95
O MOBRAL vigora até 1985 atingindo todo o território nacional e marcando a vida de milhões de
brasileiros. Com o objetivo de alfabetizar funcionalmente adultos, teve como característica uma visão de
alfabetização compensatória.
96
Em sua tese “Educação como Prática da Liberdade”, Paulo Freire expõe o “método” que criou para a
alfabetização de jovens e adultos e que foi utilizado, em Angicos, no Rio Grande do Norte, em 1962, para a
alfabetização de 300 trabalhadores rurais, em 45 dias. O “método”, de caráter libertador, se caracterizava por
propor “uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política” (FREIRE, 1979, p. 12) e foi
base para o Programa Nacional de Alfabetização.

194
A Teoria Libertadora de Paulo Freire lentamente passava a ocupar o seu espaço entre
os educadores e eram formuladas teorias cujo centro, desde a escola pública,
explicitava o compromisso com a democratização efetiva da escola e com a
emancipação das classes subalternas. (PALUDO, 2001, p.102)
É ainda em 1989 que o Partido dos Trabalhadores conquista a prefeitura de São Paulo, a maior cidade
do país, e dá início a um governo de características populares. Na gestão da prefeita Luiza Erundina,
Paulo Freire assume a Secretaria Municipal de Educação e começa a desenvolver um projeto de base
para uma educação pública popular97 (GADOTTI & TORRES, 1992) que pode ser exemplificado pela
criação do Movimento de Alfabetização de São Paulo (MOVA-SP).
A década de 90 desponta no Brasil com o povo com maior poder de mobilização e participação
política, mas também com o início da hegemonia do capital financeiro (PALUDO, 2001) e o domínio
da ideologia neoliberal (BORON, 1999). Em 1994, o projeto neoliberal tem nova vitória eleitoral e o
presidente eleito Fernando Henrique Cardoso segue a cartilha da nova ordem do capital. O cenário é
de reestruturação produtiva, de precarização das relações de trabalho e de flexibilidade dos direitos
trabalhistas. Há o alinhamento da política nacional com órgãos internacionais, como o Fundo
Monetário Internacional (FMI), o sucateamento de serviços públicos como a saúde e a educação e a
acentuação da dependência política, econômica e cultural do Brasil em relação aos países centrais
(OSORIO, 2012). O Estado implementa políticas compensatórias em detrimento de políticas públicas
e não realiza reformas estruturais que possam empoderar a classe popular.
A força da hegemonia neoliberal, o fim do socialismo real98, as novas tecnologias da informação e da
comunicação, vão dando contornos a um cenário caracterizado pela fragmentação da identidade da
classe trabalhadora. Eclodem movimentos sociais ligados não mais a demandas estruturais locais ou
nacionais e sim a demandas específicas de grupos. Fala-se no direito da população de rua, dos
afrodescendentes, dos povos tradicionais, das mulheres, dos deficientes. Anuncia-se a defesa do meio
ambiente, da economia solidária, do desenvolvimento sustentável. As frentes de luta se pulverizam, os
movimentos se aproximam das organizações internacionais e as Organizações Não Governamentais
(Ong's) vão ganhando espaço. Os anos que se seguiram, parecem ter sido, por parte dos movimentos,
de desestabilização de suas ações e concepções, de avaliação do momento histórico e de reformulação
de estratégias (PALUDO, 2001).
Para a Educação Popular, este foi um tempo de revisões, com o debate se centrando nas refundações e
reconceituações metodológicas, estratégicas, etc. É diferença marcante da Educação Popular nos anos
70 e 80 para os anos 90, o recorte temático utilizado.
A mudança operada na metodologia de trabalho desenvolvida pela Educação Popular
nos anos 90 passou, na atuação em periferias carentes das grandes cidades, de áreas
problemas para áreas temáticas específicas. Nos anos 70/80 a Educação Popular
atuava sobre um leque enorme de demandas dado pelos problemas de
moradia/favelas e loteamentos clandestinos; falta de creches e escolas fundamentais;
(…). Nos anos 90, a atuação da Educação Popular concentrou-se em áreas temáticas
específicas: produção cooperada, educação infantil, escolar, saúde das mulheres,
proteção do meio ambiente (…). As novas ações são desenvolvidas com grupos
sociais específicos – mulheres, crianças, jovens, idosos, comunidades indígenas (…).

97
“Por escola pública popular entendemos uma escola à qual todos têm acesso, democraticamente
administrada e com uma nova qualidade. (…) essa escola devia ser um espaço de Educação Popular e não
apenas o lugar da transmissão de alguns conhecimentos.” (GADOTTI & TORRES, 1992, p. 72) O
projeto também garantia autonomia às escolas e tinha como horizonte a autogestão.
98
A queda do muro de Berlim, em 1989, é o acontecimento que assinala simbolicamente o fim do socialismo
real, que tratava-se do sistema político-econômico implantado em vários países, com destaque para União
Soviética, e que tinha como inspiração as propostas socialistas desenvolvidas, principalmente, por Karl Marx
e Friedrich Engels. Entre suas características estavam a planificação da economia, a estatização dos meios de
produção e a centralização do poder político nas mãos do partido único.

195
Essa mudança alterou o sentido da ação social coletiva. As ações deixaram de ser
uma meta externa a ser atingida (…) e passaram a ser metas que visam operar
mudanças nos próprios indivíduos. (GONH, 2013, p. 41)
A onda neoliberal alaga o país afogando cidadãos, movimentos, sociedade civil, militantes, lideranças
em um mar de desânimo e abatimento que enfraquece as lutas. O neoliberalismo obtém o que parece
ser sua principal vitória: o convencimento de amplíssimos setores da sociedade de que não existe
alternativa de organização social (BORON, 1999). “A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o
discurso neoliberal, anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de
que nada podemos contra a realidade social, que de histórica e cultural, passa a ser ou virar 'quase
natural' (FREIRE, 2006, p. 19).”
A água acumulada pela enchente neoliberal parece não descer e se manter estagnada deixando os
cidadãos submersos. Entretanto, esta sensação de impotência e fatalismo permanente é mais uma das
ferramentas neoliberais que visam esconder o fracasso de um modelo de desenvolvimento que amplia
a miséria, aumenta a violência e a injustiça e debilita o planeta. É ingênuo e seria uma inverdade dizer
que a luta pela transformação da sociedade, assim como a história, chegaram ao fim. A esquerda
organizada, os movimentos sociais e populares nas suas mais diversas frentes, a sociedade civil de
maneira geral, mesmo com água pelas canelas, disputam a hegemonia e tensionam a realidade com
vista a construir futuros possíveis. O desafio é, como aponta Santos (2004) ao falar da “sociologia das
ausências”, fazer visível o que o sistema insiste em tornar invisível.
As disputas no seio da sociedade, faz os primeiros anos do século XXI despontarem, na América
Latina, com a vitória de governos mais alinhados ao campo da esquerda. No Brasil, especificamente, a
vitória do Partido dos Trabalhadores (PT), na eleição presidencial de 2002, inaugura uma mudança no
Estado. Freia-se a lógica da privatização, há uma retomada de investimentos e de defesa da qualidade
dos serviços públicos oferecidos à população como saúde e educação, há um incremento nas políticas
de distribuição de renda e a mobilidade de 11,7 milhões de brasileiros99 que ultrapassam a linha da
pobreza. O Estado se abre a uma maior participação popular e há práticas mais consistentes de diálogo
e de transparência e fiscalização dos recursos públicos. Lideranças históricas e quadros dos
movimentos sociais progressistas passam a ocupar cargos no governo e a disputa de projetos de
sociedade se acirra dentro da máquina do Estado.
Se por um lado, a eleição do primeiro presidente do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, e, posteriormente,
de Dilma Rousseff representaram avanços nas conquistas das classes populares, por outro, o campo de
esquerda faz duras críticas aos modelos de gestão implementados. Ao fim de dez anos de mandatos
petistas, as reformas estruturais demandadas pelas classes populares não foram realizadas, a
dependência externa se manteve, como também o modelo de desenvolvimento econômico favorecendo
o capital financeiro, o agronegócio, o latifúndio, etc. Antigas práticas políticas de composição e
coalizão dominaram a estratégia governamental no campo da política institucional e escândalos de
corrupção confirmaram a perenidade de um aspecto viciado de administração e governança.
A globalização da economia, a ditadura do capital financeiro e o modelo de desenvolvimento que
degrada rapidamente o planeta produzem massas populacionais insatisfeitas no Brasil e no mundo.
Desde o início da última grave crise do capital, em 2008, cidades do mundo inteiro convivem com
protestos massivos, muitos deles reprimidos, com frequência, de forma violenta pelo Estado. Esses
movimentos são marcados pela pluralidade de bandeiras e demandas, pela ausência de lideranças
claras e pelo ampliado uso das novas tecnologias e ferramentas de comunicação, que impactam não só
na mobilização dos protestos, como na sua divulgação e no fornecimento de argumentos para os
debates suscitados a partir das manifestações.
No campo da Educação Popular, a ênfase também está dada na participação popular nas políticas
públicas e na interfase das práticas educativas com os novos movimentos sociais das mais diversas

99
Dado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE), analisado pelo IPEA referentes aos
anos de 2005 a 2008.

196
áreas. Merece destaque, neste aspecto, a criação da Rede de Educação Cidadã (Recid), a partir de
2003. A Recid é “uma experiência de gestão político-pedagógico e administrativo-financeira
compartilhada (em rede), que ocorre no âmbito do território brasileiro, a partir da articulação entre
Estado e Sociedade Civil100”. Atualmente a rede conta com mais de 550 organizações e entidades da
sociedade civil, nos 26 estados da União e no Distrito Federal, que desenvolvem ações que partem do
campo de conhecimento da Educação Popular e que se relacionam ao “desenvolvimento da economia
solidária, ao controle social das políticas públicas, à organização popular, à geração de trabalho e
renda, a defesa de todos os direitos conquistados pela população101”.
A consolidação de governos mais progressista em municípios, estado e países da América Latina leva
a alterações nas relações da administração pública com os movimentos sociais e populares e com a
Educação Popular. A dicotomia bastante presente nas décadas anteriores entre os governos e os
movimentos sociais, que percebiam o Estado como espaço a ser disputado, acaba dando passagem a
outro tipo de relação e tensão.
Os movimentos populares dos anos 60 e 70 viam o Estado como organizador do
bem-estar social e a questão era pressionar em medida suficiente e oportuna para
obter dele as demandas. Hoje, a nova visão do Estado baseia-se na ideia de construir
novas alianças em que eles não querem apenas receber os benefícios sociais, mas
participar como sócios, parceiros na definição das políticas públicas e da inversão de
prioridades. Antes movimentos populares tinham caráter reivindicatório ou
revolucionário, hoje, são predominantemente programáticos. (GADOTTI &
TORRES, 1992, p. 113)
A Educação Popular – que vinha de um vínculo íntimo com a educação de adultos em espaços não
formais; que finca raízes nos movimentos sociais do campo da esquerda; que invade os muros das
escolas e também influencia a educação formal; que se pulveriza e passa a fazer parte da atuação de
centenas de movimentos populares com objetivos e estratégias os mais diferenciados possíveis; que
ganha espaço no Estado e fornece subsídios para consolidação do debate, no Brasil, sobre uma
educação pública popular – traz, no processo de revisão pelo qual passa, a perspectiva de fortalecer
práticas de participação da sociedade civil na esfera pública e dos cidadãos incindirem nas políticas
públicas como sujeitos de direito e co-responsáveis pela transformação/construção da sociedade.
4 O Estado que se tem e a democracia que se busca
Seguir a reflexão acerca da Educação Popular é seguir também o desafio de entendê-la no momento
histórico que vivemos. Isso pressupõe considerar seus atores, seus objetivos, suas práticas, suas
ferramentas, seu território. Pressupõe considerar seu passado e suas perspectivas de futuro. Pressupõe
ainda considerar a conjuntura local e global. Das correlações de forças e tensões que foram compondo
o campo da Educação Popular e que tentamos posicionar ao longo deste texto, numa tentativa de
colher pistas do momento histórico que vivemos, retiraremos uma pequena parte para continuar a
reflexão.
Trataremos a seguir da relação da sociedade civil, dos movimentos sociais e populares com o Estado,
por meio da Educação Popular. A relação que se estabelece entre esses atores é constante mas não é
uniforme, ao longo da história. É uma relação dialética e contraditória, as vezes de apoio, as vezes de
enfrentamento. As vezes de ocupação, as vezes de esvaziamento. As vezes de diálogo, as vezes de
isolamento.
Nessa relação conflituosa e contraditória, podemos falar de, pelo menos, três posicionamentos dos
movimentos em relação ao Estado: um de oposição, outro de cobrança de demandas mantida a
autonomia e outro de parceria e institucionalização (STRECK & ADAMS, 2012). Esses movimentos
não ficaram circunscritos a um momento histórico, mas, invariavelmente, tiveram mais força e

100
Informação disponibilizada no site do Instituto Paulo Freire http://www.paulofreire.org/, um dos parceiros
na implementação da rede.
101
Dados disponíveis no site da RECID http://recid.redelivre.org.br/.

197
projeção em determinadas conjunturas históricas. Por exemplo, no que tange os movimentos que se
opunham ao Estado, sua força e capacidade de mobilização estiveram mais em evidência na vigência
de Estados autoritários, quando a ambiguidade de ação dos governos era menor, se comparada a de
governos de caráter mais populista, e o Estado estava a serviço da elite e da manutenção do
liberalismo. Um desses períodos, na história do Brasil está localizado após o ano de 1964, e sobre ele
Vanilda Paiva aponta que
o Estado e a sua educação passaram a ser vistos como algo monolítico a ser
combatido pela sociedade: a única função legítima do educador passou a ser a de
contribuir para o fortalecimento da sociedade civil, de maneira a aumentar a
capacidade de resistência destas às determinações do Estado. (PAIVA, 1984, p. 83)
Com a reabertura democrática e a progressiva transição do Estado autoritário ao Estado neoliberal,
que, no Brasil, acumula traços do Estado de Bem Estar Social (STRECK & ADAMS, 2012), há maior
projeção de outro tipo de relação entre Estado e sociedade civil. Vai perdendo relevância a ideia de
desconstrução ou enfrentamento do Estado. Os movimentos se centram, cada vez mais, na cobrança de
demandas que identificam ser de responsabilidade do Estado. É um jogo de pressão, no qual o
exercício é definir o que se reivindica, como se reivindica e por quanto tempo.
Ao mesmo tempo, há o crescimento de discursos e movimentos que reivindicam para si a realização de
ações e serviços outrora de responsabilidade do Estado. Multiplicam-se as Ong's que atuam nas mais
diversas frentes: promoção da cidadania, proteção do meio ambiente, saúde da mulher, geração de
emprego e renda, educação de jovens e adultos e muitas outras.
Com a eleição de governos circunscritos ao campo da esquerda, como é o caso de países da América
Latina, como a Bolívia, o Equador, a Nicarágua, incluindo o Brasil, tende a se fortalecer uma relação
mais focada na parceria entre Estado e sociedade civil. Outro aspecto que ganha relevância, neste
cenário político, é o aumento da luta pela participação popular nos governos e na elaboração das
políticas públicas. Este complexo momento, que é o atual, merece que nos detenhamos um pouco
mais.
No que diz respeito ao primeiro aspecto mencionado, o da parceria, é importante salientar que ele tem
gerado uma série de mudanças nas ações dos movimentos sociais e populares tanto em relação a suas
práticas, como a seus objetivos e resultados. Talvez o ponto mais expressivo e nevrálgico desta relação
seja o financiamento. Contando primeiro com organismos internacionais e depois, com mais força,
com o Estado, organizações da sociedade civil e também do terceiro setor102 passam a receber apoio e
recursos para desenvolver ações que teriam como objetivo diminuir os impactos negativos do sistema
capitalista nas questões sociais, assim como de promover o desenvolvimento sustentável. Temos ai,
segundo Gohn, uma mudança na formulação e organização das demandas da sociedade.
A transferência de fundos do Estado para entidades do terceiro setor altera a relação
cidadão-Estado. Na época que o Estado alocava diretamente verbas para setores
sociais, ou atendia à pressão organizada de determinados grupos ou movimentos, ele
estava atendendo a SUJEITOS COLETIVOS. À medida que a verba é transferida
para ser gerenciada por uma entidade da sociedade civil, o atendimento ocorre aos
usuários na qualidade de CIDADÃOS INDIVIDUAIS, clientes e consumidores de
serviços prestados pelas entidades do terceiro setor, que promoverá o atendimento.
A mudança altera, portanto, a natureza e o caminho por onde as demandas são
formuladas e organizadas. (GONH, 2002, p. 104)
Esta relação que, muitas vezes, se dá em cima da corda bamba tendo de um lado o enfrentamento ao
sistema neoliberal e de outro a dependência financeira do Estado ou de fundações das empresas
privadas, leva os movimentos sociais e populares a processos contraditórios. As instituições que focam
seu trabalho na Educação Popular também não escapam desse dilema. Este é um dos elementos que
sustenta o debate da refundação e reconceituação da Educação Popular, a partir da década de 90, que

102
O termo “terceiro setor” é usado aqui com o mesmo sentido atribuído por STRECK & ADAMS, como
“organizações identificadas com a responsabilidade social empresarial” (2012, p. 252).

198
se vê convocada a reafirmar o caráter político e democrático do ato pedagógico; a centralidade dos
saberes populares e da construção de um novo conhecimento a partir da prática do diálogo (FREIRE,
2005) e a compreensão do futuro como possibilidade. Tudo isso, em detrimento da compreensão de
um processo educativo fundado na individualidade103; no desenvolvimento de habilidades; na
qualidade entendida como quantidade de conteúdo aprendido, etc (GONH, 2002).
Este cenário de tensão e contradição vivido pelos movimentos sociais e populares permite-nos, de
maneira geral, “caracterizar a primeira década do século XXI como um tempo de experimentação
social para muitas organizações e movimentos institucionalizados, com ênfase na ação em parceria no
processo de execução de políticas governamentais” (STRECK & ADAMS, 2012, p. 252).
No que tange o segundo aspecto levantado a respeito do contexto de ascensão de governos populares
ao poder – no caso, a demanda pela participação popular – observa-se que ela se dá em graus
diferentes e com efeitos variados a depender dos “estágios da capacidade organizativa dos movimentos
sociais” e da “diversidade na vontade política dos governantes que varia do autoritarismo ao
compromisso efetivo em envolver a população no controle do Estado” (GADOTTI & TORRES, 1992,
p. 66).
Segundo os autores, o Brasil parte, neste aspecto, de uma realidade comum a parte dos países da
América Latina: a de uma sociedade civil pouco desenvolvida e de uma cultura “estadolatra”, que
percebe o Estado como o responsável pela transformação social.
Esse processo de centralização do poder no Estado encontra respaldo na tradição
política, histórica e cultural de nossas sociedades que foi criando, aos poucos, uma
mentalidade estadolatra: o culto do Estado como ente superior, absoluto, inefável,
onipresente e onipotente. Foi-lhe atribuída toda a capacidade de transformação
social. (…) A mentalidade estadolatra e messiânica é conservadora e imobilista. Ela
induz os seus seguidores à iniciativa do Estado para a transformação. Ela favorece o
corporativismo e o assistencialismo e cria a dependência. ( Ibdem, p. 64)
Ao romper, em alguma medida, com a “mentalidade estadolatra” e reivindicar a participação popular,
setores da sociedade conseguem dar seguimento a um processo de disputa de Estado. Este processo
leva à constatação de que o papel do Estado não é, necessariamente, o de sustentação de um projeto
burguês de sociedade, como também não é, necessariamente, o de implementação de um Estado
socialista. Por outro lado, o papel dos movimentos sociais e populares não é, necessariamente, o de
governar qualquer Estado. Como sinaliza Décio Saes, apoiando-se em Marx, a cada sistema de
produção corresponde um Estado.
Um tipo particular de Estado (o burguês) corresponde a um tipo particular de
relações de produção (capitalistas) na medida em que só uma estrutura jurídico-
política específica torna possível a reprodução das relações de produção capitalistas.
Essa é a verdadeira relação entre o Estado burguês e as relações de produção
capitalistas: só o Estado burguês torna possível a reprodução das relações de
produção capitalistas. (SAES, 1990, p. 26)
A questão colocada não é a de definir papéis, mas sim de perceber que o Estado é um espaço de tensão
e de disputa que pode servir tanto a um projeto de sociedade quanto a outro e que a participação
popular interfere na construção deste projeto, seja ele qual for. Trata-se de uma relação dinâmica de
interdependência tendo cada um, Estado e movimentos sociais e populares, sua especificidade e
também sua autonomia.
E aqui, entra-se em uma seara bastante cara aos movimentos: a autonomia. Ela lhes é cara porque lhes
é fundante. A participação dos movimentos na elaboração de políticas públicas, no controle do Estado

103
Gonh fala de um novo paradigma educacional, no qual a Educação Popular também está inserida. Para a
autora, neste paradigma o processo de formação possui quatro objetivos estratégicos: 'o ser', que tem a ver
com a competência individual; 'o conhecer', que é o desenvolvimento cognitivo, de habilidades didáticas,
etc; 'o conviver', que está na dimensão da sociabilidade dos indivíduos e 'o fazer', que está no plano das
competências produtivas. Para aprofundamentos, consultar GONH, 2002.

199
e na disputa de um projeto de sociedade ganha sentido na medida em que sua autonomia e
independência conseguem ser mantidas. Ao por “um pé dentro” do Estado, os movimentos sociais
precisam manter o “outro fora”.
Manter essa relação dialética entre o dentro e o fora é importante para a própria
sobrevivência do movimento. A força de negociação do movimento dentro do
Estado é a sua capacidade de mobilização fora dele. E o movimento chega ao fim
quando substitui a mobilização pela negociação, ou quando perde de vista seu
projeto político e histórico mais amplo. (GADOTTI & TORRES, 199 2, p. 72)
No que se refere a participação popular, governos populares e sociedade civil têm criado maneiras e
mecanismos de viabilizá-la. Quadros históricos e de relevância na constituição de movimentos sociais
passam a compor o governo e a colaborar diretamente na elaboração de políticas públicas,
principalmente, as relacionadas a demandas sociais como saúde, educação, moradia, assistência social,
cidadania. Também se registra o aumento de canais de participação da população, como audiências e
conselhos, e a ampliação das políticas de transparência e de fiscalização.
No âmbito deste trabalho, duas políticas recentes merecem destaque: o decreto da presidência da
república, nº 8.243, de 23 de maio de 2014, que institui a Política Nacional de Participação Social
(PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social – Anexo III – e o Marco de Referência da
Educação Popular para as Políticas Públicas (MREP) – Anexo II –, publicado pela portaria nº 11, de
23 de maio de 2014, da Secretaria Geral da Presidência da República.
A PNPS tem como objetivo “fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de
diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a sociedade civil”. Como
sociedade civil, o decreto define: “o cidadão, os coletivos, os movimentos sociais institucionalizados
ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”. Para viabilizar seu objetivo, consolidar a
participação popular como método de governo e promover a participação no processo decisório e na
gestão da políticas públicas, a lei cria instâncias de participação da sociedade como os conselhos e as
comissões de políticas públicas, as conferências nacionais, a ouvidoria pública federal, a mesa diálogo,
os fóruns interconselhos, as audiências e as consultas públicas e o ambiente virtual de participação.
Já o MREP é fruto de um longo processo de participação popular e diálogo entre sociedade civil e
Estado. Ele começa, em 2003, com a criação da Recid, que passa a afirmar a necessidade de
compreensão da Educação Popular como ferramenta e conceito a serem utilizados no âmbito das
atividades desenvolvidas pelo governo federal. Esta ideia começa a ser discutida em fóruns e espaços
de debate de abrangência nacional e internacional. Universidades, movimentos sociais, entidades
ligadas à educação e setores do governo são envolvidos no debate de Educação Popular como política
pública. Em 2013, a Secretaria Geral da Presidência da República define como prioridade em seu
planejamento estratégico a formulação da Política Nacional de Educação Popular que culminará, entre
outras coisas, na consolidação do MREP.
O marco reconhece a Educação Popular como uma possibilidade de qualificar a participação popular
nas políticas públicas e como uma forma de proceder nos processos formativos oriundos,
principalmente, no âmbito do poder público. Assim, tem como objetivo “promover um campo comum
de reflexão e orientação da prática no conjunto de iniciativas de Políticas Sociais que tenham origem,
principalmente, na ação pública e que contemplem os diversos setores vinculados a processos
educativo-formativos das políticas públicas do Governo Federal”. O marco demarca oficialmente a
entrada da Educação Popular no interior das políticas de governo, extrapolando a esfera educacional.
Temos, ao final de anos de construção da Educação Popular no Brasil, sua marca registrada nas
práticas formativas dos movimentos sociais vinculadas ou não ao Estado e/ou a fundações ligadas ao
setor privado; no interior das escolas por meio do debate da educação pública popular e da prática
diária de profissionais da educação que se identificam com os princípios de uma educação libertadora
e transformadora da realidade; como também em outras áreas da administração pública104, como é o

104
Segundo o MREP, um Mapeamento dos Processos Educativos e Formativos do Governo Federal, em
desenvolvimento pelo Departamento de Educação Popular e Mobilização Social/SNAS/SG, com
200
caso da área da saúde, na qual, em 2012, o Conselho Nacional de Saúde já aprovara a Política
Nacional de Educação Popular em Saúde105.
5 A cultura da participação e a Educação Popular
Participar, seja em que esfera ou nível for, na elaboração de projetos e ações é, potencialmente, um
processo educativo, pois demanda interação, tomada de consciência, capacidade de interlocução e
decisão e certo grau de autonomia. A participação é elemento inerente às sociedades democráticas, nas
quais os cidadãos são convocados a se manifestarem, em diversas medidas. Pode-se falar de
democracias formais, nas quais a incidência da sociedade na gestão dos interesses coletivos é muito
restrita, até democracias mais radicais, onde as tomadas de decisão são mais horizontalizadas.
A Educação Popular, enquanto conceito, meio ou ferramenta, tem contribuído, no Brasil e na América
Latina, na construção de uma cultura de incidência em políticas públicas (PONTUAL, 2009) e,
portanto, de uma democracia mais participativa. Ao estar presente dentro e fora da escola formal, no
seio dos movimentos sociais e dentro da própria estrutura do governo, a Educação Popular vai se
redefinindo como “um projeto político-pedagógico de transformação para a nova construção social”
(MEJÍA, 1994, p.86).
A nova construção social, mais participativa, requer transformações políticas, econômicas e culturais.
Pedro Pontual (2009)106 aponta alguns elementos que precisam ser redesenhados para dar
materialidade a esta nova sociedade. Na perspectiva do autor, a falsa polaridade existente entre um
Estado que realiza e uma sociedade civil que cobra, deve ser superada. Na construção de uma
democracia mais radical e menos formal, a ideia estabelecida precisa ser a de co-responsabilidade de
ambas as partes, vivenciada num processo dialético permanente. Outro passo a diante seria a
ampliação da capacidade de deliberação da sociedade e não somente de consulta. Por fim, devemos
falar ainda no rompimento da lógica meramente representativa das democracias formais. Trata-se de
criar “novas formas de exercício de poder, que historicamente é delegativo, mas que deve ser revisto,
dentro do marco das novas relações éticas horizontais”.
Complementando a ideia de graus diferentes de democracia e sustentando a necessidade de
radicalização da prática democrática, Raúl Leis107 sinaliza três níveis de participação: o da informação,
referente ao acesso a dados e à transparência; o da consulta, referente aos processos de escuta da
população; e o da decisão, capacidade de interferência, propriamente dita.
Historicamente, os movimentos sociais vêm lutando e reivindicando a criação de instâncias de
participação popular em maior número e com maior grau de incidência nas políticas públicas.
Entretanto, as marcas de uma herança social forjada na submissão do povo evidenciam que não basta
criar os espaços de participação, é preciso aprender a ser democrático e construir, continuamente, a
democracia, que não pode ser encarada como um troféu a ser conquistado, mas sim como um quadro a
ser pintado e retocado todos os dias.

participação de ministérios que integram o GT Processos Educativos e Formativos, revela que há um


conjunto de mais de 100 ações de formação com diversos objetivos, tanto voltados para a qualificação
técnica quanto para formação para exercício da cidadania.
105
Instituída pelo Ministério da Saúde, no dia 19 de novembro de 2013, por meio da Portaria nº 2.761.
106
Também são usadas referências da exposição do autor na mesa “Educação popular e movimentos sociais”,
promovida pelo Conselho de Educação de Adultos da América Latina – Ceaal, durante o Fórum Social
Mundial, em 2006 e disponível em http://www.acaoeducativa.org.br/index.php/todas-noticias/147-educacao-
popular, em 4 de junho de 2014.
107
Exposição feita pelo autor na mesa “Educação popular e movimentos sociais”, promovida pelo Ceaal,
durante o Fórum Social Mundial, em 2006 e disponível em
http://www.acaoeducativa.org.br/index.php/todas-noticias/147-educacao-popular, em 4 de junho de 2014.

201
Este aprendizado diz respeito a sociedade civil, mas também aos que se propõem a assumir a gestão do
Estado e a construir um governo efetivamente participativo e popular.
A abertura de novas formas e canais de participação requer uma prática pedagógica
planejada capaz de orientar o necessário processo de mudança de atitudes, valores,
mentalidades, comportamentos, procedimentos, tanto por parte da população como
daqueles que estão no interior do aparelho estatal. Um processo de democratização
da gestão deve ter a ação educativa como eixo articulador para assegurar maior
alcance e qualidade dos aprendizados produzidos. Daí a necessidade de uma
pedagogia da gestão democrática como dimensão indispensável para possibilitar que
os atores (da sociedade civil e do governo) adquiram eficácia e potência de ação no
exercício da democracia, da cidadania ativa, na criação de esferas públicas
democráticas e transparentes e na construção de uma nova cultura política.
(PONTUAL, 2009, p. 98)
Partindo da necessidade de se aprender a ser democrático – e cada vez mais – o campo da Educação
Popular, com sua perspectiva libertadora, de transformação social coletiva e de construção de futuros
possíveis, tem muito a contribuir. Pensar nas tensões e possibilidades existentes na relação que se
estabelece entre o Estado e a Educação Popular pode nos dar ferramentas úteis para a construção de
uma nova sociedade que tenha a superação da opressão – econômica, política, cultural – como objetivo
final.

6 Referências Bibliográficas
BARREIRO, J. Educação Popular e Conscientização. Tradução: Carlos Rodrigues Brandão.
Argentina: Editora Vozes, 1974.
BRASIL. Decreto-lei nº 8.243, de 23 de maio de 2014. Institui a Política Nacional de Participação
Social - PNPS e o Sistema Nacional de Participação Social – SNPS. Disponível em:
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204
Em busca do tesouro perdido da democracia:
participação, justiça e poder popular

David J. S. Silva¹

¹ Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, Dourados-MS –


davi_rosendo@live.com

Resumo
Este trabalho tem como tema elaborar e discutir um possível caminho de direcionamento da
luta social e política por democracia e justiça a partir da realidade dos grupos sociais
subalternos. O trabalho parte assim das condições para a percepção da injustiça por esses
grupos, e visa a partir dessa percepção formular as condições e possiblidades para a criação de
movimentos sociais e da luta política em geral em prol da justiça social.
Transitando no debate contemporâneo sobre a teoria da democracia, o texto começa
apontando as incongruências dos modelos de democracia elitista, baseados na representação e
no Estado moderno como modelos máximos de democratização e garantia de direitos. Em
seguida, estabelece como modelo de democracia a ser perseguido o modelo proposto por
Gramsci, que estabelece indistinção entre governantes e governados. Discute-se, nesse
sentido, a necessidade e o papel da participação política de todos os cidadãos – como
finalidade constante do regime e como processo privilegiado de educação política – na
direção dos assuntos públicos.
Estabelece-se assim, a necessidade de se conceber democracia política de forma indissociável
de democratização das relações societárias; ou seja, a imanência entre democracia e justiça
social.
Palavras-chave: Democracia; Participação; Movimentos Sociais; Reconhecimento; Justiça.

1 Introdução
Este trabalho tem como tema elaborar e discutir um possível caminho de direcionamento da
luta social e política por democracia e justiça a partir da realidade dos grupos sociais
subalternos. O trabalho parte assim das condições para a percepção da injustiça por esses
grupos, e visa a partir dessa percepção formular as condições e possiblidades para a criação de
movimentos sociais e da luta política em geral em prol da justiça social.
Transitando no debate contemporâneo sobre a teoria da democracia, o texto começa
apontando as incongruências dos modelos de democracia elitista, baseados na representação e
no Estado moderno como modelos máximos de democratização e garantia de direitos. Em
seguida, estabelece como modelo de democracia a ser perseguido o modelo proposto por
Gramsci, que estabelece indistinção entre governantes e governados. Discute-se, nesse

205
sentido, a necessidade e o papel da participação política de todos os cidadãos – como
finalidade constante do regime e como processo privilegiado de educação política – na
direção dos assuntos públicos.
A participação nas esferas de decisão política sobre os rumos da coletividade tem como
principal característica o potencial educativo que tem sobre os indivíduos da coletividade em
estado de socialização para a política. Este potencial educativo realizado reverberar-se-á na
responsabilidade cívica dos membros da coletividade e no seu compromisso com os assuntos
públicos e com os destinos da coletividade como um todo. A não interdição e o fomento do
acesso aos processos deliberativo-decisórios a todos os membros da coletividade é condição
indispensável para a efetiva participação de todos nas tomadas de decisões: isto é parte do
caminho que constitui a reabsorção da sociedade política pela sociedade civil, necessária para
a efetivação da democracia, conforme Gramsci.
A participação, pois, pelos seus efeitos educativos, é condição de possibilidade para o alcance
da democracia; não sendo mais concebível o argumento elitista de inviabilidade da
democracia por conta da não-participação das massas. A criação de condições de
possibilidade para participação efetiva de todos é a via real para o alcance da democracia.
Entretanto, ao se questionar a teoria da democracia a partir da realidade dos grupos
subalternos, observa-se que mesmo a democracia política mais radical é insuficiente. É
preciso se pensar diretamente a necessidade de democratização das relações sociais, ou seja, o
combate direto às estruturas e relações sociais que engendram subalternidades (a titulo de
exemplo, o racismo, a heteronormatividade, o patriarcado). Estabelece-se assim, a
necessidade de se conceber democracia política de forma indissociável de democratização das
relações societárias; ou seja, a imanência entre democracia e justiça social.
O instrumento teórico que permite a concretização dessa necessidade é a luta por
reconhecimento. A experiência de injustiça e denegação de reconhecimento pode vir a
converter-se em impulso à resistência politica, desde que o entorno cultual permita a
articulação de um movimento social.
A criação, pois, de um entorno político e cultural favorável à mobilização e luta contra
injustiça deve ser um dos alvos da ação política orientada para a emancipação humana e para
a construção de uma sociedade democrática política e socialmente.

2 Mundo Contemporâneo e Teoria Elitista da Democracia


Começo com o que disse sobre o mundo contemporâneo o historiador Moses Finley:
“Hoje, no mundo ocidental, todos se consideram democratas” (FINLEY, 1988, 11). Ao que
ele acrescenta que isto apenas é possível porque se passou a compreender como significado
do significante democracia o sentido que lhe foi atribuído pela assim chamada “teoria elitista
da democracia”, elaborada especialmente por Joseph Schumpeter, em seu livro Capitalismo,
Socialismo e Democracia (1961), originalmente publicado em 1942.
A causa para essa auto-proclamação de todos como democratas não se reduz,
evidentemente, ao livro de Schumpeter, mas está intimamente ligada a ele e a sua legitimação
da exclusão das massas da participação nos processos decisórios. (Fatores históricos que
confluíram para que “democracia” se tornasse sinônimo de “democracia elitista” são as
próprias transformações do mundo ocidental - como a experiência nazi-fascista e o welfare
state por exemplo -, das quais Schumpeter é um analista. Fatores para a fixação da noção

206
elitista de democracia foram a hegemonia dos Estados Unidos e de sua Ciência e o contexto
da Guerra Fria).

Em parte, isso se tornou possível graças a uma drástica redução no


elemento de participação popular que havia na concepção original
grega de democracia. A disseminação de uma teoria justificando tal
redução contribuiu muito, no campo ideológico, para que ela
ocorresse. (FINLEY, 1988, 11)

Outra causa para essa auto-identificação alardeada, não indicada por Finley, foi a
oposição radical que Schumpeter fez questão de marcar entre democracia, tal como ele a
entendia ou queria, e regimes totalitários. Ser ‘democrata’ então, era ser oposto ao que de
mais horrível existia na época. Era ser herói defensor da liberdade aos olhos do mundo.
Mesmo que essa ‘liberdade’ estivesse restringida aos limites da liberdade no regime
representativo, e na ordem social do Capitalismo.
Os teóricos da teoria elitista partem de uma suposta evidência empírica da apatia natural
do homem comum. Esta evidência seria a “a indiferença e a ignorância da maioria do
eleitorado nas democracias ocidentais” e o fato de que em muitos países “uma maioria sequer
se dá ao trabalho de exercer seu muito estimado direito de voto.” (FINLEY, 1988, 11)
Com a evocação desses dados empíricos, a teoria elitista pode dar desenvolvimento a
seus principais fundamentos, dentre eles a condenação, de partida, ao insucesso de qualquer
tentativa ou pensamento que defenda a ampla participação das massas na política. Opositor ao
propósito de ligar a política a qualquer ideal – como os de justiça, igualdade, participação
política ou qualquer que seja-, Schumpeter afirma que “nenhum ideal está ligado à definição
de uma democracia em si mesma”.
O povo, ou a massa, sendo incapaz de participar dos assuntos políticos, resta apenas às
elites a possibilidade, a responsabilidade e a atribuição de governar. A democracia é, assim,
então redefinida e reduzida por Schumpeter ao que ele chamou de método de seleção de
elites. Schumpeter define, assim, “democracia como um método cujo objetivo é produzir um
governo forte, autoritário” (SCHUMPETER apud FINLEY, 1988, 19).
Finley estabelece e aponta a absurda divergência que existe entre a concepção de
democracia grega e a concepção da teoria elitista. Entretanto ambas levam o mesmo nome, e
clamam pela legitimidade de ostentarem esse nome. Diante desse fato Finley reconhece o que
ele chama de uma “confusão semântica”:

‘democracia’ e ‘democrático’ tornaram-se, no século XX, palavras


que implicam a aprovação da sociedade ou da instituição assim
descritas. Isso, necessariamente, acarretou o esvaziamento das
palavras, pois elas isoladamente quase deixaram de ter qualquer valor
para distinguir uma forma de governo em especial da outra. (FINLEY,
op. cit. 22).

Finley aponta para o fato de as confusões ou alterações semânticas nunca serem


imotivadas. No caso em questão, a alteração do significado da palavra democracia, de um
207
termo já tão amplamente difundido e valorizado em si mesmo, pelos elitistas não podia ter
outro efeito senão justificar “as características principais do status quo” e oferecer “um
modelo para resolver questões em aberto”. A democracia passa a ser um sistema que deve ser
preservado [e que coincidentemente corresponde com a realidade social e código cultural no
qual emerge] e não um fim a ser atingido. Aqueles que desejam um guia para o futuro devem
procurá-lo em outro lugar (FINLEY, 1988, 48).
Ainda que, para se afirmar isto, tenha que se perdoar ao próprio Finley por minimizar as
desigualdades que o próprio código cultural grego instituía. Finley critica a ‘democracia
elitista’ por ela ser exatamente o que era a democracia grega: um sistema de plena
participação dos ‘iguais’, excluídos, é claro, todos os diferentes. Em suma: um mesmo modo
de manutenção do status quo. Neste trabalho, trata-se de superar todas essas formas de
institucionalização da “desigualdade entre os iguais” (proprietários de escravos ou elites), e
não trocar uma por outra. Entretanto, a crítica de Finley aos elitistas se mantém - e é
extensível também à democracia grega. Em suma,

A teoria elitista, como é usualmente chamada, sustenta que a


democracia só pode funcionar e sobreviver sob uma oligarquia de
facto de políticos e burocratas profissionais; que a participação
popular deve ser restrita a eleições eventuais; que, em outras palavras,
a apatia política do povo é algo bom, um indício de saúde da
sociedade (FINLEY, 1988, 11).

Do ponto de vista dos elitistas, as massas estando alijadas da possibilidade de


participação nas decisões políticas e estando excluídas dos meios de acesso ao poder, teríamos
realizados alguns dos pressupostos da verdadeira democracia, aquela que considera como
produto da ‘diversidade humana’ o fato da apatia política das camadas ‘mais baixas’ da
sociedade.
A visão de democracia da qual se parte-se neste trabalho vê esse mesmo estado de
coisas de uma forma totalmente diferente. Da nossa ótica, o diagnóstico sobre as democracias
contemporâneas pode ser bem resumido nas palavras de Cornelius Castoriadis (1999).

As oligarquias liberais contemporâneas – as supostas ‘democracias’ –


pretendem limitar ao máximo, ou reduzir ao mínimo inevitável, a
esfera pública/pública. (...) A esfera pública/pública aí tornou-se, em
sua maior parte, privada. (...) nos fatos, o essencial dos negócios
públicos é sempre negócio privado de diversos grupos e clãs que
dividem entre si o poder efetivo, as decisões são tomadas por trás dos
panos, e o pouco que é levado à cena pública é maquiado, pré-
condicionado e tardio até a irrelevância (CASTORIADIS, 1999, 71).

Evidentemente, não foi a teorização de Schumpeter e dos demais elitistas que criou ou
causou essa conformação da sociedade; entretanto, é ela a expressão mais bem acabada ou
mais extrema desse modelo democrático, que convém às estruturas de poder que reinam em
nosso tempo.

208
A definição de democracia adotada neste trabalho, como já ficou claro, é a
diametralmente oposta a de Schumpeter (que de democrática só tem o nome). A oposição é de
princípios: democracia aqui é concebida como forma de civilização onde haja a participação
direta de todos os membros nas decisões sobre os rumos da sociedade.

3 A democracia do tesouro perdido


Hannah Arendt refere-se à revolução, como um fenômeno social e histórico dotado de
características específicas e distintivas, como o momento na história da sociedade em que os
homens podem levar o mais longe possível sua capacidade de criação. Entretanto, essa
experimentação das possibilidades de criação levadas ao seu limite só pode ser mantida
durante o processo revolucionário. Após o término deste, o compromisso com as regras
estabelecidas torna-se prioritário para a convivência social entre os homens, e é realizado,
porque necessário, um significativo cerceamento das possibilidades de criação.
Após estabelecido o projeto de sociedade que foi propulsor do movimento
revolucionário, ao impulso criador (ou “espírito revolucionário”, nas palavras de Arendt)
libertado de suas amarras durante o processo revolucionário é preciso colocar novamente sua
rédeas. Se assim não o fosse,

uma instituição duradoura, encarnando e incentivando esse espírito a


novas realizações, seria autodestrutiva. Daí infelizmente parece
decorrer que não existe ameaça mais perigosa e mais aguda contra as
próprias realizações da revolução do que o espírito que as
empreendeu. Teria de ser a liberdade, em seu sentido mais elevado de
a liberdade de agir, o preço a pagar pela fundação? (ARENDT, 2011,
p. 294).

Assim, na sociedade instituída por uma revolução, por definida em torno da liberdade
que seja, não há “nenhum espaço reservado para o exercício daquelas mesmas qualidades que
tinham sido úteis para construí-la” (ARENDT, 2011, p. 294), sob pena de o exercício tolerado
dessas mesmas capacidades levar esta própria sociedade à sua destruição e seu suplantamento
por outra. Portanto, a sociedade instituída pelo processo revolucionário, dotada de
características próprias, singularizantes e distintivas, não sobrevive como tal se continuar a
alimentar ou mesmo permitir a existência de um espírito criativo tão radical quanto ao que a
criou.
A este espírito criativo, fadado a perder-se no paradoxo do processo, Hannah Arendt
chamou de o tesouro perdido da revolução: “as potencialidades da ação e o precioso
privilégio de ser iniciadores de algo inteiramente novo.” (ARENDT, 2011, 294).
Uma sociedade democrática, tal como pensada na radicalidade das possibilidades que
sua constituição democrática propicia, poderia ser aproximada dessa intensidade de criação
explodida nos processos revolucionários; os seres humanos, na sociedade democrática, teriam
possibilidade de em conjunto criar e recriar radicalmente suas formas de vida e as relações
societárias; criar e recriar a própria sociedade ao bel prazer de suas deliberações. Pensada no
que seria sua radicalidade, o espírito criador da democracia é da mesma intensidade do
espírito criador nos processos revolucionários. A democracia mais radical, assim, é esta
democracia que estabelece-se como relação societária fundamental, identificativa e distintiva
209
acima de tudo a capacidade e possibilidade de criação de mesma intensidade da do tesouro
perdido da revolução.
Entretanto, dado seu paradoxo constituinte, e a instabilidade dele decorrente, a
capacidade criativa nesta intensidade tendeu até hoje sempre a se perder no pós processos
revolucionários. A discussão a fundo de suas tensões, entretanto, é tarefa para outro trabalho.
Mesmo assim, aqui ela se estabelece como horizonte.
O percurso do caminho para estabelecimento de uma civilização democrática, nos
moldes dessa “democracia do tesouro perdido”, e que una indissociavelmente democracia
participativa à justiça social, é o que se visa a percorrer neste texto.
A concepção de democracia que se estabelece aqui, como, creio, pôde-se notar a partir
da digressão anterior, é profundamente diferente e mais extensa do que a definição elitista (e
também diferente da democracia grega, no sentido visar à inclusão não somente dos
considerados ‘iguais’, mas de absolutamente todos). Tendo-se isto em conta, é a concepção de
democracia sintetizada por Gramsci, e não a grega reelaborada por Finley, a base para a
construção de nossa concepção de democracia:

a tendência democrática, intrinsecamente, (...) [deve] consistir (...) em


que cada ‘cidadão’ possa se tornar ‘governante’ e que a sociedade o
coloque, ainda que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder
fazê-lo: a democracia política tende a fazer coincidir governantes e
governados (no sentido de governo com o consentimento dos
governados), assegurando a cada governado a aprendizagem gratuita
das capacidades e da preparação técnica geral necessárias ao fim de
governar (GRAMSCI, 1982, p. 137).

Tome-se nota, por hora, apenas da ênfase dada à criação e provimento das condições
para assegurar a cada governado a aprendizagem das capacidades necessárias para governar.
Causa corriqueira da conformação não democrática de regimes de governo auto-
intitulados democráticos é a negação do princípio básico da democracia, violação na qual
aquelas oligarquias citadas por Castoriadis e demais grupos poderosos no interior de cada
sociedade realizam uma apropriação privada da esfera pública – ou que deveria ser pública -,
convertendo-a em seu instrumento particular de imposição à sociedade de seus próprios
interesses, processo já muito bem descrito e exaustivamente denunciado pelo marxismo.
Conforme Castoriadis, “O devir verdadeiramente público da esfera pública/pública é,
sem dúvida, o âmago da democracia” (CASTORIADIS, 1999, 70). A característica de
apropriação privada da esfera pública é comum aos governos monárquicos e autoritários, e
também aos regimes ocidentais auto-intitulados ‘democráticos’, porém nestes esta
apropriação privada é dissimulada e negada ideologicamente.
A instituição do Estado vem a constituir ponto polêmico ao ser abordado nas categorias
deste trabalho. Na perspectiva teórica mais radical, a de Castoriadis, a simples existência do
Estado já implica e testemunha heteronomia, portanto, por definição este seria avesso à noção
de democracia aqui almejada. “(...) a emergência do Estado e seu desenvolvimento (...)
equivale praticamente ao devir-privado da esfera pública/pública” (CASTORIADIS, 1999,
70).

210
A questão é problemática e mereceria ser abordada a partir do estudo de experiências
históricas concretas, especialmente posto que a própria democracia grega reconhecia e
instituía a presença de líderes e liderados, como o demonstra Finley (1988, 37-8), ou seja, o
que, no entanto, não é suficiente para descaracterizá-la como democracia.
A questão, neste ponto, pode ser melhor formulada da seguinte forma: a política é
inseparável (até onde se sabe historicamente) da presença de líderes e liderados. Isto não
implica, imediatamente, em “heteronomia”. Para os gregos (modelo de democracia de Finley
e Castoriadis), cidadão é aquele que governa e é governado (rodízio), e isto não de um modo
abstrato, como nas nossas “democracias” atuais, em que qualquer um, juridicamente, pode ser
governante, mas, efetivamente, a maioria absoluta nunca foi e nunca será. Liderança é um
fenômeno (historicamente) inerente à política. O problema é o monopólio da liderança por
determinados indivíduos e grupos – monopólio que sempre foi e é, historicamente,
característica do Estado Moderno.
Associada à instituição social e conceito abstrato do Estado democrático moderno está a
conceito de ‘representação política’, como uma das pedras basilares sobre a qual repousa a
construção dos regimes políticos contemporâneos. Justificada especialmente pela sua eficácia
para dar conta da amplitude gigantesca das sociedades contemporâneas, a instituição da
representação, como processo de escolha de representantes políticos que serão quem
realmente tomarão as decisões sobre os rumos da sociedade, é francamente oposta à
concepção radical de democracia elaborada aqui. O conceito de representação legitima aquilo
que constitui uma descaracterização sem volta da concepção de democracia tal qual seu
sentido original, na medida em que institui a obrigatoriedade da delegação por parte do povo
de sua capacidade, possibilidade e direito de decisão aos políticos profissionais.
“A ‘representação’ é, inevitavelmente, no conceito como nos fatos, alienação (no
sentido jurídico do termo: transferência de propriedade) da soberania dos ‘representados’ para
os ‘representantes’” (CASTORIADIS, 1999, 72). Por meio dela, os grupos dominantes
(dominantes e estabelecidos, também no sentido construído no primeiro capítulo) realizam a
apropriação monopólica e açambarcamento integral da política, das ‘capacidades’ para
atuação dentro dela e da legitimidade do seu exercício, tornando-a, mais até do que
inacessível, porém tabu para o restante da população, motivo para este de aversão e de
afastamento.

4 Participar se aprende participando


A concepção de democracia e de política legítima que ganhou a hegemonia no nosso
tempo tem raiz no ideal de democracia representativa, sistematizada no século XIX por John
Stuart Mill; ideal estruturado historicamente, entretanto, não como formulado por Mill, mas
na conformação da ‘democracia eleitoral’, esta sim, entronizada teoricamente, no século XX,
por Schumpeter.
Esta concepção de democracia, eleitoral e elitista, em linhas gerais, formula a
incapacidade do homem comum, das “massas”, de participar dos processos decisórios, de
gerir a própria sociedade, devendo a responsabilidade de dirigir a política ser deixada aos
políticos profissionais e às elites. Assim, às massas cabe apenas votar (ainda que muitas vezes
sejam acusadas de nem disso serem capazes) para escolher entre as elites em disputa pelo
poder. Aos políticos eleitos, a estes sim, cabe deliberar e tomar as decisões concernentes aos

211
assuntos públicos. Às massas não cabe participar diretamente dessas deliberações e decisões
porque elas não são aptas a isso.
Meu texto inscreve-se em outra concepção de democracia, na qual todos os indivíduos
componentes de uma sociedade são considerados capazes de participar da direção e gestão
dos assuntos públicos e podem e devem participar diretamente de todos os processos
decisórios.
A inserção no debate contemporâneo dessa concepção de democracia foi realizada, de
forma exemplar, por Carole Pateman (1992).
Conforme Pateman, na teoria da democracia participativa, como ela intitula a concepção
que defende, “(...) ‘participação’ refere-se à participação (igual) na tomada de decisões, e
‘igualdade política’ refere-se à igualdade de poder na determinação das consequências das
decisões” (PATEMAN, 1992, 61-2). Assim, para autora, uma sociedade participativa, e,
portanto, democrática, é “uma sociedade onde todos os sistemas políticos tenham sido
democratizados e onde a socialização por meio da participação pode ocorrer em todas as
áreas.” (PATEMAN, 1992, 61).
O principal argumento contra a possibilidade de uma democracia participativa, com a
participação de absolutamente todos os cidadãos, é o da inatividade política do homem
comum, sua apatia política indesenraizável, seu desinteresse crônico, inato, pelos assuntos
políticos. Exemplo dessa concepção, tão difundida, é a afirmação de Sartori, citada por
Pateman: “A maioria dos teóricos recentes contentou-se em aceitar a afirmação de Sartori de
que a inatividade [política] do homem comum não é ‘culpa de ninguém’(...)” (PATEMAN,
1992, 139). Ponto de vista inaceitável, para Pateman e para os próprios pressupostos
metodológicos deste trabalho. O homem é sempre resultado da socialização, da conformação
social, que teve. Se se trata de uma estrutura social que iniba ou retire estruturalmente as
condições para participação, não será de estranhar que as pessoas sejam ou tornem-se
incapazes de participar.
A resposta de Pateman é a evidente: a inatividade política do homem comum deve-se à
existência de fatores institucionais que inibem estruturalmente sua participação e
atividade/interesse políticos. A solução só pode ser uma nova socialização política, diferente
desta que conforma para a apatia; uma socialização política que eduque para a participação,
“E isto se efetua por meio da ‘educação pública’, a qual, no entanto, depende da participação
[de cada membro da sociedade] em muitas esferas da sociedade na ‘atividade política’,
entendida em sentido bastante abrangente.” (PATEMAN, 1992, 33-4).
A palavra ‘depende’, no período citado, é fundamental para a compreensão da
concepção de Pateman. A educação política para a participação, a conformação contra a
apatia, a inatividade e o desinteresse político, só pode se dar através da concessão dos meios
para a prática efetiva da participação a todos os cidadãos. Sua educação só pode se dar por
meio de sua inserção nas condições, possibilidades e ambientes de participação; só pode se
dar no seio mesmo e atividade efetiva de participar. Ou seja, só ‘aprendemos a participar,
participando’ (PATEMAN, 1992, 139). A via natural para a socialização política é a
participação direta dos cidadãos nos processos decisórios.
Moses Finley, na exposição que faz sobre a democracia grega, indica que na sociedade
democrática grega a educação para a política e para a sensibilidade e capacitação para a lide
com os assuntos públicos era também realizada via a participação direta dos cidadãos nas
esferas onde se realizava precisamente a política.

212
Ou seja, na democracia grega, a participação também era concebida como processo
educativo e formativo, mais até, como a melhor ou a única via possível para o aprendizado da
responsabilidade cívica e com as questões públicas da sociedade. Na síntese de Finley, “Um
jovem se educava comparecendo à Assembleia;” (FINLEY, 1988, 42). A participação é o
meio por excelência da educação.
A verdade desta afirmação é melhor explicitada na sua comparação com o processo
maior da socialização. Se cada ser humano só conhece do mundo aquele ambiente em que foi
socializado, evidentemente que a restrição deste implicará também uma redução no seu
conhecimento e nas suas capacidades como ser humano.
Conforme demonstrado por Finley a democracia grega instituía variados espaços e
possibilidades para o ingresso dos cidadãos na participação na vida pública, e mesmo exercia
uma coerção à participação sobre os cidadãos que eventualmente resistissem a participar
(FINLEY, 1988, 41-2).

(...) considerável proporção de cidadãos do sexo masculino de Atenas


tinha alguma experiência direta no governo, muito superior a qualquer
uma de que tenhamos conhecimento ou que até mesmo possamos
imaginar. Era literalmente verdadeiro que um menino ateniense, ao
nascer, tinha maior probabilidade do que a da mera sorte de ser
presidente da Assembléia, um posto rotativo ocupado por um único
dia e, como sempre, preenchido por alguém sorteado. Ele poderia ser
um oficial de mercado por um ano; ser membro do conselho por um
ano ou dois (embora não consecutivos); ser jurado diversas vezes; ser
membro da Assembléia com direito a voto quantas vezes desejasse.
(FINLEY, 1988, p. 32)

Além da criação de todos esses espaços sociais, cujas regras de ocupação eram aquelas
que por meio da instituição da rotatividade geral nesses cargos visavam a possibilitar
concretamente a participação de todos, os pensadores gregos não cessavam de afirmar a
importância da educação. Termo conhecido, “por Paidéia eles queriam dizer criação,
‘formação’, o desenvolvimento das virtudes morais, do sentido de responsabilidade cívica, da
identificação madura com a comunidade, suas tradições e valores.” (FINLEY, 1988, 42).
Quando Finley fala desse esforço grego por criar as condições para a educação com
vistas à capacitação para a participação, desenvolvimento da responsabilidade cívica e
compromisso com os assuntos públicos da coletividade, sua fala aproxima-se muito da de
Gramsci, quando este discorre normativamente sobre o modo de ser necessário para a
democracia efetiva, como citado acima (pág. 52 deste trabalho): assegurar “a cada governado
a aprendizagem gratuita das capacidades e da preparação técnica geral necessárias ao fim de
governar.” (GRAMSCI, 1982, p. 137)
Quanto à questão do ‘nível intelectual’ de parte do ‘povo’ que participava diretamente
das decisões na democracia ateniense – talvez um dos principais motivos de insônia dos
teóricos elitistas -, a exposição de Finley mostra fatos surpreendentes. Conforme Finley, a
participação direta do cidadão nos assuntos públicos elevava o padrão intelectual e cultural do
cidadão médio ateniense de uma forma bem mais eficiente do que qualquer exemplo já
conhecido em outro agrupamento humano, antigo ou moderno. (FINLEY, 1988, p. 43)

213
Desta forma, não se trata da incapacidade inata das massas participarem com eficiência
da política, e devido essa incapacidade sua interdição e exclusão. É porque são
sistematicamente excluídos das possibilidades e condições de participar dos processos
decisórios que os indivíduos comuns não apresentam e não conseguem – nem conseguirão -
desenvolver em larga escala as capacidades (e o interesse) para participação política.
Diante de uma observação como essa de Finley, creio que abre-se a possibilidade de
perguntar em que medida a teoria elitista da democracia tem a ver de fato com política? Em
que medida não é apenas um artifício destes teóricos como grupo estabelecido para cerrar
fileiras contra os demais? Em que medida os teóricos elitistas não se vêem a si próprios como
um grupo estabelecido em oposição à massa de outsiders bárbaros e anômicos, e sua teoria
não é pois mais motivada por um interesse ou necessidade [se necessidade, por um medo
injustificado] de estigmatizá-los, inferiorizá-los e excluí-los? Uma leitura cuidadosa desses
autores para encontrar elementos com que pensar essa hipótese seria necessária, entretanto,
creio que as moções da teoria elitista da democracia encontram-se mais nessa necessidade de
estigmatização e cerramento de fileiras do que na intenção de produzir uma teoria política.

Retomando os postulados de Pateman, conforme a autora, a teoria da democracia


participativa define-se por este propósito:

a educação de todo um povo, até o ponto em que suas capacidades


intelectuais, emocionais e morais tivessem atingido o auge de suas
potencialidades, e ele tivesse se agrupado, ativa e livremente, numa
comunidade genuína, e que a estratégia para alcançar este objetivo
seria por meio do uso da atividade política e do governo com vistas à
educação pública. (PATEMAN, 1992, 33)

E este mesmo argumento, da participação como prática educativa, como meio e como
finalidade, é o mobilizado pela autora para se posicionar contra as teorias que defendem o
governo representativo, contra a noção de representação como eficaz para obtenção de uma
democracia efetiva, real.

A existência de instituições representativas a nível nacional não basta


para a democracia; pois o máximo de participação de todas as pessoas,
a socialização ou “treinamento social”, precisa ocorrer em outras
esferas [por exemplo, na esfera local ou do ambiente de trabalho], de
modo que as atitudes e qualidades psicológicas necessárias possam se
desenvolver. Esse desenvolvimento ocorre por meio do próprio
processo de participação. A principal função da participação na teoria
da democracia participativa é, portanto, educativa; educativa no mais
amplo sentido da palavra, tanto no aspecto psicológico quanto no de
aquisição de prática de habilidades e procedimentos democráticos. Por
isso, não há nenhum problema especial quanto à estabilidade de um
sistema participativo; ele se auto-sustenta por meio do impacto
educativo do processo participativo. A participação promove e
desenvolve as próprias qualidades que lhe são necessárias; quanto
214
mais os indivíduos participam, melhor capacitados eles se tornam para
fazê-lo. (PATEMAN, 1992, 61-2)

5 Democracia como regime versus democracia como forma de civilização


Pateman se inscreve na História da Ciência Política num debate cujas raízes remontam a
John Stuart Mill e aos Federalistas norte-americanos, autores que estabelecem e sistematizam
as bases teóricas da legitimidade da representação como caminho por excelência da
democracia, e a “democracia representativa”, por consequência, identificada com a verdadeira
democracia.
É importante compreender isto para localizar melhor a contribuição de Pateman e a
forma da apropriação de sua teoria por este trabalho. Pateman escreve não pela eliminação da
representação como forma eficaz ou legítima de democracia, teoriza sim sobre as possíveis
formas de se tornar a representação mais democrática, por meio da introdução da participação
nos processos decisórios das esferas locais. Para Pateman as práticas participativas precisam
se dar no âmbito destes processos decisórios de escopo local, para gerar um processo de
educação e de criação nas camadas populares das capacidades para a democracia. A autora
distancia-se assim do elitismo democrático, mas não explicita, sequer diz palavra, se
intenciona engendrar algo próximo de uma reabsorção da sociedade política pela civil (vide
alguns parágrafos adiante).
A autora elabora sua teoria, portanto, no âmbito de uma visão de mundo que concebe a
democracia como um regime político (concepção de mundo cujas raízes mais expressivas são
encontradas em Maquiavel). Entretanto, sua noção de participação, se levada ainda mais
adiante, aproxima-a dos autores que têm centralidade neste texto, que não concebem
democracia apenas como regime político, mas como uma forma de sociedade; guardadas as
diferenças entre eles: Castoriadis, Gramsci e Finley.
Pateman escreve, pois, não para abolir a representação como método da democracia,
mas visando a encontrar as formas teóricas que permitam tornar a representação mais
democrática. Não se posiciona assim contra as teorias do governo representativo, mas sim
contra aquilo que estas têm, aos olhos da autora, de antidemocrático. É uma crítica ao governo
representativo mas não um afastamento radical deste.
Assim, na proposição de Pateman, a ideia de democracia participativa surge como
forma de aprofundar no governo representativo a soberania do povo.
Pateman situa-se assim, poder-se-ia dizer, a meio caminho entre o governo
representativo e a democracia do tesouro perdido.
Na proposição deste trabalho, o projeto de democracia participativa de Pateman (que
limita a noção de democracia a um regime) será tomado não nessa forma em que se inscreve
para a autora, mas como meio teórico-prático para chegar à democracia como sociedade.
Assim, o que podemos formular com o trabalhado até agora neste capítulo é que a
participação nas esferas de decisão política sobre os rumos da coletividade tem sua principal
característica no potencial educativo que tem sobre o membro da coletividade em estado de
socialização para a política. Isto é verdadeiro em análises que, do ponto de vista de vista de
suas bases teórico-metodológicas e visões de mundo, não têm quase nenhum ponto de contato
umas com as outras. É o caso de Gramsci, Finley e Pateman. Este potencial educativo
realizado reverberar-se-á na responsabilidade cívica dos membros da coletividade e no seu
compromisso com os assuntos públicos e com os destinos da coletividade como um todo. A
215
não interdição, sob nenhum critério, do acesso aos processos deliberativo-decisórios a todos
os membros da coletividade é condição indispensável para a efetiva participação de todos nas
tomadas de decisões: isto é o que constitui o devir público da esfera pública/pública, alçado à
definição de democracia, de Castoriadis.
A participação, pois, pelos seus efeitos educativos, é condição de possibilidade para o
alcance da democracia; não sendo mais concebível o argumento de inviabilidade da
democracia por conta da apatia (ou não-participação) das massas. Este argumento utiliza-se
do recurso comum da inversão entre causas e efeitos para justificar uma dada situação social.
A criação de condições de possibilidade para participação efetiva de todos, ‘capazes’ ou
‘incapazes’, é a via real para o alcance da democracia.
Em que medida, entretanto, diante da consciência que temos da complexidade do social
em suas formas de diferenciar e hierarquizar os seres humanos – complexidade que foi levada
ao primeiro plano nos dois primeiros capítulos deste trabalho -, poderemos nos contentar com
a democratização apenas da esfera pública/pública? Conforme Castoriadis, democracia
define-se pelo devir verdadeiramente público da esfera pública/pública. No entanto, como
ficam as relações de desigualdade e exclusão inscritas no tecido social, em facetas deste não
distinguidas pelos teóricos da democracia radical, responsáveis pela introdução e sustentação
de autoritarismos entre pessoas ou grupos?
Com o conhecimento dos mecanismos invisíveis de dominação e denegação de
reconhecimento presentes na totalidade das relações sociais, não podemos nos contentar com
a democratização política e achar que isto será a solução suficiente para todos os problemas
da sociedade. É uma necessidade objetiva combater as estruturas de desigualdade inscritas nas
relações sociais como um todo; não apenas naquela esfera que a sociedade ocidental
consagrou como política.

6 Da Democracia Política à Democracia Social


São os autores do Grupo de Estudos Sobre a Construção Democrática (1999) [de agora
em diante, GECD], em suas discussões sobre as bases e faces da democracia, que alertam para
a necessidade também de democratização das relações sociais. Diante da denúncia da
existência de autoritarismo, de desigualdades nos diferenciais de poder e de apropriações
monopólicas de poder (para sempre ilegítimas, dentro do referencial deste trabalho) num
âmbito do social que não é o da esfera pública/pública – ocorre igualmente e com intensidade
semelhante nas esferas pública/privada assim como na esfera privada propriamente dita – o
GECD alerta para a necessidade irrevogável de concomitantemente às preocupações com a
democratização da esfera pública/pública se realize a democratização das relações sociais
como um todo.
O texto do GECD é incorporado aqui por ter o mérito colocar no mesmo status de
importância da democratização política a democratização das relações sociais, esta sendo
entendida como a eliminação de desigualdades de poder nas relações sociais em sua
totalidade.
As palavras dos autores, que originalmente versam sobre a realidade brasileira, são
perfeitamente cabíveis para o tema aqui em pauta: “Isto implica uma transformação muito
mais profunda da sociedade (...), onde traços de autoritarismo [subalternização, injustiça,
violência, preconceito, discriminação] sobrevivem ainda hoje, fortemente arraigados nas

216
práticas cotidianas, constituindo-se em obstáculo fundamental à democratização.” (GECD,
1999, 8)
O que se depreende destas palavras é o fato de que a democratização apenas da política
e do sistema político não é suficiente para a criação de uma sociedade verdadeiramente livre e
democrática. Em outras palavras, a democracia não se realiza apenas na política (entendida
em seu sentido moderno, ou seja, especializada, como uma esfera de ação específica); a
democracia deve incluir necessariamente e sob pena de sua própria implosão a
democratização das relações sociais como um todo. Democracia deve ser entendida, pois, em
imanência com direitos e com justiça social – e este é o ponto nodal deste trabalho.
O trabalho do GECD contribui também teoricamente para a refundação da própria
noção de política no sentido de com ela abarcar o e de situá-la no próprio conjunto das
relações sociais, na própria totalidade da sociedade:

Nesta perspectiva, amplia-se a própria noção de política, no sentido de


que esta não se limita ao conjunto dos aparatos ou instituições que
caracterizam um regime democrático-liberal, mas está inscrita no
conjunto da sociedade e na textura das relações sociais. (GECD,
1999, p. 8)

Neste momento o GECD marca seu afastamento da tradição de Ciência Política que
concebe política como regime e marca sua inserção na tradição que compreende democracia
como forma de civilização.
O que se tem como horizonte aqui é uma concepção de democracia que se componha
em caráter de imanência de democracia política e justiça social radical; que carregue em si
indissociavelmente a igualdade política radical de todos os cidadãos e sua igualdade social
não menos radical, através da retirada das condições de possibilidade dos fenômenos de
estigmatização e violência.
O ponto de partida é a concepção de democracia de autores como Finley e Castoriadis,
que concebem democracia como totalidade, como civilização, e não apenas como regime
político.
Maquiavel é o autor que inaugura a noção moderna de política: com a sua acepção da
instituição do Estado, estabelece política como dimensão distinta no interior da sociedade,
como uma modalidade de ação. Esta distinção inaugurada por Maquiavel constituir-se-á em
uma das dificuldades existentes hoje para o estabelecimento da democracia como forma de
civilização – e não apenas como regime político.
A Política, a partir de Maquiavel, é concebida, então, não como algo presente na
totalidade da vida humana, e que caracteriza o ser humano, mas apenas como uma possível
modalidade de ação humana, como atividade separada, assim não sendo concebida como
objeto de todos, mas como objeto apenas da atividade de alguns, aqueles que escolheram
dedicar-se a elas ou aqueles únicos capazes de exercê-la; esta acepção de política assim
permaneceu, sem questionamentos relevantes, sendo concebida na Teoria Política até o
marxismo localizar novamente a política na totalidade da sociedade e a possibilidade e dever
da prática política ser atribuída a todos os membros da coletividade [possibilidade teórica que
pode ter sido aberta historicamente pelos eventos da Revolução Francesa e da Revolução
Estadunidense, as quais não tratavam-se apenas de derrubar um rei ou declarar independência,
217
respectivamente, mas de fundar um novo tipo de sociedade, em ruptura com o que havia
antes. Por mais que se possa questionar os fundamentos e destinos dessas revoluções
“burguesas”, o despontar da ideia de política como autonomia, isto é, de atuação da sociedade
sobre si própria no sentido de torná-la mais justa, pode aí ser localizado], e não apenas aos
‘políticos profissionais’, que alegavam, e ainda alegam, a legitimidade do seu monopólio de
atuação nos assuntos políticos.
A concepção de política como uma esfera separada dentro da sociedade, e sobretudo a
que se permite acesso livre e legítimo a poucos, entretanto, é a hegemônica ainda hoje; e
precisa ser mudada se se quer construir uma sociedade democrática tal qual os postulados
deste trabalho. A política não pode ser objeto de apropriação privada ou monopólica por parte
de nenhum indivíduo ou grupo social. Deve ser socializada ao extremo.
Partindo da realidade dos regimes políticos contemporâneos, auto-intitulados
‘democráticos’, tal como descrita por Castoriadis, para estabelecimento da democracia como
aqui proponho, unificando democracia política e democracia social, necessitamos reverter a
‘alteração semântica’ (vide este mesmo capítulo, a seção 3.1, na página 50), recuperar o
significado teórico e propor o caminho histórico para restabelecimento do significado da
democracia como forma de civilização.
Quem propõe teoricamente uma forma de imprimir uma orientação histórica para a
sociedade ocidental no sentido de nesta Política e Democracia voltarem a ser compreendidas
como forma de organização da totalidade da sociedade - e não apenas como regime político,
concepção em que autoconstituiu-se – é Gramsci. Ao formular a necessidade de “reabsorção
da sociedade política pela sociedade civil” (2007, v 3) Gramsci está propondo que a política
deixe de ser apenas regime ou modalidade de ação social específica, e monopólio de grupos
específicos, e passe a ser exercida pela própria sociedade como um todo, para, ao final, a
forma da política desenvolvida por essa sociedade confunda-se com ela mesma.
Nos termos da proposta de uma nova alteração semântica, o significado que proponho
para Democracia a partir do formulado aqui é então: uma forma de civilização, caracterizada
pela igualdade política radical, participação efetiva de todos os seus membros nos processos
decisórios, e justiça social, no sentido da democratização (retirada de autoritarismos e de
violência) das relações sociais.

7 O conceito de Democracia Ampliado


Esta seção visa à exploração da possibilidade de combinação do conhecimento quanto
ao processo social de subalternização e da noção de justiça social com esta concepção radical
de democracia elaborada no capítulo anterior, no sentido de ampliá-la e torná-la ainda mais
radical, ao colocar no seu interior, na sua essência íntima, o compromisso - e fazer dele algo
intrínseco e indissociável de seu ser – com o entrelaçamento imanente à justiça social.
O projeto de transformação social aqui só pode se guiar, inicialmente e para sempre, a
partir das vítimas e dos invisíveis de cada configuração societária. O conteúdo, o alvo
imediato e as tarefas para tal empreendimento variarão conforme avança nosso conhecimento
sobre o social e as determinações que lhe são constituintes; entretanto, o guia central serão
sempre os injustiçados da ordem social em questão e a destruição definitiva da estrutura social
que engendra e sustenta sua condição de subalternização.

218
Democracia e igualdade social foram muito mais exceção do que regra na História. E
este é um argumento muito usado pelos elitistas, e em geral por autores contrários à proposta
da democracia participativa.
Autores que partilham das concepções elitistas elencam o que eles apresentam como
evidências empíricas da imutável divisão da sociedade entre líderes e liderados. Max Weber,
ao realizar seu estudo a respeito das formas que assumiu o poder governamental nas diversas
sociedades existentes, encontra nestas apenas governos baseados na dominação dos
governantes sobre os governados. Este tipo de forma governamental foi realmente a maioria
na história; e as razões desse fato precisam ser explicadas historicamente. Entretanto, a
validade de fato (contestável) de tal afirmação não implica sua validade de direito, posto, no
mínimo, a extensa plasticidade do ser humano. [Digo que esta validade é contestável, pela
descoberta de sociedades que não baseavam a própria direção política nos esquemas da
dominação ou da separação entre líderes e liderados, como mostrarei mais adiante].
A consequência da descrição ou mera constatação que Weber faz no seu “Três tipos
puros de dominação”, a de que em todas as sociedades houve dominação e, por conseguinte, a
dominação é constituinte da sociedade; à maneira de um tabu do incesto não pode haver
sociedade sem dominação, portanto é utópico e fadado ao fracasso todo projeto de sociedade
que almeje ou estabeleça a igualdade entre todos.
Ainda que unicamente do ponto de vista descritivo essa formulação expressasse algo
empiricamente verdadeiro daí não se poderia derivar uma normativa quanto às possibilidades
da sociedade, uma limitação do escopo de possibilidades de assunção de formas desta baseada
nesta ‘averiguação’ objetiva, empírica (isenta de valores?) do passado – não é novo que
validade de fato não implica imediatamente validade de direito.
Idêntico argumento pode se ver nos teóricos elitistas (Mosca e Pareto, especialmente;
posteriormente, Schumpeter) para os quais todas as sociedades da história dividiam-se
internamente entre uma elite que governava e a massa que obedecia – daí portanto não se
poderia lutar nem esperar por algo diferente no futuro; seria até uma violência contra a
essência e as leis da sociedade tentar implantar uma sociedade que não trouxesse em si mesma
esta diferenciação entre líderes e massa.
Achados como o de Pierre Clastres e de Quentin Skinner são valiosos porque fornecem
à argumentação provas empíricas da verídica possibilidade da sociedade do tesouro perdido;
assim também a assertiva de Gramsci de que afinal se os homens podem ser conformados
para a apatia e indiferença política (ou para a heteronomia) também podem ser conformados
para a atividade política (ou para a autonomia).
A descoberta das causas de tantas sociedades na história terem se dividido internamente
em líderes e liderados e especialmente o motivo, fato ou momento de a sociedade ocidental
ter tomado de forma tão irrevogável esse rumo e assim permanecido é questão das mais
fundamentais que precisamos descobrir e explicar – senão empiricamente, ao menos
filosoficamente; assim como igualmente as causas para o ‘tesouro perdido’ de Hannah Arendt
terem durado tão pouco e terem sido tão instáveis quanto da sua instauração.
Se há igualmente as duas possibilidades para uma sociedade, por que a maioria delas
tendeu para uma mesma conformação, a da heteronomia? Que há que ‘facilita’ ou canaliza os
rumos da criação social a irem por esse caminho? A existência quantitativamente maior da
dominação como relação societária, da injustiça marcando frequentemente as relações sociais
e da separação entre líderes e liderados no que concerne ao âmbito das decisões quanto aos
destinos da sociedade, não é argumento suficiente para sustentar a normativa que visa a
219
invalidar todo projeto de uma sociedade política e radicalmente igualitária. É argumento
apenas que revela seu compromisso com a conservação do status quo.
Recuperando o que foi tratado no capítulo anterior, endosso e adoto aqui a definição de
Castoriadis sobre a essência da política. “Defini o objetivo da política como sendo o de criar
as instituições que, interiorizadas pelos indivíduos, facilitem ao máximo seu acesso à
autonomia individual e à possibilidade de participação efetiva em todo poder explícito
existente na sociedade” (CASTORIADIS, 1999, 69).
A este mesmo objetivo, explorado no capítulo anterior quero agregar de forma
indissociável à definição da ‘política’ e de seus objetivos a preocupação, de mesmo status de
importância quanto ao objeto definido por Castoriadis, constante com a construção de padrões
mais amplos de reconhecimento social, entendida como eliminação das estruturas
estigmatizadoras e violentas da ordem social, conforme o teorizado por Axel Honneth.
Uma sociedade democrática deve caracterizar-se por garantir os meios para participação
efetiva de todos nos processos decisórios e no acesso aos meios de poder, e prover “a garantia
social de relações de reconhecimento capazes de proteger os sujeitos do sofrimento de
desrespeito da maneira mais ampla” (HONNETH, 2003, 219). Deve ter por característica
marcante, pois, “o objetivo de um reconhecimento não distorcido e deslimitado”
(HONNETH, 2003, 269).
Uma vez demonstrado que a estigmatização e a violência têm seu substrato real na
denegação de reconhecimento ao sujeito vitimizado, o objetivo de justiça social passa pela
ampliação dos padrões de reconhecimento, pelo estabelecimento e valorização da relação
ideal de reconhecimento recíproco e pelo provimento das condições intersubjetivas da
integridade pessoal. Assim, a noção um tanto quanto abstrata de “igualdade social efetiva”
ganha materialidade na concreta retirada da denegação de reconhecimento do tecido social.
Conforme Honneth, como não é possível aos homens reagir de modo emocionalmente
neutro ao desrespeito social (ou estigmatização), “a experiência de desrespeito pode tornar-se
o impulso motivacional de uma luta por reconhecimento” (HONNETH, 2003, 224).
Entretanto, a mera ‘possibilidade’ não é suficiente. Que essa possibilidade “seja capaz de
assumir a forma de uma resistência política resulta das possibilidades do discernimento moral
que de maneira inquebrantável estão embutidos naqueles sentimentos negativos” derivados da
experiência de desrespeito. Para Honneth “saber empiricamente se o potencial cognitivo
[inerente a esses sentimentos] se torna uma convicção política e moral depende sobretudo de
como está constituído o entorno político e cultural dos sujeitos atingidos”. E continua:
“somente quando o meio de articulação de um movimento social está disponível é que a
experiência de desrespeito pode tornar-se uma fonte de motivação para ações de resistência
política” (HONNETH, 2003, 224).
Este entorno político e cultural deve ser um dos alvos da ação política orientada para a
emancipação e para um sociedade que vise à democracia social. Deve ser constituído para
valorizar a ação política e o dever de não ficar indiferente à injustiça.
O que Bourdieu suscita como preocupação fundamental dos movimentos sociais, da
ação política e do posicionamento contrário à subalternização é que levem “realmente em
conta todos os efeitos de dominação que se exercem através da cumplicidade objetiva entre as
estruturas [cognitivas, emocionais] incorporadas (...) e as estruturas de grandes instituições em
que se realizam e se reproduzem [não só a dominação mas] (...) toda a ordem social.”
(BOURDIEU, 2009, 139). As diretrizes para a luta social derivadas da compreensão
sociológica da lógica da dominação e elaboradas e explicitadas por Bourdieu centram-se
220
principalmente em reconhecer e não perder de vista como alvo da luta o compromisso
objetivo entre as estruturas objetivas e as estruturas cognitivas da ordem social – geralmente
integradas e de acordo com as estruturas de dominação desta -, compromisso este responsável
por fundar aquela circularidade no código cultural, estrato verdadeiro da dominação para
Bourdieu, seu mecanismo profundo, fundamento pois que precisa ser dissolvido para
derrocada das forças criadores e legitimadoras da dominação.
Para Bourdieu, é tarefa necessária trabalhar para ajudar a criar as condições para os
grupos subalternizados para que eles “saibam trabalhar para inventar e impor, no seio mesmo
do movimento social e apoiando-se organizações nascidas da revolta contra a discriminação
simbólica (...) formas de organização e de ação coletivas e armas eficazes, simbólicas
sobretudo, capazes de abalar as instituições, estatais e jurídicas, que contribuem para eternizar
sua subordinação” (BOURDIEU, 2009, 7).
No que concerne ao tema da justiça social, Bauman nos alerta para a impossibilidade de
criar um modelo ou padrão de justiça válido para sempre.
Para Bauman, pelo modo de ser que é específico da Justiça, não se pode almejar um
modelo abstrato e definido para sempre desta. A justiça, segundo ele, é reino de ambivalência,
desprovida, sob pena de perda de perda de sua própria especificidade, da possibilidade de
soluções definitivas para sempre e de movimentos isentos de riscos; mais do que isso,
necessita desse caráter inconclusivo e ambivalência para manter-se o “desejo de justiça
eternamente vivo, vigilante e – à sua maneira limitada e menos que perfeita – eficaz”. A
justiça “nada [tem] a perder por ter conhecimento de sua endêmica e incurável ambivalência,
[nem] por se abster de uma cruzada antiambivalência (afinal, suicida). É em sua forma nunca
conclusiva, nunca verdadeiramente satisfatória e cronicamente imperfeita, em seu estado de
perpétua auto-indignação” que a justiça corresponde à sua própria essência real.
Ainda segundo Bauman, a fixação de modelos abstratos de justiça [ainda que só se
possa dizer ‘abstratos’ até um certo nível, dado que mesmo abstratos, foram elaborados a
partir de um determinado código cultural e fazendo uso de categorias que são sempre
enraizadas socialmente], ao longo da história, tendeu a criar [talvez mesmo por essa sua
conexão a códigos culturais, como vimos, por definição já comprometidos com a introdução e
conservação de estruturas injustas] condições de possibilidade para a criação de novas
injustiças (ou para manter intocadas algumas).
Tendo isso em mente, o movimento perpétuo da luta pela justiça deve ser assim o da
luta diária contra as manifestações concretas, específicas, particulares de injustiça. Luta diária
guiada - agora conforme o proposto neste trabalho - pela busca da retirada da fonte ou da
unidade da injustiça das formas concretas de relações sociais: a denegação de
reconhecimento. Sendo as variadas formas de injustiça redutíveis a unidade comum da
denegação de reconhecimento, é esta denegação que deve ser eliminada para extinção das
formas concretas (sociais e históricas) de injustiça.
Nesse movimento deve caracterizar-se e se definir a justiça. Se a retirada da denegação
de reconhecimento do tecido social como guia para a conquista da justiça social também
esconde sob si, ou simplesmente não cobre em seu campo de visão formas de injustiça ainda
não mapeadas é coisa para a qual deveremos estar atentos e ser argutos, inclusive (e talvez
especialmente) fazendo recurso de outras formulações teóricas para sua problematização
como referencial teórico e guia prático, para identificação e denúncia de seus pontos cegos.

221
8 Considerações Finais
Ainda que a progressiva universalização do sufrágio no século XX possa ser lida como
avanço na ampliação da democracia, o que se deu na prática efetivamente foi o afastamento
das pessoas da participação política. Segundo uma leitura conservadora:

Os componentes mais salientes do fortalecimento da democracia em


diferentes países poderiam ser comprovados, segundo esta
perspectiva, na ampliação dos direitos políticos eleitorais para
analfabetos e mulheres, na possibilidade de eleição para os cargos
máximos do executivo, na ampliação da democracia nos partidos e
associações. (ANDRADE, 2011, 1)

Entretanto, o que se problematiza aqui é que esta ampliação horizontal da democracia,


entendida como direito de participação na eleição dos representantes e como possiblidade,
apenas formal e abstrata, de ser eleito, significou na verdade “uma diluição do conceito de
democracia, buscando esmaecer qualquer conteúdo questionador das estruturas políticas
vigentes” (ANDRADE, 2011, 1).
Desse modo as elites políticas promoveram mudanças na forma de governo,
apresentando-as como mais democráticas, entretanto, esvaziando todas as atividades políticas
de seu possível conteúdo emancipador.
No mesmo caminho, a concepção de democracia participativa de Pateman, sob o
invólucro - que lhe dá ares de democracia conselhista - da participação dos trabalhadores nas
decisões no âmbito local e na fábrica, é, entretanto limitadíssima, e não corresponde a
organização necessária para a concretização efetiva da democracia assentada em bases
populares. A concepção de Pateman limita-se a tornar mais democrática o regime de governo
representativo. Não coloca em nenhum momento a necessidade da abolição deste e sua
substituição por decisões efetivamente populares.
Diante do fracasso tanto da democracia baseada no sufrágio universal quanto desta
democracia participativa que concebe e somente tolera uma participação popular muito
limitada, abre-se a perspectiva e a necessidade de buscar alternavas que materializem as
ambições dos movimentos populares e de massas.
Nesse sentido, a teorização marxista da democracia conselhista apresenta alternativa
interessante. Esta concepção assenta-se sobre o esforço constante de “criação de novas
instituições políticas baseadas na democracia e na soberania das massas populares”
(ANDRADE, 2011, 1). As reflexões sobre as possibilidades, condições, objetivos e tarefas da
democracia socialista conselhista são feitas com base na análise de experiências concretas de
tomada do poder pelos trabalhadores.

Tratavam-se de órgãos de democracia direta e auto-organização das


massas populares em uma diversidade de situações históricas
marcadas pela luta de classes e a disputa pelo poder político das mãos
da burguesia. A irrupção de órgãos de democracia direta e soberania
das massas contrapostos às instituições da democracia burguesa
(ANDRADE, 2011, 5).
222
Da multiplicidade de exemplos da democracia dos conselhos – dos
quais a Comuna de Paris inaugura uma tradição – é possível localizar
características comuns que provêm da essência da luta de classes sob
o capitalismo. Assim, os conselhos surgem a partir de reivindicações
concretas das massas populares e das suas próprias tradições de ação
política. A classe operária, pelo seu lugar no processo de produção
capitalista, ocupa um lugar destacado na formulação e
desenvolvimento da democracia dos conselhos oposta às instituições
oficiais. Porém, não se trata aqui de idealizar e fetichizar a democracia
dos conselhos. Estes se constituíram sempre como expressões
concretas da história e experiência da ação do movimento operário e
de suas organizações (sindicatos, associações, partidos etc.) e das
tradições locais de soberania das massas em situações revolucionárias.
Não há uma forma ou modelo pronto, mas um caminho comum que
alimentou a organização e funcionamento dos órgãos de soberania,
auto-organização e democracia das massas populares em confronto
com o estado.
(ANDRADE, 2011, 9)

A democracia conselhista emerge assim da própria atividade política dos trabalhadores


em oposição à sua condição de subalternidade na determinação da produção e na direção da
sociedade, como parte da luta contra a subordinação do trabalho ao capital. A democracia
conselhista tem sua realidade fundada em ser um órgão de poder da classe trabalhadora e de
instituição da soberania popular, entretanto, seu conteúdo concreto não é algo possível de ser
determinado previamente, e as decisões a serem tomadas serão sempre alvos de debate
político.

Assim concebida a construção de poder popular poderá vincular, no


mesmo processo: a) o esforço para reverter a atual desagregação e
heterogeneidade da classe-que-vive-do-seu-trabalho, assumindo um
combate social-político que ultrapassa todo “corporativismo”, b) o
desenvolvimento de uma subjetividade revolucionária, e c) a
construção de organizações populares autônomas capazes de obter
reconhecimento e força. Esta força do poder popular poderá assumir
diversas formas e manifestações, mas em todos os casos deverá surgir
da criação de novos laços sociais entre os oprimidos e explorados,
para resistir juntos às pressões do capital e implementar comunicações
alheias aos ditados do mercado e a lógica da valoração. (CASAS,
2001, 18)

A democracia conselhista, organizada nos locais de trabalho e nos locais de moradia,


oferece assim a possibilidade de efetivação da soberania popular, e de oposição à forma de
223
governo e de sociedade em que uma elite se apropria da produção coletiva e em que há
apropriação monopólica do poder.
Ao mesmo tempo, a natureza dos conselhos de serem espaços de debate permanente
permite colocar-se em pautas as diversas demandas emergentes dos variados grupos sociais
participantes dos conselhos, e ao debater essas demandas, concretizar uma concepção de
justiça totalizante através da democracia conselhista.

9 Referências Bibliográficas
ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Comuna de Paris e a democracia dos conselhos. Revista
Espaço Acadêmico. nº 118. Ano 10. 2011. pp. 1-9.
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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CASAS, ALDO. Atualidade da revolução e poder popular. Revista Espaço Acadêmico.
Dossiê Movimentos Sociais e Poder Popular. nº 119. Abril de 2011. pp. 10-19.
CASTORIADIS, Cornelius. Feito e a ser feito: as encruzilhadas do labirinto V. Rio de
Janeiro: DP&A, 1999.
FINLEY, Moses I. Democracia antiga e moderna. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 3a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
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Brasileira, 1982.
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construção democrática: sociedade civil, esfera pública e gestão participativa. Idéias, v. 5,
n.2/v.6, n.1, p.7-122, IFCH, Unicamp, 1999.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São
Paulo: Ed. 34, 2003.
PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, Socialismo e Democracia. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1984.

224
Gramsci e as massas populares: uma leitura a partir do Caderno 11 (1932-1933).

Sérgio M. Turcatto
Universidade Federal Fluminense – UFF – turcatto.sergio @gmail.com

Resumo
A pesquisa trata da relação entre o Caderno 11 de Antonio Gramsci e as massas
populares. Na primeira metade do século XX o autor dos Cadernos aprofundou de modo
original os mais diversos aspectos da filosofia da práxis esboçada pelos fundadores do
materialismo histórico. A partir do problema da unificação entre teoria e prática, se põe a
traçar um projeto de elevação cultural de modo original, ao demonstrar as necessidades
históricas do homem “simples” do povo. Desenvolve seu raciocínio de modo orgânico, na
perspectiva da “relação de hegemonia”. Gramsci demonstra no traçado do segundo
manuscrito carcerário que as massas populares tendem ao conhecimento e à atividade
intelectual, de modo autônomo, crítico e criativo. A organicidade de pensamento e a solidez
cultural só podem ocorrer entre os intelectuais e os simples tendo em vista a constituição de
um bloco cultural e social. A configuração de uma intelectualidade subalterna permite a
construção de um Estado ético, visto que amplia e aprofunda tanto a identidade do homem
subalterno, quanto dos intelectuais de novo tipo. Para isso é necessário traduzir de modo
democrático, o remanejamento relativo do conflito, na medida em que amplia e aprofunda a
habilidade produtiva de convivência humana das massas populares.
Palavras-chave: Antonio Gramsci; Filosofia da práxis; Massa popular; Hegemonia.

1 Introdução
O presente trabalho investiga a relação entre o pensamento de Antonio Gramsci e as
massas populares sob a perspectiva da elevação cultural. Aponta para uma determinada
originalidade do pensador sardo, pois implica em não acreditar que as massas populares sejam
portadoras de alguma verdade apriori ou pela capacidade de operar de modo infalível. Para
conquistar um verdadeiro espaço no conjunto das relações sociais, elas necessitam “passar
por um processo constitutivo de sua identidade, de sua intelectualidade e por uma educação
que exige a construção rigorosa de um saber mais avançado e socializado” (SEMERARO,
2006, p. 2).
Os escritos carcerários de Antonio Gramsci fazem notar que o trabalho de investigação
sobre as massas populares não se apoia em abstratismos, dogmatismos, jogos da linguagem ou
formas determinadas pela filosofia dominante. As reflexões desenvolvidas nos diversos
Cadernos estão assentadas na seguinte pergunta aglutinadora: “Como nasce o movimento
histórico sobre a base da estrutura?” (Q108 11, § 22, p. 1422). Em outras palavras, como ter a
iniciativa numa sociedade determinada pelo poder econômico? Ou qual é o caminho para
108
Deste ponto em diante, usaremos, como abreviatura padrão, o símbolo Q para designar os Cadernos do
Cárcere, principal obra de Antônio Gramsci, escrita em forma de ensaios, apontamentos, texto investigativos e de
auto estudo, nos anos que Gramsci esteve preso. Nesta abreviatura, amplamente usada por analistas e
investigadores da obra do grande teórico sardo, os algarismos que seguem à letra Q referem-se ao número do
Caderno específico, seguido ou não do parágrafo, §. Neste caso acima, trata-se dos Cadernos 4, 7, 8, 10, 11, 16.
225
chegar à hegemonia das massas populares numa realidade historicamente marcada pelo
colonialismo ideológico, a “crença numa ordem ontológica superior e que o pensamento se
forma dentro de determinadas normas sociais e lógicas” (SEMERARO, 2009, p. 165),
pautado por um tipo de racionalidade cindida e reduzida? Na prática, o marxista sardo verifica
que o caminho para transformar a cultura popular só pode partir dela própria e não
externamente.
Gramsci escreveu o Caderno 11 entre 1932 e 1933, intitulado Introdução ao estudo da
filosofia e está dividido em duas partes. A primeira parte trata do desenvolvimento moral o
homem simples do povo, intitulado de Apontamentos e Referências de Caráter Histórico-
crítico, com apenas 11 parágrafos. Problematizou a educação do seu tempo e das massas
populares da seguinte maneira:
A história dos grupos sociais subalternos é necessariamente
desagregada e episódica. É indubitável que, na atividade histórica
destes grupos, existe tendência à unificação, ainda que em termos
provisórios, mas esta tendência é continuamente rompida pela
inciativa dos grupos dominantes e, portanto, só pode ser demonstrada
com o ciclo histórico encerrado, se este se encerra com sucesso. Os
grupos subalternos sofrem sempre a iniciativa dos grupos dominantes,
mesmo quando se rebelam e insurgem: só a vitória “permanente”
rompe, e não imediatamente, a subordinação (Q 25, § 2, p. 2283-
2284).
Se as iniciativas autônomas das massas populares para Gramsci devem ser pesquisadas
pelos historiadores integrais considerando a preciosidade de tais traços, na segunda parte do
Caderno 11, aponta um projeto de elevação cultural das massas populares, intitulado
Apontamentos para uma Introdução e um Encaminhamento ao Estudo da Filosofia e da
História da Cultura. A problematização está centrada sobre a atividade intelectual do homem
de massa. Gramsci demonstra, ao longo de 58 parágrafos, a tese de que “todos os homens são
filósofos” (Q 11, § 12, p.1375). Encontramo-nos diante de uma obra na qual as ideias estão
em movimento. Conteúdo e forma estão profundamente interconectados. Os manuscritos
carcerários devem “ser considerados como não-livro ou ainda-não-livro” (BARATTA, 2004,
p. 97-98), pois trata-se de uma produção intelectual que se encontra em “meio caminho”, que
necessita ser investigado de modo filológico, tendo em vista extrair “conceitos” mais
universais.
A motivação do projeto gramsciano de elevação cultural das massas populares partiu
dos recentes desenvolvimentos da filosofia da práxis e da crítica ao Ensaio popular de
Bukharin. Se no movimento cultural na Rússia da década de 1930, Gramsci encontrara
novidades nas leituras sobre Trocky109, Michael Fabmam110, Dimitrij P. Mirskij111 e Henri De

109
Trocky Trockij ou Lev Davidovich Trotsky (1879–1940) escreveu livros importantes, dentre eles Vers le
Capitalisme ou Vers le Socialisme e La Révolution Défigurée, fundamentais para que Gramsci pudesse iniciar o
seu trabalho sobre o Q 11.
110
Michael Fabmam, pseudônimo de Grigori Abramowitz (1880–1933), nasceu em Odessa, Rússia. Estudou em
Munique e Zurique, tornando-se sionista socialista, editor e jornalista. Ele publicara na revista The Economist em
1 de novembro de 1930 um suplemento sobre An Impression of Russia. Gramsci o lerá em junho de 1931.
111
Dimitrij P. Mirskij (1890-1939) de berço familiar monarquista, após a Revolução de Outubro seguiu para
Londres, onde foi professor da University of London. Publicou seu mais famoso estudo sobre a literatura russa.
Em 1931, entrou para o Partido Comunista Britânico, o que lhe garantiu um retorno à Rússia (ou melhor, à
URSS) em 1932 (cf., OLIVEIRA, 2008, p. 192).
226
Man112. Mirskij relatava o plano quinquenal soviético empreendido por Stálin num
suplemento do The Economist de 1º de novembro de 1930. Enfatizava a nova realidade vivida
pelos russos após a instauração do socialismo e o lugar que a filosofia passa a ocupar no
processo de implantação da Revolução Cultural. Observou que no interior desse projeto
subsistiam resíduos de mecanicismo, visto que havia uma separação entre intelectuais e
massas populares. Já no Ensaio Popular de Bukharin não há um tratamento efetivo da
dialética, pois estava subentendida. O Ensaio deveria expor com clareza os elementos
essenciais do marxismo, elencar referências bibliográficas para implementar o estudo sobre as
necessidades históricas antecedentes e sobre o concreto existente das próprias massas
populares.
Para Gramsci a “filosofia da práxis” e a história da cultura das massas populares estão
profundamente imbricadas. No Caderno 11 apresenta uma perspectiva de “filosofia da práxis”
bem distinta da anterior, não mais voltada para a Teoria da história e da historiografia. Essa
nova perspectiva de filosofia está alicerçada na atividade intelectual e crítica do homem
“simples”. Por isso, este texto aponta para uma metodologia que visa demonstrar a
necessidade histórica antecedentes e consequentes das massas populares, bem como,
aprofundar a unificação entre a teoria e a prática, tendo em vista um processo pedagógico
capaz de construir uma nova concepção de mundo e de cultura.
Nessa perspectiva Gramsci é inovador. Fundamentou cientificamente um novo tipo de
saber que parte do interior das massas populares na relação com seus intelectuais. Aos
intelectuais cabe alimentar a participação ativa da massa e da íntima relação entre ética-
política-filosofia:
A compreensão crítica de si mesmo é obtida [...] através de uma luta
de ‘hegemonias’ políticas, de direções contrastantes, primeiro no
campo da ética, depois no campo da política, atingindo, finalmente,
uma elaboração superior da própria concepção do real (ibidem, p.
1385).
O projeto de elevação cultural das massas populares será construído concretamente
“se a filosofia da práxis for concebida como uma filosofia integral e original, que inicia uma
nova fase na história e no desenvolvimento mundial do pensamento, na medida em que
supera [...] tanto o idealismo quanto o materialismo tradicionais” (Q 11, § 22, p. 1427). É
necessário demonstrar que a assimilação de teoria e prática “é um ato crítico, pelo qual se
demonstra que a prática é racional e necessária ou que a teoria é realista e racional” (Q 15,
§ 22, p. 1780).

2 Caderno 11: conexões com as massas popularese


Considerando que o marxista sardo afirma na abertura da segunda parte do Caderno 11
a necessidade de “destruir o preconceito, muito difundido, de que a filosofia é algo muito
difícil pelo fato de ser a atividade intelectual própria de uma determinada categoria de
cientistas especializados ou filósofos profissionais e sistemáticos” (Q 11, § 12, p. 1375),

112
Henri De Man (1885 – 1953), líder do Partido Trabalhista belga, teórico do neo-socialismo, participou do
grupo que planejara a superação da depressão de 1930. Ele escreveu dois livros significativos para Gramsci: A
Superação do Marxismo e a Alegria do Trabalho, ambos traduzidos para o italiano, respectivamente em 1929 e
1930, com grande sucesso. O pensador sardo se ocupará de vários parágrafos para criticar duramente as ideias
deste refugiado político na Suíça desde 1941.
227
“filosofia dos não filósofos” pode ser encontrada na linguagem, no senso comum e na religião.
O termo “espontâneo” possui distintas definições, visto que esse tipo de expressão está
perpassado por referências multilaterais. Não há como encontrar na história a espontaneidade
“pura”, em si. Ela só pode ser compreendida no conjunto das relações sociais. Todavia, no
interior do senso comum verifica-se o movimento “‘mais espontâneo’, [das massas populares
aponta que] os elementos de ‘direção consciente’ são simplesmente impossíveis de controlar,
não deixaram nenhum documento comprovável” (Q 3, § 48, p. 328).
A “filosofia espontânea” pode ser caracterizada como a “história das classes
populares”. Nela encontram-se “elementos mais marginais e periféricos destas classes, que
não alcançaram a consciência de classe “para si” e que, por isto, sequer suspeitam que sua
história possa ter alguma importância e que tenha algum valor deixar traços documentais”
(ibidem, p. 328).
Afirmar a existência e o movimento de uma variedade de elementos de “direção
consciente”, não implica que o nível da “ciência popular” ultrapasse determinada concepção
de mundo tradicional de certo estrato social. Mesmo no interior dessa concepção de mundo
clássica àquele determinado grupo social, existe o movimento, que nem sempre é acrítico e
inconsciente. Entretanto, religião e senso comum poderiam constituir uma ordem intelectual?
Se há uma estreita conexão entre religião, senso comum e filosofia, do ponto de vista
do conhecimento, só a filosofia é uma ordem intelectual, capaz de criticar e de se contrapor
tanto ao senso comum quanto à religião. Pois não há possibilidade de reduzi-los à unidade e
coerência, tão pouco na consciência individual ou coletiva, mesmo que dentro de certos
limites do passado, ocorreu de fato uma redução à unidade de coerência de forma “natural”,
considerando a necessidade de doutrinamento dos simples por parte das classes mais cultas.
Essa normatização ocorre tanto de modo vertical, entre ciência-religião-senso comum
quanto horizontal, por entender que a unidade de fé da “religião”, como a “ideologia” e
mesmo a “política” tecem relações dentro de um determinado estrato social e sua ascendência
sobre estratos subjugados.
No caso da relação horizontal da unidade de fé, De Man demonstra sua contraposição
ao marxismo por comprovar que há raízes historicamente substanciais e que estão
esparramadas no tecido, na psicologia de determinados estratos populares. Essa comprovação,
ainda que incidental por parte de De Man, deve ser posta nos seguintes termos:
Demonstra a necessidade de estudar e elaborar os elementos da
psicologia popular, historicamente e não sociologicamente, ativamente
(isto é, para transformá-los, através da educação, numa mentalidade
moderna) e não descritivamente, como ele faz; mas esta necessidade
estava pelo menos implícita (talvez também explicitamente declarada)
na doutrina de Ilitch113, coisa que De Man ignora completamente (Q 3,
§ 48, p. 329).
Todo movimento “espontâneo” está perpassado por um elemento primeiro de direção
consciente e de disciplina. Se em determinados estratos sociais, especialmente nas classes

113
Segundo Frosini (2011), Gramsci usou nos seus escritos carcerários nomes desconhecidos do fascismo para
preservar sua produção, como no caso de Ilitch, ou seja, Vladimir Ilitch Ulianov, mais conhecido por Lênin.
Ilitch viveu entre 1870 e 1924 e foi um dos principais líderes da Revolução Russa de outubro de 1917. Defendia
a ideia de que o indivíduo possuía uma papel revolucionário frente aos processos de transformação social,
opondo-se ao determinismo histórico de certas interpretações do materialismo dialético.
228
populares, a espontaneidade é reivindicada como método, deve-se distinguir interesses
aventureiros que evocam das massas e da ação política real dos “simples”. Neles há unidade
de uma relativa “espontaneidade” e “direção consciente”, presente na norma disciplinar,
compondo elementos do inconsciente. O elemento “espontâneo” das massas populares é
assim definido:
“Espontâneos” no sentido de que não se devem a uma atividade
educadora sistemática por parte de um grupo dirigente já consciente,
mas que se formaram através da experiência cotidiana iluminada pelo
“senso comum”, ou seja, pela concepção tradicional popular do mundo,
aquilo que muito pedestremente se chama de “instinto” e que, ele
próprio, é somente uma conquista histórica primitiva e elementar
(ibidem, p. 330-331).
Percebe-se que o marxista sardo busca uma base firme para a “filosofia espontânea”,
que possibilite tomá-la como conquista histórica, ainda que primitiva e embrionária. Esse tipo
de conquista, expressa em forma de sentimento pelas massas populares, estaria em oposição à
teoria moderna? “Não pode estar em oposição: entre eles há diferença ‘quantitativa’, de
grau, não de qualidade: deve ser possível uma ‘conversão’, por assim dizer, uma passagem
da teoria para os sentimentos e vice-versa” (ibidem, p. 332).
Para que esse movimento de conversibilidade aconteça, faz-se necessário uma
“filologia viva”114. Esse modelo relacional se associa ao caráter móvel e dinâmico dos
conceitos no campo da filosofia da práxis. Neste sentido, há uma peculiaridade do autor dos
Cadernos ao construir o discurso, enquanto “pensador coletivo” e “filósofo democrático”. Se
num primeiro plano, desenvolve uma análise dos elementos que se apresentam dentro de um
determinado contexto histórico, de maneira paciente e pontual, que se amplia ao longo do
discurso, registra nos quadros da história as possíveis necessidades do homem simples e do
homem ativo de massa. Esse modo de produzir o discurso assenta os fundamentos de um
“novo senso comum” e sua relação com a “nova cultura”.
Na investigação de Gramsci percebe-se ainda no primeiro manuscrito carcerário a
ideia de que “cada estrato social tem o seu senso comum” (Q 1, § 65, p. 76). Afirmou que o
termo é extremamente genérico. Para entendê-lo é necessário traduzi-lo em suas devidas
articulações. Depois constata que o senso comum em si é inexistente, assim como a filosofia,
só existe em circunstâncias diversas, segundo os sentidos comuns dos diferentes estratos
sociais. Numa terceira ampliação do conteúdo, o senso comum só existe em situações e fases
diversas, constituindo-se pelo sentido comum do mesmo estrato social. Observou que entre os
próprios intelectuais existe um tipo de senso comum.
O termo “espontâneo” em muitos momentos do texto de Gramsci confunde-se com o
termo “senso comum”. O marxista sardo afirma que os elementos principais do senso comum
são produzidos pelas religiões. A estreita conexão entre senso comum e religião não coincide
com a filosofia. Entretanto, o senso comum “é um produto e um devir histórico” (Q 11, § 12,
p. 1378), que carece de criticidade e de distinção. Nele prevalecem

114
Segundo Baratta (2004), o termo filologia está entre aspas por ilustrar o uso metafórico e ampliado. É a
expressão metodológica do significado dos fatos particulares sob a perspectiva das individualidades definidas e
perfeitas. Ele permite passar “‘naturalmente’ da instância da experiência individual, singular, à expressão e
instrumento de um organismo coletivo antitotalitário, ‘democrático’”(BARATTA, 2004, p. 111).
229
[...] “elementos ‘realistas’, materialistas, isto é, o produto imediato da
sensação bruta, o que, de resto, não está em contradição com o
elemento religioso, ao contrário; mas estes elementos são
‘supersticiosos’, acríticos” (Q 8, § 173, p. 1045).
A posição de Gramsci é crítica em relação ao senso comum: “seu caráter fundamental
é ser uma concepção do mundo desagregada, incoerente, inconsequente, conforme com o
caráter das multidões das quais ele é a filosofia” (ibidem, p. 1045). Esse modo de perceber o
senso comum não significa que deva ser anulado enquanto tal. Não resta dúvida que as
filosofias que residem no senso comum se contrapõem à filosofia “homogênea” ou
sistemática. No entanto torna-se necessário definir com clareza o que se deve entender por
“sistema”, para evitar uma acepção no sentido pedante e professoral. Uma filosofia
sistemática é orgânica à classe subalterna, quando possui solidez organizativa e centralização
cultural. Neste sentido Gramsci faz a seguinte ponderação:
É possível dizer corretamente que uma verdade determinada tornou-se
senso comum visando a indicar que se difundiu para além do círculo
dos grupos intelectuais, mas, neste caso, nada mais se faz do que uma
constatação de caráter histórico e uma afirmação de racionalidade
histórica; neste sentido, contanto que seja empregado com sobriedade, o
argumento tem o seu valor, precisamente porque o senso comum é
grosseiramente misoneísta e conservador, e ter conseguido inserir nele
uma nova verdade é prova de que tal verdade tem uma grande força de
expansividade e de evidência (Q 11, § 13, p. 1399-1400).
Na filosofia “espontânea” predomina um tipo de educação que não é sistemática.
Nela, os elementos psicológicos determinam a imperatividade. A norma de conduta está
relacionada a uma concepção de mundo conectada pela unidade de fé. A relação que é
assegurada pela “ideologia” ou mesmo pela “política” se transforma pela educação no campo
da sociabilidade.
Por isso a questão da elaboração da identidade do homem “simples” torna-se mais
evidente para Gramsci a partir dos hodiernos desenvolvimentos da filosofia da práxis, isto é,
na segunda e terceira década do século passado. O problema da unidade entre teoria e prática
fundamenta a atitude dos intelectuais em elaborar e tornar coerente os problemas e os
princípios que o senso comum colocou como sua atividade política. Há necessidade de
demonstrar que o elemento determinista, fatalista e mecanicista fora uma espécie de “aroma”
ideológico confinante da “filosofia da práxis, uma forma de religião e de excitante (mas ao
modo dos narcóticos) tornada necessária e justificada historicamente pelo caráter
‘subalterno’ de determinados estratos sociais” (Q 11, § 12, p. 1387).
Essa problemática da necessidade histórica do homem simples também pode ser
verificada, ainda que de forma distinta, na Contrarreforma. A Igreja Católica esterilizou o
cristianismo ingênuo para delimitar a efervescência das forças populares. Essa tarefa coube à
última grande ordem religiosa, de cunho reacionário e com um viés totalmente repressivo
“diplomático”: a Companhia de Jesus. Os jesuítas assumiram uma nova postura perante o
organismo católico, explicitado no Concílio de Trento. Com isso, a Igreja eliminava o
cristianismo ingênuo e instituía o cristianismo jesuitizado, tornando-o o “ópio”, do povo,
segundo Feuerbach, ou das massas populares, segundo Gramsci.

230
Entretanto, há determinadas especificidades entre essas duas concepções de mundo,
pois ambas fazem a passagem explícita da estrutura para o domínio da superestrutura. Ambas
tratam da política, todavia em níveis distintos. Enquanto a cristandade é estilhaçada pelo
movimento do homem ativo, mantendo o homem “simples” na filosofia do senso comum, a
antítese é a filosofia da práxis, mesmo com resíduos do mecanicismo, programa uma
sociedade regulada e cria elementos para uma nova cultura.
Gramsci não despreza é a “experimentação” histórica criada pela religião. A
conservação das posições políticas da Igreja Católica freou as forças renovadoras da própria
ideologia. Para a Igreja se manter na superestrutura, transformando-se em “jesuitismo”,
modernizando as “ordens religiosas” e ao criar “prelados” e “políticos”, refinou e endureceu
o organismo católico, ao elaborar um partido político denominado de Democracia Cristã.
Todo esse movimento cultural traduz a necessidade histórica do contraste entre o agir e o
pensar, entre filosofia e senso comum.
É a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam
em “partido”, entram em confrontação e lutam até que uma delas, ou
pelo menos uma única combinação delas, tenda a prevalecer, a se
impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além da
unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade
intelectual e moral, pondo todas as questões em torno das quais ferve
a luta não no plano corporativo, mas num plano “universal”, criando
assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série
de grupos subordinados (Q 13, § 17, p. 1584).
A confrontação e a luta só podem ser percebidas no movimento histórico entre forças
contrastantes. Se na Idade Média não havia explicitamente partidos políticos, no entanto,
havia disputas políticas expressas pelos movimentos populares religiosos. Esses movimentos
suscitaram conflitos simultâneos mediante a “politicagem” tanto dos “prelados”, quanto da
legitimação ideológica da filosofia escolástica. Se houve rupturas entre as “almas simples” e
os intelectuais, a Igreja os reabsorve, “através da formação das ordens religiosas
mendicantes e de uma nova unidade religiosa” (Q 11, § 12, p. 1384).
O cristianismo substituiu a concepção ingênua de cristianismo pelo jesuítico, mas não
neutralizou os movimentos populares religiosos, visto que a massa de fiéis progredisse
cientificamente ao ponto de inovar os movimentos populares, tornando-os mais concretos.
Gohn (2003) faz a seguinte afirmação:
Na realidade histórica, os movimentos sempre existiram e cremos que
sempre existirão. Isto porque eles representam forças sociais
organizadas que aglutinam as pessoas não como força-tarefa, de ordem
numérica, mas como campo de atividades sociais, e essas atividades são
fontes geradoras de criatividade e inovações socioculturais (GOHN,
2003, p. 14).
A necessidade histórica se apresenta porque não houve a unidade entre teoria e prática,
mesmo com a superação das paixões bestiais, com seus interesses econômicos na perspectiva
da atividade econômica de massa. Essa possibilidade de previsão deve ser vista enquanto
movimento popular religioso, ainda que contraditoriamente diferente, por exemplo, dos
empreendimentos jesuíticos na região dos Sete Povos das Missões, região oeste do Estado do
Rio Grande do Sul, Canudos e Contestado.

231
Movimentos populares religiosos pautados pela profunda contradição no interior das
religiões e pela exploração abusiva do modelo econômico vigente, permitiu que determinados
grupos com seus intelectuais empreendessem a consciência política e a construção de uma
perspectiva de organicidade. É o momento da crítica e da consciência, pois é preferível refinar
a própria concepção de mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação
com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar
ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo e não mais aceitar do
exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade, para elaborar a própria
identidade (cf., Q 11, § 12, p. 1376), materializa através da
Via Campesina, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST), o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), as
organizações indígenas, a Coordenação dos Movimentos Sociais
(CMS), o Grito dos Excluídos, o Fórum Social Mundial (FSM), a Rede
Jubileu Sul, o Fórum Social das Américas, a Assembleia Popular, a
Marcha Mundial das Mulheres, a Consulta Popular, o Movimento
Unificado dos Negros, as pastorais sociais, mobilizações de estudantes,
práticas de educação popular, protestos, consultas e plebiscitos (Alca,
Vale, Tarifas energéticas, Petróleo, Ficha limpa, Propriedade da terra,
Clima, entre outros), revelam uma atuação de primeira linha das forças
populares no âmbito da sociedade civil (SEMERARO, 2014, p. 72).
Gramsci substitui o termo “simples” por “homem ativo de massa”. Certamente essa
mudança está condicionada à superação de uma determinada “época normal” por outra. Esse
homem ativo de massa está mergulhado num processo contraditório, por ser portador de duas
consciências teóricas, que pela compreensão crítica de si mesmo, perpassado por uma luta
interna de “hegemonias” políticas, busca uma elaboração superior.
Instala-se a relação de força entre a filosofia ingênua de massa e a filosofia reflexiva e
coerentemente elaborada pelos dirigentes intelectuais de classe. Gramsci não especula sobre a
filosofia ingênua de massa, mas é objetivo ao afirmar que se pode esperar que o subalterno
quisesse ser dirigente e responsável. No interior da filosofia ingênua de massa onde se
justificava o caráter “subalterno” de determinadas forças sociais, Gramsci chama atenção para
a seguinte configuração das forças:
Quando não se tem a iniciativa na luta e a própria luta termina assim
por identificar-se com uma série de derrotas, o determinismo mecânico
transforma-se em uma formidável força de resistência moral, de coesão,
de perseverança paciente e obstinada. ‘Eu estou momentaneamente
derrotado, mas a força das coisas trabalha por mim a longo prazo’,
etc.(ibidem, p. 1387).
O autor dos Cadernos não despreza o movimento das classes subalternas, mas parece
justo que essa problemática deva ser posta historicamente. A atividade intelectual do
subalterno implica inicialmente na elaboração da própria consciência política e na criação da
autoconsciência critica dos seus problemas. A criação de uma massa humana intelectualmente
subalterna implica na íntima relação entre subalterno e intelectual ou dirigente. Se as classes
subalternas não tiverem seus problemas elaborados e tornado coerente os princípios, a classe
dirigente não será dominante sem a fidelidade das massas. Para reformar a massa é necessário
que a filosofia da práxis forje a reforma intelectual e moral, isto é, a mudança no modo de
pensar, correndo o risco de repetir a futilidade do mecanicismo. Daí a insistência sobre o
232
elemento “prático”, que favorece a ligação teórica entre subalternos e grupo dirigente,
materializado nos partidos políticos.
Se a Igreja instituiu o partido político para manter a unidade ideológica de forma
arbitrária e deliberada, a filosofia da práxis gera uma perspectiva ativa da atividade volitiva na
massa subalterna. Para o marxista sardo, o partido político ou “moderno príncipe” é o espaços
de disputa, a passagem da consciência à autoconsciência, formadores do novo modo de
pensar, pela adesão individual e não ao modo mecânico, produtivista (cf., ibidem, p. 1387).
Para Gramsci, a conformação da atividade intelectual e concepção do subalterno no
conjunto das relações sociais se apresentam pela vontade real que se
[...] disfarça em um ato de fé, numa certa racionalidade da história,
numa forma empírica e primitiva de finalismo apaixonado, que surge
como substituto da predestinação, da providência, etc., próprias das
religiões confessionais (ibidem, p. 1387).
Gramsci afirma a atividade volitiva do subalterno, o núcleo sadio do senso comum ou
que necessita de uma intervenção direta, ainda que de maneira implícita devido à “força das
coisas”, visto que sua consciência é contraditória e precisa de unidade crítica. A interversão
deve ocorrer no modo de pensar, que não está separada da luta política, pois toda relação de
hegemonia é uma disputa que gera aprendizado, amplia o conhecimento científico da massa.
Por isso, o movimento de ampliação do conhecimento filosófico só pode ser vivido pelas
massas populares no campo da disputa e jamais aceitam mudar de forma “pura”, mas por
combinações “mais ou menos heteróclitas e bizarras” (ibidem, p. 1390). A relação ativa das
massas se constitui pela unidade de fé de uma norma de conduta e da filosofia da práxis. O
elemento racional é decisivo na relação política entre os intelectuais e os subalternos. Os
partidos políticos introduzem o elemento racional, geram organicidade de pensamento, da
configuração de um novo senso comum, de uma nova cultura. O processo de amadurecimento
de uma concepção de mundo subalterna intelectualmente exige a configuração de uma nova
ideologia. Essa ideologia só pode ser vivida através da intelectualidade subordinada das
camadas populares. No § 12 do Q 11, Gramsci elenca passos necessários para a constituição
da identidade do subalterno.
1º. O homem ativo adquire compreensão crítica de si mesmo a partir de uma luta de
“hegemonias” políticas, isto é, a formação da consciência política;
2º. O contato com uma elite intelectual, pois “uma massa humana não se ‘distingue’ e
não se torna independente ‘para si’ sem organizar-se (em sentido lato); e não existe
organização sem intelectuais” (Q 11, § 12, p. 1386);
3º. A confecção de uma racionalidade histórica, pois o homem ativo carece de unidade
crítica;
4º. Pela atividade volitiva, esse homem ativo participa do elemento “prático” da
ligação intelectual, em especial o crisol da unificação teórica e prática, isto é, os partidos
políticos;
5º. Pela atividade econômica, o homem ativo se torna dirigente e responsável. Esse
processo modifica o seu modo social de ser, devido à revisão de todo o modo de pensar.

233
6º. Na medida em que os limites e o domínio da “força das coisas” se encurta, o
homem ativo era, na história precedente, uma coisa, no concreto existente assume a
identidade de subalterno;
Para manter a unidade ideológica de uma concepção de mundo, a organicidade de
pensamento e a solidez cultural possibilitam distinguir as novas convicções das classes
subalternas, dada a sua fragilidade e debilidade quando estão em contradição com os
interesses das classes dominantes.

3 Uma perspectiva de mundo em luta


Para Gramsci a tese de que “a hegemonia realizada significa a crítica real duma
filosofia, a sua real dialética” (Q 7, § 33, p. 882), indica claramente para as necessidades
históricas das massas populares. Para elevar culturalmente o homem “simples” do povo a
filosofia da práxis “revela-se a metodologia histórica mais adequada à realidade e à
verdade” (Q 11, § 45, p. 1468), isto é, uma nova dialética como gnosiologia, segundo Martelli
(1996), Baratta (2004), (20011), Frosini (2003), (2004), (2009), (2010), Semeraro (2006),
(2009), Simionatto ( 2011).
No empreendimento do Caderno 11 Gramsci demonstra que não há possibilidade de
separar conteúdo e método, teoria e prática. Por se tratar de um texto que o próprio autor
aponta a necessidade de rever todas as notas minunciosamente, a fim de superar possíveis
inexatidões, falsas aproximações, anacronismos, o conteúdo e forma neste Caderno ainda não
estão separados claramente. A linha cronológica do seu desenvolvimento possibilita
compreender sua genealogia e observar no traçado deste texto, o passo a passo deste projeto.
Se a grande tarefa da filosofia da práxis é elaborar conceitos mais universais, certamente o
autor quis evitar que o seu texto assumisse a perspectiva de um manual. Não é à toa que
realizou observações e notas críticas sobre o Ensaio Popular de Bukharin, pois se equivoca
esse autor ao pressupor que a filosofia primitiva presente nas massas populares estaria em
oposição aos grandes sistemas filosóficos. Na verdade, os sistemas filosóficos são
desconhecidos pelas multidões, atuando como forças políticas externas, não tendo eficácia
direta sobre o seu modo de pensar e de agir. Segundo Gramsci, o autor do Ensaio Popular
parte da crítica às filosofias sistemáticas, “ao invés de partir da crítica do senso comum, [o
qual] deve ser entendido como observação metodológica, dentro de certos limites” (Q 11, §
13, p. 1396).
Para analisar tal perspectiva, o autor dos Cadernos fundamenta sua crítica com base
nos seguintes trechos de Marx: 1) “É certo que a arma da crítica não pode substituir a crítica
das armas, que o poder material tem de ser derrotado pelo poder material, mas também a
teoria transforma-se em poder material, apodera das massas” (MARX, p. 151, 2010); 2) “Ao
adquirir a ideia da igualdade humana à consistência de uma convicção popular é que se pode
decifrar o segredo de expressão do valor, a igualdade e a equivalência de todos os trabalhos,
porque são e enquanto são trabalho humano em geral” (MARX, 2003, p. 81-82). Estes dois
trechos de Marx demonstram que a universalidade dos conceitos está especificamente naquilo
em que transforma. Primeiro como “estímulo para conhecer melhor a realidade efetiva num
ambiente diverso daquele onde foi descoberta, residindo nisso seu primeiro grau de
fecundidade” (Q 9, § 63, p. 1134). Em seguida, esta perspectiva está intimamente associada
ao estímulo e anexação do devido entendimento da realidade quanto tal, assumindo uma
expressão profundamente originária. “Nessa incorporação reside sua concreta

234
universalidade, e não meramente em sua coerência lógica e formal, nem em ser um
instrumento polêmico útil para confundir o adversário” (ibidem, p. 1134).
A filosofia da práxis possui a tarefa de combater tanto o conceito de racionalidade
como inovação na perspectiva idealista ou mecanicista, quanto reconhecer e demonstrar que a
verdade racional tem sua “razão de existir serviu de racional, “facilitou” o desenvolvimento
histórico e a vida” (Q 14, § 67, p. 1727). Dessa “racionalidade” original reconhecida, deve-
se “propor a pergunta se em cada caso particular esta racionalidade ainda existe, na medida
em que ainda existam as condições nas quais a racionalidade se baseava” (ibidem, p. 1727).
Para isso Gramsci desenvolveu a perspectiva histórico-política do método, isto é, a
fontes da dialética. Se o emprego da lógica e a metodologia geral, as quais foram concebidas
pelas filosofias especulativas como existentes em si e por si, desvinculadas do pensamento
concreto e das próprias ciências particulares concretas, “para a filosofia da práxis o ser não
pode ser separado do pensar, homem da natureza, a atividade de matéria, o sujeito do objeto;
se se faz esta separação, cai-se numa das muitas formas de religião ou na abstração sem
sentido” (Q 11, § 37, p. 1457). Só é possível separar o fato técnico do fato filosófico com
finalidades práticas e didáticas, isto é, para a construção dos programas didáticos. A técnica
do pensamento “fornecerá critérios de julgamento e controle, bem como corrigirá as
distorções do modo de pensar do senso comum” (ibidem, p. 1465). Se entre “técnica” e
“pensamento em ato” há uma profunda identidade, será possível explicar a coexistência de
muitos sistemas filosóficos e correntes de filosofia? Nos quadros da história da filosofia
verifica-se o movimento do pensamento no curso dos séculos, o esforço coletivo necessário
para que existisse o atual modo de se pensar e as exigências de sua correção. Essas formas de
pensamento precisam ser dosadas de “criticismo” e “historicismo”.
Nessa perspectiva Engels salientara no prefácio do Anti-Dühring, que “a arte de
operar com os conceitos não é algo inato ou dado na consciência comum, mas é um trabalho
técnico de pensamento, que tem uma longa história, tanto quanto a pesquisa experimental
das ciências naturais” (Q 11, § 44, p. 1461). Gramsci se preocupa em problematizar as
exigências metodológicas não para os intelectuais e as classes cultas, mas para o homem
“simples” do povo, isto é, para as massas populares incultas, “para as quais é ainda
necessária a conquista da lógica formal, da mais elementar gramática do pensamento e da
língua” (ibidem, p. 1464). Segundo Semeraro (2009), esse viés político empreendido pelo
marxista sardo sustenta indicações metodológicas para interferir de modo interno na
construção da consciência e da crítica dos grupos subalternos.
Gramsci traça o percurso metodológico político-formativo da estreita conexão com a
teoria da hegemonia, isto é, a dialética intelectuais-massa. Sustenta a tese de “um
cognitivismo gramsciano peculiar” (BARATTA, 2011, p. 267), fundado na igual relação
hegemonia-tradutibilidade. A relação pedagógica não se detém apenas na escola como o
único espaço formativo. “Essa relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e para
cada indivíduo em relação aos outros indivíduos, entre classes intelectuais e não intelectuais
[...]” (Q 10, II, § 44, p. 1331). A luta é pedagógica, pois as classes populares almejam educar
a si mesmas na arte do governo.
Esse modo de expor os princípios e os problemas do homem simples do povo está
imbricado numa profunda “relação pedagógica”, além do seu caráter orgânico, o embate não é
tanto o conhecimento, quanto de “método” de conhecimento. Sob essa perspectiva é que
Gramsci recoloca a lei de tendência de David Ricardo na perspectiva da luta. Pois se trata em
“colocar quem aprende na condição de prosseguir autônoma e livremente o processo que o
235
levou a conseguir determinados conhecimentos” (BARATTA, 2011, p. 269). Esse modelo
pedagógico tem seu ponto de partida na diferença, no contraste perpassado pela “luta
hegemônica” definida como “a recomposição relativa do conflito, ou seja, a sua resolução
numa capacidade produtiva de convivência” (ibidem, p. 269). A tradutibilidade aparece nessa
relação como elemento imprescindível para reduzir à “política” todas as filosofias
especulativas e possibilitar que a filosofia da práxis cresça politicamente. A filosofia como
uma ordem intelectual, só ela pode reduzir-se à unidade e à coerência, tanto na consciência
individual quanto na consciência coletiva, na medida em que opera escolhas entre distintas
concepções de mundo. Se a “ação é sempre uma ação política” (Q 11, § 12, p. 1379),
tendencialmente só pode ocorrer entre os intelectuais e o homem simples do povo através da
“organicidade de pensamento e a solidez cultural” (Q 11, § 12. p. 1382).
Do ponto de vista do homem simples da massa, o empreendimento metodológico e
científico de Gramsci visa elevar e “massificar” a filosofia da práxis, com base nas seguintes
etapas:
1ª. Respeitar o homem “simples” e o saber popular de que é possuidor. Ter uma
posição crítica para que possa apreender o “significado que tiveram como elos superados de
uma cadeia e fixar os problemas novos e atuais ou a colocação atual dos velhos problemas”
(Q 11, § 12, p. 1383). E fazer um inventário para conhecer as razões de submissão e
subordinação à atividade intelectual;
2ª. Constituir determinada ordem, isto é, unidade e coerência do vivido pelo homem
do povo. Perceber o “bom senso” presente no conhecimento popular. Isso pressupõe certa
média intelectual e cultural, informações que conformaram um modo de pensar, necessitando
de organização crítica e metodológica, cujo ponto de partida é o “‘senso comum’, em
primeiro lugar, da religião, em segundo lugar, e, só numa terceira etapa, dos sistemas
filosóficos elaborados pelos grupos intelectuais tradicionais” (Q 11, § 13, p. 1401);
3ª. Demonstrar as razões políticas e, num nível mais elevado, as motivações sociais do
ajustamento a três elementos distintos e necessariamente entrelaçados:
a) O elemento formal (a coerência lógica) define com precisão o significado de
“‘racional’ em contraposição a ‘mística’” (Q 11, § 16, p. 1411). Gramsci tem clareza de que
a forma racional é importante para as massas populares, mas não é decisiva como ocorre no
caso dos intelectuais. A racionalidade possibilita um novo modo de pensar, “logicamente
coerente, a perfeição do raciocínio que não esquece nenhum argumento positivo ou negativo
de certo peso” (Q 11, § 12, p. 1390);
b) O elemento de autoridade é compartilhado pelo expositor, pensadores, cientistas e
pelo homem ativo de massa, na medida em que conhece e se reconhece. Por isso, a “questão
da ‘personalidade e da liberdade’ se apresentam não em razão da disciplina, mas da ‘origem
do poder que ordena a disciplina’” (Q 14, § 48, p. 1707). Para Gramsci a origem da
autoridade democrática está assentada na função técnica especializada. A disciplina torna-se
um elemento imprescindível para alcançar a liberdade por parte de um grupo socialmente
homogêneo;
c) O elemento organizativo se concretiza pela participação dos agentes ativos e críticos
envolvidos no processo de elevação cultural. Esse elemento está assentado sobre duas
necessidades básicas. A primeira é a constituição de um organismo coletivo que organiza
ativamente determinados indivíduos, os quais participam de uma hierarquia e direção
determinada. A segunda necessidade é a consciência coletiva, pois “um organismo vivo só se
236
forma depois que a multiplicidade se unifica através do atrito dos indivíduos: e não se pode
dizer que o ‘silêncio’ não seja multiplicidade” (Q 15, § 13, p. 1771). Nas palavras do próprio
Gramsci, o elemento organizador é o próprio homem simples, considerado “ontem uma coisa,
hoje não o é mais: tornou-se uma pessoa histórica, um protagonista; se ontem era
irresponsável, já que não é mais resistente, mas sim agente e necessariamente ativo e
empreendedor” (Q 11, § 12, p. 1388);
4ª. Viver a filosofia como uma fé, especialmente o grupo social ao qual pertence o
protagonista. Esse modo de proceder em relação à filosofia e à elaboração conceitual denota
que esse agente ativo e empreendedor não captou todo o significado sintético da atividade
intelectual. Gramsci chama atenção para a sedução do determinismo mecânico como uma
filosofia ingênua da massa, quando criticada pelos seus intelectuais, sem aguardar que o
“homem simples de massa” assuma a posição de dirigente e responsável.
Se “uma parte da massa, ainda que subalterna, é sempre dirigente e responsável, e a
filosofia da parte precede sempre a filosofia do todo, não só como antecipação teórica, mas
também como necessidade atual” (Q 11, § 12, p. 1382), é no processo empreendido pelo
homem “simples”, que a filosofia da práxis se configura pela criação e a estrita relação com as
camadas intelectuais, com a finalidade de “massificar” a filosofia e a cultura. Para que a
massa crie a sua própria elite, necessita perceber que o processo “é longo, difícil, cheio de
contradições, de avanços e de recuos, de debandadas e de reagrupamentos” (ibidem, p.
1386). O problema do movimento que gera o intelectual necessita ser problematizado e
demonstrado do ponto de vista histórico e, do imperativo da política, da seguinte maneira:
1º - O processo de criação de uma elite de intelectuais é longo, considerando que o
ponto de partida está na filosofia primitiva do senso comum, isto é, na mentalidade popular,
configurando um tipo de personalidade compósita, ocasional e desagregada. O processo de
elaboração critica se inicia com a consciência “daquilo que é realmente” (ibidem, p. 1377),
isto é, um “conhece-te a si mesmo”. Para isso, é necessário fazer o inventário da infinidade de
traços que marcam a vida do intelectual em movimento, demonstrar que é produto do
desenvolvimento histórico, para acolher criticamente a própria personalidade.
2º - A dificuldade de criação de uma elite de intelectuais está delimitada pela
necessidade da própria historicidade da crítica e da consciência, isto é, da cultura (cf., ibidem,
p. 1377). O intelectual percebe a circularidade aberta entre filosofia-política-economia.
Responde a determinados problemas assentados pela realidade das massas populares a partir
de uma concepção de mundo unitária e coerente. Na medida em que essa elite de intelectuais
historiciza os problemas dos subalternos e de si mesma, amplia e complexifica determinadas
posições sociais de autonomia histórica.
3º - O processo de geração de uma elite de intelectuais é repleto de contradições
devido à falta de organicidade de pensamento e da própria solidez cultural (cf, ibidem, p.
1382). Pelo movimento da tese, expresso nas massas populares, em contradição com a elite de
intelectuais, se produz uma nova cultura, constituindo um bloco cultural e social. A depuração
dos elementos intelectualistas de ordem individual possibilita que os intelectuais desenvolvam
um trabalho científico e politicamente coerente e unitário às camadas intelectualmente
subordinadas.
4º - A questão do progresso ou não da elite de intelectuais está relacionada à disciplina
como “centralismo orgânico e centralismo democrático” (Q 14, § 48, p. 1706). Visto como
regime de ordem livremente consentida e clareza da diretriz a realizar, a disciplina regula o

237
processo de criação “prática” da personalidade em sentido orgânico, demonstrado por
Gramsci através do partido político.
5º - O problema de debandadas e de reagrupamentos é demonstrado por Gramsci não
só como um fenômeno italiano, pelo “fato de que os intelectuais são desagregados, sem
hierarquia, sem um ponto de unificação e centralização ideológica e intelectual, o que é
resultado de uma escassa homogeneidade, coesão e ‘nacionalidade’ da classe dirigente” (Q
14, § 47, p. 1704). Daí a insistência do autor dos Cadernos no elemento “prático”, tanto para
as massas populares quanto para as elites de intelectuais.
Dentre as competências do intelectual, configura a questão da “tradutibilidade das
linguagens científicas e filosóficas” (Q 11, § 47, p. 1468), tanto para os estratos intelectuais
quanto para as massas. A tradução da filosofia da práxis em relação às ideologias pressupõe
que a fase civilizatória e a expressão cultural de uma civilização sejam semelhantes. Para
processar a tradutibilidade para outras civilizações que estariam em fases distintas, deve-se
considerar a “diversidade determinada pela tradição particular de cada cultura nacional e de
cada sistema filosófico, do predomínio de uma atividade intelectual ou prática, etc.” (ibidem,
p. 1468). Gramsci considera que somente a filosofia da práxis realiza a “tradução” orgânica e
intensa ao compará-la com as demais concepções de mundo.
Essa “tradução” se torna mais orgânica para a massa popular através dos centros
organizadores da cultura. A razão desses centros está na “‘continuidade’ que tende a criar
uma ‘tradição’, entendida, naturalmente, em sentido ativo e não passivo, como continuidade
em permanente desenvolvimento, mas ‘desenvolvimento orgânico’” (Q 9, § 84, p. 756). Eles
garantem a solidez cultural e a organicidade de pensamento. Esse procedimento possibilita
que as massas populares sejam assimiladas à parte do grupo mais desenvolvido. Devido a essa
orientação da política cultural, os centros se dispõem para educar tanto as massas quanto os
próprios intelectuais com base nas exigências do télos previamente delineado. Em outras
palavras, trata-se de quem fixará os “direitos da ciência” e quais são os limites da pesquisa
científica na seguinte perspectiva:
Parece-me necessário que o trabalho de pesquisa de novas verdades e
de melhores, mais coerentes e claras formulações das próprias verdades
seja deixado à livre iniciativa dos cientistas individuais, ainda que eles
reponham continuamente em discussão os próprios princípios que
parecem mais essenciais. Por outro lado, não será difícil perceber
quando estas inciativas de discussão tiveram motivos interessados e não
de natureza científica. Também não é possível pensar que as iniciativas
individuais possam ser disciplinadas e ordenadas, de maneira que
passem pelo crivo de academias ou institutos culturais de natureza
diversa, tornando-se públicas somente após um processo de seleção,
etc.(Q 11, § 12, p. 1393).

4 Convergências e diferenças entre a proposta do Caderno 11 e as massas populares


A arquitetura geral do Caderno 11, seus temas e critérios metodológicos estabelecem
significativos pontos de contato e análise crítica em relação às massas populares. O ponto de
partida da filosofia da práxis são as concepções de mundo e as filosofias primitivas presente
no senso comum. É possível indicar que Gramsci demonstra que as massas populares
revelaram historicamente uma vontade e entusiasmo por uma forma de cultura superior, falta-
238
lhes a organicidade, “seja de pensamento filosófico, seja de solidez organizativa e de
centralização cultural” (Q 11, § 12, p. 1382). São possuidoras de convicções extremamente
débeis, pois “em todos os países, ainda que em graus diversos, existe uma grande cisão entre
as massas populares e os grupos intelectuais, inclusive os mais numerosos e mais próximos à
periferia nacional, como os professores e os padres” (ibidem, p. 1394). Trata-se da cisão
entre as massas populares e a elite de intelectuais. Visto que os próprios intelectuais
encontram-se em vários estratos no interior de um mesmo estrato, isto é, o Estado.
Entretanto, os problemas decorrentes desse desenvolvimento histórico são o húmus
para que o intelectual empreenda um novo modo e qualidade de relação com a
intelectualidade subalterna. A necessidade histórica do trabalho intelectual no conjunto das
relações sociais torna-se princípio educativo que se irradia, tanto às massas populares quanto
às elites intelectuais. Para que esse princípio se desenvolva de maneira orgânica, exige-se que
toda a associação permanente de indivíduos das massas populares esteja pautado por
“determinados princípios éticos, que a própria associação determina para seus componentes
individuais, a fim de obter a solidez interna e a homogeneidade necessárias para alcançar o
objetivo” (Q 6, § 79, p. 749). Essa associação permanente reveste-se no centralismo que
possibilita uma relação mais afinada entre os intelectuais e as massas. Na obra carcerária, o
termo “centralismo” indica inicialmente a norma fundamental que regula a vida interna do
partido comunista (cf., DIZIONARIO GRAMSCIANO, 2008, p. 118). O princípio de
centralismo é passível de uma dupla interpretação, relacionado como os adjetivos
“democrático” e “burocrático”. Enquanto o centralismo democrático está em movimento, o
burocrático pode manifestar-se morbidamente devido à deficiência de iniciativa e de
responsabilidade. O centralismo democrático responde ao parecer de Gramsci nos seguintes
termos:
Uma contínua adequação da organização ao movimento real, um modo
de equilibrar os impulsos a partir de baixo com o comando do alto, uma
contínua inserção de elementos que brotam do mais fundo da massa na
sólida moldura do aparelho de direção, que assegura a continuidade e
acumulação regular das experiências (Q 13, § 36, p. 1633).
O centralismo está relacionado diretamente à disciplina enquanto democrático,
burocrático e orgânico. A disciplina na perspectiva de relação contínua e constante entre
intelectuais e as massas populares, pois evoca de maneira clara e consciente a diretriz a seguir,
ampliando a personalidade das massas populares no sentido orgânico. “A disciplina não anula
a personalidade e a liberdade: a questão da ‘personalidade e da liberdade’ se apresenta não
em razão da disciplina, mas da ‘origem do poder que ordena a disciplina’” (Q 14, § 48, p.
1707). A disciplina amplia o desenvolvimento orgânico do “problema jurídico”.
Esta é precisamente a função do direito no Estado e na sociedade;
através do ‘direito’, o estado torna ‘homogêneo’ o grupo dominante e
tende a criar um conformismo social que seja útil à linha de
desenvolvimento do grupo dirigente (Q 6, § 84, p. 756).
A configuração de um Estado ético ou de cultura ocorre “na medida em que uma de
suas funções mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível
cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde à necessidade de desenvolvimento das
forças produtivas” (Q 8, § 179, p. 1049). Para superar o tipo de Estado criado pela burguesia,
“só o grupo social que propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado

239
pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e a
criar um organismo social unitário técnico-moral” (ibidem, p. 1050).
Serão os intelectuais de novo tipo os organizadores da continuidade “jurídica” da
cultura, cuja finalidade é a gestação de um organismo social unitário. Nos centros de cultura
ocorre “uma continuidade cuja característica essencial consiste no método, realista, sempre
aderente à vida concreta em perpétuo movimento” (Q 6, § 84, p. 757). Eles atuam em
distintas áreas da produção da vida humana.
Assim, a configuração de uma intelectualidade subalterna vinda das massas populares
aponta para as seguintes características: a) O trabalho de pesquisa científica sobre novas
armas ideológicas seja deixado à livre iniciativa dos cientistas individuais ou coletivos; b)
Inventariar a história precedente e do concreto existente sobre os movimentos das massas
populares e em última instância, sociais; c) A elaboração da ética e da política através dos
“experimentadores” históricos, os partidos políticos, como elaboradores de novas
intelectualidades integrais e totalitárias; d) Traduzir as experiências precedentes e existentes
do homem ativo de massa, o qual se tornou agente, dirigente e empreendedor organicamente;
e) Elaborar estudos que demonstram que a “relação numérica entre o pessoal que está ligado
profissionalmente ao trabalho cultural ativo e a população de cada país seria igualmente útil,
com um cálculo aproximativo das forças livres” (Q 11, § 12, p. 1393); f) Examinar o
funcionamento ideológico, tanto quantitativo quanto qualitativo, das organizações culturais e
dos seus intelectuais, nos mais diversos segmentos, como o jornalismo, os médicos, a
magistratura, as forças armadas, entre outros. Por isso, para Gramsci a socialização de
verdades é bem mais significativa que as “decisões orgânicas”.
5 Referências Bibliográficas
BADALONI, Nicola. Il marxismo di Gramsci: dal mito alla ricomposizione politica. Torino:
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245
Novo Constitucionalismo Latino-Americano: O Estado Moderno em contextos
pluralistas

Gabriel Barbosa Gomes de Oliveira Filho¹

1
Universidade Federal Fluminense - UFF, Niterói-RJ – gabrielbarbosa@id.uff.br

Resumo
As discussões acerca do Estado Moderno, fundado na ideia de que nação e país se confundem,
geram uma tensão permanente nas ex-colônias europeias na América Latina. A existência de
povos e civilizações, com seus próprios costumes e sensibilidades jurídicas, foi
desconsiderada na construção dos sistemas políticos e judiciais do continente. Ao longo das
últimas décadas, a emergência de movimentos sociais que lutam pelo reconhecimento do
caráter plural do continente, aliado às profundas transformações constitucionais que
convencionou-se chama de “novo constitucionalismo latino-americano”, torna essas
encruzilhadas do Estado clássico de extrema importância aos juristas do Sul.
Palavras-chave: Teoria do Direito; Constitucionalismo; Cultura; Pluralismo; América
Latina.

1 – INTRODUÇÃO

Desde meados da década de 80, a América Latina foi campo de uma série de
reformas constitucionais: Nicarágua em 1987, Brasil em 1988, Colômbia em 1991, Paraguai
em 1992, Peru em 1993, Argentina em 1994, Venezuela em 1999, Equador em 2008 e Bolívia
em 2009115. Parte desse processo ocorreu posteriormente à supressão de longos regimes
militares; ou em meio às demandas de movimentos populares em plena democracia, para
aprofundar transformações institucionais que acompanharam a ascensão de novas forças
políticas. Até então, as reformas constitucionais no continente haviam sido marcadas por
pouca participação popular, com objetivos programáticos pensados ao curto prazo, como as
questões referentes à reeleição presidencial ou introdução de instituições a partir de
experiência externas, como os conselhos de magistratura europeus. Resultado da colonização,
a cultura jurídica e as instituições na América Latina derivam da tradição legal europeia e são
marcadas por sua característica elitista e contra majoritária, e, ao longo do tempo,

115
O Prof. Rodrigo Uprimny (2011, p. 109) ressalta, ainda, as emendas constitucionais que ocorreram na Costa
Rica em 1989, Chile, México em 1992.

246
aprofundaram a invisibilidade dos povos originários e seus costumes. Estudioso do pluralismo
jurídico, o Prof. Antônio Carlos Wolkmer (2010, p. 147) sintetiza:

“Tem sido próprio na tradição latino-americana, seja na evolução


teórica, seja na institucionalização formal do Direito, que as
constituições políticas consagrassem, abstratamente, igualdade formal
perante a lei, independência de poderes, soberania popular, garantia
liberal de direitos, cidadania culturalmente homogênea e a condição
idealizada de um “Estado de Direito” universal. Na prática, as
instituições jurídicas são marcadas por controle centralizado e
burocrático do poder oficial; formas de democracia excludente; sistema
representativo clientelista; experiências de participação elitista; e por
ausências históricas das grandes massas campesinas e populares.”

Assim, a independência das colônias não se deu com base em uma ruptura
significativa na ordem social, econômica e político-constitucional. Com o tempo vão
incorporar e adaptar doutrinas eurocêntricas econômicas capitalistas, do liberalismo e do
positivismo. Esta última, vista como expressão de uma nova ordem política e legal, encontrou
solo fértil na construção dos Estados, por parte da elite branca descendente de europeus, que
surgiriam nesse período (WOLKMER; FAGUNDES, 2011, p. 375). O constitucionalismo se
desenvolveu a partir das tradições constitucionais clássicas: a norte-americana e a francesa.
Prevendo uma série de princípios universais, como a igualdade e liberdade, em uma sociedade
estratificada, hierárquica, que marginalizava os povos originários e, ainda, possuíam
descendentes de africanos escravizados.

Como a dominação de classe e a dominação étnico-racial, decorrentes do processo de


colonização, são relacionadas (SANTOS, 2010, p. 29), a luta anticapitalista e a luta
anticolonialista passam a impulsionar algumas no período que se inicia no final da década de
80. Venezuela, Colômbia, Peru, Bolívia e Equador116, países andinos marcados pela existência
de importantes culturas tradicionais em seus territórios, passam a admitir constitucionalmente
o pluralismo jurídico. Em contraposição ao constitucionalismo convencional, individualista,
estatal e liberal sobre o qual tem caminhado as constituições latino-americanas, o pluralismo
jurídico rompe com uniformização e o monismo do Estado nacional, propõe uma visão

116
Da mesma forma, México, Nicarágua e Paraguai. cf. ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJO. Los
derechos de los pueblos indígenas y tribales en la práctica. Un guía sobre el convenio núm. 169 de la OIT. Perú:
Programa para promover el convenio núm. 169 de la OIT, Departamento de Normas Internacionales del
Trabajo, 2009, 201 p.

247
multicultural, emancipadora e democrática com perspectiva a um novo Estado de Direito,
chamado de Pluridimensional (WOLKMER, 2010, p. 145). O reconhecimento do direito
consuetudinário dos povos pré-colombianos vai tornar-se a marca principal do que
convencionou-se chamar de “novo constitucionalismo latino-americano”.

A contribuição dos povos originários, que historicamente foram excluídos dos


processos constituintes passados, deu aporte ao desenvolvimento de uma nova forma de
organização do Estado, objetivando a harmonia com a natureza e a construção de outra
convivência cidadã117. O projeto constitucional que está sendo implantado nesses países
transformou a organização do poder do Estado e o papel da sociedade dentro dele, com forte
participação popular durante esse processo. Apresenta entre seus objetivos a integração de
setores historicamente excluídos e a busca pela efetivação dos direitos fundamentais sociais e
os direitos internacionais dos diretos humanos. Fundamenta-se também no caráter
descolonizador, dando protagonismo aos princípios das nações indígenas, e no processo
intercultural. A plurinacionalidade acaba rompendo com os limites do Estado constitucional e
obriga a uma nova institucionalidade. Ainda que assumindo características que se diferem a
cada país, alguns autores classificam os Estados latino-americanos de acordo com o
reconhecimento em maior ou menor grau do pluralismo jurídico e do Direito indígena:
em um primeiro nível, estariam os Estados monistas e etnocêntricos, que não reconhecem os
sistemas jurídicos indígenas; em segundo, os Estados que aceitam os costumes jurídicos
indígenas perante o juízos estatais, sem reconhecer a jurisdição própria das autoridades
indígenas; por fim, os Estados que reconhecem tanto o Direito como a própria jurisdição
indígenas (ALMEIDA, 2011, p. 45).

O primeiro contato empírico com a questão do constitucionalismo latino-americano


ocorreu em Sucre – capital da Bolívia “no papel” e sede da Asamblea Constituyente – durante
as manifestações que ocorreram no fim de 2007. Naqueles dias, a “Cidade Branca”, como era
conhecida, havia assistido a oposição ao governo do indígena Evo Morales se retirar do
processo constituinte. Houve um recrudescimento dos atos para manter sua condição de
capitalía plena, e sua paisagem passou a conformar-se de intermitentes protestos e carros
queimados, culminando com a polícia local abandonar seus postos. Percebi que o
contratualismo e o poder constituinte, explicado nas classes de Direito Constitucional, não
continham a dinâmica realidade daquele processo. A futura constituição tomava parte de
grande parte das discussões políticas locais à época, sendo marcante a popularização do texto
do projeto de constituição, editado e vendido nas praças com preços simbólicos.

117
Previsões, por exemplo, da parte “Decidimos construir” do Preâmbulo da Constituição do Equador de 2008.
248
Posteriormente, foram promulgadas as Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de
2009, representando um ponto de inflexão do constitucionalismo local, marcadamente pela
participação popular em sua elaboração e no reconhecimento de novos direitos a grupos
sociais marginalizados, até então, do processo político. Ainda que todo esse processo seja
relativamente recente, o trabalho vai abordar estas transformações constitucionais e seus
princípios programáticos que apontem uma superação do Estado moderno. Em primeiro lugar,
traduzindo essa realidade para o acúmulo da teoria constitucional, e posteriormente estudando
os textos constitucionais para traçar o que constitui o caráter inovador desse movimento e os
motivos pelos quais fez com que fosse alcunhado de constitucionalismo “transformador”
(SANTOS, op. cit., p. 71), “da diversidade” (UPRIMNY, 2011, p. 112), “comprometido”
(PASTOR, DALMAU, 2011, p. 313), entre outros.

2 – O OLHAR DA TEORIA CONSTITUCIONAL

De todos os conceitos de constituição, o que me parece aproximar-se mais da realidade


sobre a qual trata estre trabalho, é o que revela seu caráter de correlação de forças e de lutas
sociais, em um dado momento histórico do desenvolvimento da sociedade118. Em seu clássico
livro “A essência da Constituição”, Ferdinand Lassalle já apontava a importância dos
fundamentos sociais e políticos, para além dos fundamentos formais, de uma constituição. Em
sua visão, a Constituição é lei fundamental, básica, sendo o verdadeiro fundamento das outras
leis (LASSALLE, 2000, p. 9) e devia, portanto, irradiar-se através das leis ordinárias do país.
Por outro lado, a Constituição de um país tem como essência a soma dos fatores reais do
poder que regem uma nação (ibid., p. 17), que ao serem positivados transformam-se em
instituições jurídicas. Enquanto pacto político que expressa a pluralidade, ela materializaria
uma forma de poder que se legitima pela convivência e coexistência de concepções
divergentes, diversas e participativas. Nessa dimensão do conceito de constituição, Wolkmer
(2010, p. 144) enxerga “um espaço estratégico e privilegiado de múltiplos interesses
materiais, fatores socioeconômicos e tendências pluriculturais”, que “[...] congrega e reflete,
naturalmente, os horizontes do Pluralismo”.

118
“Assim, toda sociedade política tem sua própria constituição, corporalizando suas tradições, costumes e
práticas que ordenam a tramitação do poder. A constituição em si não só disciplina e limita o exercício do poder
institucional, como também busca compor as bases de uma dada organização social e cultural, reconhecendo e
garantindo os direitos conquistados de seus cidadãos, materializando o quadro real das forças sociais
hegemônicas e das forças não dominantes.” (WOLKMER, 2010, p. 143)

249
O constitucionalismo, se considerarmos o caminho desde a Revolução Gloriosa
(1688), da guerra de independência nos Estados Unidos (1776) e da Revolução Francesa
(1789), se caracterizou como uma corrente ideológica que vai evoluindo junto ao próprio
conceito da palavra. Abdicando da tentativa de explicar todo o processo histórico, sob o qual
caminhou o constitucionalismo até o momento denominado como neoconstitucionalismo,
ressalto os quatro paradigmas constitucionais descritos pelos constitucionalistas espanhóis
Prof. Roberto Viciano Pastor e Prof. Rubén Martínez Dalmáu (2011, p. 309): o surgimento do
constitucionalismo liberal das revoluções burguesas, a partir do final do século XVIII,
centrado na defesa dos direitos individuais e limitação do poder; sua evolução conservadora
ao positivismo e estabelecimento do Estado de Direito, que abarca o século XIX e a virada
pro séc. XX; o constitucionalismo democrático durante as primeiras décadas do século XX,
que viria a retomar princípios do contratualismo e da legitimidade democrática do poder em
Rousseau; e o constitucionalismo social, com o objetivo “nunca bem concluído” de garantir
direitos sociais no contexto da sociedade capitalista de bem-estar, que abriu espaço para o
conceito de Estado Social e Democrático.

A implementação do Estado democrático constitucional contemporâneo, em especial


em nações de tradição continental como Alemanha, Itália, Portugal e Espanha, acarretou
mudanças quanto ao papel desempenhado pelo texto constitucional, que passaram a ser visto
como um “programa positivo de valores que deve ser atuado pelo legislador”
(ZAGREBELSKY apud MAIA, 2009, p.5). As constituições como a espanhola de 1978 ou a
brasileira de 1988, se configuram como limite e direção ao mesmo tempo, não se limitando a
estabelecer competências ou separar os poderes do Estado. Ao contrário, elas possuem altos
níveis de normas materiais ou substantivas que condicionam a atuação do Estado por meio da
ordenação de certos objetivos e finalidades. Nesse sentido, o constitucionalismo europeu
contemporâneo reconhece tanto a tradição liberal, que entende a ordem constitucional como
instrumento de garantia da esfera mínima intangível de liberdade dos cidadãos; quanto as
modificações consagradas pelo constitucionalismo pós-guerra. Contrariando as sugestões de
Kelsen, o que se viu foi uma incorporação de conteúdos subjetivos no topo do ordenamento
jurídico, estabeleceram uma relação necessária entre direito e moral. Os princípios
constitucionais abriram uma via de penetração da moral no direito positivo, incorporando às
constituições princípios - dignidade da pessoa humana, solidariedade social, liberdade e
igualdade - juridicamente válidos, expressão da ética política moderna.

Esse movimento rejeita as proposições do positivismo teórico e buscam converter, sem


ruptura, o Estado de Direito no Estado constitucional de Direito. Para os professores Pastor e
250
Dalmáu (2011, p. 311), o neoconstitucionalismo se configura como uma teoria do Direito e
não, propriamente, como uma teoria da constituição. Enquanto teoria do Direito, parte da
onipresença de princípios jurídicos, como a interpretação constitucional, para descrever as
conquistas da constitucionalização: esse processo que modificou os grandes sistemas
jurídicos contemporâneos, tornando a constituição a norma superior do Estado que irradia-se
por todo ordenamento. O neoconstitucionalismo, como pode-se percebe, é produto de teorias
da doutrina e da academia; e, como se verá, diferencia-se do novo constitucionalismo latino-
americano, que parte das reivindicações populares e da ascensão de movimentos sociais:

“El nuevo constitucionalismo mantiene las posiciones sobre la


necesaria constitucionalización del ordenamiento jurídico con la
misma firmeza que el neoconstitucionalismo y plantea, al igual que
éste, la necesidad de construir la teoría y observar las consecuencias
prácticas de la evolución del constitucionalismo hacia el Estado
constitucional. Pero su preocupación no es únicamente sobre la
dimensión jurídica de la constitución sino, incluso en un primer orden,
sobre la legitimidad democrática de la constitución. En efecto, el
primer problema del constitucionalismo democrático es servir de
traslación fiel de la voluntad constituyente del pueblo y establecer los
mecanismos de relación entre la soberanía, esencia del poder
constituyente, y la constitución, entendida en su sentido amplio como la
fuente del poder (constituido y, por lo tanto, limitado) que se superpone
al resto del derecho y a las relaciones políticas y sociales. Desde este
punto de vista, el nuevo constitucionalismo reivindica el carácter
revolucionario del constitucionalismo democrático, dotándolo de
mecanismos que pueden hacerlo más útil para la emancipación y
avance de los pueblos, al concebir la constitución como mandato
directo del poder constituyente y, en consecuencia, fundamento último
de la razón de ser del poder constituido.”(ibid.).

3 – O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO

Conforme o abordado na introdução, o período posterior à colonização não pressupôs


uma ruptura na ordem social, muito menos uma reflexão sobre o pluralismo cultural que
existia em nossas sociedades. O constitucionalismo moderno tradicional, explica o jurista e
251
indígena aymará Chivi Vargas (apud WOLKMER, 2011, p. 402), “tem sido historicamente
insuficiente para explicar sociedades colonizadas; não teve clareza suficiente para explicar a
ruptura com as metrópoles europeias e a continuidade de relações tipicamente coloniais em
suas respectivas sociedades ao longo dos séculos XIX, XX e parte do XXI”. Na busca por
superar esse passado não resolvido, as ex-colônias implementaram uma série de reformas
constitucionais que convencionou-se chamar de “Novo constitucionalismo latino-americano”.
Essa teoria do Direito superou as discussões sobre a dimensão positiva das constituições,
retomando questões afins ao contratualismo, e focando na exterioridade da constituição, sua
legitimidade democrática e a relação entre a vontade constituinte e constituída. Dentro da
perspectiva democrática, só uma constituição que realmente represente a vontade constituinte
popular, pode ser utilizada como fundamento de um ordenamento jurídico. Nesse sentido, o
novo constitucionalismo pode ser visto, subsidiariamente, como uma teoria democrática da
constituição, retomando de forma radicalizada o constitucionalismo democrático. Como
observa os professores Pastor e Dalmáu (2011, p. 321), essa teoria tornou-se prática na
América Latina, uma vez que os processos constituintes do qual tratamos foram realizados a
partir da convocação de uma Assembleia Constituinte democraticamente eleita, e seguida de
uma ratificação popular direta do texto constitucional.

Variados autores consideram como ponto de partida desse Novo constitucionalismo a


Constituição Brasileira (1988). Embora, seja preferível reconhecer sua evolução a partir de
distintos ciclos de reformas constitucionais, como o esquematizado pelo desenho tripartite de
da Prof. Raquel Yrigoyen Fajardo (2011, p. 141). Para a autora, o primeiro ciclo seria o
constitucionalismo multicultural (1982/1988), que introduz o conceito de diversidade cultural
e reconhece direitos indígenas específicos. Ressalto que, apesar da tentativa de estabelecer
cronologicamente o início e fim do novo constitucionalismo, este ciclo ainda se confunde com
o neoconstitucionalismo do qual tenta apartar-se. Decorre disso, o fato da Constituição do
Brasil ser considerada mais representativa de um neoconstitucionalismo, uma vez que a
preocupação da legitimidade democrática não ser sua característica principal apesar de prever
instrumentos como referendo e plebiscito popular. Pela recepção de princípios do
multiculturalismo e do reconhecimento do direito à diferença das minorias sociais, podem ser
incluídos nesse ciclo o texto brasileiro (1988) e as reformas da Guatemala (1985) e Nicarágua
(1987).

O segundo ciclo é marcado pelo constitucionalismo participativo e pluralista, que


segundo Wolkmer (2011, p. 403) tem seu auge na Constituição Venezuelana de 1999. Fajardo
(2011, p. 142) nomeia de constitucionalismo pluricultural (1988/2005), e abarca conceitos de
252
nação multiétnica e Estado pluricultural, prevê amplo catálogo de direitos indígenas e outros
coletivos étnicos, bastante influenciado pelos princípios que decorreram da Convenção
169/OIT. No bojo do reconhecimento da identidade multicultural e do pluralismo social,
político e jurídico dos estados latino-americanos, esse ciclo abarca as reformas da Colômbia
(1991), do México (1992), do Paraguai (1992)119, do Peru (1993), da Bolívia (1994), da
Argentina (1994), do Equador (1998) e da Venezuela (1999).

O terceiro e, por enquanto, o último ciclo, marcado pelo caráter revolucionário das
Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009), seria o constitucionalismo
plurinacional (2006-2009) ou, nas palavras de Wolkmer (ibid.) se constitui como um
“constitucionalismo plurinacional comunitário”. Fajardo (2011, p. 149) atribui como seu
ponto de partida a Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas
(2006-2007). Sua principal inovação é romper com universalismo e apontar uma saída
pluralista para a questão da igualdade e liberdade do Estado de Direito, a partir das
experiências de sociedades interculturais, reconhecendo novas fontes de produção de Direito:
ao lado da jurisdição ordinária, passa a ser considerada a jurisdição originária, indígena ou
campesina, suas autoridades, instituições, práticas e costumes.

Analisando as características do novo constitucionalismo, Pastor e Dalmáu (2011)


destacam: i) a ruptura com o sistema constitucional prévio, com fortalecimento, no âmbito
simbólico, da dimensão política da Constituição; ii) textos inovadores, que desenham uma
nova integração nacional e uma nova institucionalidade; iii) fundamentação baseada em
princípios, em detrimento de regras; iv) textos constitucionais extensos, mas marcado pelo
uso de linguagem acessível, por exemplo, com a troca de termos como habeas corpus por
acción de libertad; e habeas data por acción de protección de privacidad; v) a rigidez dos
textos constitucionais, que proíbem os poderes constituídos de reforma-los sem um novo
processo constituinte120; vi) busca de instrumentos que recomponham a relação entre
soberania e governo, com a democracia participativa como complemento do sistema
representativo; vii) uma extensiva carta de direitos, com incorporação de tratados

119
Embora Wolkmer e Fajardo não posicione o Paraguai em nenhum dos ciclos, este trabalho irá demonstrar sua
semelhança com outros textos desse segundo ciclo.
120“Por último, ya se ha hecho referencia a la eliminación del e poder constituyente constituido, poder
constituyente derivado, o poder de reforma; esto es, a la prohibición constitucional de que los poderes
constituidos dispongan de la capacidad de reforma constitucional por ellos mismos. Se trata de una fórmula que
conserva en mayor medida la fuerte relación entre la modificación de la Constitución y la soberanía del pueblo,
y que cuenta con su explicación política en el propio concepto de Constitución como fruto del poder
constituyente y, complementando el argumento teórico, en la experiencia histórica de cambios constitucionales
por los poderes constituidos propia del viejo constitucionalismo y tan extendida en el constitucionalismo
europeo”. (VICIANO PASTOR; MARTÍNEZ DALMAU, 2011, p. 324).
253
internacionais e integração de setores marginalizados; viii) a passagem de um predomínio do
controle difuso de constitucionalismo pelo controle concentrado, incluindo-se fórmulas
mistas; ix) um novo modelo de “constituições econômicas”, simultâneo a um forte
compromisso de integração latino-americana de cunho não meramente econômico.

O terceiro ciclo representa um amadurecimento das características inovadoras desse


constitucionalismo que culmina na chamada refundação do Estado moderno. Os textos
andinos vão se dedicar à superação da herança colonialista, valorizando a cultura milenária
dos povos e nações desses países. Para essa finalidade, surge uma institucionalidade que
aporta o pluralismo cultural e incorpora os processos de organização comunitários. Um
resultado do projeto de descolonização é a criação de um novo catálogo de direitos e
princípios, que rompe com a tradição geracional e eurocentrada. Nas Constituições boliviana
e equatoriana, por exemplo, o ancestral princípio andino do buen vivir foi alçado ao rol de
princípios constitucionais fundamentais. Na nossa gramática, assemelhasse ao bem comum da
humanidade visto a partir da cosmovisão andina: o bem viver coloca a vida como eixo central
da sociedade e abre um leque de garantias e direitos sociais, econômicos e ambientais. O
vínculo com os saberes tradicionais alcançou a inclusão nas constituições a partir da
expressão na própria língua originária: Sumak Kawsay (EQUADOR, 2008) e Suma Qamaña
(BOLÍVIA, 2009), respectivamente. O artigo 8ª da Constituição boliviana prevê, ainda, como
princípios e valores ético-morais do Estado plurinacional a tríade ama qhilla, ama llulla, ama
suwa – em tradução literal, essa regra que remete ao regime incaico (DELGADO BURGOA
2010, p; 45) significa “não seja folgado, não seja mentiroso, não seja ladrão”; ñandereko –
vida harmoniosa, teko kavi – boa vida, ivi maraei – terra sem mal - e qhapaj ñan – caminho
ou vida nobre. O protagonismo indígena, e a inclusão de princípios próprios de sua
cosmovisão, fez com que esses textos previssem, ainda, direitos próprios à Pachamama. Ou
seja, direitos próprios à natureza, como proteção de mananciais e de rios ou preservação de
paisagens naturais e florestas, que agora é elevada à categoria de sujeito de direitos121.

3.1 A Refundação do Estado nos textos constitucionais

Cada um desses temas abre caminho para um campo fértil às pesquisas das ciências
sociais e jurídica, mas para se ater ao objeto do trabalho - as encruzilhadas do Estado moderno
em meio a esse novo constitucionalismo - gostaria de ressaltar, ainda, a ruptura com o sistema
121
Para aprofundar na questão específica da pachamama como sujeito de direitos, ver ZAFFARONI, E. R. La
naturaleza como persona: Pachamama y Gaia. In: CHIVI VARGAS, I. M. (coord.). Bolivia. Nueva Constitución
Política del Estado, 1 ed., La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional, 2010, p. 109- 132.
254
clássico de tripartição do poder esquematizado por Montesquieu e as transformações operadas
no conceito de cidadania das Revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. Na Bolívia, foi
criado um quarto poder - Órgano Electoral Plurinacional, que busca controlar e fiscalizar os
órgãos de representação política do Estado boliviano; e no Equador são cinco as funções do
Estado – além do executivo, legislativo e judiciário, somam-se dos Poderes Eleitoral e de
Transparência e Controle Social (SANTOS, 2010, p. 95). As características dos três clássicos
Poderes do Estado não foram mantidas em sua totalidade, tendo sido transmutados em novas
instituições como o boliviano Tribunal Constitucional Plurinacional, com membros escolhidos
por voto; ou transformados para comportar a contribuição dos povos originários (ibid.), como
no caso do poder “judicial e da justiça indígena” no Equador.

A cidadania passa a assumir novas dimensões, assim como sua relação com a
nacionalidade, identidade e cultura. Há menções diretas à cidadania dos povos originários ou
indígenas, nas constituições da Bolívia e do Equador – também na Venezuela, mas tratando-se
de outro ciclo. A nação boliviana, por exemplo, é conformada pelos bolivianos e bolivianas,
pelas nações e povos indígena, e pelas comunidades interculturais e afrobolivianas (CPE, Art.
3°), sendo excluídos do texto inicial a menção às comunidades urbanas de todas as classes
sociais. A nacionalidade equatoriana é reconhecida como o vínculo jurídico ao Estado (CRE,
Art. 6º), sem prejuízo do pertencimento a nacionalidades indígenas que coexistam no Equador
plurinacional. A constituição venezuelana tratava o tema com uma abordagem distinta,
afirmando o papel dos povos indígenas na formação do povo venezuelano como “único,
soberano e indivisível” (CRBV, Art.126).

Às nações e povos originários ou indígenas, protagonistas desse processo, são


previstos direitos políticos específicos, rompendo lógica de igualdade formal do Estado
liberal: os direitos ao voto e participação dos povos originários na Bolívia, como o de se
realizar eleições de acordo com suas próprias regras (CPE, Art. 26º, II e 211º, I, II); da
proporcionalidade da Câmara refletir a composição plurinacional da sociedade (CPE, Art.
146º, IV), inclusive no âmbito departamental (CPE, Art. 278º, I, II). O direito à representação
desse pluralismo é garantido, inclusive, entre os ministros de Estado (CPE, Art. 172º, 22); na
Corte Constitucional (CPE, 197, I) também devem estar assegurados representantes dos
sistemas originários; e a Suprema Corte Eleitoral deve garantir ao menos dois membros – do
total de sete - das nações indígenas rurais (CPE, Art. 206º, II). De forma mais modesta, o
Equador garante a participação das comunas, comunidades, povos e nações indígenas nas
decisões sobre políticas públicas, planejamento e projetos do Estado (CRE, Art.57). Ainda no
âmbito da representação, a Constituição colombiana prevê 2% das vagas do senado para
255
comunidades indígenas (CPC, Art. 171), uma jurisdição própria às autoridades indígenas
(CPC, Art. 246) sua participação no planejamento da configuração territorial do país (CPC,
Art. 329). A título de comparação, a venezuelana prevê o direito dos povos nativos de
participar da política e serem representados na Assembleia Nacional (CPC, Art. 125), sua
participação na demarcação de suas terras (CPC, Art. 119) e a competência territorial de suas
autoridades na administração da justiça segunda suas tradições e afetando somente seus
membros (CPC, Art. 260).

Como se pode verificar em alguns dispositivos, a questão da cultura e da identidade é


abordada mais pela gramática do reconhecimento de um multiculturalismo existente do que
de fato uma refundação do Estado. Nesse sentido foram garantidos direitos como o de ser
julgado na própria língua na Bolívia (CPE, Art. 120º, II) e Peru (CPP, Art. 2, 19), e o direito à
um tradutor no Paraguai (CRP, Art. 12, 4), Equador (CRE, Art. 76, 7, “f”) e Venezuela
(CRBV, Art. 49, 3); bem como princípios da não discriminação quanto ao idioma122 e
proteção e ensino dos idiomas nativos123. Entretanto, no que se refere à língua oficial do
Estado há uma inovação importante: na Bolívia tornaram-se oficiais 36 idiomas além do
castelhano (CPE, Art. 5º, I), sendo prevista a obrigatoriedade dos governos utilizarem-se de,
pelo menos, dois idiomas124. Pelo número expressivo, excede as previsões feitas até então
pelo Paraguai (Castelhano e Guarani previstos no Art.140 da CRP), Peru (art. 48, castelhano,
e quando predominantes, também o aymará, quéchua ou qualquer outro) ou no Equador, que
foram previstos três idiomas como oficiais nas relações interculturais125.

Por fim, a superação da dominação dos povos originários perpassa, necessariamente,


pelo direito ao autogoverno e a administração da justiça, segundo seus métodos e costumes
tradicionais. Na América Latina, o pluralismo jurídico126 encontrou um campo fértil e, em
maior ou menor grau, a maioria de seus países vão tratar da competência jurisdicional e
administrativa em seus textos, ou são signatários de tratados internacionais que aborde o tema.

122
São eles: Bolívia (CPE, Art. 14º, II), Colômbia (CPC, Art. 13) e Equador (CRE, Art. 11).
123
Está presente nas constituições da Argentina (CNA, Ar. 75, 17), da Bolívia (CPE, Art. 30, II, 9 e Art. 95, II),
do Brasil (CRFB, Art. 210, §2 e Art. 231), da Colômbia (CPC, Art. 10), do Paraguai (CRP, Art. 140) e Venezuela
(CRBV, Art. 9).
124
Por exemplo, o governo autonômico, departamental e pluranacional deverão fornecer suas publicações em
duas línguas - o castelhano e outra dentre as originárias que seja predominante naquele território. (CPE, Art. 5º,
II)
125
São eles o castelhano, o kichwa e o shuar. (CRE, Art. 2º)
126
Sobre o conceito de pluralismo: “Hay una situación de pluralismo jurídico cuando en un mismo espacio
social o geopolítico (como el de un Estado) co-existen varios sistemas normativos. Boaventura de Sousa Santos
(1994) considera que puede haber muchas fuentes del pluralismo legal: una situación colonial, la presencia de
pueblos indígenas, un período revolucionario o de modernización, poblaciones marginales en zonas urbanas de
países independientes; así como también situaciones de desregulación al interior del propio Estado, y un
pluralismo transnacional (lex mercatore) que imponen las transnacionales por encima delas regulaciones
locales.” (FAJARDO, 2006)
256
Pluralismo jurídico. O Estado Plurinacional da Bolívia é o que mais se dedica às jurisdições
ordinárias e indígenas127, estabelecendo que ambas possuem igual hierarquia (CPE, Art. 179,
II). As nações e povos originários indígenas possuem competência jurisdicional, com base em
suas próprias autoridades, princípios, valores culturais, normas e procedimentos. O texto
expressa que deve respeitar os direitos à vida, à defesa e àqueles garantidos na Constituição.
Essa jurisdição se baseia em um tipo específico de conexão entre os membros de uma
respectiva nação ou povo, e seus membros estão sujeitos à ela sempre que figurem como parte
e os fatos jurídicos tenham ocorrido em seu interior. Obedecem à uma legislação de deslinde
entre as jurisdições e suas decisões deverão se acatadas por todas as pessoas e autoridades
públicas (CPE, Art. 190, I, II, Art. 191, I, II e Art. 192, I, II, III).

A Constituição boliviana dedica, ainda, um capítulo sobre a “autonomia indígena


originária campesina”, que consiste na garantia auto governo e livre determinação desses
grupos. A conformação dessas autonomias é baseada nos territórios ancestrais, devendo passar
por consulta e elaboração de um Estatuto próprio, possuindo uma denominação que
corresponde ao povo, nação ou comunidade. Elas poderão ser unificadas a outras autonomias,
e são exercidas segundo seus próprios regulamentos, instituições, autoridades, procedimentos,
sempre em harmonia com a constituição (CPE, Art. 289, 290, I, II, Art. 292 e Art. 296). A lista
de competência das autonomias é extensa, além das que podem ser transferidas ou delegadas.
Entre as competências exclusivas, destaco as desenvolver e exercer as suas próprias
instituições democráticas; de gerir e administrar seus recursos naturais; criar e administrar
taxas, patentes e contribuições especiais em seu âmbito; administrar seus impostos;
planificação e gestão de seu território, sistema elétrico, patrimônio cultural, natural, etc. Há
ainda competências compartilhadas e concorrentes com os outros entes do Estado
Plurinacional (CPE, Art. 304).

Pautada pela interculturalidade e plurinacionalidade, a constituição equatoriana


estabelece uma organização política e administrativa do Estado comportará circunscrições
territoriais de povos indígenas e afroequatorianos. Esses regimes especiais de administração,
correspondentes a um governo autônomo, serão regidos de acordo com seus direitos coletivos.
Para serem criadas as circunscrições, é necessária aprovação em consulta, com dois terços dos

127
Conforme Chivi Vargas (2010, p. 197): “un sistema de justicia plural basado en el reconocimiento de
diferentes jurisdicciones — ordinaria, agroambiental, indígena originaria campesina— que, bajo sus propias
autoridades, normas y procedimientos resuelven controversias que se presentan en los lugares en que se aplican.
Su convivencia protege los derechos individuales y colectivos. [...] Es una expresión fundamental de la
plurinacionalidad el reconocimiento de que existe en cada pueblo una forma de ejercer justicia según su propia
cultura. Es otra forma esencial de descolonización porque deja de lado la visión monocultural y exclusivamente
liberal.”
257
votos válidos (CRE, Art. 257). Sobre o jusdiversidade, a constituição do Equador prevê que as
comunas, comunidades, povos e nações indígenas possuem o direito de “criar, desenvolver,
aplicar e praticar seu direito próprio e consuetudinário”, nos limites da Constituição da
República e, expressamente, sem violar direitos de mulheres, crianças e jovens (CRE, Art. 57,
10) e os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. A "justiça indígena”, agora parte
da função judicial do Estado, vai se ocupar de aplicar as normas próprias de resolução de
conflitos internos, “sempre com a participação das mulheres” (CRE, Art. 171). O poder
constituinte equatoriano preveniu algumas das consequências do pluralismo jurídico,
positivando o princípio conhecido em nosso país como “non bis in idem”. No texto da
constituição de 2008 está a garantia de que a jurisdição indígena é considerada para este fim
(CRE, Art. 76, 7, “i”).

Na Colômbia, as autoridades indígenas poderão exercer sua jurisdição em seus


territórios, desde que não conflitam com a Constituição Política e as legislações da república
(CPC, Art. 246). Resolução semelhante adotam o Paraguai – “siempre que ellas no atenten
contra los derechos fundamentales establecidos en esta Constitución” (CRP, Art. 63), o Peru
– “siempre que no violen los derechos fundamentales de la persona” (CPP, Art. 149) – e a
Venezuela – “siempre que no sean contrarios a esta Constitución, a la ley y al orden público”
(CRBV, Art. 260). Embora não se trata do novo constitucionalismo em si, todos os
dispositivos constitucionais refletem, à maneira local, a Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes de
1989128. O Brasil é um de seus signatários sul-americanos – só o Uruguai, Suriname e as
Guianas não assinaram - e, após sua promulgação pelo Decreto nº 5.051 de 19 de Abril de
2004, ele passa a ter força normativa, devendo ser cumprido internamente e aplicado pelo
judiciário brasileiro (OLIVEIRA FILHO, 2013, p. 27).

3 – CONCLUSÃO

São muitas as questões colocadas para o constitucionalismo pelas reformas das últimas
décadas. O contrato social, chave da racionalidade social e política moderna, é extremamente
ligado à ideia de uma nacionalidade assentada em um território; e da soberania caminhando
ao lado de uma cidadania igualitária e universalizante. Empiricamente o que se encontrava era

A previsão do Artigo 8.2 do Convênio 169, por exemplo, previa que: “Esses povos deverão ter o direito de
128

conservar seus costumes e instituições próprias, desde que eles não sejam incompatíveis com os direitos
fundamentais definidos pelo sistema jurídico nacional nem com os direitos humanos internacionalmente
reconhecidos. Sempre que for necessário, deverão ser estabelecidos procedimentos para se solucionar os
conflitos que possam surgir na aplicação deste princípio.”
258
uma sociedade hierárquica e excludente, que desconsiderava sua diversidade cultural e
perpetuavam as relações de dominação colonial. A questão da plurinacionalidade, também
colocada na Ásia, na África, e mais timidamente no “norte” como a Suíça, na Bélgica, na
Espanha e no Canadá, traz consigo realidades jurídicas completamente novas, assim como
novos desafios à teoria e doutrina do Direito. Da mesma forma abrirá novos caminhos a
percorrer, novos enfoques e perspectivas às questões jurídicas. O Prof. Louk Hulsman (2003),
na obra prima “Das Penas Perdidas”, fazia a comparação: "se afasto do meu jardim os
obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja
existência eu sequer suspeitava". Essa nova forma de encarar o Direito e a Teoria
Constitucional, à luz da verdadeira e democrática vontade constituinte, permite uma melhor
reflexão sobre a existência de um ideal único de justiça e sua normatização. Entre os autores
mais entusiastas do potencial dessas transformações: Boaventura de Souza Santos adverte
para o caráter de uso contrahegemônico de instrumentos hegemônicos (2010, p. 30); Wolkmer
e Fagundes (2011, p. 378) falam de um processo de descolonização do poder e da justiça.

O objeto deste trabalho, é bom afirmar, não comportaria uma conclusão definitiva,
visto que se trata de um processo recente e que, ainda, não pode ser considerado encerrado.
Basta lembrar que após as grandes manifestações populares que ocorrem em Junho de 2013,
algumas forças políticas brasileiras apresentaram a proposta de uma “constituinte exclusiva”
para reforma eleitoral, como um dos pactos propostos para estancar a crise política do Estado.
Pra além da discussão da viabilidade desse projeto, certo é que durante o último ano, uma
hora ou outra, os partidos políticos ou movimentos populares retomaram essa bandeira. Outra
novidade é a retomada da agenda pluralista no Chile, que viu distintos movimentos populares,
estudantis, de esquerda e das populações mapuches defendendo a proposta de uma Asamblea
Constituyente. Ressalto, ainda, a recente disposição do governo uruguaio em assinar o
Convênio 169 da OIT sobre as populações indígenas e tribais. Ou seja, é possível que o
projeto do Novo constitucionalismo latino-americano ainda não tenha se esgotado, na verdade
ele parece ter ganhado um novo folego. Tendo em vista a profusão de movimentos e o enorme
aporte de direitos, princípios e valores, os pesquisadores das ciências sociais e jurídicas
possuem farto campo de pesquisa, em especial as de caráter empírico que busquem analisar a
efetivação dessas garantias e que avaliem como os textos constitucionais tem se relacionado
com a realidade.

Entre as conclusões que já podemos obter desses processos constituintes e seus textos
constitucionais, está a construção de um novo tipo de Estado. As reformas constitucionais
operadas na América Latina encerraram a tradição liberal monista e redefiniram conceitos
259
como unidade nacional, soberania e nacionalidade. O plurinacionalismo superou o
universalismo proposto pelas teorias europeias, e jogaram nova luz às questões de cidadania,
igualdade jurídica e diversidade. Tudo isso se configura como “novo”, e todos os adjetivos já
listados anteriormente, por não terem sido desenvolvidos exclusivamente na academia, mas
serem frutos de processos de lutas sociais e movimentos populares. O novo
constitucionalismo latino-americano compartilha o caráter realmente revolucionário do
constitucionalismo norte-americano e francês do século XVIII. Desse processo dialético, a
emergência de novos atores sociais, novas instituições, novas práticas é, ao mesmo tempo,
condicionante e resultado das reformas constitucionais.

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262
O fórum regional das Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio
de Janeiro: uma experiência exitosa de fortalecimento dos princípios de controle e
participação social

Camila R. Estrela¹, Evelyn S. da Silva², Luana da S. Pimentel³, Márcia L. Silva 4, Quele C. G.


Picoli5

1
Ouvidoria da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – RJ –
camila.estrela@saude.rj.gov.br
2
Ouvidoria da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – RJ –
evelyn.silvano@saude.rj.gov.br
3
Ouvidoria da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – RJ –
luana.pimentel@saude.rj.gov.br
4
Ouvidoria da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – RJ –
marcia.lopes@saude.rj.gov.br
5
Ouvidoria da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – RJ –
quele.picoli@saude.rj.gov.br

Resumo
Este artigo tem por finalidade realizar uma reflexão acerca do trabalho desenvolvido pela
Ouvidoria Geral da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro de efetivação dos fóruns
junto às Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde do respectivo Estado, que
começaram a ser desenvolvidos a partir de 2013. Para tanto, o trabalho traz a metodologia
utilizada para a realização dos encontros e o processo de avaliação aplicado junto aos
participantes, bem como os instrumentos utilizados para este fim, sendo proporcionado desta
forma, o contínuo aprimoramento do trabalho desenvolvido. Este artigo também procura
descrever a importância deste espaço para a troca das experiências regionais vivenciadas
pelos ouvidores e com isso, uma profícua melhoria do trabalho desenvolvido junto aos
usuários dos serviços de saúde das respectivas Ouvidorias, contribuindo, consequentemente,
para este canal, em seu papel de fortalecedor dos princípios de controle e participação social.
Por fim, este artigo pretende, principalmente, através da socialização da ação realizada,
fomentar a importância e a viabilização da participação direta da população para a melhoria
dos serviços públicos de saúde, possibilitada através da construção efetiva de espaços e
alternativas juntos aos usuários do Sistema Único de Saúde.
Palavras-chave: Ouvidoria; Fórum; Participação; Regionalização

1 Introdução

263
A Ouvidoria Geral da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES), através da
Coordenação de Descentralização129, realizou no ano de 2013 e 2014 fóruns periódicos com
as Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde
(SUS).
A realização desses encontros deu-se no momento em que a Ouvidoria Geral ao desenvolver
as metas de seu planejamento estratégico para o período de 2012 a 2015 reconhece a
necessidade de realizar “o apoio à implantação e o acompanhamento das Ouvidorias das
Secretarias Municipais de Saúde, tendo em vista a meta inscrita no Plano Estadual de Saúde
de apoiar cem por cento das Ouvidorias em saúde implantadas/implementadas nos
municípios”.
A equipe técnica ao iniciar a organização desses encontros entendeu que esta ação refletiria
no compromisso da Ouvidoria Geral da SES no sentido de fortalecer o Sistema Nacional de
Ouvidorias do SUS no Estado do Rio de Janeiro, de modo a aperfeiçoar a capacidade
resolutiva das ações e serviços prestados à população.
Ressalta-se que os Fóruns foram pensados e formatados visando também reforçar os
postulados de uma das diretrizes do SUS: a regionalização. A regionalização enquanto diretriz
do SUS e eixo estruturante do Pacto de Gestão é orientadora da descentralização das ações e
serviços de saúde, assim como norteia os processos de negociação e pactuação entre os
gestores. Possui três instrumentos principais: o Plano Diretor de Regionalização (PDR), o
Plano Diretor de Investimento (PDI) e a Programação Pactuada e Integrada da Atenção à
Saúde (PPI)130.
A Coordenação de Descentralização buscou formatar as reuniões em fóruns, tendo por base o
reconhecimento da necessidade da disseminação de informações que os ouvidores das
Secretarias Municipais de Saúde possuem, bem como a viabilização do compartilhamento de
suas experiências de trabalho nas respectivas Ouvidorias, fortalecendo assim seu o papel
enquanto serviço fortalecedor do controle e da participação social.

2 O controle e a participação social enquanto exercício democrático


A palavra “controle”, segundo o dicionário Priberam (2013) traz em seu significado os
conceitos de vigilância, inspeção, fiscalização, comprovação e domínio.
Partindo da premissa que o Brasil vivenciou um longo período ditatorial onde o Estado
exercia suas funções enquanto instância autoritária coibidora, sustentando-se em pesados
mecanismos repressivos contra os opositores do governo, atuando no sentido de silenciar as
contestações, suspendendo assim o Estado de Direito e de órgãos de representatividade (em
um 1º momento), instaurando uma democracia representativa de fachada (em um 2º
momento), com um artificial sistema bipartidário convivendo com o “terror do Estado”
(FALEIROS, 1986 apud FALEIROS; SILVA; VASCONCELLOS; SILVEIRA, 2006), o
Brasil somente começa a contar com uma conjuntura democrática favorável, a partir da
década de 1970 e início de 1980 com diversos movimentos em prol da alteração deste cenário.

129
Em 2012 foi criada dentro da Ouvidoria da SES/RJ a Coordenação de Descentralização que possui como
atribuição atuar na implantação e implementação de Ouvidorias do SUS sejam elas das Secretarias Municipais
de Saúde, dos Hospitais que integram o PAHI (Programa de Apoio aos Hospitais do Interior) e novas Ouvidorias
que venham integrar a Rede de Ouvidorias da SES.

130
Para discussão detalhada ver: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/sus_instrumento.pdf

264
Esta transição, marcada por muita luta e resistência, tem como marco regulatório que coroa o
movimento de abertura democrática, a Constituição Federativa de 1988 que traz, dentre outros
aspectos, “um conjunto integrado de iniciativas dos Poderes Públicos e da Sociedade
destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social” (art.
194 caput).
Diante deste contexto, a Saúde passa a contar legalmente com os princípios inerentes ao
funcionamento de um sistema de governo “do povo”, tornando necessário o reconhecimento
da necessidade de revisão do modelo de saúde vigente na época com propostas que visassem a
participação popular nas decisões e descentralização da gestão pública em saúde (DALLARI,
2000; SCHNEIDER et al., 2009; VANDERLEI; ALMEIDA, 2007).
Nesse contexto surge o SUS orientado pelos princípios de universalidade, equidade e
integralidade e pelas diretrizes de descentralização/regionalização, hierarquização e
participação social, sendo que o último princípio aponta para que a comunidade atue na
formulação e no controle das políticas públicas de saúde, fazendo-se necessária esta atuação
da população para o desenvolvimento de um controle social que pode ser considerado, por sua
vez, o maior instrumento de defesa social do Sistema Único de Saúde, quando através deste,
os próprios usuários do sistema exercem a defesa de seus princípios e diretrizes.
A partir deste contexto de esforço empreendido desde então para a construção de uma
organização social democrática, a área das políticas públicas de saúde destaca-se pela
singularidade de possuir o controle social como um de seus princípios, adquirindo desta
forma:
(...) uma centralidade na luta democratizante do período, pela profundidade da
mudança e seu impacto no conjunto das políticas. Em torno dela, vão sendo
mobilizadas múltiplas forças da sociedade civil e do aparelho de Estado e travados
muitos embates, em diversos planos, que condensam uma experiência histórica
inovadora, ainda em curso na atualidade (FALEIROS; SILVA; VASCONCELLOS;
SILVEIRA, 2006 p. 36).

O SUS não somente reitera o exercício do controle social sob as práticas de saúde, mas
enquanto primeira política pública no Brasil a adotar constitucionalmente a participação
popular como um de seus princípios, também evidencia a possibilidade de seu exercício
através de outros espaços institucionalizados em seu arcabouço jurídico, além dos
reconhecidos pela Lei Orgânica de Saúde de n° 8.142/90131 (ROLIM; CRUZ; SAMPAIO,
2013).
Mas a existência deste princípio de participação e desses espaços não garante sozinha sua
efetivação, uma vez que o exercício da uma democracia conquistada tardiamente,para além do
sufrágio universal, faz parte de um processo deconstante amadurecimento na sociedade
brasileira.
Diante disso,os mecanismos existentes para o exercício do controle social necessitam ser
conhecidos e utilizados pelos profissionais e usuários da área enquanto instrumentos que
possam responder as demandas e ações de saúde no âmbito local, ao apontarem o que é
prioridade para a efetivação do direito a saúde e fortalecimento do SUS (SOUZA;
RAMALHO, 2011).

3 Fóruns regionais: espaço de produção de conhecimento e fortalecimento das ações


desenvolvidas pelas Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde

131
Esta lei reconhece os Conselhos e as Conferências de Saúde enquanto instâncias colegiadas de controle e
participação social.
265
Com vistas ao fortalecimento da gestão estratégica do SUS, como uma das ações apontadas
para o fortalecimento da participação e controle social, encontra-se a Ouvidoria. Reafirmada
pelo SUS no âmbito do Pacto pela Saúde (2006) que estabelece diretrizes operacionais por
meio dos seus componentes pela Vida em Defesa do SUS e de Gestão e pelo Decreto
7.508/11.
No âmbito da base legal das Ouvidorias do SUS, a política que possui amplo destaque é a
Política Nacional de Gestão Estratégica e Participativa. A mesma foi criada com o desafio de
promover e estimular a formulação e a construção de políticas públicas de saúde de forma
participativa, fortalecendo assim o controle social. Para o alcance desta proposta, tem
desenvolvido a criação de espaços públicos e coletivos para o exercício do diálogo e da
pactuação de ações para o desenvolvimento da melhoria da gestão do Sistema Único de
Saude, dando forma e estrutura à participação da comunidade como diretriz organizativa do
sistema (BRASIL, 2010).
Como componente desta Política, a Ouvidoria em Saúde, constitui-se, em uma ferramenta
estratégica e democrática de comunicação entre o cidadão e os gestores do SUS.
Este espaço estabelece-se, portanto, enquanto um forte potencializador do exercício
democrático de cidadania, ao possibilitar a transformação das demandas da população usuária
dos serviços públicos de saúde em caminhos para a melhora dos mesmos, quando a gestão,
por sua vez, utiliza-se das manifestações registradas pelos ouvidores (ou de documentos que
as demonstrem) para reverem o processo de trabalho desenvolvido como um todo.
Esta dinâmica também corrobora para o fortalecimento de um dos princípios organizativos do
SUS, o de regionalização, que contempla por sua vez,

(...) uma lógica de planejamento integrado, compreendendo as noções de


territorialidade, na identificação de prioridades de intervenção e de conformação de
sistemas funcionais de saúde, não necessariamente restritos à abrangência municipal,
mas respeitando seus limites como unidade indivisível, de forma a garantir o acesso dos
cidadãos a todas as ações e serviços necessários para a resolução de seus problemas de
saúde, otimizando os recursos disponíveis (Ministério da Saúde, 2002).

Nesta perspectiva a realização dos fóruns junto às Ouvidorias das Secretarias Municipais de
Saúde permite que a construção coletiva para a melhora dos serviços prestados, se dê nesses
encontros de forma que as diferentes realidades regionais não sejam um entrave, mas pelo
contrário, constituam-se enquanto fomentadoras para a construção coletiva de estratégias
condizentes com as demandas gestadas nesses diferentes contextos.
Tendo em vista as desigualdades presentes no Brasil em diversos aspectos132, acentuadas pela
realidade das proporções continentais deste país, Souza e Ramalho (2011) utilizam-se de
Sposati (1992) para reafirmar a necessidade do controle social por parte da população,
pontuando que o “processo de democratização não se apresenta da mesma forma em cada
município” (p.366).
Nesta perspectiva, o trabalho desenvolvido pela Ouvidoria da Secretaria Estadual de Saúde do
Rio de Janeiro, junto às Secretarias Municipais de Saúde do respectivo Estado, também
contribui para o fortalecimento de outro princípio do SUS, o de “regionalização”.
O papel da regionalização está definido na Constituição de 1988 e na Lei nº 8.080/1990. Tal
diretriz é estruturante dos serviços de saúde, tornando-se necessário para sua efetivação, a
cooperação entre os entes interfederativos visando a organização e a efetivação do acesso aos
serviços de saúde em um determinado território.

132
Para maior discussão, verificar Klein (2009).
266
Neste sentido, estando pautado pela maior eficácia e transparência causadas pela
aproximação das políticas de saúde aos cidadãos, bem como pelo reconhecimento da
heterogeneidade e da desigualdade social e territorial, por meio da identificação e do
reconhecimento das diferentes situações regionais e suas peculiaridades, o serviço de
Ouvidoria deve estar presente em todas as secretarias estaduais de saúde; nas
secretarias de saúde das capitais; nas cidades com mais de 100 mil habitantes; nas
cidades-polo; e nas sedes dos consórcios municipais e das regiões de saúde, a ser
acordado nas Comissões Intergestoras Bipartite (CIBs), Conselhos de Saúde e
demais estruturas do SUS (BRASIL, 2014, p.12).
Os fóruns foram pensados com a finalidade de possibilitar uma troca de informações que
proporcionasse a construção de conhecimento e qualificação entre as Ouvidorias implantadas
e consequentemente a melhoria e o aprimoramento dos serviços prestados aos cidadãos no
que compete ao setor, tendo em vista a compreensão desses espaços enquanto “um lugar de
interação e, conseqüentemente, de desenvolvimento da aprendizagem colaborativa, uma vez
que esta é pautada na interação e na participação ativa/colaborativa de todos os envolvidos no
processo de ensino aprendizagem” (PALLOF e PRATT, 2002).
A dinâmica atual adotada pela Ouvidoria Geral junto aos municípios nesses encontros
corrobora com a definição do próprio significado da palavra “Fórum”, sendo este: “praça
pública”, local destinando à discussão pública, reunião ou espaço virtual onde se discute
determinado tema”” (Dicionário Priberam), onde as questões abordadas são compostas,
sobretudo, pela realidade da população que é atendida, proporcionando a troca entre os
ouvidores de exitosas atividades realizadas em seus espaços de atuação, de problemas
regionais que podem ser comuns nos serviços prestados, bem como por informações da forma
como o ouvidor está entendendo o seu processo de atuação na Ouvidoria, levantando assim,
seus questionamentos e/ou socializando os avanços de suas ações.
Os Fóruns também proporcionam a socialização de questões referentes à como a gestão, no
caso das respectivas Secretarias Municipais de Saúde, tem entendido a atuação da Ouvidoria
em suas regiões, onde a equipe da Coordenação de Descentralização da SES participa desses
encontros, prestando orientações às mesmas, dentro da realidade de cada demanda colocada,
auxiliando as Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde em seu caminhar de
implantação e implementação no que tange às ações da Ouvidoria.
Os Fóruns regionais constituem-se desta forma enquanto “um espaço privilegiado para a troca
de idéias onde ocorre o entrelaçamento de muitas vozes que constroem e desconstroem,
questionam e respondem” (OKADA, 2006 apud BARROS; SOUZA, 2011, p. 384),
representando nesta perspectiva, um terreno fértil de fortalecimento de princípios
democráticos de participação e controle social, na medida em que visam uma releitura
constante do fazer profissional dos ouvidores que tem como principais questões as demandas
dos usuários dos serviços de saúde que atendem.

4 A dinâmica de realização dos Fóruns

O Decreto nº 7508/2011 que dispõe sobrea regulamentação da lei no 8.080, de 19 de setembro


de 1990, em seuartigo 37, observa as seguintes diretrizes básicas para fins de garantia da
gestão participativa:

I – estabelecimento de estratégias que incorporem a avaliação do usuário das ações e


dos serviços, como ferramenta de sua melhoria;
II – apuração permanente das necessidades e interesses do usuário;

267
III – publicidade dos direitos e deveres do usuário na saúde em todas as unidades de
saúde do SUS inclusive nas unidades provadas que dele participem de forma
complementar.

A Ouvidoria é, portanto, um espaço que contempla as prerrogativas pontuadas neste decreto


enquanto mecanismo que viabiliza todos estes princípios estabelecidos, ao constituir-se
enquanto um canal ativo de escuta permanente dos usuários que utilizam os serviços de saúde.
Além de possibilitar a transformação dessas manifestaçõesem instrumentos de apoio à gestão
das Secretarias Municipais de Saúdeonde ao terem acesso de forma sistematizada a essas
demandas advindas da Ouvidoria, conseguem visualizar como está se efetivando os serviços
que prestam à população, buscando seu constante aprimoramento.
A atuação do Estado, por sua vez, nos fóruns,se dá enquanto instância orientadora e
mediadora dos diversos discursospresentes, buscando proporcionar aos municípios o
fortalecimento e o aprimoramento local de prestação de serviços públicos junto à população,
sendo inicialmente um espaço de apoio institucional e qualificação destes.
A proposta é que as Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde possam em determinado
momento ser um espaço onde se discuta as reais necessidades da população das respectivas
regiões de saúde de forma cada vez mais autônoma, tendo a presença do Estado nesses
encontros, o papel de motivador e fortalecedor desta autonomia no que diz respeito ao
tratamento das demandas regionais.
A necessidade de realização de reuniões junto aos ouvidores das Secretarias Municipais de
Saúde surgiu a partir da proposta de alcance da meta inscrita no Plano Estadual de Saúde para
o período de 2012 a 2015 de ”apoiar cem por cento das Ouvidorias em saúde
implantadas/implementadas nos municípios”. Desta forma, as reuniões foram pensadas para
se alcançar esta meta junto aos municípios, tendo em vista sua operacionalização junto a
esses, uma vez que as reuniões proporcionariam à Coordenação de Descentralização o contato
direto com os ouvidores, bem como o monitoramento dos serviços prestados pelas Ouvidorias
das Secretarias das Ouvidorias Municipais junto aos usuários.
Ao todo foram realizadas sete reuniões no ano de 2012 neste formato e três ciclos de reuniões
no formato de fóruns cuja escolha das temáticas tratadas foram pensadas a partir das
demandas colocadas pelos próprios ouvidores participantes destes encontros, onde então, a
Coordenação de Descentralização, buscava formas de desenvolvê-las junto aos demandantes.
Os fóruns em seu formato atual possuem uma dinâmica que antecede sua efetivação junto aos
municípios. Inicialmente um ofício é enviado à Secretaria Municipal de Saúdeque manifestou
interesse em sediar a reunião do fórum com vistas à Ouvidoria correspondente através de fax
e e-mail, solicitando-se a concessão do espaço físico, para que com isso haja uma
formalização do acordo feito no Fórum anterior. Após a confirmação do local são enviados
também por meio de fax e e-mail ofícios de convite às Ouvidoriasdas Secretarias Municipais
de determinada região de saúde com o intuito de comunicar e incentivar a participação dos
municípios, realizando contato telefônico em seguida para todas as regiõese seus respectivos
municípios para a confirmação de suas presenças.
Desta forma, as necessidades e expectativas dos ouvidores ao participarem dos Fóruns são
tratadas através de orientações por parte da Ouvidoria da SES no que diz respeito aos seus
processos de trabalho, daviabilização da troca de informações entre eles, bem como da
construção do conhecimento mútuo das possibilidades e limites enfrentados por cada região
participante,da capacitação dos ouvidores e do constante aperfeiçoamento profissional.
Os fóruns são organizados no formato de encontros onde a Coordenação de Descentralização
prepara uma apresentação que contemple a pauta a ser tratada e desenvolvida junto aos
participantes. A operacionalização desta depende de seu conteúdo, podendo os próprios

268
ouvidores participarem com suas apresentações ou apreenderem informações tratadas pelos
palestrantes convidados.
Estes encontros também são estruturados através de ciclos, ondeum município de cada região
de saúde sedia o encontro e todos os outros se dirigem ao local estabelecido, sendo necessário
para isto, dispor somente de um espaço que comporte os participantes e o equipamento de
data show com um computador. Se houver impossibilidade no fornecimento do equipamento
multimídia a Ouvidoria Geral da Secretaria Estadual de Saúdepode disponibilizá-lo.
Os fóruns contaram com seis ciclos até a presente data e cada temática desenvolvida junto às
Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde tiveram o seu desenvolvimento próprio.
No primeiro, abordou-se o porquê da organização das reuniões no formato de “fóruns”,
explicando-se que este espaço foi escolhido com o objetivo de possibilitar o apoio à
implantação de Ouvidorias em saúde, a construção de um espaço destinado à discussão de
temas que envolvam a escuta qualificada do cidadão, a troca de experiências entre as
Ouvidorias em saúde, além de ser um espaço incentivador de estudos e capacitação. Tratou
também da importância do planejamento para as ações implantadas no âmbito dos serviços de
saúde, bem como apresentou o modelo de projeto desenhado pela Coordenação de
Descentralização para apoio às Ouvidorias133, esclarecendo suas especificidades enquanto
ferramenta de planejamento, explorando aspectos relacionados aos instrumentos de
planejamento do SUS.
O segundo ciclo abordou o início do monitoramento dos projetos inicialmenteelaborados
pelas regiões municipais, a divulgação dos valores das verbas recebidaspelas secretarias
municipais através do Programa de Apoio aos Hospitais do Interior (PAHI) como parte do
processo de incentivo de implantação das ouvidorias e o esclarecimento do processo de
implantação do sistema OuvidorSUS.
O terceiro ciclo tratou da Gestão da Informação nas Ouvidorias do SUScom a colaboração e
apresentação da Assessoria de Informação e Saúde da SES/RJ na pessoa da servidora Juliana
Santini coma finalidade de orientar aos municípios sobre a importância da informação para a
organização dos serviços de saúde, explorando aspectos relacionados à análise, interpretação e
disseminação das demandas provenientes da população, elaboração de indicadores de
monitoramento e avaliação do trabalho da Ouvidoria e elaboração periódica de relatórios
gerenciais, temáticos e segmentados, cuja análise do conteúdo e da linguagem devem ser
ajustados ao contexto e objetivos do destinatário (usuários, gestores e etc).
Também foram abordadosneste ciclo a avaliação do andamento do Projeto de implantação/
implementação das Ouvidorias do SUS, a minuta de Resolução SES/ COSEMS, tendo sido
discutido durante todo o ciclo junto aos municípios de forma coletiva, o texto base da
deliberaçãoque seria em seguida votado em Comissão IntergestoresBipartite (CIB), resultando
posteriormente na Deliberação CIB-RJ de Nº 2630 de 12 de dezembro de 2013134.No quarto
ciclo o assunto tratado foi o Sistema de Regulação, onde se tratou da composição de sua rede,
da dinâmica de atuação junto à mesma com a qual atua, sua regulamentação legal,
organização, missão e função. Para tanto se contou com a colaboração da Superintendência de
Regulação da SES/RJ que encaminhou os representantes das Centrais de Regulação nos
fóruns para apresentações nas regiões de saúde.

133
Esses projetos foram pensados como forma de apoiar e incentivar as Ouvidorias do SUS a se tornarem
legítimas perante a gestão e aos cidadãos que utilizam o serviço. Além de auxiliar naorganização metodológica
do processo de implantação de uma ouvidoria em saúde. Para tanto foi elaborado um modelo que contemplava
uma introdução, justificativa, objetivos, descrição do processo de trabalho, dos recursos humanos, físicos e
materiais, cronograma de execução e referência bibliográfica.
134
Essa deliberação trata dos critérios para implantação dos serviços de Ouvidorias do Sistema único de Saúde
doo Estado do Rio de Janeiro.
269
Já no quinto ciclo, as questões desenvolvidas disseram respeito à freqüência dos municípios
nos fóruns e a entrega dos projetos àqueles que o escreveram de acordo com o
acompanhamento da equipe de Descentralização da Ouvidoria da SES. Também foram
abordadas questões relacionadas ao cronograma de implantação e implementação das
Ouvidorias municipais, resultado do Planejamento estratégico elaborado pela Ouvidoria
SES,que juntamente com os ouvidores das Secretarias Municipais de Saúde pensaram
coletivamente em estratégias de ações para serem desenvolvidas pela Ouvidoria SES ao longo
de 2014, divulgando-se neste momento, a planilha que condensou o resultado do
planejamento realizado em conjunto com osOuvidores Municipais de Saúde.
Também foram abordados neste ciclo temas referentes ao melhor funcionamento das
Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde e a socialização dos resultados das visitas
técnicas realizadas em seus serviços, onde houve durante as reuniões dos Fóruns uma
explanação sobre o percentual de conformidade das Secretarias Municipais visitadas. Outro
assunto abordado neste ciclo foi a “Ouvidoria Ativa135”, onde se debateu seu conceito, tendo
sido distribuído na ocasião, cartilha elaborada pelo Departamento de Ouvidoria Geral do SUS
(DOGES) sobre o assunto e para maior aprofundamento da temática foram fornecidas outras
referências bibliográficas.
Para o sexto ciclo desenvolveu-se os temas de acompanhamento do cronograma de execução
dos Projetos de implantação/ implementação, foi também entregue aos municípios que
receberam a visita técnica da equipe de Descentralização da Ouvidoria da SES,seus
respectivos relatórios eocorreu a realização da apresentação dos ouvidores sobre os serviços
prestados por cada Ouvidoria das Secretarias Municipais de Saúde onde atuam como forma de
socialização entre os mesmos dos avanços e dificuldades vivenciados por cada um, no sentido
da alimentação da prática através das experiências mútuas vivenciadas.
Dentro desde mesmo ciclo, de acordo com a demanda acolhida no quinto ciclo do fórum das
regiões Metropolitana I e Metropolitana II, foi realizado um encontro que teve como temática
a “Regulação” sob o enfoque de três atores: SISREG (Sistema Nacional de Regulação), com o
palestrante DanielSoranz da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil, RivanaDonola do
Centro Estadual de Diagnóstico por ImagemeFelisbela Costa da Central de Regulação das
Regiões Metropolitana I e II, ambas servidoras da Secretaria de Estado de Saúde.
Dentre as palestras ministradas, os assuntos abordados por cada expositorcontribuíram para
um melhor esclarecimento dos assuntos tratados, uma vez que os ouvidores participantes
puderam esclarecer suas dúvidas, uma vez que os assuntos discutidos, foram sinalizados pelos
ouvidores como sendo os trazidos com maior frequência pelos usuários que atendem e por
este motivo, escolhido enquanto temática para ser tratada neste ciclo.
5 Ferramentas avaliativas do Fórum e a possibilidade de aprimoramento contínuo
Para o controle e o monitoramento desses encontros realizados foram elaborados
osinstrumentos delistas de presença e de avaliação de reação136.
A aplicação da lista de presença junto aos participantes tem por objetivo controlar a
freqüência dos ouvidores nas reuniões realizadas, o que auxilia no monitoramento da adesão
destes à proposta dos fóruns de construção coletiva de melhorias dos serviços prestados pela
Ouvidoria das respectivas Secretarias Municipais de Saúde. Esta ferramenta também contribui

135
De acordo com a cartilha Ouvidoria Ativa do SUS- ampliando a Escuta e o Acesso à Informação (2014), com
o Decreto nº 7.508/2011 foi definido o conceito de Ouvidoria Ativa, onde, a partir dele, a Ouvidoria do SUS não
espera mais apenas que o usuário se dirija até ela para fazer reclamações, sugestões, de núncias, solicitações ou
elogios. Com a nova definição, a postura da Ouvidoria deve ser outra, indo até o usuário do SUS para saber a
realidade sobre os serviços ofertados.
136
Segue anexado o instrumento de avaliação de reação aplicado junto aos participantes para medir a satisfação
dos mesmos.
270
para a criação de alternativas que viabilizem essa participação e também possibilita o registro
de contato (e-mail, telefone) dos ouvidores participantes.
Com relação à avaliação de reação, a mesma é aplicada após as reuniões dos fóruns quando a
equipe da Coordenação de Descentralização da SESsolicita aos participantes que avaliem o
encontro realizado, sendo esta uma ferramenta que a Ouvidoria Geral da SES recebeu como
sugestão da Assessoria de Qualidade, no ano de 2008, de controle das atividades quando
aderiu ao Programa de Qualidade do Rio (PQ-Rio)137.Esta é composta pelos itens de: Clareza
no(s) objetivo(s) do evento, Metodologia, Motivação, Conteúdo/Assunto da Reunião, Duração
da Reunião, Infraestrutura, Atendimento da equipe (no item 1); Desempenho da Equipe,
Qualidade dos Recursos Operacionais, Integração, Comunicação, Domínio do Conteúdo (no
item 2) e ainda a pergunta: “De modo geral, como você classifica a reunião?”(no item3), onde
os dados colhidos são posteriormente tabulados por cada região e depois consolidados em
uma única tabela.
Apoiando-se no que Garcia (2001) escreve sobre a implantação de um sistema de avaliação e
sua importância para o planejamento e a gestão governamentais, pontuando que não é algo
trivial e que inexiste na administração pública brasileira uma prática consagrada ou uma
cultura institucional de avaliação, onde “conceitos, metodologias, sistemas de informações
terão que ser criados e desenvolvidos com a finalidade específica de suportar a implantação
do processo regular e recorrente de avaliações da ação governamental (p. 6)”, a avaliação de
reação aplicada junto aos ouvidores participantes dos Fóruns permite à equipe organizadora
dos mesmos, neste sentido, o monitoramento e aperfeiçoamento do trabalho desenvolvido,
respondendo enquanto instrumento escolhido à necessidade de se avaliar o trabalho
desenvolvido.
Nesta direção, a ferramenta de avaliação aplicada, materializa a percepção dos ouvidores,
principais atores dos Fóruns, acerca da dinâmica realizada, sinalizando seus limites e
possibilidades e indicando possíveis melhorias para que este espaço torne-se cada vez mais
um instrumento de fortalecimento das Ouvidorias das Secretarias Municipais de Saúde.
No intuito de evidenciar a sistematização da ferramenta avaliativa utilizada, seguem abaixo os
resultados obtidos nos seis ciclos de Fóruns Regionais de Ouvidorias do SUS no que tange a
participação e avaliação geral dos participantes. Ressaltamos que o Estado do Rio de Janeiro é
composto por 92 (noventa e dois) municípios, logo o valor indicado no item “Total de
Municípios Inscritos” da tabela está relacionado ao total de municípios do Estado do Rio de
Janeiro que foram convocados a participar dos seis ciclos do Fórum Regional de Ouvidorias
do SUS.

Tabela 1 – Quantitativo de Participação nos Fóruns


Ciclos Total de Total de Total de Avaliações analisadas
Municípios Municípios participantes
Inscritos presentes
1º 92 52 91 85
2º 92 56 97 85
3º 92 57 67 31
4º 92 41 78 71

137
O PQRio consiste numa metodologia para diagnosticar o estágio atual de desenvolvimento gerencial,
permitindo estabelecer planos de melhoria contínua do desempenho organizacional de acordo com os conceitos e
princípios da Gestão pela Qualidade Total.
271
5º 92 41 78 71
6º 92 41 78 71
Fonte: Relatório das avaliações de Reação dos fóruns regionais (2013)

Tabela 2 - Classificação Geral dos Fóruns


Ciclos Bom Excelente Em Branco
1º 13 56 07
2º 22 70 01
3º 06 23 02
4º 25 37 02
5º 25 37 02
6º 25 37 02
Fonte: Relatório das avaliações de Reação dos fóruns regionais (2013)

Esta ferramenta de avaliação também propicia à equipe técnica visualizar como os Fóruns
contribuíram, na visão dos ouvidores, para o seu processo de trabalho e se a temática tratada
foi abordada de forma satisfatória, indo ao encontro de suas expectativas, uma vez que traz
em sua composição, quesitos que possibilitam ao participante avaliar todos os componentes
dos Fóruns, além de poder, livremente expor seus comentários, discorrendo-os através de suas
sugestões.
Como produto deste processo de efetivação dos Fóruns junto às Ouvidorias das Secretarias
Municipais de Saúde foram elaborados um relatório no ano de 2013 referente às reuniões
realizadas no ano de 2012 eum relatório no ano de 2013 referente aos três ciclos de Fóruns
realizados no ano de 2012 que foram entregues à gestora da Ouvidoria Geral da SES, Márcia
Lopes, como uma ferramenta que apresenta uma análise geral das reuniões e de seus
resultados, proporcionando através destes constantes oportunidades de melhorias.

6 Considerações finais
A descrição da experiência realizada pela Ouvidoria da Secretaria de Estado de Saúde do Rio
de Janeiro teve o intuito de socializar junto aos setores que prestam serviços de Ouvidoria
e/ou a pessoas interessadas pela temática, o trabalho desenvolvido como uma forma exitosa
de construção de ferramenta que fomente o controle e a participação social propiciando a
qualificação dos atores envolvidos nos serviços de Ouvidoria. Ainda que esta seja um modelo
eficaz, seu aperfeiçoamento será contínuo e dependente da participação dos atores que a
constituem.
Os fóruns também permitem aos ouvidores, a partir do levantamento e socialização das
experiências do serviço prestado, o fortalecimento do papel de ouvidor desenvolvido junto à
população, proporcionando a estes sujeitos o reconhecimento mútuo enquanto contribuintes
da melhoria dos serviços públicos de saúde de seus municípios. Esta troca garante, portanto, o
conhecimento do que é vivenciado pelos outros profissionais que atuam no mesmo papel, mas
em condições diferentes, levando-se em conta as especificidades de cada município, e com
272
isso a fortificação da Ouvidoria enquanto ferramenta fomentadora da participação e do
controle social.
A partir dos indicadores obtidos com a sistematização dos dados coletados por meio da
avaliação de reação, verificamos que os participantes dos Fóruns classificaram os encontros
em sua grande maioria como “excelente”, com isso notamos que o índice de satisfação em
relação a essa atividade encontra-se alinhada à busca da Ouvidoria Geral da SES/RJ de
aprimoramento contínuo dos seus processos e com a prestação de um serviço de qualidade.
Nossa pretensão aqui foi a de socializar o modelo escolhido e executado, pensando na
possibilidade desta experiência inspirar a outras que sejam implementadas com o mesmo
intuito: o de contribuir efetivamente para a consolidação de um SUS cada vez mais
fortalecido e oferecedor de serviços públicos de qualidade para todos, utilizando-se para isso,
do serviço da Ouvidoria como uma ferramenta contribuidora de tal processo.
Segundo, Sérgio Arouca "É sempre fundamental estar trabalhando com utopias; entretanto,
numa determinada conjunção de forças políticas, essas propostas ganham força e acabam se
tornando realidade." Por isso, o esforço empreendido para o fortalecimento dos princípios de
participação e controle social democrático através desta experiência de efetivação dos fóruns
aqui descrita, busca ser uma contribuição para a construção incessante de uma democracia
exercida em sua plenitude.

7 Anexo
APÊNDICE A – Avaliação de Reação utilizada para medir a satisfação dos participantes
dos Fóruns

8 Referências Bibliográficas

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Senado, 1988.
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Departamento de
Descentralização da Gestão da Assistência. Regionalização da Assistência à Saúde:
aprofundando a descentralização com eqüidade no acesso: Norma Operacional da
273
Assistência à Saúde: NOAS-SUS 01/02 e Portaria MS/GM n.º 373, de 27 de fevereiro de 2002
e regulamentação complementar– 2. ed. revista e atualizada. – Brasília: Ministério da Saúde,
2002.
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Departamento de Ouvidoria Geral do SUS. Guia de orientações básicas para implantação de
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Descentralização. Regulamento dos Pactos pela Vida e de Gestão. Ministério da Saúde,
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do SUS. – Brasília: Editora do Ministério da Saude, 2010. 20 p. : il. – (Serie F. Comunicação
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em fóruns de discussão online. In: Veredas online- Atemática. Programa de Pós Graduação
em Linguística. UFJF. Juiz de Fora. 2011, p. 383-397
Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, 2008-2013,[consultado em 24-06-2014].
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MOTA, C. G. (org.) In: Viagem incompleta – a experiência brasileira (1500-2000): a grande
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Ouvidoria Ativa do SUS: ampliando a escuta e o acesso à informação do cidadão. Brasília:
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SOUZA, Aline ferreira de; RAMALHO, Rosângela Pallano. Controle social do SUS:
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VIANA, Ana Luiz D´Ávila; IBAÑEZ, Nelson; ELIAS, Paulo Eduardo Mangeon; LIMA,
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SOUZA, RR. A regionalização no contexto atual das políticas de saúde. Cien Saude Colet,
2001; p. 451-455.

275
Participação e direitos humanos no Brasil:
Analises da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos

María Julia Giménez138

Resumo:
Este trabalho pretende analisar a 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos como espaço
de encontro sócio estatal cuja proposta era a de formular o PNDH3. Ele se propõe identificar a
historicidade do espaço participativo institucionalizado – as CNDHs-, os diversos atores
envolvidos nesses espaços e as formas de interação proposta para os encontros. A análise se
centrará na 11ª Conferência Nacional sobre Direitos Humanos como uma das múltiplas arenas
na qual se desenvolveram as disputas pela construção de políticas públicas em direitos
humanos no Brasil. Partindo da importância da participação da sociedade civil nos espaços de
formulação e decisão como forma de aprofundar a democracia, pretende-se analisar o caso
estabelecendo um diálogo mais amplo com os processos de construção da democracia no
Brasil.
Palavras-chaves: Políticas públicas; Participação; Democracia; Direitos Humanos.

1 Introdução
A campanha eleitoral de 2010 pela presidência do Brasil e os projetos de continuidade do
Partido dos Trabalhadores (PT) no Poder Executivo da República, esteve mediada por um
novo conflito que colocou neste espetáculo político as tensões do governo presidido por Luíz
Inácio Lula da Silva. O escândalo do lançamento, por decreto presidencial, do 3° Programa
Nacional de Direitos Humanos (PNDH3), encontrou reação dentro do próprio gabinete
presidencial (principalmente no ministério de Agricultura e de Defesa); oposição de vários
deputados e senadores; assim como de setores organizados da sociedade civil (principalmente
das igrejas, do agronegócio, dos clubes militares e da grande mídia nacional).
O projeto tornou-se pauta de forte discussão, fora do cenário planejado, quando as vozes de
diversos setores da sociedade política e civil tocaram em cinco pontos-chaves, fazendo do
PNDH um objeto de escândalo midiático: a proposta de descriminalização do aborto e o
Estado laico no Brasil; a criação de uma comissão da verdade e a conseguinte apuração dos
crimes cometidos pelos militares durante a ditadura; a negociação/proteção dos movimentos
pela reforma agrária; e a proposta de uma nova regulação dos meios de comunicação
audiovisuais.
É importante destacar, embora tenha sido silenciado, que o PNDH3 foi produto de um
processo participativo, de encontros entre a sociedade civil e o Estado, com a finalidade de
renovar o último Programa Nacional de Direitos Humanos (2009). O amplo processo
participativo que transcorreu durante a segunda metade do ano 2008 e que culminou na 11ª
Conferência Nacional de Direitos Humanos (CNDH), pode ser compreendido como parte das
inovações da democracia, da qual o Brasil resulta em uma referência para toda América
Latina.

138
Universidade Federal Rural de Rio de Janeiro, UFRRJ, Seropédica, RJ – gimenezmariajulia@gmail.com
276
A disputa que transcorreu entre janeiro e maio de 2010 foi encerrada após o lançamento de
um novo decreto presidencial que anulava ou modificava uma série de linhas programáticas
do documento original, consentindo algumas das demandas dos setores mobilizados contra o
novo PNDH.
Uma ideia que parece prevalecee como clave de compreensão do assunto estudado é que o conflito
foi uma mera “cortina de humo” pré-eleitoral que intentou desgastar ao governo de Lula e afetar a
nova candidatura do PT, lançando mão aos discursos condenatórios dos direitos humanos como
instrumento de “proteção exclusivos dos criminosos”.
Partimos da ideia de que reduzir o assunto à mera disputa eleitoral limita a análises anulando,
principalmente, o carácter confrontativo do novo programa; é dizer, nada esta em jogo salvo os
votos. Embora não desestimamos a tensão que imprime o clima eleitoral na disputa, a proposta
deste trabalho é debelar o que a lógica procedimentalista da democracia oculta: a disputa de
projetos, os repertórios de ação que se põe em marcha para incidir nos assuntos públicos e as formas
de construir consenso no presente brasileiro. Como manifestou o pensador brasileiro Carlos Nelson
Coutinho (2010):
Existe hegemonía da pequeña política quando a política deixa de ser pensada
como arena de luta por diferentes propostas de sociedade e passa, portanto,
a ser vista como um terreno alheio à vida cotidiana dos indivíduos, como
simples administraao do existente. (...) Mas, como também vimos, é
expressão de grande política reduzir tudo á pequeña política. Em outras
palavras, é por meio desse tipo de redução, que desvaloriza a poltica
enquanto tal, que se afirma hoje a quase incontestada hegemonia de classes
dominantes.(COUTINHO, 2010: 32)
A proposta de Coutinho nos invita a romper com a lógica da “pequena política” 139 donde o
que está em jogo é a democracia como procedimento, ampliando a mirada às lutas de
interesses e projetos políticos que confrontam e conflui impactando, neste caso, na
formulação de políticas públicas.
O conflito em torno do novo programa e à forma como foram excluídos determinados temas,
gera ao menos três indagações: que implicância tem na luta pelos direitos humanos no Brasil
as mudanças ou apagamento dos objetivos orientados a fazer frente a problemas históricos
que exigem soluções urgentes? Quais foram os interesses atingidos pelo novo PNDH, e em
que medida as mudanças do segundo decreto foi uma medida para gerar consenso político?
Como impactam estas decisões voltadas ao consenso na construção de uma democracia mais
inclusiva e participativa?
Entendendo as políticas públicas como arena de disputa entre forças políticas, definida pela
seletividade estratégica na qual as instituições e aparelhos específicos do Estado permitem
que determinadas forças sociais tenham uma maior influência na determinação de políticas
concretas, este trabalho propõe realizar uma aproximação ao processo de formulação do
último Programa Nacional de Direitos Humanos no Brasil, a partir das análises da 11ª
Conferencia Nacional de Direitos Humanos como espaço institucionalizado a tal fim.

139
Dizia Antonio Gramsci em GRAMSCI, Antonio. Cuadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 1999-2003, v3. “A grande política compreende as questões ligadas á fundação de novos Estados, á
luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais. A
pequena política compreende as questões parciais e cotidianas que se apresentam no interior de uma estrutura já
estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas forças de uma mesma classe política
(política do dia a dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). Portando, é grande política tentar excluir a
grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política. (GRAMSCI, 1999-2003,
p.21)

277
Neste sentido, propõe-se identificar a historicidade do espaço institucionalizado, os atores
envolvidos nesse processo e as formas de interação proposta para os encontros. Entende-se
este espaço como uma das múltiplas arenas em que é possível identificar as disputas entre
projetos políticos, assim como estabelecer uma reflexão mais profunda sobre o processo de
construção da democracia no Brasil. Assim, este trabalho soma-se a uma série de estudos que
tentam refletir sobre as inovações das democracias pós-transições, analisando-os no contexto
em que ocorrem, com a intenção de incorporar elementos para seu aprofundamento como
forma de ação política.
O texto encontra-se ordenado em três partes e os comentários finais. Nas primeiras duas,
pretende-se realizar uma apresentação dos debates em torno à participação como inovação da
democracia, estabelecendo pontos de convergência e de dissidência entre as leituras
consultadas. Na terceira parte, o foco da análise será colocado sobre a 11ªCNDH como
cenário institucionalizado de encontro sócio estatal, com o objetivo de historicista as CNDHs,
identificar as condições nas quais o encontro ocorreu, os atores participantes, as formas de
interação e os resultados, a fim de identificar às potencialidades e limitações do espaço
participativo na formulação de políticas de direitos humanos no Brasil. Para isso, serão
analisados documentos oficiais relativos às CNDHs e aos PNDHs, disponíveis nos site web da
Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República.

2 Participação como inovação democrática


Colocar as análises nas experiências de participação da sociedade civil na tomada de decisões,
implica enquadrá-la dentro do processo mais amplo de democratização pós-ditatorial comum
à maioria dos países da América do Sul.
Segundo Boaventura de Souza Santos e Leonardo Avritzer (2004) pensar na democracia
implica uma série de disputas pela significação do conceito e a forma de garantir seu
funcionamento. Como propuseram os autores, o conceito de democracia hegemônico após a
Segunda Guerra Mundial, fortemente influenciada pelo pensamento shumpeteriano, centrou-
se na teoria elitista e na ideia de democracia procedimental, estabelecendo restrições à formas
de participação e soberania ampliada em favor de um aparente consenso sobre o procedimento
eleitoral como o mecanismo da cidadania.
No entanto, o caráter hegemônico desta concepção não anula outras discussões que tentaram
questionar a naturalização da concepção procedimentalista. Foi principalmente na região
latino-americana que surgiram uma série de debates ao redor das condições estruturais da
democracia e a dependência no sistema capitalista.
Segundo Avritzer e Souza Santos, o processo regional de democratização que transcorreu
durante a década de 1980 e princípios de 1990, teve um impacto não previsto entre aqueles
que tentaram desenhar a saída dos governos autoritários: a inserção de novos atores no espaço
público com novas concepções de democracia e as exigências de construir uma “nova
gramática social” capaz de mudar as relações de gênero, raça, etnia e privatismo do público,
gerando uma ruptura na trajetória do sistema democrático. Neste sentido, ainda reconhecendo
as diferenças das transições nos diferentes países da América Latina, um ponto comum parece
unir as diversas experiências: o surgimento de teorias contra hegemônicas da democracia.
A proposta de uma democracia mais inclusiva foi bandeira de luta de novos movimentos
sociais, novos partidos políticos - um caso exemplar é o do PT - e novas organizações de
trabalhadores que se construiriam no processo de luta pela volta ao Estado de direito. A ideia
de ampliar as instâncias participativas nos processos de decisão, a inclusão de temas até então
ignorados, a redefinição de identidades e do vínculo entre a sociedade civil organizada e o
Estado, teve impactos diversos na América do Sul, sendo o Brasil um caso chave.

278
Vale destacar, entretanto que a importância da participação na construção da democracia na
região, não pode ocultar o caráter polissêmico e os múltiplos usos que fizeram da proposta de
inovação. Os estudos de pesquisadores como Evelina Dagnino, Alberto Olivera e Aldo
Panfichi (2002), advertem o caráter não uniforme, nem linear dos projetos que sustentam estas
novas arenas políticas. Junto ao surgimento de novos discursos políticos que revalorizam a
participação como ferramenta para a ampliação da democracia, outras perspectivas
reapropriaram-se do conceito de sociedade civil e pública, mercantilizando as disputas de
interesse, despolitizando e “tecnificando” a relação do Estado com a sociedade e, portanto, os
processos decisórios.
Segundo Evelina Dagnino (2002), o reconhecimento da coexistência de projetos políticos
antagônicos fazendo uso dos mesmos conceitos, expressou-se como uma “confluência
perversa” que caracterizou os processos de democratização. Segundo explicita a própria
Dagnino, junto a Olvera e Panfichi (2006):
Esta confluencia designaría, de un lado, el encuentro entre los proyectos
democratizantes que se constituyeron en el período de la resistencia contra los
regímenes autoritarios y continuaron en la búsqueda del avance democrático,
y de otro, los proyectos neoliberales que se instalaron con diferentes ritmos y
cronologías, a partir del final de la década de los 80. La perversidad se
localizaría en el hecho de que, apuntando en direcciones opuestas y hasta
antagónicas, ambos conjuntos de proyectos utilizan un discurso común. En
efecto, no sólo los dos requieren la participación de una sociedad civil activa
y propositiva, sino que se basan en las mismas referencias: la construcción de
ciudadanía, la participación y la propia idea de sociedad civil. (DAGNINO;
OLVERA; PANFICHI, 2006, p. 18)
Essa “confluência perversa” que evidencia a disputa entre diversos projetos democráticos em
cenário de hegemonia neoliberal resulta uma chave de compreensão para situar este processo
regional.
A diversidade de experiências que surgiram em diversos pontos do subcontinente impactou no
campo acadêmico dedicado ao estudo dos processos democráticos na América Latina e
pontualmente no Brasil. Numa recente sistematização deste campo de estudos, Soraya Vargas
Côrtes (2006), propõe dividir a produção acadêmica em dois grandes grupos: os céticos em
relação às possibilidades destes espaços de favorecer a democratização e os otimistas.
Como explicita a autora, os trabalhos que adotaram uma perspectiva cética têm em comum a
desconfiança em relação à legitimidade dos participantes, o desgaste e burocratização que
pode gerar nas organizações sociais, a falta de acesso universal e tecnicidade dos
procedimentos e cenários de participação (CÔRTES, 2006: 16). Em sentido contrário, a
maioria da bibliografia que analisa os mecanismos participativos, propõe um olhar positivo,
resgatando a ampliação dos setores que tem acesso à tomada de decisões e favorecendo a
representação na esfera pública de núcleos temáticos até então relegados da agenda
governamental, mas não por isso ocultando os numerosos limites que ainda atrapalham a seu
desenvolvimento.
Tomando como parâmetro o cenário latino-americano, os casos brasileiros de ampliação do
espaço público têm merecido um lugar especial nos estudos acadêmicos. Desde a sua
transição à democracia, o Brasil apresentou experiências de formas de governo com iniciativa
à participação cidadã na tomada de decisões e controle do público. Estas tiveram um impulso
primordial nas mobilizações populares e na elaboração da nova Constituição de 1988, assim
como também no impulso dado pelo PT no âmbito legislativo e nos executivos locais
(exemplo disso foi o Orçamento Participativo empreendido em Porto Alegre em 1989).

279
Como apontaremos logo, tais inovações, abarcaram desde práticas de referendos e plebiscitos,
até conferências de políticas, audiências públicas, conselhos administrativos e mesas de
negociação, abarcando instâncias de participação locais, estaduais e nacionais.
Refletir sobre estes processos e seu impacto na construção da democracia implica estabelecer
um diálogo entre as diversas experiências que tiveram lugar de forma desigual no território
brasileiro. Neste sentido, os estudos de Leonardo Avrtizer (2010) sobre os orçamentos
participativos, os conselhos de saúde e os planos mestres para o desenvolvimento urbano, a
partir do olhar comparativo em experiências locais - Porto Alegre, Belo Horizonte, Salvador e
São Paulo -, estabelecem algumas variáveis centrais para pensar os casos estudados. Tomando
como eixos do estudo comparativo as organizações da sociedade civil, a sociedade política e o
desenho institucional, o autor pretende demonstrar como nos diversos contextos é
estabelecido combinações particulares que expressam resultados diversos. Embora a proposta
do autor nos permita um olhar do caráter nacional do processo, não se pode dizer que se trata
de experiências de desenvolvimento no cenário nacional.
A evidência de uma marcada desigualdade entre os estudos dos âmbitos locais de participação
e aqueles que pretendem refletir sobre cenários nacionais, resultam em um ponto curioso.
Alguns analistas, como Emir Sader (2004, p.582), advertem que no caso brasileiro a extensão
inovadora dos novos cenários participativos ainda não implicou uma reforma radical do
Estado, dando ênfases no caráter setorial e localizado destas políticas. Neste sentido poder-se-
ia compreender que a disparidade na produção acadêmica é produto do contraste concreto
entre as diversas escalas destes processos no Brasil.
Num recente estudo publicado por Thamy Pogrebinschi (2012), a autora demonstra a
insuficiência daquelas afirmações céticas sobre a importância das inovações participativas no
âmbito nacional, evidenciando alguns dados de caráter quantitativo do desenvolvimento de
Conselhos Nacionais de Políticas Públicas (CNP) nos quase trinta anos de democracia do
Brasil. Embora Pogrebinschi (2012, p.80) não desmereça a importância que teve a
promulgação da Constituição de 1988 nos numerosos experimentos participativos no Brasil, a
autora destaca que foi após a vitória do PT em 2003, que estas inovações ganharam
visibilidade e expressão.
Os dados coletados da Secretaria Geral da Presidência da República do Brasil marcam que o
73% das CNPs ocorridas entre 1988 e 2010 foram durante a presidência de Lula (2003-2010),
alcançando um total de 74 conferências em oito anos de governo (Pogrebinschi, 2012, p.81).
Refutando as críticas que afirmaram que as CNPs têm funcionado como uma ferramenta de
cooptação do PT, Thamy Pogrebinschi (2012) ressalta a vontade política que o governo
presidido por Lula tem apresentado na matéria como um fator chave pra compreender a
ampliação desde tipo de prática. Segundo a autora, a partir dos dados apresentados pode-se
observar que entre os anos 2003 e 2010 houve um notável incremento no número de decretos
presidenciais vinculados com as diretrizes das CNPs, passando de menos de 50 decretos em
2003 para 224 em 2009.
A análise apresentada pela autora nos propõe uma aproximação às experiências das CNPs a
partir de um olhar geral do processo histórico, pelo qual se podem estabelecer relações diretas
entre seu aumento, sua legitimidade pública e o caráter deliberativo e normativo que têm
adquirido estes cenários de encontros entre a sociedade civil e o Estado.
Ainda reforçando a importância dos números expostos naquele trabalho, uma aproximação
aos casos concretos colocam divergências frente às generalizações propostas. Passemos ao
caso aqui estudado. Segundo a autora:
Uno de los ejemplos más celebre es el llamado Programa Nacional de
Derechos Humanos 3 (también conocido como PNDH3) este extenso plan,
que contiene entre otras cosas, políticas para todo tipo de grupos minoritarios,

280
se volvió vinculante tras la publicación de un decreto presidencial hacia
finales de 2009. Las 25 directrices, los 81 objetivos estratégicos y los cientos
de pasos a seguir que se produjeron reflejan las demandas de
aproximadamente 55 conferencia nacionales ocurridas durante las presidencia
de Lula en especial aquellas relativas a grupos minoritarios y a temas de
derechos humanos. (POGREBINSCHI, 2012, p.97)
Embora os dados apresentados sejam importantes para compreender o assunto, o caráter
quantitativo que fundamenta as afirmações deixa à margem numerosas dificuldades que
colocam em dúvida a capacidade da sociedade civil organizada de fazer chegar suas
demandas ao espaço público e, ainda mais, concretizá-las como políticas públicas. O conflito
e as mudanças por decreto presidencial do PNDH3 são evidencia disso.

3 Algumas propostas para analisar os encontros institucionalizados entre a sociedade


civil e o Estado
Tal como explica Evelina Dagnino (2002), as novas instituições participativas surgidas dos
processos de democratização, podem ser entendidos como cenários de “encontro entre o
Estado e sociedade civil”, no qual se promove negociação e/ou a participação conjunta, mas
diferencial, de cada um dos atores envolvidos. Ao colocar o foco no surgimento e
desenvolvimento destes tipos de instituições partimos de uma concepção dos processos
políticos como arena nas quais os atores sociais disputam projetos.
O caráter espacial onde se pauta institucionalmente a relação entre o Estado e a sociedade
civil para definir um assunto público é conceituado por Ernesto Isunza Vera (2002; 2006)
como “interface sócio estatal”. Este conceito supõe compreendê-lo como: um campo,
atravessado pelo conflito que se articula em torno de um tipo específico de bens ou capital;
um espaço de intercâmbio intencional dos sujeitos implicados (societários e estatais), a partir
de relações assimétricas; construído por múltiplos discursos e projetos políticos que se
vinculam nesse cenário circunscrito espacial e temporalmente.
Segundo Leonardo Arvritzar (2010) os desenhos variam segundo os contextos e o tipo de
participação que se proponha. Cada tipo de desenho implica o fortalecimento das
potencialidades horizontais já presentes ao nível da sociedade civil ou a obstrução de
elementos hierárquicos presentes no sistema de governo. O pesquisador propõe dividir os
casos estudados a partirdos elementos do desenho instituições de participação em três tipos:
desenho desde as base, de reparto de poder e de ratificação140.
Ao utilizar estes tipos para pensar diversos casos locais do Brasil, o autor evidencia a
diversidade de resultados que desenhos similares tiveram em cada um dos contextos
estudados. Neste sentido, não basta analisar este processo em sua forma “estática” centrada
em procedimentos, normas e convenções que dão por certa a existe um molde que pode ser
utilizado sem ter em conta as condições de surgimento e de expansão (AVRITZER, 2010,
p.243). Recuperando a proposta do autor, entendemos que uma perspectiva “interativa”
140
O desenho desde as bases se caracteriza pela participação ampliada da cidadania em espaços
institucionalizados abertos a toda comunidade; mas o carácter altamente experimental e flexível, faz com que
seja um desenho efetivo em situações onde existe um consenso forte entre a sociedade politica e civil. O desenho
de reparto de poder, conta com formas mais limitadas de participação direita, mas inclui formas de
representação para os atores da sociedade civil. A segunda característica destes desenhos é que estão
institucionalizados legalmente e, geralmente, a toma de decisões é compartida entre os atores políticos e civis;
neste sentido as instituições centradas no reparto do poder dependem menos da vontade da sociedade política
para sua implementação. E por ultimo, o desenho de ratificação. Neste caso a participação vem depois de uma
proposta de politica pública elaborada pelo Estado e a participação nestos espaços resume-se a aprovar ou
rechaçar as propostas lançadas pelo Estado; mas ainda apresentando-se como o menos participativo, estas
instituições tem a possibilidade de bloquear ações do Estado. (cf. AVRITZER, 2010, pp. 103-112)

281
permite-nos avaliar as diversas formas em que foram organizados estes cenários
institucionais, contemplando as mudanças nas condições de desenvolvimento e nas relações
ali geradas entre os atores sociais e políticos (ARVIZTER, 2010, p.95).
Continuando com as propostas de análises interativo das relações entre a sociedade e o
Estado, Felipe Hevia e Ernesto Isunza Vera (2006) propõem observar e descrever os espaços
onde os atores sociais e estatais interatuam e desenvolvem seus projetos e capacidades de
agência. Recuperando de Pierre Bourdieu (1990) o conceito de campo e de Norman Long
(2001) interface sócio-estatal, os autores pretendem definir o cenário analítico a ser estudado.
Neste sentido explicam:
Hemos decidido retomar el concepto de interfaz, entendido como un espacio
de intercambio y conflicto en el que ciertos actores se interrelacionan no
casual sino intencionalmente. Un tipo especial de interfaz es el espacio donde
actores sociales y estatales se encuentran (por lo tanto, las definimos como
interfaces socioestatales). estas interfaces socioestatales están determinadas
estructuralmente tanto por la política pública como por los proyectos
sociopolíticos de los actores (estatales y sociales) concernidos. (HEVIA;
ISUNZA, 2006, p. 61)
Tentado estabelecer “tipos ideais” das interfases, assim como o caráter formal ou informal do
cenário, os pesquisadores identificam duas formas tipológicas: uma centrada na lógica
cognoscitiva (relações de “fazer saber”) e a segunda na lógica política (relações de “fazer
fazer”). Entre as primeiras identificam: 1) Interfase de contribuição (SC → E, a sociedade
civil informa ao Estado); 2) Interfase de transparência (SC ← E, o Estado informa à sociedade
civil); 3) Interfase comunicativa (SC ↔E, sociedade civil e o Estado se informam
mutuamente). E entre os tipos polítocos: 1) Interfase mandatária (SC ⇒ E, sociedade civil
controla, domina ou dirige o Estado); 2) Interfase de transferência (SC ⇐ E, o Estado
controla, domina ou dirige à sociedade civil); 3) Interfase de cogestão (SC ⇔ E, a sociedade
civil e o Estado mantém uma relação de cogestão). (HEVIA; ISUNZA, 2006, pp. 64-65)
A relevância dos aportes desta perspectiva centradas na interação entre o Estado e a sociedade
civil radicaliza no reconhecimento da diversidade de atores participativos que se interagem
segundo seus interesses num espaço historicamente estruturado.
Continuando esta linha, o resultado da interação depende do contexto no qual se desenvolve o
encontro, do tipo de desenho que estabelece as regras do encontro, mas também dos interesses
que confrontam e convergem fora e dentro destes espaços. Neste sentido, brindam
ferramentas para ordenar, analisar e caracterizar as situações de interação institucionalizadas.
Nas próximas páginas se pretende recuperar estas perspectivas, a fim de identificar as
dinâmicas daquela arena institucionalizada que teve como objeto a formulação participativa
do último Programa Nacional de Direitos Humanos no Brasil.

4 As Conferências Nacionais de Direitos Humanos


Nesta segunda parte do trabalho o foco da atenção será colocado na 11ª Conferência Nacional
de Direitos Humanos. Retomando as propostas do pesquisador colombiano Jairo Lopez
Pacheco (2013), e sem desconhecer a importância dos estudos normativos e jurídicos na
matéria, este trabalho pretende aportar aos esforços por indagar as formas em que estes
direitos são movimentados e utilizados como repertório de confrontação política, produzindo
efeitos sociais, políticos e institucionais (LOPEZ, 20013: 10). Em palavras do pesquisador:
Los derechos humanos en movimiento se inscriben en una tensión ineludible,
en cuanto mecanismos institucionales de regulación de las relaciones entre los
estados y los individuos, a la vez que como mecanismos y recursos de
articulación de la acción de reclamo por principios elementales. Pasar de un
estudio basado en derechos, a un estudio del enmarcamiento de derechos, con
282
un marco jurídico que respalda sus peticiones, aporta a comprender cómo los
derechos humanos en movimiento deben entenderse en la tensión intrínseca
que los caracteriza: como medio de constreñimiento de poder y como
mecanismo de regulación institucional de relaciones. (LOPEZ, 2013, p.32)
Como adianta o pesquisador, diversas perspectivas sociológicas tem se aproximado ao estudo
dos processos de apropriação dos direitos humanos como ferramenta política, recuperando os
fatores endógenos e exógenos ao processo de socialização destes direitos em cada país. Pensar
no caso brasileiro a partir da confluência de variáveis internas e externas implica ter em conta
os processos de luta que tiveram origem na resistência à ditadura e na construção da nova
democracia; assim como também na Constituição de 1988, como de uma nova carta
constitucional que incluiu a garantia dos direitos humanos como uma inovação chave no
corpo do texto. Mas não por isso desmerece o lugar central que ocuparam o jogo de pressões
externas que delinearam formas de ação e avanço na garantia e defesa dos direitos humanos
na legislação internacional.
Um acontecimento chave na institucionalização dos direitos humanos no Brasil encontra-se na
Conferência da ONU em Viena (1993), onde se estabeleceu um plano de ação tendo em vista
o fortalecimento dos direitos humanos dos países participantes, propondo a formulação de
planos nacionais seguindo as recomendações lançadas na declaração e programa de ação 141. A
importância da participação “dos povos”, “os afetados”, “os interessados” e as organizações
governamentais na tomada de decisões resulta de grande importância para compreender a
forma na qual se desenvolveu a institucionalização dos direitos humanos, da mão dos
processos participativos.
Neste contexto no qual o Brasil continuava se destacando como o país com maior (índice
de??) desigualdade social da América Latina, as pressões e denúncias internacionais se
fizeram cada vez mais fortes. Foi durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso que o
governo nacional empreendeu a tarefa do planejamento de um programa de direitos humanos,
tornando o Brasil o terceiro país, depois da Austrália e da Finlândia, em materializar o acordo
firmado em Viena.
O Ministério da Justiça ficou encarregado de elaborar um Plano Nacional de Direitos
Humanos, assessorado pelo Núcleo de Estudos da Violência/USP. Sob a coordenação do
Professor Paulo Sérgio Pinheiro foram realizados seis seminários regionais entre novembro de
1995 e março de 1996 em grandes capitais do Brasil (São Paulo, Rio de Janeiro, Recife,
Belém, Porto Alegre e Natal), com a participação de 334 representantes de 210 organizações e
movimentos sociais. Após os encontros o NEV/USP reelaborou um segundo pré-projeto do
Plano Nacional de Direitos Humanos que foi enviado numa versão sintetizada aos diversos
ministros para que se manifestassem sobre as propostas ali contidas.
Por iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal e do Fórum das
Comissões Legislativas de Direitos Humanos, realizou-se a 1ª Conferência Nacional de
Direitos Humanos, em Abril de 1996, que discutiu e contribuiu ao desenho do plano.
Finalmente, em Abril de 1996, o projeto foi apresentado e debatido na I Conferência Nacional
de Direitos Humanos, promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara de
Deputados (CDH), com o apoio do Fórum das Comissões Legislativas de Direitos Humanos,
Comissão de Direitos Humanos da OAB Federal, Movimento Nacional de Direitos Humanos,
CNBB, FENAJ, INESC, SERPAJ e CIMI. Como diz o documento do primeiro programa,
lançado por Decreto n° 1.904 de 13 de maio de 1996142:

141
Disponível em http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/viena.html. Acesso no 08/08/2014.
142
Decreto n° 1.904, Programa Nacional de Direitos Humanos, Brasília, 13 de maio de 1996. Disponivel em
http://www.dhnet.org.br/dados/pp/pndh/textointegral.html. Acesso no 08/08/2014.
283
Neste processo de elaboração, foi colocada em prática a parceria entre o
Estado e as organizações da sociedade civil. Na execução concreta do
Programa, a mesma parceria será intensificada. Além das organizações de
direitos humanos, universidades, centros de pesquisa, empresas, sindicatos,
associações empresariais, fundações, enfim, toda a sociedade brasileira
deverá ter um papel ativo para que este Programa se efetive como realidade.
O Programa Nacional de Direitos Humanos abre uma nova dinâmica. Governo
e sociedade civil respeitam a mesma gramática e articulam esforços comuns.
O Programa passa, desta forma, a ser um marco referencial para as ações
governamentais e para a construção, por toda a sociedade, da convivência sem
violência que a democracia exige. (PNDH-I, 1996)
O processo de participação institucionalizada da sociedade civil organizada pela defesa dos
direitos humanos no Brasil para a participação na formulação do primeiro PNDH foi um
ponto chave que caracterizou à nova política. Entre 1996 e 2009 foram desenvolvidas onze
Conferências Nacionais de Direitos Humanos. Como sintetizado no texto base da 11ª
CNDH143, as conferências que foram celebradas durante aquela década, ainda tiveram
objetivos diferentes e respeitaram o desenho participativo como eixo central.
A fim de sintetizar o mapeamento das onze CNDHs, (construímos ou foi construído??) uma
tabela onde captar uma série de elementos que nos permitiram estabelecer continuidades e
mudanças destes espaços de encontro (ver no ANEXO, Tabela 1). Passemos a enumerá-las.
Todas as conferências estiveram centradas no que Leonardo Avritzer (2010) denominou:
desenhos de reparto de poder. Neste sentido, foram entidades estatais as que convocaram a
cada um dos encontros, dando institucionalidade e legitimidade ao processo participativo.
Recuperando a tipologia feita por Hevia e Isunza (2006), todas as CNDHs estabeleceram
lógicas cognoscitiva (relações de “fazer saber”), dominando aquelas (caracterizadas ou
características) como interfase de contribuição (SC → E, a sociedade civil informa ao Estado)
por sobre a comunicativa (SC ↔E, sociedade civil e o Estado se informam mutuamente).
Foi a partir da 9ª CNDH (2004) que se estabeleceu uma nova forma de interação ate então
funcionando em direção unidirecional, dando passo de lógica de contribuição e a
comunicativa.
Como analisa Leonardo Avritzer (2010: 25), não podemos desconhecer o papel chave que
desde seus inícios o PT tem tido na institucionalização de novas práticas de participação.
Neste sentido, a inclusão do Poder Executivo a partir do ano 2004 na comissão organizadora
da CNDH pode ser entendida como um passo na institucionalização da participação e da área
dos direitos humanos como política pública. Recordemos que uma das primeiras ações do
primeiro mandato do Lula foi a elevação do status de Secretaria Especial dos Direitos
Humanos da Presidência da República (SEDH), ampliando atribuições para a gestão de
políticas de direitos humanos144
Aquele processo também se viu acompanhado pela reformulação das lógicas de participação.
Ainda que sempre tenham sido construído por representantes da sociedade política e da
sociedade civil, a partir de então a inclusão institucionalizada de novos cenários de
participação estadual e distrital, estabeleceu o processo de eleição de delegados (as) dos
estados e distritos, tentando garantir a representação nacional e unificando os debates
preparatórios. Neste sentido, se estabeleceu um novo calendário de conferências estaduais e

143
Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/11cndh/site/documentos/documentos.html. Acceso no 02/03/2014.
144
Entre as competências da SEDH estão: a assessoria ao Presidente da República na formulação de políticas e
diretrizes voltadas à promoção dos direitos humanos; a coordenação da Política Nacional de Direitos Humanos
em conformidade com as diretrizes do Programa Nacional de Diretos Humanos - PNDH; a articulação de
iniciativas e o apoio a projetos voltados para a proteção e promoção dos direitos humanos em âmbito nacional; o
exercício das funções de ouvidoria-geral em direitos humanos. Em forma paralela também foram criadas outras
duas Secretarias Especiais: a de Políticas para as Mulheres e a de Igualdade Racial.
284
distrital que passaram a serem realizadas a cada dois anos; sendo que, nos anos ímpares,
seriam realizados encontros nacionais de direitos humanos, de proporções mais reduzidas,
voltados ao aprofundamento de temas centrais para o processo de afirmação e consolidação
dos direitos humanos no Brasil.
Segundo os dados recolhidos, os números da participação da sociedade civil foram se
incrementando ano a ano. Ainda não foram feitas entrevistas com representantes da sociedade
civil que participaram das CNDHs para aceder às motivações pessoais e organizacionais, o
fato de manter e incrementar a participação pode marcar uma intencionalidade mantida no
tempo de institucionalizar o diálogo com o Estado. Por outra parte, a importância da redação
de um documento final, votado em plenária com objetivos propositivos, deixa ver como o
carácter de tipo cognoscitiva dos encontros foi utilizado em cada uma das CNDHs como uma
oportunidade na que foi ganhando escala a capacidade de denunciar e chegar a órgãos
internacionais.
A transformação dos tópicos e a inclusão de novos temas relegados da agenda de direitos
humanos não se podem compreender por fora da disputa que antecederam a estas mudanças.
Neste sentido, não é possível entender que a inclusão no PNDH2145 (2002) dos direitos
sociais, econômicos e culturais, sem ter em contas as pressões e denúncias que desde 1999,
durante a 4ª CNDH, se resolveram encaminhar na elaboração de um relatório “paralelo” para
ser dirigido à ONU, com o objetivo “estimular” ao governo brasileiro a avançar no
cumprimento de suas obrigações assumidas nos pactos internacionais.
A consolidação do espaço institucional de participação para a discussão dos direitos humanos
como assunto público, a incorporação de novas temáticas, as formas de definir os temários e
as novas lógicas de interação entre a sociedade civil e o Estado, são só alguns dos elementos
que nos permitem captar a importância que tiveram as CNDHs nos processos de
institucionalização dos direitos humanos e ampliação da democracia no Brasil.
Voltando ao foco desde trabalho, tentaremos realizar uma aproximação mais detalhada à 11ª
CNDH a fim de recuperar formas concretas do encontro, procurando captar as
particularidades de um dos cenários -institucionalizado e legitimado- no qual se formulou o
último Programa Nacional de Direitos Humanos.

5 A 11ª CNDH: participação institucionalizada na construção da agenda pública dos


direitos humanos
O “mutirão” para revisar e atualizar o Programa Nacional de Direitos Humanos foi convocado
por decreto do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 29 de Abril de 2008 146, sob a
competência da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República a
cargo do Paulo Vannuchi - reconhecido militante na matéria, militante da resistência à última
ditadura brasileira e ex-preso político. A 11ª CNDH foi celebrada entre os dias 15 e 18 de
dezembro de 2008 com as participações conjuntas da sociedade civil e o poder público
representado pela SEDH, pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos
Deputados e pelo Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos, demonstrando
interação dos diferentes atores na luta pela consolidação dos Direitos Humanos no cotidiano
do País.
A etapa nacional da 11ª CNDH concluiu um processo de participação democrática que se
iniciou com 137 encontros prévios às etapas estadual e distrital, denominados Conferências
Livres, Regionais, Territoriais, Municipais ou pré Conferências. Segundo o relatório final,
esses encontros envolveram aproximadamente 14 mil participantes, que representaram
145
Decreto n° 4.229, de 13 de maio de 2002.
146
“Decreto Presidencial Convocatorio”, em Relatorio Final da 11° Cônferencia Nacional de Direitos Humanos.
Disponivel em Acceso no 02/03/2014.
285
instituições, lutas e movimentos ligados à defesa dos segmentos vulneráveis, crianças e
adolescentes, pessoas com deficiência, quilombolas, grupos LGBT, idosos, indígenas,
comunidades de terreiro, ciganos, populações ribeirinhas, entre outros. Essas conferências
regionais e estaduais deliberaram sobre ações públicas de Direitos Humanos correspondentes
aos seus respectivos níveis, bem como encaminharam cinco mil propostas, reunidas em 27
conferências estaduais147.
A fim de dar um estatuto à 11ª CNDH, a comissão organizadora estabeleceu um regulamento
que teve por finalidade definir as regras de funcionamento da etapa nacional que foi aprovada
na plenária inicial. Como dizíamos anteriormente, esta última conferência se formulou a partir
de alguns elementos do denominado “desenho de reparto de poder”. Como explica Avritzer
(2010, p. 107), estes desenhos são menos participativos que os “desenhos de base”, pois inclui
formas de representação para os atores da sociedade civil, a partir da eleição ou designação de
alguns de seus membros para compor a instituição participativa; no entanto, segundo o
pesquisador, a legitimidade que outorga sua institucionalização faz com que as decisões
tomadas nestes encontros dependam menos da vontade política da sociedade política para sua
implantação.
Prevista a participação de 1.228 delegados, 300 convidados, 700 observadores, a 11ª
Conferência Nacional dos Direitos Humanos foi organizada seguindo a partir de um
cronograma que incluía a solenidade de abertura, a plenária de aprovação do Regulamento
Interno, os painéis temáticos, os grupos de trabalho, a plenária de experiências e oficinas
paralelas e a plenária final, para deliberar sobre as propostas que subsidiaram a revisão e
atualização do PNDH, bem como as diretrizes principais para a Política Nacional dos Direitos
Humanos.
No texto-base elaborado pela comissão organizadora e difundido nos processos prévios à 11ª
CNDH propuseram-se seis eixos orientadores de discussão: universalizar direitos em um
contexto de desigualdades; violência, segurança pública e acesso à justiça; pacto federativo e
responsabilidades dos três Poderes, do Ministério Público e da Defensoria Pública; educação e
cultura em direitos humanos; interação democrática entre Estado e sociedade civil; e
Desenvolvimento e direitos humanos.
Como se expressava neste mesmo documento, o grande desafio para a efetiva promoção e
proteção dos direitos humanos no Brasil é o de concebê-los e programar-los na sua
universalidade, interdependência e indivisibilidade, tratando-os de maneira transversal. Foi
neste sentido que se optou por uma metodologia que pretendia guiar as discussões em torno
de eixos orientadores, e não em temas específicos como havia acontecido nos programas
anteriores.
Dentre os temas ausentes como eixo orientador estava o direito a memória, verdade e justiça
pelos crimes cometidos no passado ditatorial, entretanto a queixa não se demorou a fazer
chegar a ouvidos do SEDH que se desculpou publicamente caracterizando a omissão como
um “cochilo” e incluiu posteriormente entre os eixos orientadores.
Finalmente o PNDH3 foi estruturado em seis eixos orientadores, subdivididos em 25
diretrizes, 82 objetivos estratégicos e 521 ações programáticas, que incorporam ou refletem os
7 eixos, 36 diretrizes e 700 resoluções aprovadas durante o encontro.
A ativa participação da sociedade civil não só deu um número inédito de representantes,
delegados e observadores externos, mas também uma intensa participação dos delegados que
ficou registrada nas moções finais. Durante a plenária final aprovaram-se 99 moções: 45 de
repúdio e 54 de apoio sobre os temas mais diversos. Ainda que seja difícil diferenciar a
temática setorial das moções, produto da transversalidade das discussões, os temas recorrentes
durante o encontro foram: as denúncias pela falta de apoio institucional das prefeituras ou

147
Relatorio Final da 11° Cônferencia Nacional de Direitos Humanos. Disponivel em Acceso no 02/03/2014.
286
Estados para desenvolver esta área, a necessidade de avançar na questão agrária e a
demarcação das terras dos povos indígenas, os pedido de abertura de arquivos e avanços nas
investigações sobre delitos cometidos no período da última ditadura, a regulação da na área de
saúde mental, as denúncias pela criminalidade policial e as in humanas??? condições às que
estão submetidas as pessoas privadas da liberdade, o avanço na garantia dos direitos das
crianças e adolescentes, o apoio de políticas de criminalização da mulher por práticas de
aborto, a luta contra a homofobia e discriminação racial, e o repúdio aos empreendimentos
empresariais e o impacto no meio ambiente.
Tal como afirmava Paulo Vanuchi no discurso da abertura, as deliberações da conferência não
necessariamente coincidiram com as posições de governo148. Contudo, nos discursos inicias
evidencia-se uma vocação compartilhada de que as diretrizes e resoluções aprovadas fossem
“insumos importantes” 149 ao Governo Federal para orientação de sua política para elaboração
de políticas públicas.
Concluída as jornadas de trabalho da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos o
documento final foi apresentado à presidência da república para logo ser encaminhado aos
ministérios para serem assinados, e foi disponibilizado no site oficial da secretaria a fim de
realizar uma nova instância de consulta pública. Transcorrido este lapso de consultas,
destacando-se a assinatura de 21 ministérios sem modificações do texto, o PNDH3 foi
lançado por Lula pelo decreto n° 7.037 no 21 de dezembro de 2009. “O desafio agora – dizia
Vanuchi no prefácio do PNDH3- é concretizá-lo”.
A forte controvérsia em torno ao novo programa impregnou o debate político nos primeiros
meses de 2010 tendo um dos cenários prediletos à grande mídia brasileira que ocultou os
processos participativos e apontou suas críticas contra Lula, Vanuchi, Dilma e todo o gabinete
presidencial, que se encontrava no armado??? pré-eleitoral planejando a renovação do PT ao
cargo do poder executivo da República.
Na procura de consensos que desceram os ânimos irritados pelo novo programa, em 12 de
maio daquele ano Lula lançou um novo decreto presidencial, n° 7.177; e fazendo uso das
mesmas prerrogativas que no decreto anterior, relançou uma nova versão do PNDH3 com
uma série de mudanças que foram à contra mão do largo processo participativo na construção
da política de direitos humanos.

6 Reflexões finais
6.1 Ao iniciar este texto, nos perguntávamos: que implicância tem na luta pelos direitos
humanos no Brasil as mudanças ou apagamento dos objetivos orientados a fazer frente a
problemas históricos que exigem soluções urgentes? Ou como se interroga Evelina Dagnino
(2002, p.388), “desde onde avaliar a participação da sociedade civil e seus (des) encontros
com o Estado?”.
Continuando diz Dagnino, as avaliações negativas ou céticas que com frequência se
apresentam nos estudos de caso podem estar influenciadas pelas expectativas geradas na
constituição destas experiências. A proposta de reconhecer a complexidade dos processos e a
diversidade de contextos, envolvendo múltiplas relações de forças políticas, resulta na chave
para adentrar-nos em leituras interessadas em aprofundar a democracia brasileira. Em palavras
da autora:
Esto implica también reconocer que la dimensión del conflicto es inherente a
este proceso, como lo es a la propria democracia, y que los espacios de
148
O debate sobre as políticas de legalização do aborto é um caso exemplar, sendo que Lula manifestou sua
posição a respeito do assunto aclarando que por isso não desconhecia o grave problema que precisa ser atingido.
149
Discurso de abertura de Pablo Vanuchi, em Relatório Final da 11° conferência Nacional de Direitos Humanos.
Disponível em http://portal.mj.gov.br/sedh/11cndh/site/documentos/documentos.html. Aceso no 02/03/2014.
287
formulación de políticas que cuenta con la participación de la sociedad civil
no solo están inherentemente marcados por el conflicto sino que representan
un avance democrático en la medida en que hacen público el conflicto y
ofrecen procedimientos y espacio para que sea considerado legítimamente. La
ausencia de espacios de este tipo facilita la toma de decisiones y la
formulación de políticas por medio de un ejercicio autoritario del poder,
donde el Estado ignora y deslegitima el conflicto o lo trata en los espacios
privados de los gabinetes, con los que tienen acceso a ellos. La des-
privatización de las estructuras decisorias del Estado y la publicitación del
conflicto representan, por tanto, condiciones favorables al avance de
construcciones hegemónicas alternativas. (DAGNINO, 2002, p. 393)
Recuperar o caráter criativo e propositivo destes espaços implica concebê-los como uma das
múltiplas arenas onde se desenvolve a disputa pela hegemonia, entendidas como relações de
poder e resistência.
6.2 Voltando às discussões iniciais sobre projetos de democracia e pensando a partir do caso
estudado, que modelo de democracia resulta hegemônico no presente brasileiro?

Segundo argumentam Virgínia Fontes (2010) e André Pereira Guiot (2011) a prática
democrática no presente encontra-se imbricada numa nova configuração centrada na ação preventiva
de administração de conflitos, gerida a partir da lógica da “negociação”, da “pactuação”, do “diálogo”.
Neste sentido, reforça Pereira Guiot:
As estratégias que integram as novas formas de obtenção do consenso no
Brasil são sutis e requintadas e se concentram na formulação de uma nova
subjetividade coletiva, operadas na sociedade civil e política, que procuram
abrandar ou até mesmo eliminar os antagonismos de classes a meras
diferenças de interpretação ou de percepções de vida. (GUIOT, 2011, p.22)

Como nos advertia Carlos Nelson Coutinho (2010), a “hegemonia da pequena política” é faz
nos crer que não há nada por fora da “pequena política”, que não existe uma “grande
política”.
Achamos que a disputa em torno do PNDH3 coloca mais um elemento para pensar na disputa
entre projetos de democracia no presente brasileiro. A forma em que o Poder Executivo se
propôs resolver os conflitos pelo PNDH3, nos adverte da confluência conflitiva entre projetos
centrados na “grande política” e a “pequena política”, entre projetos baseados na participação
nos espaços públicos de decisão e projetos centrados na privatização e despolitização dos
processos de formulação de políticas.
Neste sentido voltemos a perguntar: que interesse sentiu-se ameaçados pelo programa
formulado com a participação da sociedade civil organizada? Que lugar ocupam estes setores
nas relações de poder no presente brasileiro? Como expressou o Professor Carlos Nelson
Coutinho (2010, p.43), “o principal desafio da esquerda hoje é recolocar a grande política na
ordem do dia”.

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SOUSA Santos; AVRITZER, Leonardo, Introducción: para ampliar el canon democrático. In:
SOUSA Santos (coord.), Democratizar la democracia: los caminos de la democracia
participativa. México: Fondo de Cultura Económica, 2004, pp: 35-76

289
Anexo

Tabela 1: Conferências Nacionais de Direitos Humanos (1996-2008), elaboração


própria.

N° de Tópicos Convocatória/ formato do encontro/ tipo de interface Atores R


CNDH
1ª CNDH Discussão Convocada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias Perto de 150 entidades da A
26 e 27 sobre o da Câmara dos Deputados (CDH) e entidades não sociedade civil e membros P
de abril anteprojeto governamentais: a Comissão de Direitos Humanos da Ordem da CDH c
1996 do Poder dos Advogados do Brasil (OAB), pelo Movimento Nacional d
Executivo de Direitos Humanos, pela Conferência Nacional dos Bispos a
do do Brasil (CNBB), pela Federação Nacional dos n
Programa Jornalistas (FENAJ), pelo Instituto Nacional de Estudos o
Nacional Socioeconômicos (INESC), pelo Conselho Indigenista d
de Direitos Missionário (CIMI). p
Humanos p
(PNDH) Tipo de interface: comunicativa. p
2ª CNDH Discutir, Convocada pela CDH. 800 participantes, A
12 e 13 avaliar e representando 252 o
de maio oferecer Num primeira parte do encontro se desenvolveram palestras entidades nacionais e im
1997 recomenda com especialistas da sociedade civil e do poder público. internacionais, e N
ções para a Na segunda o trabalho dividido a partir de 12 grupos membros da CDH.
consolidaç temáticos, que ficaram responsáveis pela avaliação do E
ão e Programa e apresentação de relatórios com propostas para o te
implement aperfeiçoamento: crianças e adolescentes; justiça/segurança
ação do pública; sistema penitenciário; educação e comunicação;
PNDH. populações negras; direitos da mulher; reforma agrária;
Estimular a direitos sociais; refugiados, migrantes e estrangeiros; pessoas
elaboração com deficiência; orientação sexual; e populações indígenas.
de Durante a plenária final cada grupo apresentou seu relatório e
Programas aprovaram-se 23 moções apresentadas.
Estaduais e
Municipais Tipo de interface: contribuição
de Direitos
Humanos.
3ª CNDH Declaração Convocada pela CDH. Reuniu 506 pessoas, C
13, 14 Americana representantes de 276 in
e 15 de dos As discussões foram divididas em duas fases. Na primeira, instituições públicas e In
maio de Direitos e dois painéis foram estruturados: 1 - participação brasileira entidades sociais; e e
1998 Deveres do nos sistemas global e regional de direitos humanos; 2 - membros da CDH. d
Cidadão implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos n
(PNDH) e propor sugestões para seu aprimoramento e
Tipo de interface: contribuição
E
te
4ª CNDH Dimensão Convocada pela CDH, em parceria com da promoção do 500 entidades da N
13 e 14 econômica, evento: sociedade civil e membros p
de maio social e Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, Movimento da
de 1999 cultural dos Nacional de Direitos Humanos, OAB, CNBB, Conselho CDH, da D
direitos Nacional das Igrejas Cristãs, Anistia Internacional, INESC, Comissão de Economia, a
humanos Fórum em Defesa da Criança e do Adolescente, Federação Indústria e Comércio da (O

290
Nacional dos Jornalistas, Ágora, CONTAG e Centro de Câmara dos Deputados, D
Proteção Internacional de Direitos Humanos. Procuradoria
A primeira etapa da programação da Conferência foi Federal dos Direitos do A
estruturada em painéis com especialistas que avançaram Cidadão, Comissão de “
sobre o tema “Direitos Econômicos, Sociais e Culturais são Direitos. e
Direitos Humanos” e “Os Direitos Econômicos, Sociais e c
Culturais na Política Nacional de Direitos Humanos”. o
Logo, passou-se ao trabalho em grupos, que realizaram d
relatório, propostas e moções, aprovadas no plenário final. e
Grupos Temáticos: O Processo orçamentário e os direitos
econômicos, sociais e culturais; Globalização econômica e A
custo social do endividamento público; Trabalho, seguridade p
social e cultural; Implementação no Brasil do Pacto de p
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; Mídia e direitos d
econômicos, sociais e culturais; Avaliação da Implementação d
do Programa Nacional de Direitos Humanos; Segurança re
Pública, cidadania e controle externo das polícias. a
a
Tipo de interface: contribuição. g

E
te

P
re
P
e
D
5ª CNDH Combate à Convocada pela CDH, em parceria com Comissão de Cerca de 611 C
24 a 26 violência, Educação, Cultura e Desporto da Câmara dos Deputados; representantes de u
de desde a sua Movimento Nacional de Direitos Humanos; Procuradoria entidades civis, p
maio de expressão Federal dos Direitos do Cidadão; Ordem dos instituições públicas e
2000 domestica Advogados do Brasil –CNDH; Conselho Nacional de Igrejas organizações não- A
até a Cristãs –CONIC; Fórum Nacional de Defesa da Criança e governamentais. c
instituciona Adolescente (Fórum DCA); Anistia Internacional; Centro de c
l; exclusão, Proteção Internacional de Direitos Humanos; Agende – Membros da CDH. e
discriminaç Ações em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento; CFemea – C
ão e Centro Feminista de Estudos e Assessoria; Escritório P
preconceito Nacional Zumbi dos Palmares; Comunidade Bahá’í; S
. Movimento dos Trabalhadores Sem- Terra –MST; Federação
Nacional de Jornalistas –FENAJ; IBASE –Instituto E
Brasileiro de Análises Socioeconômicas; Ágora –Associação te
para Projetos de Combate à Fome e INESC –Instituto de
Estudos Sócio Econômicos.

A primeira etapa da programação da Conferência foi


estruturada em painéis com especialistas que avançaram
sobre o tema.
Logo, passou-se ao trabalho em grupos, que realizaram
relatório, propostas e moções, aprovadas no plenário final.

Grupos Temáticos: Tortura e Maus Tratos; Preconceito,


Discriminação e Exclusão ; Segurança Pública, Estado e
Sistema Penal; Sistema Internacional de Proteção dos

291
Direitos Humanos; Mídia e Direitos Humanos; Atualização
do Programa Nacional de Direitos Humanos, Programas
Estaduais e Municipais de Direitos Humanos

Tipo de interface: contribuição


6ª CNDH (não fica Promovida pela CDH, em pareceria com as 40 entidades 588 representantes de A
30, 31 especificad reunidas no Fórum de Entidades Nacionais de Direitos entidades sociais. C
de maio e o no Humanos
1° de documento Membros da CDH. P
junho do ) Durante a Conferência os debates foram realizados em R
ano 2001 painéis e nos seis fo
grupos constituídos com os temas: III Conferência Mundial P
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Formas Correlatas de Intolerância; Construção do sistema C
nacional de proteção dos direitos humanos: estratégias e im
instrumentos para a defesa da cidadania; Implementação do a
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH); A e
impunidade como violação dos direitos humanos; T
Mecanismos internacionais de proteção dos direitos n
humanos; Impacto da ação dos organismos internacionais de in
financiamento e comércio nos direitos humanos. n
a
Em forma paralela realizou-se a VI Conferência foi a in
realização, como atividade paralela, da Conferência Nacional d
de Adolescentes.
A
Tipo de interface: contribuição. C
N

E
te
7ª CNDH Pobreza e Promovida pela CDH, em pareceria com as 40 entidades 941 representante N
15, 16 e criminalida reunidas no Fórum de Entidades Nacionais de Direitos o
17 de de. Humanos ONGs (494) 52,49%; Ju
maio de Analisou O debate foi dividido em seis grupos de trabalho, que foram Rep. Órgãos Públicos (94) d
2002 os efeitos organizados de acordo com o âmbito em que a violência 9,98% Estudantes/
das ocorre, se reproduz e deve ser combatida: Violência e sua Professores (93) 9,88% E
desigualda superação no âmbito da Economia; Violência e sua Policiais (85) 9,03% te
des sociais, Superação no âmbito da Educação; Violência e sua superação Func. Câmara/Senado
a cultura da no âmbito da Justiça e da Segurança. (83) 8,82% Parlamentares
violência, o Pública; Violência e sua superação no âmbito da Cultura; (18) 1,91% Ministério
crime Violência e sua superação no âmbito da Mídia; Violência e Público (08) 0,85% Corpo
organizado, sua superação no âmbito da Política. Diplomático (05) 0,53%
a posse e o Avulsos (61) 6,48%
tráfico das Tipo de interface: contribuição.
drogas e
armas
8ª CNDH Construção Promovida pela CDH, em pareceria com as 40 entidades 1000 participantes N
11, 12 e de um reunidas no Fórum de Entidades Nacionais de Direitos “
13 de sistema Humanos D
junho nacional de p
2003 proteção Os grupos de trabalho debateram os seguintes temas: Sistema d
dos direitos Único de Segurança Pública (SUSP); O Direito Humano à “

292
humanos Alimentação; A criação do Conselho Nacional de Direitos c
Humanos e o Sistema de Proteção aos Direitos Humanos; p
Orçamento e Direitos Humanos; Educação em Direitos L
Humanos; Monitoramento dos Direitos Humanos
Econômicos, Sociais e Culturais; Estratégia de Construção S
de uma proposta de Sistema Nacional de Proteção aos D
Direitos Humanos. e

Tipo de interface: contribuição E


te
9ª CNDH Implement Foi a primeira a ser convocada pelo Poder Executivo. 580 delegados. O
29 junho ação do si
ao 2 de Sistema Também teve a pareceria da Comissão de Direitos Humanos, Membros CDH, Fórum de a
julho de Nacional e Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos Entidades Nacionais de
2004 de Direitos Também ocorreu uma mudança institucional: foi a primeira Direitos Humanos, F
Humanos vez que se elegeram delegados (as) a partir de conferências Procuradoria Federal dos re
estaduais e distrital prévias. Direitos do Cidadão e a
Secretaria Especial de h
Contou com regimento que estabeleceu o caráter Direitos Humanos da c
deliberativo150 das conferências estaduais e nacional e o presidência da República. re
temário, a partir dos seguintes pontos: Desafios à d
implementação do Sistema Nacional de Direitos Humanos
(SNDH); Princípios, estrutura e estratégia de implementação E
do Sistema Nacional de Direitos Humanos (SNDH); te
Compromissos dos diversos setores da sociedade com a
implementação do Sistema
Nacional de Direitos Humanos (SNDH); Prioridades de
atuação à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da
Presidência da República com a implementação do Sistema
Nacional de Direitos Humanos (SNDH); Estratégia de
seguimento, monitoramento e avaliação das deliberações da
IX Conferência Nacional de Direitos Humanos.

Tipo de interface: comunicativa.


10ª O temário Promoção conjunta pelas comissões legislativas, entidades da 580 delegados. R
CNDH incorporou sociedade civil, a Procuradoria Federal dos Direitos do “
2006 um Cidadão e a Secretaria Especial de Direitos Humanos. Membros da Comissão de D
conjunto de Esta voltou à condição de parceira na realização do encontro, CDH, Fórum de D
temas com que deixou assim de ser convocado pelo Poder Executivo. Entidades Nacionais de o
relevância Direitos Humanos, c
na luta Procuradoria Federal dos c
pelos Sete painéis abordaram as relações entre o modelo Direitos do Cidadão e
direitos econômico e os direitos humanos; racismo e violência; Secretaria Especial de E
humanos instituições totais; situação dos direitos indígenas; Direitos Humanos da te
nos anos criminalização dos defensores de direitos humanos e presidência da República.
recentes e movimentos sociais; educação para direitos humanos;
com exigibilidade dos direitos humanos econômicos, sociais,
transversali culturais e ambientais; avaliação do Programa Nacional de
dade entre Direitos Humanos, o sistema nacional e a tramitação do
segmentos projeto que cria o Conselho Nacional de Direitos Humanos,

150
Significa que as suas decisões valem como recomendações oficiais aos poderes públicos (tanto o
federal como os estaduais e municipais), no que se refere à implementação de instrumentos legais e
políticas públicas para a promoção e proteção dos direitos humanos.

293
organizado além de outras proposições legislativas.
s.
Em neste mesmo encontro foi feito o lançamento do Comitê
Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa, uma
frente que reuniu entidades civis e públicas com a missão de
promover a prevalência dos direitos humanos na política
externa brasileira e fortalecera participação cidadã no
controle social desta política.

Tipo de interface: contribuição.


11ª Revisão e Convocação por um decreto do presidente da República, em 995 delegados eleitos D
CNDH Atualizaçã forma tripartite com Secretaria Especial dos Direitos nas conferências estaduais a
Novembr o do Humanos da Presidência da República, a Comissão de e distrital, preparatórias à p
o 15 ao Programa Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e o etapa nacional,
18 de Nacional Fórum de Entidades Nacionais de Direitos Humanos. convidados e
dezembr de Direitos observadores
o de 2008 Humanos Antecederam 137 conferências estaduais e distrital, integrantes dos
preparatórias à etapa nacional. movimentos sociais
organizados.
A decisão de utilizar metodologicamente um conjunto de
eixos orientadores – e não temas específicos –: Universalizar Membros da Secretaria
direitos em um contexto de desigualdades; Violência, Especial dos
segurança pública e acesso à justiça; Pacto federativo e Direitos Humanos da
responsabilidades dos três Poderes, do Ministério Presidência da República
Público e da Defensoria Pública; Educação e cultura em e da Comissão de
direitos humanos; Interação democrática entre Estado e Direitos Humanos e
sociedade civil e Desenvolvimento e direitos humanos; Minorias da Câmara dos
Memoria e Verdade ( somado a pois da plenária inicial) Deputados.

Tipo de interface: comunicativa. 40% membros do poder


público e 60 % delegados
sa sociedade civil.
FONTES: relatórios de CNDH. Elaboração própria.

294
Redes de convivência e desenvolvimento regional no Nordeste brasileiro

Lalitá Kraus1
Tamara Egler2

1
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR, Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – kraus.lalita@gmail.com
2
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR, Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – tamaraegler@gmail.com

Resumo
O objetivo do presente trabalho é analisar e avaliar a proposta político e pedagógica da
Rede de Educação do Semiárido Brasileiro – RESAB, e a relação dessa proposta com o
desenvolvimento territorial e regional. Trata-se de um novo sujeito político organizado
em rede com uma proposta de educação contextualizada para o semiárido. Essa
proposta é parte constituinte de uma perspectiva que se insere dentro de um paradigma
de convivência e propõe um novo modo de refletir e agir no semiárido.
Palavras-chave: Educação contextualizada; Convivência; Rede; Desenvolvimento
territorial.

Introdução
A RESAB é um espaço de articulação político e pedagógica, que reúne organizações
governamentais e não governamentais do semiárido, sendo que a rede adota o
mapamento do semiárido proposto nos anos 90 pela UNCCD – Convenção das Nações
Unidas de Combate à Desertificação. Esse recorte específico corresponde à área
semiárida dos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Paraiba, Pernambuco, Piauí, Sergipe e
Rio Grande do Norte, mais o norte de Minas Gerais e a zona Sub-Úmida Seca do leste
do Maranhão e noroeste do Espiríto Santo, por um total de 1.338.076km² (BRASIL,
2006).
O objetivo da rede é consolidar uma proposta de educação contextualizada nas escolas
do semiárido assim como contribuir na formulação de políticas públicas educacionais
do semiárido, orientada pelos princípios de convivência com o semiárido no âmbito de
um plano de desenvolvimento sustentável.
As políticas públicas impulsionadas pelo governo sempre se expressaram no semiárido
através de políticas assistenciais de emergência, fragmentadas e desarticuladas, segundo
um paradigma de combate à seca. Dentro de jogos de poderes entre elites regionais os
problemas sócio-econômicos do semiárido foram explicados unicamente como produtos
de condições naturais adversas. Assim, a instrumentalização da seca possibilitou a
caracterização e a criação de um espaço-problema.
A questão da seca orientou os projetos e programas de desenvolvimento territorial,
virando elemento caracterizante e determinante de um território, de uma cultura e de um
povo, assim como elemento de barganha nos pactos entre a elite nordestina e o Governo
(CASTRO, 1992). Tratou-se de intervenções fundadas no tecnicismo e no
economicismo, nas quais “o território era [unicamente] a base para a conquista e
instrumento de poder do Estado” (CARVALHO, 2007, pag, 16).

295
Oliveira (1987) aponta que as intervenções e o planejamento no Nordeste nunca tiveram
intenção de diminuir os desiquilíbrios regionais, mas foram instrumentos apropriados e
utilizados na lógica de divisão do trabalho, de acumulação capitalista, de
homogeneização do espaço e de conflitos de poder.
Ao contrário, nas últimas duas décadas organizações da sociedade civil e alguns setores
do Estado, a partir de um entendimento da complexidade e riqueza sistêmica do
semiárido, propuseram um novo discurso e um paradigma de convivência. Trata-se de
um conjunto de forças rizomaticas, que poderíamos chamar de redes de convivência,
movidas por uma lógica flexível, adaptável e voltada para abordar as especificidades e a
complexidade do mundo social do semiárido, na tentativa de romper com o tecnicismo e
o economicismo das políticas e do planejamento. Ao contrário, podemos pensar a lógica
governamental como uma lógica mais impermeável, resistente e marcada pelo princípio
da universalidade.
O presente artigo apresenta a ação sócio-política e a proposta de educação
contextualizada de uma dessas redes, a RESAB, que propõe um novo modo de ver e
intervir no semiárido. O ponto de partida é o reconhecimento da ação dos sujeitos
políticos, sendo que a ação política se realiza pelo Estado em sentido amplo, incluindo a
sociedade política, mas também a sociedade civil (GRAMSCI, 1975). Nesse sentido, é
importante distinguir entre política pública, em quanto ação realizada pelo Estado em
sentido gramsciano, e planejamento, em quanto instrumento técnico da política.

1. Ação em rede
A ação em rede representa um exercício social de práticas democráticas, que se irradiam
e se difundem na sociedade, e que ampliam a capacidade de ação dos sujeitos (EGLER,
2013). As redes estão se impondo como uma verdade-realidade no cenário sócio-
político, traçando os caminhos por uma democracia por vir. Isto revela a dinâmica de
um momento histórico em que o modelo político da democracia representativa parece
esgotado e novas práticas democráticas estão emergendo.
As redes de convivência no Nordeste brasileiro constituem uma multidão multicolorida,
um sujeito social plural e múltiplo, que age com base naquilo que as singularidades têm
em comum num processo de transformação e libertação (HARDT e NEGRI, 2005). A
pluralidade e multiplicidade é dada pelo fato da RESAB ser composta por diferentes
atores do mundo governamental e não governamental, diretamente e indiretamente
envolvidos na educação, mas unidos pelo reconhecimento da importância da educação
contextualizada para uma vida digna no semiárido e para ações que garantam a
convivência com o lugar. Isto constitui o comum que permite comunicar e agir em
conjunto, é o elemento de coesão interno da RESAB. Nesse sentido, a ação em rede da
multidão desafia toda a tradição da soberania, porque embora múltipla e diferente, é
capaz de agir em comum e de se governar sem uma cabeça que manda (HARDT e
NEGRI, 2005). É uma ação que não pode ser medida segundo as estruturas e os valores
políticos-econômicos tradicionais, mas que tem pleno valor político na medida que é
uma coletividade que luta em comum e produz o comum.
O mapa 1 tem como objetivo apresentar os 5 núcleos da rede que atuam atualmente de
forma mais ativa e que são mais organizados nos Estados da Bahia, Ceará, Alagoas,
Piauí e Paraíba. Por cada núcleo são indicando os principais membros. Assim, é
possível entender a complexidade da composição da RESAB, assim como a riqueza de
uma instituição composta por atores da esfera governamental e não governamental.

296
A RESAB está se colocando como uma nova institucionalidade política, composta por
organizações governamentais (por exemplo, universidades, secretarias municipais de
educação e secretaria estaduais de educação) e não governamentais (ongs, pastorais,
sindicatos e igrejas). É uma institucionalidade política complexa, que incorpora a
sociedade política e a sociedade civil e que traça os caminhos para uma reinvenção da
política e do desenvolvimento no semiárido. A RESAB, assim como as redes de
convivência, propõe políticas públicas que partam do chão, a partir dos limites e das
potencialidades do território, e que possam garantir a superação das condições
marginais e de pobreza da população do semiárido.
A RESAB tem uma arquitetura organizada por uma secretaria executiva com sede em
Juazeiro da Bahia e grupos gestores locais nos Estados do semiárido. É um sistema
aberto e altamente dinâmico com extensão multidirecional e não linear, podendo se
expandir e se multiplicar para um lado ou para outro de forma dinâmica e imprevisível.
Isto significa que novos grupos podem surgir ou sumir, fortalecer ou enfraquecer,
definindo um sistema aberto às possibilidades onde ”o fora da rede é todo o universo de
pontos ainda não conectados” (CASSIO, 2003, pag. 22). Cada núcleo gestor faz parte de
números outras redes num sistema onde conexões geram conexões, fazendo da conexão
um dos principais elementos de riqueza e poder, responsável pela dinâmica do sistema
como um todo.

MAPA 1 – Núcleos e membros da RESAB no semiárido. Fonte: pesquisa de


campo.

297
O dinamismo organizacional não deve ser confundido com a falta de organização. Isso
acontece com frequência devido ao fato que são novas formas de organização que, não
podendo ser enfeixada nos órgão hierárquicos de um corpo político, são erroneamente
interpretados. Na RESAB os grupos gestores tem plena autonomia de gestão,
organização e ação, podendo decidir como implementar a educação contextualizada no
território e como efetivar a ação nos diferentes espaços políticos. Isto garante uma ação
flexível, rizomatica e enraizada localmente. Ao mesmo tempo, a organização em rede e
a existência de uma secretaria executiva compactam a ação, garantendo homogeneidade
de princípios, cooperação, colaboração e ação social transescalar, capaz de agir em nível
local, estadual, regional e nacional.
O Mapa 2 evidencia, a partir de um entendimento da importância das conexões, a
estrutura das relações dos membros da RESAB e uma representação gráfica das
mesmas. A representação gráfica foi feita a partir das conexões instituídas no facebook
da RESAB, utilizando o software livre GEPHI. Entendemos que o facebook não
representa a totalidade da rede e que a análise das conexões não é suficiente para
desvendar a totalidade e complexidade das relações e, em geral, da prática sócio-
política. De todo modo, permite iluminar dimensões quantitativas da arquitetura da rede
e revelar a estrutura dos fluxos de interação-comunicação. O objetivo é mostrar e
analisar a intensidade das conexões, a horizontalidade e a coesão interna a rede.

298
Mapa 2 – Representação gráfica da arquitetura das conexões internas da RESAB.
Fonte: pesquisa de campo.

O Mapa 2 mostra como a visualização gráfica do facebook da RESAB revela 594 nós-
atores e um total de 8880 arestas. O tamanho dos nós é determinado pelo grau de
conectividade, ou seja, o número de conexões que cada nó estabelece. O grau médio de
conectividade (average degree) é 14,949, ou seja, cada nó da rede possui em media
14,949 conexões, indicando um bom nível de conectividade. Isto é também confirmado
pelo bom valor da densidade de 0,025. A densidade é calculada como a relação entre o
número de relações efetivas e o número de conexões possíveis, indicando quão
conectados entre si estão os nós da rede. O índice de conectividade, de densidade são
todos importantes indicadores do nível de coesão. A propriedade da conectividade é um
dos elementos centrais para pensarmos o processo de horizontalidade da rede. O
facebook da RESAB monstra um bom nível de coesão, reduzindo assim a probabilidade
que se constituía uma estrutura potencialmente hierárquica, fragmentada e conflituosa.
Apesar de ter nós com grau de conectividade maior, a totalidade dos nós-atores está
bem conectados entre eles, constituindo uma plataforma ideal para um processo
distribuído e horizontal. As cores dos nós revelam o nível de modularidade da rede, ou

299
seja, a divisão em comunidades ou subgrupos mais conectados entre si. No gráfico são
distinguíveis 3 macro grupos mais intensamente conectados. A rede não apresenta uma
estrutura com numerosas comunidades interna, revelando um potencial muito baixo de
fragmentação interna. O alto índice de conectividade e a falta de fragmentação em sub-
grupos tem implicações sociais importantes, sendo que nesse tipo de estrutura a
informação flui mais rapidamente, facilitando a interação-comunicação e a
comunicação-ação. Isto é, é um processo de informação e comunicação fluente que
pode levar a uma eficiente ação social e política.
O Mapa 2 revela a existência de nós com grau de conectividade maior. Embora não
exista centralidade, nas redes existem sempre nós mais conectados, chamados
hiperconectores (CASSIO, 2003) ou elos fortes (SCHERER-WARREN, 2006), que não
necessariamente definem um sistema hierárquico. Na RESAB o núcleo gestor da Bahia
(em particular o IRPAA) se destaca como mais conectado, funcionando de atalho e
como nó animador, sendo que estimula a participação, a articulação e a difusão. Um
atalho beneficia todos os que estão a ele ligados e o núcleo da Bahia, por exemplo, serve
para animar os núcleos locais enfraquececidos, para estimular a criação de núcleos da
rede onde ainda não existem e fortalecer a ação política da rede nos mais diferentes
espaços políticos.
Os resultados da ação sócio-política da RESAB se manifestam de forma distinta no
tempo e no espaço. Em termos gerais, em nível local os núcleos gestores implementam
ações de educação contextualizada principalmente dentro das escolas inferindo nas
práticas pedagógicas escolares, mas também promovem políticas públicas educacionais
para o semiárido nos espaços políticos locais, entre os quais fóruns, camaras, audiências
públicas e conferências temáticas (por exemplo, a CONAE).
Em nível nacional a RESAB têm representantes e participa ativamente em diferentes
espaços políticos, entre os quais, a Comissão Nacional de Educação do Campo
(CONEC) do Ministério da Educação, o Fórum Nacional de Educação do Campo
(FONEC), Conselho Nacional do Desenvolvimento Rural Sustentável (CONDRAF)
vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), o Instituto Nacional do
Semiárido (INSA) do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o
Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA) e participou da preparação do
Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da
Seca (PAN-Brasil). A RESAB é também articulada com outras redes como a
Articulação do Semiárido (ASA). O objetivo é se inserir na maioria dos espaços
políticos para que a educação contextualizada se torne uma política pública e seja uma
temática transversal nas políticas no semiárido.
Embora focada na educação contextualizada para o semiárido, a proposta política da
RESAB é abrangente e complexa, colocando-se como uma das ações necessária para
garantir a convivência com o semiárido. Almeja-se dar conta do território nas suas
múltiplas dimensões, evitando o setorialismo e o tecnicismo, para que as intervenções
político-territoriais abordem a complexidade da vida social e não tratem o semiárido de
forma unidimensional como problema hídrico e climático.
A ação sócio-política em rede é assim uma fonte de reorganização das relações de poder
(CASTELLS, 1999), com excelentes possibilidades de criação de uma nova esfera
pública, de novas formas democráticas e de libertação. A RESAB é um dos exemplos
de pessoas mais conectadas num território amplo como o Nordeste brasileiro, que
representam a concretização de possibilidades de destruição da soberania em favor de
novas práticas democráticas. Assim, não é uma simples recusa da transcendência, mas a

300
descoberta do plano da imanência, através da reterritorialização dos poderes de criação
e da ação de resistência (HARDT e NEGRI, 2000).
A ação em rede da RESAB ocorre no terreno biopolítico, ou seja, é imanente à
sociedade e produz diretamente novas subjetividades e novas formas de vida. A
produção biopolítica da multidão no caso da RESAB mobiliza a educação
contextualizada como elemento que os membro compartilham em comum e que
produzem em comum contra os poderes imperiais e capitalistas. Representa também a
forma como se busca difundir e implementar a ação de convivência com o semiárido
entre as entidades que a ela se vinculam mediante a articulação entre esfera
governamental e não governamental.

2. Educação, convivência e desenvolvimento regional


O discurso a favor da educação contextualizada tem como objetivo despertar uma
sensibilidade pedagógica capaz de reconhecer as potencialidades do Semiárido e
possibilitar a construção de uma educação que seja tecida com fios da cultura local,
construindo uma grande rede de saberes que valorize as pessoas do Semiárido e torne-as
protagonistas do seu processo de emancipação.
Podemos considerar duas formas de pensar a educação: a educação formal
implementada e reproduzida pelo Estado e pelo Mercado, e uma educação contra-
hegemônica, pensada e difundida pela multidão, no sentido de Hardt e Negri (2005). A
educação contextualizada é uma proposta que “vem do baixo”, de forma imanente e
endógena, e que se realiza mediante a parceria entre atores governamentais e não
governamentais. É uma proposta político-pedagógica alternativa que tenta se inserir de
forma rizomatica na prática escolar e na vida cotidiana da população do Semiárido.
A ideia de contextualização se funda no princípio de interdisciplinariedade e
transdisciplinariedade na construção do conhecimento, suportando-se na falência das
grandes narrativas da ciência e da pedagogia moderna, ou seja, dos princípios de
neutralidade, formalidade abstrata e de universalidade. No Semiárido essa ideia é
representativa de demandas particulares: a descolonização da educação, a desconstrução
do estereótipo do Nordeste e do Nordestino e a difusão do paradigma de convivência
com o Semiárido.
É uma proposta que encarna um projeto democrático, sendo que a educação é o campo
privilegiado de atuação da violência e da representação simbólica (BOURDIEU, 1998).
Os conteúdos dos livros didáticos e o currículo escolar são produtos e resultados diretos
de relações de poder entre grupos sociais. No semiárido, os materiais didáticos são
oriundos da região Sudeste e vem com uma carga de estereótipos uniformizados,
constituídos historicamente (PIMENTEL, 2002). Assim, a educação descontextualizada
contribui para um processo de aceitação dóxica do mundo e de interiorização de
imagens e representações, exercendo uma violência que não é reconhecida como tal
pelos estudantes e professores. Um sistema educacional, assim definido, reproduz uma
estratégia de estereotipização e, usando as palavras de Bourdieu, uma situação de
violência simbólica por meio de um desprezo do contexto e da cultura popular local,
definindo assim uma subcultura. A educação, assim entendida, desvaloriza a cultura e
identidade local, desqualifica o semiárido com sua cultura, suas riquezas e suas
particularidades, e contribui para o processo de demonização do Nordeste renovando
preconceitos seculares.

301
A proposta de educação contextualizada prevê uma adaptação dos conteúdos e materiais
escolares ao território, à cultura, à identidade do semiárido. Um dos princípios
norteadores é a
“valorização e articulação dos saberes; bem como a valorização dos
espaços de aprendizagem, como a comunidade, o bairro, ou seja, a
preocupação fundante é não restringir os saberes e os conhecimentos
apenas ao ambiente da escola, mas articulá-los com os saberes da
vida, nas suas variadas dimensões: afetiva, social, prática, estética,
cultural” (MENEZES e ARAUJO, 2007, pag.10).
O objetivo da educação contextualizada é fazer assim que se concretize a re-orientação
político-pedagógica dos processos educativos, para que se vinculem à realidade local, às
necessidades de vida e aos potenciais do semiárido, construindo sujeito conectivos com
o mundo. Trata-se de despertar uma sensibilidade pedagógica capaz de reconhecer as
potencialidades do Semiárido e possibilitar a construção de uma educação que seja
tecida com fios da cultura local, construindo uma grande rede de saberes que valorize as
pessoas do Semiárido e torne-as protagonistas do seu processo de emancipação. É um
processo que contribui no processo de produção de significado como pratica de leitura
de mundo e como exercício político de tomada de consciência e ação social na própria
realidade.
Constitui uma luta simbólica na perspectiva de desconstrução de preconceitos e de
estigmas regionais, e de construção de uma relação entre educação e desenvolvimento
(PIMENTEL, 2002). A educação contextualizada se torna um modo de ser, tendo como
objeto a vida em todas as suas dimensões, é transdisciplinar e transversal na ação sócio-
política, fazendo assim que a relação entre desenvolvimento e educação deixe de ser
meramente residual. Em particular, se insere transversalmente no paradigma de
convivência com o semiárido.
Ligada à educação popular, a educação contextualizada se preocupa em relacionar a
vida cotidiana com a escola, fazendo da vida um objeto do conhecimento escolar e
fazendo da educação um modo de ser. Assim, supera a fragmentação disciplinar e
favorece o entendimento do diálogo entre os diferentes saberes, desenvolvendo uma
visão holística da vida no mundo, novos significados do lugar e da vida no lugar.
Essa prática pedagógica procura alterar a visão de mundo e a representação social sobre
o Semiárido, transformando a idéia de que é simplesmente um lugar de miséria e de
seca, em outra visão que o representa como local de possibilidades e não de negação.
Nesse sentido, usando a lógica foucaultiana, a educação contextualizada constitui um
contra-dispositivo capaz de instituir uma nova verdade e novas práticas sobre o
Semiárido. É um movimento de constução de um novo dizer-verdadeiro (FOUCAULT,
2008). Uma “re-ocupação” do Semiárido, invertendo o campo de dizibilidade e
visibilidade negativas.
A educação contextualizada é um dos processos de revalorização territorial e de
desenvolvimento dentro do paradigma de convivência. A convivência com o semiárido
é o paradigma que os movimentos estão defendendo e que está se impondo com força
desde a ocupação da SUDENE em 1993 e a criação do documento do Fórum Nordeste
durante a ocupação, em que se afirma a necessidade de priorizar o princípio de
convivência com o semiárido nas politicas públicas regionais. Assim, se redefine um
realocamento da questão do desenvolvimento regional na esfera da sociedade civil e
fundada em novos princípios: a convivência com o semiárido e com suas condições
ambientais e culturais é tomada como princípio do desenvolvimento; a participação

302
popular é necessária para a plena realização de um verdadeiro desenvolvimento, que
realize os interesses populares e transforme o cenário sócio-político, que sustentou e
justificou o discurso hegemônico da seca (MACEDO, 2004).
Ao paradigma da modernidade, baseado na concepção de combate à seca e de
modernização econômica, se contrapõe o paradigma contemporâneo de convivência
com o semiárido (SILVA, 2003). A concepção de combate à seca e aos seus efeitos
entra definitivamente em crise e também a concepção de solução dos problemas das
secas através da modernização renova seu discurso, inserindo a questão ambiental e
social como prioritárias. Com esse novo paradigma, o objetivo é resgatar e divulgar
experiências nascidas do saber popular, aprimoradas no diálogo com o saber científico,
e transformar as mesmas em referências para propor ao poder público um modelo
diferente de políticas públicas. Isto é resultado de um entendimento do problema da
região semiárida, não mais como um problema climático, mas mais como um problema
de ordem soció-política.
Percebe-se a convivência com o Semiárido como um projeto social e um modo de
pensar e fazer o desenvolvimento regional. Trata-se de um projeto de desenvolvimento
ainda em construção, que aborda a realidade na sua complexidade sistêmica e busca um
equilíbrio entre as demais dimensões (ambiental, social, econômica, histórica, política e
cultural) e a dimensão econômica (SILVA, 2003).
Essa nova perspectiva da convivência e esse nova visão do desenvolvimento exigem um
processo cultural constituído por novas aprendizagens e a tomada de consciência dos
reais limites e potenciais do semiárido (SILVA, 2003). Devem orientar e ser orientados
por “uma mudança profunda no pensamento, percepções e valores que formam uma
determinada visão da realidade” (CAPRA, 1999, p. 29). Requer novas formas de pensar,
sentir e agir no semiárido, que o abordem de forma sistêmica nas suas mais variegadas
dimensões, superando o setorialismo e a fragmentação das intervenções e das políticas
públicas do passado, e passando da concepção mecanicista para uma visão holística e
ecológica.
Essas novas perspectivas surgem a partir da lógica da sociedade civil, que é flexível,
adaptável e voltada para abordar as especificidades e a complexidade do social, ao
contrário da lógica governamental (CARVALHO, 2011). Nesse processo a RESAB
com a proposta de educação contextualizada almeja construir essa nova forma de pensar
e agir a partir da base, ou seja, nas escolas do semiárido. A lógica flexível se manifesta
numa proposta alternativa de educação, que encarna um projeto de mudança social a
partir do rompimento com o discurso de estereotipia e de hegemonia cultural, por meio
de uma desconstrução da representação simbólica e imagem estigmatizada entorno do
Nordeste e do Semiárido, e de afirmação identitária local. O processo de educação
contextualizada é criador e plasmador de uma vontade e moral social, em que os
indivíduos desconstroem e reconstroem uma nova representação do lugar e se
reapropriam da própria cultura. E os atores envolvidos começam a entender os
problemas e as potencialidades do lugar na sua totalidade, inclusive as causas políticas e
sociais da marginalização e da pobreza.
É um processo que interfere na subjetivação de estigmas, plasmando uma nova ecosofia
do Semiárido, capaz de produzir novas subjetividades. Partindo do pressuposto que o
lugar não tem unicamente una dimensão físico-material, mas também ideal-imaterial
(GUATTARI, 1990), sabemos como a construção de um novo olhar afeta a dimensão
subjetiva. Esse novo olhar inclui regimes de signos, imagens, ideias e valores, que

303
definem uma nova territorialidade, uma nova ecosofia. Emerge um novo território
simbólico-cultural (CARVALHO, 2011).
Além dos resultados em termos de subjetivação e ação, a educação contextualizada
proporciona mudanças nas condições estruturais de reprodução social. É parte de um
conjunto de forças em movimento que constroem alternativas concretas de convivência
e de planejamento regional. O Semiárido é a região com os índices de pobreza e
exclusão social mais preocupantes do país; e currículos desvinculados da realidade, das
necessidades e das potencialidades do lugar impedem que a educação se transforme
num dispositivo para o desenvolvimento (SOUZA e SILVA, 2011). A educação
contextualizada, ao contrário, cria espaços de reflexão e ação que, a partir da
descontrução da imagem de um não-lugar, traçam caminhos para novas possibilidades
de vida no Semiárido. Por exemplo, o processo de contextualização inclui reflexões
críticas e ações concretas acerca de oportunidades de geração de renda no Semiárido,
respeito e preservação do meio ambiente, mudando as perspectivas da vida cotidiana
dos estudantes e das comunidades.
A partir do processo de descontrução e construção de um novo olhar, é possível
imaginar e concretizar novas possibilidades de vida no lugar. Não é mais um não-lugar,
mas um lugar-potencial. Os estudantes, professores e professoras, e os membros das
comunidades aprendem a viver de maneira diferente, não tendo mais como única opção
a cidade ou a região Sudeste. O Semiárido se apresenta aos olhos deles de outra forma,
com outras cores e tons, e as pessoas enxergam potencialidades vivas.
Mais é muito mais do que isso. A educação contextualizada, dentro de um paradigma de
convivência, promove um enfoque sistémico no planejamento e gestão territorial. São
apontadas novas especificidades e potencialidades do território, mediante um processo
de reaproriação social do território e gestão compartilhada (CARVALHO, 2007). É uma
perspectiva cultural, que, a partir da desconstrução e construção das representações
sobre o Semiárido, demonstra como nenhuma lógica capitalista “anula os processos
organizadores e produtivos da natureza e os sentidos das culturas” (Ibid, pag. 28).

Conclusão
Sendo que as políticas públicas impulsionadas pelo Estado sempre se expressaram no
semiárido através de políticas assistenciais de emergência, fragmentadas e
desarticuladas, pautadas no tecnicismo e no economicismo, a RESAB e outras redes de
convivência propõem políticas públicas que partam do chão mediante o envolvimento
da sociedade civil e do poder público. É assim que as redes estão se impondo como uma
verdade-realidade no cenário político brasileiro, traçando os caminhos por uma
democracia por vir, capaz de garantir o desenvolvimento regional.
A educação contextualizada e a construção de um novo olhar e de uma nova
territorialidade vivida cria as bases pela reapropriação do lugar e pela realização de um
encontro entre desejos e oportunidades no Semiárido. Assim, a escola e a educação se
podem transformar em elementos de libertação e de transformação no Semiárido, dando
lugar a novas espacialidades de poder e de saber. É evidente a complexidade e a riqueza
do processo de educação contextualizada, e também do paradigma de convivência com
o semiárido na sua totalidade, em contraposição à antiga e unívoca significação dada ao
semiárido e ao Nordeste, que inspirou intervenções e política públicas ineficazes,
emergenciais e desarticuladas. A proposta de contextualização e de convivência,
impulsionada principalmente pela sociedade civil, se colocam dentro de um projeto

304
alternativo de planejamento regional e de desenvolvimento, mediante intervenções e
políticas públicas que partam do chão, a partir de uma nova ressignificação territorial.

Referências bibliográficas
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305
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306
Revolución Bolivariana y Poder Popular en Venezuela: Avances y contradicciones
en lucha por la construcción del nuevo Estado Comunal y el Socialismo

Rafael Enciso
Economista Investigador
Está en marcha un plan para destruir la revolución bolivariana, el Poder Popular
en construcción y su perspectiva socialista, con todos sus logros sociales y su
influencia en América Latina y el Caribe
El Comandante revolucionario Hugo Rafael Chávez Frías, líder de la revolución
bolivariana y de muchos de los cambios acaecidos en América Latina y El Caribe,
después de haber liderado el levantamiento patriótico militar del 4 de febrero de 1992;
de haber reconocido públicamente su responsabilidad y de haber pasado dos años en
prisión, logró ganar el apoyo mayoritario de la población, mediante el trabajo metódico
y persistente de un movimiento político revolucionario cívico-militar, para ser elegido
con sus votos como Presidente de Venezuela en diciembre de 1998.
Como Presidente de la República Chávez cumplió todas las promesas que hizo al
pueblo. En primer lugar, cumplió su promesa de refundar la República sobre principios
bolivarianos, convocando una Asamblea Nacional Constituyente en 1999, y después de
varios meses de sesiones promulgó la Constitución de la República Bolivariana de
Venezuela, que fue ratificada mediante un referendo popular.
Esta constitución significó el inicio de la recuperación de la soberanía nacional perdida
desde la muerte de Simón Bolívar en 1830 y estableció como aspectos esenciales, la
doctrina bolivariana y la democracia participativa y protagónica, base jurídica
constitucional del Poder Popular en Venezuela, en oposición a la democracia
representativa característica de los Estados burgueses.
Con estas bases constitucionales el Estado venezolano asumió el control de los recursos
petroleros que estaban en manos de los monopolios extranjeros y desarrolló una activa
diplomacia internacional que permitió la reorganización de la OPEP y la recuperación
de los precios del petróleo, que en 1998 estaban a 7 dólares el barril, para llevarlos a un
promedio de 100 dólares durante todo su mandato.
Con estos enormes recursos, y de cuyo manejo fueron desplazados los sectores
oligárquicos que antes detentaban el poder político y económico concentrando todos los
ingresos petroleros para sí, desarrolló una política social con altas inversiones y
novedosos métodos como fueron las Misiones Sociales, que permitieron mejorar la vida
del pueblo en todos los aspectos: alimentación, salud, educación, vivienda, que hicieron
posible que Venezuela superara en gran medida las condiciones de pobreza extrema y
miseria, que padecía la mayor parte de la población y que llevaron a la explosión social
del CARACAZO en febrero de 1989, considerado el primer levantamiento popular
contra el neoliberalismo en América Latina, para ser ubicada en las estadísticas de la
ONU entre los países con índice de desarrollo humano alto.
Durante este período cambió la matriz energética mundial. A partir del año 2000
decayeron los descubrimientos de nuevos pozos petroleros, se produjo un descenso de la

307
producción de petróleo en Estados Unidos y México, mientras aumentaba la demanda
de petróleo en el mundo. No por casualidad se produjo la invasión a Irak, uno de los
primeros países productores de petróleo en el año 2003 y a Libia en el año 2009. A
partir del año 2006 se reconoció que Venezuela poseía la primera reserva petrolera del
mundo. Este mismo año, el Presidente Chávez promulgó la Ley de los Consejos
Comunales, como concreción jurídica de la democracia participativa y protagónica de
las comunidades organizadas en los territorios y fue reelegido por amplia mayoría
cuando dijo abiertamente que quien votara por él, estaba votando por el socialismo.
Todas estas circunstancias motivaron que el gobierno imperialista de los Estados
Unidos con participación activa pero subordinada de la oligarquía venezolana y
latinoamericana, intentara desde sus comienzos derrocar al gobierno legítimo del
Presidente Chávez, desatando un golpe militar entre los día 11 y 13 de abril, que fue
derrotado por la participación activa y heroica del pueblo, que se movilizó masivamente
desde los barrios para ejercer Poder Popular y en unión cívico-militar, obligar a la
restitución del Comandante Chávez en la Presidencia de la República; estas mismas
fuerzas reaccionarias realizaron, con el mismo objetivo de derrocar al Presidente
Chávez, el paro petrolero de diciembre 2002-marzo de 2003, el cual una vez más fue
derrotado por la acción del pueblo en unidad cívico-militar, esta vez con la participación
protagónica de los trabajadores de la industria petrolera, que en contra de los gerentes,
tecnócratas y gran parte de los empleados administrativos, ejercieron su Poder Popular
para reactivar las refinerías y toda la industria petrolera. En 2004 fue destruido, por
acción oportuna de los organismos de seguridad del estado y la Fuerza Armada
Nacional Bolivariana (FANB) un plan por medio del cual se pretendía asaltar el Palacio
Presidencial de Miraflores y asesinar al Presidente Chávez, con participación de unos
200 paramilitares colombianos que habían llegado a Venezuela bajo el apoyo del
gobierno colombiano, particularmente del Presidente Álvaro Uribe Vélez y el
Departamento Administrativo de Seguridad (DAS).
Desde la desaparición física del Comandante Presidente Hugo Chávez, el 5 de marzo de
2013, se ha puesto en marcha un nuevo plan, el cual fue acelerado y potenciado desde
febrero de 2014 con inmensos recursos de todo tipo, orientado a derribar el gobierno
constitucional del Presidente Nicolás Maduro Moros, acabar con la independencia
nacional y destruir la Revolución Bolivariana y su perspectiva socialista con todos sus
logros sociales y su influencia en América Latina y el Caribe, así como en el resto del
mundo.
En este plan se aplican de manera combinada, todas las estrategias políticas,
económicas, psicológicas, culturales, mediáticas y militares, aplicadas antes por el
imperialismo en todos los países del mundo, con énfasis en el uso del terrorismo
contrarrevolucionario de ultraderecha y la guerra de cuarta generación, que incluye la
guerra sicológica con uso masivo de los medios masivos de comunicación a escala
mundial, para difundir mentiras presentando la realidad de manera invertida: al
gobierno de Venezuela como represor y violador de los derechos humanos y a los
terroristas de derecha como víctimas inocentes, para justificar una intervención
imperialista contra Venezuela.

308
Esto se articula con la guerra económica contra el pueblo venezolano: sabotajes a los
sistemas eléctrico y acueductos, de salud, alimentación y transporte, destrucción con
incendios de infraestructuras y servicios públicos, que ocasionaron hasta el mes de
mayo de 2014 pérdidas por más de 15.000 millones de dólares, más de 45 muertos y
centenares de heridos; contrabando de extracción, saqueo de las divisas y reservas
internacionales, acaparamiento y especulación.
Magnificando las fallas y vicios del burocratismo y corrupción heredados de la IV
República, que persisten en la gestión pública y que es necesario superar con la
aplicación consecuente del Plan de Desarrollo Económico y Social 2013-2019 – Plan de
la Patria; la contrarrevolución de la ultraderecha fascista ha venido creando de manera
planificada, una situación de escases y desabastecimiento de los productos básicos, en
primer lugar de los alimentos y otros elementos esenciales para la vida, con el propósito
de hacer sufrir y confundir al pueblo, culpando exclusivamente al gobierno de esta
situación, para que no lo apoye y se vincule a la contrarrevolución.
La situación actual es de emergencia. Están en grave riesgo la independencia, la
soberanía nacional y todos los logros políticos, socio-culturales y económicos
alcanzados en estos 15 años de revolución bolivariana, así como el proceso de
construcción del Poder Popular y su perspectiva socialista, lo cual el gobierno
bolivariano ha venido enfrentando con apoyo del pueblo soberano y su Fuerza Armada
Nacional Bolivariana (FANB), así como con el apoyo solidario de los movimientos
sociales y organizaciones políticas revolucionarias y gobiernos progresistas de América
Latina y El Caribe, en especial de los países de la Alianza Bolivariana para las Américas
(ALBA), Unión de Naciones Suramericanas (UNASUR) y Comunidad de Estados
Latinoamericanos y Caribeños (CELAC). También desempeñan un rol importante las
relaciones de amistad y cooperación con países con desarrollo industrial y capacidad
militar, no subordinados a los Estados Unidos como Rusia, China e Irán.

La esencia del Plan de Desarrollo Económico y Social de la Nación 2013-2019 de la


República Bolivariana de Venezuela es el fortalecimiento y ejercicio del Poder
Popular
Entre los motivos principales por los cuales el imperialismo y las oligarquías de
América Latina necesitan destruir la revolución bolivariana, además de la muy
importante razón de que Venezuela cuenta con la principal reserva mundial de petróleo
y otros importantes recursos naturales que los cuales Estados Unidos pretenden
controlar para mantener su modelo de desarrollo industrialista depredador, se encuentra
la decisión del pueblo y el gobierno bolivariano de avanzar en la construcción del poder
popular y el socialismo.
En el aparte II de la presentación de su Programa de Gobierno para el período 2013-
2019, del Comandante Hugo Chávez, con el cual fue reelecto como Presidente de la
República en octubre de 2012; y que, luego de su desaparición física el 5 de marzo de
2013 fue asumido integralmente en su campaña presidencial por su sucesor político,
Nicolás Maduro Moros, con el cual fue elegido Presidente de Venezuela en abril de
2013, se lee textualmente:

309
“Este es un programa de transición al socialismo y de radicalización de la democracia
participativa y protagónica. Partimos del principio de que acelerar la transición pasa
necesariamente por, valga la redundancia, acelerar el proceso de restitución del poder
al pueblo. El vivo, efectivo y pleno ejercicio del poder popular protagónico es
insustituible condición de posibilidad para el socialismo bolivariano del siglo XXI. Por
eso mismo, es la base fundamental y el vértice principal del Proyecto Nacional Simón
Bolívar, Primer Plan Socialista de Desarrollo Económico y Social de la Nación 2007-
2013: nuestra carta de navegación de este ciclo que está culminando, enfatiza
rotundamente su papel estratégico que en el próximo ciclo debe acentuarse todavía
más.” (Se refiere al período 2013-2019)
Para evitar cualquier tipo de confusión sobre el carácter de la sociedad venezolana
precisa: “No nos llamemos a engaño: la formación socioeconómica que todavía
prevalece en Venezuela es de carácter capitalista y rentista. Ciertamente, el socialismo
apenas ha comenzado a implantar su propio dinamismo interno entre nosotros. Este es
un programa precisamente para afianzarlo y profundizarlo; direccionarlo hacia una
radical supresión de la lógica del capital que debe irse cumpliendo paso a paso, pero
sin aminorar el ritmo de avance hacia el socialismo.”
“Para avanzar hacia el socialismo, necesitamos de un Poder Popular capaz de
desarticular las tramas de opresión, explotación y dominación que subsisten en la
sociedad venezolana, capaz de configurar una nueva socialidad desde la vida cotidiana,
donde la fraternidad y la solidaridad corran parejas con la emergencia permanente de
nuevos modos de planificar y producir la vida material de nuestro pueblo. Esto pasa por
pulverizar completamente la forma Estado burguesa que heredamos, la que aún se
reproduce a través de sus viejas y nefastas prácticas, y darle continuidad a la invención
de nuevas formas de gestión política.”
Y en el apartado III, dice lo siguiente: (…) “Este es un programa que busca traspasar “la
barrera del no retorno”. Para explicarlo con Antonio Gramsci, lo viejo debe terminar de
morir definitivamente, para que el nacimiento de lo nuevo se manifieste en toda su
plenitud.”
Este programa de gobierno, al ser aprobado mayoritariamente por el pueblo de
Venezuela con la elección del Presidente Maduro y luego de ser convertido en Ley de la
República con la aprobación del Plan de Desarrollo Económico y Social 2013-2019 por
parte de la Asamblea Nacional, es de obligatorio cumplimiento por todos los
venezolanos, así como por todas sus instituciones públicas y privadas, qué deben
orientarse su acción a restituir el poder al pueblo, al desarrollo de la democracia
protagónica y participativa, al desarrollo del Poder Popular, a la transformación de las
instituciones heredadas de la IV república (hasta la promulgación de la Constitución de
la República Bolivariana de Venezuela en 1999), por medio del cambio de su esencia
política: un poder elitista y explotador que domina al pueblo y le impone sus decisiones,
debe convertirse progresiva pero aceleradamente, en un poder del pueblo y al servicio
del pueblo.
Pero, el pueblo de Venezuela heredó al mismo tiempo y de manera contradictoria: a) El
espíritu bolivariano de lucha por la independencia, la libertad y la dignidad que se han
expresado en la Revolución Bolivariana y b) Las instituciones burguesas de la IV

310
República, con la cultura, mentalidad, ideología, valores, actitudes y comportamientos
propios de la sociedad capitalista y rentista, conformados con especial intensidad a lo
largo del siglo XX. Estos últimos, instituciones y subjetividad social, solo empezaron a
ser cuestionados masivamente y modificados de manera parcial y progresiva, pero de
manera desigual en los diversos sujetos sociales, a partir del inicio del gobierno del
Presidente Chávez en 1999.
Esta contradicción se manifiesta en la lucha de las ideas, de los valores y la cultura, en
todos los espacios sociales; en las instituciones públicas y privadas; en los entes político
territoriales: gobernaciones y alcaldías; así como en las organizaciones sociales, entre
ellas los Consejos Comunales y otras Organizaciones de Base del Poder Popular.
El fortalecimiento de la independencia nacional y la construcción de Poder Popular y
del socialismo bolivariano se hacen de manera concreta en cada territorio, en cada
estado, en cada comunidad. Los recursos del Estado, transferidos a través del
Presupuesto Nacional, el Situado Constitucional y el Fondo de Compensación
Interterritorial del Consejo Federal de Gobierno, que se irriga a gobernaciones y
alcaldías; y a las organizaciones de base del Poder Popular: Consejos Comunales y
Comunas, por medio del Plan de Inversión Comunal Participativo (PICP), son el medio
financiero para ello; pero son las comunidades organizadas con sus voceros y los
representantes de los gobiernos estadales y locales, los que en conjunto, articulados de
manera armónica en los territorios concretos (aunque en la realidad hasta ahora
prevaleciente se manifiestan múltiples desencuentros y contradicciones entre ellos);
deben aportar con su conciencia, trabajo y gestión, la direccionalidad política, para que
en su ejecución se desarrollen nuevas relaciones sociales libres de toda forma de
explotación, es decir socialistas, con las que el TRABAJO adquiere un significado
LIBERADOR, y una nueva CULTURA SOCIALISTA con nuevas formas de pensar y
sentir, vivir, producir, distribuir y consumir; para que en cada territorio específico, no se
reproduzca el sistema del capital; o en todo caso, para que éste se vea constreñido y
tienda con el tiempo a desaparecer, mientras el Poder Popular y los elementos
económicos del socialismo: la economía de propiedad social comunal con sus cadenas y
redes socio-productivas territoriales, articuladas con las empresas del Estado (propiedad
social indirecta) y ambos con una gestión orientada al socialismo, se construyen, se
consolidan y se extienden.
Es el factor CONCIENCIA, que incluye VALORES, PRINCIPIOS,
CONOCIMIENTOS, AFECTIVIDAD, el que en las actuales circunstancias de la
revolución bolivariana, determina -de manera prevaleciente sobre los condicionantes
económicos y materiales-, el comportamiento de los sujetos sociales, y por tanto, el que
determinará si los recursos del Estado y los sistemas y métodos de planificación que se
formulen como políticas públicas, así como los que sean realmente aplicados (pues no
siempre coinciden), terminarán reproduciendo y ampliando el capitalismo, o si
cumplirán con su fin de ser medio para cumplir con los 5 objetivos históricos del
Programa de la Patria, incorporados en el Plan de Desarrollo Económico y Social de la
Nación 2013-2019, entre los cuales, el Presidente Chávez hizo especial énfasis en
fortalecer el Poder Popular, la independencia nacional y construir el socialismo en
Venezuela.

311
El proceso de construcción del Sistema de Planificación Territorial Participativo y la
metodología de elaboración del Plan de Inversión Comunal Participativo (PICP)
formulado y aplicado por primera vez a escala nacional en el año 2012 para la vigencia
2013, fueron interrumpidos durante el año 2013 por cambios en la Vicepresidencia de la
República y como consecuencia, en la Dirección Ejecutiva del Consejo Federal de
Gobierno y su Fondo de Compensación Interterritorial. Con ellos, se procuraba crear las
condiciones para desarrollar la conciencia y la cultura socialista por medio de la
participación real del pueblo organizado en las decisiones fundamentales que tienen que
ver con la distribución de los recursos del Estado y con la formulación, ejecución y
control de los planes de desarrollo económico y social, y de los proyectos que de ellos
se derivan por ejes territoriales, que determinan en gran medida las posibilidades de la
transformación de las condiciones estructurales de su existencia, entre ellas su acceso a
los medios de producción y su participación en procesos de trabajo no explotado ni
alienado, por medio de su participación en empresas de propiedad social con gestión
socialista.
La visión e interpretación de la realidad, -así como de sus aspiraciones a transformarla
en una u otra dirección-, que tienen los diversos sujetos sociales en las instituciones
públicas y en los territorios no es uniforme; está mediada por la subjetividad, por la
experiencia de vida individual y de los grupos sociales con características comunes a los
cuales pertenecen, así como por sus conocimientos y conciencia social; por las
contradicciones de intereses entre unos y otros, y por la lucha que esto genera, o por su
carácter complementario.
Todos los venezolanos deben tener como guía la Constitución de la República
Bolivariana de Venezuela y el Plan de Desarrollo Económico y Social de la Nación;
pero se debe tener en cuenta que la subjetividad social en los territorios específicos hace
que necesariamente y hasta cierto punto, estos sean interpretados y aplicados de manera
diferenciada, de acuerdo a la conciencia e intereses de las diversas clases y grupos
sociales.
Esta situación se presenta también entre los diversos factores presentes en las
instituciones públicas: Ministerios, Gobernaciones, Alcaldías, y en las organizaciones
sociales, en particular, en las Organizaciones de base del Poder Popular: Consejos
Comunales, Comunas y otras de diversas características.
El hecho de que estos tengan funciones diferenciadas y específicas, -pero también
complementarias-, en los territorios; y de que existan varias vías de distribución de los
recursos y de conformación de sus presupuestos (aunque finalmente hasta ahora la
mayoría de ellos proceden del presupuesto nacional con la renta petrolera como fuente),
requiere de la armonización de las políticas públicas, planes de desarrollo, programas y
proyectos elaborados por unos y otros, a fin de superar las contradicciones que puedan
presentarse y de hacerlos coherentes y complementarios bajo las ideas rectoras de
obligatorio cumplimiento, establecidas en la CRBV y en el Plan Nacional de Desarrollo.
Esta armonización deberá realizarse a través de la metodología establecida por el
Consejo Federal de Gobierno, en su condición de elemento prominente del Sistema del
Sistema Nacional de Planificación, cuya construcción y puesta en funcionamiento se
encuentra suspendida por el momento.

312
Pero no hay duda alguna: De acuerdo a la Constitución de la República Bolivariana de
Venezuela y al Plan Nacional de Desarrollo Económico y Social 2013-2019, el factor
fundamental a fortalecer y a hacer preponderante sobre todos los demás, es el Poder
Popular con sus organizaciones de base; y por ello, la planificación del desarrollo en los
territorios, realizada por gobernaciones y alcaldías, debe tener al Poder Popular: su
visión de la realidad, de sus capacidades, potencialidades, necesidades, problemas y
aspiraciones (que fueron expresados manera parcial en el Plan de Inversión Comunal
participativo PICP 2013, de cada eje territorial), como objetivo fundamental del Sistema
de Planificación Participativa Territorial; lo cual además, permite y posibilita a las
instituciones constituidas, avanzar en su transmutación, bajo el influjo del Poder
Popular, para convertirse en instituciones del Pueblo y al servicio del Pueblo.

Obstáculos para avanzar en la construcción del Poder Popular y el Socialismo en


Venezuela y su superación
Entre los principales obstáculos que hay que superar progresivamente para la
construcción del Poder Popular y el Socialismo del Siglo XXI en Venezuela: con sus
Consejos Comunales y Comunas; y con sus Consejos de Trabajadores y Trabajadoras,
que apliquen la Democracia Participativa y el Control Obrero como aspectos esenciales
de la Gestión Socialista, están los siguientes:
1. La desarticulación de las instituciones públicas y la falta de eficiencia y eficacia
en su gestión; la mentalidad pequeño burguesa, la ineficiencia, la falta de planificación
y el pragmatismo inconsistente de la mayor parte de la burocracia con capacidad de
decisión, del Estado y las empresas estatales (una parte de ella incrustada en los niveles
de dirección del Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV), con su interacción
contradictoria y a veces complementaria con los sindicatos economicistas y con algunos
de ellos que además tienen prácticas corruptas y mafiosas; todo lo cual el Presidente
Maduro ha empezado a combatir aunque de manera aún insuficiente. Tanto los unos
como los otros, por sus intereses e ideología burguesa (en algunos casos pequeño-
burguesa, pero burguesa al fin), con su expresión reformista liberal, reproducen
constantemente el modelo capitalista rentista petrolero y el clientelismo político que de
él se deriva. A la par que los elementos esenciales del sistema de explotación capitalista:
La división social entre trabajo intelectual y material y la estructura jerárquica del
trabajo, la alienación social, y la propiedad privada sobre los medios fundamentales de
producción.
2. La fragmentación de la conciencia social, consecuencia de 500 años de
colonialismo, neocolonialismo y capitalismo dependiente, con su característica división
internacional y nacional, social y técnica del trabajo; de la alienación que a ella le es
inherente; el egoísmo individualista, la mentalidad consumista, la falta de valores
humanistas y de una conciencia realmente socialista en la mayor parte de los
trabajadores y las comunidades; y por tanto, de una ideología revolucionaria
anticapitalista, - aunque muchos de ellos sean honestos, de buena voluntad y
aparentemente estén comprometidos con el proceso de transformaciones
revolucionarias-, (les induce, aún de manera contraria al heroico comportamiento que
tuvieron los días 12 y 13 de abril de 2002, con el cual restituyeron al Presidente Chávez

313
en el poder y luego con el cual resistieron el golpe petrolero de 2002-2003), a tener
comportamientos oportunistas y a generarse privilegios personales y de grupo, cuando
asumen cargos de dirección o de poder sobre recursos públicos o comunitarios, porque,
entre otras insuficiencias, no pueden ni les interesa diferenciar con claridad, qué es
capitalismo y qué es socialismo; qué políticas públicas, qué tipo de gestión, qué
decisiones y qué comportamientos o acciones, en las empresas y en el Estado,
reproducen el sistema de explotación capitalista con sus variables reformista,
socialdemócrata, o de capitalismo asistencialista, o “con rostro humano”, o cuáles
contribuyen en verdad a construir el socialismo y el Poder Popular que lo sustente.
3. La división social entre trabajo material e intelectual y la estructura jerárquica
del trabajo, que se reproducen amparadas en la Ley Orgánica de la Administración
Pública y por la falta de aplicación de la Ley Orgánica del Trabajo, los trabajadores y
trabajadoras (LOTTT); lo que en conjunto constriñe la aplicación de las leyes del Poder
Popular aprobadas entre los años 2010 y 2011), mediante las cuales, unos pocos, en
general las élites burocráticas del Estado y los propietarios o gerentes de las empresas
privadas, piensan, planifican y ordenan, mientras los demás, los trabajadores operarios,
científico-técnicos o administrativos, en todas las escalas, cumplen las órdenes de los
primeros, con lo cual se reproduce la alienación social y las bases fundamentales del
sistema del capital y no solo del capitalismo (de acuerdo con Istvan Mészáros), con sus
diferentes modos de producción y formaciones económico-sociales basadas en el
antagonismo de clases, donde unos seres humanos son explotados por otros. La
estructura jerárquica del trabajo se ve reforzada por el alto nivel de participación de
militares en el Estado, quienes han hecho importantes aportes al proceso de la
revolución bolivariana, empezando por el propio Presidente Chávez y los que
participaron en la insurrección patriótica político-militar del 4 de febrero de 1992 y su
complemento el 27 de noviembre del mismo año; pero que, como toda organización
castrense: con su mentalidad y cultura de ordeno y mando, donde las ordenes no se
discuten sino que se cumplen, y de obediencia debida de los rangos inferiores a los
superiores, reproducen la estructura jerárquica vertical del trabajo, que paradójicamente
se contrapone a la democracia participativa y protagónica, esencia de la Constitución de
la República Bolivariana de Venezuela (CRBV), elemento fundamental para la
transición al socialismo. Es necesario tener en cuenta que, el Presidente Chávez,
consciente de la necesidad de avanzar en este sentido, desde principios del año 2007,
incluyó en el Proyecto Nacional Simón Bolívar 2007-2013, la directriz IV, que dice:
<<Con el fin de lograr trabajo con significado, se buscará la eliminación de la división
social del trabajo, de su estructura jerárquica y de la disyuntiva entre la satisfacción de
las necesidades humanas y la producción de riqueza subordinada a la reproducción del
capital>>. Esta idea esencial para transitar al socialismo, por alguna extraña razón no
aparece en el programa de la Patria 2013-2019.
En la Ley Orgánica del Trabajo, los Trabajadores y Trabajadores (LOTTT), aprobada
desde el año 2012, se establecen condiciones jurídicas claramente favorables para
avanzar en la construcción de relaciones socialistas en el mundo del trabajo. Sin
embargo esta Ley aún no se aplica en la práctica y es muy poco conocida por el
conjunto de la sociedad, por los mismos trabajadores e incluso por los activistas
revolucionarios, debido a que, ni el gobierno ni los mismos dirigentes de los
trabajadores y sus organizaciones, han realizado campañas para difundirla.

314
En el capítulo III, DEL DERECHO AL TRABAJO Y DEL DEBER DE TRABAJAR –
Objetivo del Proceso social del trabajo, art. 25., se dice lo siguiente:
“El proceso social del trabajo tiene como objetivo esencial, superar las formas de
explotación capitalista, la producción de bienes y servicios que aseguren nuestra
independencia económica , satisfagan las necesidades humanas mediante la justa
distribución de la riqueza y creen las condiciones materiales, sociales y espirituales que
permitan a la familia ser el espacio fundamental para el desarrollo integral de las
personas y lograr una sociedad justa y amante de la paz, basada en la valoración ética
del trabajo y en la participación activa, consciente y solidaria de los trabajadores y
trabajadoras en los procesos de transformación social, consustanciados con el ideario
bolivariano. En consecuencia, el proceso social de trabajo debe contribuir a
garantizar:
1. La independencia y la soberanía nacional, asegurando la integridad del espacio
geográfico de la nación.
2. La soberanía económica del país asimilando, creando e innovando técnicas,
tecnologías y generando conocimiento científico y humanístico, en función del
desarrollo del país y al servicio de la sociedad.
3. El desarrollo humano integral para una existencia digna y provechosa de la
colectividad, generando fuentes de trabajo, alto valor agregado nacional y crecimiento
económico que permita la elevación del nivel de vida de la población.
4. La seguridad y soberanía alimentaria sustentable.
5. La protección del ambiente y el uso racional de los recursos naturales.
En el proceso social del trabajo se favorecerá y estimulará el diálogo social amplio,
fundamentado en los valores y principios de la democracia participativa y protagónica,
en la justicia social y en la corresponsabilidad entre el Estado y la sociedad, para
asegurar la plena inclusión social y el desarrollo humano integral.”
Aunque en esta Ley se incluyen nuevos y amplios derechos para la clase trabajadora y
su espíritu general, sobre todo en título V, DE LA FORMACIÓN COLECTIVA,
INTEGRAL, CONTINUA, COLECTIVA Y PERMANENTE DE LOS
TRABAJADORES Y TRABAJADOREAS EN EL PROCESO SOCIAL DE
TRABAJO, apunta a desarrollar la organización de los trabajadores y la formación de
su consciencia y capacidades para ejercer la gestión plena del proceso social nacional
del trabajo, los artículos de la Ley que contienen estos aspectos no han sido
reglamentados y por tanto no han sido aplicados hasta el momento.
De manera real y permanente, consciente o inconsciente, las personificaciones del
Estado en las instituciones públicas fomentan la división social y técnica del trabajo, así
como la estructura jerárquica del mismo, y mantienen y estimulan la división entre
trabajo directivo, operativo y de inspección. Esto deberá ser resuelto, para avanzar al
socialismo, con la aplicación plena de la Ley Orgánica del Trabajo, los Trabajadores y
Trabajadoras (LOTTT) y con la aprobación del proyecto de Ley de Consejos de
Trabajadores, presentado desde el año 2007 por el Partido Comunista de Venezuela
(PCV) con el apoyo del Movimiento de Trabajadores por el Control Obrero y los

315
Consejos Socialistas de Trabajadores y Trabajadoras, cuyo debate, no por casualidad ha
sido aplazado en la Asamblea Nacional durante siete años.
Todo lo anterior, limita o impide el desarrollo del Poder Popular, por medio del
ejercicio consciente de la democracia participativa y protagónica; hace posible marginar
a los trabajadores y a las comunidades organizadas del poder real (económico, social,
político y cultural); dificulta que los trabajadores tengan una actitud honesta,
consecuente y favorable frente al trabajo, que permita aumentar la producción y elevar
la productividad en las empresas; facilita su manipulación, así como la de las
comunidades y hace posible que el control de los presupuestos sea ejercido en muchas
de las instituciones públicas y en muchas de las organizaciones sociales, por todo tipo
de oportunistas, capitalistas, burócratas y tecnócratas del Estado, o de
contrarrevolucionarios saboteadores, algunos de ellos infiltrados en el PSUV y en los
sindicatos, sobretodo en sus niveles directivos. Esto también ocurre en buena medida,
en los mismos Consejos Comunales y Comunas, y Consejos de Trabajadores y
Trabajadoras, cuyos integrantes deben desarrollar su conciencia socialista, como
expresión auténtica del Poder Popular en los territorios, en las instituciones y en las
empresas.
Como apoyo a la construcción del Poder Popular y el Socialismo, en abril del año 2013,
el Consejo Federal de Gobierno (CFG) con su Fondo de Compensación Interterritorial,
aprobó los Lineamientos –de obligatorio cumplimiento- para elaborar los planes de
desarrollo de los 23 estados del país para el período 2013-2016. En ellos se establecen:
El Concepto de Desarrollo del Socialismo Bolivariano hacia el cual queremos avanzar,
claramente diferenciado del desarrollo capitalista. Incluye seis dimensiones de la
dinámica de la sociedad a tener integralmente en cuenta para la planificación: política,
cultural, económico-productiva, social, ambiental y territorial. Establece la
obligatoriedad de que, las Organizaciones de Base del Poder Popular y de los
Movimientos Sociales participen activamente en todo el proceso de elaboración,
ejecución y control de los planes, y de que los planes de desarrollo por ejes territoriales,
denominados Planes de Inversión Comunal Participativa (PICP) elaborados por ellos
para el año 2013, fueran tenidos en cuenta e incorporados en los planes estadales.
Incluye una metodología de Planificación Estratégica Situacional Participativa y de
Planificación-Formación- Acción, que establece como centro el cumplimiento del
Programa de la Patria 2013-2019 con sus cinco grandes objetivos históricos y
nacionales en los territorios de los estados, con sus poblaciones, culturas y
características específicas, para definir las metas, y a partir de ellas, los problemas a
resolver por medio de proyectos, acciones y demandas, que serán financiados con los
recursos públicos. Se indica también el inicio del proceso de transferencia de
competencias, gestión de servicios y otras atribuciones de los Poderes Públicos:
nacional, estadales y locales al Poder Popular.

El Consejo Federal de Gobierno, es la institución inspirada por Chávez y creada por él,
con las atribuciones y recursos necesarios para impulsar la transición del capitalismo al
socialismo; superar de manera progresiva las desigualdades y desequilibrios territoriales
acumulados a lo largo de 500 años de colonialismo, neocolonialismo y capitalismo
dependiente, deformado y rentista petrolero; y promover y supervisar la transferencia de

316
competencias de los poderes públicos al Poder Popular. En el CFG participan
representantes del Gobierno Central, de los Gobernadores, Alcaldes y voceros del Poder
Popular, cuya forma de elección debe ser cada vez más democrática, diseñando los
perfiles socialistas adecuados para su elección y asegurando que los candidatos
presenten sus propuestas programáticas, asegurando su cumplimiento o la revocatoria
del mandato. El CFG, tiene la función de establecer los lineamientos que permitan
articular y armonizar los planes de desarrollo nacional, estadales, regionales, sectoriales
y del Poder Popular en un Sistema Nacional de Planificación Participativa Territorial
(SNPPT) construido conjuntamente con la Comisión Central de Planificación (CCP),
organismo que desafortunadamente no cumple sus funciones en este sentido y que en
general quedó relegado a inspeccionar empresas y proyectos de especial importancia e
interés para el Estado. Esto es algo que está realmente en mora y que debe ser objeto de
urgente atención por parte del Gobierno. Este sistema tiene que apuntar necesariamente
a crear los mecanismos que hagan posible la distribución de la renta petrolera y la
elaboración del Presupuesto Nacional, su ejecución y control, con plena participación de
los sujetos sociales del trabajo y el pueblo organizado en Consejos Comunales y
Comunas, así como en Consejos de Trabajadores y Trabajadoras. Para que ambos,
renta petrolera y presupuesto nacional, dejen de ser medios que impulsan la
reproducción del Estado burgués y la reproducción ampliada del sistema capitalista; y
en cambio se conviertan en medios e instrumentos claves de la transición del
capitalismo al socialismo.
En este aspecto, es muy importante evaluar en profundidad el impacto que ha tenido en
la planificación impulsada por el Consejo Federal de Gobierno, el método de gobierno
en la Calle del Presidente Nicolás Maduro. Porque aunque este método permite
efectivamente el acercamiento del gobierno al pueblo en barrios y comunidades para
escuchar sus planteamientos, la aprobación pública e inmediata de las propuestas no
permite realizar una evaluación política y técnica con metodología consistentemente
socialista, que permita saber si esos proyectos contribuirán a mejorar sustancialmente la
vida de las comunidades contribuyendo a construir el socialismo del siglo XXI en
Venezuela, o si con algunos beneficios puntuales y temporales para las comunidades,
contribuirán a reproducir el capitalismo dependiente y rentista petrolero que padecemos.

El pueblo aprende a gestionar si se le permite, ¡o si conquista hacerlo!


Para asegurar el rumbo del proceso venezolano hacia el Socialismo, se requiere la
participación creciente del pueblo y sus trabajadores en las decisiones fundamentales
del país. Esto significa, su participación en las decisiones del Estado en todos sus
niveles: gobierno nacional, gobernaciones, alcaldías y otras instituciones. También en la
economía y las empresas.
Una expresión trascendental de la lucha de clases en Venezuela, es la que se libra
hoy, dentro y fuera del viejo Estado por la exclusión o participación del pueblo y los
trabajadores en las decisiones fundamentales que afectan su vida, entre ellas las que
tienen que ver con el proceso social de trabajo. De una parte, están aquellos que
históricamente han excluido y excluyen al pueblo, y en particular a los trabajadores, de
participar en las decisiones fundamentales de la sociedad, lo cual hacen para tratar de

317
perpetuar, de manera consciente o inconsciente las condiciones y fuentes de su poder,
privilegios, ingresos y acumulación de capital; es decir, las bases principales de la
reproducción metabólica del sistema capitalista, a saber: a. la división social del trabajo,
en especial la que existe entre trabajo intelectual y trabajo material, así como la
estructura jerárquica clasista del trabajo que de ella se deriva, b. la alienación social, y c.
la propiedad privada sobre los medios fundamentales de producción.
Ellos, generalmente capitalistas o personas vinculadas a los intereses del sistema
capitalista, son partidarios de excluir al pueblo de la elaboración, ejecución y control de
las políticas públicas, programas y planes de desarrollo; y aún con mayor insistencia e
intensidad, -puesto que hay muchos intereses políticos y económicos de por medio-, de
la distribución y control de los recursos financieros y de todo tipo que se asignan por
medio de los presupuestos y contratos del Estado. Porque, éstos, manejados de manera
excluyente y reservada (secreta en muchos casos), autoritaria y anti-ética, permiten a
burócratas inconscientes e ineptos, en asociación con empresarios privados, generarse
privilegios y acumular capital.
De la otra parte, en correspondencia con la Constitución de la República Bolivariana
de Venezuela y tratando de preservar el legado socialista del Presidente Hugo Chávez,
están los revolucionarios que luchan por abrir espacios para que el pueblo organizado
como Poder Popular en Consejos Comunales y/o Comunas, Consejos de Trabajadores,
de Campesinos, de Pescadores, etc., participe de manera protagónica en estas
decisiones, junto con el gobierno nacional, estadal o local. Esto es necesario para que
los recursos de la nación sean utilizados con eficiencia en la solución de los problemas
económicos y sociales y en el desarrollo integral de toda la población. La participación
protagónica del pueblo organizado y consciente en todas las dimensiones de la dinámica
social es el punto clave para fortalecer el Poder Popular y avanzar en la construcción del
socialismo bolivariano en Venezuela.
Solo quienes luchen por esta participación decisoria y decisiva; quienes permitan,
promuevan y estimulen por todos los medios la participación del pueblo y los
trabajadores en las decisiones fundamentales en su ámbito de acción y de vida, podrán
ser considerados como verdaderos revolucionarios que quieren en la práctica – y no solo
de palabra-, construir el socialismo.
Al analizar la realidad social en toda su diversidad y complejidad, es necesario
reconocer que, desafortunadamente, en el conjunto de la sociedad venezolana junto a
los nuevos valores creados por la Revolución Bolivariana, como en los casos de
cualquier otra sociedad, existe una cultura heredada del pasado, que aún sigue siendo
dominante, en la cual prevalece la mentalidad individualista y egoísta creada por el
capitalismo dependiente, complejizada por la mentalidad generada por el rentismo
petrolero y el asistencialismo del Estado, que sólo podrán ser superadas a escala de
masas, con una praxis revolucionaria de masas.
Esto requiere la formación sistemática de la población y los trabajadores (entre ellos los
servidores públicos), en nuevos valores y principios de igualdad, equidad, solidaridad,
justicia social, eficiencia, eficacia, responsabilidad social, honestidad, amor por la
naturaleza…, junto y simultáneamente con la transformación progresiva de la base
económica de la sociedad y las relaciones sociales de producción, lo cual implica la

318
producción y adquisición de nuevos conocimientos científicos, tecnológicos y en
gestión y la diversificación de la economía para hacerla productiva y soberana. Es la
creación planificada del sujeto de la revolución socialista bolivariana a partir de la
transformación del sujeto social actualmente existente.
Es necesario también decir que, precisamente por la circunstancia más arriba descrita,
al igual que entre el personal directivo y con capacidad de decisión sobre el manejo de
recursos financieros e institucionales; entre los trabajadores, y en general en toda la
población, existen diferentes niveles de conciencia y responsabilidad, de desarrollo ético
y moral, de capacidad de organización y de gestión. Por esto, entre muchos sectores
populares también hay problemas de ineficiencia y corrupción, que están contaminando
de grave manera al Poder Popular en construcción, y que deberán ser controlados y
superados en el proceso de desarrollo de la revolución bolivariana.
La capacidad de gestión de los trabajadores al inicio de la revolución bolivariana es
baja en general, por varios motivos. Principalmente por causas históricas, puesto que
durante cinco siglos a partir de la invasión de los europeos a comienzos del siglo XVI, y
durante los períodos colonial y republicano en sus fases neo-colonial y capitalista
dependiente, las comunidades y trabajadores fueron, -por medio de la violencia extrema
(guerra, represión, muerte, tortura)-, esclavizados, servilizados, explotados y alienados;
separados totalmente de la propiedad de los medios de producción, de la toma de las
decisiones fundamentales y con ello, del control de sus propias condiciones de
existencia.
De la misma manera que nadie puede aprender a nadar sin meterse al agua, al mar, a la
piscina, nadie puede aprender a gestionar sin participar en la gestión. Nadie puede saber
gestionar, si nunca ha gestionado. Por eso, solo con su participación en la gestión, los
trabajadores y las comunidades organizadas, aprenderán a gestionar. Esto no significa
negar que, puede y debe haber en muchos casos, un proceso de preparación, teórico-
conceptual y de capacitación técnica, a través de la autoformación continua, colectiva e
integral de la clase trabajadora y de las comunidades organizadas, de las cuales los
trabajadores hacen parte.
Pero en muchos casos, la necesidad misma exige que la formación para la gestión de los
trabajadores y comunidades, se realice en el proceso mismo de la gestión. Es lo que
ocurre cuando los capitalistas y con ellos los equipos directivos de las empresas las han
abandonado para irse del país por diversas razones, entre ellas para evitar que los
pongan presos cuando han cometido delitos y los trabajadores han tenido o tienen que
asumir la gestión para evitar que las empresas se paralicen. Es el caso de lo que ocurrió
en PDVSA en el paro petrolero de 2002-2003, cuyas refinerías e instalaciones fueron
recuperadas y puestas en funcionamiento por sus trabajadores. Esto ha ocurrido y
ocurre, con frecuencia sin que los trabajadores puedan contar con el apoyo oportuno y
eficiente del Estado, el cual siempre debería estar presto a darlo. Ha sido y es también
el caso de aquellos empresarios que recibieron dólares del Estado, en los últimos años
de CADIVI, para importaciones que nunca hicieron o que hicieron de manera
fraudulenta, por ejemplo con sobrefacturaciones, con el fin de utilizar las divisas para la
especulación financiera y el enriquecimiento ilícito.

319
Algunas personas con altos cargos de dirección en los ministerios o en instituciones
del Estado, alegan que los trabajadores no están preparados para gestionar y que
primero deben prepararse para poder hacerlo. Lo cual, como dijimos anteriormente, solo
es parcialmente cierto, porque en el fondo, este planteamiento, solo sirve en muchos
casos de pretexto a muchos de quienes concentran el poder y tienen el monopolio de las
decisiones y el control sobre los recursos públicos, para ejercerlo de manera elitista,
buscando en primer término su propio beneficio y el de sus familiares y amigos. Esto
por lo general va acompañado de cierto porcentaje de arbitrariedad en las decisiones, así
como de algunos rasgos de clientelismo político, amiguismo, nepotismo, ineficiencia y
corrupción; pero no necesariamente se presentan todos estos vicios de manera
simultánea. En otros casos, esta actitud refleja una tremenda desconfianza en las
capacidades y potencialidades del pueblo que, sin embargo y a pesar de lo que ellos
creen, sí tiene la capacidad de aprender a gestionar. El problema es que en esos casos, y
si sólo de esto se tratara (lo cual ya sería grave de por sí), los funcionarios con
capacidad de decisión en el Estado no asumen la actitud consecuente de planificar y
destinar recursos para impulsar los procesos de autoformación colectiva, integral y
continua de los trabajadores, para la gestión.
La Revolución Bolivariana ofrece una valiosa oportunidad para que aprendamos a
gestionar de manera conjunta, tomando entre todos las mejores decisiones. La gestión
con orientación socialista permite que integremos las diferentes visiones del mundo y
de la vida, los diferentes saberes y conocimientos, las más variadas capacidades y
potencialidades, las necesidades y aspiraciones de los diferentes grupos humanos que
crean la riqueza social. De esta manera se puede lograr un mayor desarrollo humano
integral, satisfaciendo las necesidades materiales y culturales de toda la sociedad con
eficiencia y armonía con la naturaleza.
Solo así será posible acabar con la disyuntiva entre la satisfacción de las necesidades
humanas y la producción de riqueza subordinada a la reproducción del capital. En otras
palabras, es necesario liberar al trabajo de la alienación y explotación del capital y de
sus personificaciones en la sociedad venezolana y en su Estado, que aún sigue siendo el
viejo Estado burgués heredado de la IV República, como lo dijo el Presidente Chávez
en el programa de la Patria 2013-2019, para transformarlo en el más formidable medio
de realización social e individual, en generador de bienes, servicios y conocimientos;
para poder así satisfacer de manera creciente, las necesidades materiales y culturales de
la población, afianzar la independencia y soberanía del país y avanzar hacia el logro de
la mayor suma de felicidad posible para toda la nación.
Esto solo se convertirá en realidad si, por medio de la lucha de clases organizada y
consciente, persistente, valiente y abnegada contra el sistema del capital y sus
personificaciones, los trabajadores y las trabajadoras de todo tipo y las comunidades
organizadas, conquistan su participación decisoria en la gestión del Estado, la economía
y las empresas, con lo cual se transforman en verdaderos sujetos integrantes del Poder
Popular.
Para que esta gestión tenga orientación socialista necesariamente debe abarcar de
manera sistémica: a. La elaboración, ejecución y control del presupuesto anual de la
empresa, institución u organización social, b. La elaboración, ejecución y control de los

320
planes de trabajo anual y mensual, c. La compra de los insumos, materias primas,
maquinaria, etc., utilizados en el proceso de trabajo, d. La distribución e intercambio de
los productos, bienes o servicios de que se trate y la definición de sus precios o
características de intercambio, e. La distribución de los excedentes y/o beneficios
generados en el proceso social de trabajo.
Es necesario tener siempre presente que, aunque la Constitución de la República
Bolivariana de Venezuela, las Leyes del Poder Popular y la Ley Orgánica del Trabajo,
los Trabajadores y las Trabajadoras (LOTTT), crean condiciones jurídicas muy
favorables para la lucha de clases por la gestión socialista, aquellas por sí solas no
cambian la realidad; y que por regla general y como una ley histórica, nadie cede el
poder de decidir a otros de manera voluntaria, y menos aún como dije anteriormente,
cuando se involucran intereses económicos (manejo de presupuestos) y privilegios
sociales, que pueden ser enormes (miles de millones de dólares), medianos o pequeños,
según los niveles del Estado o la economía de que se trate, los cuales deberán
desaparecer en el tránsito del capitalismo al socialismo en Venezuela, en beneficio del
pueblo venezolano y su suprema felicidad social.
¡La participación de los trabajadores y el pueblo en la gestión deberá ser conquistada
por los trabajadores mismos!
¡VIVA LA LUCHA POR EL PODER POPULAR Y EL SOCIALISMO EN AMÉRICA
LATINA Y EL CARIBE!
FIN

321
EIXO 3
Poder Comunitário,
Movimentos
Indígenas e
Afrodescendentes

322
A RE-EXISTÊNCIA DOS MOVIMENTOS INDÍGENAS NA BOLÍVIA

Bruna Cardoso151

RESUMO
Neste trabalho pretendemos discorrer sobre a questão do movimento indígena na
Bolívia, enfatizando sua história como parte da transformação do país, suas lutas e
memórias de resistência, pois através da insurreição do movimento um novo tempo se
instaura na Bolívia: um tempo plurinacional. Dissertamos sobre o papel do Estado como
agente de poder, e a colonialidade que ainda permanece em muitas práticas e mentes. A
partir da geograficidade enfatizamos a importância do território como um elemento de
conflito, de (re)significação, de existência e de um conjunto de vivências. Destacamos o
movimento indígena boliviano, pois suas ações territoriais que se espacializam no
território boliviano juntamente com outros movimentos, construindo assim novos
espaços para a transformação da realidade vivida, tornando-se os sujeitos protagonistas
das ações territoriais do movimento. Os movimentos sociais detêm uma participação
extremamente importante neste trabalho, pois são detentores da constituição da própria
existência e das ações em defesa de seus direitos em um espaço de conflitualidades.
Trata-se de um território de resistência, na busca de afirmação e reconhecimento de sua
identidade. A questão da organização política nos remete à ideia de um agrupamento
que se faz através de ações territoriais, principalmente estabelecidas pelos movimentos
socioespaciais e socioterritoriais, dentre eles os movimentos indígenas.

Palavras - Chave: 1)Bolívia; 2)Movimentos Indígenas; 3)Território

INTRODUÇÃO
A partir da geograficidade enfatizamos a importância do território, como um
conjunto de vivências, objetivando compreender neste a importância do território para
os movimentos indígenas bolivianos. Destacamos que são algumas preocupações pelo
qual pretendemos aprofundar durante a pesquisa no mestrado.
Os movimentos sociais detêm uma participação extremamente importante neste
trabalho, pois são detentores da constituição da própria existência e das ações em defesa
151
Discente do Programa de Pós-Graduação em Geografia pela Universidade Federal da Grande
Dourados.

323
de seus direitos em um espaço de conflitualidades. Trata-se de um território de
resistência, na busca de afirmação e reconhecimento de sua identidade. A questão da
organização política nos remete à idéia de um agrupamento que se faz através de ações
territoriais, principalmente estabelecidas pelos movimentos socioespaciais e
socioterritoriais, dentre eles os movimentos indígenas.
Abordarmos sobre os movimentos indígenas na América Latina com o passar
dos anos, vêm se firmando em busca de seus direitos e reconhecimento como povos
originários.
A partir do processo de colonização da América Latina se constitui uma herança
cultural européia muito forte. As sociedades aqui existentes antes das colonizações da
América apresentavam estruturas sociais bem concretas, diferentemente do que os
europeus acreditavam. Ainda assim não foi possível esquivarem-se das encruzilhadas da
colonização.
A Bolívia foi por muito tempo explorada brutalmente pela colonização
espanhola. Esse tempo foi cruelmente marcado por preconceitos, invasões territoriais e
escravidão ou pongueaje.
Configura-se como um país com características particularmente complexas ao
qual se entrelaça a sua formação histórica, pelos constantes conflitos políticos e sociais,
ligados às relações de classes, à economia, às etnias existentes, a governos e militares.
Multiplicadores que fizeram com que surgissem ações revolucionárias contra a
hegemonia das classes dominantes bolivianas.
No presente trabalho utilizamos como exercício de investigação os movimentos
indígenas visando a compreensão da sua participação política na Bolívia.
Segundo Miguel (2008, p.78), o movimento indígena boliviano adota formas que
possibilitam a constituição do espaço político, por meio da “[...] transformação das
práticas estatais dominantes, o aprofundamento da cidadania e a inserção de atores
sociais, até então excluídos, no interior do sistema político, de modo a institucionalizar
a diversidade cultural que caracteriza o país”, tornando-se agentes transformadores do
espaço. E a Geografia, como uma ciência que estuda o território elemento de conflito,
de resignificação e existência principalmente para os povos indígenas, se faz, assim:

A Geografia alcança neste fim de século a sua era de ouro,


porque a geograficidade se impõe como condição histórica, na
medida em que nada considerado essencial hoje se faz no
mundo que não seja a partir do conhecimento do que é

324
Território. O Território é o lugar em que desembocam todas as
ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas
as fraquezas, isto é onde a história do homem plenamente se
realiza a partir das manifestações da sua existência. A Geografia
passa a ser aquela disciplina mais capaz de mostrar os dramas do
mundo, da nação, do lugar. Santos (2002, p. 9)

Através das geograficidades podemos destacar que a concepção de espaço pode


ser usada por diversas formas, mas se não bem explicitada pode se tornar confusa.
Segundo Fernandes (2005, p.274):

[...] espaço social está contido no espaço geográfico, criado


originalmente pela natureza e transformado continuamente pelas
relações sociais, que produzem diversos outros tipos de espaços
materiais e imateriais, como por exemplo: políticos, culturais,
econômicos e ciberespaços.

No trabalho empregaremos a expressão de movimentos sócio-espaciais que,


segundo Fernandes (2005, p.278):

Da mesma forma como alguns movimentos produzem e


constroem espaços, também se espacializam e possuem
espacialidades. A produção ou a construção do espaço acontece
pela ação política, pela intencionalidade dos sujeitos para
transformação de suas realidades. Os espaços políticos são
reproduzidos pelo movimento da ação, constituindo a
espacialização. Os conteúdos desses espaços são manifestados
por suas inerências: a espacialidade e a espacialização são
propriedades do espaço em seu movimento.

Destacamos o movimento indígena boliviano, pois suas ações territoriais se


espacializam no território boliviano juntamente com outros movimentos, constroem
assim novos espaços para a transformação da realidade vivida, tornando-se os sujeitos
protagonistas das ações territoriais do movimento.
Ainda segundo Fernandes (2005), esse processo é o mesmo que acontece com
um território. Ocorre uma transformação de espaços para territórios, onde eles se
territorializam, são territorializados e desterritorializados e se reterritorializam, levando
assim, na sua territorialidade, as identidades territoriais organizando uma
pluriterritorialidade. A mudança de um espaço para território se faz por meio da
conflitualidade, os enfretamentos entre o saber e o fazer político que podem conquistar e
controlar territórios. O território, deste modo, é um espaço de relações infinitas e
marcantes. No entanto, quando partimos da idéia de realizar uma análise geográfica dos
movimentos sócio-políticos, preocupamo-nos com ações e relações que são

325
fundamentais para compreender os espaços e territórios produzidos ou construídos pelos
movimentos.

A Bolívia e o tempo
A Bolívia é o país mais pobre da América do Sul e o segundo mais pobre na
América Latina depois do Haiti. Os povos indígenas são a maioria na Bolívia, sendo
que os quechuas são 2.5 milhões, os aymaras são 1.5 milhões e outras 34 etnias que
juntas somam um total de um milhão.
Apesar de os indígenas terem sofrido extrema repressão por causa das rebeliões
que promoveram devido a anos de escravidão, de mortes de seus povos, da imposição
cultural de pagamento de impostos aos espanhóis, destacamos os casos de Tupac
Katari152 e Bartolina Sisa153. Ambos conseguiram deixar o exército espanhol abalado,
enfraquecendo-o, resultando no processo de pseudo-independência da Bolívia,
principalmente pelos criollos que tiveram papel essencial nesta batalha e se tornariam
parte da nova classe média boliviana na qual almejavam o poder.

1 - Figura Divisão social na Bolívia. Fonte: www.katari.org


A partir da figura 1 podemos observar que a pseudo-independência serviu tão
somente como oportunidade para os criollos chegarem ao poder. Além de saquearem os
territórios dos indígenas, os criollos sancionaram leis em que os indígenas tinham que

152
Julián Apaza adotou o nome de Tupac Katari em homenagem a Tupac Amaru. Lutou pela liberdade
dos indígenas diante dos espanhóis. Mais informações em www.katari.org
153
Companheira de Tupac Katari. Lutou pela emancipação dos indígenas. Mais informações em
www.katari.org

326
comprar suas próprias terras novamente, proporcionando assim a concentração de terras
nas mãos de poucos.
A Guerra Federal de 1899 foi então a busca de um novo eixo econômico
boliviano, entre os conservadores donos das minas de prata de Sucre contra os liberais
donos do estanho que viviam na redondeza de La Paz, onde seria o novo eixo liberal
boliviano.
Economicamente destacamos o monopólio do minério pelos barões do estanho
sobre o capital. Assim como a crise de 1929, mais um fator deixou resquícios no Estado
boliviano, já em decadência e com pouca legitimidade.
Depois de alguns problemas na fronteira154 com o Paraguai, o então presidente
Salamanca155, com o apoio da burguesia boliviana e sem nenhuma tentativa de
negociação com os paraguaios, embora sem qualquer tipo de ameaça contra os
bolivianos, inicia a Guerra do Chaco. O exército boliviano, constituído quase todo por
indígenas, vai para uma guerra que não é deles, mas de interesses das multinacionais
Standard Oil dos Estados Unidos e a Royal Deustsch (ANDRADE, 2007). Uma guerra
que Salamanca e seus apoiadores acreditavam que seria rápida e vitoriosa, devido aos
treinamentos do exército boliviano e por ter uma população maior e uma economia mais
estável. Porém, o que podemos notar é que foi um longo massacre sobre os bolivianos,
pois além de perderem parte de seu território e muitas vidas para os paraguaios, os
bolivianos viram seu país mergulhado em uma profunda crise econômica e social depois
dessa guerra. Os problemas só aumentaram, como as desigualdades sociais exorbitantes
e a intensificação da discriminação dos brancos sobre os indígenas e mestiços. O
aumento do desemprego se elevou principalmente pelo fato de que muitos
permaneceram nas cidades e não mais nos campos depois da guerra. Assim sendo, uma
nova oferta de mão-de-obra surge e torna-se objeto de manobra dos interesses das
classes dominantes.
Os indígenas se levantavam indagando sobre os sangues derramados de muitos
deles, exigindo seus direitos, principalmente sobre seus territórios.
Com o decreto de sindicalização sendo obrigatório, sob a presidência de Toro156,
possibilitou a organização nacional dos trabalhadores bolivianos.

154
No Chaco Boreal descobriram campos de petróleo no qual resultou o conflito entre os países.
155
Daniel Salamanca Urey foi presidente da Bolívia de 1931 a 1934.
156
David Toro Ruilova foi presidente da Bolívia de 1936 a 1937.

327
Na cidade de Cochabamba surgem os primeiros movimentos socioterritoriais,
em que pode-se desenvolver uma relação política com outros movimentos
socioterritoriais, como o de trabalhadores mineiros e trabalhadores das cidades além de
intelectuais.
Podemos enfatizar, segundo Rivera (1984), que a partir da Guerra do Chaco o
“povo” começa a participar dos discursos políticos tornando-se interlocutor, através de
convocatórias organizadas por sindicatos do território do Vale de Cochabamba e pelos
movimentos comunitários do território Altiplano. O indigenismo fortalece, se tornando
respeitado pelos movimentos estudantis e pelas federações obreras.
No entanto, o pós-guerra inicia-se com as organizações sindicais dos mineiros,
mestiços e indígenas campesinos que se organizam para reivindicarem seus direitos e
seus territórios que lhes foram saqueados diante de uma sociedade constituída por
classes e totalmente desigual.
Segundo Andrade (2007), devido aos acontecimentos históricos e políticos que
vinham ocorrendo e que ainda permaneciam nas memórias dos bolivianos antes mesmo
de abril de 1952, destacamos o tramado golpe de Estado planejado pelo partido político
Movimento Nacionalista Revolucionário (MRN) e por militares do próprio governo.
Então 9 de abril não foi diretamente o ponto de explosão do processo revolucionário
boliviano, mas um incidente que fazia parte de anos de contradições existentes na
sociedade boliviana. A participação das massas não era esperada e fazia com que
mudasse totalmente a ocasião e a atitude do movimento. Todavia, dirigentes do MNR
estrategicamente tentaram recuperar o controle sobre a situação, buscando conter o
caráter revolucionário e assim reorganizar-se institucionalmente.
Na revolução de 1952 o direito ao voto foi dado a todos os bolivianos,
independentemente de serem alfabetizados ou não, assim como aos proletários e aos
indígenas. Tentava-se com a revolução (re)construir uma nova Bolívia, através da luta e
do sangue por muitas vezes derramado de trabalhadores mineiros e indígenas A reforma
agrária foi uma das medidas mais visíveis e expressivas pelas muitas mobilizações dos
indígenas campesinos.
Segundo Regalsky (2003), a revolução de 1952 desencadeou uma insurreição
dos trabalhadores das minas, que colocou no poder o partido político MNR que tinha
ascendência entre os trabalhadores das minas. A partir de então inicia-se um período de
lutas campesinas, onde os primeiros sindicatos dos campesinos quechuas dos vales de
Cochabamba começam a reocupar territórios em processo de disputa. Mesmo que os

328
quechuas não tenham participado de forma direta da insurreição de 1952, eles
mantinham vínculos com os trabalhadores das minas, assim os quechuas conseguiram
se manter informados do que acontecia na insurreição, obtendo principalmente a
informação de quando o exército foi dissipado, tornando possível a ação territorial dos
movimentos indígenas na invasão de territórios dos quais estavam sob o poder dos
latifundiários.
Com a insurreição consolidada, os quechuas constituem de forma notória uma
grande mobilização nos vales de Cochabamba, com a invasão territorial e a expulsão
dos fazendeiros, retomam seus territórios e reterritorializam-se. Em agosto de 1952 tem
início a Federação de Campesinos de Cochabamba, que almejam a construção de uma
comissão para que possam efetuar estudos sobre a reforma agrária. O sindicato
campesino torna-se forte nos campos, ao ponto de pacificar e resolver conflitos. O MNR
encontrava-se diante de campesinos que contavam com o apoio dos trabalhadores da
cidade e dos mineiros que exigiam a devolução de seus territórios sem direito a
indenização ou dos fazendeiros que tinham perdido suas terras e queriam restituições. O
partido encontrava-se sem legitimidade diante da situação.
Em 2 de agosto de 1953 o MRN promulgou o decreto sobre a Reforma Agrária,
no entanto os conflitos continuavam, pois essa reforma não ocorreu de forma igual, uma
vez que haviam relações de clientelismo na Reforma Agrária pelos sindicatos aliados ao
MNR e também devido a falsas promessas de fazendeiros, alianças em troca de terras e
ameaças.
Segundo Regalsky (2003, p.90) podemos notar que:

La ley de La Reforma Agraria otorgó al Presidente de la


Repúplica el derecho a firmar él mismo cada uno de los títulos
de tierras que emitía la Reforma Agraria. Paz Estenssoro, en un
esfuerzo por asegurarse el apoyo campesino, aceleró el papeleo
de la Reforma Agraria [...]

Assim, conseguiu-se um forte apoio dos campesinos indígenas, gerando


afastamento em relação aos mineiros. O MNR estava conseguindo manobrar os
sindicatos campesinos para que ficassem sob sua tutela, no qual pretendia-se estabelecer
a reconstrução do Estado juntamente com a burguesia.

329
Com o General Barrientos157 como presidente ocorreram modificações nos
sindicatos campesinos, pois as relações com as bases e subcentrais vão se perdendo,
assim como as estruturas que ficam abaladas e as reivindicações que eram constituídas
entre ambos. Barrientos manipulava os sindicatos campesinos de acordo com os seus
interesses, ainda continuava a existir na Bolívia a herança do pensamento oligárquico,
além do Estado Liberal divisor da reconstrução social.
O Pacto Militar-Campesino (PMC), segundo Rivera (1984), [...] “fue diseñado
como una estructura institucional de enlace entre el sindicalismo para-estatal y el
ejército, para sustituir a la articulación sindicato-partido-Estado vigente durante el
período del MNR”. O PMC desterritorializou as organizações sindicais pelas milícias,
foi recuperada a maioria das armas da Guerra do Chaco e se reconstituiu o exército que
teria um papel de pacificador segundo Barrientos. Porém, o que de fato ocorrem é que,
passaram a deter o pleno poder sobre os sindicatos campesinos que estavam totalmente
sob o comando do MNR. No entanto, não era possível que os movimentos campesinos
se mantivessem sob o comando do exército e tudo permanecesse tranquilo, mas
aparentemente foi o que aconteceu, pois o General Barrientos possuía grande carisma e
humildade, falava castelhano e quechua era de Cochabamba. Conseguiu conquistar o
apoio dos sindicatos campesinos indígenas até então, que participavam ativamente das
decisões referente ao Estado juntamente com Barrientos, principalmente no que referia
às questões agrárias.
Com o golpe de Estado comandado por Hugo Banzer158 no qual contou com
ajuda do Comité Cívico de Santa Cruz, a Bolívia se encontrava mergulhada em
profundas crises, com governo corrupto e ditador, que de forma desleal e aterrorizante
repreendia os movimentos populares. Nos vales de Cochabamba notava-se que os
sindicatos se reconfiguravam diante das debilidades econômicas vivenciadas até então.
O aumento dos preços dos alimentos de base foi o que gerou uma grande manifestação
pelos campesinos. Fizeram uma grande ação territorial na rodovia que liga Cochabamba
a Santa Cruz de la Sierra. Em Tolata e Epizana encontrava-se a concentração do
movimento fortemente, os campesinos queriam então a presença de Banzer para que
pudessem negociar novas formas de relação com o Estado. Todavia o governo não
atende ao chamado dos campesinos.

157
René Barrientos Ortuño foi presidente da Bolívia de 1964 a 1965 e de 1966 a 1969.
158
Hugo Banzer foi presidente da Bolívia de 1971-1978.

330
Em janeiro 1974 ocorreu um dos massacres mais sangrentos na história da
Bolívia nos vales cochabambinos, em Tolata e Epizana. O massacre foi o início da
ruptura com o PMC.
Com tantos massacres e exploração indígena, se consolidava a força da nova
classe burguesa boliviana, a de Santa Cruz de la Sierra, ligada ao agronegócio e à
exploração de gás, seu principal interesse, cujo Estado favoreceu à burguesia, devido às
colaborações no golpe de estado. Com um retrocesso geral na Bolívia e atendendo
somente aos anseios da nova elite boliviana, Banzer contribuiu para consolidação dessa
elite no poder, durante o regime neoliberal. (FUENTES & HARNECKER, 2008)

A insurreição do movimento indígena boliviano


Os movimentos sociais são sujeitos e atores da mudança histórica, pois são
participantes políticos no qual criam propostas para transformação das estruturas
impostas pelo Estado e nos incitam por questões sobre a identidade nacional. Tais
movimentos são atores plurais, pois buscam mudanças culturais, políticas e sociais que
liberem seus interesses e que os tornem reconhecidos.
A mobilização de recursos e identidades sócio-culturais como identificador das
ações coletivas do movimento indígena boliviano, destaca a produção de significados
ou símbolos, bem como a estrutura e organização das ações coletivas. Desta forma os
discursos e as imagens são parte das ações territoriais dos indígenas, pois são meios de
conquistar seus objetivos de geografar que, segundo Porto (2003), a Geografia se torna
um verbo, um ato de marcar o território e para isso a wiphala (bandeira indígena) torna-
se parte deste ato no qual está carregado de significados históricos, como os ponchos
(vestimenta das autoridades), la hoja de coca, a pollera (saia) e os awayus
multicoloridos (peça têxtil tradicional das mulheres indígenas), sombreiros e a q´uarwa
(“arma” indígena) Romero (2007), que seriam os símbolos da identidade indígena
coletiva, revivida através de movimentos originários.
Tais costumes são parte do geografar territorialmente, a fim de alcançar de
forma estratégica o reconhecimento plurinacional da Bolívia.
Historicamente o movimento indígena boliviano esteve em vários conflitos
como no de Tupaj Katari, que até em nossos dias atuais influência na idéia de que o
território é sagrado.
Com a revolução de 1952, a Bolívia passa por grandes reformas, onde podemos
destacar o direito à participação política dos indígenas através do voto universal. Depois

331
da revolução nacional e da tomada de poder da classe média boliviana, se destacam
algumas lideranças indígenas Aymaras, Felipe Quispe e Evo Morales que buscavam
transformações sociais e econômicas.
Em 1979 se constitui oficialmente a Confederación Sindical Única de
Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB), uma organização de cunho nacional
étnico e campesina, que conseguiu romper com o PMC e com o Estado, depois se
juntou com a Central Obrera Boliviana (COB). Houve algumas divergências entre
CSUTCB e a COB devido ao ‘obrerismo’.
A partir de Regalsky (2003) destacamos que através de CSUTCB se inicia um
novo período de independência política de classes na Bolívia, assim como a luta contra
as heranças coloniais que se prolongavam no Estado boliviano. Em 1995 se estabelece o
instrumento político devido à iniciativa da Federación Sindical Única de Trabajadores
de Campesinos de Cochabamba. Nesses anos todos a CSUTCB foi quem desempenhou
a função de organizar os movimentos indígenas.
Em 2000 a Bolívia revive o surgimento do movimento indígena, com o apagar
do movimento operário em meados de 80 e, no limite de tantas desigualdades do
modelo neoliberal, os aymaras, os cocaleros, com a liderança de Felipe Quispe e do Evo
Morales, proporcionando a insurreição destes agentes sociais que apresentam maior
força de mobilização e ações sociais e territoriais.
As participações das comunidades agrárias e das federações sindicais estão
criando relações de poder que deixam o Estado em segundo plano, os movimentos
indígenas de insurreição vão revivendo e se afirmando aos poucos com um novo projeto
político que enfatiza sua diversidade cultural. Afirmando-se como maioria na Bolívia e
reconstruindo suas próprias relações e constituições de poder político e territorial.
Com o acúmulo de momentos de ações e resistências socioespaciais e
socioterritorias, surge um novo momento de insurreição do movimento indígena
boliviano, através da reconstrução e reafirmação de identidade dos indígenas e com o
protagonismo desses atores sociais.
A “guerra da água” em Cochabamba é o levantar do povo boliviano e do
movimento indígena, pois lutaram contra o aumento dos preços da tarifa de água com
um reajuste de 300% pela multinacional Bechtel que administrava parte da empresa
Águas Del Tunari. Discutia-se o valor dos recursos que eram sociais e naturais, pois
tudo se tornara mercadoria frente ao governo neoliberal. É importante salientar que foi a

332
primeira vitória do povo boliviano, depois de anos de subordinação. O apoio entre o
campo e a cidade foi essencial para a conquista da vitória.
As ações territoriais promovidas pelo movimento indígena de 1999 a 2001
legitimaram a capacidade de poder do movimento, desconstruindo as certezas dos
partidos políticos conservadores que manipulavam a democracia boliviana.
Seguindo esta vertente, o movimento indígena, em 17 de outubro de 2003,
fundou uma Agenda Política de Prioridades: Criar a Assembléia Nacional das
Organizações e Movimentos Sociais, feita para levantar a unidade dos povos bolivianos
para que se pudesse desempenhar a defesa da soberania nacional e originar as bases de
construção de um novo Estado e de uma nova Bolívia que começou com a vitória do
então presidente Evo Morales Ayma, em dezembro de 2005.
Deste modo, aflora-se cada vez mais entre os indígenas a atribuição deste
território sagrado, reafirmando a importância da diversidade como parte da nação
boliviana e constituindo uma relação que os indígenas têm de respeito e admiração por
la Madre Tierra, uma vez que verdadeiramente pertencem a essa Abya Yala.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Bolívia torna-se marcante dentro do processo histórico latino- americano,


sendo regado por conflitos sociais, onde juntamente com outros países marcaram e
ainda marcam de sangue a formação histórica da América Latina.
Podemos compreender que, a partir da formação histórica-política boliviana,
levantam-se vários movimentos sociais que lutam contra as desigualdades impostas a
eles e contra as invasões de seus territórios. Esse despertar torna-se memorável dentro
de seus territórios, pois são parte da identidade originária das etnias que vivem na
Bolívia (Fernandes, 2005).
Ressaltamos que a participação que os movimentos indígenas tiveram no
processo histórico-político boliviano foi decisivo, pois a partir de então vão se
reconfigurando politicamente diante da sociedade burguesa e de seus interesses. Suas
ações são as lutas em defesa de seus territórios carregados de relações de identidade e
culturais, pois são sagrados.
Por mais que muitas questões deste trabalho mereçam análises mais profundas,
finalizo este trabalho com o seguinte pensamento que em nossa América Latina resume-

333
se nesta canção de Calle 13 Latinoamérica “não podem comprar nossa alegria, pois
aqui se respira luta e vamos caminhando”...

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Everaldo de Oliveira. A Revolução boliviana. São Paulo: Editora


UNESP, 2007.

FERNANDES, Bernardo Mançano. Movimentos socioterritoriais e movimentos


socioespaciais: Contribuição teórica para uma leitura geográfica dos movimentos
sociais. OSAL - Observatorio Social de América Latina. Año 6 no. 16 (jun. 2005).
Buenos Aires: CLACSO, 2005.

FUENTES, Federico; HARNECKER, Marta. MAS-IPSP de Bolivia a instrumento


político que surge de los movimientos sociales. Año de 2008.

LINERA, Álvaro García. Os movimentos indígenas na Bolívia.


DIPLOMACIA, ESTRATEGIA Y POLÍTICA- ABRIL/JUNIO de 2005.

MIGUEL, Bruno Siqueira Abe Saber. A inserção dos movimentos indígenas na arena
política boliviana: novos e velhos dilemas. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 2, n. 1,
p. 68-84, jan./jun. 2008.

PORTO GONÇALVES, Carlos Walter. A geograficidade do social: uma contribuição


para o debate metodológico sobre estudos de conflito e movimentos sociais na América
Latina. En publicación: Movimientos sociales y conflictos en América Latina. José
Seoane. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Buenos Aires,
Argentina. Programa OSAL. 2003. 288 p. ISBN: 950-9231-92-4

REGALSKY, Pablo. Etnicidad y clase: El Estado boliviano y las estrategias andinas de


manejo de su espacio. CEIDIS / CESU-UMSS / CENDA e Plural. La Paz, 2003.

RIVERA CUCINCANQUI, Silvia. Oprimidos pero no vencidos. Luchas del


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ROMERO, Carlos Cortez. Movimentos Socias da Bolivia. América Latina en


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SANTOS, Milton. O dinheiro e o território. In: SANTOS, Milton; BECKER, Bertha;


SILVA, Carlos Alberto Franco da; et alii. Território, territórios: ensaios sobre o
ordenamento territorial. Niterói: Programa de Pós-Graduação em Geografia da
Universidade Federal Fluminense; Associação dos Geógrafos Brasileiros, 2002.

TAPIA, Luis. “Una reflexión sobre la idea de Estado plurinacional.” OSAL, Buenos
Aires: CLACSO. Año 2007 VIII, Nº22, septiembre. Disponible en:
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal22/D22Tapia.pdf.

334
Análisis del Discurso de la Comandanta Esther: Expresión de la lucha de la mujer
zapatista frente la hegemonía patriarcal

María I. Ibarra
Universidad Iberoamericana, México D.F, ignacia.ibarra@gmail.com

Resumen:

El discurso llevado a cabo por la comandanta Esther el día 28 de Marzo el año 2001
frente al Congreso de la Unión- en el marco de la Marcha del Color de la Tierra del
EZLN-, marca un hito como fractura de la estructura hegemónica patriarcal de la
nación. Su voz fue la de los indígenas pero también de las mujeres, y a partir de sus
palabras es que se puede comprender la opresión y discriminación de diferentes sectores
de la población mexicana. A partir de este caso en particular, visto desde una óptica
feminista postcolonial, se analiza la posición de la mujer indígena dentro de la
estructura de poder. El discurso de la comandanta permite reconocer los puntos que los
zapatistas consideran fundamentales de tomar en cuenta en términos de igualdad y
justicia (hacia mujeres y hombres por igual y a la totalidad de la población indígena),
conceptos que se han venido trabajando en el movimiento sobre todo a partir de la
promulgación de la Ley Revolucionaria de Mujeres llevada a cabo en diciembre del año
93 (incluso antes del levantamiento del 1 de Enero de 1994).
Palabras Claves: Movimiento Zapatista; Feminismo Postcolonial; Género; Poder; Ley
revolucionaria de mujeres

1. Introducción
“Se taparon la cara para hacerse visibles… y les vimos” (José Saramago)
El año 2001, el Ejército Zapatista de Liberación Nacional (EZLN) realizó la “Marcha
del Color de la Tierra”, una movilización que duró 37 días recorriendo
aproximadamente seis mil kilómetros, desde Chiapas hasta el Distrito Federal. La
movilización tenía como objetivo impulsar el cumplimiento de los Acuerdos de San
Andrés y propiciar de esa manera el diálogo con el Gobierno de ese entonces (Vicente
Fox al mando) y a quien se le exigía tres señales: la aprobación de la ley COCOPA159
(en su versión original) por el Congreso de la Unión; la liberación de los presos
políticos zapatistas en el país y el retiro del ejército de siete posiciones claves de la zona
de conflicto (Olivera 2004: 158). Esta marcha que para muchos marca un antes y
después en la historia política de México, visibiliza no sólo la lucha de los zapatistas y
sus demandas, sino que la de toda una población indígena que empatiza con el
movimiento haciéndose cómplice de su marginación y de sus peticiones.
Un momento importante dentro de las actividades al arribar al DF fue la del acto
político en el zócalo de la Ciudad de México, en donde el subcomandante Marcos se
dirigió a toda la nación que lo escuchó detenidamente cuando habló sobre los
padecimientos que estaban sufriendo los pueblos indígenas.
Pero el momento más importante vendría después, cuando el Congreso Nacional accede
a recibir al EZLN y a escuchar qué era lo que tenían que decir. Así describió la situación
un medio de prensa internacional en aquel entonces:

159
Comisión de Concordia y Pacificación

335
Después, tras amenazas de irse con las manos vacías, vino el triunfo político. En
un hecho sin precedentes, el Congreso mexicano recibió por la puerta principal a
la dirigencia zapatista que con sus trajes tradicionales y pasamontañas ocuparon
los sillones usualmente destinados a los miembros del gabinete. En la máxima
tribuna del país, la comandante Esther, con la misma fuerza con que afirmó
"sufrimos tres veces porque somos mujeres, somos indígenas y somos pobres"
dijo a los legisladores "venimos a que nos escuchen y a escuchar y a dialogar".
(http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/latin_america/newsid_1254000/1254907.stm)

Se le da una “bofetada” a la lógica tradicional en el momento de enfrentarse al


parlamento una mujer indígena- encapuchada- rebelde con una postura totalmente
antinómica, subiéndose al escaño y pronunciando un discurso que pone en valor el
proyecto zapatista, las leyes indígenas que consideran ellos indispensables de aprobar y
el trato hacia su población que se exige como esencial para poder convivir en un país
multicultural como es México.

Al alero de la inexorable reflexión antropológica surgen la siguiente pregunta: ¿De qué


manera rompe la estructura normativa y el orden hegemónico el discurso pronunciado
por la comandanta Esther en el Congreso Nacional el año 2001?

A partir de interrogante, se plantean los siguientes objetivos de investigación para este


artículo:

- Explicar el significado de aquella intervención vista desde una lectura desde el


poder y el género.
- Reconocer la relevancia de la promulgación de la ley revolucionaria de mujeres
del EZLN en tanto construcción de nuevas relaciones sociales entre individuos.
- Descubrir la categoría de mujer indígena que manifiesta la Comandanta Esther.

Para responderlos, se llevará a cabo un análisis bibliográfico y teórico desde una


perspectiva feminista, para así desentrañar y analizar la situación expuesta.

2. Marco teórico

La crítica feminista hacia la antropología constituye el análisis de la omisión del papel


de la mujer en el funcionamiento de la sociedad. ¿Cuál es el fundamento tras aquella
estructuración del género femenino bajo un control que lo organiza y somete bajo una
dominación hegemónica?
Siempre se consideraron los asuntos de las mujeres como si fuesen peyorativos, poco
relevantes ya que se encuentran fuera de la dimensión pública, donde se llevan a cabo
las principales actividades y donde emergen las instituciones que constituyen la
estructura de la integración social. Así también lo pudo observar Bourdieu cuando
realizó su trabajo de campo con una tribu bereber en la región de Kabilia en Argelia:

Se comprende que todas las actividades biológicas: comer, dormir, procrear,


estén excluidas del universo propiamente cultural y relegadas en aquel asilo de
la intimidad y de los secretos de naturaleza que es la casa, mundo de la mujer,
quien está consagrada y excluida de la vida pública (Bourdieu 2000: 11).

336
Bourdieu intenta descifrar los códigos tras las prácticas arraigadas en una sociedad, y se
cuestiona también en qué momento nos hacemos conscientes de ellas cuando se está
inmerso en una comunidad. Nos movemos a partir de ese conocimiento implícito que
nos otorga la vida en comunidad que nos obliga a desplegarnos cotidianamente en un
grupo social en donde existen aquellos significados que se transmiten silenciosa o
discursivamente a partir de mecanismos de control que permiten la convivencia.
Surge entonces el cuestionamiento de las construcciones sociales en torno al género en
los estudios, ya que éstas refuerzan y dan pie a construcciones simbólicas que
reproducen las relaciones de poder y dominación de los hombres por sobre las mujeres.
Han habido diferentes posiciones con respecto al origen de la dominación masculina por
sobre el género femenino. Hay quienes plantean que esto se debe a causas naturales, lo
cual se ligaría a lo que se conoce como “determinismo biológico”. Esta noción se
convierte en un instrumento de reproducción del poder hegemónico y patriarcal, ya que
fomenta la percepción de que no hay cabida para las particularidades.

Este imaginario social construido desde el mundo occidental perpetúa la idea de que
existe la categoría de un ser humano “más fuerte” que otro, y de esa manera se tiende a
caer, con mucho riesgo, en la naturalización de un sistema cultural que permanece en
un status quo que menosprecia a la mujer deliberadamente. Sin embargo, gracias a
trabajos etnográficos realizados en diferentes comunidades, se ha demostrado que la
división social entre hombres y mujeres está socialmente construida, que no hay nada
realmente predeterminado por una categoría a priori. Investigaciones como la de
Margaret Mead en su estudio de tres sociedades de Nueva Guinea en 1935, que luego se
traduce en su libro “Sexo y Temperamento”, concluye que no existen determinaciones
inamovibles sino que por el contrario, la naturaleza humana es completamente maleable
y flexible. Todo lo que en occidente se concibe como “natural” puede ser deconstruido
y planteado de manera totalmente diferente en sociedades del otro lado del mundo.

"Los arapesh moldean a cada niño nacido en el seno de su sociedad, de acuerdo


con una aproximación de lo que ellos consideran que debe ser una personalidad
humana normal. (…) Les falta una concepción de la naturaleza humana como
algo necesitado de frenos y restricciones, (…) entienden las diferencias entre
sexos en términos de las implicaciones sobrenaturales de las funciones de macho
y hembra, sin esperar manifestaciones naturales de estas diferencias en las
cualidades sexuales. Por el contrario, consideran a hombres y mujeres como
innatamente pacíficos, responsables y dispuestos a colaborar, capaces y deseosos
de subordinar el yo a las necesidades de los que son más jóvenes o más débiles,
derivándose de esta conducta una mayor satisfacción. Han envuelto con deleite
esa parte de la paternidad que nosotros consideramos como específicamente
maternal, ese minucioso y delicado cuidado del niño y la generosa satisfacción
de verle progresar hacia la madurez". (Mead 1935: 159)

Por otro lado, George Murdock hizo una investigación sobre “Datos comparativos sobre
la división del trabajo por sexo” y plantea finalmente que las especializaciones no
necesariamente se deben a las diferencias físicas (Murdock, 1937), derribando de esa
manera pensamientos instituidos como verdades casi absolutas y por las cuales se regían
hombres y mujeres.

La subordinación femenina es una construcción social que se ha determinado como


orden establecido, las diferencias de género se perpetúan volviéndose aceptadas como

337
algo “natural”. Así lo afirma también Bourdieu cuando se refiere a esto en su importante
texto sobre “La dominación masculina”:

Más sorprendente todavía, que el orden establecido, con sus relaciones de


dominación, sus derechos y sus atropellos, sus privilegios y sus injusticias, se
perpetúe, en definitiva, con tanta facilidad, dejando a un lado algunos incidentes
históricos y las condiciones de existencia más intolerables puedan aparecer tan a
menudo como aceptables por no decir naturales. (Bourdieu 2000:11)

La búsqueda por encontrar incansablemente un orden social estructural que permita una
convivencia entre los individuos que componen una sociedad lleva a construir
simbolismos y representaciones mentales que posteriormente se vuelven “naturales”.
Por ello es la importancia de deconstruirlos para así poder reformularlos y
transformarlos, ya que aquellas conceptualizaciones permiten el desenvolvimiento de un
sistema extremadamente desigual e injusto, que luego se traduce en aspectos de la vida
cotidiana que lo único que hacen es oprimir al género femenino, consciente o
inconscientemente.

El género es un concepto acuñado políticamente por feministas que, en su


sentido político, constituye una categoría relacional que denuncia y devela la
subordinación impuesta por el sistema patriarcal a las mujeres (Paredes 2014:
61).

La importancia de la postura feminista como enfoque crítico es justamente el de


visualizar las diferencias estructurales naturalizadas que marcan a los investigadores
como sujetos de observación.

El objeto de la ciencia social es una realidad que engloba todas las luchas,
individuales y colectivas, tendentes a conservar o a transformar la realidad y, en
particular, aquellas que tienen por objeto la imposición de la definición legítima
de la realidad y cuya eficacia propiamente simbólica puede contribuir a la
conservación o a la subversión del orden establecido, es decir, de la realidad
(Bourdieu 2007: 237).

Las estrategias institucionalizadas de coacción permiten que las propias perspectivas de


las mujeres sean tributarias de aquel imaginario patriarcal al que he hecho referencia a
lo largo de este texto. Sin embargo, en los últimos años ha habido un aumento
progresivo de posturas que, aunque se intenten silenciar, sacan a relucir las estructuras
que han provocado un sistema que reduce el pensamiento y acción de las mujeres a un
espacio de menor grado de importancia, lo cual a su vez actúa como soporte de
prácticas, creencias y representaciones que se reproducen continuamente. Esta
estructuración del pensamiento tiene por consecuencia inevitable la naturalización de la
opresión hacia el género femenino.

Epistemológica y metodológicamente, las antropólogas feministas reconocen a


las mujeres como un sujeto cognoscente y cognoscible. Reflexionan
ampliamente sobre las relaciones de poder entre la investigadora y las mujeres
que ésta desea conocer, proponiendo la intersubjetividad. Teóricamente, “las
antropólogas feministas están contribuyendo a redefinir (los) conceptos de
cultura, diversidad cultural y diferencia cultural” (Martha Patricia Castañeda,

338
2006: 40). Dos procesos han sido clave en el desmontaje teórico de estos
conceptos consustanciales al campo antropológico: éstos son la
desnaturalización y con ello la visibilización. (López Guerrero 2012: 195).

Aquí radica la importancia de la inclusión de la perspectiva feminista en la ciencia


social y por sobre todo en la antropológica que trabaja con la metodología de la
etnografía y la observación participante. Un enfoque holístico debe incluir,
esencialmente, las miradas de todo ser humano cualquiera sea su sexo. Dejar atrás las
clasificaciones binarias que anulen u omitan cualquier tipo de perspectiva por
considerarla menos importante o prescindible, sobre todo tomando en cuenta que la
etnografía tiene como principio el de observar todas las prácticas culturales que se
generen dentro de un grupo humano para conocer su comportamiento social, más allá de
las representaciones simbólicas- o si es así, dar cuenta de ellas objetivándolas.
El objeto de la ciencia social es una realidad que engloba todas las luchas,
individuales y colectivas, tendentes a conservar o a transformar la realidad y, en
particular, aquellas que tienen por objeto la imposición de la definición legítima
de la realidad y cuya eficacia propiamente simbólica puede contribuir a la
conservación o a la subversión del orden establecido, es decir, de la realidad
(Bourdieu 2007: 237).
Cuando aparece la perspectiva feminista la reflexión se hacía principalmente sobre la
emancipación de la mujer en función de la dualidad hombre/mujer, aunando todas las
diferencias que pudiesen existir dentro de la categoría “mujer”, no tomando en cuenta
otros factores como etnia, clase, religión, nación, etc. Se contrarrestaba el género
femenino con la condición masculina, subsumiendo a la ilusión de una opresión en
común.

Desde ese punto de vista, los estudios feministas post coloniales cuestionan las
categorías homogeneizantes del feminismo denominado “occidental” postulando a que
éste se ha vuelto excluyente y se ha situado como una narrativa articuladora que deja
fuera las perspectivas que están cruzadas por otros factores que no pueden estar
disociados de la condición de mujer. Los aspectos de identificación de los sujetos están
cruzados por muchas variables; no obstante, lo que muchas veces ha hecho el género es
superponerse o hasta obviar a estas, por ende no siempre ha sabido integrarlas a la hora
de comprender ciertas motivaciones.
Entonces, lo que ocurre es que actualmente las diferencias entre mujeres constituye un
factor fundamental a la hora de pensar desde una perspectiva feminista.

En ese marco, en este artículo se buscar responder a una pregunta fundamental al alero
del análisis de los planteamientos dichos por la comandanta Esther frente al parlamento
el año 2001: ¿cómo es que se posiciona una mujer indígena en el orden hegemónico
estructural?
Se reconoce la posición de las mujeres indígenas en su triple opresión sexista, racista y
clasista sin otro institucionalizado al que puedan discriminar, explotar, u oprimir (Hooks
2004: 49).
Esto también lo plantea Mercedes Olivera cuando plantea que,

Debe quedar claro que el racismo de etnia, clase y género, no solamente está
profundamente introyectado en las subjetividades de quienes las discriminan
directamente; sino que, también se asume como parte de la escala de valores

339
sociales vigente, por todas las personas que integran la sociedad, incluyendo a
l@s indígenas, quienes de una forma aparentemente natural asumen las
posiciones subordinadas que se les han asignado desde el poder
institucionalizado del Estado. Así, el racismo de etnia, clase y género es
expresión de las relaciones de poder entre indígenas y ladinos dentro de la
estructura clasista y sexista global del Estado, que naturaliza la discriminación
como parte intrínseca de las culturas y la sociedad”. La naturalización de la
discriminación racista oculta y justifica la segregación o estigmatización que se
impone desde el poder y que introyectamos tanto l@s indígenas como l@s no
indígenas (Olivera 2004: 57).

Los efectos del colonialismo no han sido borrados completamente. Este se instituye
como lugar de enunciación de una crítica a la modernidad en sus límites y puntos
ciegos.

Como es una negación sistemática del otro, una decisión furiosa de privar al otro
de todo atributo de humanidad, el colonialismo empuja al pueblo dominado a
plantearse constantemente la pregunta: ¿Quién soy en realidad?” (Fanon, 1961
(1983: 228)

Como plantea Fanon, es importante reflexionar en los efectos del colonialismo por
sobre la propia identidad y el sentimiento de inferioridad que genera en indígenas y las
mujeres (como sujetos de sometidos a una estructura de subyugación). Por eso, -en este
caso- es interesante analizar la toma de consciencia reivindicativa por parte del
movimiento zapatista que exigen el cumplimiento de sus derechos y que logran la
desalienación y construcción de un cuerpo legal que ha deconstruido las relaciones de
poder entre mujeres y hombres indígenas. Finalmente, lo que hace es desnaturalizar las
categorías dominantes y hegemónicas para así situarse, a nivel internacional, como la
revolución más importante que cierra el siglo XX.
3. Relevancia de la Ley Revolucionaria de Mujeres del año 1993
“Las indias también hemos levantado nuestra voz y decimos: nunca más un
México sin nosotras, nunca más una rebelión sin nosotras, nunca más una vida
sin nosotras” (Comandanta Ramona, 1997).
La Ley Revolucionaria de Mujeres, promulgada en diciembre del año 93 constituye,

Un referente simbólico muy importante para cientos de mujeres indígenas,


zapatistas y no zapatistas, que sueñan con la construcción de una vida digna para
ellas, sus hijas y sus nietas, sin embargo sigue siendo más un ideal a alcanzar
que una realidad vivida (Vuorisalo-Tiitinen 2011: 37).

Este documento legal que construyen los zapatistas (incluso antes del levantamiento del
año 1994 por lo existe la postura feminista que plantea que este es el punto desde donde
comienza la revolución) desarrolla puntos fundamentales para la potenciación de la
mujer a nivel individual y comunitario; en términos políticos, sociales, económicos y
biológicos. Así el movimiento zapatista se convertía en el primero en Latinoamérica en
incorporar las demandas de género como aspectos urgentes de desarrollo.

340
El trabajar estos temas en torno a la mujer, ha generado procesos de agenciamiento en
ellas a partir de su desenvolvimiento activo dentro de sus comunidades, transformando
las relaciones de poder entre las personas de diferente sexo. Las mujeres indígenas de
esta manera están enfrentando y revirtiendo las definiciones estereotipadas de la mujer
sumisa, conservadora, pasiva y obediente de los procesos impuestos por los hombres.
Muchas mujeres indígenas están ahora debatiendo en sus asambleas
comunitarias, en sus organizaciones regionales y nacionales, problemas producto
de las desigualdades de género, que antes ni siquiera eran conceptualizados
como tales, pues eran tan sólo la “vida misma”. La “doxa” se ha convertido en
discurso, dándose un paso fundamental para la modificación de las
desigualdades de género. Sin embargo, estamos tan sólo ante una primera etapa
de un proceso muy largo, en el cual las mujeres indígenas zapatistas y no
zapatistas están dando una lucha cotidiana para lograr que esos nuevos discursos
conlleven transformaciones reales en sus vidas. (Hernández, Zylbergberg 2007:
4)
La subordinación femenina es una construcción social que se ha determinado como
orden establecido, las diferencias de género se perpetúan volviéndose aceptadas como
algo “natural”, sosteniéndose en base a la creación de simbolismos y representaciones
mentales que se socializan constantemente.
El poder dar vuelta esta situación, lograr un reposicionamiento de la mujer y confirmar
lo que podría denominarse un “nuevo feminismo” a partir de lo que ha ocurrido con los
zapatistas es lo que parece interesante y exige un análisis antropológico. Esto sin dejar
de lado que de todas formas siguen existiendo enraizadas muchas prácticas en el
cotidiano que han vuelto complejo el camino para las mujeres, por lo cual no se debe
hacer una apología del movimiento ni una fetichización de su desarrollo.

Consideramos que ni las representaciones idílicas del EZLN como vanguardia


del movimiento de mujeres indígenas, ni las visiones satanizadas del mismo
como espacio “eminentemente patriarcal”, dan cuenta de la complejidad de los
procesos sociales de los últimos siete años, en los que las mujeres indígenas han
construido nuevos espacios de participación política en medio de procesos de
alianza, confrontación y negociación con el movimiento zapatista (Hernández,
Zylbergberg 2007: 3)

Esto hay que tenerlo claro a la hora de analizar los procesos que han desarrollado las
mujeres zapatistas, las cuales han debido sobrellevar y superar los obstáculos del
sistema, y también de los hombres que aunque dicen aceptar las demandas de las
mujeres, se les hace difícil cuando deben enfrentar que sus esposas o hijas tomen cargos
importantes y sean ellos los que deban cuidar a sus familias mientras ellas participan en
juntas o asambleas. A esto se suma los problemas de inseguridad de las mujeres que, al
ser primerizas al adquirir los cargos importantes y en la toma de decisiones relevantes,
no saben realmente cómo actuar y no reciben el apoyo necesario por parte de sus
compañeros.

En algunos pueblos no había o no hay el apoyo moral que algunas o muchas de


nosotras, como mujeres que apenas estamos participando o tomando un cargo,
necesitamos, mucho más si nos sentimos incapaces de ejercer el trabajo que nos
toca. Otra dificultad es quizá el temor de equivocarnos en los trabajos que nos
toca desempeñar, o el miedo de que los compañeros se burlen de nuestra
participación, cuando por supuesto que todos empezamos desde abajo (Nabil,

341
Integrante del Consejo Autónomo. MAREZ Tierra y Libertad. Revista de la
Escuelita Zapatista 2014: “Participación de las mujeres en el gobierno
autónomo”).

Sin embargo, las mujeres han sacado su voz, aunando también las de otras poblaciones
indígenas de todo el país. La Ley Revolucionaria de Mujeres permitió hacer visible la
lucha a nivel nacional e internacional, creando el espacio de confluencia que,

Les permitió a las mujeres indígenas tzotziles, tzeltales, tojolabales, choles y


mames de Chiapas, intercambiar experiencias y visiones del mundo con
zapotecas, huaves, mixes, chocholtecas de Oaxaca, tlapanecas, nahuas, amuzgas
y mixtecas de Guerrero, con las purépechas de Michoacán ócon las huicholas de
Jalisco (Hernández, Zylbergberg 2007: 8)

De alguna manera, esta voz que toman y significan las zapatistas representa las ideas de
cientos de mujeres- organizadas o no- que estaban buscando participar en la lucha por
su territorio y sus derechos.

Para julio de 1994, mujeres indígenas organizadas en cooperativas artesanales y


productivas (cómo J’pas Joloviletik, OIMI, J´pas Lumetik, Nan Choch e
ISMAM), miembras de organizaciones indígenas y campesinas (cómo CIOAC,
ANIPA y ORIACH) y vinculadas a proyectos de salud (cómo CSESC, y
OMIECH), conjuntamente con asesoras mestizas de organizaciones no
gubernamentales feministas (cómo COLEM, CIAM y K’inal Antsetik), ya
habían empezado a crear un frente amplio de mujeres, cuya primera
manifestación fue la Convención Estatal de Mujeres Chiapanecas (creada en
julio de 1994). (Hernández, Zylbergberg 2007: 5)

Y esta voz es pronunciada por la comandanta Esther, aquella sujeto de enunciación


específica que pronuncia un discurso en el parlamento nacional, posicionándose firme
frente a todo ese público compuesto por personas totalmente diferentes a ella, ella que
es radicalmente distinta a lo que los espectadores estaban esperando ver y escuchar en
ese espacio reservado para una elite política “experta”; ella, “mujer- indígena- pobre”
(como se autodenomina) logra dar a conocer las demandas suyas, de las y los
oprimidos, de las y los subalternos.

4. Conclusiones
Consideramos que el nuevo discurso en torno a la “dignidad de la mujer” y las
demandas de género del EZLN, asumidas como propias por un importante sector
del movimiento indígena, han venido a confrontar el sentido común que veía
como “normales” o naturales las desigualdades de género. Si entendemos la
hegemonía no como consenso, sino como “la manera en que las palabras,
imágenes, símbolos, formas, organizaciones y movimientos utilizados por la
población subordinada para hablar, entender, confrontar, adaptarse o resistir su
dominación están modelados por el mismo proceso de dominación.” Y
asumimos que “lo que la hegemonía construye, no es una ideología compartida,
sino un marco de referencia y significados común para vivir, hablar, y actuar
sobre órdenes sociales caracterizados por la dominación.” (Roseberry 1994: 360-
361 traducción nuestra). Podríamos decir que las nuevas demandas de las
mujeres indígenas ponen de manifiesto una ruptura con ese marco de referencia

342
común y por lo tanto constituyen en sí mismas una transformación importante
que hay que reconocer. Sus nuevos discursos confrontan las definiciones
hegemónicas de las relaciones de género. Estamos ante un momento de ruptura,
en el que las mujeres han reclamado el poder de "nombrar", de desnaturalizar la
desigualdad a través de sus discursos. En estos momentos denominados "puntos
de ruptura" (Roseberry, 1995), o "penetraciones" (Willis, 1981), en los que el
“sentido común” (Comaroff y Comaroff 1991), o la “doxa” (Bourdieu, 1977) se
pone en cuestión. (Hernández, Zylbergberg 2007: 3,4)
¿Cuál es la aporía que podemos observar en este caso en particular de análisis? Vemos
ante todo rebeldía. Rebeldía de un movimiento que ha sabido llevar a cabo un proyecto
revolucionario sin precedentes; un proceso indígena que busca poner en valor las
tradiciones, los derechos, la dignidad de un pueblo. Y con todo aquello, además, busca
romper con las estructuras hegemónicas en torno a la construcción naturalizada de la
mujer indígena, las categorías de sumisa y devota se vuelven reivindican, ya no son
estáticas sino que se vuelven debatibles, cuestionables. Esas mismas mujeres son
igualmente protagonistas de la lucha- tal como los hombres-, resquebrajando las
desigualdades de género cuando participan en asambleas comunitarias intentando poner
freno a los problemas de injusticia y violencia en contra de sus comunidades, con el
deseo de transformar su realidad social.
El zapatismo, movimiento que ha sorprendido con la implantación de nuevas lógicas en
su lucha por la autonomía, ha permitido que se abran nuevas oportunidades de
participación a mujeres, dando paso a una nueva categoría de ser “mujer indígena”.
¿Significó realmente una ruptura al orden hegemónico el que haya pronunciado el
discurso una mujer indígena encapuchada? ¿El movimiento zapatista logra generar un
quebramiento del status quo de la sociedad mexicana con su marcha del color de la
tierra? ¿Haber llegado hasta el Congreso marca un hito historia política reciente del
país? En términos concretos es probable que no, de hecho hasta el día de hoy no se
logran los principales acuerdos establecidos en la COCOPA y, sobre todo actualmente,
hay un ambiente de alta beligerancia en el territorio.
Sin embargo, lo que hace Esther es generar un alto impacto a nivel simbólico.

El simbolismo va más allá del simbolismo físico de que una mujer pequeña con
un chal blanco sobre un huipil tradicional tzotzil pueda parecer menos peligrosa
que un hombre vestido con un uniforme marrón militar. En la oposición de los
adjetivos militar–civil, rebelde–legítimo, Esther asocia el primero a algo
masculino, y el último a lo femenino. La elección de una mujer para presentar el
discurso principal de los zapatistas, viene enfatizada por palabras como “la paz”
y “la ley”. Mediante estas palabras, se puede empezar a construir una realidad
distinta en la que la mujer cumple la función de puente entre el mundo civil y
legal y el mundo rebelde o ilegal, aunque no lo diga directamente. Palabras
como “jefe”, “militar”, “ejército” o “rebelde” no pertenecen al mundo civil. Por
eso, tiene que transformar un ejército rebelde en algo legal, y esto lo hace
mediante el discurso, presentando primero los dos lados del EZLN, el militar y
el civil, y después dejando al lado lo militar y centrándose sólo en la parte civil.
Así, mediante una transformación discursiva, proyecta que todo el movimiento
es legítimo y honesto. (Vuorisalo-Tiitinen 2011: 208).

343
Como ya se ha mencionado a lo largo de este ensayo, la importancia de este caso
específico que se ha analizado es el posicionamiento de una mujer que representa a todo
un sector históricamente oprimido. No solamente a la población indígena sino que a la
mujer: un menosprecio que es heredado y transmitido continuamente. La subversión-
desde el respeto- que significa enfrentarse a la hegemonía alude a una clase política que
ha utilizado elementos más vinculados a la violencia para mostrar su poder y
superioridad.
Esther, en cambio, se presenta a sí misma de la siguiente manera:

“Así que aquí estoy yo, una mujer indígena”. Luego, continúa: “nadie tendrá por
qué sentirse agredido, humillado o rebajado porque yo ocure esta tribune y
hable” (Discurso Comandanta Esther, recurso web:
http://palabra.ezln.org.mx/comunicados/2001/2001_03_28_a.htm)

El contraste es claro, Esther no pretende utilizar las mismas formas caracterizadas por la
violencia de la que ella y su pueblo han sido víctimas por cientos de años. Y el
movimiento tampoco lo hará. Ya se respira y observa una nueva manera de hacer
política, de lograr autonomía que nos enseñan los zapatistas: nuevas lógicas, otras
perspectivas de las relaciones entre personas de diferente sexo, clase y etnia. Puede
reconocerse con la promulgación de la Ley Revolucionaria de Mujeres, con la forma de
actuar de las autoridades, con la manera de expresarse a través de los comunicados.
La ruptura entonces no se fija en el momento del discurso ni tampoco se reduce a la
personificación de éste en la comandanta; la ruptura radica en el proceso revolucionario
que comienza mucho antes del levantamiento del 94’, y con objetivos mucho más
amplios… Como dijo el subcomandante Marcos: "¿La toma del poder? No, apenas algo
más difícil: un mundo nuevo.” (Carta del Subcomandante Insurgente Marcos a Gaspar
Morquecho, 2 de febrero de 1994. Citado por Alejandro Raiter e Irene Muñoz (1995))

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organizativos y nuevas identidades políticas¸Hernández Castillo, Rosalva Aída
(editora), Mexico, D.F: Publicaciones de la Casa Chata, 2008.
- Cuaderno de texto de primer grado del curso de “La libertad según l@s
zapatistas”_ “Participación de las mujeres en el gobierno autónomo”, 2013.
- Recurso web:
http://news.bbc.co.uk/hi/spanish/latin_america/newsid_1254000/1254907.stm

345
Movimentos societais na gestação de novos mundos:
um ensaio sobre a forma comuna160

Tiago C. Fernandes1
1
Fundação Alexandre de Gusmão – FUNAG – Rio de Janeiro, RJ – tiago.coelho@funag.gov.br

Resumo
Estabelecer pontes entre processos insurrecionais e cotidiano; entre tradições pré-
capitalistas e resistência anticapitalista. Presente de diferentes formas, em diversos
contextos históricos e em regiões amplamente distintas a forma comuna aparece uma
uma rica experiência de poder popular. Este ensaio busca traçar um esboço das
possibilidades que essa forma apresenta para a construção de perspectivas
emancipatórias. Para isso, partirei de uma breve rediscussão do conceito de “movimento
social”, para sugerir que a comuna se apresenta como potencial em parte das lutas
populares. Em seguida, proporei uma releitura de algumas experiências revolucionárias
clássicas, buscando identificar nelas o embrião comunitário como expressão do poder
popular. Na segunda parte, passo à interpretação da força da comuna/comunidade como
núcleo de organização da vida social (e da resistência) dos povos originários
americanos. Finalmente, proponho algumas hipóteses para assumir a comuna como base
para uma práxis emancipatória.
Palavras-chave: Comuna; Insurreições; Movimentos Indígenas; Anticapitalismo

1 Apresentação

“Uma força sísmica, uma respiração vulcânica, um rugido de cataclismo


arrebentaram no centro da multidão com uma descomunal potência expansiva”.
Gabriel Garcia Marquez

A emergência política dos povos originários de Abya Yala na década de 1990


representa um acúmulo potencial do ponto de vista da práxis que desafia boa parte das
teorias consagradas aos movimentos sociais e cujas consequencias teóricas apenas
começam a ser testadas.
Uma série de trabalhos recentes, de intelectuais formados nas lutas sociais ou
comprometidos em vincular sua reflexão a esses processos, traz importantes aportes
para superar tanto os esquemas mais tradicionais, que separam a dimensão política da
social, restringindo a ação dos movimentos sociais à segunda; como as gavetas
multiculturalistas das identidades pós-modernas. No horizonte teórico desses
“paradigmas”, estabelecidos a partir das academias dos países centrais, prevalece a
160
Este artigo é uma versão reduzida de um capítulo de minha dissertação de mestrado (FERNANDES,
2009)

346
ênfase nos aspectos formais, “das formas organizativas aos ciclos de mobilização, da
identidade aos marcos culturais”, (ZIBECHI, 2006, p. 28) priorizando aspectos como
demandas e reivindicações, lideranças e discursos públicos, projetos e articulações
institucionais. (GOHN, 2004, p. 255-263) Em função desses elementos, os movimentos
sociais são classificados segundo objetivos, pertencimento estrutural, características das
mobilizações, momento e motivos de sua irrupção.
Nesse sentido, o intelectual uruguaio Raul Zibechi aponta o limite do próprio
conceito de movimento social, entendendo que os recortes sociológicos referidos não
dão conta de uma realidade que envolve, muito mais que mobilizações setoriais por
demandas específicas, sociedades inteiras em movimento, abalando de baixo para cima
as estruturas de dominação. O boliviano Luis Tapia identifica que em “países
multissocietais” como a Bolívia, as forças não se movem na mesma direção,
impulsionando um “flujo subterráneo de procesos sociales desarticuladores del orden
estatal y económico nacional”. Esses processos não se enquadram na definição de
movimento social, representando efetivamente “movimientos de sociedades en proceso
de conflicto más o menos colonial en el seno de un país estructuralmente heterogéneo”.
Analisando esse fenômeno, Tapia (2008) constrói o conceito de “movimento societal”.
A partir de Zibechi, destacam-se alguns elementos comuns aos movimentos
sociais-societários de Abya Yala: territorialização; autonomia tensa frente a Estado e
partidos; revalorização da cultura e afirmação da identidade popular; formação de
intelectuais próprios; novo papel da mulher; organização do trabalho e relação com
natureza; prefiguração das novas relações sociais no cotidiano. (ZIBECHI, 2007, p. 22-
26)
Para uma compreensão mais aproximada desses processos, é importante buscar
nas entrelinhas os traços programáticos das lutas dos grupos subalternos, pois nem
sempre os projetos estratégicos dos de baixo são formulados explicitamente, nos
códigos da sociedade hegemônica. De maneira que, detectar e interpretar esses projetos
pressupõe revisar a contrapelo em um tempo histórico de longa duração, “con un énfasis
en los procesos subterráneos, en las formas de resistencia de escasa visibilidad pero que
anticipan el mundo nuevo que los de abajo entretejen en la penumbra de su
cotidianidad.” (ZIBECHI, 2008, p. 6)
Buscando aprofundar essa perspectiva, me dedico neste breve ensaio a um
exercício de reflexão do potencial emancipatório dos movimentos societais latino-
americanos, com seus costumes e tradições, tomando a comunidade indígena como
núcleo interpretativo. Por comunidade indígena, seus costumes e tradições, não estou
defendendo uma visão romântica dos povos indígenas, intocados pela civilização,
aversos à tecnologia ocidental e ao mercado, vivendo harmonicamente em bucólicas
paisagens rurais ou santuários naturais.
A concepção que fundamenta esta reflexão é a de que a história traz em seu
desenrolar inúmeras possibilidades e que esses “processos subterrâneos” comportam,
ainda que de maneira contraditória e turva, potenciais projetos emancipatórios,
alternativas às formas de organização política vigentes. E que os movimentos indígenas
deram pistas, no ciclo recente de lutas e rebeliões, de como podem prefigurar novas
relações sociais.

***

347
Das diversas formas do poder popular, a comuna emerge em distintas situações
históricas, apesar de ter sido pouco teorizada enquanto tal. De um lado, as correntes
mais dogmáticas do marxismo se prenderam ao problema da administração do aparato
estatal burguês, no caso da social-democracia, ou da burocracia “proletária”, no caso do
stalinismo. Por outro lado, as correntes revolucionárias que se aproximavam da
perspectiva da comuna (em seus diferentes formatos) foram marginalizadas diante da
predominância de certas formas de “estatolatria” em boa parte das correntes de
esquerda.
Em uma interessante análise conjuntural da Argentina na primeira metade da
década de 1970, após analisar as formas do poder burguês, Mario Roberto Santucho
identificava as duas principais manifestações do poder revolucionário: primeiro na
forma típica dos “soviets o consejos obreros y populares (...) consistentes en Asambleas
permanentes de delegados obreros, soldados y otros sectores populares, que asumían
responsabilidades gubernamentales, en general opuestos a las intenciones del gubierno
burgués.” (SANTUCHO, 2000, p. 295) As experiências posteriores de China, Vietnã e
Cuba, colocaram no debate uma segunda possibilidade através de “insurreciones
parciales, es decir con levantamientos locales que estabelezcan el poder revolucionario
en una región o província, las denominadas zonas liberadas.” (idem) A experiência
cubana, especialmente a partir das sínteses teóricas de Che Guevara, conduziu ao
intenso debate em torno da guerrilha como estratégia revolucionária e possibilitou que
esta fosse, entre as décadas de 1960 e 1980, a via predominante nas polêmicas teórico-
políticas do continente.
No entanto, é ao primeiro exemplo mencionado por Santucho, aqui referido
genericamente como forma comuna, que me esforçarei por estabelecer uma
aproximação, observando sua trajetória histórica e refletindo sobre sua pertinência, hoje,
em Abya Yala.161 Tal aproximação se inspira diretamente na dinâmica dos movimentos
indígenas contemporâneos, especialmente na força da vida comunitária como
estruturante das relações sociais, ao mesmo tempo em que reconhece intersecções entre
experiências em distintos tempos e lugares na resistência às imposições do mercado e
do Estado.
Assim, meu objetivo é analisar a forma comuna como uma alternativa de poder
ao Estado uninacional e colonizado, a partir da análise da sua gênese em contextos de
acirramento agudo dos conflitos sociais. Busco delinear uma genealogia que conecte
esses momentos com as experiências e tradições das classes subalternas, entendendo a
espontaneidade não como categoria pejorativa para designar uma suposta insuficiência
teórica e organizativa, mas como uma dimensão legítima do repertório de ações e das
formas próprias de manifestações dos grupos subalternos.
Nesse ponto, também aprofundo o diálogo com Zibechi, que em trabalho recente
dedica-se a refletir sobre o potencial da comunidade como forma de organização social
antiestatal. Para o intelectual e militante uruguaio,

“Tomar los relámpagos insurreccionales como momentos


epistemológicos es tanto como privilegiar la fugacidad del
movimiento, pero sobre todo su intensidad, para poder conocer

161
Termo originário do idioma do povo kuna, do Panamá, para referir-se ao território continental, que
passou a ser adotado por diversos movimentos indígenas.

348
aquello que se esconde detrás y debajo de las formas establecidas.
Durante el levantamiento se iluminan, aún fugazmente, las zonas
de penumbra (o sea los márgenes mirados desde el Estado); la
insurrección es un momento de ruptura en el que los sujetos
despliegan sus capacidades, sus poderes como capacidades como
capacidades de hacer, y al desplegarlas muestran aspectos ocultos
en los momentos de reposo o de menor actividad colectiva.”
(ZIBECHI, 2006, p. 39)

A comuna tampouco pode ser concebida como um tipo ideal universal,


ahistórico. Para isso, revisaremos alguns processos de construção desta forma de
organização social, visando entender as dinâmicas que possibilitam o seu surgimento
em determinados contextos históricos, bem como a contribuição de alguns pensadores
que assimilaram os princípios da comuna em sua práxis.

2 A forma comuna na história.


2.1 Um ponto de partida para pensar a comuna na contemporaneidade.
A comuna de Paris é o marco inaugural da gestação de uma ordem social
emancipatória, superadora do capitalismo. As formas organizativas gestadas nas
barricadas de 1871 foram saudadas por seus contemporâneos e logo interpretadas e
assimiladas como parte da tradição de diferentes correntes do espectro revolucionário.
A crise aguda da dominação burguesa, culminada na guerra contra a Prússia, foi
respondida pelo proletariado parisiense com a desestruturação da máquina estatal e a
luta decidida pela construção de uma nova forma de poder, baseada na democracia
direta. Em seu programa oficial de 20 de abril, a Comuna proclamava seus dois
princípios de governo: “a gestão popular de todos os meios da vida coletiva” e “a
gratuidade de tudo que é necessário e de todos os serviços públicos”. Fundado nesses
princípios, o governo revolucionário aboliu as forças armadas e “as velhas autoridades
de tutela, criadas para oprimir o povo de Paris” e colocou em seu lugar o povo em
armas, conselheiros, magistrados e funcionários administrativos eleitos por sufrágio
universal com mandatos revogáveis e salário limitado pela média do recebido pelos
operários.
Karl Marx notou ali o gérmen a partir do qual poderia se fundar a nova
sociedade, avançando teoricamente, diante das novas experiências, nas concepções
relativas a Estado e revolução. O desenvolvimento da luta de classes na França apontava
para o esmagamento do aparato estatal, o que começava a tomar forma com a Comuna,
e não mais para sua transferência de umas mãos a outras. (MARX, 1997, p. 310)
Porém, sua análise vai além da interpretação do significado imediato da comuna,
discutindo suas raízes:

“Em geral, as criações históricas completamente novas estão


destinadas a ser tomadas como uma reprodução de formas velhas,
e mesmo mortas, da vida social, com as quais podem ter certa
semelhança. Assim, essa nova Comuna, que vem destruir o poder
estatal moderno, foi confundida com uma reprodução das
comunas medievais, que precederam imediatamente esse poder

349
estatal e logo lhe serviram de base. O regime comunal foi
erroneamente considerado como uma tentativa de fracionar numa
federação de pequenos Estados, como sonhavam Montesquieu e
os girondinos, aquela unidade das grandes nações que, se em suas
origens foi instaurada pela violência, se converteu num poderoso
fator da produção social. O antagonismo entre a Comuna e o
poder do Estado tem sido apresentado como uma forma exagerada
da velha luta contra o excessivo centralismo.” (MARX, s/d, p. 82)

Dessa leitura, pode-se aprofundar uma reflexão sobre a dialética passado-


presente: nem as novas formas de organização social podem prescindir completamente
das relações preexistentes – o novo nasce do velho –, nem aqueles projetos que se
apresentam como a busca por um passado mítico concretizam-se dessa forma, podendo
representar, em determinados contextos, a construção efetiva das novas formas.162 Tal
abordagem permite responder com uma leitura mais complexa inúmeros movimentos
históricos que em leituras saturadas da noção de progresso são relegados a meros
arcaísmos incapazes de assimilar “valores ocidentais” e iluministas.163 Para os debates
em torno dos movimentos indígenas, vale a crítica tanto a esse “iluminismo” raso que
identifica na linguagem e nos projetos políticos dos povos originários uma ameaça
reacionária à democracia liberal, quanto a certas expressões de intransigência de alguns
intelectuais indígenas ou não-indígenas que, em nome da descolonização e da pureza da
restauração cultural, pretendem rejeitar qualquer referência externa, o que, além de
impossível, bloqueia interessantes possibilidades de diálogo.
Porém, se o Marx da Comuna já traz elementos para entender o seu potencial de
reorganização das relações sociais sobre novas bases, é o “Marx tardio” (SHANIN,
1983), alguns anos depois, quem reflete a partir da aproximação que busco estabelecer.
Sua obra, que não pode ser tomada como um corpo doutrinário monolítico,
deixou pistas para analisar tanto a comuna “proletária”, quanto o potencial
revolucionário da comuna “tradicional”, que chamarei aqui de comunidade-comuna, na
falta de um nome melhor que as distinga. São bem conhecidos os seus comentários
sobre as consequencias da insurreição parisiense, já mencionados. Por outro lado, suas
idéias sobre o segundo caso são esboçadas nas menos difundidas considerações sobre o
contexto russo, no final da vida.
Indagado pela militante russa Vera Zasulich a partir de dúvidas que a leitura de
O Capital despertara no círculo militante do qual esta participava, o alemão lamentou
não poder se aprofundar o necessário na resposta – o que não o impediu de prepará-la
cuidadosamente. Contrapondo-se à visão tributária à noção de progresso que se tornaria
predominante no marxismo, conclui que

162
E aqui, naturalmente, não estou me referindo a manifestações de nacionalismos e comunitarismos
reacionários desde os fascismos até determinadas seitas religiosas, embora mesmo essas experiências
necessariamente se desenvolvam num sentido diferente de sua pretensa restauração de relações
passadas.
163
Essa abordagem é válida para movimentos que tendem a ser desqualificados desde uma leitura liberal
ou do progresso, como os milenarismos. Importantes contribuições a esse movimento revisionista
podem ser encontradas nos trabalhos do grupo de historiadores marxistas britânicos (Eric Hobsbawm,
George Rudé, E. P. Thompson, Christopher Hill).

350
“El análisis presentado en El Capital no da, pues, razones en pro
ni en contra de la vitalidad de la comuna rural, pero el estudio
especial que de ella he hecho, y cuyos materiales he buscado en
las fuentes originales, me ha convencido de que esta comuna es el
punto de apoyo de la regeneración social en Rusia, mas para que
pueda funcionar como tal será preciso eliminar primeramente las
influencias deletéreas que la acosan por todas partes ya a
continuación asegurarle las condiciones normales para un
desarrollo espontáneo”. (MARX e ENGELS, 1980, p. 61)

Essa abordagem antecipa uma resposta à crítica de idealização, ao mesmo tempo


em que deixa clara a necessidade de observar aquela realidade com lentes distintas ao
monóculo do progresso164. Numa passagem suprimida do texto enviado a Zasulich,
assinala: “O que põe em perigo a vida da comuna russa não é nem uma fatalidade
histórica, nem uma teoria: é a opressão pelo Estado e a exploração por capitalistas
intrusos, tornados poderosos pelo mesmo Estado às custas dos camponeses” (MARX e
ENGELS, 1980, p. 51) Temos então no pensador renano pistas para interpretar a
comuna e a comunidade-comuna como embriões de uma forma de organização pós-
capitalista, inclusive pela possibilidade de diferenciar entre dois momentos distintos
(que eventualmente se encontram): o do aparelho político que emerge como plataforma
de poder dual (Comuna de Paris, conselhos operários) e o da forma social tradicional
reinventada desde os costumes e experiências coletivas dos grupos subalternos
(comunidade rural russa).

2.2 A revolução fundamental na Rússia.


Os sovietes (que como se sabe significa conselhos) surgiram com o movimento
revolucionário de 1905, inicialmente como esforço de coordenação do movimento
grevista e logo assumindo responsabilidades de governo, diante da imobilidade do
Estado czarista. Seu surgimento também acendeu um intenso debate entre os principais
dirigentes revolucionários europeus, quanto ao seu significado para o processo
revolucionário e sua relação com a institucionalidade constituída.
O antropólogo estadunidense Eric Wolf desenvolve uma abordagem que facilita
a leitura aqui proposta, com sua interpretação das revoluções do século XX como
“guerras camponesas”. Tratando da Rússia, analisa o desenvolvimento da instituição
rural da mir, cujo ressurgimento após o fim da servidão ampliou os espaços de
organização autônoma e reativou os laços coletivos tradicionais do campesinato. Sua
presença se estendeu pela vida cultural e na correlação de forças da Rússia pré-
revolucionária, como se pôde verificar nos debates intelectuais, pela concentração de
ações nos ciclos de rebeliões de 1902 e 1905 nas regiões de maior consolidação das
comunas, ou na tentativa de reforma modernizadora de 1906, que visava o seu fim.

164
Situando esse movimento do pensamento de Marx e Engels, José Aricó (1982, p. 132-133) chama
atenção para a diferença de critérios entre ambos, identificando no primeiro uma maior atenção aos
aspectos próprios da comunidade rural no contexto russo. A posição de Engels que estaria
representada no prefácio à edição russa de 1882 do Manifesto Comunista, traduzido por Vera
Zasulich, enfatiza o desenvolvimento do capitalismo como determinante de uma inexorável
desintegração da propriedade comunal.

351
Así, la comuna sobrevivió a las vicisitudes del cambio, al igual que la
institución del consejo aldeano y de la aldea, un pequeño mundo
autodeterminado, basado en el consenso. Centralizada en la cima, en sus
bases la sociedad era un agregado de innumerables comunas aldeanas, en
muchos aspectos más allá de la influencia y la esfera de visión del
Estado. (WOLF, 1972, p. 105)

Desencadeada a revolução, esse movimento societal se relocaliza como primeiro


ponto de equilíbrio da estabilização revolucionária. Os sovietes camponeses foram
basicamente os antigos conselhos sob nova roupagem; aos bolcheviques era
fundamental o apoio dessa base para rechaçar a aliança contra-revolucionária, por isso,
pouco fizeram e pouco poderiam fazer para mudar suas estruturas. (ibidem, p. 132-135)
John Reed, cronista privilegiado daquele processo, já notara essa relação entre as
comunidades tradicionais camponesas e as formas organizativas surgidas da revolução:
“Antes de la revolución había más de veinte millones de miembros en sociedades
cooperativas en Rusia. Esta es una forma muy natural para los rusos, por su parecido
con la primitiva cooperación de vida rural de Rusia durante siglos.” (REED, 2000)

2.3 Um esboço de síntese teórica da comuna no contexto europeu.


Se na década de 1930 a burguesia européia lançou mão do fascismo para afogar
em sangue as experiências revolucionárias que se acumulavam, o período anterior foi
rico em experiências conselhistas.165 Inspirados pelos furacões revolucionários da
Rússia e pela grave crise derivada da guerra, as massas de operários e camponeses
europeus espalharam por países como Itália, Alemanha, Ucrânia, Áustria e Hungria
organismos que se assemelhavam em maior ou menor medida dos sovietes russos.
Influenciados por esses processos, diversos intelectuais e militantes
revolucionários assimilaram os princípios da comuna como elemento fundamental do
projeto de emancipação da humanidade. Destacam-se nessa linha as reflexões dos
alemães Karl Korsch e Paul Mattick, os holandeses Anton Pannekoek e Herman Gorter,
os italianos Amadeo Bordiga, Antonio Gramsci. A polonesa-alemã Rosa Luxemburgo,
com seu conhecido e muitas vezes mal compreendido reconhecimento da ação
espontânea das massas,166 também pode ser lida nessa tendência que questiona o
inchaço do partido e do Estado no processo revolucionário, enfatiza a ação consciente e
autônoma da massa popular como um imperativo para a construção da nova sociedade e
sugere uma valorização, mesmo que indireta, das tradições populares no processo de

165
Que tiveram no processo espanhol (1936-1939) um caso emblemático e desfecho trágico. Durante os
primeiros meses floresceram milícias, conselhos, comitês, em boa parte inspiradas pelos anarquistas,
que se dividiam nas tarefas do combate aos franquistas, manutenção da ordem em zonas republicanas,
distribuição da terra, coordenação da produção industrial. Tendo em Barcelona o “bastião da Espanha
soviética” e exemplos como a épica defesa de Madri, a experiência republicana gerou autênticas
expressões de poder comunal, em tensão permanente com o governo da Frente Popular. (BROUÉ;
TÉMINE, 1989, p. 133) Nessa experiência extremamente complexa e trágica, o confronto de
territorialidades não se resumiu à disputa decorrente da guerra entre república e restauração
monárquica. Dentro do campo republicano contrapunham-se o esforço de reordenamento do governo
legítimo ao impulso pela base de construção de formas autogestionárias em meio à guerra.
166
Afinal, o que é o “espontaneísmo” senão a emergência mais ou menos consciente de tradições e
experiências compartilhadas por determinado coletivo?

352
enfrentamento.
Desse debate, podemos extrair alguns elementos gerais para uma reflexão crítica
sobre o Estado e as relações de poder na sociedade capitalista, bem como os
instrumentos e as vias de sua superação. Se considerarmos pendente a construção de um
autêntico projeto emancipatório, não podemos prescindir dos ricos aportes dessas
experiências, obviamente sem deixar de realizar as devidas mediações.
Na releitura esboçada aqui, a comuna aparece como alternativa de poder em
contextos de crise revolucionária, mas se expressa também como forma social pré-
capitalista que sobrevive tensamente à imposição das relações mercantis, com o
potencial de ser recriada no patamar de superação dessas relações. O modo político de
organização e ação aparece como um momento distinto (mas não antagônico) da forma
social pré-capitalista e pré-Estado moderno, da qual eventualmente descende, podendo
esta última servir de infra-estrutura subjetiva para superar o capitalismo.
As hipóteses que orientam estas reflexões se referem à reinvenção e
reapropriação efetiva de formas de vida. A história do capitalismo é história da
imposição da forma mercadoria (bem como do Estado moderno centralizado) sobre a
dissolução de formas sociais comunais “naturais”; o comunismo é então a reconstrução
dessas relações em outro patamar. Por isso se compreende a difusão da comunidade-
comuna por zonas atrasadas da Europa (Espanha, Rússia, leste), expressando uma
dimensão do desenvolvimento desigual na qual as tradições dos de baixo se afirmam
como um anteparo aos dilúvios do capital.
O que permite essa dinâmica está relacionado com o acionar dos grupos
subalternos. Tradição e consciência são dois elementos que interagem nesses processos
sociais como forças criadoras. Walter Benjamin traduz, entre trágico e utópico, a
história como um campo fundamental do embate de classes.167 Enquanto o anjo da
história olha para trás, impelido violentamente pela tempestade do progresso, tanto
opressores como oprimidos contemporâneos carregam a herança de seus antepassados.
O chamado ao acerto de contas é, portanto, permanente, colocando-se também a
possibilidade da perpetuação do “...cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje
por cima dos que, hoje, jazem por terra.” (Tese VII)
Mas seu impulso não surge apenas do passado. Pelas situações observadas, a
comuna pode ser entendida como um híbrido entre tradições mais profundas e a
demanda de respostas às novas situações da opressão capitalista, o encontro da cultura
camponês-plebéia com a proletarização, condição particularmente verificável ao
observarmos a trajetória latino-americana.

3 Comunidade e comuna em Abya Yala.

O que vimos até agora permite esboçar uma aproximação desde Abya Yala,
pensando a comuna a partir de sua vigência histórica até suas manifestações nas lutas
sociais contemporâneas.

167
As referências das teses sobre a filosofia da história de Walter Benjamin foram retiradas de LÖWY,
2005.

353
3.1 A comunidade originária em Abya Yala

O tema da comunidade indígena-camponesa já foi abordado desde as mais


distintas perspectivas, mas sua presença histórica continua a ser um ponto de
interrogação na teoria social, apesar da centralidade da vida comunitária em amplos
territórios e por períodos tão extensos. Na perspectiva que venho trabalhando, boa parte
dessa dificuldade se deve à distorção metodológica que orienta a tentativa de
compreender Abya Yala a partir da aplicação ou do teste de conceitos construídos para a
análise de outros contextos particulares.
Roger Bartra identificou uma falta de clareza, “em termos de uma concepção
histórica objetiva”, quanto às peculiaridades da sociedade mesoamericana pré-Colombo.
(1978, p. 159) Nem feudal nem escravista, combinando um tipo de diferenciação
classista – consolidada em aparato estatal – com a propriedade coletiva, a formação
social mexica168 apresenta uma mescla de traços “primitivos” e “civilizados” que
motivou por um longo tempo polêmicas intensas e confusões variadas. A proposta do
referido autor para tentar captar a lógica dessa estrutura híbrida é adotar o conceito de
modo de produção tributário. Sua aplicação é explicada por tornar-se inviável o uso do
conceito marxista de “modo de produção asiático” ao referir-se a outras regiões, bem
como por que o tributo seria o eixo da relação classista entre comunidade aldeã e
Estado. (ibidem, p. 160)
Luis Vitale observa que o “modo de produção asiático” é um termo improvisado
em um rascunho, inconcluso nos conceitos que apresenta. Revisando as alternativas
derivadas dessa proposta, o historiador chileno assinala a recorrência de uma confusão
teórica derivada da ênfase no papel do Estado e propõe como ponto de partida para o
estudo das sociedades americanas o modo de produção comunal. Observa-se aí o
surgimento da comunidade originária em Abya Yala. Antes, portanto, da formação das
sociedades incaica e asteca. Atestar o caráter coletivo da propriedade e da produção, a
partir da centralidade da comunidade, não implica uma idealização de um “comunismo
primitivo”, mas em reconhecer que ambas se organizavam nesse âmbito, transcendendo
o círculo familiar.

“El excedente no era apropiado de manera particular por cada familia


sino por la comunidad, la cual lo destinaba a un fondo común de reserva
que se utilizaba en caso de sequía y también para el ceremonial y obras
de bien público. De este modo, se garantizaba la reproducción del modo
de producción comunal.” (VITALE, 1991)

Por outro lado, essa não é uma definição isenta e reconhece naquela organização
social algum nível de reflexão do conceito comunista moderno de cada qual segundo
sua capacidade, a cada qual segundo suas necessidades como uma dimensão concreta
das comunidades originárias.169 (idem)

168
Que nesse nível de descrição mais genérico se assemelha ao Tawantisuyu andino.
169
Um interessante diálogo com esta perspectiva pode ser desenvolvido a partir dos ensaios dos
antropólogos Pierre Clastres (1990) e Marshall Sahlins (1978) e a releitura despida de preconceitos
“civilizados” dos aspectos políticos e econômicos das sociedades primitivas.

354
O progressivo e lento surgimento de estruturas políticas centralizadas a nível
local dá origem a sociedades de transição170, até que incas e astecas reuniram as
condições de centralização do poder como um exército permanente, uma organização
territorial estável, capacidade de subjugar e integrar etnias através de trabalhos forçados
e tributos, uma classe dominante capaz de sustentar sua legitimidade para controlar e
redistribuir grandes excedentes a seu cargo. (VITALE, 1991, Cap. II) Esse processo de
centralização consolidava a transição a sociedades que Vitale caracteriza como
protoclassistas e, completando as análises de Bartra – entre outros –, baseadas em um
modo de produção chamado comunal-tributario. (ibidem, Cap. III)
O interessante dessa caracterização é que, buscando uma precisão conceitual
correspondente à base produtiva daquelas sociedades, chega à vida comunitária como
elemento fundamental e distintivo das sociedades originárias de Abya Yala. Uma
proposta que, ademais, sustenta sua pertinência no fato de que o sistema tributário tenha
sido destruído pela conquista européia,171 mas a comunidade não; é ela que se imbrica
com os modos de produção que, mais do que se suceder, entrecruzam-se na paisagem do
continente, até chegar ao capitalismo. Nesse sentido, a comunidade indígena
contemporânea, seja na forma do ayllu andino, seja através dos calpulli-ejidos
mesoamericanos acumula a memória larga da sobreposição de tempos históricos desde
as civilizações pré-conquista, passando por colônia, república, reformas agrárias,
modernizações liberais pelo alto. Processos que quase invariavelmente decretaram a
extinção da comunidade originária, sem que suas instituições tivessem essa capacidade
de sobrevivência.

“Que el ayllu esté incrustado en el presente, como tantas otras


instituciones tradicionales, incrustadas en la modernidad tardía, hace que
este estar presente se convierta en una interpelación de la concepción
moderna del tiempo, de sus prácticas productivas y de consumo, de su
racionalidad instrumental. Esta concepción modernista de la historia es
lineal y groseramente evolutiva, entendiendo la evolución como
progreso. La modernidad, fuera de ser una experiencia intensiva de la
vertiginosidad, de la versatilidad y de la frugalidad del acontecer, es
también una representación colectiva, una creencia social; es decir, un
prejuicio compartido.” (PRADA, 2008, p.65)

Na perspectiva que venho defendendo, esses processos de mobilização


comportam o potencial de uma forma de organização pós-capitalista e pós-estatal. Uma
democracia plebéia cuja possibilidade não é nem imediata, nem utópica, sendo
prefigurada no cotidiano de sobrevivência e resistência, do qual destaco algumas
experiências recentes.

3.2 Bases para uma democracia comunitária no altiplano


Se for possível encontrar um fio condutor no multifacético ciclo de rebeliões

170
Das quais podem ser mencionadas como exemplo as sociedades Olmeca, Maya, Teotihuacan, Tolteca
em Mesoamérica e Chavín, Mochica, Nazca, Tiahuanaco, Huari nos Andes.
171
Embora mesmo deste tenham subsistido algumas instituições durante a colônia e até a era republicana.

355
bolivianas na década de 2000, este é um papel desempenhado pelo ayllu, a comunidade
andina.

“El ayllu como forma de organización social, económica y política es hoy


en día la muestra de la persistencia y vigencia de los pueblos indígenas; a
pesar de los esfuerzos realizados por parte del Estado primero colonial,
después republicano, y hoy con la imposición de la forzosa
sindicalización y el neoliberalismo basado en la privatización, el ayllu
logró mantenerse de manera silenciosa hasta nuestros días.” (CHOQUE,
2000, p. 16-17)

O trabalho consciente e sistemático de intelectuais aimarás junto a organizações


de base, de reconstituição étnica a partir da comunidade altiplânica, possibilitou que esta
emergisse como uma possibilidade de desestruturação do colonialismo e concretização
do plurinacionalismo sobre novas bases institucionais.
Esse movimento não resultou em uma estratégia explicitamente definida
unitariamente de afirmação de uma democracia comunitária, mas em um amplo
processo de revalorização das autoridades tradicionais (mallkus, jilaqatas e alcaldes
comunais) e difusão por diferentes instâncias da sociedade de princípios organizativos
do ayllu: a concepção de cargos de autoridade como serviços comunitários; o privilégio
à busca pelo consenso; a assembléia como fórum de deliberação, indissociável da vida
cotidiana, pelo que se ocupa dos mais diversos assuntos e não apenas os estritamente
políticos; motivo também para que os momentos de reunião sejam aproveitados para
trabalhos coletivos (minga), cultos religiosos, eventos esportivos etc.
A visibilização desse processo de reconstituição do ayllu ocorre a partir do ciclo
insurgente iniciado em setembro-outubro de 2000, quando se produz uma quebra na
dominação étnica e na exploração econômica que serviam de fundamentos do Estado
boliviano. A sucessão de levantes indígenas-populares “beligerantes e territorializados”,
além de desnudar o discurso do poder, traz à tona os mecanismos de organização
sociopolítica derivados da interpelação dos povos originários em movimento, ou seja,
reconstruindo os laços comunitários na dinâmica das lutas contra o colonialismo do
capital e do intercâmbio com setores não-indígenas. (MAMANI, 2006, p. 89)
Tal dinâmica se reflete na comuna de El Alto, nos cabildos de Cochabamba, nos
levantes de ayllus das províncias de La Paz, Oruro, Cochabamba e Potosí, interagindo
ainda com os movimentos indígenas amazônicos e de terras baixas. Uma convergência
de movimentos, ou melhor, de sociedades em movimento, cuja irrupção na cena pública
as interpõe como “sociedades contra o Estado”, dispersando o poder para o âmbito
comunitário. (CLASTRES, 1990; ZIBECHI, 2006, p. 105)
As formas de concretização desse poder são ainda tema de debate, pois se
referem a experiências ainda em gestação. Zibechi fala da dispersão do poder, para a
qual considera necessário dispersar o Estado, sem que se crie outro em seu lugar, pelo
que se refere sempre à possibilidade de um “Estado” aimara, sempre entre aspas. O
sociólogo aimara Pablo Mamani vislumbra essa possibilidade na forma de
microgovernos barriais, “experiências sociais territorializadas” enquanto práxis, que se
consolidam como espaços de decisão e ação coletivas, portadores de uma nova
racionalidade sociopolítica. Uma experiência organizativa coletiva fundada no manejo
do espaço e do tempo urbanos em profunda interrelação com espaços e tempos rurais.

356
(MAMANI, 2006, p. 92-93) Para García Linera, o formato do Estado monoorganizativo
não comporta as múltiplas matrizes civilizacionais presentes na sociedade boliviana.

“Esto significa que en el ámbito de los poderes legislativo, judicial y


ejecutivo, aparte de distribuir proporcionalmente su administración
unitaria general y territorial en función de la procedencia étnica y
lingüística, las formas de gestión, representación y de intervención social
deberían incorporar múltiples mecanismos políticos compuestos, como la
democracia representativa, vía partidos, la democracia deliberativa, vía
asambleas, la democracia comunal vía acción normativa de comunidades
y ayllus, etc. De lo que se trata entonces sería de componer a escala
macro, general, instituciones modernas con instituciones tradicionales,
representación multicultural con representación general en
correspondencia a la realidad multicultural y multicivilizatoria de la
sociedad boliviana. En otras palabras, se trata de buscar una modernidad
política a partir de lo que en realidad somos, y no simulando lo que nunca
seremos ni podremos ser.” (LINERA, 2004)

3.3 EZLN e os caminhos da autonomia


A autonomia, eixo do acionar zapatista, é construída como um processo.
Afirmada como objetivo estratégico desde as primeiras manifestações públicas, as
formas que ela passou a assumir foram resultado tanto do acúmulo político endógeno
das comunidades quanto dos diálogos e embates com agentes externos. Nessa trajetória,
fixada desde o início no princípio do mandar obedecendo, a proposta dos Caracoles
aparece como um momento de viragem na construção da autonomia, uma superação que
assimila experiências anteriores.
A constituição, num primeiro momento, dos “municípios autônomos” já se
baseava em instituições comunitárias de democracia direta, com a eleição de
autoridades locais e delegados sob mandatos imperativos e revogáveis. Articulados em
instâncias maiores, inicialmente chamadas Aguascalientes, os municípios buscavam
encarar as contradições internas, fortalecendo os laços de solidariedade entre
comunidades de etnias distintas. Em 2003, uma série de comunicados anuncia
mudanças nas estruturas organizativas dos territórios rebeldes, visando, entre outros
objetivos, dissociar as funções relativas à organização militar de possíveis interferências
nos níveis de autogoverno comunitário. Ademais, diante da falência dos Acordos de San
Andrés com o governo federal, as bases zapatistas deliberam pelo aprofundamento
imediato da autonomia, representado desde então pelos Caracoles.
A sintonia fina na análise do zapatismo está em compreender a processualidade
de suas formas políticas e de seus conceitos, coadunados a determinados princípios e
objetivos estratégicos fixados desde os primeiros passos. A autonomia é construída
então como um conceito da práxis, a partir das lutas políticas projetadas para fora do
campo de disputas do aparato estatal. A proposta do EZLN se antagoniza com o
calendário do poder, sem que signifique cair em um apoliticismo que concebe a
construção de “contrapoderes” e acracias à revelia da disputa de projetos nos espaços
públicos, inevitável numa perspectiva emancipatória. Os caracoles representam essa
articulação dialética que a resistência indígena põe em cena. No núcleo comunitário
imbricam-se a resposta a situações cotidianas, a memória de lutas multisseculares e a

357
esperança, ou o mito de um mundo novo em gestação.
Pablo Gonzalez Casanova propõe, a partir da leitura dessa trajetória, a apreensão
de um novo método de reflexão e ação que tem sete características principais: o
prevalecimento das combinações às disjuntivas, como forma de privilegiar o diálogo (e
a dialética) que transcenda a construção política interna dos povos indígenas; a
capacidade de “generalizar los conceptos al tiempo que se generalizan las redes de
comunidades”, como uma forma de viabilizar esse diálogo, rompendo com
particularismos; a necessidade de aprofundar os conceitos de acordo com a dinâmica
das lutas; bem como de ampliar as escalas de intervenção de acordo com a capacidade
de aprofundar os conceitos e a força das redes – do nível mais local, na luta contra o
cacique, ao nível mais geral, em âmbito nacional, ou de megaprojetos regionais – sem
perder a capacidade de articular lutas locais e globais; e ainda, a necessidade de ampliar
os espaços de coordenação das lutas nos diferentes níveis. A sexta característica,
Casanova apresenta nos seguintes termos: “El subir de lo abstracto o formal a lo
concreto o actual, corresponde a la expresión 'ir más allá de..' que a menudo alude a
etapas superadas”. Assimilando lutas passadas, sem temor de superá-las, atualizando,
redefinido e adaptando o que for necessário. E, finalmente, o reconhecimento de uma
dimensão utópica expressa e realizada em meio a contradições:

“Corresponde a la necesidad de superar "las ideas de los caballeros


andantes" que buscaban "desfacer entuertos" para construir ("haciendo
camino al andar", como dijo el poeta) relaciones personales, relaciones
sociales, culturales, sistemas sociales que faciliten, entre tropezones,
practicar y concretar determinados objetivos como "la democracia, la
justicia, la libertad". Esa es la característica de los sueños y de las
impertinencias de Durito, de esos sueños e impertinencias bien y mal
hablados, idealistas y picarescos que se nutren en la imaginación del
mundo entero, maya o no maya, occidental o no occidental, clásico o
moderno, o posmoderno.” (CASANOVA, 2003)

Os caracóis zapatistas representam a síntese do acúmulo de experiências desse


movimento. Sem pretensão de instaurar um modelo e reconhecendo as particularidades
do contexto local, as comunidades da selva chiapaneca interpelam a sociedade civil à
possibilidade da educação no exercício de formas de democracia assembleária. Está em
aberto o potencial de sua universalização, através do diálogo com outras formas de
resistência, ampliando e aprofundando a perspectiva de construção do poder desde
baixo.

3.4 Para não esquecer a comuna de Oaxaca


Um movimento espontâneo, totalmente inesperado, de proporções imprevistas,
que teve como estopim uma greve de professores. Ninguém imaginava que a repressão a
esse movimento, iniciado em fins maio de 2006, teria consequencias tão profundas. Um
mês após o início da greve, formava-se um imenso leque de organizações, formado por
centenas de indivíduos independentes e coletivos de direitos humanos, ONGs,
ecologistas, de gênero, estudantis, sindicais, agrupamentos políticos, comunidades
indígenas etc. A Assembléia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) passou a coordenar
um inédito e vigoroso processo de autogoverno, que implicava no controle territorial de

358
Oaxaca, incluindo a ocupação permanente de edifícios públicos; a construção de
centenas de barricadas e comitês de autodefesa; a instauração de assembléias populares
permanentes nas próprias barricadas e em outros espaços, deliberando sobre as questões
que se colocavam; a autogestão de dezenas de meios de comunicação “recuperados”
(rádio, televisão, internet, impressos). Enquanto o território da capital era controlado por
um sistema de barricadas e rondas noturnas desde fins de agosto, cenas semelhantes se
difundiam pelo interior do estado.
A transcendência de um movimento inicialmente setorizado pode ser explicada
pela particularidade da Seção 22 do geralmente corrompido Sindicato Nacional de
Trabalhadores da Educação: uma parte considerável de suas bases é formada de
docentes dos programas de educação bilíngüe, oriundos das comunidades ou em contato
direto com elas. Essa base dá origem a uma tradição sindical combativa, conectada com
setores sociais mais amplos e independente do clientelismo predominante nas direções a
nível nacional. Com efeito, os mecanismos, a forma e o discurso da comuna de Oaxaca
não representavam uma matriz sindical. Novamente encontram-se ali as múltiplas
tradições que formam uma cultura indígena-plebéia de resistência, incluindo as
comunidades do estado de maior presença indígena do país, como núcleo organizativo e
inspirador, as memórias da luta contra a ocupação estrangeira no século XIX e da
vertente libertária na revolução de 1910.
Às táticas de resistência massiva não-violenta, os poderes locais e nacional
responderam com uma estratégia contra-insurgente. De partidos rivais, o governador
Ulises Ruiz obteve respaldo do presidente Vicente Fox para manter-se no poder contra a
exigência da rebelião popular, enquanto o PRI garantia a contestada transição
presidencial, sob fortes indícios de fraude, de Fox para seu companheiro do Partido da
Ação Nacional, Felipe Calderón. Como recursos repressivos, o governador recorreu a
forças paramilitares, além dos contingentes policiais à sua disposição. O assassinato do
repórter independente estadunidense Brad Will foi o sinal para a entrada em fins de
outubro da Polícia Federal Preventiva que, apesar de composta de uma força de quatro
mil efetivos, foi repelida num primeiro momento e obrigada a recuar em diversos
pontos, até conseguir estabelecer-se como uma autêntica força de ocupação nos meses
seguintes. No estado de sítio imposto de fato, tanto as forças federais quanto os grupos
repressivos locais oficiais e clandestinos envolveram-se em casos denunciados de
violações dos direitos humanos, detenções ilegais, ações de esquadrões paramilitares
pela capital e interior do estado, perseguição de lideranças.

4 Sete teses para uma práxis comunitária


A democracia direta costuma ser descartada com o simples argumento de que a
complexidade das sociedades atuais a torna inviável. Trata-se, para usar de eufemismo,
de preguiça intelectual, já que qualquer forma política é histórica e, enquanto tal,
resultado de longos processos de experimentações e lutas políticas e sociais.
Com efeito, instaura-se uma teoria política do poder, que se resume a afirmar
como verdades definitivas a emulação e naturalização da forma parlamentar do Estado,
organizado sob o princípio uninacional, como única possibilidade de garantia de
liberdades e direitos fundamentais. Tal pensamento linear e unidimensional redunda
invariavelmente no fetichismo da “democracia” concebida abstratamente, a não ser
pelos critérios procedimentais.
A observação de experiências passadas e presentes dos grupos subalternos

359
possibilita vislumbrar a construção de formas societais para além do Estado e do
mercado. A partir das questões apresentadas nesses diferentes contextos, apresento a
seguir alguns pontos para se repensar a política desde essa perspectiva emancipatória.
Das experiências anteriores, pretendo sugerir algumas reflexões sobre a forma comuna,
reforçando que o objetivo das generalizações aqui desenvolvidas não é propor uma
“teoria geral da comuna”, mas compreender como, a despeito das particularidades
históricas esse fenômeno irrompe em diversas situações como um núcleo organizativo e
embrião de uma alternativa organização social.
São pontos para sustentar a possibilidade da universalização dessa forma a partir
de sua assimilação à práxis, de acordo com as peculiaridades de cada situação. Desse
modo, não é absurdo estabelecer analogias entre Petrogrado e Oaxaca.

1. A comuna representa a mobilização geral dos setores subalternos em um


determinado território, surgida independente de um centro convocatório, em
reposta a uma situação de acirramento da crise de dominação e do conflito de
classes.
2. Seu acionar se funda em uma territorialização que interfere ou mesmo controla a
circulação de grupos sociais, serviços e informações. Trata-se de uma
reapropriação do tempo e do espaço, em que é fundamental controle territorial,
inclusive como forma de defesa militar.
3. Desta forma, a comuna pode se projetar no sentido de uma “dualidade de
poderes”, confrontando-se à lógica espaço-territorial da dominação. É
importante assinalar que a comuna, em suas manifestações históricas, apresenta-
se ora como instrumento político, ora como forma social e seu sentido anti-
sistêmico mais profundo se dá no encontro entre ambos os momentos. Cruzam-
se então as dimensões da mobilização política, dos sistemas coletivo de
propriedade e da organização social comunitária, que apontam para problema do
(auto-)governo e do poder.
4. A comuna tira sua força da comunidade. Verifica-se uma relação profunda entre
tradições locais, entendidas como um elemento dinâmico da cultura, e a irrupção
da comuna que assume de diferentes formas as referências ao passado. Por isso
trabalho com a hipótese de que o surgimento “espontâneo” da comuna é
impulsionado pelo cruzamento entre as tradições comunitárias e o elemento da
consciência desenvolvido nas lutas sociais.
5. O reverso do enraizamento que a comunidade proporciona é o localismo, que se
apresenta como um desafio à sua sobrevivência. Desafio de nacionalizar
processo e romper o isolamento foi decisivo em Paris, se refletiu no processo
espanhol e influencia os esforços dos zapatistas em estabelecer alianças sociais
mais amplas.
6. O calendário do poder sabe que o controle da comuna só é possível com sua
liquidação. É como Hernán Cortez relatando como lidava com a resistência
durante sua passagem a Tenochtitlán: “Antes do amanhecer do dia seguinte
tornei a sair com cavalos, peões e índios e queimei dez povoados, onde havia
mais de três mil casas”. (CORTEZ, 1999, p. 17) Assim sucedem-se as cenas dos
massacres nos arredores de Paris, nas ruas de Berlim, no arraial de Canudos, na
imposição do fascismo espanhol total com que se busca conter essa “força
sísmica”. A estratégia da guerra total, que se reedita nas táticas

360
contrainsurgentes, guerras de baixa intensidade, estados de sítio aplicados em
Chiapas, Oaxaca, El Alto-La Paz, Porto Príncipe, Faixa de Gaza...
7. A construção da comuna representa a forma da emergência política de
sociedades que se movem à margem da sociedade hegemônica. Com isso, se
interpõem novas formas de controle e exercício do poder, projetando um tipo de
organização social para além do Estado e do mercado. Coloca-se então o desafio
de repensar a emancipação nos dias atuais, assimilando o potencial libertário e
de resistência presente na comunidade tradicional.172 Como me expressou um
velho militante comunista dedicado atualmente à rearticulação das lutas
indígenas, repensar hoje a construção de algo que em algum momento se
chamou socialismo pode ser sintetizado como a luta por “La extensión del ayllu
a todos los ambientes de la sociedad”. (BLANCO, 2007)

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contemporâneos. São Paulo: Edições Loyola, 2004. 4 ed.
LINERA, Alvaro García. “Democracia liberal vs. democracia comunitaria.” In El

172
Uma realidade que não se restringe a Abya Yala. Um aprofundamento destas linhas de reflexão nos
levaria a investigar o problema da modernização e a vigência de formas comunitárias em outras
regiões periféricas do capitalismo. Apenas para mencionar um eco desse debate, o líder da
independência e primeiro presidente de Gana reconhece na comunidade tradicional uma fonte de
inspiração para o socialismo africano, no sentido do humanismo de da reconciliação entre indivíduo e
coletivo. (NKRUMAH, 1967)

361
Juguete Rabioso. La Paz, jan. 2004. Disponível em
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362
Favela, território e núcleos de resistência e seu papel na construção do poder
popular

Timo Bartholl

Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói/RJ


Núcleo de Pesquisas sobre Regionalização e Globalização (NUREG), Bolsista FAPERJ
timo.bartholl@gmail.com

Resumo
Compartilho neste texto que se baseia em um trabalho que apresentei nos Campos
Temáticos, uma atividade interna do curso de doutorado, do programa de Pós-
Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense, em 2013. O texto
apresenta concepções metodológicas e noções conceituais do projeto de pesquisa
“Territórios de resistência e movimentos sociais de base: uma investigação militante em
favelas cariocas”. Apresento a abordagem metodológica da investigação militante no
âmbito de uma geografia em movimento como ferramenta do movimento social e da
luta popular. Discuto, a partir das lutas nas quais estou inserido, e as quais, como
consequência disso, investigo para refletir e fortalecê-los, favelas como territórios de
resistência (implícita e explícita) sob o ponto de vista da atuação de núcleos de
resistência em favelas e sua capacidade de construir, nas bases, poder popular. Um
esforço coletivo de articular alguns destes núcleos, a nível do Fórum Popular de Apoio
Mútuo, aponta para potencialidades e dificuldades desta construção e revela a
necessidade de compreendermos as dinâmicas das relações sócio-territoriais das favelas
nas quais estamos inseridos. Proponho uma abordagem multiescalar e multiterritorial e
apresento um esquema de territórios-(de-resistência)-rede com o desejo de poder,
assim, contribuir com esta tarefa.

Palavras-chave: Favela, Território, Resistência, Poder popular, Investigação militante

1 Introdução: Favela, território e núcleos de resistência e seu papel na construção


do poder popular173
Como, em territórios populares, formas de resistência explícita de grupos que realizam
trabalho de base em favelas (construção de poder popular) articulam-se com formas de
resistência implícita embutidas em uma diversidade de práticas subalternas (diversidade
de práxis populares) ?
Esta questão norteia o projeto de pesquisa: “Territórios de resistência e movimentos
sociais de base: Uma investigação militante em favelas do Rio de Janeiro”. É uma
questão que deriva do trabalho de base e busca levar conceitos genéricos, de luta, ao
encontro de pesquisas e formulações conceituais e teóricas de uma geografia e ciência
social crítica comprometida com a transformação social libertária.

173
Uma pequena parte deste texto foi apresentado no ENANPEGE 2013 (cap.5), enquanto que outra parte
maior (cap.2 a 4) foi apresentada no CBG 2014. Aqui apresento o texto revisado e ampliado em diálogo
com a temática do SIPPAL “Poder Popular na América Latina” em geral e com a temática do eixo 3
“Poder Comunitário, Movimentos Indígenas e Afrodescendentes” em específico.

363
É uma questão que surge e que se entende parte de uma busca de analisar para avaliar,
de compreender para fortalecer e avançar sob permanente contato entre reflexão e os
processos dos quais trata. O objetivo específico desta pesquisa é acompanhar, refletir e
discutir o trabalho de movimentos sociais de base que atuam em favelas no Rio de
Janeiro para alcançar um melhor entendimento das formas de resistência e de
territorialização, expressas na relação “favela como território” e “movimento social de
base que nele se territorializa”. Participo, desde 2008 de processos de resistência
popular, e questões a serem estudadas neste processo surgiram das práticas destas lutas.
Acompanhar, neste sentido, também trata dos contextos que eu mesmo estou envolvido,
tanto como integrante de um grupo, como no âmbito de uma rede de pessoas e grupos
com os quais existem laços de colaboração, apoio mútuo e construção coletiva. Parto da
esperança de que a compreensão do território como categoria analítica e como categoria
da prática pode contribuir tanto para uma Geografia libertária e libertadora quanto para
o trabalho de base.
Na primeira parte gostaria discutir, a partir do campo da geografia crítica, em qual
ambiente metodológico este trabalho se insere e com isso apresentar o método de
“investigação militante” como uma ferramenta potente com a qual as nossas pesquisas
podem fortalecer as nossas lutas populares. Na segunda parte discuto conceitos-chave
da relação movimentos sociais de base e favela como territórios de resistência e sua
importância para o projeto maior da construção de poder popular no campo e nas
cidades, discussão esta que se baseia na experiência concreta da construção do Fórum
Popular de Apoio Mútuo no Rio de Janeiro.

2 Geografia a serviço do homem comum

Quanto à ciência morta, a ciência falsificada, cujo único objetivo é introduzir


no povo todo um sistema de falsas noções e concepções, ela seria para este
último verdadeiramente funesta; ela lhe inocularia o vírus oficial, de todo
modo, o desviaria, ao menos por um tempo, do que é hoje a única coisa útil
e salutar: a revolta (BAKUNIN 2009:24)

Nas ciências sociais críticas em geral e na geografia em específico em diversos


momentos têm ocorrido importantes debates sobre o como de fazermos ciência e o
significado da mesma para além da academia. Na geografia, em diversos contextos
surgiram perspectivas críticas que renovaram o arcabouço teórico e conceitual no que
diz respeito a conceitos chaves como espaço, território ou lugar. Foi com os
movimentos sociais dos anos '60 que surgiu uma corrente de geografia radical nos
países anglofônicos e também na Espanha e França, com uma vertente predominante
marxista e outra, minoritária, libertária (PEET 1977, BREITBART 1989, SMITH 2001,
HARVEY 2001, LACOSTE 1989, SOUZA 2010).
A geografia: o que é, para que serve e a quem serve (MOREIRA 2011:87)?
No Brasil, a geografia crítica surge igualmente num contexto da necessidade de
repensar o papel da ciência. Rompendo com o neopositivismo, abordagens críticas para
analisar as relações sócio-espaciais ganham força e formam uma importante, se não a
mais importante corrente da geografia humana brasileira (SANTOS 2002, CAMPOS
2001). Em outros países, tais como na Europa Central geografias não-críticas

364
continuaram predominando, porém desde a entrada no século XXI alguns pesquisadores
conseguiram conquistar espaços nas universidades defendendo perspectivas que veem
na atividade científica um caminho para pensar e buscar fortalecer possíveis caminhos
de transformações amplas e radicais rumo a superação do capitalismo globalizado
(BELINA 2008).
E a geografia, tantas vezes a serviço da dominação, tem de ser urgentemente
reformulada para ser o que sempre quis ser: uma ciência do homem (SANTOS
2002: 261).
Na perspectiva de uma geografia a serviço do homem comum, importantes questões
epistemológicas e com isso metodológicas e conceituais continuam precisando ser
abordadas em busca de processos emancipatórios que relacionem prática e teoria num
movimento de uma práxis emancipatória. Em termos de método, pesquisas quantitativas
e qualitativas tratando de questões relevantes para as classes populares até observações
participantes e abordagens de pesquisa-ação têm servido para gerar conhecimento ao
redor de movimentos sociais (DENZIN & LINCOLN 2005). Estas abordagens tiveram
um papel importante para diversas pesquisas ao mesmo tempo que em sua maioria
mantiveram uma relação que distingue entre pesquisador e ator e tomaram esta distinção
como um fundamento necessário para se poderem obter resultados objetivos, para que
pudesse ser feito um trabalho científico. Além disso,porém, surgiram também
abordagens que visam a busca de um rompimento da clássica barreira entre o cientista e
o processo pesquisado, no nosso caso entre ciência e movimento social. É neste sentido
que surge uma abordagem metodológica que une ciência e resistência, processo de
pesquisa e processo de luta.

3 Pesquisa em ação
La idea de la «coinvestigación», esto es, de una investigación social que rompe
con la división entre sujeto investigador y objeto investigado, en cambio, no aparecerá
hasta la década de 1950 (MALO 2004:17) ...
A investigação militante nasce em diversos contextos de luta e vinculado a correntes
ideológicas dos campos libertários e marxistas heterodoxo em busca de integrar ciência
social e ação política. Ela abre um horizonte de pesquisa a partir de e através da
inserção do militante-investigador em processos de resistência em diferentes escalas e
diversos contextos: geografias feitas em, junto ao e pelo movimento social. É esta
abordagem que serve como pano de fundo metodológico deste projeto.
En la investigación militante el investigador se involucra al cien por ciento
con el método y el problema a trabajar. La investigación no puede ser
ejercida por un investigador no militante, pues es mediante la militancia
puesta en práctica que el investigador llega al núcleo del problema
(BORDA 2010).
Esta metodologia tem diversos pontos de referência, e foi desenvolvida por cientistas de
diversas áreas das ciências sociais, desde os anos 1960, tais como Moser (1977),
Breitbart (2003) ou Kemmis e Taggart (2005). Sob o nome de investigaccíon acción
participativa (IAP), pesquisadores como Obando-Salazar (2006) e Borda (2010)
desenvolveram importantes ferramentas de pesquisa em ação.
A proposta de investigação militante baseia-se na:

365
… posibilidad de que la ciencia entre no como monocultura sino como parte
de una ecología más amplia de saberes, donde el saber científico pueda
dialogar con el saber laico, con el saber popular, con el saber de los
indígenas, con el saber de las poblaciones urbanas marginales, con el saber
campesino (SANTOS 2006:26).
A partir da perspectiva de defesa das epistemologias e dos saberes das periferias
urbanas, camponesas, indígenas, é crucial valorizá-las enquanto propostas vivas de uma
outra sociedade possível, que não há como encontrar com o mesmo vigor e a mesma
clareza nos territórios das classes sociais dominantes, onde vida e convivência muito
mais do que nos territórios populares seguem, afirmam e fortalecem a lógica do sistema
único/hegemônico. A investigação militante visa produzir, dialogando com Porto-
Gonçalves “saberes com”, deixando o campo clássico das ciências dos “saberes sobre”,
os quais o mesmo autor denomina de “saberes da dominação” (2006b:48).
Com Borda podemos constatar que uma investigação militante é inviável para
pesquisadores que não estão envolvidos com os processos que pesquisam. No campo da
geografia crítica, Bunge (1977) defendeu uma geografia enquanto práxis e intervenção
social e convocou que os geógrafos morassem nos lugares que estudam: “He knows
what the people in that region need geographically by becoming a person of that region.
He lives there, works there,...” (p.37).
No campo dos próprios movimentos sociais, a investigação militante ganha um papel
importante no movimento operaísta, que surgiu na Itália nos anos '60. Malo (2004)
organizou um belo livro tratando de diversas destas experiências de investigação e
militância chegando a conclusão de que
...la coproducción de conocimiento crítico genera cuerpos rebeldes. El
pensamiento sobre las prácticas de rebeldía da valor y potencia a esas mismas
prácticas. El pensamiento colectivo genera práctica común (p.35).

4 Geografia em movimento
A geografia, neste sentido, apresenta-se como uma ferramenta para conseguir realizar
reflexões aprofundadas e necessárias de nossas lutas e das realidades nas quais estas
acontecem. Proponho tomar a luta social e popular como ponto de partida para ir ao
encontro com uma geografia em movimento, encontrando nela um meio e catalisador
numa relação de troca e enriquecimento mútuo, no qual o conhecimento circula e
conecta diversos campos de atuação e reflexão e onde teoria e prática são inseparáveis.
O debate acerca da relação entre ciência e classes populares ganha importância, não
somente, mas também devido a conquistas na luta dos setores populares pelo acesso às
universidades: uma relação na qual estudantes e pesquisadores vêm de classes populares
e seus movimentos sociais para as universidades e, numa estrada de via dupla,
estudantes e pesquisadores, vindo das universidades, se juntam a movimentos sociais.
Numa geografia em movimento, neste sentido, militantes de movimentos sociais se
tornam também pesquisadores, e pesquisadores se tornam militantes. O desafio
colocado é ver potenciais e limites nesta relação, e construir um caminho próprio de
uma relação de movimento social e geografia, que integra a segunda ao primeiro numa
perspectiva emancipatória, na qual lutamos para transformar, refletimos para
compreender e para potencializar a luta popular. Uma relação de movimento social e

366
geografia na qual a reflexão da luta pela transformação também é uma luta pela
transformação da reflexão.
Na investigação militante, pesquisador e militante confundem-se enquanto sujeitos e
seus campos enquanto perspectivas de pesquisa e luta. Isto não nos libera da
necessidade de agir com clareza, pesquisar e teorizar com coerência e e nos localizar em
cada etapa dos processos de prática-teoria. Buscamos uma postura além de “ou um, ou o
outro” - “ou pesquisador, ou militante”.
Ao acrescentar este elemento de relação possível entre geografia e movimento social
não pretendo dizer que tem que ser assim, de que haja um caminho único e certo.
Defendo que haja pesquisadores e estudiosos cujo esforço primordial seja a reflexão e
elaboração de teoria, tal como defendo que haja militantes que não se deparem sempre
com a necessidade de teorizar profundamente. Mas vejo, neste campo, a possibilidade
de estabelecer um continuum, uma diversidade de relações possíveis entre pesquisa e
ação, e uma possibilidade neste campo contínuo é uma investigação que nasce como
necessidade do movimento social e é exercido e levado à frente pelo próprio
movimentos social, podendo envolver estruturas acadêmicas e mais estritamente
científicas ou não.
I have been struggling with the linkages between the academic world and my
community activism (…) So can I be an academic and an activist at the same
time? If so, how (BLOMLEY 1994:383)?
O desafio, porém, não se coloca para o indivíduo, buscando alcançar algum suposto
ideal do “acadêmico ativista”, o menos contraditório e mais puro possível, tal como
colocado por Blomley em artigo citado acima. Trata-se de uma questão coletiva, do
próprio movimento social em seu sentido amplo buscando unir questões de teoria e
prática, saber científico e educação popular. Nisso, algumas perguntas que surgem são:
Qual ciência queremos e precisamos (para fortalecer as nossas lutas das classes
populares)? Qual epistemologia, quais ferramentas teóricas, conceituais e
metodológicos temos e/ou devemos desenvolver para fortalecer a ciência em sua função
de servir ao povo e sua luta e quais caminhos para construir “ciências em movimento”?
O campo e os debates que tratam da questão do conhecimento, da relação do sujeito, da
objetividade científica embutida numa subjetividade política, a pesquisa-ação e a
investigação militante, são solos férteis para uma construção de uma ciência libertária
em movimento.
Encuesta, coinvestigación. Composición de clase, autovalorización. Lo personal
es político. Partir de sí. Transversalidad. Micropolítica y economía de los deseos.
Liberación de la expresión. Líneas de fuga. Investigación-acción. Todos estos
conceptos-herramienta reaparecerán en las iniciativas actuales que buscan
articular investigación y acción, teoría y praxis (MALO 2004:34).
O desafio é articular teoria, prática e ideologia num sentido emancipatório e popular.
Para tanto rompemos possíveis barreiras entre ciência e movimento social, considerando
que
… uma prática política eficaz exige, portanto, o conhecimento da realidade
(teoria), a postulação harmônica com ela de valores objetivos de transformação
(ideologia) e meios políticos concretos para conquistá-la (prática política) (FAU
1970).

367
Nesse âmbito a pesquisa em andamento, nesta altura, menos traz respostas bem
amarradas e sim aponta para questões que precisam ser aprofundadas e que nortearão
reflexões para além da conclusão do projeto, numa busca de contribuir para que a
geografia em movimento possa ser uma ponte entre universidade, classes populares e
suas lutas:
- Como militar enquanto geógrafo no movimento social e como pesquisar enquanto
militante na universidade?
- Como podemos articular prática e teoria, luta popular e ciência social, epistemologias,
metodologias e conceitos para que integrem geografia e movimento social?
- Ao concordamos em enxergar na ciência social crítica uma ferramenta do povo, da
luta popular, quais as possibilidades de construir um campo de pesquisa e ação, uma
epistemologia nossa, libertadora, na qual não haveria por que distinguir intelectual e
militante enquanto sujeitos que se diferenciam, mas sim que se integram em um projeto
emancipatório?
- Como construir um projeto no qual ideologia, teoria e prática têm seus devidos
lugares, nunca separados, mas também sem confundi-los e no qual nós, sujeitos que
militamos e pesquisamos ocupamos lugares numa relação contínua entre teoria e
prática?

5 Espaço, poder, território


Seja para amenizar o embrutecimento representado e condicionado pelas
cidades atuais, seja para conquistar cidades substancialmente diferentes e mais
justas, é preciso refletir e agir levando em conta o que mais importa: a dinâmica
da relações sociais, em especial a dinâmica das relações de poder, e os vínculos
disso com o espaço, na sua dupla qualidade de produto e condicionante da relações
sociais (SOUZA 2006: texto de capa).
O espaço, em sua condição de produto e ao mesmo tempo condicionador de relações
sociais se apresenta (como fato do real, conceito ou categoria de análise) como crucial
para compreender processos de resistência e poder. Nisso, há um conjunto de análises
que tEm utilizado o conceito espaço para abordar dinâmicas de resistência, tais como os
trabalhos reunidos em “Geographies of Resistance” (PILE & KEITH 1997). Pile em sua
introdução consta que “resistance opposes power”, o que o leva em ficar preso, na
análise subsequente a um sistema binário de espaços ou de poder (sempre em termos
absolutos) ou de resistência (PILE 1997:1). Esta abordagem cria uma ideia de que, para
romper com o poder, precisaria superá-lo em sua totalidade espacial, em espaços onde
reina por absoluto, reduzindo a possibilidade de resistência para espaços menores,
marginais, onde resistência possa se desenvolver e criar espaços de oposição aos
espaços de poder.
O problema desta relação binária 'espaço de poder' – 'espaço de resistência' mostra-se na
discussão que Pile desdobra entre uma posição de David Harvey, a favor de uma luta de
classe como luta dos trabalhadores e Manuel Castells, este protagonizando em seus
estudos de movimentos sociais urbanos múltiplas lutas, identitárias, tais como de
imigrantes latinos ou homossexuais em São Francisco. Cada vez que Pile tenta fazer a
conexão entre as relações de lutas complexas que discute, com sua noção de espaço, ele
parece estar tropeçando pelo seu próprio sistema binário de espaço.

368
O poder, tal como entendido por Pile, ao nosso ver, seria mais bem denominado de
“poder de dominação”, nas palavras de Holloway (2005) “power-over” (poder-sobre).
Este poder-sobre se funda ao expropriar o “power-to” (poder-fazer). O poder-sobre está
em contradição, mas sempre sempre junto ao poder-fazer, tem nele a fonte originária de
sua condição de ser (p.27-42). Recorrendo à ampla e profunda discussão de poder de
Foucault, Raffestin (2011) constata: “Onde há poder há resistência e no entanto, ou por
isso mesmo esta jamais está em posição de exterioridade em relação ao poder” (p.48).
Dialogamos com Holloway (2010:257):
There is no purity here: we try to overcome the contradictions, we rebel against
our own complicity, we try in every way to stop making capitalism, we try to direct
the flow of our lives as effectively as possible towards the creation of a society based
on dignity. We are part of the social flow of rebellion, and in this flow there is no
room for rigidities and hard lines. The concepts of correctness and betrayal, its
complement that is so rooted in the culture of the left, are obstacles to the flow of
rebellion.
O quadro de relações complexas no que diz referente a poder e resistência, tanto a nível
da discussão teórica-filosófica como na realidade vivida, chamou na geografia por
abordagens conceituais e de análise renovadas. Diante da complexidade das relações de
poder, ganha importância na análise do espaço, além de seu caráter como resultado e
condicionante de relações sociais citado acima, seu caráter de meio destas relações. O
espaço condiciona e resulta ao mesmo tempo que é meio, meio através do qual relações
sócio-espaciais são produzidas.
“Essa configuração de 'contraespaços' dentro das ordens sociais majoritárias precisa ser
analisada, seja na escala mínima das relações cotidianas, seja em escalas mais
amplas,...“ Haesbaert, já em 1987 (2012:15) constrói o que talvez seria uma ponte,
simbolizando uma passagem na qual a produção, sempre conflituosa, do espaço passa,
cada vez mais e com maior profundidade, a ser discutida através do território e dos
processos de territorialização.
Vivemos com uma noção de território herdado da modernidade incompleta e do
seu legado de conceitos puros, tantas vezes atravessando os séculos praticamente
intocados (SANTOS 1993:15).
Superando o ditado da pureza, o território abre um campo conceitual – teórico-prático –
fértil. Ao territorializar-nos, produzimos espaços, através de múltiplas territorializações,
ou em diálogo com Haesbaert (2004) des-re-territorializações, constituem-se territórios
zonais, (des)contínuos e/ou em rede e são produzidos espaços multiterritoriais que
expressam relações de dominação, exploração, opressão e múltiplas resistências,
vinculadas e articuladas, nunca puras. Um espaço multiterritorial e que tem inscrito a
cada instante as narrativas de uma sociedade capitalista desigual e violenta, sujeito de
lutas constantes.
De qualquer forma, finalmente, parece que podemos provar o contrário da tese
de Virílio de que a desterritorialização seria a grande questão desta passagem de
século. Mais do que isto: o que está dominando é a complexidade das
reterritorializações, numa multiplicidade de territorialidades nunca antes vista,
dos limites mais fechados e fixos da guetificação e dos neoterritorialismos aos mais
flexíveis e efêmeros territórios-rede ou 'multiterritórios' da globalização. Na
verdade seria mais correto afirmar que o grande dilema deste novo século será

369
o da desigualdade entre múltiplas velocidades, ritmos e níveis de des-re-
territorialização,... (HAESBAERT 2004:372)
Haesbaert continua, em conclusão de “O mito da desterritorialização”, apontando para a
importância da desigualdade neste processo, no qual uma minoria usufrui dos
territórios-rede capitalistas e uma esmagadora maioria está restrita a territorializações
precárias. É com um olhar para a potência e a latência de processos de
territorializações-outras – na face plena de tensões entre multiterritorialidade efetiva e
potencial (HAESBAERT 2007:41) que este trabalho busca compreender como – de fato,
conceito, desejo e horizonte de luta – territorializações das classes populares nascem de
poderes-fazeres que constroem, indiretamente e diretamente poder popular e que como
tal possam estar apontando para caminhos rumo a uma convivência emancipatória, a
nível global, fundada em relações horizontais e livres de dominação, exploração e
opressão entre os múltiplos territórios e as múltiplas territorializações constituídos pela
livre (inter)ação do homem.

6 Favela: território de resistência e insistência


Favela é resistência / Maré vem pra rua / Com o Se Benze Que Dá174

As experiências de luta, a convivência e o cotidiano da vida nas favelas nos ensina que,
ao falar em resistência nestes territórios, estamos tratando de um conceito que vai além
do que seria talvez o senso comum ou sentido clássico de resistência. Consultando a
enciclopédia online Wikipédia, nos idiomas inglês, português, espanhol e alemão
encontramos uma ideia de resistência no sentido de uma atuação direcionada contra um
poder opressor ou uma autoridade. Resistência neste sentido restrito porém, não daria
conta da riqueza e das múltiplas facetas de resistências que encontramos nas periferias
tais rurais como urbanas. Culturas de resistência da favela combinam elementos mais
explícitos – pessoas organizam-se para enfrentar algum problema, superar uma relação
de dominação – e elementos mais implícitos – pessoas constroem formas de superação
de problemas a nível individual e coletivo na convivência do dia a dia. Neste sentido
podemos falar em resistências propositivas, compostas por movimentos de negação-e-
criação (HOLLOWAY 2010:17) que produzem uma relação de contra-e-além-de, ou
também o inverso, em-prol-de-lógicas-outras-portanto-contra lógicas dominantes e
hegemônicas da cidade capitalista. “It is the moving that is important, the moving
against and beyond, the negating and creating...” (p.19).
... [A] historia aqui dessa região toda (...) é de resistência mesmo, de muita
insistência.
Esta afirmação feita por um dos fundadores do Museu da Maré em documentário
produzido para The Guardian Online por Ben Holman175, refere-se a história das favelas
da Maré, cuja existência é fruto de décadas de lutas pelos seus moradores, tanto na
autoconstrução de moradias (os primeiros anos antes da aterrizagem das áreas em casas
de palafita) como na auto-organização da convivência havendo que lidar com inúmeras
174
Trecho do samba enredo do bloco carnavalesco “Se Benze Que Dá”. Este bloco, uma ferramenta de
luta social formada por moradores e amigos das favelas da Maré, realiza desfiles pelas favelas da Maré
em époqua de carnaval lutando pelo direito de ir e vir nas favelas e contra a repressão e opressão sofridas
pelos moradores de favela. Página web do bloco: http://blocosebenzequeda.blogspot.com.br/
175
Disponível em http://www.beijafilms.com/BEIJA_FILMS/_TV_Mare.html

370
restrições e desafios, desde a falta de saneamento, passando por péssimas condições dos
sistemas de educação, de saúde até a concentração da violência urbana sob forte
influência de agentes públicos corruptos e muitas vezes agindo de forma criminosa
como é o caso da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
“Resistência e insistência” dos moradores das favelas são parte de processos de
construção em muitos momentos coletiva, mas igualmente individual, na busca de um
lugar na cidade e de uma cidade com lugar para todas e todos. Se a cidade por uma lado
precisa dos favelados, muitos deles migrantes provindo de outras regiões do Brasil, em
termos de mão-de-obra barata e cada vez mais também enquanto consumidor, estes
nunca forma recebidos como cidadãos. As lutas pela permanência e sobrevivência na
cidade, assim, inscreveram-se nas routinas e nos cotidianos dos moradores de favelas,
criando territórios de periferia urbana ricos e densos em termos de culturas de
resistência e práxis populares urbanas.
Como sugere James Scott: Estoy firmemente convencido de que los de abajo
(ese amplio conglomerado que incluye a todos, y sobre todo todas, quienes
sufren opresión, humillación, explotación, violencias, marginaciones...) tienen
proyectos estratégicos que no formulan de modo explícito, o por lo menos no
lo hacen en los códigos y modos practicados por la sociedad hegemónica
(ZIBECHI 2009:6).
Em diálogo com Zibechi (2009), podemos constar que se encontram em periferias
urbanas múltiplas formas de sociabilidades e territorialidades anti-hegemônicas que
levam a constituição de territórios-outros, contruídos por „sociedades em movimento“
(p.30). Inspirado em seu trabalho: “Territórios en resistência. Cartografia política de las
periferias urbanas latino-americanas” abordo as favelas do Rio de Janeiro enquanto
formas específicas de tais territórios de resistência.
Para melhor compreender estas resistências, das organizadas e explícitas, formas de
construção de poder popular, até as espontâneas, menos evidentes e implícitas, das
pontuais até as cotidianas, inscritas em uma diversidade de práxis populares, discutimos
resistência a partir de uma abordagem que organicamente nasce das lutas e que aponta
para um conceito amplo e aberto que não se baseia em um ideia de práticas resistentes
puras, e sim práticas ambíguas e contraditórias, construídas através de relações fluidas,
retomando a discussão acima, de poderes-fazeres (de baixo) e poderes-sobre (de
dominação) (HOLLOWAY 2005).
Mas dizer colonialidade é dizer, também, que há outras matrizes de
racionalidade subalternizadas resistindo, r-existindo, desde de que a dominação
colonial se estabeleceu e que, hoje, vêm ganhando visibilidade. Aqui, mais do
que resistência, que significa reagir a uma ação anterior e, assim, sempre uma ação
reflexa, temos r-existência, é dizer, uma forma de existir, uma determinada
matriz de racionalidade que age nas circunstâncias, inclusive reage, a partir de um
topoi, enfim, de um lugar próprio, tanto geográfico como epistêmico. Na
verdade, age entre duas lógicas (PORTO-GONÇALVES 2006a:165, grifes no
original).
Sugerimos em diálogo com Porto-Gonçalves, que o nosso conceito de resistência
contenha este horizonte ampliado, propositivo, que o autor diferencia e denomina de r-
existência. A resistência das classes populares, ao nosso ver, é construída através de
ações que, respondendo ásdiversas formas de opressão e repressão, combinam
elementos de reação e criação em proporções que mudam de ação em ação e contexto
em contexto, mas nunca são excludentes uns aos outros. A reação, importante lembrar

371
disso, pode ser tanto de negação como de aceitação, num jogo de disputas entre poderes
hegemônicos (buscando ditar de como se devem fazer as coisas) e poderes alternativos,
populares das classes subalternas (buscando fazer as coisas de um jeito próprio). Nisso,
a resistência não é pura, territórios de resistência são atravessados por territorializações
contraditórias que se constituem por uma diversidade de relações de dominação,
exploração e opressão (sempre vinculadas as suas respetivas formas de resistências). O
conceito territórios de resistência aponta para a importância dos poderes-fazeres, da
construção de poder popular pelas classes subalternas numa perspectiva multiterritorial.
Ciertamente, no todos los barrios y ciudades autoconstruidas representan la
misma trayectoria y en varios casos parecen muy lejos de conformar formas de
poder popular o autogobierno local. Pero parece fuera de duda que en esos
espacios anidan potencias de cambio social que aún no hemos sido capaces de
descubrir en toda su magnitud (ZIBECHI 2009:41).
As favelas são formas urbanas espacializadas que expressam relações sócio-econômicas
extremamente desiguais, ao mesmo tempo que apresentam-se como uma forma de
solução possível para o seus moradores. Diante de inúmeros problemas de uma
sociedade de exploração na qual as classes baixas não têm garantido seus direitos mais
básicos como moradia, saúde, educação, segurança mínima as favelas são “uma forma
de luta pelo direito a cidade” (Burgos 2012:p.373).
Esta abordagem dialoga com cartazes que têm sido vistos em diversas das mobilizações
e protestos que tomaram conta das ruas desde o início de Junho de 2013, e que no Rio
também envolveram diversas mobilizações de moradores de favela (como uma
manifestação do Horto, outra do Santa Marta e um ato na Maré) que constam: „Favela é
cidade.“ Porém, numa perspetiva crítica, uma pergunta a se fazer é de que cidade
estaríamos falando? A cidade do capital, a cidade mercadoria? Cidade dos shopping
centers e dos espaços privatizados? Ou seja, uma perspetiva de resistência nos leva
além: Favela é cidade, sim. Mas ela é mais do que isso!
Em “El tizón encendido: Protesta social, conflicto y territorio en la Argentina de la
posdictadura”, Stratta e Barrera (2009) identificam nas periferias urbanas de Buenos
Aires, os berços das experiências dos anos de grande movimentação de resistência
(2000-2003). Eles identificam a territorialidade subalterna como uma relação sócio-
territorial que “conjuga necesidad, práctica comun y repertorios, además de amor,
afecto, seguridad emocional y un conjunto de elementos que hasta hace algunos años la
sociedad capitalista reservaba para la familia” (MAZZEO 2009:16). Uma
territorialidade que surge e torna possível imaginar e começar a criar um mundo
distinto, como um lugar onde é possível o exercício “de aquellas subjetividades afines a
la autoactividad” (p.16).
Favela é mais do que cidade formal-do-capital, se constitui por territorialidades-outras-
e-além, aponta para além da cidade tal como ela é. Refletir organização e luta popular
(do cotidiano e espontâneo até o longo prazo e o planejado) nos dá elementos para
pensar e lutar por uma construção de uma cidade de todas e todos para todas e todos
(um espaço urbano que produzimos e do qual usufruímos coletivamente). As favelas
enquanto territórios de resistência questionam se não ameaçam o projeto único de
cidade formal-do-capital. Não é a toa que num Rio dos megaeventos tanta atenção gira
em torna da questão de como ou destruir e remover ou integrar e controlar estes
territórios.

372
7 Movimento social urbano, territórios-(de-resistência-)rede e poder popular
Em 2013 e as ruas têm sido tomadas inúmeras vezes, numa dimensão histórica, por todo
o Brasil desde Maio/Junho deste ano. As mobilizações que tornaram as “cidades
rebeldes” (Maricato et al. 2013), tiveram um papel importante para repensar política e
colocar em questão um sistema político e de poder dominante a favor do capital e com
isso de poucos á custo de muitos. As mobilizações deste ano geraram dinâmicas que
também oxigenaram e fortaleceram processos de luta nas, a partir das ou no mínimo
considerando as favelas.
Processos recentes de opressão protagonizado por agentes do Estado, através da invasão
e subsequente ocupação militar de favelas em forma de Unidades de Policiamento
Pacificador (UPP) ganharam visibilidade. Se durante os primeiros anos, a primeira foi
instalada em 2008, as UPPs contaram com níveis preocupantes de apoio pouco crítico
dentro e fora da academia, protestos de rua deram visibilidade de problemas associados
a atuação truculenta da Polícia Militar em UPPs e estas se tornaram alvo de devidos
questionamentos. O desaparecimento de um morador da Rocinha, Amarildo, que com o
que as investigações indicam, morreu por ser torturado por policias militares da UPP
Rocinha, ganhou visibilidade nacional e internacional. A violência e truculência das
forças de estado contra manifestantes em inúmeras situações tiraram a invisibilidade
produzida midiaticamente das práticas policiais violentas: “A polícia que reprime na
Avenida é a mesma que mata na favela!”176
Toda esta dinâmica criou ou intensificou relações entre diversos grupos de favelas,
grupos fora das favelas que apoiam suas lutas e a rua se tornou um lugar importante
para articulação de novas perspectivas de luta. Neste processo também grupos que
participam dos processos desta investigação conseguiram avançar na busca de se
fortalecer nos seus territórios, nas suas lutas. Sem entrar em detalhes destas dinâmicas
neste momento, o acompanhamento e a participação destes processos levou a algumas
considerações que permitiram rascunhar um esquema de relações entre núcleos de
resistência, favelas, cidade.
A dinâmica também oxigena a nossa reflexão para pensar movimento social urbano
contemporâneo em termos mais gerais. Ponto de partida desta investigação,
especificamente, são pequenos grupos de pessoas que atuam e na sua maioria moram
em favelas. Poderíamos descrevê-los, com Souza (2009:11), como “movimentos sociais
emancipatórios, fundados sobre princípios e valores como liberdade, justiça e
igualdade” que questionam profundamente a ordem sócio-espacial vigente e lutam por
sua ultrapassagem sem tomar posições vanguardistas e que seguem, com Corrêa
(2012:199) uma linha antiburocrática e de construção de poder popular. No nosso caso,
ao falarmos em movimento social de base, focamos na importância do trabalho de base,
que visa um trabalho de inserção e interação com o território no qual atua a longo prazo.
São grupos que de alguma forma estabelecem relações interdependentes, formam um
núcleo de base que atua e está inserido no território popular buscando fortalecer
esforços e ações próprias das classes populares para conjuntamente mobilizar-se,
organizar-se e capacitar-se para exercer o poder popular (Peloso 2012:9).
É verdade que há [no povo] uma grande força elementar, uma força sem dúvida
nenhuma superior à do governo, e à das classes dirigentes tomadas em
conjunto; mas sem organização uma força elementar não é uma força real. É

176
Faixa da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência utilizada em diversas manifestações
populares durante os meses de Junho a Setembro 2013.

373
nesta incontestável vantagem da força organizada sobre a força elementar do povo
que se baseia a força do Estado. Por isso, o problema não é saber se eles [o povo] se
podem sublevar, mas se são capazes de construir uma organização que lhes dê os
meios de chegar a um fim vitorioso – não por uma vitória fortuita, mas por um
triunfo prolongado e derradeiro (BAKUNIN op cit. FARJ 2009:124).
A construção do poder popular, à qual se dedicam grupos de resistência em favela no
Rio de Janeiro, depende, entre outros, de uma compreensão profunda dos territórios nos
quais estamos inseridos e nos quais atuamos. Espero que a perspetiva e o acúmulo de
experiências das lutas nas e partir de territórios de resistência, que apresentei neste
texto, possam contribuir com a discussão e o afinamento da nossa concepção de poder
popular. Existem, entre os movimentos populares, duas palavras de ordem principais
sobre este poder: “Lutar, criar, poder popular!” e “Lutar, construir, poder popular!”, e os
verbos “criar” e “construir” também são utilizadas em diversos textos que discutem o
tema. A nossa concepção que parte do olhar para resistências implícitas, que constituem
- dialogando com a citação acima – uma “força elementar” e que são expressões vivas
da “potência dos pobres” (RAHNEMA & ROBERT 2008) em seus territórios e busca
compreender como formas mais explícitas de trabalho de base em favelas se conectam
com estas formas, indica que destes destes termos mais bem dialoga com a concepção
de poder popular dos territórios de resistência do que o outro: construímos algo, uma
casa por exemplo, com partes pré-existentes, como tijolos, cimento, azulejos, mas que
somente ao serem construídos em conjunto, no nosso sentido ao tomare outra forma de
organização entre eles, ganham a forma de uma casa de fato. Criar uma casa porém,
significaria de certa forma, começar do zero. A criação no seu sentido de dar origem a
algo completamente novo não corresponde ao que enxergamos e encontramos nos
territórios quilombolas, indígenas, campesinos, ribeirinhos e, no nosso caso específico
favelados: muita potência que atravessa e se expressa através de toda uma gama de
práxis populares a partir das quais é possível imaginar a construção de um poder
popular que possa ganhar cada vez mais força para que fosse possível derrubar (em vez
de tomar o poder d)o Estado (HOLLOWAY 2005) capitalista rumo a uma sociedade
livre de dominação e opressão.
Nisso, os desafios da luta urbana a partir dos territórios de resistência, as favelas,
envolvem alguns conceitos-chave que são inter-relacionados e precisam ser abordados e
compreendidos de maneira integrada. Nisso, pelo ponto de vista dos grupos que se
comprometem com a luta de resistência nas favelas têm como desafio achar respostas à
questão quais as melhores formas de conectar seus esforços do trabalho de base com as
práxis populares nos territórios subalternos onde atuam com o objetivo de construir o
poder popular nas e a partir das favelas.
O território neste esforço de construção de poder popular é um recurso importante e
potente tanto para frear como para fortalecer resistências. Nos territórios onde atuam e
em conexão com outros territórios, núcleos de resistência encontram uma diversidade de
formas, mais ou menos violentas que atuam para conter, reprimir, controlar as forças de
resistência da “classes perigosas” das periferias urbanas. Instituições do Estado, como
escolas, centros de saúde, nos casos mais extremos e violentos a Polícia Militar, UPPs,
etc., ou não estaduais como igrejas, ONGs, OSCIPs atuam nos territórios e os núcleos
de resistências tais como os moradores no cotidiano e nas suas lutas de resistência
precisam definir suas relações com estes espaços ao tecer suas relações sócio-
territoriais.
Um desafio de quem luta e pesquisa neste cenário, é de melhor definir e com isso
compreender, em geral, as formas de movimento social urbano em favelas do Rio de

374
Janeiro. Uma experiência instigante de movimento social de periferia, a Rede Extremo
Sul de São Paulo, mostra força ao juntar lutas nucleares, em um bairro um espaço
comunitário, em outro bairro uma ocupação urbana, etc. e formar uma rede de
fortalecimento mútuo. Nesta linha também poderíamos pensar (e construir) a relação
entre grupos de resistência em favelas do Rio de Janeiro. Núcleos estes que inserem-se
em contextos das favelas onde atuam, onde estabelecem relações com “sociedades em
movimento” que Zibechi (2009:6) caracteriza por “las formas de resistencia de escasa
visibilidad pero que anticipan el mundo nuevo que los de abajo entretejen en la
penumbra de su cotidianidad.”. No Rio de Janeiro, neste mesmo espírito, o Fórum
Popular de Apoio Mútuo busca articular e fortalecer núcleos e trabalhos de base de
moradores de favela com apoio de companheiras e companheiros não-moradores.

8. A experiência do Fórum Popular de Apoio Mútuo


“Os protestos de junho de 2013, que levaram milhares de pessoas às ruas,
ajudaram também a fortalecer as lutas de base que, há algum tempo, já vinham
sendo desenvolvidas em favelas, ocupações e bairros populares do Rio de Janeiro.
Em julho [de 2013], grupos que atuam nestas bases e companheiras e
companheiros comprometidos com a resistência popular, realizaram o encontro “A
Favela Nunca Dormiu”. O objetivo foi analisar esse momento histórico e definir formas
de potencializar as lutas já desenvolvidas por cada um dos moradores de favelas,
junto com apoiadoras e apoiadores que entendem a importância de se fortalecer os
territórios populares da cidade. Desse encontro, iniciou-se o processo de
formação do Fórum Popular de Apoio Mútuo (FPAM).
Estamos articulados para juntar forças, estimulando o apoio mútuo entre
moradores, favelas, ocupações e periferias. Queremos articular iniciativas de
protagonismo popular, organização de base e de resistência diante da omissão e
violência do estado e capital. Exemplos dessas iniciativas são trabalhos no campo da
economia coletiva, comunicação comunitária, o resgate da história e das memórias
locais, construídas pelo próprio povo, a luta pela livre manifestação artística e
cultural das favelas, entre outros.
(...)
O FPAM busca ajudar também na construção de uma rede de solidariedade
entre as favelas, ocupações e periferias contando com apoio de outros grupos e
movimentos nessa luta.
(...)177

O Fórum Popular de Apoio Mútuo (FPAM) nasce como uma inciativa que busca
compreender a diversidade de contextos e formas de atuação de grupos de resistência
em favelas. Ao mesmo tempo cria uma relação entre moradores de favela e de
apoiadores que parte da noção que os protagonistas desta atuação são os grupos e seus
integrantes que moram nas favelas onde atuam. Esta relação de dar o protagonismo a
quem vive a situação concreta de opressão a partir da qual se organiza para lutar,
expressa-se no fato do FPAM ter dois tipos de reuniões regulares, que, depois de um
processo de achar a metodologia mais adequada, são, uma vez por mês uma reunião de

177
Texto tirado do site http://forumapoiomutuo.wordpress.com/quemsomos/

375
moradores com caráter deliberativo, e uma vez por mês (com duas semanas de intervalo
entre uma reunião e outra) uma reunião geral consultiva com apoiadores e moradores.
Núcleos de base podem ter delegação, ou seja, não todos de um grupo precisam estar
presente para garantir a participação do núcleo na construção coletiva. E em diversos
casos de contar com um morador de uma favela, este se relaciona com o FPAM ou
agregando o trabalho de outro núcleo, ou desenvolvendo um trabalho de base próprio,
tendo no FPAM uma ferramenta de fortalecer sua iniciativa. Apoiadores do FPAM,
moradores de diversos bairros da cidade e dos quais uma parte que integra movimentos
sociais ou sindicatos, podem ou não apoiar especificamente um núcleo ou apoiam de
forma mais geral e genérica a atuação dos núcleos e com isso do FPAM.
O objetivo principal do FPAM é de articular e fortalecer os trabalhos de base dos
núcleos que o compõem, ou seja, construir relações horizontais e federativas sem criar
alguma suposta estrutura superior ou que atue independente dos núcleos. Depois de
debates e experiências com participação em articulações com outros grupos decidiu-se
que o FPAM neste sentido somente atue em nome do próprio FPAM quando se tratar de
uma atividade específica do Fórum. Quando integrantes, núcleos inteiros ou indivíduos,
compõem outros processos, o fazem sem esconder obviamente que fazem parte também
do FPAM, mas sem faze⁻lo “em nome do” FPAM. Cada núcleo neste sentido responde
por si, e as atividades que desenvolve contam ou não, conforme o combinado nas
reuniões do apoio através do FPAM. Respeito a isso têm prioridade na agenda coletiva
do FPAM, atuações dos núcleos que o compõem, entendendo que sempre somos
solidários a atuações de outros grupos e apoiamos atividades conforme as próprias
pernas permitem.
Em termos de números temos visto, desde seu início uma flutuação razoável de
participação no FPAM, tendo tido reuniões com até vinte pessoas em alguns momentos
e de três a cinco pessoas em outros. Em geral o FPAM foi abalado em seu processo de
construção diversas vezes, sobretudo pelo grande impacto de opressões que acabam
impondo pautas emergenciais que desejamos dar conta e, o que em consequência,
significa que pautas regulares podem ficam para depois, querendo ou não. Neste
processo de tentarmos achar um equilíbrio entre envolvimento emergencial e as vezes
espontânea com demandas que surgem nas bases e a construção contínua de médio e
longo prazo, nem sempre tem sido fácil acharmos consenso e também nem sempre
soubemos lidar com as diferenças que surgiram ao redor desta questão. Isto pode levar e
tem levado ao afastamento de companheir@s, algo indesejável mas querendo ou não,
infelizmente nem sempre evitável.
Pautas regulares incluem a construção de um acordo coletivo de atuação e colaboração
no FPAM e a construção da agenda coletiva que é publicada no blog do FPAM e
divulgada pelas redes, sendo esta uma das tarefas que nem sempre conseguimos dar
conta de forma adequada. As atividades dos núcleos nas bases são desenvolvidas com
autonomia organizativa do núcleo, sendo que o FPAM buscar apoiar, fortalecer estas
atividades, de forma rotativa, buscando atingir todas as bases articuladas no decorrer do
tempo. Alguns do núcleos contam com um espaço físico de atuação na base, como é o
caso do coletivo do qual participo desde 2010, o coletivo econômico e espaço
comunitário Roça!178. Outros núcleos também contam com ou cogitam a possibilidade
de conseguir um espaço e com isso um desafio para o trabalho no FPAM é fortalecer
estas iniciativas. E termos de territorialização de resistências, espaços independentes de
estruturas e relações relacionados a ONGs, partidos ou igrejas são uma ferramenta que

178
www.roca-rio.com

376
fortalece as articulações em rede, funcionado como nós de encontro e onde iniciativas e
dinâmicas podem se conectar e fortalecer, tendo na autonomia um horizonte da luta
popular. Tem diversos espaços em favelas do Rio de Janeiro neste sentido, sendo que
certamente fortalecerá a resistência emancipatória conseguir construir cada vez mais
espaços neste sentido.
A participação de parte do grupo do FPAM no encontro “Economias Coletivas”, em
novembro de 2013 na favela do Timbau (Maré) fez surgir a iniciativa de construir uma
base de produção coletiva de cerveja artesanal, tarefa que levou á criação de um Grupo
de Trabalho que levasse à frente esta proposta. Com apoios das diversas partes que
compõem o FPAM e com o apoio expressivo de uma cervejeiro artesanal profissional
foi possível comprar uma gama de equipamentos e a base está em fase de construção,
onde núcleos com uma proposta de economias coletivas podem produzir sua cerveja que
em seguida será fermentada, engarrafada e vendida na base de cada núcleo. Vemos neste
iniciativa uma forma de unir necessidades econômicas com nossas bandeiras de luta,
seguindo o lema da Rede Economias Coletivas que vê na economia coletiva...
... formas coletivas de fazer e pensar economia em todas as esferas (produtiva,
distributiva, consumidora, investiva) enquanto ferramenta de uma
transformação social profunda. Ela é um meio (não um fim por si só), através do
qual os nossos movimentos sociais no campo e na cidade podem organizar e
fortalecer suas lutas, sem que toda sua agenda focasse nas questões econômicas e sem
que haja um desvínculo da questão econômica das demais questões sociais e culturais
que dão base à nossa luta popular.179
O FPAM e a iniciativa da Rede Economias Coletivas são dois processos distintos,
porém contam com grupos e militantes que, em parte, participam dos dois processos.
Como todo o trabalho de base em favela, são processos que focam na qualidade e
durabilidade da intervenção e interação e com isso são iniciativas pequenas. Mas, por
estarem atuando em favelas, que, como apontamos acima, têm um caráter de
“sociedades em movimento”, têm uma capacidade de difusão que se insere nas relações
sócio-territoriais das favelas onde ocorrem e por isso têm uma abrangência para além
dos núcleos que contam com três a cinco pessoas que estão diretamente envolvidas,
sendo que o número de pessoas indiretamente envolvidas pode ser bem maior e através
de redes de sociabilidade, no âmbito do movimento social organizado e a nível das
favelas e seus moradores (vizinhos, familiares, amigos, etc.)
O FPAM se conecta e se insere em uma dinâmica de lutas e trabalhos de base que tem
uma história que começa muito antes de seu surgimento e seus integrantes atuam em
diversos círculos de militância e movimentos. Para refletir a atuação, os avanços e as
dificuldades pode ajudar em abordarmos os processos em uma perspectiva multiescalar
e multiterritorial. Nisso, a partir de experiências nas relações de colaboração de grupos
de resistência em favela em geral e nesta experiência do FPAM em específico surgiu
uma primeira tentativa de esquematizar as relações de núcleos de resistência em favelas
do Rio de Janeiro. O mapa na página XX visa tematizar, de forma bem sintética, as
relações que envolvem a atuação de núcleos de base em territórios de resistência. Estas
relações são marcadas por territorializações simbólicas e concretas, (e fluxos) materiais
e imateriais,. Ao mesmo tempo que existem relações entre os territórios das favelas,
estas relações são caracterizadas por descontinuidades, numa relação de territórios-(de-
resistência)-rede. As conexões são construídas através de fluxos materiais e imateriais

179
Texto tirado do convite para o encontro anual 2014, disponível no site
http://economiascoletivas.noblogs.org

377
que atravessam territórios onde formas de controle e poder transformam, reprimem,
podem barrar ou fortalecer esses fluxos. Barreiras materiais podem ser a distância, o
alto custo de transporte, engarrafamentos, restrições de ir e vir (milícia, UPP, tráfico,
etc.). Uma barreira imaterial seria, por exemplo, a nossa dependência da grande mídia
para receber notícias de outras. Um trabalho de resistência, tecendo uma rede de apoio e
colaboração entre grupos/núcleos (muitas vezes pequenos) que realizam trabalhos de
base têm que dar contas de compreender estas dinâmicas e encarar os desafios que vêm
com as mesmas. Isto acontece das mais diversas maneiras, as vezes como ações
direcionadas, muitas vezes também a nível inconsciente, no dia a dia.
Com quem temos relações e como? Com quem colaborar e como fortalecer laços? São
perguntas do dia-a dia da luta que precisam ser abordados de maneira multiescalar. O
esquema “territórios-(de-resistência-)rede” pretende servir como uma possível
contribuição ao debate e à construção coletiva para encarar esta tarefa, podendo servir
como base para mapear as nossas resistências no território e ajudar em fortalecer a nossa
luta pela construção do poder popular.180

180
Uma possibilidade de fortalecer núcleos-de-base(-em-rede) é de realizar oficinas de “mapeo
colectivo” nas quais mapeamos e debatemos estas formas de construir resistências nas e através do
território. Um manual desta técnica está disponível em
http://iconoclasistas.com.ar/pdfs_para_bajar/mapeo_colectivo.pdf

378
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381
EIXO 4
O papel das
Universidades no
fortalecimento do
Poder Popular
382
APROPRIAÇÃO DA UNIVERSIDADE PELO PROCESSO DE LUTA DO
MST181
Carmen Verônica dos Santos Castro182

Resumo: O objetivo deste artigo é tratar da experiência desenvolvida pelo Movimento


dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST – junto à Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ - na formulação do Curso de Extensão Teorias Sociais e Produção do
Conhecimento. Esta temática foi desenvolvida em uma tese de doutorado, defendia no
IPPUR/UFRJ (2013) e o artigo foi extraído de um dos capítulos para o SIPPAL, tendo
em vista que o aspecto da experiência do movimento social em se apropriar da
Universidade constrói sentidos e significados que vão de encontro com a luta social e
isto poderá contribuir com o debate sobre “o papel das universidades e poder popular”.
No caso do MST, a organização de famílias de trabalhadores sem terra não se restringiu
a reivindicação de áreas de terra. A luta do Movimento se constituiu na proposta de
reforma agrária para o campo e também na luta por educação como uma frente
importante de experiências organizativas e formativas. Assim, a universidade vem
sendo apropriada como espaço - para além da transmissão de conteúdos – de
articulações de luta, apoio e formulações de perspectivas e conhecimentos também para
os setores sociais populares.

Palavras-chaves: MST, Experiências educativas e formativas, Universidade, Setores


Populares.

Introdução:

No limiar da nova era o Brasil marcha para o socialismo ou


para a fragmentação interna. A pedagogia volta a ser a chave para a
decifração do nosso enigma histórico. O que a Constituição negou, o
povo realizará. Mas ele não poderá fazê-lo sem uma consciência
crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica
e negadora do futuro. E essa consciência, nascida do trabalho
produtivo e da luta política dos trabalhadores e dos excluídos, não
depende da “educação para um mundo em mudança”, mas sim da
educação como meio de auto-emancipação coletiva dos oprimidos e
da conquista do poder pelos trabalhadores.
Florestan Fernandes (1989)

181
O presente artigo trata-se de parte adaptada do 5º capítulo da tese de doutoramento “A dimensão social
da experiência entre o Movimento Sem Terra e a Universidade: O caso do curso Teorias Sociais e
Produção do Conhecimento na UFRJ”, defendida por mim no Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2013. Realizei poucas e pequenas
adaptações textuais para que se tornasse um texto próprio.
182
Professora do Curso de Ciências Sociais da Fundação Educacional Campograndense- FEUC, membro
do Grupo de Trabalhado Movimentos Sociais e Universidades e do Núcleo de Estudos de Teoria Social e
América Latina – Netsal/IESP/UERJ e professora colaboradora da ENFF/MST.

383
No MST estamos sempre enfrentando desafios e sempre
buscamos vencê-los com nossas forças e com a solidariedade
nacional e internacional. O desafio que enfrentamos agora é o da
formação, da capacitação e do estudo. Só iremos superá-lo quando
todas as crianças estiverem na escola, quando tivermos tod@as @s
professor@s qualificados em magistério e pedagogia, quando
tivermos nossos técnicos formados em cooperativismo e agronomia ou
em outras áreas como sociologia, história, antropologia, geografia,
arte e cultura. Enfim, quando todas as lideranças estiverem
estudando.
MST (2009)183

Há uma ação política efetivamente construída no Movimento dos


Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no sentido de construir uma “negação” concreta
do passado de expropriação, superexploração, exclusão e abandono das famílias sem-
terra no campo – histórico do projeto de desenvolvimento capitalista associado,
dependente e periférico do Brasil (FERNANDES, 1976; OLIVEIRA, 1977). Isto se
revelou no embate atual contra o projeto do agronegócio, o que reafirmou o país como
produtor de produtos primários, dominados por grandes capitais transnacionais e
financeiros (FERNANDES, M., 2008), produção monocultora, extensiva, uso em
grande escala de agrotóxicos184, voltada para o mercado externo. O projeto que o MST
vem representando tem origem nas lutas que buscaram afirmar um futuro das classes
trabalhadoras, ao construir alianças com setores sociais – no rompimento da lógica
capitalista da divisão campo-cidade – na perspectiva de gerar experiências que
correspondessem às necessidades e expectativas de emancipação humana.
As práticas educativas e formativas passaram a ter caráter estratégico na
organização dos trabalhadores. No MST, os estudos e a escola, na sua dimensão
ampliada, se constituíram como parte da ação política na formação da consciência
crítica e na luta de “auto-emancipação”, expressam o desafio frisado pelo Movimento
de “formação, capacitação e estudo” (MOVIMENTO DOS TRABALHADORES
RURAIS SEM TERRA, 2001c, p. 111).
O objetivo deste artigo é situar a universidade em três pontos: concepções que
caracterizaram historicamente a universidade e sua necessária democratização;
experiências de acesso à educação universitária através da luta do MST; a prática do
curso Teorias Sociais e Produção do Conhecimento na Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Neste sentido, trata-se da passagem das experiências educativas e
formativas do Movimento para a prática de um curso universitário através da ação dos
indivíduos envolvidos. Portanto, o que se quer aqui é destacar elementos da experiência
entre o MST e a universidade, neste período mais recente em que vem sendo
experimentado a consolidação das ações formativa e educativa do Movimento, com
vistas a qualificar profissionalmente os integrantes da luta social no campo. Assim,
utilizamos com destaque o material empírico colhido em entrevistas com professores da
UFRJ e da Universidade Federal Fluminense (UFF) e com alguns militantes do MST
das turmas do período de 2002 a 2011 do Curso de Teorias Sociais e Produção do
Conhecimento.

183
Documento referente à inauguração da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Disponível em:
<www.mst.org.br> Acesso em: 30 set. 2009.
184
O MST lançou – em conjunto com outros movimentos e em parceria com organizações sociais e
instituições públicas, como a Fundação Oswaldo Cruz – a campanha permanente “Contra os Agrotóxicos
e pela Vida”, com cartazes, folders, palestra e divulgação do documentário “Agrotóxico à mesa”, do
diretor Silvio Tendler.

384
1 A Necessária democratização da universidade

Destacamos neste ponto elementos sobre o histórico da universidade na


sociedade brasileira no momento em que esta mesma sociedade vivenciou a perspectiva
de mudanças progressistas vindas do período das reformas de base; entretanto, o que se
colocou em prática pela política do Estado foi a reafirmação de um país dependente e
periférico, com desigualdades profundas e processos permanentes de superexploração e
expropriação. A universidade se inseriu num sistema educacional185, mas, sobretudo,
em uma estrutura social em que a educação reproduz a ordem social de uma sociedade
de classes, na periferia do capitalismo.
Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro apontaram para as possibilidades de
transformação da “universidade”, tendo em vista as políticas públicas voltadas para
mudanças estruturais nas instituições de ensino superior. Para FERNANDES (1979),
encontramos a vivacidade intelectual de discussões que abordaram os problemas
advindos de um “processo arcaico, anti-nacional e de uma tradição cultural de
concepção e construção da instituição Universidade”. Este autor denunciou a estrutura
elitizante e anunciou a possibilidade de uma "universidade nova" como parte da
realidade histórica de democratização do conhecimento científico, do ensino e da
pesquisa, bem como da sociedade e das estruturas institucionais como um todo,
conforme explora no trecho a seguir (FERNANDES, 1979, p. 65-67):

Portanto, a superação da 'escola superior tradicional' e da


'universidade conglomerada' não poderá realizar-se como um processo
educacional de crescimento gradual. A universidade-problema terá de
ser destruída, para que, de seus escombros, surja uma realidade nova.
[...] Ela tem de exprimir novas concepções educacionais, uma nova
mentalidade intelectual e uma nova compreensão das relações da
universidade com a sociedade brasileira. Ela traz em seu bojo uma
educação voltada para a vida humana nos marcos da civilização
baseada na ciência e na tecnologia científica; uma inteligência
inquieta, ativa e responsável; bem como um impulso irredutível à
democratização de si mesma, da cultura e da sociedade.

Fernandes, ao contextualizar o aparecimento da “universidade no Brasil”,


trouxe à tona a carga institucional, historicamente elitizante, dependente, precária e
exterior às necessidades internas da realidade brasileira, sobretudo da maioria de
trabalhadores. Esta proposta da “nova universidade” apontou para o movimento
“Reforma Universitária”, de 1968, que dinamizou a compreensão da universidade,
sintonizada com as circunstâncias daquele período – ainda que tenha sido derrotada
como projeto político. Contudo, o autor também apontou para questões profundas que,

185
Bourdieu& Passeron (2009, p. 231) produziram uma fecunda reflexão sobre o sistema de ensino, que
detém uma “relativa autonomia do sistema de ensino” e uma “relativa dependência à estrutura das
relações de classe”. Ou seja, além da função de inculcar, do sistema de ensino há a relação com outros
sistemas e subtemas presentes na estrutura social. Para esta discussão sobre experiência movimentos
sociais-universidade, se apresentou como relevante as denominadas “funções externas” e
“instrumentalistas” que o sistema de ensino cumpre para a estrutura de classes, fora das suas atribuições,
mas não como algo mecânico. O que nos trouxe a compreensão de uma certa abertura no sistema de
ensino para ações que não estão restritas à estrutura societária, mas, que existem “brechas” no sistema de
reprodução - ainda que os autores critiquem os possíveis agentes capazes de “uma ação transformadora
reprodutora da formação que eles próprios receberam.”

385
ainda hoje, podem ser refletidas sobre as concepções que direcionam setores de dentro
das universidades.
Em um artigo, A Crise da universidade (1989) – anos depois da publicação de
Universidade brasileira:... (1979) e numa conjuntura política diferenciada daquela de
1968, mas de particular intensidade social, política e econômica, como o período de
1988 –, Florestan Fernandes, após vinte anos, analisou os avanços quantitativos e
qualitativos da instituição e a ausência do amadurecimento de uma consciência da
“revolução cultural”, do “saber original” na universidade, da construção de alternativas
da produção cultural e da relação de reciprocidade social que a universidade deve ter:
um papel de centro de criação e expansão do “padrão de civilização vigente”.

Nesse quadro global, só há uma saída. A da rebelião intelectual do


universitário. É urgente que ele transfira para dentro do país a gestão e
a expansão dos dinamismos culturais do pensamento crítico
independente. Há que combater a 'neutralidade' do pensador e do
investigador, mediante uma politização explícita, através dos valores
fundamentais da universidade livre e democrática (FERNANDES,
1989, p. 84-85).

Existe uma interlocução entre as ideias de Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro


em A Universidade necessária (1969) – de autoria do segundo autor –; ainda que uma
obra conjuntural, aspecto ressaltado pelo próprio autor, tenha reforçado o caráter de
“missão” da universidade na superação das suas deficiências e sobre a disputa interna
nas universidades latinoamericanas entre os “setores” que as querem conservadoras e
“disciplinadas” e aqueles que aspiram a vê-las renovadoras e até revolucionárias”.
Ribeiro (ibidem, p. 74) deu peso a uma “política autonomista” em contraposição a uma
“política modernizadora reflexa”, atribuindo à universidade:

a função criativa de “dominar” e ampliar o patrimônio humano do


saber e das artes em todas as suas formas, seja como condição
indispensável ao exercício da docência, seja como objetivo essencial
em si mesmo. Mediante o exercício desta função, a universidade
incorpora à sociedade a que serve todo o esforço de interpretação da
experiência humana. E lhe agrega as expressões de criatividade
cultural de seu povo, para capacitá-la a realizar suas potencialidades
de progresso e, dessa maneira, integrar-se, como uma nação
autônoma, à civilização de seu tempo.

Segundo Ribeiro, o legado da universidade na América Latina tem o peso


histórico do “caráter de elite das universidades”; “estilo aristocrático e patriarcal”,
“caráter burocrático”. Entretanto, a mudança da universidade se realizaria com a
transformação da sociedade, ao mesmo tempo em que é atribuído à instituição um papel
de “agente de transformação nacional”, num movimento de mão dupla: a “universidade
incorpora à sociedade” os esforços interpretativos; e “lhe agrega as expressões de
criatividade cultural de seu povo”. Desta forma, a “universidade necessária” foi pensada
como um “projeto utópico”, em contraposição com a “universidade mirífica ou real”,
exercitando-se como agente de transformação (RIBEIRO, 1969).
Florestan Fernandes, com suas reflexões sobre a “universidade nova”, e Darcy
Ribeiro, com a elaboração de A Universidade necessária, apontaram as possibilidades
de mudanças instituicionais e em certa medida atribuíram o papel de agente de
transformação à Instituição. Foram questões que não se esgotaram, mas que ao serem
revisitadas retomam o caráter de criticidade, ainda que a sociedade e a universidade não

386
sejam as mesmas, passado mais de quatro décadas. Por outro lado, existe vitalidade nas
questões dos autores para pensar no dinamismo da instituição por dentro das
necessidades da sociedade e do acesso a direitos e dos valores democráticos e de ruptura
para a construção de saídas para os problemas sociais.
Eliane Veras Soares (2009, p. 62-63), socióloga da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), menciona que:

Na verdade Florestan Fernandes não só avançou em sua concepção


sobre a educação, mas também conservou suas preocupações iniciais,
uma vez que considerava que as reformas republicanas, burguesas,
enfim, democráticas da educação nacional ainda não haviam sido
atingidas. Costumava dizer que nos anos 1980 e 1990 ainda lutávamos
(e lutamos) por ideais republicanos do século XIX. Isso graças às
elites que se colocam até hoje contrárias a uma verdadeira revolução
democrática no campo educacional.
Para Florestan Fernandes isso se justifica pelo fato de as classes
dominantes não poderem ‘ceder terreno no campo da educação
escolarizada sem arriscar-se a permitir que as classes trabalhadoras, os
estratos radicais ou proletarizados das classes médias ganhem acesso a
técnicas de controle, de competição, de conflito que ameaçam de
maneira crescente os que mandam’. A conseqüência [sic] disso é a
institucionalização da exclusão por meio da educação, revelando,
assim, sua faceta antidemocrática: ‘O aparato institucional da
educação escolarizada é, por isso, excluidor e colide com os princípios
de distribuição igualitária e democrática das oportunidades
educacionais. [...] As portas se abrem no ensino fundamental, para se
fecharem sem tréguas no ensino médio e superior. Os pobres e
humildes, os estigmatizados pela raça e etnia (como os negros, os
mulatos e os indígenas), os excluídos e marginalizados (como os
despossuídos do campo, os favelados, os sem-teto, os prostituídos, os
menores abandonados e violentados etc.), vítimas do isolamento e
extrema opressão secular, sequer aprendem a necessidade e o valor da
educação escolar.’

Deste modo, os percursos de reflexão até aqui realizados trataram-se do esforço


de compreender e interpretar a universidade como instituição que historicamente no país
foi marcada por uma concepção elitista (FERNANDES, 1979; 1989; RIBEIRO, 1969),
mas também como campo de disputa.
Leher (2003, p. 20) destaca os projetos capitalistas voltados para a
universidade a partir da Guerra Fria, e como os períodos políticos têm sido contínuos na
ofensiva de adaptar a educação a uma lógica mercantilizante:

A análise da história recente da universidade, em especial do período


da modernização conservadora empreendida pelo Governo Militar,
sugere que não é possível estabelecer um corte temporal entre este
período e o atual: muitos laboratórios, grupos de pesquisa e mesmo
pesquisadores individuais que hoje têm prestígio e poder devem esta
condição à participação no projeto de modernização da ditadura
militar.

Em texto mais recente Leher (2008, p. 20) reafirma que:

As contra-reformas originadas nos acordos de Bolonha, nas fórmulas


bancomundialistas e nas proposições dos Tratados de Livre Comércio

387
(e em nível nacional, nas Parcerias Público-Privadas - PPP) tornam a
gestão das universidades cada vez mais parecidas com a de uma
empresa, esvaecendo o seu caráter de instituição da sociedade voltada
para a formação humana e para a produção do conhecimento engajado
na solução de problemas nacionais.

Estas citações de Leher fazem referência, respectivamente, às discussões da


pesquisa e da carreira docente, dentro de um espectro de projeto em curso para a
universidade, não só no Brasil, mas como tendência no mundo. E isto se estende às
esferas do ensino e da extensão no sentido de adaptá-las à lógica da prestação de
serviços, prevalecendo uma concepção pragmática do fazer universitário na geração de
conhecimento e das habilidades desenvolvidas. A extensão ganha característica de
prestação de serviços empresariais, como a pesquisa e o ensino.
Entretanto, buscamos aqui identificar as práticas dos movimentos sociais como
processos de resistência, tanto internos à dinâmica universitária, nos movimentos dos
trabalhadores e estudantes das instituições de ensino superior; quanto externos, nas
experiências de práticas de ensino, pesquisa e extensão ligados a movimentos populares.
Isto no sentido contrário à proposta capitalista de universidade, ou seja, propostas que
trouxeram caminhos de emancipação do conhecimento vinculados à luta de setores dos
trabalhadores.
A educação como direito, processo social, campo de disputa política, luta
social, esteve presente nestes movimentos sociais do campo do final dos anos de 1970,
devido à complexa articulação de questões específicas, mas, de questões estruturais da
sociedade brasileira em meio a uma conjuntura política de retomada das reivindicações
por direitos sociais (SADER, 1988). A escola primária, posteriormente de ensino
fundamental, o ensino médio, e a universidade passaram paulatinamente a serem campo
de disputa dos movimentos sociais com características de organização e formação que
envolveram as necessidade das bases populares da classe trabalhadora.
A reivindicação pelo espaço das universidades por diversos grupos sociais –
movimentos negros, populações e categorias do campo, sem terra, indígenas, pequenos
agricultores – faz parte da ação pelo direito de participar da “condição moderna”, de
“conquistas” de uma sociedade que se apresentou no imaginário como um todo
ilimitado (MARRAMAO, 1994). A educação universitária é de um espaço/instituição
de características urbanas186 que os movimentos sociais do campo exigiram que lhes
atendesse em suas especificidades de modo de vida, trabalho e luta política – isto se
transformou em demanda e reivindicação no bojo dos anos de 1990, pressionando as
universidades.
Setores de trabalhadores do campo foram historicamente segregados do acesso
à terra e, consequentemente, acesso a outros direitos formalmente concebidos como
universais, a saber: moradia, trabalho, educação, entre outros. Neste sentido, o processo
de urbanização da sociedade lhes negou o direito aos benefícios da vida urbana nos
termos que trata Henri Léfèbvre (1968), que pressupõe encontros, confrontos das
diferenças, conhecimentos e reconhecimentos recíprocos.

186
A ampliação da sociedade urbana no capitalismo, segundo Lefebvre (2001, p. 68), significou a
mutilação da cidade, ou o fim da cidade, “o que pressupõe a invenção de novas formas urbanas”. No caso
das populações e movimentos sociais do campo, que se constituiu na luta por terra e reforma agrária,
trata-se de acessar as conquistas urbanas: da casa com saneamento básico; água encanada; educação, não
somente básica, mas técnico-profissionalizante e universitária; estrada; espaços de cultura, lazer, esporte
etc.

388
2 Acesso ao conhecimento universitário

No sentido político, as ações dos movimentos sociais geraram experiências de


educação voltadas às questões sociais, organizativas e formativas dos grupos sociais
envolvidos – famílias de trabalhadores do campo e da cidade, na condição de assentados,
acampados, reassentados, pequenos agricultores, mulheres e jovens, trabalhadores
desempregados e sem teto em luta por terra, trabalho e moradia e condições de vida.
A luta por acesso à educação retomou o fôlego no final dos anos de 1970, com
o processo de democratização política e crise econômica no Brasil e na América Latina.
A luta pela "educação pública, gratuita e de qualidade" nas universidades públicas
contou com a participação de estudantes, professores e funcionários que tomaram as
ruas naquele período e, essencialmente, enfrentaram, internamente nas universidades,
projetos e políticas para o ensino, a pesquisa e a esquecida extensão universitária. Os
movimentos sociais atuantes nas universidades, se não impediram por completo a
implementação de políticas elitizantes, geraram experiências de luta no espaço
universitário, propostas e bandeiras democratizantes.
Em outra frente, os movimentos sociais do campo, na formulação da
reforma agrária, exigiram acesso à educação – num primeiro momento, a escola de
ensino fundamental e ensino médio nos acampamentos e assentamentos, como
condição de permanência das famílias sem terra nas áreas de terra; num segundo
momento, simultaneamente à demanda anterior, a pauta da educação universitária
com a composição de turmas em universidades e nas escolas de formação. No
processo de suas lutas sociais, foram constituídas parcerias com professores, setores
e instituições universitárias e o MST, como outros movimentos sociais, veio
construindo propostas específicas de cursos, parcerias de pesquisa, seminários e
conferências.
A retomada das lutas sociais reforçou o diálogo entre movimentos sociais e
universidades. O campo da educação popular refletiu a relação entre intelectuais e os
trabalhadores e a produção de conhecimento engajado. Conforme Paiva (1985, p. 28)

Se um intelectual ou um grupo de intelectuais dentro da universidade


ou não, acha que, porque tem um instrumental de análise amplo, tem
por causa disso a missão e a competência para poder estabelecer de
antemão todo o projeto e depois contactar os trabalhadores, isso não
dá. É preciso fazer a crítica desta atitude e, uma vez desnudados de
suas pretensões, os intelectuais devem tentar socializar seus
conhecimentos dentro de uma luta junto com os trabalhadores, sem
querer dirigir. Quando eu digo sem querer dirigir não significa que vá
dirigir. Quando isso ocorre é preciso que se faça a crítica da tentativa
de direção.

As tensões das relações movimentos sociais e universidade, na figura de


professores e pesquisadores, apontaram para a autonomia, tão cara para as organizações
dos trabalhadores e, ao mesmo tempo, para a importância de apoios e alianças dos
setores universitários com as pautas políticas. Historicamente o que se viu foi um fosso
entre intelectuais e grupos, movimentos e organizações de trabalhadores: “Mas há que
reconhecer que, na América Latina, há um fosso entre os intelectuais e os
trabalhadores” ( ibidem, p. 29). O que se colocou com os avanços das demandas e
reivindicações de movimentos sociais, como o MST, foi o desafio de uma relação com

389
as universidades em outro patamar, no sentido da construção dos projetos destes sujeitos
sociais.
Boaventura de Sousa Santos (2000), em Pela Mão de Alice:..., refletiu sobre a
“transição de paradigma tanto societal como epistemológico“, em conexão com os
modos de organizar a vida social e de conhecê-la. A modernidade como paradigma
societal, segundo Santos, entrou em crise e bloqueou alternativas sociais, sendo
necessário um novo pensamento utópico. É em resposta a esta necessidade que o autor
inscreve a passagem da “ideia universidade” para a “universidade de ideias”, propondo
uma análise crítica da universidade nas sociedades contemporâneas "em face da rigidez
funcional e organizacional”.
A “universidade de ideias”, desenvolvida pelo autor, tem “sobretudo em mente
a universidade dos países centrais” (ibidem, p. 221). Todavia, a abrangência das teses,
que sustentam a sua argumentação, permite a reflexão da “universidade moderna” num
período de crise da modernidade, ou de crise societária. Entre as onze teses sobre a
universidade, destaca-se a fratura, nas Ciências Sociais, entre a racionalidade cognitivo-
instrumental e a racionalidade moral-prática, ou seja, a hegemonia da racionalidade
cognitivo-instrumental e, com isto, das ciências da natureza. Santos afirma que a
universidade precisaria priorizar, como caminho para a saída de sua crise, a
racionalidade moral-prática e a racionalidade estético-expressiva. Por este caminho, se
realizaria uma “dupla ruptura epistemológica e a criação de um novo senso comum”,
possibilitando “a aplicação edificante da ciência no seio de comunidades
interpretativas” (ibidem, p. 223) . Ainda com Santos (ibidem, p. 225):

A universidade é talvez a única instituição nas sociedades


contemporâneas que pode pensar até as raízes as razões por que não
pode agir em conformidade com o seu pensamento. É este excesso de
lucidez que coloca a universidade em posição privilegiada para criar e
fazer proliferar comunidades interpretativas. A ‘abertura ao outro’ é o
sentido profundo da democratização da universidade, uma
democratização que vai muito além da democratização do acesso à
universidade e da permanência nesta. Numa sociedade cuja
quantidade e qualidade de vida assentam em configurações cada vez
mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será
cumprida quando as actividades [sic], hoje ditas de extensão, se
aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser
parte integrante das atividades de investigação e de ensino.

Esta proposição é desdobrada através do reconhecimento dos "curricula


informais" que permitiriam à universidade reconceitualizar os sujeitos, permitindo que
estes se integrem às comunidades interpretativas como “docentes de saberes diferentes”
(idem, p. 225). E mais adiante, o autor chama atenção para a configuração de práticas
que garantiriam a equivalência de saberes na universidade como parte de um processo
de democratização que ultrapassa a abertura do acesso e a manutenção do aluno na
instituição.
SANTOS (2003), no artigo “Universidade popular...”, inscreve no denominado
movimento de globalização alternativa a proposta de universidade que busca fortalecer
a resistência ao capitalismo global e que favoreça a descoberta de novos sentidos de
emancipação social. Direcionando o artigo para “ativistas e líderes dos movimentos
sociais e cientistas sociais/ intelectuais dedicados ao estudo da transformação social”, o
seu objetivo é a superação do afastamento entre teoria e prática, de tal forma que sejam

390
parte de um mesmo processo de transformação social. A universidade, nesta proposta,
funcionaria no formato de oficinas e seminários em regime intensivo.
As experiências universitárias dos movimentos sociais, no âmbito geral,
acentuaram a disputa em torno da universidade tornando-a mais plural, ainda que sua
característica mais forte seja a singularidade de questões e valores voltados ao projeto
em vigor na sociedade brasileira. A presença das organizações de trabalhadores a tornou
mais complexa do ponto de vista das práticas de ensino, pesquisa e extensão.
Diferentes propostas de universidade alternativas – como Universidade do
Trabalhador, Universidade Popular, Universidades dos Movimentos Sociais –, ainda
que pontuais, revelaram a insuficiência da instituição em atender diferentes setores
sociais das classes trabalhadoras, fosse no acesso, na permanência dos estudos, nas
questões e valores identificados com os objetos e sujeitos do ensino, da pesquisa e da
extensão. A proposta de um pré-vestibular negro, popular e comunitário foi uma das
tentativas de furar o filtro social e econômico do acesso, com resultados importantes nas
chances de ingresso através de cotas sociais e raciais. As disputas em torno do espaço da
universidade ganharam vulto com as cotas, nestas instituições, para negros e outros
setores, como o indígena e o rural (ou do campo)187.
A pressão por uma política de cotas nas instituições públicas de ensino ainda se
confrontam com resistências de diversos setores sociais abastados de dentro e fora da
universidade, sendo as decisões tomadas nos espaços dirigentes de cada instituição
superior de ensino. Por outro lado, o governo federal, a partir de 2002, respondeu com
política de bolsas em faculdades e universidades privadas, a criação do sistema de
ingresso nas através do sistema de avaliação no Ensino Médio nas Escolas Públicas
(ENEM), a expansão das instituições públicas com o aumento de vagas para professores
e estudantes e investimentos em infraestrutura. Este conjunto de medidas foram
implantadas no decorrer dos anos de 2010 e produziram resistência, sobretudo no
repasse de verbas públicas para as instituições privadas de ensino e do perdão das
dívidas das instituições privadas pelo governo.
A disputa pelo espaço da universidade ganhou contornos simbólicos e de
possibilidades de conquistas sociais – o valor de uso e o valor de troca da titulação
universitária no acesso de emprego, em um tipo de ascensão para os setores populares e
de manutenção social para setores médios – e de produção de reflexões teóricas e
políticas na área da pesquisa. Existe um grande debate em torno das mudanças em curso
nas universidades da América Latina (LEHER, 2010) que envolve, entre outras questões
fundamentais, a formação universitária dos estudantes na graduação e pós-graduação, o
trabalho e a produção docentes, a pesquisa voltada para o mercado e atender interesses
periféricos do capitalismo mundial, os projetos políticos implantados alinhados ao
conjunto de medida de órgãos internacionais, como o Banco Mundial. No que estamos
nos propondo, não desconhecemos a relevância destes aspectos para compreender os
porquês dos espaços ou não nas instituições de ensino superior para o atendimento das
propostas dos movimentos sociais; contudo, propomos, pontualmente, trazer algumas
concepções que aparecem com as possibilidades de abertura no fazer universitário
(LEHER, 2007; 2010).
A reflexão das experiências dos cursos do MST, e também junto à Via
Campesina, com as universidades apontou para um processo paulatino de demandas na
área de educação que se iniciou com a educação básica, passando pelo ensino médio, até
chegar à educação universitária. Portanto, a relevância da análise desta relação tem
aspectos histórico, teórico e político, no que tange a luta pela educação dos movimentos

187
Ver revista Veja: “Nós pagamos, eles invadem” Disponível em: <www.newstse.org.br>

391
sociais no campo e a disputa pelo espaço das universidades. Neste sentido, histórico, do
que traçamos até da trajetória de luta pelo direito à educação; na perspectiva teórica, na
representação MST-Via Campesina sobre a universidade e dos projetos que disputam,
convergem e divergem na atuação dos atores que atuam dentro deste campo; na
perspectiva teórica política, nas ações sociais dos atores voltadas para acessar o espaço e
as relações que envolvem as instituições de ensino e os projetos políticos.

3. O MST na universidade

Há cerca de 15 anos, os cursos em parceria com as universidades, fora e dentro


do espaço do campus, se institucionalizaram como ações formais, vinculadas à
escolarização. Estas práticas de educação e formação política se intensificaram nas
brechas nas instituições que se abriram com a atuação dos movimentos sociais e se
tornaram oportunidades de acesso à educação (CASTRO, 2009). Ainda incipientes,
frente ao que representa o deficit educacional no país, esta experiência dos cursos não é
nada desprezíveil em termos de quantidade e qualidade do fazer de um novo tipo. A
intenção propositiva e os desafios se colocaram para as instituições de ensino, pesquisa
e extensão; ao longo destes anos tem havido um investimento, por parte do Movimento,
em cursos que vem envolvendo intelectuais, professores e pesquisadores das
universidades.
A colaboração de professores e pesquisadores nas atividades de extensão,
assistência técnica, tiveram caráter informal e pontual, a partir de iniciativas individuais
ou de pequenos grupos de professores, funcionários e estudantes. As ações
universitárias passaram acontecer com caráter institucional, ainda que os desafios de
estrutura e permanência das atividades dependessem de circunstâncias conjunturais
internas às univeridades. De todo modo, estas experiências possibilitaram identificar
avanços, potenciais e limites que precisaram de uma atuação mais incisiva e propositiva
entre movimentos sociais e universidades. De acordo com Stédile (2010):

[...] porque o nosso objetivo, como o de todo mundo, é de fato o de


universalizar o acesso a universidade. De fazer com que a
universidade pública seja para todos os jovens. Oxalá, no futuro, nós
não precisemos mais ter cursos especiais para a militância dos
movimentos sociais! Eles terão por outras formas. Mas, de qualquer
maneira, eu acho que também ficará como um legado dessa
experiência positiva do método da alternância. Pra jovens que moram
no meio rural não tem outra saída. Então, mesmo quando a gente
universalizar o acesso.

A formação universitária não se tratou apenas de formar sujeitos, indivíduos


críticos e questionadores, mas, sobretudo, sujeitos práticos, propositivos. A formação,
neste caso, se voltou para a atuação dos grupos de trabalhadores na organização,
identificando-se as necessidades e desejos e procurando mediar a formulação de
interesses combinado com os objetivos organizativos de classe social em luta.
O curso de extensão Realidade Brasileira... a partir dos grandes pensadores
brasileiros 188 foi um marco na formação deste período de intensificação das relações
com as universidades, a partir dos cursos de formação. O espaço da Universidade

188
A formação política, massiva, junto à juventude contou com o primeiro curso Realidade Brasileira...,
com cerca de mil participantes em cada uma das três sessões. Em 1999, no ginásio da UniCamp, o MST
realizou a primeira turma deste curso, nacional, voltado aos “Jovens do meio rural” (CASTRO, 2005).

392
Estadual de Campinas (UniCamp) foi palco para o acontecimento formativo, entre 1999
e 2001. Ainda que a UniCamp não tenha se constituído como instância institucional
para uma formação mais profunda teórica e política, como foi o caso da Universidade
Federal da Paraíba (UFPB) (KOLLING, 2008). Entretanto, o fato evidenciou,
simbolicamente, a necessidade de jovens pobres do campo pelo espaço universitário.
Muitas outras turmas do curso Realidade Brasileira... foram concretizadas pelo país,
pelo Movimento e pela organização Consulta Popular (fundada pelo MST em 1997).
Em 2001, no âmbito da formação de quadros profissionais, o MST, em
convênio com a graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), iniciou o curso de extensão Realidade Brasileira... – voltado para um público de
militantes e dirigentes da própria organização e de outros movimentos sociais populares
(PIZETTA, 2004; 2007). A partir deste curso – de dois anos, distribuídos em quatro
encontros, ou etapas – o MST construiu um programa de estudos com determinadas
temáticas e foi amadurecendo a proposta de formação universitária. Outros temas foram
sendo construídos junto às universidades, como o de estudos sobre América Latina e
sobre o capitalismo no mundo (CASTRO, 2009). Esta dinâmica foi sendo combinada
com o que vimos da trajetória de experiências de práticas educativas nas escolas de
assentamentos e acampamentos, na escola de ensino médio do MST – Instituto Técnico
de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária-Instituto de Educação Josué de Castro
(ITERRA-IEJC) –, e nos cursos regulares de graduação na área da educação. Kolling
(2008) abordou, a seguir, o que vem mudando com as práticas educativas junto às
universidades:

Acho assim, o que tem é o seguinte: uma coisa é você fazer cursos não
formais, que não tem nota, que não tem uma sistemática; e a outra é o
que a escola faz. A escola faz o fato de fazer fichamento, se preparar
para prova, entender que fala bobagem, o outro te detona, o professor
ou os colegas, organiza a estrutura do pensamento, assim, é chave uma
coisa, é ele nunca precisou, vai para a escolarização e a escolarização
tem isto, esta formalização que bota o cérebro num outro patamar de
organização, isto na luta social, na ideia... Isto é uma coisa que a gente
não generaliza que todos vão... Há uma qualidade bem legal, isto é
uma parte, a outra é que receber informações por livros... Você lê com
um olhar assim, mais crítico, é uma diferença, e você vai para outros
enfrentamentos e começa a encarar contradição. Porque o camponês é
assim tem muita dificuldade de lidar com a contradição, assim, um diz
uma coisa e o outro, outra coisa, parece que estamos desunidos.
Estamos aprendendo a conviver com posições, com opiniões, não tem
corrente. Assim, isto se configurou a diferença de pensar, de enxergar
as coisas, e o direito de expressar, muito mais direito, muito mais
coragem, digamos de explicitar posições, depois continua tudo
unitário porque você toma decisões coletivas. A militância está mais
oxigenada internamente na relação com o diferente que é a
universidade a gente está mais oxigenado. [Informação verbal]

As práticas educativas e formativas consistem em relacionar a experiência de


exploração e expropriação vivida pelos trabalhadores com as experiências comuns de
uma classe que vive do trabalho, de modo que a ação que acontece no local da área de
conflito por terra se relaciona com a forma de expansão do capital em determinadas
regiões do mundo e, principalmente, a construção de identificação com outras lutas
sociais. Trata-se de um processo de consciência de um processo mais amplo da luta
social e de construção de identificação entre os que atuam politicamente por melhores

393
condições de vida e quem são os que expropriam e exploram os trabalhadores. O
processo de luta força uma pressão sobre o Estado e o seu papel político legitimador.
A estratégia, traçada pelo MST, de relação com as universidades diz respeito ao
cumprimento da função da “universidade necessária” (RIBEIRO, 1969) para que grupos
sociais de trabalhadores avancem na sua organização, participação e emancipação. A
universidade como instituição de ensino, pesquisa e extensão deveria oferecer um tipo
de formação que permitisse a seus egressos desempenhar atividades práticas, bem como
interpretar e investigar a realidade em que atuam, dispondo de instrumental
historicamente necessário para isto – sendo um espaço de reflexão e debate das questões
contemporâneas da instituição e da sociedade como um todo.
O que o Movimento Social pleiteou veio da atuação política e seus limites e
também da necessidade de profissionalização de jovens e adultos. Desta forma, as
propostas dos cursos corresponderam à compreensão, por exemplo, das “correntes do
pensamento filosófico” que orientam a “prática política atual”. Contemplou também a
necessidade de acesso a cursos na área tecnológica, com atuação, sobretudo, em
produção no campo, como Agronomia e Veterinária. Além disso, nas palavras de
Kolling (op. cit.):

Na medida que tu formas o cara com uma profissão, você traz a


escolarização; o cara pode ir para a organização ele tem uma saída; ele
também se desloca [...] que não seja o destino do campo, do
Movimento. A gente tá trazendo para dentro do Movimento [...]. Acho
que nem todo mundo tem presente isto, mas, a gente que está no front
tem muito presente isto: o que significa tu ter. Uma coisa é o cara ficar
por aí, não ter profissão, então tem poucas alternativas. À medida que
tem uma formação superior ele pode ser professor, pode pegar um
outro emprego. Aí, se ele vai para o mestrado, mais ainda (um
concurso), exatamente isto. Ele pode ser outra coisa que não seja [...]
outra possibilidade, alternativa, saída individual. [Informação verbal]

Foi através das contribuições de militantes, religiosos, professores, estudiosos e


intelectuais, durante a construção de frentes de luta, que o MST alargou seus
conhecimentos, tendo em vista as reivindicações sociais e as necessidades e
expectativas organizativas. Os cursos se expandiram nas universidades, sobretudo
públicas e federais, e passaram a ser oferecidos a grupos de trabalhadores oriundos da
luta pela terra e reforma agrária, organizados pelo Movimento com a participação de
outros movimentos e organizações sociais.
As experiências do MST junto às universidades impulsionaram a relação com
os movimentos sociais, sobretudo os que compunham a Via Campesina, na realização
de cursos de graduação, extensão e especialização, além de eventos formativos189. A
partir de 1998 foram firmados os primeiros convênios do Movimento com as
universidades através da parceria MST (ITERRA-IEJC), no Rio Grande do Sul, com o
curso de Pedagogia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do
Sul (UNIJUÍ), o que impulsionou outros convênios na região Sul e também outras áreas
do país. As instituições de ensino superior, sobretudo as públicas, contaram com
professores, pesquisadores, estudantes e técnicos com afinidade política e abertura
institucional. A partir de 2005, com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), já
funcionando em São Paulo, as propostas de estudos e cursos passaram a ser construídas

189
Kolling, (2008) fez menção a cerca de 80 cursos de ensino e extensão, na área de Pedagogia,
Agronomia, Filosofia, entre outras, e ao curso de extensão Realidade Brasileira, com 42 universidades
públicas pelo país.

394
também por esta entidade jurídica na área de Sociologia, Filosofia, Política,
Antropologia etc.
O público dos diferentes cursos foi formado por jovens e adultos, militantes ou
"potencialmente militantes". Na pesquisa desenvolvida para o mestrado (CASTRO,
2005) foram constadas “carências”, desejos, necessidades, expectativas e demandas
relativas à educação universitária ou, como se costuma chamar, “pela faculdade”. Em
1999, pude colher informações de jovens, durante o I curso Realidade Brasileira para
Jovens do Meio Rural; em 2002 reencontrei alguns destes estudantes e pude reaplicar o
questionário, durante a etapa do curso Pedagogia da Terra – convênio entre o MST
(ITERRA-IEJC) e a Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).
Como exemplo do tipo de perfil do público inscrito nos cursos do MST, o
jovem Gibrail, em 1999, com 20 anos de idade, na época acampado, assim se
identificou para o questionário: “sou militante porque contribuo com a organização e
atuo no Setor de Formação, desde 1998"; "vivo com minha esposa"; fez o: "2o grau e
outros cursos, como o Técnico de Administração de Cooperativa (TAC) na escola do
MST (ITERRA-IEJC); sonho: “fazer a faculdade”; projeto de vida: “é transformar a
sociedade como um todo”; entrou no MST: “porque o Movimento oferece condições
através da luta para adquirir um pedaço de terra. E é um Movimento contra as injustiças
desse país, contra essa exploração que vem há séculos atrás, e tem um projeto que
determina uma mudança”; suas referências sobre o Movimento: “Movimento de massa
que luta em defesa de uma nova sociedade em que todos tenham direitos”.
Três anos depois, Gibrail – com 23 anos, assentado em Fraiburgo, Santa
Catarina, casado e com um filho de 2 anos e 7 meses, cursando Pedagogia – assim
respondeu: seu sonho: “continuar estudar e se formar; fazer uma pós [curso de pós-
graduação] e viver com dignidade e qualidade de vida”; seu projeto: “transformar a
sociedade na possibilidade do socialismo; ajudar na revolução cultural,, participar da
luta; e ter mais filhos. Tudo que tivemos foi através do MST. Fui uma pessoa criada na
luta, atuando no acampamento. Sou militante porque eu acho que atuo com
companheiros em atividades práticas, ajudando com a causa dos trabalhadores”. As
referências do MST: “dignidade - direitos sociais e educação; terra – a luta da gente
começou na terra; e solidariedade - no movimento o trabalho é voluntário”.
A formação de demandas por acesso/direito à educação universitária não se
trata de um desejo meramente individual, encontra-se ligada à trajetória coletiva das
lutas nos movimentos sociais, no fazer do ser social e de sua consciência relativa aos
direitos sociais (CASTRO, ibidem). Existiu a demanda por acesso à educação
universitária por parte dos jovens e adultos do campo, militantes e dirigentes, pois a
demanda por educação universitária é uma "carência" social que foi se constituindo
como necessidade dos grupos, movimentos e organizações sociais, como os filiados à
Via Campesina. Tem havido reivindicação de qualificação dos quadros políticos para
capacitá-los a superar questões e na formulação teórica de projetos sociais e políticos
que abarquem as estratégias de luta pela reforma agrária. A experiência mais sistemática
do Movimento com as universidades se iniciou no final dos anos de 1990, como parte
da acumulação das práticas educativas e formativas combinadas aos impasses e dilemas
organizativos de enfrentamento com o projeto do agronegócio. Isto de tal forma que foi
se gerando um estreitamento da relação entre movimentos sociais do campo e
universidades – que já existia com o apoio de setores universitários à luta pela terra e
pela reforma agrária implementada ao longo de décadas.

4. Considerações sobre as experiências entre movimentos sociais e universidades

395
As experiências entre movimentos sociais e universidades, através dos cursos,
vêm tornando as relações regulares entre estes agentes. As práticas de educação e
formação possibilitaram uma constância de espaços dentro e fora da instituição e nos
centros de formação do Movimento. Os estudos sobre a realidade histórico-social,
política, econômica, ambiental e cultural do Brasil, América Latina e o mundo da
estruturação capital-trabalho vêm qualificando e formando jovens, militantes e
dirigentes do MST como de muitos movimentos sociais, principalmente da América
Latina. Entre estes, no Brasil, o Movimento Atingido por Barragens (MAB),
Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), Movimento dos Pequenos Agricultores
(MPA), Pastoral Juventude Rural, o Movimento dos Trabalhadores Desempregados
(MTD), Consulta Popular, sindicatos de trabalhadores.
O convênio com universidades têm se mostrado frutífero, mas não livre de
tensões e confrontos. Estes dois agentes têm demandas sociais, sujeitos, próprios,
diferentes grupos de interesses, atores e propostas que ora se combinam, ora se repelem,
ora se contradizem, a depender das representações políticas e de identificações de luta.
Entretanto, os acúmulos de ações educativas e formativas nas concepções de acesso aos
espaços das universidades e de produção de questões reflexivas, nas diversas áreas de
estudos e pesquisas, são positivos.
A experiências de elaboração de cursos entre as universidades públicas e o
MST evidenciaram a densidade das relações construídas no funcionamento dos cursos, a
adaptação de grades curriculares, das propostas político-pedagógicas às demandas e às
necessidades dos movimentos sociais (BAHIA et. al., 2005). Impedimentos burocráticos
à realização de cursos decorrente da decisão da estrutura universitária, incluindo ações
na Justiça, fizeram parte deste processo de embates dos movimentos sociais para terem
acesso à educação universitária. Desta forma Kolling (2008) vê a questão:

A entrada do MST na universidade fez aparecer na agenda de pesquisa


outras questões, como a própria educação no campo. É neste sentido
que acho que a materialidade de nós entrarmos na universidade, os
pobres entrando na universidade, fez com que a universidade refletisse
mais sobre a realidade da educação, sobre o jeito de fazer educação.
Porque a Direita [...] está tentando desconstituir [, a] nós no desenho
de educação. A Direita batendo, sabe. Os pesquisadores também
deram uma inflexão muito do tipo [...]. [Informação verbal]

Ainda que as experiências movimentos sociais-universidades sejam


quantitativamente incipientes, frente ao conjunto do que vem sendo realizado nas
universidades, existe por parte dos movimentos e organizações sociais uma avaliação,
uma consciência, do que vem representando suas demandas e pautas nas instituições de
ensino superior, Kolling (ibidem):

[...] a gente não tem ilusão no fato de ‘você’ ter entrado [...] que a
gente vai ficar permanentemente [...]. A universidade foi feita em
outra perspectiva, é um espaço de disputa, estando a gente lá dentro ou
não estando. E no geral, a universidade está bem próxima dos
problemas em nosso país, privatizações, [...]. A gente chama muito a
atenção que à medida de que os negros vão com mais força, os índios
vão para dentro da universidade, [...]. Nós queremos passar para
história como alguém que brigou por este espaço, nós vamos lutar na
foice, no diálogo, na tensão, o que seja, mas que saia [a reivindicação]
[...]. [Informação verbal]

396
Portanto, mostram-se as evidências de uma outra perspectiva de concepção de
universidade mais democrática, a partir das experiências junto aos movimentos sociais,
pois se constituíram sobre a necessidade de reflexões teóricas das lutas sociais no
campo, dos momentos históricos, entre o Movimento e as universidades, na luta pela
democratização das instituições universitárias, bem como, nos apoios às ações dos
movimentos sociais por parte de setores médios universitários com afinidades político-
ideológicas.
Uma perspectiva de acúmulo destas experiências e de elaborações por parte
dos movimentos tem sido registrada pelos movimentos sociais e universidades. A
seguir, relato de elaboração destas questões por Bahia et al. (2005, p. 179) –
professora e educandas da Universidade Federal do Pará (UFPA) – com relação a
esta experiência no curso de Pedagogia:

Ocorre que a complexidade da ação educativa exige um profissional


formado numa rede de conhecimentos, práticas e experiências,
construídos num itinerário curricular capaz de ultrapassar as
especialidades e especificidades; capaz de configurar-se na
pluralidade e colaboração das diversas áreas de conhecimento [...].
O êxito das atividades só foi possível porque contou com a articulação
de diversos fatores e a dedicação de vários sujeitos. Destacamos aqui a
experiência e o acúmulo teórico das professoras da UFPA, que
atuaram como animadoras e que provocaram reflexões do coletivo
como um todo, a participação efetiva das educadoras dos diversos
assentamentos e acampamentos do MST e a atuação dos/as
educandos/as da turma de Pedagogia da Terra que tiveram a
capacidade de planejar , articular e concretizar a proposta de Prática
de Ensino a partir de um horizonte totalmente novo. Em síntese, essa
experiência traduziu a Pedagogia em movimento.

A experiência MST-UFPA destacou contribuições e desafios para os “atores”


envolvidos, por exemplo: o "itinerário curricular" de componentes curriculares que, no
caso deste curso de Pedagogia, passou a ser refletido e questionado à luz dos espaços
dinamizados pelas ações dos atores sociais, “não comuns ao fazer da universidade”.
Desta forma, parte da UFPA experimentou o que Bahia (ibidem) denominou um olhar
“de fora para dentro” na reflexão do fazer educativo. Conforme descrito, o Movimento
Social, por sua vez, também foi provocado a se pensar coletivamente e se ligar ao
acúmulo teórico desenvolvido na universidade.
As experiências, ainda que em processo de consolidação, em quase uma década
e meia, vem acumulando para um fazer prático universitário e um fazer político. Esta
relação entre universidade e movimentos sociais pôde ser refletida na compreensão de
Gramsci sobre “ato crítico” em que “a prática é racional e necessária ou que a teoria é
realista e racional” (GRAMSCI, 1978, p. 70), conforme o momento histórico de
transição, em que a prática política necessita de teorização para ser aperfeiçoada e
aplicada. A continuidade das experiências entre movimentos sociais e universidades,
quiçá, poderão ser compreendidas como uma práxis que vem se acumulando em um
processo histórico de reflexão entre as lutas sociais e parte do campo de produção do
conhecimento científico engajado.
O “Projeto alternativo” da ENFF190 faz referência à transformação da nação e,
por isto, requer o estudo como valoroso para a atuação na vida prática: “o estudo e o

190
Disponível na Internet (www.mst.org.br). Acesso em: 23 abr. 2007.

397
trabalho são valores fundamentais. Só através deles seremos capazes de transformar
nossa consciência, condição básica para transformarmos o Brasil”. O estudo compõe
uma práxis popular de esquerda em que a formação de intelectuais orgânicos da classe
trabalhadora é uma necessidade organizativa. Gramsci chamou intelectual orgânico de
"persuasor permanente" para tratar do intelectual de novo tipo que desempenharia o
papel dirigente e papel de intelectual (GRAMSCI, 1979). O que o MST vem tentando
construir junto às universidades são espaços de qualificação de quadros políticos
profissionais que atuem junto ao “povo”, ou aos grupos de trabalhadores do campo e
também da cidade; e com isto o Movimento vem tensionando a democratização do
acesso à universidade por setores sociais empobrecidos do campo.

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399
Aproximações sobre o papel da Universidade Pública na contemporaneidade: o
projeto político-pedagógico da Universidade Federal do Paraná – Setor Litoral.

Adriana Lucinda de Oliveira1, Luiz Alberto Esteves2


1
Universidade Federal do Paraná - UFPR, Setor Litoral, Matinhos- PR –
adrilucinda@gmail.com
2
Universidade Federal do Paraná- UFPR, Setor Sociais Aplicadas, Curitiba- PR –
esteves@ufpr.br

Resumo
O presente artigo objetiva apresentar reflexões sobre o papel da Universidade Pública na
contemporaneidade, bem como socializar análises sobre o projeto político-pedagógico
do Setor Litoral, um dos campi da Universidade Federal do Paraná. Para tanto iniciamos
com uma contextualização acerca do ensino superior no Brasil nas últimas décadas, bem
como abordamos o papel da Universidade como ator social no debate sobre
desenvolvimento e na sequência apresentamos o Projeto Político Pedagógico do Setor
Litoral, seus princípios, diretrizes, eixos pedagógicos, avanços e desafios. As reflexões
compõem a pesquisa de doutoramento em políticas públicas na UFPR, em andamento e
fundamenta-se na vivência cotidiana, como docente dessa Universidade, na leitura
analítica de documentos do setor e de dissertações e teses, que tiveram esse campus
universitário como objeto de pesquisa. Concluímos com alguns questionamentos, posto
que, como o próprio título anuncia trata-se de uma tentativa de aproximar-se
sucessivamente dessa discussão, exercício que tem nos desafiado diuturnamente.
Palavras-chave: Universidade; Projeto Político Pedagógico

1 Introdução
O debate sobre educação e ensino superior tem sido recorrente, haja vista o contexto de
crise do padrão de acumulação capitalista, que tem transmutado a educação de direito
social para a condição de serviço. O processo de mercantilização da educação, expresso
no crescimento das universidades privadas e dos cursos de ensino a distância tem
resignificado e minimizado o papel social da Universidade Pública. Segundo Pereira
(2008, pg. 152-155) esse processo insere-se nas necessidades expansionistas do capital,
que, desde a década de 1970, vem lutando contra mais uma crise cíclica do processo de
acumulação. Assim, a transmutação da educação de um direito para um serviço –
portanto, vendável -, abre mais um leque de fundamental importância para os interesses
do capital.
Chauí (1999) denomina a universidade da fase tardia do capital como a “universidade
operacional”: com um processo de formação esvaziado, reduz suas atividades ao
treinamento e à “reciclagem”, anulando a possibilidade da crítica ao status quo.
A sociedade capitalista que vivemos “impõe” um padrão de pensar, de ser, demanda um
tipo de organização da cultura para atender aos interesses e necessidades do capital.

400
Interessa ao capital, uma educação que reforça e cunhe o individualismo, a
competitividade, o conformismo, a despolitização, a busca pela empregabilidade.
Em contrapartida há algumas experiências de contraposição à essa lógica, que com
avanços e retrocessos, com idealizações ou reproduções têm se colocado no debate
sobre o papel da Universidade na contemporaneidade. No presente artigo trazemos a
discussão vivenciada na Universidade Federal do Paraná, no Setor Litoral, que em seu
Projeto Político Pedagógico (PPP) coloca-se o desafio de exercitar o papel social da
Universidade, de agente de transformação, espaço da crítica e fomento de
conhecimentos que dialoguem e interfiram na realidade social, para além das exigências
do capital e de seu principal ente, o mercado. O PPP do Setor Litoral explicita uma
concepção ampliada de educação como um processo de socialização, aprendizado, que
perpassa todas as dimensões da vida, que conduz a experiências, exercício e vivência de
libertação, humanização, conscientização, delineando um outro modus operanti, que
potencializa a capacidade de ser no mundo, que valoriza a criatividade, a autonomia, a
dimensão coletiva e humana

2 Educação Superior
As transformações em curso no mundo do trabalho nas últimas décadas são decorrentes
das novas exigências da ordem capitalista contemporânea. Tais transformações afetam
diretamente as relações, as formas de organização dos trabalhadores e, ainda, alteram
significativamente as chamadas especializações do trabalho.
A conjuntura marcada por essas transformações no mundo do trabalho, trazidas por
conta da reestruturação produtiva, pela internacionalização da economia, pela
minimização do Estado, pela flexibilização dos direitos sociais, entre outros, constituem
elementos centrais do estágio atual da acumulação capitalista.
Nesse contexto, a Universidade apresenta-se como importante ator social, na medida
em que tem a capacidade de identificar potencialidades, gerar oportunidades, resgatar e
visibilizar heranças culturais da região e do seu entorno, articular o saber científico com
os saberes historicamente e culturalmente construídos e, fomentar a crítica, a dúvida, a
investigação, elementos essenciais para a sistematização e produção de conhecimento a
serviço da sociedade. Além desses fatores estão nas Universidades, em sua grande
maioria, os jovens na faixa etária de 18 a 29191 anos, dos quais esperam-se contribuições
para o enfrentamento dos desafios postos na realidade social.
Os estudos que relacionam educação, trabalho e emprego ganham relevância, na medida
em que as transformações em voga traçam uma reconfiguração das dinâmicas de inter-
relação entre essas esferas. Uma das mudanças trazidas é que o diploma perdeu o status
de passaporte para o mercado de trabalho. Outra se expressa nas exigências de
habilidades comportamentais que agregam valor no perfil do jovem ao disputar uma
vaga no mercado de trabalho. A educação, mesmo sendo um direito social, constitui-se

191
Segundo a Política Nacional da Juventude (2006), este é um padrão internacional que passou a ser
utilizado no Brasil. Nesse caso, podem ser considerados jovens os jovens-adolescentes (cidadãos e
cidadãs com idade entre os 15 e 17 anos), os jovens-jovens (com idade entre os 18 e 24 anos) e os
jovens adultos (cidadãos e cidadãs que se encontram na faixa etária dos 25 aos 29 anos).

401
em um ativo, uma estratégia de acesso a poder, a posições sociais, decisões políticas e
econômicas. O acesso e domínio da informação, mediado pelo processo educacional
contém em si um caráter potencializador. Essa concepção está alinhada a um projeto de
educação comprometido com as demandas do capital. Nesse, a dimensão coletiva de
educação esvazia-se, transferindo para o indivíduo a responsabilidade pelo seu processo
formativo, bem como reiterando a idéia de que a empregabilidade depende do próprio
sujeito, da sua qualificação e capacidade de se manter empregado. Essa perspectiva
contribui para a aceitação acrítica de uma reinvenção do conceito de meritocracia, que
vincula a resolução dos problemas sociais à mobilização das vontades individuais e
estas à posse de competências adequadas que a escola é chamada a transmitir. Estes
discursos revestem-se de uma natureza redutora, escamoteando os fatores sociais,
organizacionais e contextuais que articulam educação e emprego (ALVES, 2012).
Assim, pode-se afirmar que na contemporaneidade, o projeto de educação voltado para
o capital tem conseguido vantagens significativas, reatualizando a teoria do capital
humano, proposta por Theodore Schultz (1973). O referido autor desenvolveu o
conceito de “capital humano”, para explicar a desigualdade entre nações, grupos sociais
e indivíduos. Schultz identificou que, nos Estados Unidos, o forte investimento das
pessoas nelas mesmas, desencadeava um significativo crescimento econômico. Esse
investimento, denominado de capital humano, constituía-se basicamente de
investimento em educação, além do investimento em saúde (FRIGOTTO, 2009).
Schultz (1973) dedicou-se sistematicamente à construção deste conceito, tendo como
premissa que o componente da produção que decorre da instrução é um investimento
em habilidades e conhecimentos que aumenta as rendas futuras, semelhante a qualquer
outro investimento que uma nação ou indivíduos fazem na expectativa de retornos
adicionais futuros. A concepção de capital humano trouxe a Schultz o prêmio Nobel de
Economia em 1979, expressando o reconhecimento desta visão para explicar a
desigualdade social entre os países e também entre os indivíduos (FRIGOTTO, 2009).
Nesta acepção,
a posse do conhecimento é equivalente a propriedade privada
dos meios e instrumentos de produção e estabelece a igualdade
de oportunidades: através dos próprios méritos, talentos,
preferências, esforços e sorte os indivíduos acreditam produzir
um aumento da sua capacidade de trabalho, recompensada
através da ascensão social e pelo acesso aos bens (PARANHOS,
2010, p.37).
A ideia de capital humano, então, reduz a educação às necessidades mercadológicas,
como um fator de produção que ajuda a compreender a visão dominante da qualificação
profissional como determinante para o sucesso profissional. Concomitantemente
constrói o fetiche da educação como fator capaz de promover a igualdade nos marcos do
capitalismo.
O principal pressuposto da Teoria do Capital Humano é o de que
as pessoas com um elevado nível de instrução são mais
produtivas e recebem um salário mais elevado, o que significa
que os diplomados de ensino superior receberiam salários mais
elevados do que os diplomados de outros níveis de ensino,

402
devido ao fato de garantirem uma produtividade mais elevada.
No plano coletivo, consequentemente, o investimento na
elevação dos níveis educacionais da população traduz-se,
necessariamente, num maior desenvolvimento econômico
(ALVES, 2003, p.142).
Nessa perspectiva, o investimento em educação tem sido tema recorrente
principalmente nos países dependentes, que ao acatarem as cartilhas dos organismos
internacionais, desenvolvem uma série de estratégias para a ampliação da escolaridade
da população, com ênfase na eliminação do analfabetismo e no crescimento dos índices
de acesso ao ensino superior.
As ações desencadeadas no Brasil referente a educação superior são: o Programa de
Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), o
Programa Universidade para Todos (Prouni), o Fundo de Financiamento Estudantil
(Fies) e o incentivo a educação a distância, que em sua complementariedade, compõem
o processo de expansão do atendimento das demandas de matrícula, coordenado pelo
Ministério da Educação MEC.
O Reuni foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, e é uma das ações
que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação. Tem como principal objetivo
ampliar o acesso e a permanência na educação superior, através de uma série de
medidas visando a retomada do crescimento do ensino superior público, através da
expansão física, acadêmica e pedagógica da rede federal de educação superior. Segundo
Koike (2009), o REUNI redefine o perfil das universidades federais no país. Objetiva,
em 5 anos, de 2008 a 2012, dobrar o número de vagas e matrículas na graduação e
atingir a meta de “90% na taxa de sucesso”, ou seja, de aprovação.
Já o Prouni foi criado pelo Governo Federal em 2004 e institucionalizado pela Lei nº
11.096, em 13 de janeiro de 2005. Tem como finalidade a concessão de bolsas de
estudo integrais e parciais em cursos de graduação e sequenciais de formação
específica, em instituições de ensino superior privadas. As instituições de ensino
superior que aderem ao programa recebem, em contrapartida, isenção de tributos. O
programa é dirigido aos estudantes egressos do ensino médio da rede pública ou da rede
particular na condição de bolsistas integrais, com renda familiar per capita máxima de
três salários mínimos.
O Fundo de Financiamento Estudantil é um programa do Ministério da Educação,
destinado a financiar a graduação na educação superior de estudantes matriculados em
instituições não gratuitas. Podem recorrer ao financiamento os estudantes matriculados
em cursos superiores que tenham avaliação positiva nos processos conduzidos pelo
Ministério da Educação.
O ensino superior a distância tem seu marco no decreto n. 5.622, de 19/12/2005, que
cria a Universidade Aberta do Brasil (UAB), instituindo a educação a distancia (EaD).
Segundo Koike (2009) o ensino a distância na graduação apresenta-se através do
discurso da democratização do acesso, contudo tem favorecido a expansão desordenada
e de baixo custo do ensino superior.
Ao analisar essas quatro frentes de ação, Souza (2011) afirma que utilizando-se do
poder de decreto, o governo federal imprimiu uma política que, mesmo que de forma

403
fragmentada, resultou num modelo de universidade muito condizente com os princípios
emanados do Tratado de Bolonha, da Conferência Mundial sobre Educação Superior e,
por que não dizer, da Organização Mundial do Comércio - OMC (SOUZA, 2011, p.
114-115).
A partir desse panorama, pode-se estabelecer uma correlação direta entre a expansão do
ensino superior e a mercantilização da educação, na medida que ao longo dos anos há
um crescimento significativo do ensino superior nas instituições privadas. Souza reitera
essa afirmação ao considerar que
Trata-se, de fato, de uma orientação internacional que procura
imprimir a lógica mercantil à educação superior, fenômeno que
tem sido observado a partir de meados da década de 1990,
coincidindo com a LDB de 1996 e com as demais políticas
liberalizantes daquele período. Em função disso, a sociedade
brasileira está submetida a uma situação de ampla privatização
de sua educação superior (SOUZA, 2011, p. 109).
Ribeiro e Chaves (2011) ao analisarem o processo de reforma universitária no Brasil,
apontam que o modelo de instituição universitária vem sofrendo um processo de
transformação manifestada na modernização e modelação organizacional, especialmente
por meio do enxugamento da estrutura acadêmica e implantação de sistemas gerenciais
(apuração de custos, alocação de vagas, controle acadêmico) que objetivam ampliar a
eficiência na gestão e estimular a produtividade. Essa transformação tem gerado um
descomprometimento com a formação dos sujeitos, acarretando um perfil de formação
para a não criticidade e sobretudo para o adestramento e a preparação de pessoas para o
mercado cada vez mais competitivo e inseguro.
Nesse contexto, o diploma de passaporte para o trabalho passou a ser apenas um recurso
de que o indivíduo dispõe na fase de transição para o mundo do trabalho/emprego
(ALVES, 2003).
Entretanto, o acesso à educação permanece na retórica como condicionalidade para a
mobilidade social, para a inserção profissional qualificada, sendo que as políticas
sociais operam nesse sentido, tendo um desenho de focalização, seletividade e
assistencialismo. Diante desse cenário, nos instiga o debate sobre a viabilidade e
factibilidade do papel social da Universidade, da recuperação do sentido teleológico do
trabalho, da concepção ampliada de educação, da defesa da produção de tecnologia
articulada aos interesses e necessidades da sociedade e da construção de um
desenvolvimento comprometido com a sustentabilidade nas suas diferenciadas
dimensões, em um processo de ruptura da dependência e geração de autonomia e
soberania.
Assumir o papel de instituição social pode fazer com que as
políticas e ações das Instituições de Ensino Superior se traduzam
em: a) promoção da democracia, da justiça social, da
solidariedade e da cidadania por meio da sua atuação na
comunidade; b) inserção no processo de desenvolvimento das
comunidades de seu entorno, por meio da articulação com os
demais atores sociais; c) confecção de projetos de pesquisa em

404
ciência e tecnologia que atendam aos interesses regionais; d)
criação de cursos de graduação e pós-graduação e realização
de atividades de extensão voltados ao atendimento das
demandas locais; e) criação de um ambiente acadêmico, onde a
produção do conhecimento esteja, prioritariamente, alicerçada
na realidade, com vistas à sua transformação (SCHAFASCHEK,
2008, p.85 grifos nossos).
Consonante a esse enfoque, está a adoção de uma concepção de ciência e tecnologia
(C&T) subordinada às necessidades e interesses da comunidade, descaracterizando a
neutralidade que permeia o discurso da C&T192.
Essa concepção de tecnologia compreende um conjunto de técnicas e processos
associados a formas de organização coletiva e estratégias de desenvolvimento capazes
de produzir soluções que podem ser reaplicadas, em escala, e que contribuem para a
inclusão social e melhoria da qualidade de vida (SCHAFASCHEK, 2008).
A produção de tecnologia e de inovações impactam diretamente no desenvolvimento da
região, tanto que os debates sobre essas temáticas geraram o conceito de Sistema
Regional de Inovação, fruto dos avanços nas teorias de desenvolvimento regional e nos
estudos sobre inovação tecnológica. Assim, um Sistema Regional de Inovação requer
um aparato financeiro, um conjunto articulado de organizações, um sistema de
aprendizado e cultura produtiva, expressa no envolvimento dos atores da região
(ROLIM & SERRA, 2010)
O objetivo principal da política de inovação deve ser contribuir
para a capacitação de empresas, de instituições voltadas para o
conhecimento e da população em geral. Aqui apontamos para o
aprimoramento humano, novas formas de organização
empresarial, constituição de redes e o novo papel para as
empresas de serviços e universidades no seu papel de
promotoras do aprendizado (LUNDVAL, 2001, p.1 grifos
nossos)
Rolim & Serra (2010) reiteram o debate ao afirmarem que a educação superior vem
sendo identificada como o principal motor para o desenvolvimento econômico, cultural
e social dos países e principalmente das regiões193.

192
Ao abordar a pretensa neutralidade do discurso da ciência e tecnologia, evidenciamos que
historicamente os avanços nessa área não têm sido socialmente e equitativamente acessados. Caso isso
tivesse ocorrido não teríamos a existência de populações totalmente excluídas, expressando índices de
desigualdade social alarmantes. Schafaschek (2008) esclarece que a concepção clássica das relações
entre ciência e a tecnologia com a sociedade é uma concepção essencialista e triunfalista, que pode
resumir-se em uma simples equação, chamado “modelo linear de desenvolvimento: + ciência = +
tecnologia = + riqueza = + bem-estar social”, como se fosse uma simples soma de componentes. As
discussões trazidas por Marini (2000) sustentam essa crítica também, pois desvelam uma concentração
de investimento em ciência, tecnologia e inovação nos países desenvolvidos.
193
O termo região refere-se a uma área geográfica definida no interior do país, que se distingue do seu
entorno por alguma característica própria; um território em permanente construção, produto de uma
dinâmica social composta de diferentes interesses, com uma formação econômica, natural, geográfica

405
As Instituições de Ensino Superior constroem o capital humano
e ampliam o ambiente social e cultural que permite a inovação.
Essa tarefa, além do ensino e da pesquisa, tem sido denominada
do terceiro papel das universidades e tem uma amplitude mais
abrangente que o antigo conceito de extensão. Há também um
reconhecimento cada vez maior que esse potencial é mais fácil
de ser mobilizado no contexto regional (ROLIM & SERRA,
2010, p. 2 grifos nossos)
Apesar desse indicativo, o estudo de Mora-Ruiz e colaboradores (2009) aponta que no
tocante ao Brasil as Universidades apresentam um limitado envolvimento com as
questões relacionadas ao desenvolvimento regional.
No caso concreto do ensino superior, existe um volume
crescente de investigação sobre o papel das universidades e
outras instituições de ensino superior no desenvolvimento,
abordando aspectos diversos como, por exemplo, os efeitos
diretos da presença de uma universidade sobre o emprego e a
economia da região em que se localiza, os efeitos da criação de
parques de ciência e tecnologia associados ao ensino superior, as
consequências sobre o “stock” de capital humano em dada
região, etc. Constata-se que, entre os acadêmicos, não parece
existir consenso sobre esta matéria, na medida em que alguns
defendem que diversos estudos demonstram que as
universidades são essenciais para a prosperidade nacional e para
a democracia e que as economias em crescimento precisam
investir no desenvolvimento do ensino superior; enquanto há
outros que, analisando o caso dos países do Sudeste Asiático,
consideram que parece ter sido o rápido desenvolvimento
econômico a permitir o crescimento e desenvolvimento das
universidades e não o inverso (ALVES, 2003, p. 150).
Assim, pensar em uma Universidade voltada para a região implica, portanto, pensá-la
desde a sua concepção. Ou seja, concepção e missão andam juntas, são inseparáveis.
Assim sendo, olhar a Universidade na perspectiva do desenvolvimento regional
sustentável significa materializá-la enquanto instituição social e não como uma mera
organização voltada para o mercado (CHAUÍ, 1999).
Há que se considerar que o processo de conhecimento e a produção de tecnologia e
inovação também são construções sociais, complexas e permeadas por diferentes
interesses e mediações. Ou seja, não são autônomos, nem neutros constituem-se na
interação ação-reflexão-ação de práticas, saberes e conhecimentos: são, portanto,
trabalho e relações sociais objetivadas. Esses processos requerem opção política,
institucional e pessoal dos sujeitos envolvidos. A Universidade ao orientar-se para uma
região deve

construída, constituída e identificada a partir das interações sociais e da capacidade interna de cada
localidade.

406
projetar estratégias específicas de acesso ao conhecimento, a
tecnologia e, com isso, garantir mais, ou melhor, do que seria
possível sem ela, a ocupação geográfica com pessoas preparadas
para conceber, construir e participar de um desenvolvimento
social, por meio da capacitação para produzir, viver e relacionar-
se de forma auto-sustentável (...) A qualidade do ensino superior
está diretamente relacionada à inserção desse ensino nas
exigências regionais para o desenvolvimento da região
(BOTOMÉ, 2003, p. 10-11).
Rolim & Serra (2010) ao discutirem o impacto das instituições de ensino superior nas
regiões em que estão inseridas, diferenciam as Universidades que estão na região das
Universidades que são da região. As primeiras estão mais preocupadas com as questões
do conhecimento universal, com temas de interesse nacional, formando alunos para o
mercado nacional. Já as universidades que são da região, além de tratar das questões
universais e nacionais também estão preocupadas com as questões especificas das suas
regiões, pesquisam os temas das atividades econômicas das regiões, também formam
alunos capacitados para os mercados de trabalho das suas regiões e são parceiras dos
demais atores regionais.
A fixação de pessoas e de mão-de-obra qualificada, no interior,
depende muito da instalação de equipamentos sociais capazes de
criar condições de permanência de pessoas nessas localidades
(...) a instalação de unidades sociais capazes de potencializar o
desenvolvimento tem, na sua base, a exigência de instituições de
ensino superior, multiplicadoras de outras instâncias de
preparação de pessoal e de capacitação para uma maior
qualidade de vida (BOTOMÉ, 2003, p. 12).
A instalação da Universidade em uma região, por si só, já gera um impacto econômico
sobre os fluxos de renda locais, ou seja, demandam trabalho e uma circulação de renda e
serviços proveniente dos
gastos realizados pelas universidades com o pagamento de
professores e funcionários, as compras de material e toda a sorte
de pagamentos realizados por elas sobre a economia da região
em que estão instaladas. Para melhor visualização desses
impactos é possível subdividi-los da seguinte forma: impactos
sobre as famílias (acréscimos de rendas em decorrência de
pagamentos diversos e dos efeitos multiplicadores decorrentes);
impacto sobre os governos locais (aumento da arrecadação, mas
também maior demanda sobre bens públicos de infra-estrutura);
impacto sobre as empresas locais (aumento da demanda mas
também concorrência no mercado de compra de fatores de
produção) (ROLIM & SERRA, 2010, p. 5).
Para além desses impactos acima descritos, nos interessa identificar as possibilidades
da Universidade efetivamente contribuir, subsidiar e interferir no seu entorno. Nos
mobiliza o debate sobre os caminhos para a construção de um projeto de educação para
além do capital, comprometidos com as demandas da sociedade, dos movimentos
sociais, com as necessidades de trabalhadores e trabalhadoras. Nessa perspectiva nos
aproximamos da UFPR setor litoral e suas particularidades.

407
3 Projeto Político Pedagógico (PPP) da UFPR Setor Litoral
O Setor Litoral da UFPR foi criado em 2004, advém de uma negociação entre a
Universidade Federal do Paraná, governo do Estado do Paraná, Prefeitura de Matinhos,
Secretaria de Estado da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, Centro Federal de
Educação Tecnológica do Paraná (CEFET) e Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências
e Letras de Paranaguá (FAFIPAR), que em 2001 firmaram um termo de cooperação
para a implantação de ações para ampliação do acesso à educação na região.
A conjuntura política da época também interferiu para a concretização de ações de
ampliação do ensino superior. Em 2002 ocorreu a eleição do Presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e do governador do Estado do Paraná Roberto Requião. Ambos tinham em
suas plataformas de governo o compromisso com a ampliação do acesso ao ensino
superior, com ênfase nas regiões mais afastadas dos grandes centros urbanos.

Da mesma forma a gestão 2002-2006 da UFPR teve a expansão como um de seus


objetivos.A proposta de criação de uma expansão da UFPR no Litoral do Paraná teve,
desde o princípio, muito vinculada ao debate sobre o desenvolvimento da região dado
seus baixos índices de IDH, a sazonalidade e a sua riqueza ambiental.

Frente a essa conjuntura, os idealizadores propuseram um projeto político pedagógico


(PPP) diferente dos demais setores da UFPR, caracterizado pelo seu desenho curricular,
formas de avaliação, estratégia de gestão, fundamento teórico-filosófico e relação com
estudantes e comunidade. Apoiaram-se na adoção de uma concepção ampliada de
educação, como um processo de socialização e aprendizado, que perpassa todas as
dimensões da vida, que conduz a experiências, exercício e vivência de libertação,
humanização, conscientização, delineando um outro modus operanti, que potencializa a
capacidade de ser no mundo, que valoriza a criatividade, a autonomia, a dimensão
coletiva e humana

Foram concebidos 15 cursos, de acordo com as características da região: na área


ambiental: Gestão Ambiental e Tecnologia em Agroecologia. Na área de saúde e social:
Fisioterapia, Saúde Coletiva, Serviço Social, Tecnologia em Orientação Comunitária e
Informática e Cidadania. Na área do turismo e Lazer: Tecnologia em Turismo, Gestão e
Empreendedorismo e Gestão do Esporte e Lazer. Foram ainda criadas três licenciaturas:
em Artes, Ciências e Linguagens e Comunicação. Já cursos como Bacharelado em
Gestão Pública e Tecnologia em Gestão Imobiliária relaciona-se a área de gestão do
território e de políticas públicas.

Destacamos que os cursos escolhidos tiveram como critério a não existência dos
mesmos em outro campus da UFPR e uma relação com as demandas da região,
objetivando atrair ao máximo estudantes provenientes do litoral.

O Projeto Político Pedagógico (2008, p. 11) fundamenta-se em três princípios: a)


comprometimento da Universidade com os interesses coletivos; b) educação como

408
totalidade; c) formação discente pautada na crítica, na investigação, na pró-atividade e
na ética, capaz de transformar a realidade.

O Comprometimento da Universidade com os interesses coletivos, parte do pressuposto


que, o serviço público só tem razão de existir se estiver à serviço da população.
Portanto, a Universidade como instituição pública e gratuita tem o compromisso de
direcionar suas ações com vistas a transformação das condições de vida da população
brasileira, principalmente àqueles que historicamente têm sido excluídos do acesso a
qualidade de vida, dignidade, cidadania e justiça social. Ao assumir esse princípio
assume uma concepção de educação alicerçada numa perspectiva filosófica histórico-
crítica, com direção social definida, articulada politicamente, historicamente e
socialmente com o seu entorno, na correlação de forças com os interesses do capital.

Evidentemente, não se trata de uma tarefa salvacionista, mas da


assunção de sua vocação política e científica na perspectiva de
apontar caminhos e possibilidades, para, juntamente com a
sociedade, desenvolver ações e novas reflexões. O constructo de
novas relações sociais nesse entendimento, passa pela
construção de uma nova democracia, que não seja mais
privilégio apenas de uma minoria, mas onde os interesses vitais,
materiais e culturais, do povo trabalhador sejam predominantes
e decisivos (PPP, 2008, p.11).

Nessa perspectiva a UFPR Litoral defende um PPP de intencionalidade emancipatória,


inovadora, inserida e comprometida com a realidade regional do litoral paranaense e
Vale do Ribeira, para desenvolver com essas comunidades, um projeto que tem como
pressuposto a ação coletiva e o protagonismo dos sujeitos, construído na interação com
os espaços da educação pública em todos os seus níveis e a comunidade litorânea,
objetivando a construção de um novo ciclo de desenvolvimento sustentável dessa região
(PPP 2008). Para tanto,

a Universidade destaca-se como um ator de grande relevância,


principalmente pela sua possibilidade de atuar em conjunto com
o Estado, as empresas e a sociedade civil. Contudo, para fazê-lo
deverá transcender sua condição de “torre de marfim” (afastada
dos problemas sociais, ambientais, políticos, culturais) e de
“fábrica de diplomas, inscrevendo entre as funções aquela de
recurso para o desenvolvimento local” (SACHS, 1993, p.39).

Assim, a Universidade como elemento dinamizador das potencialidades locais, pode ser
um importante agente de intervenção, com alto grau de capacidade de influência sobre a
interação Desenvolvimento e Região.
O segundo princípio norteador do PPP á a concepção de educação como totalidade, que
implica a compreensão das contradições inerentes ao modo de produção capitalista
vigente e a lógica mercantil e meritocrática que permeia a educação. Esse princípio vai
de encontro a concepção de educação superior que preconiza

409
o mercado como portador de racionalidade econômica e,
portanto, como princípio fundador, unificador e auto-regulador
da sociedade global competitiva. Nessa óptica só é produtiva a
Universidade que subordina sua produção acadêmica formal e
concretamente às demandas e necessidades do mercado e do
capital. Nessa lógica meritocracia significa considerar as
competências de cada estudante, prescindindo de sua condição
social, isto é, são levados em conta os méritos relativos às
performances, aos resultados nos vestibulares, sem ver a
procedência (RODRIGUES et al, 2006, p.29).
Portanto, a formação assumida como totalidade concreta no PPP desse Setor dar-se-á no
tensionamento com a proposta instituída pelo capital. “A intenção do processo
educativo é o desenvolvimento integral, não apenas no aspecto cognitivo, mas também
nos aspectos afetivos, conativos e sociais, em uma perspectiva emancipatória e de
protagonismo de seus sujeitos e de suas coletividades” (PPP, 2008).
A concepção do processo educativo fundado na realidade social provoca a organização
de um currículo flexível, de forma articulada e com múltiplas relações. Rompe com a
concepção disciplinar e fragmentada para trabalhar com espaços de formação que têm
como principal articulador os projetos de aprendizagens, originados na realidade
concreta em que estão inseridos.
Esses projetos possibilitam o diálogo com os fundamentos teórico-práticos, que
empiricamente já os constituem. Esse diálogo se expande ao abarcar as interações
culturais e humanísticas que se apresenta como espaço para a troca com pessoas da
comunidade externa, de outros cursos, de outras realidades e também como
possibilidade de síntese e reflexão de sua formação e de seu papel social (PPP, 2008)
Dessa forma, conceber a educação como totalidade requer a interação com os diversos
níveis educacionais (educação infantil, fundamental e média), a adoção de uma
perspectiva ampliada de educação e uma organização curricular flexível, em
consonância com a realidade social e tecida através do ensino, pesquisa e extensão.
O terceiro princípio que fundamenta o PPP é a formação discente pautada na crítica, na
investigação, na pró-atividade e na ética, capaz de transformar a realidade. Construir um
processo pedagógico visando uma ação transformadora, crítica e propositiva, requer a
capacidade de desvelar a realidade, na sua complexidade multifacetária, compreende a
defesa e a valorização do coletivo, o respeito pelo individual e subjetivo e a
interiorização de um projeto de educação e de sociedade comprometido com o
enfrentamento das desigualdades sociais.
Não basta uma filosofia de vida ou uma teoria diferente para
transformar a realidade. É preciso que exista uma forma de
pensar o real que seja um meio de expressão mais adequado da
realidade concreta em que se vai atuar. A educação ajuda a
elaborar essa forma de pensar que, convertida em mediadora,
torna-se valioso instrumento de apoio na transformação social
(CURY, 1989, p.67).

410
Para tal, é necessário que os envolvidos (estudantes, discentes, técnicos, comunidade)
assumam a condição de sujeitos, apropriando-se das discussões a partir de suas
realidades concretas, no contexto da comunidade escolar e extra-escolar.
A proposição da UFPR Litoral apresenta-se questionando a lógica disciplinar,
hierárquica e endógena que caracterizam o ensino superior. Defende
a construção coletiva de um projeto político-emancipatório com
a centralidade no combate a resignação e naturalização do
sofrimento e exclusão social, a partir da leitura crítica da
realidade que se constitui como o ponto de partida e de retorno
para a construção e reconstrução do conhecimento (PPP, p.8)
Nessa perspectiva, o PPP da UFPR Litoral está articulado a partir da metodologia de
projetos, que concebe a aprendizagem por meio da interação e articulação entre
conhecimentos de distintas áreas e os conhecimentos cotidianos dos/as estudantes, cujas
expectativas, desejos e interesses são mobilizados na construção de conhecimentos
científicos.
O PPP objetiva que o aluno possa exercitar sua autonomia no
decorrer do processo de formação. Ao mesmo tempo, ao ser co-
responsável por sua aprendizagem, o estudante aprende a balizar
seu cotidiano em valores locais sem perder a perspectiva de
mundialização e do respeito aos limites humanos, gerando auto-
organização e auto-produtividade (CUNHA & FAGUNDES,
2008, p.35).
Desta forma, os estudantes desde o primeiro semestre são incentivados a desvelar
criticamente a realidade e a partir dela construir/tecer a aprendizagem, mediado por 3
processos: conhecer e compreender; que objetiva que o/a estudante faça um
reconhecimento e leitura da realidade; compreender e propor; que prevê o
aprofundamento metodológico e científico, que subsidia a construção de diagnóstico e
planejamento da ação e propor e agir que caracteriza-se pela intervenção na realidade.
Uma das fontes que embasam esse projeto é a produção teórica de FREIRE
(1981), que denomina essa concepção de “Educação Libertadora”, pautada em uma
“Pedagogia da Autonomia” (FREIRE, 1996). BOFF & ARRUDA, também defendem
essa proposição e a denominam de:
Educação da Práxis. A concepção de conhecimento da práxis
postula como fonte primeira do conhecimento humano a prática;
concebe que o ser humano é, ao mesmo tempo, individual e
social e, portanto, que o conhecimento humano nasce de sua
prática individual e social. Conhecer tem, por conseguinte, um
sentido de experimentar, vivenciar e, a partir daí, conceituar,
ganhar consciência (2000, p.21)
Esse debate permeia a práxis dos movimentos populares, dos grupos que discutem os
processos de inclusão, dos educadores que defendem uma prática educativa
transformadora e participativa, dos intelectuais orgânicos que atuam na socialização e
democratização do saber e da informação. Todos esses atores assumiram o desafio de
construir relações de respeito, autonomia, ética e solidariedade. Prática que concebe

411
cada homem e mulher enquanto sujeito sócio-histórico-cultural, que rompe com os
reducionismos do saber aos títulos acadêmicos, com a crença da impossibilidade da
cooperação, com o egocentrismo e com a pobreza política.
Entretanto para todos esses também se apresenta outro desafio, que é o de superar em si
mesmos os condicionamentos capitalistas, individualistas, os preconceitos e,
principalmente, a lógica cartesiana e imediatista imposta pela sociedade em que
vivemos. Fazer com, exige paciência histórica, humildade, reconhecimento da
identidade cultural, corporeificação do discurso, reflexão crítica, compromisso e
esperança (FREIRE, 1996).
Essas 3 fases não ocorrem de maneira etapista, mas são construídas ao longo da
formação e articuladas a 3 espaços curriculares de aprendizagem que organizam,
sistematizam e estruturam todos os cursos, quais sejam: Projetos de aprendizagem,
Fundamentos teórico-práticos e Interações Culturais e Humanísticas.
Os projetos de aprendizagem desenvolvem-se mediante a articulação do ensino,
pesquisa e extensão, enfatizando o protagonismo discente em seu desenvolvimento
profissional e pessoal.
Na medida em que os estudantes exercitam a autoria, são motivados/as a valorizarem a
experiência vivenciada nas trajetórias pessoais, tendo o desenvolvimento da pesquisa
como princípio da aprendizagem e da construção do conhecimento. O diálogo e análise
crítica da realidade de origem, articulada coma realidade global, possibilita a construção
de uma postura pró-ativa e comprometida com a busca de mudanças sustentáveis. É
uma metodologia que pressupõe uma perspectiva de compreensão, transformação e
intervenção para a emancipação social (FAGUNDES, 2009).
Os fundamentos teórico-práticos compreendem os saberes específicos e transversais
necessários para a formação profissional e para o desenvolvimento dos projetos de
aprendizagem.
As Interações Culturais e Humanísticas caracterizam-se em um espaço generalista e
plural, no qual os/as estudantes, docentes e comunidade são convidados a debater,
compreender, experienciar e refletir interdisciplinarmente a complexidade cultural e
humanística da contemporaneidade. Esse processo ocorre através de diversas oficinas de
acordo com os interesses dos sujeitos participantes.
Deste modo, o desenho dos mapas curriculares da UFPR Litoral busca superar a
fragmentação disciplinar, articulando os conhecimentos e habilidades necessários a
formação profissional, humana, política e cultural, tendo a interdisciplinaridade como
princípio, através da participação de docentes de diferentes áreas de conhecimento no
interior dos 15 cursos em andamento na instituição (PFEIFER, 2008).
A proposta em processo de consolidação já apresentou uma série de resistências,
questionamentos, adesões, contradições, críticas e encantamentos próprios da trajetória
de construção do novo, intensificado pela determinação de trilhar caminhos
emancipatórios.
Os alunos que até então eram formados sob a lógica da
racionalidade técnica e disciplinar questionam os professores
sobre vários aspectos, como o porque de não haver disciplinas

412
compartimentalizadas, indagam a importância dos projetos de
aprendizagem e das interações culturais e humanísticas (...)
outros explicitam o encantamento com o processo ao se
perceberem sujeitos com possibilidades de intervenção no lugar
onde vivem (...) os professores, movidos pela insegurança do
novo, discutem a validade de um processo com tais
características. Será que essa proposta atende as exigências do
mercado? (...) uma proporção significativa demonstram
apropriar-se do processo político-pedagógico (CUNHA &
FAGUNDES, 2008, p.35).
A vivencia cotidiana da proposta enfrenta uma série de adversidades, posto que se
coloca na contramão, anunciando o desafio de construir uma educação emancipatória.
Nessa perspectiva emancipação é concebida como um processo de conscientização,
politização, empoderamento dos sujeitos, enquanto ser social, que constrói e é
construído historicamente nas relações sociais, políticas, culturais de seu tempo.
Emancipação significa o mesmo que conscientização, racionalidade. Daí as relações
entre razão, consciência crítica e formação cultural, onde a educação assume um papel
político. A educação só tem sentido enquanto produção de uma consciência verdadeira,
em relação a um projeto de sociedade democrática. A educação tem sentido unicamente
como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica (ADORNO, 2003).
A auto-reflexão crítica é um processo contínuo, inerente ao processo de formação
emancipatória, que se traduz na ação e reflexão sobre a realidade, no qual o estudante é
protagonista, autor, sujeito que vai tecendo sua autonomia. Maseto denomina esse
processo de “aprender a aprender”, que se expressa na
capacidade do aprendiz de refletir sobre sua própria experiência
de aprender, identificar os procedimentos necessários para
aprender, suas melhores opções, suas potencialidades e suas
limitações, e, então, a partir daí, desenvolver o próprio processo
e a própria aprendizagem, no ritmo próprio, de forma contínua,
sempre explorando as próprias competências (MASETO, 2001,
p.89).
Há que se destacar que essa trajetória não se faz sozinha, mas mediada por uma
perspectiva pedagógica que comporte os diferentes ritmos, que valorize as histórias
pessoais, que esteja comprometida com a construção do coletivo, que posicione-se
criticamente frente a padronização, homogeneização das práticas e discursos instituídos.
A formação acadêmica resulta no encontro com uma atuação
profissional, assim a responsabilidade na formação de sujeitos
com autodisciplina e, portanto, comprometidos socialmente para
o bem comum, torna-se um imperativo. Porém, sem a
constituição de práticas pedagógicas capazes de reconhecer e
interagir com o mundo interno de seus estudantes, a ponto de
desafiá-los à construção do conhecimento, não resultarão
práticas efetivamente emancipatórias. Em consequência, a

413
autonomia tão presente nos discursos pedagógicos, invalida-se
(ALENCASTRO, 2009, p.93).
A autonomia é a capacidade de uma pessoa ou de uma comunidade de tomar as decisões
que a afetam, construindo suas próprias regras, refletindo sobre as consequências de
suas ações, assumindo responsabilidades.
Ora, não há outra maneira de tornar-se autônomo que não pela
experiência própria da democracia. O estudante (independente
da idade que tenha) só pode alcançar a autonomia se pouco a
pouco ele tem a oportunidade de tomar as decisões que o
afetam. Se estamos falando de crianças, referimo-nos a decisões
mais pessoais e concretas como o que vestir, quando e quanto
comer, com quem brincar, como os conflitos podem ser
resolvidos, como os materiais podem ser partilhados etc. Os
jovens e adultos, por outro lado, têm condições de participar da
gestão escolar e de construir seus próprios planos de estudo,
organizando o tempo dedicado a cada assunto e orientando-se
para os seus temas preferidos, sempre na relação com os
educadores. A autonomia dos estudantes só é possível se os
educadores não apenas a tem por objetivo, como eles próprios a
vivenciam na organização teórica e prática da sua concepção
pedagógica e do seu trabalho (KELIAN, 2005, p. 1).
A concretude desse projeto requer preparo teórico, epistemológico e metodológico;
demanda retaguarda administrativa, pedagógica e logística. Carvalho (2010) faz uma
análise do PPP apontando seus méritos, principalmente quanto ao papel social da
Universidade, mas demonstra também as inadequações da proposta pedagógica que, na
opinião da autora, está permeada de pragmatismo, hibridismo entre correntes teóricas de
esquerda e pós-modernas, espontaneísmo, ativismo pedagógico, individualismo
pedagógico e desapreço com o conhecimento teórico. Uma das principais críticas dá-se
na distância entre a proposta pedagógica anunciada e a vivenciada, sendo um desafio
tecer cotidianamente um processo formativo efetivamente emancipatório.

4 Considerações Finais
As contradições, avanços, disputas e conquistas do desenvolvimento da proposta
pedagógica e do próprio Setor Litoral foram ao longo da primeira década sendo
apontadas através de relatório de gestão, de conflitos internos, de greves com suas
pautas locais, de debates, de reivindicações junto à direção e junto aos conselhos
superiores e pró-reitorias. Acrescentamos ainda os vários estudos194 de dissertações e

194
Entre as teses e dissertações realizadas a partir do setor litoral da UFPR destacamos: Franco (2008)
aborda o currículo por projetos; Fagundes (2009) discute o projeto político-pedagógico; Carvalho (2010)
analisa o processo de formação de professores e a função da Universidade; Wanzinack (2011)
correlaciona a expansão do ensino superior e o debate sobre desenvolvimento regional a partir da UFPR
setor litoral; Hamermüller (2011) aborda os projetos de aprendizagem como um dos eixos curriculares;

414
teses, que com diferentes enfoques trazem elementos de análise da proposta pedagógica,
das contribuições do Setor Litoral para a região, da relação da Universidade com os
outros níveis de ensino, bem como a correlação em a formação e o mundo do trabalho,
as demandas sociais e políticas, entre outros.
Em nossa perspectiva, a proposta pedagógica da UFPR Setor Litoral carece de uma
dinâmica de monitoramento e avaliação das ações do Setor na região, bem como de uma
maior articulação com os demais atores na região. O desafio que nos colocamos é de
analisar a factibilidade dessa proposição, bem como os avanços, descobertas,
retrocessos e contradições inerentes a toda e qualquer proposta eminentemente
pedagógica. Sendo assim, concluímos essa discussão com as indagações que têm
permeado nossas análises.
 Quais as contribuições da proposta pedagógica da UFPR Setor Litoral para a
formação cidadã, política, cultural e profissional?
 Quais os indicadores de análise, monitoramento e mensuração das práticas
emancipatórias?
 Em que medida um projeto dessa natureza é factível em uma realidade sob a
primazia do capital?
 Em que medida os jovens egressos identificam e incorporam os discursos acerca
das atuais exigências do mercado de trabalho e quais as implicações na
percepção de suas trajetórias profissionais?
 Em que medida as transformações no mundo do trabalho, marcadas pelo
esgotamento do padrão de acumulação taylorista-fordista e a substituição por um
modelo caracterizado pela flexibilização dos processos de trabalho, afetam a
concepção do jovem sobre a sua inserção e situação profissional.
 Em que medida o acesso a formação proposta pelo PPP do Setor Litoral gera
mais comprometimento dos/as estudantes com a realidade local?
 Como se dá a discussão sobre o papel do Estado no interior do cotidiano do
projeto pedagógico?
 Qual é a correlação estabelecida entre o setor litoral da UFPR e os movimentos
sociais da região?
Esses questionamentos tecem um caminho investigativo a ser trilhado, na busca de
construir Universidades como espaços de formação articulados e comprometidos com a
socialização do conhecimento, com o reconhecimento e valorização dos saberes
populares, com a educação emancipatória, voltada e enredada com as demandas e
necessidades da maioria da população.

Couto (2013) discute a construção da identidade docente; Franco (2014) trata sobre a inovação
curricular nos cursos de licenciatura do setor litoral da UFPR.

415
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418
EM DEFESA DE UMA POLÍTICA DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
PAUTADA PELA EDUCAÇÃO POPULAR - A EXPERIÊNCIA DA PROEX-
UNIFESP/BRASIL – PRÁTICA , ARTICULAÇÃO E PARTICIPAÇÃO DIRETA

4;
Raiane P. S. Assumpção¹; Edson B. Rocha²; César Inoue³; Betina Dauch Stéfane C.
Fernandes

1
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Campus de Baixada Santista, Santos-
SP raianeps@uol.com.br
2
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Campus de Baixada Santista, Santos-
SP – edson7br@hotmail.com
³Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Campus de Baixada Santista, Santos-
SP cesinhai@hotmail.com
4
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Campus de Baixada Santista, Santos-
SP bedauch@yahoo.com.br
₅Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Campus de Baixada Santista, Santos-
SP stefane_cfernandes@hotmail.com
Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão sobre a contribuição da educação popular para a
extensão universitária, considerando a experiência da Política de Extensão da
UNIFESP/ Brasil, a partir de 2013.
A vivência da práxis (ação-reflexão-ação) permitiu reconhecer as potencialidades da
educação popular para efetivar: a) a indissociabilidade entre o ensino, a pesquisa e a
extensão na formação acadêmica, ou seja, uma formação constituída por saberes
específicos (técnico-científico) de um dado campo do conhecimento e por saberes
construídos a partir de vivências em determinada realidade; b) um processo de produção
do conhecimento por meio da problematização, a partir das explicações teóricas, com a
reformulação do conhecimento e comprometimento com as necessidades da realidade
vivida - estratégias concretas de intervenção.
No entanto, assumir a defesa da extensão universitária, e em especial uma determinada
concepção de extensão, significa apresentar o papel social da universidade,
considerando a sua finalidade primeira, a formação profissional e a construção de novos
conhecimentos.
Assim, é o sentido da formação dos sujeitos, a forma e os procedimentos utilizados para
desenvolver o processo de ensino-aprendizagem e a intencionalidade da produção do
conhecimento que revela o modelo de universidade defendido, a intencionalidade da
educação vivenciada e o projeto de sociedade em construção.

419
Palavras-chave: Educação Popular; Extensão Universitária, Participação

1 APRESENTAÇÃO
Este artigo foi elaborado com o objetivo de reafirmar a contribuição da Educação
Popular, fundamentada no referencial teórico-metodológico freiriano, para o contexto
atual: o início do século XXI, marcado pelo questionamento sobre a capacidade dos
paradigmas científicos hegemônicos, das instituições sociais vigentes e dos
instrumentos legitimados para a ação política, de responderem as questões e expressões
que emergem da realidade social constituída por imensas desigualdades, decorrentes do
conflito de classe, das relações étnico-raciais, do conflito geracional, das relações de
gênero e da forma de exercício do poder político e econômico.
Dante este cenário, os questionamentos também são estendidos para a universidade, ou
seja, qual a sua capacidade em desempenhar sua função sui generis: que conhecimento
a universidade está sendo capaz de gerar (como, para quem e para que o conhecimento
tem sido produzido)? Tem sua produção (os novos conhecimentos e a formação
profissional) referenciada nas questões postas pela realidade social, sem se submeter à
mesma, articulando saberes por meio de um diálogo crítico, fecundo e propositivo? A
sua dinâmica político-institucional e didático-pedagógica tem sido sustentada pelos
princípios da autonomia do saber e da liberdade de expressão, como também tem
preservado a sua natureza pública, laica e democrática?
As respostas a essas indagações serão formuladas de acordo com as concepções de
educação e de projetos societários que disputam o sentido atribuído à formação dos
sujeitos, as formas e as estratégias utilizadas para desenvolver o processo de ensino-
aprendizagem e a intencionalidade da produção do conhecimento. Assim, a
universidade cumprirá com a sua função social a partir da sua capacidade de organizar e
articular os saberes existentes, avançar as fronteiras culturais, produzir conhecimento,
gerar pensamento crítico, propor pautas e agendas, formar profissionais e intelectuais.
Ou seja, sua capacidade de ser socialmente referenciada, ter a sua existência dinamizada
historicamente, promovendo um diálogo crítico, fecundo e propositivo com as questões
postas pela realidade social, garantindo a autonomia do saber e a liberdade de
expressão.
A tarefa é bastante complexa e exigente, pois a universidade é uma instituição
dinamizada por interesses, demandas e expectativas variadas, podendo coexistir
propostas pedagógicas que tenham intencionalidades distintas e até antagônicas, que
tomam materialidade no ensino, na pesquisa, na extensão e nas instâncias deliberativas.
Em defesa de uma universidade que tenha como intencionalidade a construção da
autonomia dos sujeitos na perspectiva da emancipação humana é que a Educação
Popular é apresentada como uma concepção que, ao promover a indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão, constrói uma formação acadêmica constituída por saberes
específico (técnico-científico) de um dado campo do conhecimento e por saberes
construído a partir de vivências em determinada realidade (priorizando os produzidos
pelos movimentos sociais, comunitários e pelas instituições públicas).

2 A EXTENSAO UNIVERSITÁRIA NO BRASIL: o que a história nos conta

420
A extensão universitária, um dos eixos que compõe o tripé da formação acadêmica no
Brasil, conjuntamente com o ensino e a pesquisa, tem buscado se consolidar ao garantir
sua legitimidade no âmbito da universidade, seu reconhecimento na sociedade e a
adoção de uma concepção que oriente as ações.
Desde a aprovação da LDB – Lei de diretrizes de Base da Educação - (1986) e do Plano
Nacional de Extensão (1987) há diretrizes políticas nacionais estabelecidas
determinando que a formação acadêmica deva ser um processo constituído por um
conjunto de atividades, apreensões, relações e reflexões que possibilitem a construção
de uma identidade profissional referenciada não somente nos saberes específicos e
técnico-científicos de um dado campo do conhecimento, mas também em saberes e
vivências que constituem o sujeito inserido em determinada realidade.
Nesse sentido, pensar a extensão universitária nos leva ao debate sobre o papel social da
universidade, considerando a sua finalidade primeira: a formação profissional e a
construção de novos conhecimentos. Portanto, o foco central desta discussão é a
concepção de educação: o sentido da formação dos sujeitos, a forma e as estratégias
utilizadas para desenvolver o processo de ensino-aprendizagem e a intencionalidade da
produção de conhecimentos.
A história do ensino superior no Brasil, abordada numa perspectiva crítica, revela que a
forma de existir deste nível de ensino decorreu da dinâmica estabelecida na sociedade
pela disputa ideológica, política, econômica e social. Nos diferentes momentos
históricos as políticas educacionais adotados e os projetos políticos-pedagógicos
implantados nas universidades traduziram a hegemonia de um projeto de sociedade em
curso (para exemplificar: no final do período colonial e início da República a ênfase foi
para o ensino acadêmico e para a elite - aristocracia e burguesia nascente -; no período
populista e desenvolvimentista buscou-se a democratização do acesso e a
profissionalização; no regime militar as diretrizes apontavam para o tecnicismo, a
disciplina e o nacionalismo; a partir da década de 80 houve a defesa pela garantia do
direito à educação e ações no sentido de viabilizar o acesso a partir de programas
focalistas e da mercantilização).
É no bojo deste processo, marcado por correlações de forças e projetos societários em
disputa, que a extensão é apresentada como parte constitutiva da universidade195.
Portanto, assume diversas formas e propósitos, como também adquire diferentes graus
de relevância no espaço universitário.
Historicamente, aquilo que ocorre no âmbito da universidade brasileira e não é
caracterizado como ensino regular ou pesquisa, defini-se como extensão. Por isso temos

195 A partir dos princípios liberais do início da República foram criadas as primeiras
instituições brasileiras denominadas de universidades; instituições livres, que tiveram duração
efêmera: Universidade de Manaus, 1909, Universidade de São Paulo, 1911 e Universidade do
Paraná, 1912. (FÁVERO, 1980; CUNHA, 1985 e 1986; ROMANELLI, 1988). Em 1920 foi criada
a Universidade do Rio de Janeiro, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, que reunia os
cursos superiores da cidade - a Escola Politécnica, a Faculdade de Medicina e a Faculdade de
Direito – por meio da existência de uma Reitoria e um Conselho Universitário, sem a existência
de uma integração via mecanismos acadêmicos e administrativos. Somente após a Revolução
Constitucionalista de 1932, em São Paulo, foi criada a primeira universidade baseada na
concepção moderna – constituída pelos três eixos: ensino, pesquisa e extensão -, a USP -
Universidade de São Paulo.

421
a extensão como curso não regular, a extensão como serviço, a extensão efêmera como
assistência, a extensão como responsabilidade social e a extensão como ação política.
Essas diversas formas de realizar a extensão universitária expressam as diferentes
concepções que tem orientado-a, tendo ênfase a:
2.1 Concepção Tradicional
Associada à vivência de exercícios práticos ou a ações de divulgação de conhecimentos.
As ações ocorrem a partir de relações hierárquicas do saber (do meio científico para o
público não acadêmico) e da transmissão do conhecimento. A extensão é vista como
assistência ou filantropia.
2.2 Concepção Desenvolvimentista
Concebe a extensão como difusão do conhecimento por meio da realização de
intervenções locais. Possui como traço característico a busca por resolução de
problemas comuns, de forma democrática e científica, na perspectiva da
autossuficiência, sustentabilidade e da elevação dos níveis de desenvolvimento. É a
ação comunitária de caráter inovador, tanto no âmbito tecnológico como sócio-
educacional.
2.3 Concepção Acadêmico-institucional
concebe a extensão como processo relacional entre a universidade e a sociedade. As
ações ocorrem por meio de programas e projetos com o propósito de gerar processos
educativos, culturais e científicos, como também a articulação entre o ensino e a
pesquisa. Busca a interação entre a prática e a teoria, marcada pelo pluralismo
ideológico.
Este universo tão heterogêneo de concepções e ações revela que a extensão tem sido,
embora assumida em menor grau que os eixos do ensino e da pesquisa, um elemento
constitutivo da função sui generis da universidade: a formação profissional e a
construção de conhecimento. Isto implica na exigência de um espaço institucional e
político-pedagógico próprio para a extensão universitária, como os espaços já
conquistados pelos demais eixos: implantação das diretrizes políticas, propostas
institucionais e político pedagógicas, financiamento, infra-estrutura, espaço na matriz
curricular e em eventos acadêmicos.
Contudo, segundo Melo Neto (2003), é importante assumir um fundamento teórico
coerente com a proposta que se defende. Na perspectiva conceitual do Fórum de Pró-
reitores a “... extensão é um trabalho interdisciplinar que favorece a visão integradora
social” (BRASIL/MEC, l999: 1). Ao trazer a categoria teórica trabalho para o âmbito
da extensão universitária, é possível problematizar as práticas em curso. Como
exemplo: podemos ter atividades que tenham a intenção de integrar pessoas à
sociedade. Todavia, esta sociedade é a responsável pela exclusão, gerando os sem- tudo.
Nesse sentido, segundo Melo Neto (2003), a categoria teórica trabalho pode ser
utilizada para se discutir um conceito de extensão voltado à busca de outras
possibilidades de vida, da construção de outros processos culturais.
Compreendemos então, que a extensão deva assumir a sua dimensão educativa, de
forma articulada como ensino e a pesquisa, para em que o conhecimento possa ser
assimilado e construído ao problematizar a realidade vivida; e que esses conhecimentos
digam algo para o momento atual. Ou seja, conjuntamente com as explicações teóricas
estejam as respostas às necessidades imediatas dos sujeitos envolvidos.

422
Assim, assumir a defesa da extensão universitária, e em especial uma determinada
concepção de extensão, tem um significado mais amplo e desafiador que meramente
uma mudança prática ou a criação de mecanismos que viabilize uma maior aproximação
entre universidade e sociedade. Significa defender um modelo de universidade, uma
intencionalidade para a educação e um projeto de sociedade.

3 Em defesa da educação popular na Extensão Universitária


A educação popular freiriana só pode ser compreendida a partir do referencial teórico-
metodológico que a fundamenta; ou seja, a partir da sua concepção de sociedade, de ser
humano e de conhecimento, como também da intencionalidade que possui como
perspectiva.
Paulo Freire desenvolveu uma teoria do conhecimento que possibilita a compreensão do
papel de cada sujeito no mundo e de sua inserção na história. Possui como fundamento
teórico, a partir da Pedagogia do Oprimido e dos escritos africanos, o princípio do
inacabamento e da incompletude dos seres humanos, e, por conseguinte, da história, da
cultura e dos saberes. Freire (1987) concebe os seres humanos no mundo - sua
constituição decorre da relação entre os humanos, e destes com a natureza, para
sobreviver e reproduzir -, enquanto ser histórico e social. Assim, crê no ser humano
como transformador da realidade, e, por esse motivo, busca compreender mesmo o que
não está visível no mundo – o que denominou como desvelamento da realidade. Para
ele, só quando compreendemos o que explica a realidade somos capazes de transformá-
la.
“A conscientização não pode parar na etapa do desvelamento da realidade. A sua
autenticidade se dá quando a prática de desvelamento da realidade constitui uma
unidade dinâmica e dialética com a prática da transformação.” (FREIRE, 1981, p. 117)
Nesse processo desafiador, Paulo Freire (1981 e 1987) passa a ter o materialismo
histórico dialético como fundante, especialmente a influência gramsciana:
“não há filosofia, ou seja, concepção de mundo sem nossa consciência de
historicidade...” (p. 13). “(...) na realidade, não existe filosofia em geral: existem
diversas filosofias ou concepções do mundo e sempre se faz uma escolha entre elas... A
escolha e a crítica de uma concepção do mundo são, também, fatos políticos”
(GRAMSCI, 1987, p. 14-15).
A filosofia na compreensão de Gramsci é visão de mundo, assim, uma condição
política. Como, então, entendê-la a partir da práxis? Para Gramsci (1987), a filosofia da
práxis é uma atitude crítica de superação da antiga maneira de pensar, tendo como
elemento importante o pensamento concreto existente (universo cultural existente).
A filosofia da práxis busca a superação do senso comum e propõe elevar a condição
cultural da massa e dos indivíduos. Por que esta é uma concepção que lapida o
materialismo histórico dialético? A práxis, entendida como uma unidade dialética entre
teoria e prática, não é um fator meramente mecânico e sim o construto do devir
histórico. Esse devir deve ser entendido na lógica do ser humano (ou sua natureza)
como a expressão da coletividade e suas ações transformadoras de si e dos outros, cujas
relações são de natureza social e histórica. Essa unidade entre teoria e ação é uma
relação dialética que postula o ser histórico como político, ampliando a visão de
filosofia e política como dados totalizantes, sendo a “filosofia” e a história em ato, a
própria condição existencial (GRAMSCI, 1987); assim, realça a importância da

423
dimensão cultural nos processos de transformação social. A cultura é compreendida
como uma criação social do ser humano; ela é simultaneamente um processo e vários
produtos construídos na relação entre ser humano e natureza, e com outros humanos.
Assim, a cultura é ontológica à existência humana.
“A partir das relações do homem com a realidade, resultantes de estar com ela e de
estar nela, pelos atos de criação, recriação e decisão, vai ele dinamizando o seu mundo.
Vai dominando a realidade. Vai humanizando-a. Vai acrescentando a ela algo de que ele
mesmo é o fazedor. Vai temporalizando os espaços geográficos. Faz cultura...”.
(FREIRE, 1987, p. 43)
Nessa concepção de educação popular formulada por Paulo Freire (1983), a ação
cultural é o meio para promover o processo de consciência dos sujeitos; de si, enquanto
ser social, e do mundo, enquanto construção histórica e produto de projetos societários
em disputa. Portanto, a educação popular freiriana busca fazer com que os sujeitos
tenham como perspectiva a emancipação do gênero humano. Deve construir a reflexão e
a indignação nos e com os sujeitos, por meio da sua capacidade de ler a realidade e de
agir para transformá-la, impregnando de sentido a vida cotidiana. Portanto, a vivência
da práxis, a indissociação entre conhecimento e intervenção na realidade.
“A conscientização é um compromisso histórico (...), implica que os homens assumam
seu papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo. Exige que os homens criem sua
existência com um material que a vida lhes oferece (...), está baseada na relação
consciência-mundo". (FREIRE, 1987, p. 43)
Para isso, a educação não pode se dar alheia ao contexto dos sujeitos, nem o
conhecimento pode ser construído ignorando o seu saber. Deve ser sensível e imerso na
sua realidade de forma que aborde suas problemáticas, reconheça seus desafios, limites
e possibilidades. É na sua existência concreta (pessoal e coletiva), marcada pela
contradição, que os sujeitos constroem e reconstroem, permanentemente, a si e a
realidade em que vivem. Assim, a educação popular freiriana busca romper com a
alienação e o silêncio dos sujeitos a partir de uma construção coletiva – com a
perspectiva da classe trabalhadora – que pronuncie o seu mundo e reescreva-o.
Nessa concepção de educação, a realidade concreta (aspectos materiais, relacionais,
afetivos ...), como é apresentada pelos sujeitos, é o ponto de partida para a construção
do conhecimento rumo à transformação dos envolvidos e da realidade social. O que
Paulo Freire (1987) definiu como leitura do mundo. A realidade, inicialmente discutida
em seus aspectos superficiais, vai sendo abordada de forma mais crítica, aprofundada e
generalizada.
Conhecer é apreender o mundo concreto em sua totalidade, o que implica num processo
dialético de aproximação crítica da realidade, leitura do mundo para desvelar sua
organização e as contradições que lhe são inerentes. A decodificação e a
problematização da realidade em sua diversidade requerem uma cisão e uma
reorganização dos saberes e das práticas, o que configura a transformação da realidade;
uma das transformações possíveis. Portanto, essa não é uma tarefa solitária. O ato de
conhecer para Freire (1987) ocorre a partir de um processo social, mediado pelo
diálogo.
Na concepção freiriana de educação a “leitura de mundo” é um dos elementos teórico-
metodológicos centrais, é carregada de significado para todos aqueles envolvidos no
processo educativo: é um tipo específico de relação entre o ser humano e o mundo. A

424
leitura não é um simples olhar. Ela requer que certos códigos sejam decifrados, e por
isso, supõe a atribuição de significados pelo sujeito no processo de decodificação.
(...) Há, então, dois processos de implicações mútuas e correlacionadas: a estruturação
cognitiva de cada intérprete, (...) e a construção do próprio mundo, uma vez que as
ações que empreendemos a todo o momento são baseadas em nossas interpretações e
julgamentos, e nas possibilidades que vislumbramos. As ideias são elaboradas na
tentativa de explicar a realidade e provocar transformações ou a manutenção da ordem.
Se estabelecem aquelas que, a seu tempo, se tornam hegemônicas. (ASSUMPÇÃO,
2009).
A educação transformadora deve ser necessariamente dialógica, não-dominadora, com
relações horizontais, de cooperação e comprometimento entre os sujeitos envolvidos. É
o diálogo, a convivência amorosa e, ao mesmo tempo, as provocações, que fazem com
que os sujeitos sócio-históricos se assumam no ato de conhecer e transformar.
Para Paulo Freire, a dialogicidade, a ação cultural dialógica, não é só necessária, mas
uma exigência radical, pois é assimilado como condição básica das relações entre os
seres humanos.
“Estamos convencidos de que o diálogo com as massas populares é uma exigência
radical de toda revolução autêntica. Ela é revolução por isto” (Freire,2007:145). No
processo desencadeado pela educação popular freiriana, a dialogicidade constrói a
compreensão e a intervenção, isto é, tem como função estimular a compreensão da
realidade, problematizando-a. Nesse sentido, o diálogo assume a centralidade da prática
pedagógica: é condição para o conhecimento, pois é por meio dele que se é possível à
aproximação e compreensão crítica e totalizadora da realidade, como também, a
construção de possibilidades outras.
No entanto, vale ressaltar que esse diálogo inserido na proposta do Círculo de Cultura
não é mero verbalismo, um “bate–papo” inconsequente; é meio para o encontro entre os
sujeitos para a pronúncia do mundo, como dizia Freire. Assim, o diálogo crítico,
intencionalmente transformador, constitui a base estruturante da práxis pedagógica
freiriana. Uma práxis que deve ser permeada pelo comprometimento, pela solidariedade
e pelo amor entre os sujeitos. Amor no sentido de crer na construção histórica e luta do
gênero humano, de ter compromisso inabalável com a causa dos oprimidos e de ter
esperança de que a transformação radical do mundo é possível e necessária.
O Círculo de Cultura consiste em um elemento metodológico importante para o trabalho
da Educação Popular freiriana. É um espaço de ação educativa em que os participantes
estão envolvidos em um processo comum de ensino e aprendizagem, com liberdade de
fazer uso da palavra (se expressar), intervir, estabelecer relações horizontais, vivenciar
ações coletivas em comum, resignificar suas práticas e concepções, reler o mundo em
que estão inseridos e construir possibilidades; isso mediado pelo diálogo, num processo
reflexivo. Assim, enquanto instrumento político-pedagógico da educação popular
freiriana, o Círculo de Cultura é um espaço de estabelecimento de relações afetivas,
cooperativas e solidárias, respeitosas, críticas, coerentes, provocadoras e esperançosas;
possibilita o encontro e os confrontos na construção de saberes e de estratégias de
intervenções concretas na realidade. Ou seja, promove a atualização do legado freiriano.
O círculo de cultura – na teoria de Paulo Freire – re-vive a vida em profundidade crítica.
A consciência emerge do mundo vivido, objetiva-o, problematiza-o, compreende-o
como projeto humano. Em diálogo circular, intersubjetivando-se mais e mais, vai
assumindo, criticamente, o dinamismo de sua subjetividade criadora. Todos juntos, em
Foto: Maurício de Oliveira Filho

425
círculo, e em colaboração, re-elaboram o mundo e, ao reconstruí-lo, apercebem-se de
que, embora construído também por eles, esse mundo não é verdadeiramente para eles.
Humanizado por eles, esse mundo não os humaniza. As mãos que o fazem, não são as
que o dominam. Destinado a libertá-los como sujeitos, escraviza-os como objetos.
(Freire, 1987: 17).
Assim, evidencia-se que a atuação pedagógica referenciada nos princípios teórico-
metodológicos da educação popular freiriana deve cuidar de todas as suas dimensões: a
dimensão pedagógica, estética, ética e a política.
“A pedagogia tem de ser forjada com ele (o oprimido) e não para ele, enquanto homens
ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da
opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu
engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e
refará." (Freire, 1987:16)
No movimento de ação-reflexão, feito por meio do diálogo, o desvelar o mundo é um
ato político, na medida em que objetiva, a partir da realidade dos sujeitos (contexto,
cotidiano, explicações vigentes, relações estabelecidas...), compreender a estrutura e a
dinâmica do modo de produção e reprodução da vida social, buscando superá-lo. Essa
intencionalidade política consiste em uma opção pela classe trabalhadora e um
compromisso com a busca da emancipação humana, através da transformação social.
Portanto, o compromisso político da educação popular é ontológico.

4 Reflexões sobre a educação popular na extensão universitária - a experiência da


PROEX- UNIFESP/Brasil
Como um dos pilares da universidade, a extensão também é atravessada por essas
influências históricas e políticas, e a grande maioria delas trabalha de maneira
assistencialista e mercadológica, sem, de fato, entender o ensino e a pesquisa de maneira
indissociável e viabilizar a relação transformadora entre universidade e sociedade. Para
romper com esta lógica de exclusão e hierarquia instituída na universidade é que surge,
nela própria, um movimento contrário, que tem como propósito a construção do
conhecimento por meio de uma horizontalização na relação entre o científico e o
popular.
A Educação Popular se constituiu fortemente vinculada à vida universitária, não como
uma ação oficial das políticas acadêmicas universitárias, mas como inspiração de muitas
das práticas sociais que estudantes, professores e intelectuais mais inquietos iam
tentando implementar nos espaços livres de seus trabalhos. (Vasconcelos, 2011 p. 17)
A extensão popular, advinda da entrada da Educação Popular na universidade, se
configura como uma possibilidade concreta de estar com os setores populares, através
do esforço e o desejo de estar junto com essa classe, dialogando com os sujeitos. A
extensão, quando realizada na perspectiva da Educação Popular, busca a construção de
ações geradoras de leitura de mundo, capacidade crítica, autonomia e emancipação. Os
resultados são identificados no processo, na constante formação e construção. A cada
ação é possível notar pequenas transformações, seja no espaço da universidade ou nos
sujeitos envolvidos.
A inserção da Extensão Popular na Universidade tem se mostrado essencial para o
crescimento horizontal do saber e uma construção ampliada e conjunta do mesmo. Para
que o saber acadêmico tenha significado, não basta à realização de pesquisas afastadas

426
da realidade concreta da sociedade, é preciso romper as barreiras hierárquicas e
intelectualizadas do saber científico, visando uma transformação da realidade social, por
meio da apropriação popular.
Há, ainda, fortes barreiras na concretização de uma Extensão e Educação Popular na
Universidade, mas é inegável a potencialidade dessa atuação e a sua capacidade de
emancipação dos sujeitos envolvidos e da transformação do ambiente acadêmico e da
realidade social.
A extensão que propomos vai além de uma devolutiva para a sociedade do que esta
investe na universidade, a extensão que propomos parte da sociedade e reverbera em
militância dentro da universidade, clamando por mais democracia ao acesso e o diálogo
na construção do conhecimento produzido na universidade, transformando-o em
potencialidade na sociedade.
5 Participação e articulação com usuários do serviço de saúde, trabalhadores e
estudantes
A reflexão gerada a partir da vivência e participação com usuários do Centro de
Assistência Psicossocial III do município de São Vicente – SP, foi a gênese de um
processo de pesquisa participante, referenciada na educação popular, na área das
políticas públicas sociais, especialmente a participação popular na gestão da política
pública municipal.
A atuação e interesse em contribuir com a efetivação desse processo de participação
popular favoreceu a realização de uma análise coletiva, que envolveu estudantes no
espaço universitário, e possibilitou uma aproximação do movimento popular de saúde e
a atuação junto ao Fórum Popular de Saúde da baixada – FPS/BS, que é composto por
usuários dos serviços e trabalhadores da área da saúde, membros do conselho de
psicologia, estudantes da graduação, pós-graduação residência multiprofissional. Com a
nova composição e a participação como pauta das reuniões, decidiu-se pelo
acompanhamento das reuniões do Conselho Municipal de sáude de Santos,
posteriormente a realização de pré-conferencias, e todo o processo burocrático para o
pleito de vagas no conselho.
Atualmente o movimento articulado detém quatro cadeiras no CMSS, contudo a disputa
por um projeto de saúde em defesa do Sistema Único de Saúde, se dá para além do
espaço institucionalizado de participação social.

6 Comunidade rejeita privatização de serviços de saúde

427
Imagem do evento '' “O que vem por aí com as Organizações Sociais (OS) no SUS em
Santos?” organizado pelo Fórum Popular de Saúde da Baixada Santista no saguão
da Unifesp/BS

Aprovação da Lei Municipal 282/2013 provoca debate acirrado sobre a relação entre o
Estado e a iniciativa privada, e o papel da universidade pública e dos trabalhadores
organizados frente ao esfacelamento da política pública.
Após ampla divulgação na comunidade santista, especialmente nos equipamentos
públicos de saúde, nos ônibus coletivos, nas redes sociais, nas salas de aulas, no saguão
e corredores do campus, foi realizado, no dia 20 de março, no saguão lateral da unidade
central da Unifesp-BS, o evento cujo título era “O que vem por aí com as Organizações
Sociais (OS) no SUS em Santos?”. O ato foi uma resposta à aprovação da Lei
Municipal 282/2013, pela Câmara de Vereadores de Santos, em 16 de dezembro de
2013, que institui o Programa Municipal de Publicização e dispõe sobre a qualificação
de entidades privadas, como as organizações sociais (OS), para assumir a gestão de bens
e serviços públicos que estavam a cargos do poder público no âmbito municipal.
A sessão que aprovou a lei foi tumultuada. Houve, entre os presentes - trabalhadores da
área da saúde e assistência social, funcionários públicos, sindicalistas, estudantes da
Unifesp - quem se jogasse do 2º andar do espaço de reunião, localizado a
aproximadamente cinco metros de altura. As manifestações contrárias à aprovação
incluíram chuva de cuspe, milhos e moedas, muitos gritos, apitos e batuques. As
autoridades convocaram a polícia para “manter a ordem”.
A LM 282/2013 é uma expressão local da implantação da reforma do Estado adotada no
Brasil, desde 1995 (via Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado,
tendo à frente Bresser Pereira), que hostiliza a vida pública frente ao incentivo à
eficiência atribuída ao mercado. Neste contexto é que surgem as OS - que são entidades
de direito privado, sem fins lucrativos, com autorização específica do Poder Legislativo
para celebrar contrato de gestão com o Executivo para realizarem os serviços públicos.
Atrelada ao argumento da eficiência, a reforma estatal desresponsabiliza o Estado da
prestação direta de serviços públicos, esvazia o significado do público e da participação
social. Consagra o Estado Mínimo Gerencial: o direito é convertido em uma mercadoria
a ser consumida e o Estado em gerente de contratos.
Apesar de seu conteúdo polêmico, a lei foi aprovada sem uma discussão prévia com a
sociedade, embora não faltasse oportunidade para tanto. Em 26 de novembro, por
exemplo, o Conselho Municipal de Saúde (CMS) de Santos, espaço institucionalizado
de participação social na gestão pública, realizou uma reunião ordinária, que contou
com a presença rotineira, tanto do secretário municipal de saúde, como dos conselheiros
– entre estes representantes da Unifesp e de membros da comunidade. O PL sequer foi
citado.

428
Após aprovação do PL pela câmara de vereadores, houve um silenciar sobre o
acontecido por parte dos meios de comunicação. Como forma de resistência, a
Comissão de curso do Serviço Social e o Departamento de Educação, Saúde e
Sociedade da Unifesp se organizaram para manifestar o posicionamento da
universidade: elaboraram uma moção de repúdio à lei das OSs, que foi encaminhada à
Congregação, com o objetivo de propor à instância máxima do campus o apoio ao
posicionamento. No entanto, este ponto da pauta foi adiado, devido à priorização de
outra demanda. Assim, a moção seguiu para câmara municipal. Além disso, parte da
comunidade acadêmica propostos espaços de reflexão e debate, como o ato citado, de
20 de março.
O evento foi organizado pelo Fórum Popular de Saúde da Baixada Santista (FPS-BS),
um coletivo político autônomo, formado por membros da sociedade civil, incluindo
estudantes da Unifesp, e contou com uma mesa composta por um representante do
Sindicato dos Servidores Públicos e docentes do eixo Trabalho em Saúde e do curso de
Serviço Social. As exposições foram seguidas de um debate que envolveu mais de 100
participantes (estudantes, docentes, trabalhadores da saúde e da assistência social,
conselheiros profissionais, conselheiros municipais e movimentos sociais).
Os debatedores partiram desse fato concreto para tecer argumentos sobre o significado
da Lei de Publicização: uma expressão do processo de reorganização produtiva do
capital, que necessita de um modelo de Estado que o favoreça; tendo como
consequência o desmonte das políticas públicas. No caso da saúde, esfacela a
construção de uma proposta advinda do movimento de trabalhadores desta área
(movimento sanitarista) e defensores do Estado de Direito e do acirramento da
democracia participativa. Na sequencia, o debate promovido pelos presentes reiterou a
importância de ter espaços públicos de reflexão e a necessidade da articulação e
mobilização social envolvendo trabalhadores, comunidade e a universidade.
No entanto, para a universidade pública cumprir sua finalidade - organizar e articular
os saberes existentes, avançar as fronteiras culturais, produzir conhecimento, gerar
pensamento crítico, propor pautas e agendas, formar profissionais e intelectuais - - é
imperativo ser socialmente referenciada, ter a sua existência dinamizada historicamente,
promovendo um diálogo crítico, fecundo e propositivo com as questões postas pela
realidade social. Deve ser sustentada pelos princípios da autonomia do saber e da
liberdade de expressão, negando qualquer forma de submissão.
A tarefa é bastante complexa e exigente, pois a universidade é uma instituição
dinamizada por interesses, demandas e expectativas variadas, podendo coexistir
propostas pedagógicas que tenham por intencionalidade a emancipação humana, com
outras que compreendam a educação como um instrumento de desenvolvimento
profissional e capacidade de competir no mercado de trabalho. Ou seja, são diferentes
concepções de educação e de projetos societários que disputam o sentido atribuído à
formação dos sujeitos, as formas e as estratégias utilizadas para desenvolver o processo
de ensino-aprendizagem e a intencionalidade da produção do conhecimento. Dante de
tal desafio ontológico, a universidade funcionará melhor quanto mais pública, laica e
democrática se fizer.
É desse pressuposto que pode ser compreendido o posicionamento gerado nos espaços
coletivos de reflexões críticas e propositivas: no ensino, na pesquisa, na extensão, e
nas instâncias deliberativas da universidade. É a partir dele que se faz a crítica ao
processo que permitiu a aprovação da referida lei. Ela altera a materialização das
políticas públicas em Santos – possibilita, a partir da autorização do Poder Executivo,

429
que bens/serviços públicos tenham sua gestão e execução realizadas pela iniciativa
privada. Diante da formalização do posicionamento de parte dos membros da
universidade, como contrários ao processo de privatização das políticas públicas em
Santos, o Poder Legislativo local enviou resposta à moção, questionando a função da
universidade e atribuindo juízo de valor aos argumentos defendidos.
Dado o cenário, inúmeros questionamentos são colocados em relação à capacidade da
universidade em desempenhar sua função sui generis: que conhecimento a universidade
está sendo capaz de gerar (como, para quem e para que o conhecimento tem sido
produzido)? Tem sua produção (os novos conhecimentos e a formação profissional)
referenciada nas questões postas pela realidade social, sem se submeter à mesma,
articulando saberes por meio de um diálogo crítico, fecundo e propositivo? A sua
dinâmica político-institucional e didático-pedagógica tem sido sustentada pelos
princípios da autonomia do saber e da liberdade de expressão, como também tem
preservado a sua natureza pública, laica e democrática?
Somente a história, produzida pelos sujeitos que assumem diferentes projetos
societários, será capaz de responder qual a efetiva contribuição da universidade para a
sociedade.

7 Dia Nacional de Luta da População em Situação de Rua

No ano de 2012 foi inaugurado na Vila Matias me Santos/SP o edifício central da


Unifesp na Baixada Santista, trata-se de dois prédios interligados e com aparência de
shopping center, que se destacam em uma área isolada da cidade que durante anos foi
reservada pelo poder público para esconder sua população empobrecida e sem moradia,
dos pontos turísticos e das áreas nobres da ilha.
Com a chegada da Universidade a situação da população em situação de rua, dos mais
empobrecidos e dos trabalhadores informais em nada melhora, antes, aumenta o custo
de vida destacando o preço dos aluguéis e como agravante, a universidade composta
em sua maioria, por um grupo conservador e elitista, passa a implementar uma política
higienista em busca de garantir o seu estado de semi-conforto num sistema opressor,
competitivo e desumano. O movimento popular composto também por uma pequena
parcela da comunidade acadêmica, grupo pequeno, e constantemente podado pela
hegemonia elitista e amante de privilégios, se organizam no dia Nacional de Luta da
População em Situação de Rua em busca de adentrar a população do entorno e usuários
dos diversos serviços de saúde e assistência social, principalmente do Centro de
Referência Especializado para População em Situação de Rua, ou Centro POP, nas
dependências da Universidade Federal de São Paulo Campus central da Baixada
Santista, ou o Shopping Espacial e Intocável que desceu do céu direto pro subúrbio da
ilha Santos. Durante a caminha de meio quarteirão, com destino a Unifesp,os
participantes são cercados por três viaturas da polícia, contudo, chegam a entrar na
universidade, onde entram também policiais militares a procura de documentos de
identificação do responsável pelo movimento. Todos se recusam a entregar documentos
e constrangidos mais uma vez pela equipe de segurança terceirizada do prédio,
adentram, enfim, ao saguão central do campus, reservado pelo Centro de Estudos em
Direitos Humanos da Unifesp/BS.

430
Fotografia tirada do segundo andar do Edifício Central da
Unifesp/BS no Dia Nacional De Luta da População em Situação de
Rua, durante a atividade promovida na universidade com o
objetivo de fomentar a organização política da população em
situação de rua. Organizada conjuntamente com os trabalhadores
da área da saúde, participantes do FPS/BS, assim como
trabalhadores da assistência social, que convivem com a
população a partir dos equipamentos e do atendimento

Atravessados os largos portões da Universidade Pública e Federal, e um pouco distantes


do aparato repressor do Estado, ouve-se a primeira fala popular ''hoje foi garantido o
nosso direito de vir, mas ainda nos preocupa saber se será garantido o direito de ir,
pois a polícia está lá fora'' - Lembrando que a calçada da rua silva jardim foi
recentemente palco de derramamento de sangue, mais precisamente, quarta feira, 31/07,
Ricardo Ferreira Gama, trabalhador terceirizado da limpeza, que em seu horário de
café ao lado da universidade, foi agredido pela polícia militar, ainda com seu uniforme
de trabalho e com o rosto e veste ensanguentados, sem acusação, foi colocado no porta
mala da viatura e levado pelos policiais, depois de algumas horas foi liberado. Dois dias
depois foi executado com oito tiros, por profissionais encapuzados - A proposta de roda
de conversa, enfim, se materializa e garantido o direito da livre manifestação vetado o
anonimato, deixaram denúncias de tortura e violação de direitos de forma verbal e
escrita no muro interno do prédio envidraçado.

431
Roda de conversa no Dia Nacional de Luta da População em
Situação de Rua, no saguão central da Unifes/BS edifício central
Silva Jardim.

REFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Paulo: Editora Instituto Paulo Freire, 2009.
BOTOMÉ, Silvio P. Pesquisa alienada e ensino alienante: o equívoco da extensão
universitária. Petrópolis: Vozes, 1996.
BRASIL/MEC. Plano Nacional de Extensão. Ministério da Educação. Brasília, 1999.
BRASIL/MEC. VIII Encontro Nacional de Pró-Reitores de extensão das Universidades
Públicas Brasileiras. SUMÀRIO DO DOCUMENTO FINAL. Vitória, ES, 1994
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Extensão ou comunicação? 4ª. Ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1987.
MELO NETO, José Francisco de. Extensão universitária – uma análise crítica.
Relatório de Pesquisa. João Pessoa: 2003.
SILVA, Sílvio Carlos Fernandes; SOUZA, Karla Lucena de; COSTA, Izabel
VASCONCELOS, E.M. Educação Popular na universidade. In: VASCONCELOS,
E.M. CRUZ, P.J.S.C. (Org) Educação Popular na formação universitária, reflexões
com base em uma experiência. São Paulo: Hucitec; João Pessoa: Editora Universitária
da UFPB; 2011 p.15 a 24.

432
Novas epistemes, velhos desafios: universidades populares na América Latina
contemporânea. Os casos de MST e Madres de Plaza de Mayo [Escola Nacional
Florestan Fernandes e Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo]

Eduardo Rebuá1
1
Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói-RJ – rebua7@gmail.com

A Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM) e a Escola


Nacional Florestan Fernandes (ENFF), instituições alicerçadas num projeto de
educação popular e fundadas no início dos anos 2000, representam os objetos
fundamentais deste trabalho, recorte de nossa tese de doutorado em processo de
construção. Madres e MST representam dois dos mais importantes movimentos sociais
latino-americanos, atuantes há mais de trinta anos.

Numa conjuntura de crise do neoliberalismo no continente (2000-2010) e de


ascensão de governos caracterizados por diferentes setores e intelectuais como
“progressistas”, no Brasil (Lula/Dilma) e na Argentina (Kirchners), bem como em
outros países, diversos movimentos sociais têm empreendido uma luta - material e
simbólica - no sentido de erigirem espaços de educação/formação política que se
pretendem contra-hegemônicos, representando novas epistemes, práxis e estratégias
políticas nas lutas anti-sistêmicas em nuestra America. É de nosso interesse investigar
estes movimentos em sua trajetória histórica – a partir, sobretudo, do referencial
gramsciano -, em direção a uma “nova pedagogia dos de baixo”, forjada a contrapelo,
fundada sob as experiências de luta, sob a práxis militante de ambos os movimentos.

Palavras-Chave: Universidades populares; América Latina; MST; Madres

1. Introdução
Na última década, não são poucos os movimentos sociais – sobretudo latino-
americanos – que têm empreendido frentes culturais no campo da educação, no sentido
de erigirem novos espaços de luta, construírem novos consensos, subverterem o
estabelecido e amealharem forças diante do neoliberalismo e sua barbárie cotidiana. A
formação não é algo surgido nos últimos dez anos no seio destes variados movimentos
sociais (mulheres, camponeses, piqueteros, operários, defensores dos direitos humanos,

433
ambientalistas, movimentos de gênero, dentre outros), mas vem ganhando novo ímpeto
no período (2000-2010) que intitulamos de crise neoliberal na América Latina.

Mapear e compreender as demandas e dinâmicas dos movimentos sociais na


contemporaneidade não é tarefa fácil. Sua enorme variedade e complexidade
apresentam ao pesquisador grande desafio teórico-prático-epistemológico. Dos
zapatistas aos estudantes aos movimentos deos povos originários na América Andina;
das Madres de Plaza de Mayo ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, uma
soma diversa de grupos tem forjado lutas que numa perspectiva mais global, exigem um
mundo com mais justiça, mais democracia, mais humanidade.

Com Leher196 defendemos que a história dos movimentos sociais e


revolucionários revela que educação e cultura sempre representaram pilares
fundamentais de seus programas, sendo que na América Latina, na última década, a
dimensão educacional ganhou novo ímpeto, a partir da construção coletiva de espaços
de saber vinculados às suas lutas. Como afirma Semeraro197, de maneira paradoxal, a
América Latina, uma das regiões mais assoladas do planeta, pelo (neo) colonialismo e,
mais recentemente, pelo neoliberalismo, “tornou-se um fascinante laboratório de
propostas sociais e políticas que ganham contornos de alternativas ao sistema vigente”,
com vários grupos/organizações populares forjando mudanças substanciais e propostas
políticas de novo tipo no continente, cujos reflexos se disseminam e se vinculam com
outras lutas insurgentes a nível global. Zibechi198 identifica três linhagens dos
movimentos sociais que surgiram em meio ao avanço do neoliberalismo no continente,
desde fins da década de 1970; movimentos com novas “roupagens”, distintas tanto do
velho sindicalismo, quanto do “padrão” dos movimentos europeus: os movimentos
eclesiais de base, os movimentos indígenas e o guevarismo, de matriz revolucionária.

Boneti199, que corrobora Leher quando afirma que o processo educativo está
presente em qualquer movimento social, frisa que o momento histórico e as questões

196
LEHER, Roberto. Educação popular como estratégia política. In: JEZINE, Edineide & PINTO DE
ALMEIDA, Maria de Lourdes. Educação e movimentos sociais: novos olhares. Campinas, SP: Editora
Alínea, 2010a, pp. 19-32.
197
SEMERARO, Giovanni. Libertação e hegemonia: realizar a América Latina pelos movimentos
populares. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2009, pp. 9-10.
198
ZIBECHI, Raúl. Los movimientos sociales latinoamericanos: tendencias y desafios. Revista do OSAL.
Buenos Aires, CLACSO, n. 9, jan. 2003.
199
BONETI, Lindomar Wessler. Educação e movimentos sociais hoje. In: JEZINE, Edineide & PINTO
DE ALMEIDA, Maria de Lourdes. Educação e movimentos sociais: novos olhares. Campinas, SP:
Editora Alínea, 2010, p. 55.

434
sociais das épocas de surgimento dos movimentos sociais, bem como o caráter do
Estado, a ordem econômica e as relações culturais, definem o caráter da luta e
diferenciam os processos educativos de cada movimento. Tal autor trabalha com o
conceito de movimento social como uma “manifestação coletiva, organizada ou não, de
protesto, de reivindicação, luta armada ou como um simples processo educativo” (...)
como “qualquer manifestação ou ação coletiva que se apresente com o objetivo de
interferir numa ordem social”200. Também no esforço de conceituação dos movimentos
sociais, Kauchakje201 pontua que apesar de não haver consenso sobre tal conceito,
existindo concomitantemente noções amplas e restritas a seu respeito, é possível
construir uma noção geral sobre o fenômeno, mesmo que apenas no interior de cada
tradição ou campo teórico. Para a autora, movimento social é “um fenômeno de diversas
facetas, que acompanha a história das diferentes sociedades”(...) “uma das formas de
ação coletiva”.

2.Hegemonia e contra-hegemonia

O conceito de hegemonia - que dentro do pensamento marxista202 corresponde a


um dos mais polêmicos e difíceis de definir - tem origem no grego eghestai,
significando “conduzir”, “ser guia” ou “chefe”, e do verbo eghemoneuo, que também
corresponde a “guiar/conduzir”, e por consequência, “dominar”, “comandar”203
(MACCIOCCHI, 1977, p. 182). Tal conceito alcançou seu pleno desenvolvimento
como conceito marxista com Gramsci. Considerado por muitos estudiosos do filósofo
sardo seu conceito chave e sua maior contribuição à teoria marxista, a “hegemonia
gramsciana” (que era ainda um conceito pouco desenvolvido204 antes de sua prisão pelo

200
Ibidem, p. 56.
201
KAUCHAKJE, Samira. Movimentos sociais no século XXI: matriz pedagógica da participação
sociopolítica. In: JEZINE, Edineide & PINTO DE ALMEIDA, Maria de Lourdes. Educação e
movimentos sociais: novos olhares. Campinas, SP: Editora Alínea, 2010, pp. 76-79.
202
Inúmeros nomes importantes, tais como Lênin, Stálin, Bukharin, Mao Tse-tung, Gramsci e Perry
Anderson, dedicaram a este conceito uma atenção especial, permitindo interpretá-lo como liderança e/ou
como domínio.
203
No grego antigo, eghemonia significava a designação para o comando maior das Forças Armadas,
tratando-se, portanto, de um termo militar. Ainda de acordo com Macciocchi, na Grécia, o eghemon
representava o comandante do exército e a “cidade eghemon”, à época da Guerra do Peloponeso (entre
Esparta e Atenas, no século V a.C.), era aquela que dirigia a aliança das cidades gregas em luta.
Entendida como uma estratégia da classe operária e um sistema de alianças que o operariado deve dar
início com o objetivo de derrubar o Estado burguês.
204
Entendida como uma estratégia da classe operária e um sistema de alianças que o operariado deve dar
início com o objetivo de derrubar o Estado burguês.

435
Estado fascista, em 1926) era definida, já nas anotações da prisão (que dariam origem à
sua maior obra, os Quaderni), como o modo pelo qual a burguesia estabelece e mantém
sua dominação (hegemonia como projeto de classe). Analisando historicamente a
Revolução Francesa e o Risorgimento italiano, Gramsci vai buscar entender como se
construiu nestes países a chegada da burguesia ao poder e, sobretudo, a manutenção
deste poder, definindo o Estado, a partir principalmente de Maquiavel, como força mais
consentimento, coerção mais consenso, domínio mais direção, sociedade política
(Estado stricto sensu) mais sociedade civil (aparelhos privados de hegemonia205), ou em
expressão do próprio, “hegemonia couraçada de coerção” (2007a, p. 244).

É importante ressaltar que o comunista italiano entendia a sociedade valendo-se


de um esquema triádico, formado por economia – sociedade civil – Estado (sociedade
política), com a economia correspondendo à estrutura e sociedade civil/sociedade
política representando dois grandes planos superestruturais206. Gramsci amplia a teoria
leninista do Estado, defendendo que a hegemonia não se reduz à força econômica e
militar, mas resulta de uma batalha constante pela conquista do consenso no conjunto da
sociedade (grupos subalternos e potenciais aliados). Para ele, a hegemonia corresponde
à liderança cultural e ideológica de uma classe sobre as demais, pressupondo a
capacidade de um bloco histórico (aliança de classes e frações de classes, duradoura e
ampla) dirigir moral e culturalmente, de forma sustentada, toda a sociedade (MORAES,
2009, p. 35).

Portanto, é impossível pensar a hegemonia sem pensar na luta de classes.


Abordar a hegemonia e a contra-hegemonia significa tocar na questão do antagonismo
entre as classes sociais que, a partir de sua posição (dominante ou subalterna, no interior

205
Os aparelhos privados de hegemonia são as organizações materiais que compõem a sociedade civil
moderna, como por exemplo, a escola, a Igreja, os partidos políticos, as associações privadas, os meios de
comunicação, a Universidade, os sindicatos, as organizações não-governamentais. Estes aparelhos forjam,
reproduzem e legitimam interesses de classe, “educando” ideológica e culturalmente as diversas classes e
frações de classe da sociedade civil. São chamados de “privados” porque a adesão a eles é voluntária e
para distingui-los da esfera pública do Estado. Com Gramsci, entendemos que os aparelhos privados de
hegemonia são os espaços responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias (COUTINHO, 2007,
p. 127), sendo primordiais para a conquista do poder de Estado nas sociedades complexas do capitalismo
recente (p. 135).
206
Para Gruppi (2003, p. 178) Gramsci representa o maior estudioso marxista das superestruturas,
investigando sua importância, complexidade e suas articulações internas, sem, no entanto, “abandonar” o
papel determinante da estrutura, numa concepção dialética da relação entre ambas as dimensões. Mas
nem por isso perde de vista o papel determinante da estrutura, ainda que no interior de uma concepção
dialética da relação entre estrutura e superestrutura.

436
da sociedade e do Estado), exercem/sofrem/disputam o poder de maneira permanente
(DANTAS, 2008, p. 91).

O conceito de contra-hegemonia não foi criado por Gramsci, correspondendo a


uma interpretação do conceito de hegemonia do “filósofo da práxis207” a partir de uma
perspectiva crítica, atualizada e, sobretudo estratégica, por parte de inúmeros
marxistas208, objetivando traduzir e/ou demarcar, em termos de luta ideológica e
material, um projeto antagônico de classe, em relação à hegemonia burguesa. O termo,
que se consolidou pelo uso, significa que a luta é contra uma hegemonia estabelecida,
uma luta que objetiva a construção de uma nova hegemonia, e que por isso, corresponde
a um projeto de classe distinto. Como corresponde a uma interpretação, tal conceito
oferece muitas dificuldades para quem se dispõe a explorar seu (s) significado (s). Além
de escassa na literatura marxista, a definição do conceito pode ser encontrada sob os
mais distintos espectros político-ideológicos.

Não se trata de incorporar um neologismo, mas de utilizar um conceito


legitimado por diversos intelectuais importantes dentro do campo marxista (ainda que
poucos o definam), que fazem uso da “contra-hegemonia” querendo apontar para outro
projeto de classe, outro mundo possível. Para Eduardo Granja Coutinho (2008, p. 77),
parafraseando Marx, é possível dizer que toda hegemonia traz em si o germe da contra-
hegemonia, existindo uma unidade dialética entre ambas, com uma se definindo pela
outra. Raymond Williams (1979, pp. 115-116), frisa que a hegemonia sofre uma
resistência continuada, limitada, alterada e desafiada por pressões que não são as suas
próprias. Com isso, é preciso acrescentar a este conceito outro: “contra-hegemonia”
(e/ou “hegemonia alternativa”), elementos reais e persistentes na prática. Daniel
Campione (2003, p. 53) também utiliza a expressão “hegemonia alternativa” como
sinônimo de contra-hegemonia, afirmando que só é possível a conversão dos grupos
dominados em hegemônicos se estes passarem do plano econômico-corporativo ao
plano ético-político (com o vetor “ético” indicando a dimensão intelectual e moral e o
vetor “político” o controle do aparato de Estado).Por sua vez, Terry Eagleton (1997, p.

207
O termo filosofia da práxis não é um expediente linguístico, mas uma concepção que Gramsci
assimila como unidade entre teoria e prática. Esta unidade serve para o filósofo italiano delinear uma série
de conceitos científicos capazes de interpretar o mundo que lhe era contemporâneo. Em suas próprias
palavras, “a filosofia da práxis ‘basta a si mesma’, contendo em si todos os elementos fundamentais para
construir uma total e integral concepção de mundo” (GRAMSCI, 2001, p. 152).
208
Por exemplo, os brasileiros Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho e os britânicos Raymond
Williams e Terry Eagleton.

437
107)afirma que todo poder governante é forçado a enfrentar forças contra-hegemônicas,
parcialmente constitutivas de seu próprio domínio.

Toda contra-hegemonia é uma luta em duas frentes: a material (que Gramsci


chama de “conteúdo”209) e a ideológico-cultural (que Gramsci chama de “forma”), que
na concepção gramsciana equivale ao campo do consenso. Conquistar a hegemonia
significa, para Gramsci, estabelecer uma liderança moral, intelectual, política,
difundindo sua própria “concepção de mundo” por toda a sociedade, igualando o
próprio interesse (da classe hegemônica) com o da sociedade em geral. Acanda (2006,
p. 207) nos ajuda a compreender a importância da cultura e da ideologia na construção
de qualquer movimento contra-hegemônico, quando afirma que em Gramsci, a
construção de uma “nova hegemonia emancipadora” exige a realização de uma reforma
intelectual e moral que seria capaz de criar uma nova concepção de mundo e uma nova
ideologia do povo. Finalizando, Eagleton (1997, p. 106) defende que na sociedade
moderna não basta ocupar fábricas ou enfrentar diretamente o Estado, pois o que
também deve ser contestado é toda a área da “cultura”, definida em seu sentido mais
amplo.

3.Hegemonia e educação na América Latina em tempos neoliberais

Na teoria do marxista sardo Antonio Gramsci (1891-1937), que segundo Eric


Hobsbawm representa o pensamento mais original surgido no Ocidente desde 1917210,
hegemonia e educação se vinculam de maneira dialética, sendo toda relação pedagógica
uma relação hegemônica, assim como qualquer relação hegemônica é necessariamente
pedagógica211.

Sobre a primeira afirmativa, Antonio Tavares de Jesus212 diz que a educação


representa um processo para a concretização de uma concepção de mundo213

209
EAGLETON, 1997, p. 109.
210
HOBSBAWM, Eric. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011, p. 287.
211
JESUS, Antônio Tavares de. Educação e hegemonia no pensamento de Antonio Gramsci. São Paulo:
Cortez, 1989, pp. 122-123.
212
Ibidem, p. 19.
213
Buci-Glucksmann sintetiza – em breve e clássica definição - a noção de ideologia como concepção de
mundo em Gramsci, citando o próprio: “rompendo resolutamente com uma concepção da ideologia como
ideologia-ilusão ou como simples sistema de ideias, Gramsci estende a análise dos aspectos mais
conscientes das ideologias a seus aspectos inconscientes, implícitos, materializados nas práticas, às
normas culturais, aceitas ou impostas. As ideologias funcionam como agentes de unificação social, como

438
(ideologia), cuja importância é fundamental tanto na preservação de uma hegemonia,
quanto na sua renovação (contra-hegemonia). A educação pode agir tanto como
instrumento de dissimulação a serviço das classes dominantes, como também pode
explicitar para os dominados as contradições existentes, permitindo-lhes “reagir a todas
elas e tentar a contra-hegemonia”214.

Em relação à segunda afirmativa (as relações hegemônicas como pedagógicas),


Jesus pontua que “tanto a hegemonia como a contra-hegemonia exigem um desempenho
pedagógico mantenedor-reformador da relação total de poder, de acordo com a
situação histórica”215. A natureza pedagógica das relações hegemônicas se confirma
teoricamente pelo próprio significado de hegemonia desenvolvido por Gramsci: direção
intelectual/moral e dominação, exercida por uma classe sobre as demais, através da
sociedade política e da sociedade civil, dialeticamente ligadas. Na prática, esta natureza
pedagógica também é confirmada, uma vez que somente uma ação pedagógica é capaz
de forjar uma nova cultura (através da imperiosa reforma intelectual e moral, como
preconizava o revolucionário sardo) sintonizada com os objetivos da nova classe
hegemônica, e é capaz de transformar concepções de mundo norteadas pela superstição
e pelo folclore, em concepções de mundo histórico-críticas.

Leher216, alicerçado no revolucionário sardo, corrobora as reflexões de Jesus,


quando afirma que quando pensada como hegemonia, a educação representa parte da
estratégia política dos movimentos sociais, dos partidos políticos, sendo por este
motivo, historicamente atacada de maneira vigorosa pelas elites. Se os regimes civil-
militares latino-americanos impuseram duras derrotas aos diversos movimentos sociais
vinculados às lutas da esquerda, na retomada das lutas sociais em fins da década de
1970 e principalmente na década de 1980, as práticas de educação popular e as
reflexões sobre elas foram resgatadas, representando para os setores dominantes uma
ameaça à “governabilidade”. Os movimentos sociais recolocaram na pauta as discussões
sobre a educação popular, uma vez que sem a “formação” de classe, não é possível

cimento de uma base de classe. Mais ainda: a ideologia tendencialmente identificada à concepção de
mundo de uma classe impregna todas as atividades, todas as práticas. Ela é ‘uma concepção de mundo
que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em todas as manifestações
da vida individual e coletiva’” (BUCI-GLUKSMANN, 1980, pp. 83-84).
214
Ibidem, p. 60.
215
Ibidem.
216
LEHER, op. cit., p. 19.

439
avançar nas estratégias e na disputa hegemônica. Para Leher217, “as contradições
ensejadas pelas políticas de ajuste estrutural neoliberal provocaram relativa ascensão
das lutas sociais, assim como recolocaram na agenda dos movimentos sociais a
necessidade de repensar suas estratégias”. Com isso, diante dos desafios das lutas
contra o neoliberalismo, os movimentos sociais conferiram à formação política - a
educação com hegemonia, como salienta Leher – um lugar de destaque em sua agenda
política.

Frigotto, reafirma a concepção marxiana da educação como prática social, como


atividade humana e histórica que se define nos diversos espaços da sociedade, na
articulação com interesses múltiplos (político, econômicos, culturais) das classes/grupos
sociais. Em suas palavras, “a educação é, pois, compreendida como elemento
constituído e constituinte crucial da luta hegemônica”218. A educação “apresenta-se
historicamente como um campo de disputa hegemônica”219. Para o autor, esta disputa
ocorre “na perspectiva de articular as concepções, a organização dos processos e dos
conteúdos educativos na escola e, mais amplamente, nas diferentes esferas da vida
social, aos interesses de classe”220.

Se a década de 1990 representou para a América Latina221o período da


“desertificação neoliberal”, nos termos de Antunes (2004), o momento do apogeu do
neoliberalismo (e de suas políticas de desregulamentação da economia, privatizações
em massa, flexibilização de direitos trabalhistas, “Estado mínimo”, ajuste fiscal e
redução dos gastos públicos com educação, saúde, previdência social, etc.), a década
seguinte (2000-2010) – recorte de nossa pesquisa - expôs o desgaste desta ideologia e
suas políticas, que para muitos intelectuais222 representa uma crise estrutural223 do
neoliberalismo, modelo específico do capitalismo. A América Latina, outrora paraíso
neoliberal, passou a ser seu elo mais fraco, obtendo avanços na direção de sua
superação, sendo os movimentos sociais fundamentais artífices destas ações. Em suma,

217
Ibidem, pp. 20-22.
218
FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. São Paulo: Cortez, 2010, p. 23.
219
Ibidem, p. 27.
220
Ibidem.
221
Região onde mais proliferaram governos neoliberais, em suas versões mais radicais. No caso argentino,
as políticas neoliberais foram implementadas pelos governos Carlos Menem/Fernando de la Rúa,
respectivamente.
222
Dentre eles Emir Sader, Pablo Gentilli, István Mészáros, Giovanni Semeraro, Gaudêncio Frigotto.
223
Crise que não significa o fim do capitalismo, nem do neoliberalismo, como defende Sader (1995), que
usa a expressão pós-neoliberalismo para se referir à década citada, entendendo tal expressão não como
uma fase histórica, mas sim como uma transição para outro modelo.

440
da década de 1990 para a década de 2000, o continente latino-americano passa de um
cenário para outro bastante diferente, justamente por esta “ressaca”, pela saturação das
políticas neoliberais (ou neoconservadoras224), que impulsionam diferentes movimentos
sociais (“novos” e “velhos”) na busca por avançar em projetos pedagógicos próprios.

A ascensão de governos progressistas na América Latina nesta última década


explicita os efeitos assombrosos das políticas neoliberais e seu profundo desgaste,
traduzido na ida em massa às urnas em diferentes países225. O cenário latino-americano
se modificou bastante com as vitórias de presidentes cujas campanhas eleitorais se
alicerçaram as promessas de transformações sociais, econômicas, políticas e culturais226.

Em ordem cronológica, são eles: Hugo Chávez (Venezuela, 1998), Luiz Inácio
Lula da Silva (2002, Brasil), Néstor e Cristina Kirchner (Argentina, 2003 e 2007,
respectivamente), Tabaré Vázquez (Uruguai, 2004), Evo Morales (Bolívia, 2005),
Rafael Correa (Equador, 2006), Daniel Ortega (Nicarágua, 2006) e Fernando Lugo
(Paraguai, 2008). Tais governos, mais “próximos” dos movimentos sociais, permitiram
a estes últimos construir e/ou avançar no processo de transformações sociais estruturais
(de onde as iniciativas no campo da educação são poderosos exemplos) através de uma
reorganização radical de atos, palavras e símbolos, provocando a desestabilização do
sistema por meio de formas inesperadas e criativas.

Por parte dos novos governos, as políticas públicas não puderam “desconsiderar”
as demandas dos distintos movimentos sociais (não sem conflitos) - que deram
sustentação às suas campanhas -, inclusive e, sobretudo, seus projetos de educação
popular pública (a UPMPM, por exemplo), que convergem em direção a um projeto
popular maior, de sociedade227, contra-hegemônico, alternativo a um modelo de
sociedade em processo de dissolução. Para Semeraro, “o resgate e os desdobramentos
dessa práxis surpreendente são postos em contraposição à crise estrutural do
(neo)liberalismo que se processa diante dos nossos olhos, empurrando cada vez mais o

224
FRIGOTTO, op. cit., p. 22.
225
Neste ponto, é importante frisar que muitos destes governos críticos ao neoliberalismo não romperam
decisivamente com tais políticas, adotando um “social-liberalismo”, onde o Brasil é grande exemplo. Daí
o fato dos movimentos sociais se empenharem por avançar as linhas de força no sentido de destruir o
neoliberalismo no continente.
226
MORAES, Denis de. A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na
América Latina e outros ensaios. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009, p. 99.
227
SEMERARO, op. cit., p. 11.

441
planeta para a catástrofe”228

Diferentes movimentos sociais latino-americanos estão empreendendo nos


últimos anos uma “ampliação” da frente cultural229, como movimento, política e
organização, ações imprescindíveis no esforço de fazer avançar a hegemonia dos
subalternos. A “batalha das ideias” forjada pelos movimentos sociais do continente que
lutam contra o capitalismo e, logo, contra o neoliberalismo, comprova que se
desenvolve por aqui um processo histórico-social em que o conhecimento é política e
estratégia contra-hegemônica.

4.Madres e Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM)

A Asociación Madres de Plaza de Mayo surgiu em 30 de abril de 1977, em


Buenos Aires, um ano após o início da mais cruel ditadura civil-militar daquele país
(1976-1983) e uma das mais sangrentas do continente, protagonizada pelo triunvirato
Videla-Massera-Agosti e intitulada por seus ideólogos/artífices como Proceso de
Reorganización Nacional. O terrorismo de Estado230 imposto pelo regime deixou um
saldo de cerca de trinta mil desaparecidos, e da inquietação de inúmeras mães que
perderam seus filhos (a maioria sem conseguir enterrá-los), surge um dos movimentos
sociais mais importantes da América Latina e o movimento feminino mais comentado e
estudado no continente nos últimos trinta anos. A maioria de seus membros era formada
por mulheres de meia-idade, oriundas dos setores médios ou da classe trabalhadora, com
formação até o ensino secundário (grande parte) e com raras exceções, nunca haviam se
envolvido diretamente na política231.

Cansadas de esperar as autoridades ministeriais para obter informações de seus


parentes, começaram a se reunir e a marchar semanalmente, de maneira espontânea
(AMPM, 2003) na Plaza de Mayo (coração político de Buenos Aires e “lugar de
memória”232 fundamental daquela sociedade), com seus pañuelos233(lenços) brancos

228
Ibidem.
229
Como afirma o historiador britânico E. P. Thompson (LEHER, 2010, p. 28).
230
PASCUAL, Alejandra Leonor. Terrorismo de Estado: a Argentina de 1976 a 1983. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2004.
231
BOUVARD, Marguerite Guzmán. Revolutionizing motherhood: the Mothers of the Plaza de Mayo.
Wilmington, DE.: Scholary Resources, Inc, 1994.
232
Assim como a Plaza, os pañuelos, o Parque de la Memoria (lugar de recordação e homenagem em
frente ao Rio da Prata, onde milhares de pessoas foram arremessadas de aviões, nos chamados “voos da
morte”), a ESMA (Escuela de Mecánica de la Armada, principal Centro Clandestino de Detenção do

442
com o nome de seus filhos. De suas fileiras surgiram outros grupos ainda atuantes e
também de grande referência na Argentina: a Asociación Civil Abuelas de Plaza de
Mayo (1977), formada por mães e avós de desaparecidos; a Madres de Plaza de Mayo
Línea Fundadora (1986), uma dissidência devido a desacordos estratégicos e de
liderança; e finalmente, o movimento H.I.J.O.S (1995), integrado por filhos/parentes de
vítimas do regime - sequestrados e criados desde bebês pelos próprios algozes - em
busca de justiça e de reconstruir sua história pessoal e familiar.

Protagonistas de uma história de luta e resistência, as Madres construíram um


movimento que se tornou um dos principais emblemas internacionais na defesa dos
direitos humanos234. Enquanto a imagem de seus pañuelos se convertia num símbolo
fundamental das lutas pela memória (contra a “memória oficial”) e pela justiça na
Argentina, o período de transição da ditadura para a democracia colocaria em questão
toda a experiência anterior do movimento, obrigando-o a repensar reivindicações,
formas de luta e modos de atuação política, sob a pressão de vários setores para que
essas mudanças ocorressem na direção de seus interesses (GORINI, 2006). Na busca
por uma nova práxis, sintonizada com as novas lutas pós-ditadura, as Madres, mais
“maduras”, ampliaram seus objetivos coletivos (e logo, sua identidade) não apenas nas
questões concernentes aos direitos humanos235, mas também para criticar o
neoliberalismo e suas consequências - extremamente desastrosas em seu país, como
atesta a Crise de 2001/2002 - consolidando-se como um importante sujeito político
coletivo.

De todos os lugares de memória forjados pelas Madres, o maior e mais


representativo deles é a Universidad Popular Madres de Plaza de Mayo (UPMPM),
inaugurada em abril de 2000, em Buenos Aires, defendendo uma educação vinculada à
transformação social, numa perspectiva crítica frente ao status quo, no sentido de

regime) e a Universidade das Madres (UPMPM) representam importantes “lugares de memória”, conceito
elaborado pelo historiador francês Pierre Nora, que faz referência a lugares (edifícios, praças, cidades...),
datas (comemorações, revoluções, golpes...) e objetos (livros, filmes, fotografias...).
233
Símbolo do movimento que, posteriormente, adotou apenas pañuelos brancos, sem o nome dos filhos,
a fim de “socializar a maternidade” (BORLAND, 2006, p. 133), ou seja, a “adoção” por parte das Madres
de todos os hijos desaparecidos, sob o lema “aparición com vida”. Tal movimento no sentido da
construção de uma identidade coletiva fortaleceu a solidariedade daquelas mães e reforçou as redes
sociais que sustentavam seu ativismo.
234
CORREA, Camila & MORZILLI, Marisol. Las madres de la historia argentina. La Plata: Al Margen,
2011.
235
No âmbito internacional, estabelecem contatos, por exemplo, com mulheres da antiga Iugoslávia;
participam dos esforços pela paz entre israelenses e palestinos; se posicionam publicamente contra a
Guerra do Golfo, etc.

443
construir uma sociedade mais justa, democrática. A UPMPM “nasce” para materializar
os sonhos interrompidos de milhares de hijos, sendo “el camiño increíble para la
revolución que soñaron nuestros hijos236”, como afirmou Hebe de Bonafini, uma das
fundadoras das Madres e principal porta-voz do movimento, presidindo-o e atuando
como reitora da universidade. Sob a metáfora do parto, as Madres construíram
poderosas bandeiras, traduzidas, por exemplo, nos lemas “parir rebeliones” e “nuestros
hijos nos parieron”.

Alicerçada no tripé ensino-pesquisa-extensão, a Universidade – que começou


com poucos cursos - oferece hoje cursos de graduação (Direito, Licenciaturas em
História e Trabalho Social), cursos de formação (Capitalismo e Direitos Humanos,
Cooperativismo, Jornalismo de Investigação, Psicologia Social, etc.), seminários anuais
(Leitura metodológica do Capital, Literatura e Política, Ecologia e Capitalismo, etc.) e
oficinas (Pintura, Fotografia, Narrativa, etc.), também anuais 237. A UPMPM se oferece
como um espaço alternativo, crítico ao “poder oficial”, representando uma
“contraoferta” tanto às universidades privadas quanto às universidades públicas
argentinas. Esta universidade, criada pelo movimento social de maior referência daquele
país, propõe um tipo de conhecimento que se baseia na experiência, sobretudo por ter
surgido justamente da experiência de sofrimento daquelas mulheres durante a ditadura,
sendo a memória o nexo entre filhos e mães, que com o passar dos anos, não quiseram
mais “enterrá-los” a fim de poder manter seus sonhos “vivos”. Defendem um saber
ancorado na espessura do real, interessado pelas demandas sociais, pelas reivindicações
por justiça e pelas lutas (p. 69). Em oposição aos paradigmas pós-modernos, que
dissolvem as utopias, negam a História e sepultam a luta de classes e os ideais
revolucionários, a UPMPM resgata as bandeiras revolucionárias dos anos 1960 para
torná-las válidas, em outra conjuntura e através de outras armas.

5.MST e Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF)

A educação, de todas as dimensões da luta do MST, movimento fundado em


1984, é sem dúvida aquela que o movimento dedica mais atenção. Quando os sem terra
fazem uma ocupação, a primeira barraca que instalam é a escola. Inúmeros autores,

236
Extraído de http://reporterisme.files.wordpress.com/2009/03/repormadres.pdf - Acesso em: jul. 2012.
237
O estatuto acadêmico da UPMPM está disponível em:
http://www.madres.org/documentos/doc20110720154134.pdf - Acesso em: jul. 2012.

444
como Leher e Zibechi, citados aqui, afirmam que o MST protagoniza uma das
experiências mais originais e ricas de autoformação e autopedagogia em curso no Brasil
e no continente, sendo provavelmente o movimento social latino-americano que tem
trabalhado o tema da educação de forma mais intensa. Hoje, são mais de mil e
oitocentas escolas de ensino infantil e fundamental, mais de duzentas escolas de ensino
médio, totalizando cerca de setenta mil alunos em todo país, num singular esforço de
conversão das escolas em espaços públicos.

As escolas do MST estão alicerçadas em dois princípios básicos: desenvolver a


consciência crítica do aluno com conteúdos que levem à reflexão e à aquisição de uma
visão de mundo ampla e distinta do discurso oficial, e a transmissão da história e do
significado da luta pela terra e pela reforma agrária, da qual resultou o assentamento
onde está a escola e onde vivem. Em síntese, a escola do MST é uma escola em
movimento, construída materialmente e simbolicamente pelos próprios assentados, e
pensada/desenvolvida a partir de suas demandas, sintonizada com elas. Para alguns
autores, o MST representa um importante sujeito pedagógico238 ou sujeito educativo,
tendo como ponto de partida a educação popular e se constituindo numa “coletividade
em movimento que é educativa, e que atua intencionalmente no processo de formação
de pessoas que a constituem”.

No bojo das transformações ocorridas no seio dos movimentos sociais latino-


americanos na última década, o MST lançou-se na construção do projeto que é hoje o
principal centro de formação do movimento: a Escola Nacional Florestan Fernandes
(ENFF), inaugurada em janeiro de 2005 e localizada em Guararema-SP, numa área total
de 4,5 mil metros quadrados, construída em regime de mutirão voluntário por cerca de
oitocentos militantes, durante quatro anos. Trata-se de um empreendimento político-
pedagógico pelo qual o movimento organiza e oferece cursos de formação política e
profissional para integrantes do MST e de outros setores/entidades ligados ao campo e
às lutas sociais. A escola possui cursos livres, de graduação, especialização e pós-
graduação. Possui convênios e parcerias com diversas instituições de ensino médio e
superior, além de outros órgãos como o Ministério do Desenvolvimento Agrário,
Unicef, Unesco e CNBB. Como elementos prioritários da organização da ENFF, temos:
a auto-gestão, a disciplina consciente e a liberdade para produzir conhecimento239.

238
CALDART, Roseli. A Pedagogia do Movimento Sem Terra. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
239
BIONDI, Antonio. Escola Florestan Fernandes, marco na história do MST. Revista Adusp, 2006, p.

445
A criação da ENFF consolida um novo momento da história do MST, que na
década de 1990 ampliou seus objetivos (como as Madres), lutando não apenas pelo
direito a terra, mas também pelo direito à educação para os trabalhadores que vivem nas
áreas rurais. A ENFF representa um marco na história da educação brasileira, sendo a
iniciativa de maior envergadura construída por um movimento social para viabilizar sua
autoformação. Para ele, sua importância pode ser percebida pela reação raivosa e
deliberada da direita diante das iniciativas de formação do MST (e de suas ações de uma
maneira geral), condenando a inclusão de camponeses e trabalhadores em espaços de
formação de alta qualidade. A criação da ENFF tem um enorme significado e faz-se
mister que sua experiência seja radicalmente transformadora e exitosa. É fundamental a
articulação das universidades que se querem públicas, dos educadores engajados, com
os movimentos sociais que ousam construir a partir de sua práxis saberes
transformadores, forjando assim, como dizia Florestan Fernandes, “um novo ponto de
partida”.

6.Neoliberalismo e os embates da “pedagogia da contra-hegemonia”, na América


Latina
São vários efeitos perversos causados pelas políticas de ajuste estrutural
neoliberal sobre a educação: privatizações; repressão aos educadores; desestruturação
das carreiras docente e técnico-administrativa; corte de verbas; ampliação do Ensino à
Distância (EAD); profusão/legitimação dos sistemas avaliativos como parâmetros
inquestionáveis de análise de qualidade, “medida” através das “competências”, que
individualizam as relações na escola; comodificação do saber, onde o produtivismo
acadêmico, a regulação da produção científica e a intensificação/precarização do
trabalho do professor são efeitos imediatos240, dentre outros. Dentre estes diversos
efeitos, a redução do sentido do que é público merece atenção especial.

Através da defesa de uma sociedade civil241 “asséptica”, sem capitalismo e/ou

16. Disponível em: www.adusp.org.br/revista/36/r36a02.pdf - Acesso em: ago. 2011.


240
Neste caso, tratamos especificamente da Educação Superior.
241
Para Gramsci, que diferentemente de Marx vivenciou as profundas mudanças na relação entre
economia e política no século XX (LIGUORI, 2007, pp. 47-48) - como o fascismo, o bolchevismo e o
keynesianismo - o Estado, lugar de uma hegemonia de classe, não se resume à sociedade política (aparato
político-jurídico – o espaço da coerção) apenas, mas compreende também, numa perspectiva de “Estado
ampliado” (que se contrapõe à visão de Marx e Engels, que entendiam o Estado como “restrito”) e numa
concepção dialética da realidade histórico-social, a sociedade civil (locus dos aparelhos privados de
hegemonia, como a Igreja, a escola e a mídia – o espaço da hegemonia, do consenso). De acordo com o

446
classes sociais, “fora” do Estado e do mercado (terceiro setor242), o pensamento
neoliberal difunde a ideia de que é na sociedade civil que se realiza plenamente a
democracia, a liberdade, a satisfação dos desejos individuais. Do “outro lado”, o Estado
é visto como o lócus do autoritarismo e da burocracia. O embate privado x Estatal acaba
excluindo do debate a esfera pública e, logo, tanto as políticas universais quanto as lutas
em defesa de uma esfera pública no Estado. Em outras palavras, o par em conflito afasta
do campo de análise a tese de que o público, os direitos de todo o povo, resultam dos
embates de classe. Neste processo de “apagamento” do público, a esfera privada passa a
ser rotulada como um espaço “público-não estatal”, uma vez que atende ao “interesse
social”.

Neste panorama claro de embates ideológicos e materiais por, de um lado,


perpetuar/fortalecer o modelo societário neoliberal na América Latina243, e de outro,
construir uma hegemonia dos subalternos, a educação do consenso tem grande
centralidade, como ensinou Gramsci, se referindo à imprescindível direção político-
cultural que a classe hegemônica deve exercer na perspectiva de conservar e/ou
transformar o conjunto da vida social.

Lúcia Neves244 constrói primorosa análise dos pressupostos, princípios e


estratégias do projeto neoliberal da Terceira Via245, que norteiam o que ela chama de
“nova pedagogia da hegemonia” burguesa no mundo de hoje, que na América Latina
atua de maneira exemplar. Para a autora, o Estado capitalista, na condição de
educador246, desenvolveu (e desenvolve) uma “pedagogia da hegemonia”, com ações

revolucionário sardo, a sociedade civil é a arena privilegiada da luta de classes, o terreno sobre o qual se
dá a luta pelo poder ideológico (consenso); é o componente essencial da hegemonia (ACANDA, 2006, p.
178) ou nas palavras de Dênis de Moraes, “(...) o espaço político por excelência, lugar de forte disputa de
sentidos” (2009, p. 38). Dizer que é na sociedade civil onde se garante a hegemonia dos grupos
dominantes (e onde se forja, na dinâmica dos embates político-ideológicos, a contra-hegemonia) não
significa que neste local não atue a coerção. A sociedade civil é um momento do Estado, logo, as esferas
tanto da sociedade política (Estado stricto sensu) quanto da sociedade civil se interpenetram, sendo a
hegemonia o pólo dominante dentro do funcionamento da sociedade civil e a coerção seu pólo secundário
(PIOTTE apud MOCHCOVITCH, 1992, p. 33).
242
Que segundo Carlos Nelson Coutinho, “se caracteriza pelo voluntariado, pela filantropia e,
sobretudo, pela redução das demandas sociais ao nível corporativo dos interesses particulares”
(COUTINHO apud NEVES, 2005, p. 12).
243
Sobretudo numa conjuntura de desgaste político-ideológico e de crise econômica.
244
NEVES, Lúcia Maria Wanderley. A nova pedagogia da hegemonia: estratégias do capital para educar
o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.
245
Sistematizado, sobretudo, pelo sociólogo britânico Anthony Giddens.
246
Tal concepção está alicerçada em Gramsci, que afirma: “A classe burguesa coloca-se a si mesma
como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a a seu
nível cultural e econômico; toda a função do Estado é transformada: o Estado transforma-se em

447
concretas tanto no Estado quanto na sociedade civil. Nas sociedades chamadas por
Gramsci de “ocidentais247” – mais estruturadas politicamente – a pedagogia da
hegemonia passa a se exercer de forma mais sistemática, através de ações com função
educativa positiva, desenvolvidas principalmente na sociedade civil, mais
especificamente nos aparelhos privados de hegemonia, onde a escola, segundo Gramsci,
é o mais importante e estratégico248.

Tais aparelhos representam peça-chave dentro da teoria ampliada do Estado de


Gramsci. De acordo com Coutinho249, eles são “organizações materiais que compõem a
sociedade civil”, são “organismos sociais coletivos voluntários e relativamente
autônomos” em relação à sociedade política (cujos organismos sociais ou portadores
materiais são os chamados aparelhos repressivos de Estado – o aparato policial-militar e
a burocracia executiva). Denis de Moraes250, alicerçado em Coutinho contribui para a
análise dos aparelhos privados de hegemonia, afirmando que “tais aparelhos são os
agentes fundamentais da hegemonia, os portadores materiais das ideologias que
buscam sedimentar apoios na sociedade civil”. E pensando na contra-hegemonia,
salienta que “o aparelho de hegemonia não está ao alcance apenas da classe
dominante que exerce a hegemonia, como também das classes subalternas que desejam
conquistá-la”.

Dentre as ações concretas da nova pedagogia da hegemonia, podemos citar a


atuação do movimento “Todos pela Educação (2006)251”, aqui no Brasil, que reúne

‘educador’ etc.” (GRAMSCI apud MANACORDA, 2008, p. 243).


247
Gramsci chamou de formações sociais do “Oriente”, aquelas onde a sociedade civil é débil e o Estado
repressor predomina; e de formações sociais do “Ocidente”, aquelas onde existe um equilíbrio entre
sociedade civil e Estado. Os conceitos de “Ocidente” e “Oriente” não são ideias originais de Gramsci
(eram ideias correntes na Internacional comunista após 1922), mas foi o filósofo marxista quem conferiu
maior atenção a estas categorias. Para Gramsci, as sociedades civis “ocidentais” (a partir do último
quartel do século XIX) teriam um maior grau de desenvolvimento que as sociedades civis “orientais”
(chamadas por ele de primitivas e gelatinosas), pois no “Ocidente” (onde a burguesia hegemonizava o
Estado – sob a égide do capitalismo), a correlação de forças entre Estado e trabalhadores (cada vez mais
organizados em partidos e sindicatos) era muito menos assimétrica que no “Oriente”, com uma esfera
pública situada “fora” desse Estado. Já na Rússia de 1917, por exemplo, o Estado czarista era “tudo”, ou
seja, a sociedade política se sobrepunha à débil sociedade civil, em que os trabalhadores não estavam
organizados e por isso não eram capazes de influenciar as massas. Decorre desta leitura a concepção
gramsciana, dentro do conceito de hegemonia, da guerra de posição e da guerra de movimento.
248
Ibidem, p. 27.
249
COUTINHO, Carlos N. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2007, p. 129.
250
MORAES, op. cit., p. 40.
251
Para conhecer melhor “quem está conosco”, ou melhor, com “eles”, no movimento, sugere-se a visita à
página oficial do “Todos pela Educação”, disponível em:
http://www.todospelaeducacao.org.br/institucional/quem-esta-conosco/ - Acesso em: jul. 2012.

448
quase 80% do PIB nacional (Itaú, Bradesco, Vale, Monsanto, Globo, Abril, Odebrecht,
Faber-Castell, Gol, HSBC, Natura, Santander, etc.) em torno de um projeto que visa
fazer o Brasil alcançar “a Educação que precisa252” (grifo nosso), através de cinco
metas “simples, específicas e focadas em resultados mensuráveis”, onde uma se destaca
(Meta 5): “Investimento em Educação ampliado e bem gerido” (grifos nossos).

Caberia aqui uma análise mais acurada dos objetivos/efeitos da atuação destes
grupos empresariais privados, num organismo que se reivindica como de “interesse
social”, defensor da educação pública, conforme dissemos anteriormente. Para além do
caráter “mercadológico” de um movimento deste tipo, que materializa a educação como
uma importante e estratégica fonte de lucro, é importante ressaltar mais uma vez a
contribuição de Gramsci no que se refere ao caráter fundamental do vetor-consenso na
consecução de uma hegemonia de classe. Em termos gramscianos, tal movimento
representa um poderoso aparelho privado de hegemonia da burguesia brasileira, que tem
como objetivo claro pesar decisivamente na correlação de forças existentes em nossa
sociedade, obtendo do conjunto da sociedade o consentimento passivo e/ou ativo para
seus projetos de sociabilidade.

Do “outro lado”, também cientes da importância da educação do consenso, da


formação política e do caráter hegemônico da educação, os movimentos sociais latino-
americanos, como dissemos anteriormente, têm construído coletivamente poderosas
frentes de luta materiais e ideológicas, materializadas em instituições educacionais de
educação popular que visam o fortalecimento/ampliação da contra-hegemonia253 e da
esfera pública como algo que é efetivamente de todos, de maneira democrática, uma vez
que “o embate contra-hegemônico traz a exigência da construção de uma alternativa
que tenha a democracia como o valor fundamental”254.

7.Considerações finais

A UPMPM e a ENFF, forjadas a partir de cerca de três décadas de “práxis


educadora” das Madres e do MST, de suas experiências nas lutas por justiça, memória,
reforma agrária, cidadania, têm conquistado, consolidado e aprofundado poderosos
consensos no processo de ampliação de seu espectro de luta, “educando” diferentes
setores das sociedades argentina e brasileira. Ao mesmo tempo, têm criado/aprofundado

252
Extraído do site do movimento citado anteriormente.
253
NEVES, op. cit., p. 17.
254
FRIGOTTO, op. cit., pp. 25-30.

449
tensões com o Estado, com o qual mantém relações institucionais e vínculo políticos
nestes anos de kirchnerismo (2003-2012) e "lulismo/petismo" (2003-2012). Interessa-
nos, na tese em construção, analisar os vínculos de Madres e MST (destacadamente de
suas direções255) com os governos de seus países - de caráter “progressista”256 - nesta
última década, verificando como ocorre concretamente o processo de “adequação à
ordem”257 destes sujeitos coletivos (Madres e MST), como se dá a relação da educação
nos/dos movimentos sociais com o Estado.

Uma educação de qualidade para os trabalhadores, assinala Leher258, tem de ser


uma meta prioritária desde o hoje, “para que os germes da educação do futuro possam
ser cultivados”. E quem disse que educação de qualidade não pode ser oferecida,
pensada, recriada por movimentos sociais, sobretudo movimentos fundados por mães e
por camponeses/camponesas, respectivamente, que do luto partiram para a luta?! E
quem disse que uma outra educação e, por conseguinte, um outro mundo possível, não
pode ser “parido” da concretude do real, com todas as suas contradições, perguntas,
lutas, memórias, “contra-molas” e rostos humanos?!

Urge construir o público na luta pela desmercantilização da educação, contra a


colonialidade do saber, em oposição aos pressupostos pós-modernos, aos paradigmas
neoliberais e em diálogo permanente com as lutas sociais. Cento e quarenta anos após o
silêncio imposto pelas armas da reação conservadora à Comuna de Paris, ainda ecoa o
exemplo dos comunards e de suas bandeiras em defesa de uma educação efetivamente
pública, popular, gratuita, laica, omnilateral, universal, integral.

Madres e MST, movimentos de larga trajetória e artífices de lutas


imprescindíveis não apenas em seus países de origem, têm nos ensinanado a lutar velhas

255
Será fundamental para as análises da pesquisa a contribuição de Gramsci acerca do fenômeno do
transformismo, a “absorção gradual mas contínua, e obtida com métodos de variada eficácia, dos
elementos ativos surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e que pareciam
irreconciliavelmente inimigos” (CHIAROMONTE, 2007). Em suma, trata-se de investigar as
“metamorfoses” (IASI, 2006) ocorridas por parte das lideranças das Madres e do MST (lembrando que a
tese é um estudo comparado entre estes dois movimentos e suas universidades populares, conforme citado
a seguir, na descrição do trabalho), nestes anos de vínculos mais estreitos com os governos de seus países.
256
A partir da ideia de que se processam mudanças nestes movimentos sociais (Madres e MST) quando
governos considerados mais “próximos” assumem o poder. Até que ponto isso alterou as políticas
públicas é uma questão que está sendo levada em consideração na pesquisa, bem como a análise da
relação entre estes “novos” projetos (UPMPM/ENFF) e os antigos projetos de educação pública de
Argentina e Brasil.
257
Por exemplo, ao se tornarem instituições reconhecidas pelas instâncias governamentais de seus países.
258
LEHER, Roberto. (Prefácio). ZAGO FIGUEIREDO, Ireni; SOUZA, Isaura Monica; DEITOS, Roberto
Antonio (orgs.). Educação, políticas sociais e Estado no Brasil. Cascavel: EDUNIOESTE; Curitiba:
Fundação Araucária, 2008, p. 17.

450
lutas com novas armas, na difícil trama dialética do “novo” com o “velho”, como na
clássica assertiva de Gramsci259 sobre a crise: “o velho morre e o novo não pode nascer:
neste interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais variados”.

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451
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452
EIXO 5
Movimentos Sociais
no contexto de
governos
progressistas

453
O apassivamento da classe trabalhadora via políticas públicas no curso de uma
década de governos petistas

Márcia P. S. Cassin¹
1
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – Rio de Janeiro-RJ – marcia.cassin@hotmail.com

Resumo
Este artigo se propõe a desenvolver uma reflexão preliminar acerca das tendências das
políticas sociais nos governos do PT e sua funcionalidade para o projeto burguês de
passivização da classe trabalhadora – materializado nos mandatos de Lula e Dilma. Para
tanto, desenvolve, num primeiro momento, uma discussão sobre o projeto do PT e o
papel central conferido às políticas sociais, especialmente aos programas de
transferência de renda, na cooptação das classes subalternas, que lhe permitiu alcançar
um consenso e assegurar sua governabilidade por, pelo menos, um ciclo histórico de
doze anos. Em seguida, realiza uma breve análise sobre o enfrentamento que tem sido
dispensado à questão social na atual conjuntura política caracterizada por um quadro de
regressão e perda de direitos, através de um mapeamento do debate presente na
literatura existente sobre as políticas sociais. Trata-se de um estudo bibliográfico, com
uma abordagem qualitativa que possui como suporte teórico-metodológico o método do
materialismo dialético na busca pela apreensão do movimento do real.
Palavras-chave: Políticas sociais; Partido dos Trabalhadores; apassivamento.

1 Introdução
Vivenciamos um ciclo onde as políticas sociais estão sendo desenvolvidas de forma
focalizada e dirigida à erradicação da miséria absoluta. Os indicadores desenham um
quadro de melhorias na condição de vida da população mais empobrecida. Desde 2003,
a pobreza caiu mais de 30% e cerca de 21,8 milhões de pessoas conseguiram ultrapassar
a linha da pobreza extrema.
Diante deste quadro, abrem-se duas possibilidades de interpretação: estaríamos
caminhando para um longo processo de ampliação da cidadania e dos direitos sociais
que culminaria na realização de um Estado de bem-estar social; ou, o uso político das
políticas sociais na amenização das manifestações mais aparentes da questão social teria
conduzido a um desarmamento ideológico da classe trabalhadora por meio da cooptação
das frações mais miseráveis, encerrando o ciclo da Revolução Burguesa no Brasil.
Parte-se da hipótese de que as políticas sociais na atual conjuntura política cumprem
com o objetivo de atenuar os conflitos sociais e garantir a governabilidade do PT por
meio da conquista de uma base eleitoral composta pelos segmentos que possuem uma
renda mensal de até dois salários mínimos (SINGER, 2012). O Partido dos
Trabalhadores alcançou sua hegemonia graças à conciliação de interesses
contraditórios; garantindo o lucro dos empresários e banqueiros, aumentando o emprego
e a capacidade de consumo e melhorando a condição material de vida dos indivíduos

454
mais pauperizados. Por meio deste consenso, o PT se converteu no protagonista da
consolidação da hegemonia burguesa no Brasil (IASI, 2014).
As políticas sociais têm se afastado cada vez mais de seu caráter universal proposto pela
“Constituição Cidadã” de 1988. Seu foco está migrando gradativamente das
necessidades humanas para as necessidades de auto-reprodução do grande capital. Os
governos de Lula e Dilma assumiram a bandeira da assistencialização minimalista das
políticas sociais como seu principal trunfo político, pois a centralidade conferida aos
programas de transferência de renda permitiu uma redução relativa da miséria indigente
e camuflou a penúria aparente, de forma a conquistar o apoio das classes subalternas,
apassivando as lutas populares, numa verdadeira “democracia de cooptação”
(FERNANDES, 2005).
Não se tem a pretensão de, através deste estudo, esgotar todas as determinações e o
conteúdo do objeto em questão, pois a realidade é dinâmica e o fenômeno esteve em
constante transformação durante a execução desta pesquisa. Ainda assim, busca-se
firmar um compromisso claro com o rigor teórico na tentativa de desvelar o movimento
do real, contribuindo de alguma forma com o debate sobre o papel das políticas sociais
na atual conjuntura política, por meio de um diálogo crítico com autores que se
tornaram referências no campo das ciências sociais.

2 O PT e o apassivamento da classe trabalhadora


A ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder, em 2003, não representou uma
ruptura com a política macroeconômica conduzida pelos governos precedentes. Ao
contrário, foi o período em que o capital registrou um de seus mais altos ganhos na
história do país. Desde seu primeiro mandato, o presidente Lula da Silva, tratou de
reverter todas as expectativas depositadas pela classe da qual emergiu, consolidando
uma histórica contradição entre o projeto defendido pelo PT nos anos 1980 e o que de
fato foi posto em prática no governo. Um verdadeiro processo de “metamorfose da
consciência de classe” (IASI, 2012).
Aliando uma política de crescimento econômico em favor das finanças juntamente com
a assistencialização das políticas sociais, o PT segue dando continuidade às orientações
dos organismos internacionais no combate à miséria, promovendo a oferta de políticas e
programas sociais focalizados e compensatórios, ao mesmo tempo em que amplia a
geração de empregos e a capacidade de consumo.
De acordo com Pochmann (2013), nos governos de Lula e Dilma, 21,8 milhões de
pessoas conseguiram ultrapassar a linha da pobreza extrema. Isto se deu graças à
retomada de um projeto nacional de desenvolvimento que teve na política social um de
seus principais pressupostos. O crescimento dos empregos e ampliação da renda das
famílias, sobretudo daquelas situadas na base da pirâmide social, foram os pilares do
projeto do governo para a recuperação econômica do país.
Este fato fica evidente na fala do ex-presidente Lula em entrevista concedida a Emir
Sader e Pablo Gentili:

455
Aqueles que ironizavam o Programa Bolsa Família, [...] o
aumento do crédito para a agricultura familiar, [...] o programa
Luz pra Todos e todas as outras políticas sociais, aqueles que
ironizavam dizendo que era esmola, que era assistencialismo,
perceberam que foram milhões de pessoas, cada uma com um
pouquinho de dinheiro na mão, que começaram a dar
estabilidade à economia brasileira, fazendo com que ela
crescesse, gerasse mais emprego e renda (SILVA, 2013, p. 11).

Conforme Pochmann, a pobreza caiu mais de 30% desde 2003 e o Brasil conseguiu
voltar ao leito da forte ascensão social para milhões de brasileiros, após mais de duas
décadas de congelamento das oportunidades educacionais, de renda e ocupação. O gasto
social tornou-se o multiplicador da incorporação pelo mercado de consumo, numa
estratégia de “distribuir para ampliar os horizontes da economia e fazer crescer mais
rapidamente a renda para redistribuí-la menos desigualmente” (POCHMANN, 2013, p.
155).
Ainda segundo o autor, somente entre 2005 e 2008, 11,7 milhões de brasileiros
abandonaram a condição de menor renda, enquanto 7 milhões de indivíduos
ingressaram no segundo estrato de renda e 11,5 milhões de indivíduos ingressaram no
estrato superior da renda, conformando um “padrão de mudança social” caracterizado
pela inédita combinação do crescimento da renda nacional per capta com a redução da
desigualdade pessoal na renda.
Pochmann acredita que este padrão de mudança possui uma natureza “pós-neoliberal”,
dado que não se configura em uma mera reprodução do pensamento neoliberal
defendido durante o governo de Cardoso, apesar da manutenção dos mecanismos
introduzidos na crise cambial de 1999, como o sistema de metas da inflação do regime
de câmbio flutuante e os superávits primários nas contas públicas. Trata-se de uma nova
dinâmica econômica de transição da macroeconomia da financeirização da riqueza para
a lógica da produção e do consumo, com crescente impulso do setor terciário, na
geração de novos postos de trabalho e diminuição do desemprego e do trabalho
informal.
Rodrigo Castelo (2013) defende a tese de que a dinâmica econômica contemporânea se
constitui pelo chamado “social-liberalismo”, que seria a segunda fase do neoliberalismo.
Diante do fracasso dos resultados obtidos pela adoção do projeto neoliberal em um
primeiro momento – expresso pelo déficit nas contas públicas, pelo aumento
descontrolado da inflação e pelo acirramento dos índices de pobreza e desigualdade –
tornou-se necessário a aplicação de um suave ajuste em sua direção estratégica.
Nesse sentido, o FMI e o BIRD propuseram medidas corretivas de promoção de
reformas estruturais.

A partir da correção de rumo dos programas de ajuste


propugnados pelas agências multilaterais de desenvolvimento,
os projetos de refuncionalização do Estado ganharam uma nova

456
configuração: se antes das medidas corretivas defendia-se – pelo
menos no plano da retórica – um aparato estatal mínimo, o
Estado, agora, teria uma função reguladora das atividades
econômicas e operacionalizaria, em parceria com o setor
privado, políticas sociais emergenciais, focalizadas e
assistencialistas, visando garantir taxas de acumulação do
capital e mitigar as expressões da “questão social” através do
controle da força de trabalho e do atendimento de necessidades
mínimas dos “clientes” dos serviços sociais (CASTELO, 2013,
p. 244).

Partindo dessa perspectiva, entende-se que o conjunto de reformas adotadas pelos


governos do PT faz parte de uma tendência inevitável ditada pelos organismos
internacionais na tentativa de “reciclar” o receituário-ideal do neoliberalismo e reverter
o mal-estar generalizado que começou a ser sentido pelas classes subalternas diante da
situação de deterioração social trazida por este projeto. Portanto, a oferta de programas
sociais compensatórios, como o Bolsa Família, que se tornou uma marca indelével do
governo Lula, provavelmente ocorreria caso o candidato do PSDB, José Serra,
alcançasse a presidência nas eleições de 2002. A tendência de ampliar o gasto social
direcionado aos programas de transferência de renda e erradicação da miséria absoluta
seria efetivada, independente do caráter do governo.
De acordo com Singer (2012), Lula teria optado por um caminho intermediário ao
neoliberalismo da década anterior e ao reformismo forte que fora o programa do PT até
as vésperas da campanha de 2002. Dessa forma, teria conseguido alcançar o apoio do
subproletariado, que sempre almejou um Estado capaz de ajudar os mais pobres sem
confrontar a ordem, consolidando um “reformismo fraco”, nos moldes de uma
revolução passiva. Ou seja, a reforma ocorreu sem a mobilização da principal base
eleitoral de Lula, os subproletários – especialmente do Nordeste, que é a região mais
empobrecida – haja vista o esforço do governo em esvaziar o conteúdo ideológico desse
processo e desarmar os conflitos de classe, buscando a conciliação por meio do
atendimento de interesses sociais contraditórios.
Singer acredita que a figura da “grande personalidade” encarnada por Lula é central, tal
como o foi Bismarck na Alemanha e Bonaparte na França de meados do século XIX,
representando a posição do patriarca acima dos conflitos entre classes. Este seria um dos
sentidos do “lulismo”.
A cooptação dos segmentos mais pauperizados da população, os subproletários, na
visão de Singer, permitiu um processo de “realinhamento eleitoral”, pois a base eleitoral
de Lula migrou das frações mais escolarizadas e progressistas do Sudeste para a massa
dos indivíduos que tiveram melhorias em suas condições materiais de vida, por meio de
programas como o Bolsa Família. A identificação desta camada mais empobrecida da
população com a figura de Lula permitiu a continuidade do projeto lulista pelo menos
até este ano, com a vitória de Dilma em 2010, que foi eleita majoritariamente pela
fração dos indivíduos que contam com uma renda familiar mensal de até dois salários
mínimos.

457
Acrescenta o autor:

Mas, se está claro um dos possíveis sentidos do lulismo, cabe


apontar o tipo de contradição que o acompanharia: ao promover
um reformismo suficientemente fraco para desestimular
conflitos, ele estende no tempo a redução da tremenda
desigualdade nacional, a qual decai de modo muito lento diante
do seu tamanho, em compasso típico dos andamentos dilatados
da história brasileira (escravatura no império, política
oligárquica na República, coronelismo na modernização pós-
1930) (SINGER, 2012, p. 11).

Florestan Fernandes (2005) enfatiza que a revolução burguesa no Brasil não seguiu uma
via clássica na qual a burguesia se alia ao proletariado para pôr fim ao Antigo Regime.
Ao contrário, a burguesia se aliou aos setores dominantes da sociedade, consolidando
uma revolução “dentro da ordem” e “a partir de cima” (Idem, p. 244). Em virtude deste
fato, a revolução burguesa no Brasil não realizou suas tarefas democráticas e nacionais,
mas cumpriu a função de legitimar o desenvolvimento do capitalismo interno. De
acordo com Fernandes, a democracia burguesa torna-se uma “democracia restrita, aberta
e funcional só para os que têm acesso à dominação burguesa” (p. 249).
Os setores que têm acesso à dominação burguesa, por sua vez, são uma minoria de
privilegiados. Como nos recorda o autor, “certas burguesias não podem ser
instrumentais, ao mesmo tempo, para ‘a transformação capitalista’ e a ‘revolução
nacional e democrática’” (Idem, p. 251). Assim, a revolução burguesa assumirá o
caráter de uma “contra-revolução preventiva” no sentido de antecipar as revoltas do
proletariado e legitimar a ordem burguesa. O Estado adquirirá uma forma autocrática ou
uma “ditadura de classe preventiva” (p. 368).
A “autocracia burguesa”, como denomina o autor, só poderá se manter numa condição
transitória. Portanto, o Estado autocrático precisará forjar outras estratégias para manter
sua legitimação sobre os “de baixo”, compondo o que Fernandes designou como
“democracia de cooptação” (p. 416). Neste quadro, o Estado burguês buscará prevenir
as revoltas populares por meio do apassivamento e controle da classe trabalhadora,
promovendo ações minimalistas no sentido da garantia de direitos e concedendo
algumas conquistas progressistas para que o metabolismo da acumulação capitalista
permaneça inalterado.
De acordo com Iasi (2014), o PT resolveu o impasse da burguesia e da ordem burguesa
no Brasil. Relembrando a tese de Fernandes – qual seja, da impossibilidade de a
burguesia prosseguir governando nos limites de uma autocracia dirigida pelo pacto
burguês/oligárquico e, portanto, da necessidade de incorporação dos de baixo através de
uma democracia de cooptação – Iasi afirma que o PT ofereceu a saída para este
problema, na medida em que conseguiu organizar um consenso260 em torno de uma

260
Disse Lula na mesma entrevista citada anteriormente: “Eu tive uma relação extraordinária, do catador
de papel aos bancos, aos empresários. Eu mantive uma relação civilizada com todos os segmentos da

458
alternativa que garante os patamares de acumulação de capitais e o apassivamento dos
trabalhadores por meio do aumento de emprego e capacidade de consumo para os
empregados e programas sociais compensatórios, focalizados e neoassistenciais para os
miseráveis.
Assim, de acordo com Iasi, teríamos finalmente transitado de uma dominação burguesa
“sem hegemonia” para uma forma de dominação burguesa “com hegemonia”. Em
outros termos:

[...] o preço da governabilidade e do aparente sucesso de


governo é o desarme das condições políticas, organizativas e de
consciência de classe que poderiam apontar para uma ruptura
com a ordem do capital. O que presenciamos aqui é,
paradoxalmente, o fato que a experiência do PT se não levou à
meta socialista suposta inicialmente, cumpriu factualmente uma
outra tarefa: encerrou o ciclo de consolidação da revolução
burguesa no Brasil (IASI, 2014, p. 34).

O Partido dos Trabalhadores, criado sob a perspectiva do horizonte socialista e da


emancipação humana acabou por se converter no protagonista da consolidação da
ordem burguesa no Brasil. Este fato não teria se concretizado sem o papel central
conferido às políticas sociais minimalistas na conquista da governabilidade e da
cooptação das classes subalternas.

3 O trato à questão social nos governos do PT


A questão social, enquanto expressão máxima da contradição capital/trabalho e da
histórica desigualdade entre as classes, tem sido ampliada e potencializada pelo atual
quadro de reestruturação do capitalismo contemporâneo, ao passo que as formas de seu
enfrentamento se inserem em um contexto de regressão de direitos e assistencialização
das políticas sociais.
A gênese da questão social está atrelada ao movimento que o capital realiza na
concretização de sua “lei geral da acumulação”. Esta se expressa pelo aumento da
riqueza contraposto ao aumento da pobreza. No modo de produção capitalista a
população trabalhadora sempre cresce mais rapidamente que a necessidade de seu
emprego. O desenvolvimento das forças produtivas possibilita aos trabalhadores
produzirem mais em menos tempo, fazendo com que os capitalistas extraiam uma maior
quantidade de trabalho de uma parcela menor de trabalhadores, seja por meio da
ampliação da jornada de trabalho ou pela intensificação do ritmo da produção. Tal fato
ocasiona um predomínio do trabalho morto sobre o trabalho vivo.

sociedade. Nunca deixei de falar em nenhum discurso: ‘Eu governo para todos, mas o meu olhar
preferencial é para a parte mais pobre da sociedade brasileira’” (SILVA, 2013, p. 19).

459
Nessa perspectiva, quanto maior a exploração do trabalho, maior a riqueza do capital e
quanto mais o trabalhador produz riquezas para o capitalista, mais está produzindo a
própria miséria, uma vez que “a acumulação da riqueza num pólo é, portanto, ao mesmo
tempo, a acumulação de miséria, tormento de trabalho, escravidão, ignorância,
brutalização e degradação moral no pólo oposto, isto é, do lado da classe que produz seu
próprio produto como capital” (MARX, 1996: 275).
Quanto maior o desenvolvimento, maior acumulação privada de capital. O
desenvolvimento no capitalismo não promove maior distribuição de riqueza, mas maior
concentração de capital, portanto, maior empobrecimento e maior desigualdade,
resultando na pauperização crescente dos vendedores de sua força de trabalho.
As mudanças societárias ocorridas a partir de 1970 redesenharam o quadro do
capitalismo, conferindo-lhe novos traços no cenário mundial. A dinâmica de
reordenamento capitalista impôs modificações sócio-históricas que incidiram sobre a
relação Estado/sociedade civil e radicalizaram as manifestações da questão social na
cena contemporânea.
A crise de superprodução desencadeada pelo esgotamento do padrão de acumulação
fordista-keynesiano no início da década de 1970, impulsionou o capital a desenvolver
um processo de reestruturação, a começar pelas mudanças no processo produtivo.
Ocorre a substituição do padrão fordista-keynesiano de produção pelo padrão toyotista,
também conhecido como padrão de acumulação flexível (HARVEY, 1993). Essa
substituição ocorreu devido à necessidade de promover uma revolução tecnológica e
organizacional da produção, dando início à chamada reestruturação produtiva. Esta, por
sua vez, teve impactos tanto na esfera da produção como na das relações sociais.
Os processos de reestruturação produtiva têm por objetivo a construção de novas formas
de controle do capital sobre os trabalhadores, trazendo sérios rebatimentos sobre o
mundo do trabalho, como a heterogeneização, fragmentação e complexificação da
classe trabalhadora (ANTUNES, 1995). A reestruturação produtiva foi uma necessidade
posta ao capital para recuperação de suas taxas de lucro.
O modelo toyotista de produção caracterizou-se pelo fim da produção em massa e pela
adoção da produção flexível, onde a aceleração do tempo de giro na produção e a
redução do tempo de giro no consumo permitiram uma produção diversificada, ao
contrário do fordismo, cuja produção era homogênea. (HARVEY, 1993).
As mudanças no padrão de acumulação também permitiram um maior controle sobre a
força de trabalho, com a adoção de regimes e contratos de trabalho mais flexíveis. Além
disso, houve a tendência de reduzir o número de trabalhadores centrais e aumentar a
força de trabalho mais flexível (HARVEY, 1993). Dessa forma, ao mesmo tempo em
que era exigido um perfil de trabalhador polivalente e qualificado, houve a
desqualificação de um enorme contingente de trabalhadores, elevando o desemprego
estrutural a níveis alarmantes.
Paralelo às mudanças no mundo do trabalho, um novo regime de regulação social
passou a ganhar terreno: o neoliberalismo. Este projeto político-econômico foi inspirado
nas idéias liberais de Frederick Hayek (1899-1992), expostas em sua obra intitulada “O
caminho da Servidão”, produzida em 1944. Trata-se de um retorno aos princípios do

460
capitalismo liberal do século XIX, na defesa por uma política econômica que vigorasse
sem qualquer limitação dos mecanismos do mercado.
De acordo com Anderson (1995), o neoliberalismo foi uma reação teórica e política ao
Estado de bem-estar social. Segundo os defensores do ideário neoliberal, a crise seria
resultado do poder excessivo dos sindicatos, com sua pressão sobre os salários, bem
como dos gastos sociais do Estado.
Conforme apontam Netto e Braz (2006: 226), “a pretensão do capital é clara: destruir
qualquer trava extra-econômica aos seus movimentos”. Por isso, tornou-se necessário a
implantação de um verdadeiro ajuste global que alterasse significativamente o contexto
sociopolítico vigente até então, destruindo os limites impostos à expansão do capital
pelas conquistas da classe trabalhadora.
Para Anderson (1995), a hegemonia do neoliberalismo só ocorreu no final dos anos
1970, quando seus princípios foram assumidos nos programas governamentais em
diversos países da Europa e dos Estados Unidos. Os primeiros países a adotarem este
projeto societário foram a Inglaterra no governo de Thatcher, os Estados Unidos com
Reagan, a Alemanha de Khol e a Dinamarca com o governo de Schluter.
Posteriormente, a quase totalidade dos governos da Europa Ocidental implementou
programas seguindo as diretivas neoliberais.
Os países que adotaram o receituário neoliberal dedicaram-se a elevar as taxas de juros,
reduzir os impostos dos mais ricos, criar níveis massivos de desemprego, combater
fortemente o poder dos sindicatos, cortar drasticamente os gastos sociais e implantar um
amplo programa de privatizações, principalmente das indústrias de petróleo, aço,
eletricidade e água (ANDERSON, 1995).
Para os neoliberais, só em uma sociedade de livre mercado os indivíduos podem se
desenvolver plenamente, optar sobre o que fazer e o que não fazer, sem que exista uma
autoridade, neste caso o Estado, que lhes imponha o que deve ser feito. Neste sentido,
torna-se evidente que a proposta neoliberal está assentada no desmonte do Welfare State
e do Estado de bem-estar social261, incentivando severos cortes nos gastos sociais.
As mudanças societárias da década de 1980 tiveram por parâmetro as políticas
macroeconômicas elaboradas pela burguesia internacional, em parceria com o Banco
Mundial e com o Fundo Monetário Internacional, contidas no chamado Consenso de
Washington. A orientação dos organismos internacionais a partir do “novo consenso”
passa a ser a de reformas sociais que têm como foco a pobreza, provocando sérias
reconfigurações nas políticas sociais e tecendo as bases das propostas de privatização e
contra-reforma do Estado no Brasil (BEHRING, 2003).
Outro fenômeno que caracterizou o quadro do capitalismo neste período e que continua
a imperar até os dias atuais é a mundialização do capital financeiro. A financeirização
261
O Welfare State ou Estado de Bem-Estar Social, caracteriza-se por um determinado modo de regulação
social marcado pela intervenção direta do Estado, com uma base ideológico-política que tinha por
objetivo central desenvolver políticas sociais que visassem à estabilidade do emprego, à criação de
políticas de renda, o direito à educação e à Previdência Social, afastando com isso os trabalhadores de seu
projeto societário fundado no ideário socialista.

461
pode ser considerada um legado do acordo realizado em Bretton Woods (EUA), em
julho de 1944, que reforçou a hegemonia dos Estados Unidos no processo de
globalização financeira, num processo de rearticulação do mercado mundial.
De acordo com Netto e Braz (2006: 233), “as finanças passaram a constituir, nos
últimos trinta anos, o sistema nervoso do capitalismo”. O capital, nessa esfera, se
sustenta na gigantesca concentração do sistema bancário e financeiro e aparece como
“se fosse capaz de criar ‘ovos de ouro’, isto é, como se o capital dinheiro tivesse o poder
de gerar mais dinheiro no circuito fechado das finanças” (IAMAMOTO, 2011: 109).
Nesse novo estágio do desenvolvimento do capital, as fronteiras entre os países se
tornam cada vez mais estreitas devido ao avanço dos recursos informacionais e a
globalização dos mercados e capitais torna-se uma estratégia para o fortalecimento da
acumulação capitalista. Este processo revolucionou as condições sociais, econômicas,
políticas e culturais de povos e civilizações e trouxe consequências devastadoras
principalmente para os países periféricos que se tornaram exportadores de capital para
os países centrais, dada a submissão de tais países aos ditames da grande potência norte
americana262.
Tal processo de reorganização do capital, marcado pela reestruturação da produção e do
trabalho, pela adoção do ajuste neoliberal e pela mundialização financeira, trouxe
conseqüências dramáticas para a sociedade, como a destruição das forças produtivas,
gerando um enorme contingente de trabalhadores em situação precária, aumentando a
jornada de trabalho e os níveis do desemprego estrutural, precarizando as condições de
vida da “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2005).
Iamamoto (2011, p. 124) ressalta que “na raiz do atual perfil assumido pela questão
social encontram-se as políticas governamentais favorecedoras da esfera financeira e do
grande capital produtivo”. As profundas mudanças societárias que configuraram a
sociedade “tardo-burguesa”, nos termos de Netto (2012), resultaram em um quadro de
radicalização da questão social, ampliando antigas e recriando novas manifestações.
O investimento especulativo impõe mecanismos de ampliação das taxas de exploração,
para alimentar a expectativa de lucratividade das empresas, ao mesmo tempo em que a
necessidade de redução de custos para o capital exige a formação de um trabalhador
polivalente, que desempenhe funções que antes eram realizadas por um número maior
de trabalhadores. Este processo tem resultado no aumento do desemprego estrutural e na
precarização crescente dos vendedores de sua força de trabalho.
Para Santos (2012) as particularidades da questão social no Brasil podem ser descritas a
partir de uma perversa associação:

262
"É também no marco da financeirização do capitalismo que se tornam inteligíveis a questão da dívida
externa de muitos países periféricos e também as propostas de ‘ajuste’ de suas economias, através das
“reformas” recomendadas e monitoradas por agências internacionais, notadamente o Fundo Monetário
Internacional, que representam justamente os interesses da oligarquia das finanças” (NETTO e BRAZ,
2006: 234).

462
de um lado a superexploração do trabalho, cujo valor sempre
precisou ser mantido bem abaixo dos padrões vigentes em
outros países, notadamente os de capitalismo desenvolvido, para
que o país continuasse atrativo aos seus investimentos
produtivos; de outro, uma passivização das lutas sociais que
historicamente foram mantidas sob controle do Estado e das
classes dominantes (SANTOS, 2012, p. 437).

Dessa forma, no Brasil, a questão social se manifesta de maneira peculiar devido às


particularidades da formação histórica do país, marcado por uma “herança histórica
colonial e patrimonialista” (IAMAMOTO, 2011, p. 128), que resultou em uma enorme
concentração de renda e aprofundamento da desigualdade social. Conforme Yasbek
(2012, p. 294) “a pobreza tem sido parte constitutiva da história do Brasil, assim como
os sempre insuficientes recursos e serviços voltados para seu enfrentamento”.
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que as expressões da questão social têm sido
radicalmente acentuadas no cenário brasileiro, presencia-se uma retirada paulatina do
Estado na responsabilidade por seu enfrentamento. Os direitos constitucionais estão
sendo gradativamente substituídos pelos preceitos contidos na cartilha do Consenso de
Washington.
O advento da Constituição Federal de 1988 introduziu o conceito de Seguridade Social
no Brasil, até então inexistente no país, articulando as políticas de Saúde, Previdência e
Assistência Social. Se historicamente o acesso ao trabalho sempre foi condição para
garantia do acesso à Seguridade Social, agora elas são oficialmente instituídas no campo
dos direitos sociais. A Carta Magna rompeu com o tradicional modelo de saúde-
previdência para os trabalhadores e seus dependentes e assistência para os
“necessitados”, através da filantropia e benemerência.
Dessa forma, a Constituição Federal, buscando romper com a lógica discriminatória e
excludente que sempre esteve presente na história do país, incorpora elementos de
garantias de direitos que seriam, junto com a política de desenvolvimento econômico e
pleno emprego, constitutivos de um projeto de Seguridade Social que estabeleceria um
sistema de proteção social afinado à constituição de um Estado de Bem-Estar Social.
A previdência social permanece restrita aos trabalhadores contribuintes, a saúde é
universalizada e a assistência social passa a ser destinada a quem dela necessitar. O
estabelecimento destas políticas sociais desenhava a forma pela qual o Estado deveria
responder à questão social. A Constituição trouxe avanços legais, resultado da luta de
atores sociais ativos engajados no processo de redemocratização. No entanto, tais
avanços surgiram na contramão da tendência mundial de predomínio do ideário
neoliberal e desmonte do Welfare State.
O início da década de 1990 foi marcado pela entrada retardatária do ajuste neoliberal no
Brasil. Soares (2002) destaca que o surgimento da proposta neoliberal no país foi
consequência do agravamento da crise econômica de 1989-90 e do esgotamento do
Estado Desenvolvimentista Brasileiro. Nesse sentido, em pleno processo de

463
efervescência da Constituição de 1988, o Brasil se tornou signatário do acordo firmado
com os organismos financeiros internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo
Monetário Internacional, por meio do Consenso de Washington.
Dentre as orientações presentes no Consenso, destaca-se a desestruturação dos sistemas
de proteção social vinculados às estruturas estatais e a privatização dos mesmos. Dessa
forma, as políticas sociais na década de 1990 já são direcionas para o “combate à
pobreza” e para a partilha da responsabilidade entre Estado e sociedade no
enfrentamento da questão social.
Em seu primeiro mandato, o presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1999)
atribuiu prioridade ao controle da inflação e manutenção da estabilidade da moeda, além
de defender a necessidade de reformar o Estado, adequando-o às diretivas neoliberais. A
reforma do Estado foi conduzida pelo então ministro Bresser Pereira, que esteve à frente
do Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE). O ministro considerava
a crise fiscal como principal motivo para a crise do Estado e, para enfrentá-la, seria
necessário a construção de um “novo Estado”. Nesse sentido, foi elaborado o Plano
Diretor da Reforma do Estado, aprovado em setembro de 1995, com o objetivo de
implantar a “reforma”, que deveria seguir pelos seguintes caminhos:
[...] ajuste fiscal duradouro; reformas econômicas orientadas
para o mercado – abertura comercial e privatizações -
acompanhadas de uma política industrial e tecnológica que
fortaleça a competitividade da indústria nacional; reforma da
Previdência Social; inovação dos instrumentos de política social;
e reforma do aparelho do Estado, aumentando sua eficiência
(BEHRING, 2003, p. 178).

Nos termos de Behring (2003), o que esteve em curso nos anos 1990 foi uma verdadeira
“contra-reforma” do Estado brasileiro, na medida em que houve uma forte evocação do
passado no pensamento neoliberal. Este processo subordinou os direitos sociais à lógica
orçamentária e a política social à política econômica, prevalecendo o trinômio
articulado do ideário neoliberal: privatização, focalização e descentralização.
A privatização das políticas sociais ocorre por duas vias: a mercantilização e a
refilantropização das respostas à questão social. O Estado repassa para o mercado a
responsabilidade pela oferta dos serviços sociais, com destaque para a Saúde,
Previdência Social e Educação, que perdem o caráter de direito, reforçando a lógica do
cidadão-consumidor (MOTA, 2005). Ao mesmo tempo, são transferidos para a
sociedade civil os serviços que não podem ser ofertados pelo mercado, como a
assistência social, sendo ofertados de forma pontual e sem garantia de permanência.
As políticas sociais ofertadas pelo Estado, por sua vez, são focalizadas, ou seja, são
direcionadas aos segmentos mais precarizados da população, conforme a orientação dos
organismos internacionais. Dessa forma, o princípio de universalidade afirmado na
Constituição torna-se letra morta, sendo necessário ter declarada a condição de
pauperização para se ter um acesso mínimo aos serviços sociais.

464
A descentralização imposta pelo ajuste neoliberal não consiste, ao contrário do que
possa parecer, numa repartição positiva de poder entre os entes federativos, mas refere-
se a uma mera transferência de responsabilidades para os estados e municípios, no nível
do gerenciamento e não da gestão das políticas sociais.
As respostas à questão social na década de 1990 passaram pelo que Behring (2003)
designou como “dualidade discriminatória” entre os que podem e os que não podem
pagar pelos serviços e o resultado tem sido a precarização ou eliminação da
responsabilidade do Estado pela oferta das políticas sociais. Nesse contexto, emerge um
processo que Mota (2005, p. 147) denomina de “assistencialização/privatização da
Seguridade Social”, em que esta experimenta uma transição rápida da sua formulação
para o seu desmantelamento, durante o período de sua implementação.
Os direitos sociais são subordinados à lógica orçamentária e a política social à política
econômica. A cidadania e as necessidades humanas são rebaixadas ao nível da
sobrevivência física, prevalecendo o conceito de mínimos sociais na oferta de direitos.
Neste sentido, “observa-se uma inversão e uma subversão: ao invés do direito
constitucional impor e orientar a distribuição das verbas orçamentárias, o dever legal
passa a ser submetido à disponibilidade de recursos. São as definições orçamentárias –
vistas como um dado não passível de questionamento – que se tornam parâmetros para a
implementação dos direitos sociais implicados na seguridade, justificando as
prioridades governamentais” (IAMAMOTO, 2011, p. 149).
Os direitos sociais são subordinados à lógica orçamentária e a política social à política
econômica. A cidadania e as necessidades humanas são rebaixadas ao nível da
sobrevivência física, prevalecendo o conceito de mínimos sociais na oferta de direitos.
Neste sentido,

Observa-se uma inversão e uma subversão: ao invés do direito


constitucional impor e orientar a distribuição das verbas
orçamentárias, o dever legal passa a ser submetido à
disponibilidade de recursos. São as definições orçamentárias –
vistas como um dado não passível de questionamento – que se
tornam parâmetros para a implementação dos direitos sociais
implicados na seguridade, justificando as prioridades
governamentais (IAMAMOTO, 2011, p. 149).

O peso do fundo público recai, em sua maioria, sobre os trabalhadores, seja com a
tributação da renda na fonte, seja quando são remetidos ao consumo (BEHRING, 2009).
Todavia, para eles não retorna. Em um contexto de crise comandado pela era das
finanças, o fundo público é canalizado para alimentar o circuito financeiro. A dívida
pública se converteu no maior canal de transferência de receitas em benefício dos
rentistas.

Um dos grandes vilões do orçamento da Seguridade Social e das


contas públicas em geral, no contexto do duro ajuste fiscal

465
brasileiro é o mecanismo do superávit primário [...], instituído
após acordo com o FMI, em 1999. O volume de recursos retidos
para a formação do superávit primário tem sido muito maior que
os gastos nas políticas de seguridade social (BEHRING, 2009,
p. 50).

O superávit primário é alimentado por um mecanismo criado no âmbito do Plano Real,


a Desvinculação das Receitas da União (DRU), que permite a desvinculação de 20%
dos recursos do orçamento da Seguridade Social para o orçamento fiscal. Dessa forma,
os recursos que constitucionalmente deveriam ser destinados à classe trabalhadora, são
destinados ao pagamento de juros da dívida.
Com base no discurso da “crise fiscal” do Estado, o governo neoliberal impõe severos
cortes nos gastos sociais, que acabam por minar o princípio constitucional de
universalidade. Este é substituído pela focalização e seletividade, onde predominam as
ações minimalistas de “combate à pobreza”, destinadas aos comprovadamente pobres.
O PT fez das políticas sociais focalizadas e minimalistas um dos principais eixos de sua
estabilidade política e os programas de transferência de renda tornaram-se o carro-chefe
de sua governabilidade. O Programa Bolsa Família, que é o maior programa de
transferência de renda em implementação no Brasil, assume hoje a centralidade do
Sistema de Proteção Social. De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome o programa atende, atualmente, mais de 13,8 milhões de famílias em
todo o território nacional nos 5.564 municípios brasileiros263.
Com a proposta de proteger o grupo familiar, o programa realiza uma transferência
incondicional de renda para as famílias extremamente pobres, e transferências
condicionais para famílias pobres que tenham em sua composição crianças e jovens de
até 18 anos de idade, gestantes e nutrizes. Possibilita o suprimento das necessidades
vitais do indivíduo e uma melhoria da alimentação, bem como o pagamento de
pequenas despesas cotidianas, como material escolar, roupas e medicamentos.
A autora Maria Ozanira da Silva (2010) por meio de um estudo aprofundado sobre o
Programa Bolsa Família aponta a contribuição que este tem oferecido para a redução
dos índices de desigualdade e pobreza, principalmente para a redução da pobreza
extrema, minorando as privações de vida das famílias beneficiárias, demonstrando
assim, que a colaboração do programa na amenização da pobreza não pode ser
menosprezada. Entretanto,

Como disse o economista Chico de Oliveira, em recente


entrevista, referindo-se ao Programa Bolsa Família, como diante
de tanta desigualdade alguém vai se pôr contra um programa
que destina alimentação aos mais pobres? Em sã consciência,

263
Informações obtidas no site: www.mds.gov.br. Acesso em: 12/02/2014.

466
ninguém pode sugerir que a fome pode esperar. Contudo, deve-
se ressaltar que programas dessa natureza mesmo que reduzam a
pobreza, local e individualmente, não eliminam a desigualdade.
Ao contrário, a aceitação dessas medidas é uma forma de
consentimento que consolida a desigualdade, como se esta fosse,
de fato, natural (TAVARES, 2009, p. 253).

Os programas de transferência de renda são ações emergenciais que, dando respostas


imediatas e assistenciais, não resolvem a médio e longo prazos a causa da fome e da
miséria, tendo em vista que

[...] esses programas apenas “aliviam” a pobreza,


desenvolvendo-se ao largo de políticas econômicas que não se
alteram. Ou seja, as determinações estruturais geradoras da
pobreza e da desigualdade social não são consideradas,
limitando-se essa intervenção a melhorias imediatas nas
condições de vida dos pobres, servindo tão somente para manter
e controlar a pobreza e potencializar a legitimação do Estado
(YASBEK, 2012, p. 31).

De fato, o Estado tem sido legitimado por meio de tais programas, que possuem um
custo irrisório, se comparado ao montante do orçamento público que é destinado ao
pagamento da dívida pública. No entanto, o impacto político que eles têm representado
é enorme. Isto porque o nível de carência, ou pauperismo, da população brasileira é tal
que qualquer minimalismo dirigido às classes subalternas representa a “chegada ao
paraíso”. Cabe ressaltar, ainda, que ao direcionar as ações para as famílias, destituídas
de uma perspectiva de totalidade, fragmenta-se o conceito de classe trabalhadora,
contribuindo para a despolitização desta classe.
O acesso aos direitos conquistados pela luta e mobilização da classe operária e do
conjunto dos trabalhadores é sujeitado a um “atestado de pobreza”, que pressiona para o
cumprimento de certas contrapartidas e condicionalidades. De acordo com Pereira
(2003), este fato constitui uma inversão perversa e arrogante de valores no campo da
política social, que contradiz até mesmo a lógica contratual, tendo em vista que os
pobres, que são credores de uma enorme dívida social acumulada, têm de oferecer
contrapartida aos seus devedores, quando estes se dispõem a saldar parcelas ínfimas
dessa dívida.
A questão social, enquanto expressão máxima da contradição capital/trabalho, se tornou
objeto de ações precárias, focalizadas e filantrópicas, que em nada favorecem o
protagonismo e a emancipação da classe trabalhadora. Ou seja, as propostas neoliberais
apontam para um “espantoso minimalismo frente a uma ‘questão social’ maximizada”
(NETTO, 2010, p. 24).
As políticas sociais estatais que se propõem a enfrentar a questão social na atualidade se
tornam cada vez mais sucateadas e com acesso cada vez mais restrito, o que acaba por

467
anular a sua dimensão de direito, caracterizando uma espécie de “clientelismo (pós)
moderno” (BEHRING, 2003, p. 65) e reforçando o assistencialismo. A função das
políticas sociais, no ideário neoliberal, é meramente complementar, apenas para
compensar o que não pode ser acessado via mercado.

[...] no caso brasileiro, as políticas sociais que historicamente


tem-se caracterizado pela subordinação à matriz conservadora,
oligárquica e patrimonialista que emoldura a história econômica
e social do país tenderão neste quadro de regressão de direitos a
acentuar seu perfil assistencialista e clientelista, no perverso
processo de transformar em favor o que é direito (YASBEK,
2001, p. 38).

Aliado ao minimalismo das políticas sociais emerge o fenômeno da criminalização da


questão social (IANNI, 1994) que, conforme o referido autor, tende a transformar as
manifestações da questão social em problemas de assistência social ou em objeto de
segurança e repressão. Netto (2012) reafirma essa hipótese, sustentando que vivemos
atualmente no Brasil um estado de guerra permanente contra os pobres.

A repressão deixou de ser uma excepcionalidade – vem se


tornando um estado de guerra permanente, dirigido aos pobres,
aos “desempregados estruturais”, aos “trabalhadores informais”,
estado de guerra que se instala progressivamente nos países
centrais e países periféricos [...]. Trata-se de um estado de
guerra permanente, cuja natureza se exprime menos no
encarceramento massivo que no extermínio executado ou não
em nome da lei – no Brasil, por exemplo, entre 1979 e 2008,
morreram violentamente quase 1 milhão de pessoas, número que
pode ser comparado ao de países expressamente em guerra,
como a Angola, que demorou 27 anos para chegar a cifra
semelhante [...]. Em poucas palavras: crescentemente, parece
que só a hipertrofia da dimensão/ação repressiva do Estado
burguês pode dar conta da população excedentária em face das
necessidades do capital (NETTO, 2012, p. 427).

Ainda segundo Netto (2012), o último terço do século XX assinala o exaurimento das
possibilidades civilizatórias da ordem do capital. Ou seja, a atual ordem societária não
possui mais condições de propiciar quaisquer alternativas progressistas para a massa dos
trabalhadores e para a humanidade, em todos os níveis da vida social. Esta ordem só
tem a oferecer soluções barbarizantes para a vida social. O autor ressalta, ainda, que “a
articulação orgânica de repressão às ‘classes perigosas’ e assistencialização minimalista
das políticas sociais dirigidas ao enfrentamento da ‘questão social’ constitui uma das
faces contemporâneas mais evidentes da barbárie atual” (NETTO, 2012, p. 429).

468
O enfrentamento da questão social na contemporaneidade, perpassado por um projeto
político-econômico neoliberal de reestruturação do capitalismo contemporâneo ou
“tardo-capitalismo” (NETTO, 2012), se expressa pela predominância do minimalismo
na oferta das políticas sociais. Estas, por sua vez, não possuem nem mesmo a pretensão
de erradicar a pobreza, mas apenas enfrentar a penúria aparente.
Neste sentido, cada indivíduo isoladamente é responsável por suas mazelas. O direito
constitucional do cidadão é substituído pelo discurso da solidariedade e autoajuda, num
contexto onde a globalização é “só para o grande capital. Do trabalho e da pobreza, cada
um que cuide do seu como puder. De preferência com Estados fortes para sustentar o
sistema financeiro e falidos para cuidar do social” (SOARES apud MONTAÑO, 2010,
p. 13).

4. Conclusão
O papel central conferido às políticas sociais, especialmente aos programas de
transferência de renda, na ampliação da renda das famílias – como parte de uma
estratégia de recuperação econômica do país – permitiu a conquista do apoio das frações
mais miseráveis da população, que se tornaram a base eleitoral do PT nos últimos doze
anos. A cooptação deste segmento contribuiu para a organização de um consenso entre
os empresários e banqueiros – cujos lucros e patamares de acumulação permaneceram
assegurados – e as classes subalternas, que tiveram uma melhoria em suas condições
materiais de vida.
Este consenso possibilitou um desarme político e ideológico da consciência de classe
dos trabalhadores, garantindo a consolidação da hegemonia burguesa no Brasil. A base
desta estratégia assentou-se em um “reformismo fraco”, expresso na focalização das
ações sociais destinadas ao combate à pobreza absoluta aliada ao crescimento
econômico por meio do aumento da produção e do consumo.
O enfrentamento da questão social por parte do Estado via políticas sociais se converteu
em uma estratégia política de governabilidade e apassivamento dos trabalhadores. O
acesso aos direitos constitucionais se torna cada vez mais restrito e burocrático, voltado
ao atendimento das necessidades mínimas dos indivíduos mais pauperizados. O projeto
em curso apresenta a redução da miséria absoluta como um grande avanço no processo
de ampliação da cidadania, encobrindo o fato de que a histórica desigualdade social do
país não se reduz e desmobilizando, portanto, a luta daqueles que poderiam apontar para
a construção de uma ordem societária significativamente diferente, para além do capital.

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471
O MST nos anos 2000 e a contenção das lutas sociais:

do antineoliberalismo ao neodesenvolvimentismo

Ana Elisa Corrêa264

Resumo
Analisamos nesse trabalho as mudanças que ocorreram com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem-Terra após a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao
Governo Federal em 2003. Identificamos uma progressiva perda de combatividade deste
movimento social que passa da crítica radical ao amoldamento à ordem do capital. Ao
longo dos anos 1980 e 1990 o MST desenvolveu experiências radicalizadas que
apontavam para mudanças estruturais que poderiam ir para além da luta pela Reforma
Agrária, formando militantes e organizando amplos setores ao redor da perspectiva de
uma transformação social radical. Ao longo dos anos 2000 observamos cada vez mais o
abandono dessa perspectiva marcada pelas ocupações de terra e pela presença dos
acampamentos, que é substituída pela dedicação a convênios, tanto com o Estado
quanto com a iniciativa privada, visando a adequação dos assentamentos à economia de
mercado em sua fatia agroecológica. Buscamos expor de forma mais detalhada essas
transformações e levantar hipóteses sobre os motivos pelas quais elas ocorreram tendo
em mente a importância para esse processo da relação do MST com o Estado após a
chegada do PT ao planalto.

Palavras-chave: Movimentos Sociais; Estado; Reforma Agrária; Partido dos


Trabalhadores; Agroecologia.

1 - Introdução
Nosso objetivo neste trabalho é analisar algumas transformações pelas quais
passou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nas ultimas décadas.
Consideramos que este movimento sofreu mudanças que desembocaram em fins dos
anos 2000 em uma crise programática e organizativa. Há uma distância temporal e
qualitativa entre os objetivos e características fundamentais desse movimento em sua
formação na década de 1980 e consolidação nos anos 1990 e no que veio a se tornar nos
anos posteriores à chegada de Lula ao poder em 2003.
Porém, há uma reduzida elaboração crítica sobre a relação histórica e a maior
aproximação contemporânea entre o PT e o maior movimento social da América Latina,
o MST. Seria ingenuidade supor que o MST passaria incólume à crise da esquerda
brasileira, por isso é no mínimo curioso esse limite concreto da elaboração de uma
crítica aberta ao movimento, sendo que poucos negariam que o MST foi uma grande

264
Doutoranda em Serviço Social na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato:
aecorrea@gmail.com.

472
força social de massas sustentadora do PT e do petismo desde suas origens (SILVA,
2011).
As transformações do MST tem inquietado aqueles que, “por dentro” ou “por
fora” da organização, apostaram no seu potencial anti-sistêmico: que acreditaram e
lutaram para que a prática política desse organismo da classe trabalhadora fosse
norteada pela crítica social radical. Embora as pretensões revolucionárias sejam sinceras
em muitos de seus militantes e simpatizantes que ainda buscam realizar essa
empreitada, não há dúvidas sobre as origens reformistas do MST. O movimento sempre
foi, e segue sendo, afinal de contas, um movimento de luta pela REFORMA agrária.
Contudo, durante certo período de nossa história foi possível defender que, no Brasil,
um movimento por reforma poderia não ser um mero movimento por reforma.
Defendendo a tese de que conquistas parciais dentro do Capitalismo levam
necessariamente a “consequências socializadoras de importância estratégica” para a luta
contra o Capitalismo, Florestan Fernandes (2005) afirmou que a luta por reformas em
um país de burguesia “frágil e dependente” como o Brasil, ao se deparar com um Estado
impermeável a qualquer benesse de caráter estrutural às classes subalternas, poderia
levar a processos radicalizados. Essa herança miserável da sociabilidade capitalista no
Brasil qualificaria, assim, a luta por reforma agrária como uma luta dotada de potencial
explosivo, na medida em que sua própria demanda limitada, restrita e defensiva por
terra, já seria por si só inalcançável nos limites da ordem burguesa no Brasil.
O potencial anti-sistêmico do MST estaria condensado, sinteticamente, em sua
principal forma de luta, a ocupação de terras. Esta, marcada pelo embate frontal com o
Estado e o capital no campo, produziu experiências radicalizadas, que fizeram do MST
um dos maiores e mais importantes movimentos das últimas décadas. Ao longo dos
anos 2000, observamos o progressivo abandono da que, até então, era a principal tática
do MST na luta por reforma agrária, a ocupação de terras e a constituição de
acampamentos. Esta prática tem sido progressivamente substituída pelo enfoque no
desenvolvimento econômico e social dos assentamentos já existentes via convênios e
parcerias com o governo, e mesmo com parcelas do empresariado rural . Como veremos
mais adiante, há uma redução drástica das ocupações de terra, o que ocorre
simultaneamente ao estabelecimento de parcerias com órgãos públicos e privados
focadas na produção e distribuição de alimentos. Há, portanto, uma inversão de
prioridades entre o acampamento (ocupação) e o assentamento (produção). Essas
mudanças foram expressas no Programa Agrário do VI Congresso Nacional do MST de
fevereiro de 2014 em afirmações de que seria necessário abandonar a bandeira da
Reforma Agrária Clássica e se instituir um novo tipo de reivindicação, que foi
denominada Reforma Agrária Popular. Ainda que afirmem aí a necessidade de se
continuar a realizar ocupações de terra, o foco principal da organização passou a ser a
produção agroecológica e cooperativada como forma de viabilização dos assentamentos.
Esse movimento contribuiu direta ou indiretamente para o que melhor se
produziu como experiência organizativa e prática política em defesa dos trabalhadores e
desvalidos de todo o mundo. É quase inegável que todas as maiores organizações de

473
esquerda no Brasil e mesmo algumas na América Latina tem como referência o MST
como movimento radical organizador exímio das massas na luta por Reforma Agrária.
Ainda que seja um movimento que emerge como atuante do campo, os aprendizados
que gerou estão presentes em organizações populares rurais e urbanas das mais diversas,
e mesmo em partidos políticos e sindicatos combativos. Entretanto, o que ocorreu com o
MST não difere muito da trajetória de organizações, movimentos, partidos de esquerda
de todo mundo durante o século XX: uma organização que se propunha contra a ordem
social capitalista passa a se adaptar, a se amoldar a essa ordem acabando por fim por
reforçá-la. De um movimento contra a ordem se transmuta em um movimento da e pela
ordem.
Neste texto não promover um “denuncismo” ou uma caça aos culpados do
processo que essa organização tem expressado. Justamente por reconhecermos a
importância histórica crucial dessa organização para as lutas dos setores oprimidos e
explorados pela ordem do capital e por nutrirmos um enorme respeito à luta de todos
que participaram dessa construção histórica. Contudo, partimos da premissa de que
furtar-se da crítica e da busca por suas raízes mais profundas é permanecer em um
imobilismo reprodutivo que apenas reforça a ordem que necessitamos radicalmente
superar.

2 - Continuidades e descontinuidades na composição de um projeto de


desenvolvimento nacional para o campo
No que tange às lutas sociais, durante a segunda metade dos anos 1990 e em
especial nos anos 2000, os movimentos sociais populares e sindicais passaram por
transformações sem precedentes. A chegada desta “esquerda progressista” ao poder
alterou perversamente a dinâmica da relação Estado/movimentos sociais, que passou a
ser marcada por uma política de controle administrado da luta de classes. As lutas
radicalizadas abertamente antigovernistas e antiburguesas marcadas por grandes
marchas, greves e ocupações das décadas de 1980 e 1990 aos poucos são substituídas
por negociações no interior dos aparelhos estatais, acordos tácitos, inserção de
militantes como funcionários de órgãos públicos e assessores de políticos da esquerda
progressista, e constituição de projetos sociais de políticas públicas compensatórias e
intermitentes via parcerias entre Estado, movimentos e iniciativa privada.
Mas, afinal, como essa contenção progressiva das lutas foi viabilizada?
Consideramos insuficiente afirmar que haveria um desvio moral das lideranças
ou um imobilismo das bases devido às precárias bolsas sociais destinadas à subsistência
da população pobre brasileira. Porém grande parte das teses críticas mantem-se no
âmbito explicativo da cooptação265. Neste sentido, questionamos primeiramente o tipo
de cooptação da qual estaríamos tratando. Seria esta uma cooptação de lideranças, isto
é, uma traição da direções? Ou seria esta uma cooptação da base organizada, ou mesmo
desorganizada, através dos programas assistenciais? Seria uma cooptação dos métodos
de luta, que teriam abandonado seu caráter radicalizado marcado pelas ocupações,

265
Dentre as melhores análises que defendem a tese da cooptação temos: DRUCK (2006).

474
piquetes e grandes marchas e passado a se caracterizar pela negociação? Seria a
cooptação do programa das organizações, antes extremamente radicalizados,
mencionando explicitamente a transformação socialista como objetivo estratégico e que
agora se conformam às reformas dentro da ordem capitalista? Teria ocorrido um
rebaixamento do programa ou seu total abandono? Ou seria, por fim, uma cooptação
através do financiamento estatal, sem o qual as organizações deixariam de existir
materialmente?
Ainda que complexifiquemos a resposta da cooptação, se vislumbrarmos a
relação do PT com as diversas organizações que compuseram sua história de lutas e
agora mantém uma estreita relação com os governos petistas, teríamos que generalizar a
tese da cooptação para uma enorme gama de movimentos e instituições que atuam em
setores muito distintos, partindo do sindical passando pelas lutas por moradia, chegando
a movimentos contra as opressões, como o movimento negro e o feminista. Além é
claro de incluir diversos movimentos latino-americanos.
As teses da cooptação em geral julgam e condenam indivíduos e agrupamentos
políticos no interior das organizações, mas pouco nos auxiliam a compreender esse
processo de “assimilação das lutas266” que ocorreu não somente no Brasil mas também
em grande parte da América Latina. Parece-nos que esse processo é parte de um todo
determinando, uma determinação estrutural proveniente das condições objetivas
econômicas, políticas e ideológicas de um período específico do sistema do capital.
Há, portanto, um processo estrutural em curso, que colocou em cheque a
continuidade das principais organizações da antiga esquerda socialista dos anos 1970 e
1980. O estágio atual do sistema econômico e político no Brasil, e mesmo na América
Latina, determinou um quadro ameaçador para a continuidade de projetos críticos
radicalizados que antes cumpriram grande papel no cenário político latino americano.
Alguns autores identificam na década de 1970 um marco da expressão dos
limites objetivos do capital em manter sua incessante necessidade de expansão e
acumulação como tentativa de contra-tendência à inexorável lei da queda da taxa de
lucro. Segundo Harvey (2004), essa necessidade do capital de dar vazão ao sentido
fundamental de sua existência, a produção incessante e sempre crescente de valor,
esbarrou historicamente na produção de crises de superacumulação. Nas palavras do
autor:

Essas crises são tipicamente registradas como excedentes de


capital (em termos de mercadoria, moeda e capacidade
produtiva) e excedentes de força de trabalho lado a lado, sem
que haja aparentemente uma maneira de conjugá-los
lucrativamente a fim de realizar tarefas socialmente úteis.
(HARVEY, 2004: 78)

266
Sobre a assimilação das lutas sociais no Governo Lula ver: IASI (2014).

475
Devido à necessidade de evitar essa tendência à desvalorização, o capital haveria
buscado ao longo do século XX a expansão geográfica e a reorganização socioespacial
como forma de absorver esses excedentes. O autor ressalta o papel do Estado para
garantir essa empreitada, via monopólio do uso da força e de arcabouços institucionais
que contivessem e regulassem a luta de classes, bem como através do papel de árbitro
entre os interesses diversos das frações do capital. Esse processo seria marcado pelas
revoluções tecnológicas que promoveram o enorme aumento de produtividade e
conformaram ainda neste século uma “sociedade da abundância”. Porém, nas últimas
décadas o sistema estaria face a face com seus limites estruturais que parecem ser
progressivamente agravados.

O que se convencionou denominar reestruturação produtiva, isto é, a lean


production, marcada pela robotização e pela microeletrônica, teria promovido uma
eliminação de etapas do processo produtivo. Na busca do capital para sua própria
sobrevivência, o sistema passa a criar seus próprios limites intransponíveis. A
consequência desse processo é uma enorme crise social e ecológica, que István
Mészáros denominou de falha sociometabólica do capital e que para ele se expressa
essencialmente na sua tendência destrutiva, marcada por um caráter insuperável e,
portanto, estrutural. O caráter estrutural da crise é justamente o apontamento do
esgotamento de qualquer forma de desenvolvimento e progresso que possua um caráter
civilizador. O elemento mais trabalhado pelos autores em questão é o quarto elemento
apontado por Mészáros, o desemprego estrutural, já que este é justamente o momento
destrutivo da força de trabalho.

Uma das interpretações da relação desse momento com o MST foi elaborada por
Marildo Menegat (2012), que identifica nesse processo a gênese da base social que
comporia a organização. Compreendemos que a busca das instâncias do capital por
saídas à crise estrutural produziu contradições sociais graves, que acabaram por criar a
necessidade de respostas organizativas a esse processo. O MST seria uma dessas
tentativas de resposta à ordem social destrutiva.
A nosso ver a fase neoliberal seria um conjunto de mecanismos econômicos e
políticos que buscam garantir o investimento de capital para produção de valor. David
Harvey desenvolve elementos que complexificam a leitura do momento neoliberal para
além de um processo de financeirização e, portanto, ficcionalização do valor,
relacionando-o com medidas concretas de produção de valor, o que denominou
“acumulação por espoliação”. Esta seria uma “acumulação primitiva em processo”, que
sempre estaria presente na história da civilização capitalista, mas que, a partir da década
de 1970, teria se tornado sua tônica, como tentativa de saída da crise. Poderíamos
explicá-la como um processo de despossessão contínuo via: privatizações de serviços
públicos e indústrias nacionais; pilhagem, privatização e destruição de recursos naturais;
mercantilização de formas culturais e históricas; biopirataria e pilhagem de recursos
genéticos; etc. Segundo Harvey (2004:124): “O que a acumulação por espoliação faz é
liberar um conjunto de ativos (incluindo força de trabalho) a custo muito baixo (e, em
alguns casos, zero). O capital sobreacumulado pode apossar-se desses ativos e dar-lhes
imediatamente um uso lucrativo.” E, a essa liberação de ativos, se conectariam o capital
financeiro e as instituições de crédito com o apoio crucial dos poderes de Estado.

476
Aqui podemos situar o caso do campo brasileiro. A terra como bem natural
espoliado teve um papel central desde o período de “desenvolvimento” nacional
marcado pela modernização conservadora do campo. Esta levou à expulsão de enormes
massas de trabalhadores rurais nas décadas de 1970 e 1980 até os dias atuais, em que
observamos uma economia rural altamente industrializada e mecanizada, o chamado
agrobusiness, que se sustenta pela exportação de commodities e suas bolhas
especulativas. (GOMEZ&BARREIRA. 2014)
Assim, mediante essas condições adversas e com a consolidação e expansão do
agronegócio, gradualmente se descortinou ao longo dos anos 2000, com a chegada
dessa esquerda histórica ao poder institucional, um penoso cenário em que os
movimentos sociais e políticos aderem ao um supostamente “novo” projeto de
desenvolvimento nacional e, assim, garantem a continuidade de sua própria existência
em um contexto de refluxo das lutas sociais. O objetivo é ver nesse projeto uma
resposta que se opusesse ao período neoliberal. Essa busca se expressa concretamente
nas formas em que as principais organizações da esquerda brasileira desses últimos
trinta anos dialogaram e ainda dialogam com esses governos em busca de recursos
econômicos, políticos e sociais. O que buscamos identificar é como se deu e ainda está
se dando esse processo no caso da relação entre o MST e o projeto de desenvolvimento
nacional para o campo que se busca instaurar via governo federal petista.
A relação entre MST e PT é histórica e mesmo indiscutível. A relação partidária-
eleitoral se expressou no apoio que o MST manifestou ao PT em todas as eleições
presidenciais e municipais. Podemos citar o apoio às duas eleições de Lula e à Dilma
nas últimas eleições presidenciais, expresso por João Pedro Stédile em entrevista ao
Jornal Brasil de Fato267. Uma manifestação mais concreta dessa relação foi o processo
de cisão da “Articulação de Esquerda”, corrente petista da qual participavam alguns
dirigentes nacionais do MST, que levou à fundação de uma nova corrente interna ao PT,
a Esquerda Popular e Socialista. O fato curioso é que essa corrente é inaugurada na
Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), principal centro de formação do MST,
localizada em Guararema/SP268.
Essa relação de proximidade é a expressão de afinidades de compreensão da luta
política que se expressou na defesa da Reforma Agrária, principal bandeira histórica do
MST, sempre muito presente nas campanhas presidenciais petistas de 1989 a 2002.
(ENGELMANN & DURAN, 2012) No programa eleitoral de 1989 a Reforma Agrária
foi considerada fundamental para eliminar a concentração da riqueza e promover o
desenvolvimento da agricultura e da economia. Silva (2012) aponta que nos Cadernos
de Formação do MST de 1998 se mantem a crença na eleição de Lula como meio para
realizar a Reforma Agrária. O movimento apontaria que esta se realizaria a partir de
dois elementos: um amplo movimento popular organizado e a ação do Estado

267 José Serra é derrota para trabalhadores - entrevista de João Pedro Stédile para o Brasil de Fato.
Acessado em 05/09/2012:http://www.brasildefato.com.br/node/3333.Ver Stedile:Dilma permitirá
avançarmos mais em conquistas sociais, notícia de 17/08/2010:
http://www.vermelho.org.br/noticia.phpid_secao=1&id_noticia=135240
268 “Esquerda Popular e Socialista é a nova tendência nacional do PT - Nova corrente do PT foi
fundada em congresso, neste final de semana, na Escola Florestan Fernandes do MST, em
Guararema.”Notícia de 6/12/2011 disponível no site do PT- SP, acessado em 30/05/2012: http://www.pt-
sp.org.br/noticia/p/?id=7816.

477
Democrático e Popular. Esta se concepção se fortaleceu ao longo de duas décadas de
embates frontais com governos conservadores que mantiveram uma postura de
intransigência e repressão em relação às lutas no campo brasileiro. Retomemos
rapidamente esta trajetória para compreender mais adiante as transformações que o
movimento sofreu ao longo das últimas três décadas.

3 - Ocupação é a solução! e a luta antineoliberal


O MST funda-se em uma concepção estratégica na qual a luta pela Reforma
Agrária geraria um acúmulo de forças em um momento da conjuntura em que o
socialismo não estaria na ordem do dia. Assim, a pressão de massas combinada com a
ação na institucionalidade, papel exercido principalmente pelo PT, na luta por reformas
estruturais viabilizariam transformações em um futuro de longo prazo. Esse é o
programa democrático e popular (PDP)269 defendido pelo PT e que também está
presente na estratégia do MST.
Um dos princípios organizativos essenciais constituídos historicamente pelo
movimento é o princípio da luta de massas como sua principal novidade organizativa.
Aqui temos argumentos de João Pedro Stedile, dirigente nacional do MST, de defesa da
luta de massas e da ocupação de terras como principal método de luta do MST:

O povo só conseguirá obter conquistas se fizer luta de massas. É


isso que altera a correlação de forças políticas na sociedade.
Senão o próprio status quo já resolvia o problema existente. Um
problema social só se resolve com luta social. Ele está inserido
na luta de uma classe contra outra.” (STEDILE&MANÇANO,
2000: 43)

Segundo Stedile a ocupação seria fundamental, a “essência do movimento”, “a


principal forma de pressão que os camponeses têm para fazer avançar a reforma
agrária”. Seria uma forma de luta contundente que levaria ao posicionamento da
sociedade, de modo que não teria mais como escamotear o problema social, alem de
criar um sentimento de solidariedade, comunidade e aliança entre os acampados.

No entanto, acho que a principal mudança é que os


trabalhadores sem-terra já assimilaram e compreenderam que a
ocupação é a forma mais eficaz, tanto é que cada vez mais
aumenta o número a cada ano. E por outro lado a sociedade
também compreendeu que diante da ineficácia das leis, da
intolerância do governo, da truculência dos latifundiários, os
sem-terra não tem outro caminho, a não ser pressionar com suas
próprias forças para que se aplique a lei de reforma agrária.

269
Para uma análise detalhada do PT e do Programa Democrático e Popular ver: IASI (2006)

478
Nisso se aplica o ensinamento de um jurista amigo nosso: Só a
luta faz a Lei. (idem:118)

Stédile identifica também o limite da luta institucional e a necessidade


permanente do movimento em adotar uma postura crítica em relação a propostas de
adesão aos governos, mantendo uma radicalidade objetiva com enfoque na luta de
massas como instrumento de pressão social imprescindível. Essa postura seria a dos
dirigentes do MST em uma das primeiras reuniões no processo de constituição do
movimento, o I Encontro Nacional que ocorreu em Cascavel – PR em 1984: “‘Esse
negócio de assembleia, de abaixo-assinado para o governo, de audiência, isso não
resolve’, era o que pensávamos. Poderia até ser um aprendizado pedagógico para as
massas, mas se não houvesse luta de massas a reforma agrária não avançaria.” Essa
postura se manteria anos mais tarde em episódios como o I Congresso Nacional em que
havia certo ceticismo em relação à constituição da Nova República a partir do governo
Tancredo/ Sarney. Devido a essa concepção crítica emerge a bandeira “Ocupação é a
única solução”:

O pessoal de esquerda vinha dizer para a gente: ‘Vocês se


acalmem que agora vai sair a reforma agrária’. E crescia em nós
a convicção de que a reforma agrária só iria avançar se houvesse
ocupação, luta de massas. Sabíamos que, mesmo com o novo
governo, civil agora, não dava para ficar esperando pela boa
vontade das autoridades. O povo deveria pressionar. Essa era
nossa garantia. Daí surgiu a bandeira de luta “Ocupação é a
única solução. (ibidem: 51-52)

O momento subsequente a esse período seria marcado por uma onda de


ocupações: “As massas entenderam que não poderiam ficar esperando o governo e que
havia espaço democrático, mas que só ocuparia esse espaço quem conseguisse se
mobilizar e lutar.” (ibidem:52-53) Os momento de maiores conquistas seriam os
períodos com maior quantidade de ocupações, fins de 1980 e fins de 1990.
Dentro desse mesmo tema há também uma contradição interna ao discurso de
Stedile. Ainda que afirme a necessidade da luta de massas contundente e radical e a
crítica a relações estreitas com a institucionalidade estatal, apresenta as disputas
eleitorais como algo que afetava diretamente a organização que afinal lutava pela
realização de uma reforma agrária através do Estado. Afirma que “para mudar a
sociedade tem que mudar o Estado” e esta mudança só ocorreria com consciência
política e social que criasse um projeto político dos trabalhadores através da luta. Além
disso, afirma: “A imprensa mente ao dizer que pretendemos substituir o Estado. Pelo
contrário: as instituições públicas da sociedade tem que fazer a reforma agrária e nisso o
Estado é o agente principal.” (STEDILE&MANÇANO, 2000: 121) E a principal
alteração da conjuntura de ascenso do movimento seria a derrota de Lula para Collor
nas eleições de 1989.

479
O V encontro nacional, realizado neste mesmo ano em Nova Veneza, Sumaré-
SP, teria sido marcado por um clima de agitação devido a esperança presente na
"vontade política de eleger o Lula, ajudar a mudar o Brasil.” Stedile afirma que o
movimento nesse período seria muito fraco e estaria ainda em fase de constituição, e
compara a derrota de Lula à condição de um adolescente que perde o pai e não tem
maturidade suficiente para compreender a situação em que se encontra. Nesse momento,
há a frustração da expectativa de que seria possível realizar uma reforma agrária rápida.
A vitória de Collor seria uma derrota política sem precedentes. Não apenas pela derrota
de Lula, mas pelo enorme período de repressão que recairia sobre o MST. Durante os
dois mandatos de FHC o movimento se focou na luta contra o neoliberalismo. Segundo
Stédile, FHC teria uma leitura de que não haveria mais problema agrário na sociedade
brasileira e o latifúndio não seria empecilho para o desenvolvimento, tornando
desnecessária a reforma agrária. Teria promovido uma subordinação da nação ao
capitalismo internacional e a entrega da economia ao capital financeiro e aos produtos
importados, enquanto a agricultura e o meio rural teriam sido marginalizados. A política
de isolamento promovida por FHC teria obrigado o movimento a radicalizar: “Se não
houver conflito, não há assentamento.” Se estabelece a noção de que para conquistar a
reforma agrária é necessário mudar o modelo econômico neoliberal. E toda a sociedade
deveria abraçar a luta, o que levou ao lema “A reforma agrária é uma luta de todos”.
Esse projeto neoliberal será futuramente, durante os governos Lula contraposto ao
projeto neodesenvolvimentista, ao qual o MST busca adesão como veremos adiante.
Os anos de luta antineoliberal foram marcados pela onda de ocupações de 1996
que desembocou na marcha para Brasília em 1997. Este teria sido um “grande ato
político contra o neoliberalismo do governo FHC”. Segundo Stédile não havia intenção
de negociar com FHC, mas reunir forças de toda a sociedade contra a política
neoliberal. Assim, observamos ao longo das décadas de 1980 e 1990 a constituição de
uma luta radical fundada na luta de massas, na ocupação de terras e com uma certa
autonomia em relação à institucionalidade estatal. Vejamos agora o que ocorreu com a
chegada do PT ao governo federal.

4 - Da ocupação de terras à produção agroecológica de mercado


Muitas são as mudanças entre o programa agrário de 1989 e o de 2002, o que se
torna ainda mais complexo no início do segundo mandato de Lula em 2007. Contudo, a
eleição de Lula e a formulação do II Plano Nacional de Reforma Agrária estimula a
noção de que esse seria um governo em disputa, que não poderia ser tratado como
inimigo.

A luta pela Reforma Agrária e as Tarefas do MST, apresentado


no XII Encontro Nacional do MST, realizado entre 19 a 24 de
janeiro de 2004, em São Miguel do Iguaçu-PR, estava a seguinte
recomendação: Devemos ter o cuidado de não tratar o governo
federal como se fosse inimigo. Nossa avaliação é de que é um
governo em disputa, que tem um compromisso histórico com a
reforma agrária e por tanto (sic) devemos pressioná-lo para que

480
acelere a reforma agrária. Nisso, o Plano Nacional de Reforma
Agrária jogará um papel importante para unificar o governo
também. Isso significa que vamos criticá-lo quando erra, mas
que vamos apoiar em tudo o que fortalecer avanços para a
reforma agrária (Direção Nacional, 2004, p. 25). (SILVA,
2012: 6)

O que contraditoramente vemos nos anos subsequentes é o explícito abandono


do II PNRA, que tinha como meta o assentamento de um milhão de famílias. Ariovaldo
Umbelino, professor de geografia da USP e um dos formuladores do II PNRA afirma no
artigo, com o título “Lula dá adeus à Reforma Agrária”, publicado no site do MST em
dezembro de 2008:

Mas, a primeira e principal conclusão que se pode tirar do


balanço do II PNRA, é apenas e tão somente uma: o governo
Lula do Partido dos Trabalhadores também não fez a reforma
agrária. Afinal esperava-se que Lula cumprisse sua histórica
promessa de fazer a reforma agrária, a pergunta então deve ser:
porque também seu governo não faz a reforma agrária? E, a
resposta também é uma só: seu governo decidiu apoiar
totalmente o agronegócio. (UMBELINO, 2008)

A política agrária dos governos petistas, tanto Lula quanto Dilma, se concentra
em uma política ainda precária de projetos de produção/distribuição somados a
programas de assistência social para o campo. Estes seriam realizados em detrimento de
uma política ampliada de reforma agrária, isto é, foi abandonada a possibilidade de
realização de novos assentamentos e se conformou uma postura de conivência ou
impotência do INCRA face ao agronegócio. Eliel Machado (2009) afirma que a política
agrária do governo Lula seria marcada pela redução de assentamentos, o não alcance
das metas do II PNRA e o benefício direto ao agronegócio, em especial ao setor
sucroalcoleiro. Essa constatação é também apontada por Engelmann & Duran (2012) ao
compararem os programas agrários de 1989 e 2002 :

Ao compararmos os dois Programas Agrários do PT percebemos


algumas diferenças estruturais. Enquanto em 1989, o objetivo
central era enfrentar a concentração fundiária no país, a partir da
desapropriação de latifúndios e uma política estrutural de
desenvolvimento capitalista para o campo e a indústria.
Passados 13 anos, em 2002, a reforma agrária passa a categoria
de plano de desenvolvimento rural de combate à pobreza,
mediante a desapropriação de latifúndios improdutivos ou áreas
ilegais (griladas ou com trabalho escravo). Nesse cenário, a
proposta de reforma agrária do PT substitui a democratização

481
fundiária, de enfrentamento ao latifúndio, por um programa de
criação de assentamentos, restrito a áreas improdutivas ou
ilegais e a reestruturação de assentamentos antigos.

Essa situação levaria inicialmente a uma pressão do MST com aumento das
ocupações em 42% em 2003, mas que seria seguida de uma caída drástica em 2005 pelo
temor de que a pressão social desgastasse o governo Lula, e Alckmin vencesse as
eleições de 2006. (GONÇALVES, 2006:188)
Porém, para compreendermos como o MST se relaciona com essa política
governamental, é necessário que combinemos a redução das ocupações de terra, com os
dados que apontam para a consolidação da relação do MST com as políticas de
desenvolvimento nacional para o campo, caracterizadas pela consolidação de
assentamentos com programas de financiamento à produção e distribuição de alimentos
e através da realização de novos assentamentos, ambos os casos com possíveis
colaborações de setores da burguesia aliada ao governo, e mesmo através de parcerias
com empresas do agronegócio.
Um exemplo concreto é o convênio do MST com o Grupo Pão de Açúcar para a
venda de arroz orgânico270, sendo esta uma rede de distribuição que está muito distante
dos consumidores provenientes das classes populares. Essa ampliação da política de
alianças, já indicada no lema “A reforma agrária é uma luta de todos”, chega ao seu
ápice no durante o governo petista quando, em fins dos anos 2000, se iniciam algumas
políticas de alianças com setores do agronegócio com mediação dos governos federal e
estadual.
Um desses convênios foi estabelecido com a Fibria, empresa recém-criada
através de financiamento do BNDES e que surge da fusão entre a Aracruz Celulose e a
Votorantim, duas gigantes internacionais da produção e exportação de celulose no
mercado mundial. Esse convênio intermediado pelo governo federal, o governo estadual
petista da Bahia e com participação da ESALQ/USP, irá garantir uma área de dez mil
hectares, antes propriedade da empresa, para um projeto de assentamento de mil e
duzentas famílias e de criação de uma escola agroecológica florestal. Segundo os porta-
vozes da Fibria: “Queremos ensinar aos jovens do MST como usar ciência e educação
para desarmar um antagonismo desnecessário, adiantou Penido.271” E em matéria no
jornal Valor Econômico foram expressadas as seguintes posições:

Muda-se a relação entre capital e trabalho, analisa Paulo


Kageyama, pesquisador da Esalq, da Universidade de São Paulo.
(…) É um marco no convívio do agronegócio com a agricultura

270
Rio+20: Pão de Açúcar irá vender arroz sem agrotóxico do MST , UOL Notícias, Cotidiano,
20/06/2012. Disponível em: http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2012/06/20/rio20-pao-de-
acucar-ira-vender-arroz-sem-agrotoxico-do-mst/
271 Ideologia, engajamento e métricas são receita de empresas-referência em sustentabilidade, notícia
de 02/12/2011. Disponível no site: http://www.amcham.com.br/regionais/amcham-sao-
paulo/noticias/2011/ideologia-engajamento-e-metricas-sao-os-ingredientes-de-sustentabilidade-da-
natura-fibria-e-du-pont. Acesso em: 02/12/2011

482
familiar, afirma José Penido, presidente do conselho de
administração da empresa. A questão, diz ele, é de consciência,
mas também de sobrevivência do negócio. A estratégia é
superar antagonismos e encarar os problemas historicamente
agudos no Sul da Bahia, ressalta o executivo. Ao seu lado,
Márcio Matos, da direção nacional do MST, garante: Chegamos
a um novo paradigma de negociação sobre passivos, diálogo
que surgiu a partir de relações conflituosas e se repetirá junto
às demais empresas do setor.272 (Grifo nosso)

Vale lembrar que em oito de março de 2006, duas mil mulheres ligadas à Via
Campesina e ao MST realizaram uma ação de denúncia em uma área da empresa
Aracruz Celulose, que abriga um centro de pesquisa sobre o manejo do eucalipto, no
município de Barra do Ribeiro, no Rio Grande do Sul. Tal ação pretendia denunciar o
impacto do cultivo extensivo de monoculturas de eucalipto que, ao formar o conhecido
“deserto verde”, destruiria a biodiversidade, deterioraria o solo, secaria os rios e geraria
poluição e contaminação através das fábricas de celulose. Essa ação foi publicamente
apoiada pela direção do MST no período em questão como uma forma de luta legítima
contra o agronegócio e foi considerada pela esquerda radical um marco nas formas de
luta até então empreendidas contra esse setor. Cinco anos depois, em 2011 temos essa
parceria firmada entre MST e a herdeira da Aracruz, a Fíbria.
Infelizmente estes casos de parceira com grandes corporações, como a Fíbria e o
Pão de Açúcar, não são fatos isolados e apesar de não serem uma prática totalmente
generalizada nas posturas do movimento não retira o peso de seu.
No artigo “MST adere a estratégias capitalistas” publicado no portal online do
IG em outubro de 2013273 são levantados, em tom elogioso, dados impressionantes
sobre as cooperativas do MST. Produções como suco de uva integral, leite e derivados e
arroz orgânico embalado a vácuo levam à cifra de 100 milhões por ano faturados por
apenas sete cooperativas do movimento sem terra: “um negócio e tanto para quem
imagina que da ‘roça’ dos sem-terra só sai conflito.” Esse faturamento poderia
classificar o MST como uma empresa de médio para grande porte segundo critérios do
BNDES.
Podemos questionar a legitimidade de um artigo como esse produzido por um
órgão da grande mídia burguesa, porém o curioso do artigo é justamente que vemos a
possibilidade de se enaltecer o MST hoje através das lentes de um capitalista
empreendedor.
O MST seria hoje o líder na destinação de alimentos para merenda escolar após
a lei que define que 30% dos alimentos devem provir da agricultura familiar. O artigo

272 Alianças inéditas, notícia do Valor Online publicado em 23/07/2012. Está disponível em:
http://www.valor.com.br/empresas/2760226/aliancas-ineditas (acessada em 30/08/2012)
A parceria também foi noticiada no site da Fibria e está disponível em:
http://fibriamkt.tauvirtual.com.br/2012/0725.htm (acessada em 30/08/2012)
273
Ver: Com agricultura familiar, MST adere a estratégias capitalistas, por Vasconcelos Quadros,
IG São Paulo, 14/10/2013. Disponível em: http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2013-10-14/com-
agricultura-familiar-mst-adere-a-estrategias-capitalistas.html

483
chama atenção para os 10 milhões de hectares de terra e mais de 400 mil famílias
pertencentes ao movimento, que teria uma produção de qualidade de “fazer inveja” aos
grandes produtores rurais.
Além disso, aqui se apresenta uma nova estratégia para a questão agrária que se
encaixa perfeitamente na nova concepção de “reforma agrária popular” difundida pelo
movimento em seu último congresso realizado no início de 2014274. Uma síntese
objetiva é elaborada pelo jornalista ao identificar um coordenador da cooperativa como
um “com terra” agora empreendedor rural, afirmando que “o MST está acoplando à sua
estrutura de esquerdista os métodos e estratégias do capitalismo de mercado” e esta
seria sua nova trincheira na luta contra seu arqui-inimigo, o agronegócio.

Essas parcerias, segundo o militante [Altamir Bastos -


MST/RS], permitem aos assentados traçar metas de produção
em escala e, seguindo estratégia de mercado, conquistar no
longo prazo quase o monopólio dos alimentos orgânicos, um
mercado tratado com certo desdém pelo agronegócio, mas um
ponto de afirmação para o MST.

Para garantir a distribuição dessa produção, o artigo cita um contrato com a


prefeitura de São Paulo que destinaria alimentos como arroz orgânico, arroz
parabolizado e feijão. Esse fato é parte de um panorama mais amplo de programas
assistenciais do governo federal destinados à garantia da distribuição da produção dos
assentamentos. Somado a um estreitamento das relações com o INCRA através
inclusive da entrada de alguns militantes como funcionários do órgão federal, foram
implementados programas durante os governos Lula para a comercialização da
produção dos assentamentos como o Programa de Aquisição de Alimentos, vinculado
ao Fome Zero, que se tornou a principal política de comercialização da agricultura
familiar e o Programa Nacional de Alimentação Escolar. (SILVA, 2012) Segundo o
artigo em questão, atualmente 95% da produção dos assentamentos do MST são
vendidos para escolas, Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e ao Programa
de Aquisição de Alimentos do governo federal.
Ainda que o representante do MST ressalte a necessidade de se produzir
alimentos saudáveis, com qualidade e que se oponham aos transgênicos do agronegócio,
não se dispensa a necessidade de se fortalecer os convênios com as prefeituras para que
se viabilize futuramente a entrada no mercado tradicional.

O crescimento nesse segmento, segundo o militante, daria ao


MST musculatura para, mais à frente, com os pés no chão,
entrar num embate com o agronegócio pelas prateleiras dos

274
Ver entrevista com João Paulo Rodrigues, porta voz da direção nacional do MST, sobre o VI
Congresso e a Reforma Agrária Popular em: http://reporterbrasil.org.br/2014/02/mst-30-anos-estamos-no-
canto-do-ringue

484
grandes supermercados depois de uma frustrada tentativa de
parceria com o Grupo Pão de Açúcar. Eles nos espremeram por
todos os lados. Cobram até o espaço em que o produto é
colocado na prateleira, queixa-se Altamir. No ano passado o
MST colocou nas lojas do Pão de Açúcar da região Centro-
Oeste arroz orgânico, mas o negócio está se mostrando inviável.
Embora chegue aos supermercados do grupo em Brasília a R$
3, 20 o quilo e seja vendido ao dobro ao consumidor, a
cooperativa gaúcha tinha de arcar com todos os encargos e,
assim mesmo, o produto ficava escondido, dificultando a
estratégia de marketing do MST, de se apresentar a classe
média com um produto saudável e barato.

O neodesenvolvimentismo, projeto de desenvolvimento para a cidade e o campo


empreendido pelo governo do PT, seria uma atuação econômica direta por parte do
Estado, mas com baixa estatização, de modo que esta ação estivesse restrita à regulação
ao invés da intervenção direta. Outra característica do neodesenvolvimentismo seria a
redução da autonomia do Estado, o qual teria função de articular desenvolvimento
econômico e desenvolvimento social, no sentido da redistribuição de renda e da busca
pela equidade social, combinando políticas de crescimento com políticas de
distribuição. A centralidade distributiva seria seu principal diferencial em relação ao
desenvolvimentismo da década de 1970 e seria realizado nos governos Lula e Dilma
pelos PACs I e II (Programa de Aceleração do Crescimento), o ProUni ( Programa
Universidade para Todos), programas de combate à pobreza como o Bolsa Família e o
aumento real do salário mínimo. (CEPEDA, 2012)
Boito Jr. (2012) apresenta uma importante relação entre essa política social
neodesenvolvimentista e os movimentos populares. O que estaria se configurando no
Brasil é uma Frente Neodesenvolvimentista que reuniria setores da burguesia interna
vinculados diretamente ao capital industrial e representados principalmente pela FIESP,
setores sindicais como a CUT e a Força Sindical, bem como movimentos populares, em
especial o MST. Ainda que considere que existam divergência internas na composição
dessa frente e uma série de contradições, esses setores, em momentos críticos se uniriam
em torno do governo petista com o objetivo de garantir sua continuidade e viabilidade,
opondo-se ao setor mais conservador defensor das políticas neoliberais.

Foi assim em 2002 na eleição presidencial de Lula da Silva; em


2005, na crise política que ficou conhecida como “Crise do
Mensalão” e chegou a ameaçar a continuidade do governo Lula;
em 2006, na reeleição de Lula da Silva para a presidência da
República, e novamente em 2010 na campanha eleitoral
vitoriosa de Dilma Rousseff. Em todos os momentos críticos
citados, a sobrevivência dos governos neodesenvolvimentistas
esteve ameaçada e, em todos eles, importantes associações
patronais, centrais sindicais, movimentos camponeses,
movimentos populares por moradia bem como o eleitorado

485
pobre e desorganizado apoiaram, com manifestações dos mais
variados tipos ou simplesmente com o seu voto, os governos e
as candidaturas Lula da Silva e Dilma Rousseff. Ao agirem
assim, tais forças sociais, mesmo que movidas por interesses
distintos, evidenciaram fazer parte de um mesmo campo
político. (BOITO JR, 2012)

Não sabemos todavia se existe de fato a conformação desta frente, mas temos
clareza da aproximação do MST aos governos Lula/Dilma e à tentativa de
desenvolvimento dos assentamentos como principal objetivo do movimento na ultimas
décadas, enquanto a radicalidade das ocupações passa a ser relegada a segundo plano.
Enquanto que, ao afirmar que o não se deve esperar pelo socialismo, mas apenas se
guiar por ideais socialistas, e sim realizar o que é possível, a mudança social
empreendida pelo MST está cada vez mais confinada à ilusão da possibilidade de uma
melhor distribuição de renda e um processo de contenção e humanização do
capitalismo.

5 - Considerações Finais: algumas hipóteses sobre as determinações estruturais


Levantamos, por fim, alguns elementos que comporiam o quadro geral da
problemática histórica que necessitamos enfrentar. Arriscamos apresentar questões de
grande complexidade, que aqui aparecem apenas como uma pontuação de elementos
gerais que a serem ainda profundamente investigados.
Como vimos, a determinação histórica mais aparente no caso do MST está no
âmbito da política: a chegada do Partido dos Trabalhadores ao governo federal em 2003
e a constituição do projeto neodesenvolvimentista. Esse processo foi também construído
por setores do MST, assim como o debate sobre a reforma agrária esteve presente nos
programas políticos do partido. A estratégia em curso, a luta por reformas que geraria
um acúmulo de forças - o programa democrático popular - bem como a tática da pinça -
combinação entre o braço da pressão popular e o braço da ação institucional -, estavam
articulados em torno da histórica aliança MST/PT. Arriscamos afirmar que essa
conjuntura política, a chegada e permanência do PT no planalto federal, é o impulso que
faltava para que o movimento se acomodasse à ordem capitalista. Porém, o MST já
vinha sendo pressionado por dois elementos da realidade objetiva difíceis de serem
contornados. O mais fácil de identificar seria: as transformações que ocorreram na base
social do MST.
Ocorre uma mudança significativa no caráter do movimento quando sua base
passa de majoritariamente acampada para majoritariamente assentada. Devido ao alto
grau de radicalidade do MST durante a década de 1990, o governo FHC se viu obrigado
a realizar vários assentamentos, ainda que na tentativa de atenuar os conflitos no campo
sem nunca implementar uma política permanente de reforma agrária. Com a chegada de
Lula ao planalto a tática de ocupação de terras é abandonada e o governo petista se torna
impassível quanto à realização de novos assentamentos. Em entrevista concedida ao
jornal Estado de São Paulo, João Pedro Stédile afirma que nos oito anos de governo
Lula havia 200 mil famílias acampadas no país, sendo que esse número, em 2011, teria

486
sido reduzido a 80 mil, sendo apenas 60 mil do MST. Já o número de assentados
pertencentes ao MST, em distintas entrevistas com dirigentes do movimento, variaria
em 2013 entre 300 mil e 400 mil famílias.
Temos, portanto, uma redução considerável do número de famílias acampadas,
enquanto que, ao longo das décadas de 1990 e 2000 se ampliou consideravelmente o
número de famílias assentadas. Ocorreu, portanto, uma mudança das condições
materiais objetivas e, portanto, das necessidades da base social que compõe o MST. É
inegável que os assentamentos sofrem de inúmeras precariedades estruturais e tem,
assim, uma ampla pauta de demandas que representam elementos significativos das
condições de vida dos assentados. E isso ganha inevitavelmente força interna na
organização devido às necessidades essenciais da base, enquanto que a ocupação para
conquista de novas terras é cada vez mais relegada a segundo plano. Estas opções
políticas não são portanto fruto da decisão de uma direção descolada de sua base social,
pelo contrário, são uma resposta coerente com as necessidades dessa base. Podemos
questionar, ainda assim, qual seria o papel de uma direção política no sentido de
dialogar com as necessidades de sua base social, porém também de dialogar e formar
esta base direcionando essas necessidades a um projeto estratégico. Por ora, apenas
pontuamos que as mudanças na base social nos parecem cumprir um importante papel
nas transformações desse movimento social.
O segundo elemento estrutural que vem pressionando a direção política do MST
ao longo das décadas de 1990 e 2000 que já pontuamos anteriormente está no âmbito
econômico: as mudanças da estrutura do capital no campo. Vivemos um contexto de
generalização do agronegócio que passa a subordinar por diversos mecanismos a
agricultura familiar/camponesa e um enrijecimento da política pública em relação à
distribuição de terras, mesmo em relação às públicas e/ou improdutivas. Os pequenos
produtores se vêem irremediavelmente subordinados às grandes multinacionais, seja
para venda de sua produção, seja para a compra de insumos agrícolas. A essa condição
subordinada somamos um sério problema quanto à manutenção da bandeira da “reforma
agrária clássica”. Como lutar pela distribuição de terras improdutivas quando a maior
parte das terras cultiváveis estaria sendo utilizada produtivamente e com alto grau
tecnológico pelos gigantes do agronegócio?
Além disso, há a problemática de uma imprecisão crescente na identificação da
fronteira entre o campo e a cidade, o rural e o urbano, a produção agrícola e a produção
industrial. A produção agrícola se caracteriza hoje, em especial na região sudeste, por
um altíssimo grau tecnológico de mecanização e está enredada em uma ampla cadeia
produtiva que perpassa espacialmente o campo e a cidade de forma ininterrupta e fluída.
(DELGADO, 2013) Essa característica também se expressa na base social que compõe
o MST atualmente. Nas últimas décadas muitas das famílias que aderiram ao
movimento foram recrutadas nas periferias dos grandes centros urbanos, sendo que
muitas nunca tiveram contato direto com o meio rural. (BUZETTO, 1999) Em muitos
casos as gerações de seus pais e avós seriam provenientes diretos do campo, mas toda
sua vida teria se constituído nas periferias urbanas.
A expansão e consolidação do agronegócio nos anos 1990 dificultou, portanto, a
manutenção da bandeira da reforma agrária clássica, hoje considerada derrotada pelo
próprio MST. Assim, a saída encontrada pela organização é a constituição de uma nova

487
bandeira, a reforma agrária popular. Ainda que afirmemos a necessidade de se continuar
a realizar ocupações de terra, o foco principal desta bandeira passou a ser a produção
agroecológica e cooperativada como forma de viabilização dos assentamentos. Nas
palavras de João Paulo Rodrigues, dirigente nacional do MST em entrevista à Repórter
Brasil:

No capitalismo brasileiro, não há espaço para reforma


agrária clássica e não podemos cair no idealismo de dizer que
por nossa vontade vai ter. Se a sociedade está dizendo que o
agronegócio resolve as demandas principais da agricultura e a
esquerda não tem força suficiente para impor um novo modelo,
precisamos manter uma luta tática pela reforma agrária, um
modelo que estamos chamando de reforma agrária popular. O
que é essa luta tática? É acumularmos força suficiente para ir
arrancando do governo conquistas que possam garantir a
organização de um território com produção agroecológica,
agroindústria e um conjunto de medidas na área de educação e
de saúde que sejam referências para a sociedade. (…) Antes
você tinha a possibilidade de o capitalismo distribuir terra, hoje
não tem mais. Nós não vamos viver no Brasil uma situação de
assentar 100 mil famílias por ano, 200 mil famílias por ano.
Isso se foi?
Pela vontade do estado e da classe dominante, esse ciclo se
encerrou. Vamos ter que impor a derrota pela produção
agroecológica, produzindo comida boa de qualidade. E isso
passa a ser uma prioridade tão importante quanto conquistar
latifúndio .

A mudança da base social somada às transformações do avanço do capital no


campo são as hipóteses que levantamos como determinações objetivas que levaram o
movimento à adesão a esse projeto nacional de desenvolvimento. É a partir dessas
condições que cai drasticamente o número de novas ocupações e acampamentos, ao
mesmo tempo em que a estrutura do movimento parece se voltar para a política de
créditos, parcerias e administração de cooperativas. É consolidada a crença na
possibilidade de inclusão através desses mecanismos das famílias assentadas ainda não
incluídas no mercado. A crítica ao sistema parece ter se transformado em uma
irremediável luta por inclusão social e econômica.

6 - Bibliografia
BOITO JR, A. As bases políticas do neodesenvolvimentismo, Fórum Econômico da
FGV/São Paulo, 2012. Disponível em: http://www.eesp.fgv.br/

488
BUZZETO, Marcelo. Nova Canudos e a luta do MST no Estado de São Paulo. Revista
Lutas Sociais, n. 6, 1999.
CEPÊDA, Vera. “Inclusão, democracia e novo desenvolvimentismo”. Estudos
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ENGELMANN, S. & DURAN, A. Questão Agrária no Brasil: a política agrária do
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de 2012.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.
GOMEZ, André Villar & BARREIRA, Marcos. “‘Exportar é o que importa’: a opção
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Vermelha, v.23, n.1, janeiro/junho de 2013.
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HARVEY, David. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.
IASI, Mauro Luis. As Metamorfoses da Consciência de Classes – o PT entre a negação
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________________. “Democracia de cooptação e o apassivamento da classe
trabalhadora”. Site do PCB, 18 de março de 2013. Disponível em: www.pcb.org.br.
MACHADO, E. Governo Lula, neoliberalismo e lutas sociais, Lutas Sociais, n.21/22,
2009.
MENEGAT, Marildo. Estudos sobre ruínas. RJ: Revan / Instituto Carioca de
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__________________. A crítica do valor bate à sua porta. In: BRITO, Felipe &
OLIVEIRA, Pedro Rocha de. (orgs) Até o último homem, São Paulo: Boitempo, 2013.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital, São Paulo: Boitempo Editorial, 2002.
PINASSI, M. O. O lulismo, os movimentos sociais no Brasil e o lugar social da política.
Revista Herramienta, Buenos Aires, 2009.
SILVA, L. H., Práticas Organizativas do MST e relações de poder em
assentamentos/acampamentos do Estado de São Paulo. Tese de Doutorado, Ufscar, São
Carlos, 2007.
_______________, A Trajetória do MST nos anos 2000: avanços e recuos na luta pela
reforma agrária no Brasil, 2012.
STÉDILE, João Pedro & MANÇANO, Bernardo. Brava Gente: a trajetória do MST e a
luta pela terra no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
UMBELINO, A. Lula dá adeus à Reforma Agrária, Jornal Brasil de Fato, 22-12-2008.

489
EIXO 6
Comunicação e a
construção do
Poder Popular

490
A Voz dos Invisíveis: atividades de leitura da palavra potencializando novas
leituras de mundo

Francis P. C.Duarte1

1
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ – Seropédica – RJ –
fpcd79@gmail.com

Resumo: Este trabalho apresenta reflexões e análises sobre o pensar e o repensar de


uma leitura crítica e reflexiva do mundo e seu processo de ensino num CIEP, na cidade
de Barra Mansa, interior do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo foi refletir sobre
atividades de leitura coerentes a partir de contextos vividos por alunos do ensino
fundamental, tanto crianças e adolescentes quanto da Educação de Jovens e Adultos
(EJA), tendo como base a experiência como professora de língua portuguesa de ambos
os grupos e a bibliografia específica. Assim, nasceu o projeto “O que eu espero da
vida? O que a vida espera de você?” as etapas de debate, produções textuais, a
filmagem do documentário “A voz dos invisíveis” e subsídios para a compreensão de
uma leitura crítica, sobretudo para os grupos e suas formas de repensarem a realidade
em que vivem. O resultado não foi um percurso pronto ou um modelo a ser seguido,
mas sim, o expressar de reflexões e experiências singulares sobre o ensino, a relação
social no processo de leitura crítica e reflexiva e as possibilidades que quebrem as
dificuldades no processo de leitura e escrita de mundo dentro e fora dos muros da
escola.

Palavras-chave: Ensino; Leitura; Escrita, Crítica, Reflexão.

1 Introdução

O presente estudo, A voz dos invisíveis: “atividades de leitura da palavra


potencializando novas leituras de mundo” nasceu de um projeto que envolveu alunos do
fundamental de crianças e adolescentes e da EJA – Educação de Jovens e Adultos,
tendo como base a minha experiência como professora de língua portuguesa de ambos
os grupos num CIEP na cidade de Barra Mansa, interior do estado do Rio de Janeiro,
em debates e produções escritas que visavam pensar e repensar suas realidades como
educandos e, sobretudo, cidadãos de uma sociedade desigual e excludente.
A ideia do projeto surgiu a partir das aulas de língua portuguesa que se transformavam
num cenário de questionamentos e receios em relação ao futuro e consequentemente,
refletia-se nas produções escritas das duas realidades escolares: diurno e noturno. Vimos
nas atividades desenvolvidas a possibilidade de romper com a memorização de regras
gramaticais e, trabalhar a leitura e a escrita como atividade humana, dotada de reflexão
e problematização.
Ao final, realizou-se um documentário, “A voz dos invisíveis”, que foi exibido na
mostra cultural do próprio CIEP, ao término do ano letivo de 2011 e assim, desejou-se

491
promover análises não apenas com os grupos participantes do projeto, mas que as
pessoas que o assistissem, pudessem também analisar suas próprias realidades.
Durante a elaboração da monografia, utilizaram-se como fonte de pesquisa e análise as
produções textuais realizadas nas diferentes etapas do projeto e o próprio documentário.
O embasamento teórico organizou-se em torno da análise da fala de autores como Roger
Chartier (1998), para o percurso histórico da leitura, Paulo Freire (2001), Maria Clara
Di Pierro e Ana Maria Galvão (2007) para a importância do ato de ler e sua criticidade,
Emília Ferreiro (1987), Angela Kleiman (1998), Isabel Solé (1998), Roberto Eco (2000)
e Vera Maria Tietzmam Silva (1985) para os âmbitos sociais da leitura e
consequentemente para a prática escrita. Assim, a pesquisa redimensionou-se de forma
a desmitificar a ideia de ato mecânico, mas um processo interacional: leitura, texto,
experiências pessoais e mundo.
É importante salientar que o trabalho foi apresentado como defesa monográfica do curso
de pós-graduação em Saberes e Práticas da Educação, na Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ.

2 Da leitura de mundo à consciência humana

Inicialmente é preciso ter a consciência de que o processo de leitura e escrita é contínuo


e que, diariamente, nos apropriamos e desenvolvemos saberes diversos: seja numa sala
de aula ou numa “leitura de mundo”, mas e aquele que se torna um alijado de tais
processos? E aqueles que nunca lhes foi dado ou não tem consciência de tal direito?
De acordo com Di Pierro e Galvão (2007), muitos veem o cidadão sem o domínio da
leitura e da escrita como um ser abstrato, alienado e amorfo, porém se esquecem de suas
experiências de vida, saberes pessoais e que antes mesmo do processo de aquisição da
leitura e escrita, são excluídos por questões sociais, familiares e tornam-se “cegas” por
um sistema que oprime e domina.
O presente trabalho parte do pressuposto que a leitura não deve ser restrita a um mero
decifrar das letras e da escrita, uma vez que o processo de aprendizagem é uníssono a
uma formação global e que envolve um convívio e uma atuação social, política e
cultural, sobretudo.
A pesquisa visa investigar de que formas a inserção no universo letrado mostrou-se ao
longo da história como desigual e, muitas vezes, como algo impositivo ou obrigatório e
que a partir da educação como um direito, ler faz-se reconhecer o ser como humano e
detentor do direito de crítica e reflexão.
Ao longo dos séculos, compreendeu-se que ler e escrever significaria o depreender de
bases adequadas para a vida e que o processo de educação não eram apenas aptidões
meramente intelectuais, mas sim uma integração de elementos que permitiriam ao
homem sentir-se parte integrante da sociedade, inserido efetivamente.
O processo de aquisição da leitura e da escrita, sob essa júdice, desenvolveu-se como
essencial na formação das pessoas, mas, por vezes, muito se subestimou a construção de
uma postura atenta e crítica em relação às ideias e informações que se obtém por meio

492
dos textos, ou seja, muitos leem, mas raramente o fazem por prazer, valorizam a leitura
apenas como apresentação de meras informações e não para crescimento pessoal.
As pessoas que não conseguem concernir ideias e atitudes coerentes com que estão
engajadas, pois os objetivos de consumo tornaram-se alienadas, incapazes de
concepções críticas da realidade, deixam-se levar pela mídia que busca produzir meros
consumidores de produtos ou informações alienantes.
Ler permite o envolvimento com ideias ou acontecimentos em uma sequência por nós
mesmos determinados e o seu aprendizado mostra-se como uma atividade que deve ser
vista como significativa e dirigida por objetivos críticos. Assim, torna-se uma
possibilidade para dar vez ao cidadão e, para isso é preciso prepará-lo para tornar-se o
sujeito no ato de ler, como afirma Paulo Freire: O livro deve levar a uma leitura e
interpretação da vida que ajuda o indivíduo na transformação de si mesmo e do mundo.
(Freire, Paulo, 2001 p.85)
No pensamento proposto por Freire (2001), a leitura não se descreve como um processo
memorizador, mecânico, em que a mera repetição das palavras, ausente de compreensão
de seu sentido, da realidade, se concretiza, mas a leitura exige reflexão, diálogo,
participação coletiva no sentido de buscar a conhecer a realidade e criar possibilidades
de transformá-la.
A leitura no olhar de Freire (2001) se projeta como um processo dialético, em que estão
envolvidos educador e educando construindo momentos de reflexão sobre a realidade,
de modo que no momento que se efetiva a possibilidade de educar o adulto, esse
processo de aquisição da leitura deve ter o olhar político e social que ele requer, e nessa
perspectiva:

(...) enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo de


alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito. O fato de ele
necessitar de ajuda do educador, como ocorre em qualquer
situação de relação pedagógica, não significa dever a ajuda do
educador anular a sua criatividade e a sua responsabilidade na
construção de sua linguagem escrita e na leitura desta
linguagem.(Paulo Freire 2001 p.19.)

A construção da leitura da palavra antecedida pela leitura do mundo permite ao homem


transformar sua consciência, de acordo com o quadro descrito em sua realidade, e assim
requer uma pesquisa de universo vocabular no sentido de conjuntamente, promover um
ensino, de acordo com a realidade que se vivencia.
Toda leitura mostra-se como uma interpretação, em que a necessidade de compreensão
e aprendizado se projeta por meio de inúmeras variações que leva o sujeito a dar
significado pessoal e interpretar a realidade de acordo com o seu conhecimento. Pensa-
se que o êxito da leitura dependerá do modo como o leitor e a produção escrita é
realizada, e assim deve construir o significado da leitura de acordo com o texto descrito
expresso num olhar sobre a realidade.

493
Dessa forma, o que se almeja alcançar do trabalho com a leitura crítica seria um leitor
que fosse capaz de ultrapassar os limites pontuais de um texto e incorporá-lo
reflexivamente no seu universo de conhecimento de forma a levá-lo a melhor
compreender seu mundo e seu semelhante. Ou seja, não é uma tarefa de juntar uma
palavra à outra, ao contrário, deve ser algo que contribua para a inserção do indivíduo
na sociedade, fazendo do mesmo um ser crítico capaz de tentar transformar a realidade
em que vive, como ressalta Maria Helena Martins:

... O ato de ler permite a descoberta de características comuns e


diferenças entre os indivíduos, grupos sociais, as várias culturas,
incentiva tanto a fantasia como a consciência da realidade
objetiva, proporcionando elementos para uma postura críticas,
apontando alternativas (MARTINS, 1994, p. 29).

Em um mundo de signos, ler é condição primordial para uma participação efetiva na


sociedade, já que a leitura propõe as bases para as aprendizagens múltiplas e a escola,
centro das atividades do conhecimento, torna-se um dos instrumentos de poder e de
transformação na sociedade. O ato de ler traz em si uma complexidade tal qual sua
amplitude, na medida em que a leitura é concebida como um ato de desvendar, ou seja,
ir além dos códigos linguísticos, saber fatos que nos rodeiam, ou seja, ler o mundo.

3 A Leitura: uma aventura histórica

A escola permanece ao longo do tempo como o lugar onde a maioria das pessoas
adquire as principais habilidades em relação ao letramento, leitura e escrita, porém no
percurso histórico da aquisição do conhecimento perpassam caminhos diferentes das
carteiras escolares.
Seja na Antiguidade Grega, a serviço de uma cultura oral e na conservação de textos, ao
assumir o viés religioso da Idade Média e seu caráter restritivo e “moralizante”,
vincular-se às evoluções históricas e tornar-se símbolo de uma sociedade culta, por
meio das bibliotecas privadas da burguesia, ou ainda, como elemento propiciador de
informação e crítica na atualidade, a leitura mostrou-se sempre como uma apropriação,
invenção e produção de significados, ou seja, o leitor mostra-se como um caçador de
terras alheias, conforme afirma Roger Chartier (1998).
Ainda no âmbito religioso, posteriormente a leitura se fez a partir da necessidade de
difusão da Bíblia por grupos protestantes e reformistas, em especial Martinho Luthero,
que apregoavam a aprendizagem da leitura como habilidade necessária à formação
moral de seus seguidores. Desta forma, a leitura de folhetins religiosos semanais e das
Escrituras Sagradas passou a fazer parte do cotidiano do lar burguês, de forma
individual ou coletiva, em voz alta ou silenciosa, constando das representações
imaginárias da classe média, apresentadas em pinturas e fotografias num ambiente de
paz doméstica.

494
Entre séculos XI e XIV, a leitura ganhou espaços organizados, porém silenciosos, houve
uma consolidação do comportamento regulado e controlado do leitor e assim, percebe-
se que a liberdade leitora jamais é absoluta, seja por limitações oriundas de capacidade,
convenções e classes sociais ou imposições que regulassem suas práticas e
consequentemente, seu desenvolvimento, o que relegou a leitura a um processo
individualista.
Durante muito tempo, as bibliotecas na França pertenceram a instituições ou eram
privadas e foi somente em 1790 que se pensou em ofertar os acervos ao povo em geral,
surgindo, assim, as primeiras bibliotecas nacionais. Em 1839 houve uma preocupação
com a rede de bibliotecas, quando se percebeu que esta usava as subvenções apenas em
gastos com pessoal.
As bibliotecas públicas passam a ser lugares de conservação e surgem os primeiros
bibliotecários devotados a salvar o patrimônio estritamente material e público, pois era
preciso vigiar os leitores que esqueciam de manipular um objeto precioso como o livro
com cuidado. A seguir, o leitor foi até considerado um obstáculo ao bom funcionamento
da biblioteca em que os funcionários não estavam a serviço do leitor e sim dos livros,
cuidando de sua catalogação, manutenção e reparo.
Por conseguinte, compreende-se que a história do leitor teve sua origem na expansão da
imprensa e o seu desenvolvimento esteve relacionado a uma ampliação do mercado do
livro, ao crescimento da escola e à alfabetização das populações urbanas, bem como ao
surgimento da família burguesa. A operacionalização da imprensa, que antes era tarefa
do Estado, passou a ser uma atividade empresarial e, portanto, dirigida para o lucro. Tal
fato só foi possível graças ao crescimento de uma clientela que dominava a habilidade
de ler, em decorrência da obrigatoriedade do ensino.
Ainda no século XVII, houve na sociedade mudanças de estruturas, período em que se
instalou o modelo burguês de família unicelular. Desta forma, foi mudada a maneira de
enxergar a infância e todas as instituições a ela relacionadas. Marisa Lajolo e Regina
Zilberman (1985) garantem que os textos produzidos para as crianças revelam os
leitores do mundo burguês de maneira idealizadora para que criassem expectativas e
promovessem padrões comportamentais em seus receptores.
A valorização da família era sustentada por uma ideologia que preservava o amor filial,
mitificava a maternidade, pregava deveres entre pais e filhos, dando-lhe laços internos
fortes, mas separando-a dos grandes grupos a que se agregava anteriormente. Este fato
torna a família, miniatura da sociedade idealizada, frágil no aspecto político, porém
fator fundamental na constituição da sociedade moderna. Assim, a leitura se consolida
no interior deste tipo de família por se constituir numa atividade adequada à privacidade
requerida por ela e própria à atividade doméstica.
Conforme Lajolo e Zilbermam (1985), “O Brasil saiu do arcadismo para o modernismo:
surgiu um novo tipo de Estado mais completo e heterogêneo em seus objetivos”. A
partir da revolução de 30 foi gerado o populismo, um momento em que foi
caracterizado pela violência arbitrária e pela violação dos direitos civis e das liberdades
democráticas. Percebe-se, nesse momento, que a literatura tem como função política
desalienar o leitor para a conquista da emancipação.

495
Torna-se perceptível, portanto, que as evoluções históricas e o aumento da produção e
reprodução de livros, por Gutemberg (1448), permitiram que um número maior de obras
fosse adquirido por um grupo de leitores, os chamados leitores extensivos, que
consumiam diversos impressos, mas deixando um questionamento: “Teriam esses
leitores realmente um olhar crítico ou apenas faziam uma aglutinação de informações”?
Nesse sentido, Paulo Freire (2001) afirma que a leitura da palavra é precedida da leitura
do mundo e mais do que simplesmente decodificar símbolos ou enumerar informações,
está uma realização crítica dessa leitura. Efetivamente, ler o mundo mostra-se como
uma prática concreta de libertação e construção da história, inserindo o leitor num
processo criador, de que ele é também um sujeito.

Em minha andarilhagem pelo mundo, não foram


poucas as vezes que jovens estudantes me falaram
de sua luta às voltas com extensas bibliografias a
serem muito mais “devoradas" do que realmente
lidas ou estudadas. Verdadeiras “lições de leitura"
no sentido mais tradicional desta expressão, a que se
achavam submetidos em nome de sua formação
científica e de que deviam prestar contas através do
famoso controle de leitura.(FREIRE, 2001, p.17)

Tudo parece defender a força da letra que, inscrita no sujeito, é capaz de fazê-lo um dia,
escrever o mundo, potencializando-se em distintas forças: o estilo, a escrita e a
representação. Ou seja, o homem seria atravessado pela leitura e por consequência,
alargariam-se pensamentos e, sobretudo, sua própria identidade e expressão social.
Esse percurso histórico nos leva ainda pelos caminhos do entendimento do texto uma
vez que, durante o século XIX, a leitura literal ou mecânica foi condenada e o
nascimento de uma crença na necessidade da compreensão como um todo, surgisse
pouco a pouco.
É necessário lembrar que a obra literária é um objeto social e para que ela venha existir
é preciso que leitor e autor criem um vínculo de ligação. A literatura infantil não é um
simples recurso didático, ela é arte, pois é a porta de um mundo autônomo e a leitura
literária pode ser utilizada como meio para sensibilizar a consciência, para expandir a
capacidade de interesse de analisar o mundo; lidar com o processo evolutivo do mundo,
melhorando seu discurso. A literatura entra na discussão do poder, no momento em que
esta tem como função controlar o circuito de informações que engodam a sociedade.
Porém, a literatura muitas vezes perde seu caráter emancipatório quando esta passa ser
vista e utilizada como recurso didático obrigatório.
A leitura realizada com profundidade faz do leitor um sujeito autônomo, cujo domínio
da leitura das linguagens, em especial da literatura infantil, permite a comunicação de
ideias, a expressão dos sentimentos e o diálogo, necessários à negociação dos
significados e à aprendizagem contínua, com isto o mesmo leitor pode estabelecer uma
relação eficiente com a escrita. Segundo a análise de Freire (2001):

496
Ler não é simplesmente decifrar cada palavra
escrita e sim fazer com que a mente compreenda o
sentido de um todo para ocorrer a comunicação
pelas letras. Primeiro as pessoas leem o mundo a sua
volta para depois lerem palavras. Isso porque cada
qual entende o que está escrito conforme o seu nível
de conhecimento e vivência cultural. (FREIRE,
2001, p.)

A escrita por sua vez, é um sistema de códigos expressivos, que objetiva a literatura.
São expressões gráficas da fala referindo-se especificamente ao signo linguístico. Rolan
Barthes (2000) ressalta: “é a escrita que absorve daqui em diante toda identidade
literária de uma obra”. Para o autor é a escrita de um determinado texto, poesia ou
romance que o faz aparecer, não importa se o mesmo ocupa um importante lugar na
categoria das Belas Artes, é necessário que apresente uma fascinante e bela aparência,
no que se refere à escrita, pois para Barthes, o aumento da escrita faz nascer uma nova
literatura, de modo que esta não invente sua própria linguagem, caso isso venha ocorrer
estaria se tornando um projeto irrealizável da linguagem.
Porém, enquanto para as classes mais baixas ainda fosse pregado esse ensino “literal”,
as autoridades promoviam para os seus, um novo olhar para a questão, o que ainda
mostra-se perceptível em alguns discursos atuais: um ensino de qualidade voltado para
poucos.
Desta forma, a escola não poderá impor condições aos seus educandos a ler um
determinado texto somente para fechar um currículo que é imposto a eles, sem respeitar
as individualidades de cada um. O ato de decodificar os signos linguísticos por si só não
podem ser considerado como leitura, haja vista que ler vai muito além de decifrar as
palavras. Ler é acima de qualquer coisa interpretar e dar sentido ao que está escrito.
Conforme o que enfatiza os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 1997), a função
da escola é assumir o papel de formar leitores, quando esta lhes oferece textos que
estejam ligados ao mundo.

É preciso, portanto, oferecer-lhes os textos do


mundo: não se formam bons leitores solicitando aos
alunos que leiam apenas durante as atividades na
sala de aula, apenas no livro didático, apenas porque
o professor pede. Eis a primeira, e talvez a mais
importante estratégia didática para prática da leitura:
o trabalho com a diversidade textual. Sem ela pode-
se até ensinar a ler, mas certamente não se formarão
leitores competentes (PCNs, 1997, p. 55).

497
Com o advento das novas tecnologias de comunicação, ocorre a democratização do
acesso e a possibilidade do homem tornar-se um agente ativo da informação e desta
forma completar o ciclo: leitura, interpretação e produção textual espontânea.
Leitura e aprendizagem inauguram o novo século permeadas por esse elemento
tecnológico, não se pode, hoje, ignorar o uso do computador, de tecnologias como a
internet, a existência dos celulares – que invadem a vida das pessoas -, sem esquecer as
câmaras digitais, dos palms, de web cam, e de tantos outros instrumentos que passam a
estar envolvidos no cotidiano de milhares de pessoas em todo o mundo.
As novas tecnologias de comunicação passaram a uma plenitude, principalmente tendo
em vista a proliferação do uso de celulares e de computadores, que se tornaram produtos
mais acessíveis a uma boa parte da população brasileira, seja pela produção de produtos
mais baratos, seja pela criação de locais públicos de acesso a computadores e à internet.
E com o acesso a diversos softwares, e em especial à internet, mudanças podem
verificar-se na maneira de leitura e também de aprendizagem das pessoas.
Primeiramente no campo da vida privada, a leitura alcança novos textos, dispostos na
internet, em que podem ser verificados desde blogs, fotoblogs, e-books, e-mails, lista de
discussões, chats, scraps e tantos outros gêneros textuais que se inserem na vida diária
de adolescentes e adultos. São, afinal, novas estruturas textuais, com novos elementos,
que, se quiserem, podem conter, além de palavras, imagens e sons. Tudo isso implica
uma modificação no modo de escrita e no modo de leitura de textos que se encontram
na internet, marcados muitas vezes pela agilidade, brevidade e com uso de regras
próprias.
Desta forma, a inter-relação da leitura e da formação do leitor, constrói-se a identidade e
a interpretação da leitura torna-se uma necessidade e um passo intermediário na busca
pela expressão pessoal de suas impressões no mundo e, portanto, a importância está em
como se lê, o que se faz de suas leituras e como as transforma em convicções próprias.
Diante desta visão, a escola necessita realizar uma reformulação em seus conceitos em
relação à leitura, porque o desejo de formar leitores competentes faz com que os
professores lancem aos alunos uma variedade de textos que, às vezes, são
incompreendidos pelos mesmos. Conforme Paulo Freire (2001) “A insistência na
quantidade de leituras sem o devido adentramento nos textos a serem compreendidos, e
não memorizados, revela uma visão mágica da palavra escrita” (FREIRE, 2001).
E assim, o que importa não é a quantidade de textos que muitas vezes são arremessados
aos alunos, mas a qualidade da análise e compreensão dos recursos que a leitura pode
oferecer ao conhecimento. Para tanto, o que deve ser considerado no processo de
formação de futuros leitores é, justamente, a qualidade e o quê de significativo de
determinado texto pode acrescentar na vida do leitor.
Jorge Larrosa (1981), quando reflete sobre Nietzsche, revela que ele exige para si
mesmo leitores que sejam possuidores de uma rigorosa perfeição, aqueles que procuram
desenvolver o ato da leitura de forma profunda, deixando se levar no mundo da leitura
de forma serena e tranquila. Segundo o autor, “sabe-se que a arte da leitura é rara nesta
época de trabalho e de precipitação, na qual temos que acabar tudo rapidamente”.
(LARROSA, 1981).

498
Os leitores da atualidade, intitulados como leitores modernos, já não criam
oportunidades e também não encontram tempo disponível para se mergulharem no
mundo da leitura, e, principalmente, se esta apresenta seu final demorado e obscuro.
Considera-se que muitos são os leitores que manuseiam os livros quando estes são lhe
imposto com a finalidade de desenvolver uma atividade na qual apresente seu término
de forma rápida. Portanto, a arte de ler, precisa ser desenvolvida com mais
tranquilidade, com disponibilidade de tempo, para deixar de lado todas as inquietações e
esperar em troca desta preciosa leitura muito conhecimento.
Como mais uma fonte de inserção na aventura histórica da leitura, porém num contexto
mais pessoal e educativo, será apresentado um estudo de caso de uma escola da cidade
de Barra Mansa, interior do estado do Rio de Janeiro.

4 A voz dos invisíveis: Um estudo de caso

O estudo foi elaborado durante o 3º. bimestre de 2011, num CIEP na cidade de Barra
Mansa, interior do estado do Rio de Janeiro. A unidade escolar foi fundada em 16 de
fevereiro de 1994, fica às margens da Rodovia Presidente Kenneddy e atendia alunos do
2° ano do fundamental até ao final do ensino médio, porém, passou por mudanças
estruturais da rede estadual (“otimização” de turmas) e estruturou-se de forma a receber
educandos da segunda fase do fundamental, concomitante com educação para jovens e
adultos. Manteve-se então, o ensino médio, desde que não ocorra um número elevado de
evasão escolar, quando ocorre fechamento de turmas e remanejamento dos alunos para
outras comunidades.
O corpo discente é formado por crianças, jovens e adultos das comunidades dos bairros
Vale do Paraíba, Getúlio Vargas e Vila Delgado. Enquanto isso, o corpo docente possui
certa rotatividade devido ao fechamento anual de turmas, mas existem professores e
funcionários remanescentes da fundação da escola, caso da própria direção.
Os alunos convivem diariamente com uma dura realidade: tráfico, atropelamentos (por
viverem às margens de uma rodovia), crimes e intervenções policiais. É um local
controlado pelo poder paralelo e mesmo assim, tentam levar suas vidas dentro de certa
normalidade e acreditando, quem sabe, no futuro.
Frente a essa realidade, verificou-se em duas turmas, uma de fundamental - EJA, certa
carência tanto na área de leitura quanto na produção escrita e associado a isso, uma
necessidade de expor relatos pessoais como forma de expressividade.
Analisou-se que as opressões sempre foram geradas a partir de um movimento em
cadeia, responsável por sua perpetuação e que três peças são fundamentais na
constituição dessa repetição opressora: o ser hegemônico, que organiza a opressão; o
emissor da opressão; e o receptor oprimido. Era preciso romper com tais paradigmas e
possibilitar uma conscientização do papel enquanto cidadão que pode conduzir e
transformar-se em sociedade.
Inicialmente, a pesquisa entre os educandos foi para saber quais alunos do fundamental
diurno possuíam pais na EJA (noturno) e constatou-se ainda que boa parte dos alunos
do diurno era de filhos ou familiares próximos aos alunos da turma noturna e a partir

499
daí, surgiu a ideia de um trabalho em que ambos os turnos dialogassem e propiciassem
momentos de crítica e reflexão sobre suas realidades e perspectivas futuras. Elaborou-se
então o projeto: “O que eu espero da vida? O que a vida espera de você?” e assim,
pensar e repensar o local onde se vive, o papel de cada um nesse meio social e as
angústias e realizações almejadas no futuro do corpo discente.
Esse projeto foi elaborado e executado unicamente pela própria relatora da monografia e
trouxe para a análise problemas como o contraste entre classes, o descaso na educação,
a violência, a situação precária das escolas, o descaso com a merenda, salas de aulas
lotadas, baixo salário dos professores, falta de transportes para aqueles que moram
longe das escolas, sem contar com os métodos de ensino que faz com que os alunos
passem de ano sem saber sequer escrever direito e assim, muitos alunos (de ambos os
turnos) encontraram identificação pessoal.
A partir disso, foram realizados dois debates tanto do núcleo jovem quanto do adulto e
listaram-se os temas recorrentes: “dificuldades financeiras”, “a precariedade da
realidade social e a violência”, “a incerteza do mercado de trabalho” e principalmente,
“a morte como uma constante”. Esses debates foram em momentos alternados, turnos
distintos pelo fato dos pais trabalharem durante o dia e a dificuldade de acesso de alguns
adolescentes durante a noite e, portanto, esse material foi documentado de forma escrita
para as etapas seguintes do projeto.
De posse dessas informações, o turno da EJA, com orientação, realizou uma pesquisa de
reportagens que englobassem os assuntos mencionados no debate e após leituras, foram
elaborados comentários críticos. Em contrapartida, o fundamental produziu relatos em
1ª. pessoa com o tema: “O que a vida espera de mim?”, de onde surgiram textos que
expressavam a realidade dos próprios educandos daquela comunidade.

500
Imagem 1: Texto de aluno com a temática “O que a vida espera de mim?”

Após essa etapa, avaliou-se a necessidade de ampliar a análise crítica desse material e
nasceu a ideia do curta-metragem, no formato documentário, “A voz dos invisíveis”,
sobre a realidade local da escola, dos educandos do fundamental e da EJA.
O grupo adulto elaborou o roteiro e a partir desse, o grupo mais jovem iniciou o ciclo de
filmagens que focaram o bairro (Comunidade Getúlio Vargas – Barra Mansa – RJ), a
escola (CIEP 292 Professora Jandyra Reis de Oliveira) e os depoimentos de alunos e de
funcionários. Durante a edição, foram inseridos trechos de entrevistas de personalidades
como Paulo Freire e Darcy Ribeiro, após pesquisa, a fim de consolidar as
argumentações desenvolvidas pelos educandos275.
Foi escolhido um dia para exibição para toda a escola, durante a Mostra Cultural da
Unidade Escolar, novembro de 2011 e assim, a comunidade: alunos de toda a escola,
familiares, amigos, professores e funcionários como um todo, puderam assistir e
participar de comentários após as exibições.
Quanto aos resultados, percebeu-se que a realização propiciou a promoção de uma
leitura crítica da realidade local, do debate livre e orientado e de uma produção escrita
de forma que fosse possível o educando enxergar-se em suas palavras, como um
verdadeiro sujeito da ação, além de utilizar outras linguagens como o roteiro e o curta-

275 A voz dos invisíveis parte 1 - http://www.youtube.com/watch?v=TbmyNuv7_Iw


A voz dos invisíveis parte 2 - http://www.youtube.com/watch?v=hreO1hF8jqU
A voz dos invisíveis parte 3 - http://www.youtube.com/watch?v=oTYez988qEY

501
metragem. Assim, a avaliação do projeto tornou-se possível após verificar a
participação e envolvimento dos alunos (diurno e noturno) em todas as etapas de
produção.
Esse avanço ainda mostrou-se perceptível tanto de forma quantitativa, revertendo-se em
notas, mas principalmente, no âmbito qualitativo, no fomento e ampliação de leitores
críticos e conscientes de seus direitos.
Sabe-se que esse processo é uma constante e que mesmo findada as atividades, os ideais
perpetuam-se na busca pelo conhecimento e na consciência de que qualquer tipo de
opressão dever ser denunciada e excluída de toda forma de ação do Estado ou política
pública, pois como afirma Paulo Freire:
“Se há um tempo é que mais até do que falar, mas falar a palavra
certa, falar a palavra que atua, a palavra que transforma, é já
começar a transformar. Mas se há um tempo em que a
necessidade da luta, da briga para um convencimento de que a
esperança não se acabou e que a História não morreu, para que a
História morra é preciso que primeiro as mulheres e os homens
morramos.
É preciso sublinhar que a utopia e o sonho não morreram, onde
quer e quando quer que haja mulher e homem no mundo, a
esperança continua a fazer parte de sua natureza.” (Conferência
de Paulo Freire PUC – O Simbólico e o Diabólico – 17 de
setembro de 1996)

Ainda como reflexo do projeto, realizou-se uma série de outros trabalhos e em destaque:
A excursão ao CCBB – Rio de Janeiro sobre Tarsila do Amaral e o Memória e História
Pessoal. O primeiro, após a visita à exposição, gerou uma série de cartas endereçadas
para a própria Tarsila, nas quais os alunos apresentaram suas impressões tanto do
ambiente (novo para a grande maioria dos alunos) e, principalmente, em relação às
obras Modernistas, que mesclaram inclusive com aspectos de suas próprias vidas.
O segundo, Memória e História Pessoal, foi um debate que se tornou também produção
de texto para que os alunos expusessem sua realidade de forma livre e reflexiva o que
demonstrou muitas vezes um desabafo, uma reflexão e principalmente, possíveis
chances de modificar suas realidades. Alguns, inclusive, mencionaram a realidade
física, a cidade de onde vieram, o bairro onde vivem e o reflexo de tais situações em seu
cotidiano.

502
Imagem 2: Texto de aluno: “Cartas para Tarsila”

5 Considerações finais

Ao nascer “A voz dos invisíveis: atividades de leitura da palavra potencializando novas


leituras de mundo.”, buscou-se o pensar e o repensar da realidade de educandos da
Educação de Jovens e Adultos (EJA) e do fundamental de uma mesma unidade escolar,
visto que durante as minhas aulas de língua portuguesa, surgia um cenário de
questionamentos sobre situações tanto do próprio CIEP quanto do cotidiano externo dos
envolvidos. As atividades realizadas oportunizaram possíveis rompimentos de normas
no ensino gramatical e dessa forma, possibilitou um trabalho de leitura e escrita num
âmbito reflexivo e, sobretudo, problematizado.
A elaboração desse estudo de caso permitiu a reflexão da leitura não como um simples
decodificar de símbolos, mas como possibilidade de compreensão e crítica do texto lido.
Percebemos que estaria relacionada a processos tanto cognitivos quanto de interação
com o mundo que cerca o leitor e, portanto, aos campos emocional, sensorial e mental.

503
O ato de ler possibilitaria, portanto, o envolvimento de conhecimentos e
questionamentos, se faria presente no cotidiano de cada um de nós e assim, o principal
aprendizado mostrou-se como uma confirmação da não existência de percursos prontos
ou modelos perfeitos a serem seguidos no desenvolvimento de uma leitura crítica e
reflexiva, mas que nossas experiências na área educacional, a troca de aprendizados na
relação professor e alunos pode nos permitir a quebra de paradigmas, o rompimento de
dificuldades no processo de leitura e escrita dentro e fora do contexto escolar.

6 Referências bibliográficas
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Ver – (Coleção magistério. 2o grau. Série formação do professor; v 16)
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CHARTIER, Roger. A aventura do livro, do leitor, do navegador. São Paulo: Unesp,
1998.
ECO, Roberto. Os limites da interpretação. São Paulo: Perspectiva, 2000.
FERREIRO, Emilia (1987). Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez.
FREIRE, Paulo. A Importância do Ato de Ler. Em Três Artigos que se Completam. São
Paulo. Cortez, 2008.
GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; DI PIERRO, Maria Clara. Preconceito contra o
analfabeto. Editora Cortez, SP. 2007.
KLEIMAN, Angela. Oficinas de leitura: teoria e prática. São Paulo: Pontes, 1998.
LARROSA, Jorge. L.334n Nietzsche. A educação. Jorge Larrosa; Traduzido por
Alfredo Veiga Neto – Belo Horizonte: Autêntica, 1981.
MARTINS, Maria Helena. O que é leitura. São Paulo, Brasiliense, 1994.
Ministério da Educação. Secretaria de Educação à Distância. (Cadernos da TV Escola)
v. 1 Português. NASCIMENTO, Cecília Regina do & SOLIGO, Rosaura. Leitura e
leitores. – Brasília, 1999.
SILVA, Vera Maria Tietzmam. Literatura infantil brasileira: um guia para professores e
promotores de leitura. Goiânia: Cânone Editorial, 2008.
SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6ª ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998.

504
Contra-hegemonia: desvelando a ideologia do jornalismo
informativo276

Cátia Guimarães1
1
Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio – Fundação Oswaldo Cruz – RJ -
catiaguimaraes@fiocruz.br

Resumo:
O trabalho parte da hipótese de que o caráter ideológico da imprensa não está apenas no
conteúdo veiculado, mas também num modo de se fazer jornalismo baseado na rígida
separação entre informação e opinião, na objetividade identificada como imparcialidade
e na atualidade associada ao ineditismo. Situa o fortalecimento desse modelo no
momento de consolidação do poder de uma burguesia que, na sua fase revolucionária,
havia promovido um jornalismo francamente político, no processo que Marx identificou
como decadência ideológica da burguesia. Supõe ainda que, travestido de prática
profissional, esse modelo se naturalizou para além da grande imprensa, sendo referência
também para muitas práticas jornalísticas que se pretendem alternativas. Na busca de
caminhos para um jornalismo contra-hegemônico, aponta o conceito negativo de
ideologia como central para a configuração das prática alternativas e identifica nas
categorias de, cotidiano, de Lukács, e senso comum, de Gramsci, caminhos para
compreender as especificidades do jornalismo para além da sua funcionalidade
burguesa.
Palavras-chave: jornalismo contra-hegemônico, ideologia, cotidiano, senso comum

1. Introdução
Parece consenso entre aqueles que desenvolvem um pensamento crítico no campo da
comunicação o reconhecimento da capacidade e da importância da grande imprensa
como porta-voz de interesses particulares, empresariais e políticos, no Brasil e no
mundo. Mas, partindo-se de contornos conceituais mais precisos, a grande mídia, por
exemplo, pode ser definida menos pelo seu ‘tamanho’ do que pelo caráter de classe que
orienta a particularidade dos seus interesses e da sua ação — trata-se, de forma clara, da
imprensa burguesa. Atuando no âmbito da sociedade civil, portanto fora do aparelho de
Estado, esses meios de comunicação compõem o que o pensador italiano Antonio
Gramsci chamou de ‘aparelhos privados de hegemonia’, que atuam no sentido de
construir e manter as condições necessárias para a adesão ‘pacífica’ ao modo de vida (e
de dominação) vigente, atuando na perspectiva do convencimento. Da mesma forma, o
que se identifica como a vocalização dessas instituições não corresponde nem a um
‘falar solto’, despretensioso e desinteressado, nem tampouco a um processo de
manipulação tosco e pouco sofisticado, como muitas vezes se costuma denunciar. Trata-
se de um processo mais facilmente compreensível pelo conceito de ideologia na sua
acepção marxiana, ou seja, entendido estritamente como mecanismo de dominação

276
Este trabalho é um ensaio que apresenta um panorama da pesquisa que vem sendo desenvolvida na
tese de doutorado da autora, ainda em fase de conclusão na Escola de Serviço Social da UFRJ.

505
burguesa, que age pela inversão e naturalização da realidade, permitindo a apropriação
do que é particular (de uma classe) como se fosse universal.
Neste trabalho, no entanto, não trataremos propriamente dos aparelhos representados
pelos meios de comunicação em geral. Nosso foco é o jornalismo, ou seja, o modo de se
‘fazer jornal’, o conjunto de técnicas de identificação e produção da notícia, que, no
processo de profissionalização da imprensa, principalmente a partir do final do século
XIX, se consolidou como um ‘modelo’ que traz, em si, a própria definição do que é
jornalismo. Nossa suposição é que esse conjunto de técnicas, tomadas, em geral, como
objetivas e neutras, naturalizou-se de tal forma que tem escapado das análises críticas
que reconhecem marcas de classe distintas entre a grande imprensa e a imprensa
alternativa.
Parece-nos, pois, urgente que se reflita sobre o modo de produção de cada manifestação
comunicacional específica, desnaturalizando, por exemplo, que a estética (da novela, do
cinema, do programa de entrevista, do programa de rádio etc) que atende aos interesses
dominantes seja necessariamente a mesma que pode traduzir ou discutir os interesses
dos grupos subalternizados que hoje não têm espaço na grande mídia. No que diz
respeito ao jornalismo, isso nos leva a algumas questões: será possível promover o
mínimo desvelamento da realidade produzida e veiculada pela imprensa burguesa,
sempre parcial, utilizando-se das mesmas ferramentas que ela utiliza? Bastará que se
alterem os conteúdos priorizados nas notícias e se modifiquem as versões para que se
constitua de fato algo ‘alternativo’? É suficiente que se institua a diversidade como uma
mera disputa de interpretações?
Com isso queremos sugerir que, no que diz respeito à comunicação, a ideologia,
entendida a partir do conceito marxiano como velamento e/ou inversão do real, não se
expressa apenas no conteúdo veiculado, mas também no próprio modo de se fazer
notícia. Portanto, o que se reconhece hoje como jornalismo, com sua forma de
priorização, apuração e narrativa sobre a realidade, é, ela própria, uma prática
construída ideologicamente, que tem data e local de nascimento e, principalmente, uma
identidade de classe: burguesa. A história da imprensa, no Brasil e no mundo, mostra
que o jornalismo não foi sempre assim — informativo em contraposição ao opinativo ou
interpretativo, por exemplo — e que sua caracterização nos moldes atuais tem coerência
histórica com o processo de desenvolvimento do capitalismo.
Aos atores e movimentos sociais empenhados em construir uma imprensa alternativa à
ordem do capital — que poderíamos adjetivar de forma mais precisa como imprensa
contra-hegemônica, nos termos de Gramsci — essa suposição parece colocar o desafio
de lançar um olhar de estranhamento sobre esse modelo de jornalismo277 que, apesar de
histórico e ideológico, se naturalizou a ponto de raramente ser questionado nas suas
estruturas — ou melhor, a ponto de quase nunca ser tematizado de forma crítica na
prática, seja da comunicação comunitária, sindical, de movimentos sociais ou
institucional. A pesquisa que originou este trabalho é motivada pela constatação de que,
de modo geral, os meios ditos alternativos oscilam entre dois comportamentos opostos
em relação ao jornalismo: ou naturalizam (e reproduzem) esse modo de fazer como
técnica profissional neutra, investindo na ‘inversão’ do conteúdo como essência do

277
Vale indicar que esse modo de fazer se sintetiza e ganha tons ‘metodológicos’ no modelo da pirâmide
invertida. Criado nos Estados Unidos, embora como resultado de um desenvolvimento histórico que tem
origens anteriores na Inglaterra, esse modelo define que uma notícia, para ser jornalística, deve responder
a seis perguntas fundamentais: o quê? Quem? Quando? Onde? Como? Por quê?

506
alternativo; ou ignoram qualquer determinação, nomeando como jornal um mosaico que
poderia ser classificado como qualquer outra prática – como textos acadêmicos, teses de
partido, comentários, entre outros.
Na base de todas essas preocupações estão as possibilidades reais de construção de uma
imprensa alternativa, empreitada que, no entanto, impõe, antes de tudo, que
questionemos: alternativo a quê? Essa clareza, que é teórica ao mesmo tempo que
política, parece fundamental a um campo cujas lutas sociais hoje tomam a forma da
democratização da comunicação, a partir de um caminho que costuma apostar, por um
lado, na regulação estatal dos monopólios e, por outro, na produção da diversidade (de
vozes e conteúdos) como característica principal do que se considera alternativo, o que
pouco dialoga, em essência, com a disputa de hegemonia que, na acepção gramsciana,
vai além do campo da luta específica e vislumbra, ainda que de forma distante, a
transformação das bases estruturantes da sociedade. Não por acaso, a democratização da
comunicação pela qual se luta encontra-se hoje, em geral, mais fortemente no registro
liberal do que num caminho propriamente anticapitalista. Como reconhece Lima, na
introdução do livro ‘Liberdade de expressão x liberdade de imprensa’:
(...) não me refiro ao debate externo ao liberalismo, sobretudo àquele fundado na
crítica marxista clássica. Refiro-me, apenas, ao debate interno às premissas liberais,
consolidadas e praticadas em sociedades que têm servido de referência à nossa
democracia, na perspectiva de construção do direito à comunicação centrado no
indivíduo (e não em empresas) — razão última e sujeito de todas as liberdades e
direitos. (Lima, 2010, p. 22)
Longe de uma crítica abstrata, que desconsidera as condições materiais dessa luta — em
que, no caso do Brasil, por exemplo, que tem uma impressionante concentração
midiática, qualquer conquista em relação a uma maior regulação tem efeitos
significativos sobre o poder de acumulação dos grupos empresariais que dominam esse
campo —, a questão que aqui se apresenta é a importância de se problematizar o que
pode ir além da crítica e da luta de caráter liberal, aprisionada nos mecanismos (e
portanto na reprodução dos valores) da institucionalidade burguesa. Alternativo, na
perspectiva deste trabalho, precisa, portanto, ser compreendido como ferramenta de
construção histórica de uma alternativa à ordem do capital. E isso significa pensar a
imprensa — e o jornalismo — como caminho, estratégia, ferramenta do que, a partir do
pensamento de Gramsci, se costuma chamar de contra-hegemonia. Esse é o sentido e a
função última que entendemos que deve ter o ‘alternativo’ na comunicação.

2. Da revolução à ordem: as mudanças do jornalismo

A hipótese que seguimos na pesquisa que originou este trabalho é a de que o jornalismo
informativo, hegemônico nos dias atuais, responde historicamente a dois impulsos
principais. Por um lado, ele se dissemina na transição do capitalismo concorrencial para
o capitalismo monopolista porque é nesse momento que se dão as bases materiais para
que essa prática se consolide como a forma particular do jornalismo burguês. É na
forma acabada de mercadoria capitalista, portanto, que se completa o ciclo de
isolamento da notícia. Mas esse é apenas o resultado final de um processo que tem
como marco anterior a luta da burguesia pela estabilização do poder a partir do final —
para ela, vitorioso — das revoluções liberais.
O jornalismo informativo — calcado numa concepção de notícia em que a atualidade
precisa ser acompanhada do ineditismo e a objetividade é compreendida como sinônimo
de imparcialidade e neutralidade; em que os fatos devem falar por si; em que, sob o

507
argumento de distinguir informação e opinião, se separa metodologicamente o relato da
análise, expulsando a contribuição da História — se consolidou na segunda metade do
século XIX, com protagonismo dos Estados Unidos, embora tenha seu germe no
jornalismo anglo-saxão de mais de um século antes. Ampara-se num caráter informativo
distinto daquele que estava na origem da imprensa, em que a notícia era a ‘mercadoria’
pré-capitalista, vendida como serviço de interesse comercial, num contexto de
nascimento do que depois se configuraria como a ordem burguesa (Habermas, 2003, p.
34).
Trata-se, da mesma forma, de um modelo de jornalismo que em muito se difere daquele
produzido no contexto das revoluções liberais, sobretudo a Revolução Francesa, em que
os jornais assumiram funções de “porta-vozes e condutores da opinião pública, meios de
luta da política partidária” (Habermas, 2003, p. 214). Aranda nos parece preciso ao,
curiosamente, caracterizar a imprensa informativa que substitui esse tipo de jornal —
composta por publicações baratas e populares — como política, no sentido de que era
produzida “para que os cidadãos assimilassem a nova política e a nova sociedade que
estava se impondo” (2004, p. 87). O próprio autor conclui: “Embora seja uma metáfora
um pouco enganosa, poderíamos dizer que o jornal político foi o representante do
liberalismo revolucionário, que tentava tomar o poder, enquanto o jornal de notícias era
representante do liberalismo conservador, já instalado no poder” (Aranda, 2004, p. 87).
O caráter informativo dessa imprensa que nascia a serviço de uma nova sociabilidade
burguesa estava, principalmente, na recusa à adesão partidária, já que, nesse momento,
os fatos passam a fazer política ‘por si’. Gramsci, no entanto, nos ajuda a reconhecer a
falácia dessa separação: tratando do fenômeno moderno de fragmentação dos partidos
“orgânicos”, não apenas entre diversos outros partidos independentes mas também entre
outras instituições e forças dirigentes, ele defende que “um jornal (ou um grupo de
jornais), uma revista (ou um grupo de revistas) são também ‘partidos’, ‘frações de
partido’ ou ‘funções de determinados partidos’”. Tomando como um dos exemplos o
‘Times’, da Inglaterra, Gramsci ressalta que também pode ser considerada um partido “a
chamada ‘imprensa de informação’, supostamente ‘apolítica’” (2007, p. 350). Tomando
emprestadas as palavras de Sodré, que se refere já ao período de consolidação desse
processo que aqui apenas se iniciava, completaríamos ainda: “Logo a grande imprensa
capitalista compreendeu, também, que é possível orientar a opinião através do fluxo de
notícias” (Sodré, 1999, p. 4).
Essas mudanças do jornalismo, que se amparam no desenvolvimento de processos
técnicos controlados ao mesmo tempo em que se constrói um ethos para o profissional
que passa a ser o responsável por essa atividade social, guardam coerência histórica com
o processo que, a partir das observações de Marx, Lukács chamou de “decadência
ideológica”. Reconhecida a partir de 1830 e aprofundada depois das revoluções de
1848, quando a burguesia sai vitoriosa sobre o Antigo Regime mas ao mesmo tempo
confrontada com o seu novo inimigo de classe — o proletariado —, a decadência
ideológica nomeia o processo pelo qual, em nome da manutenção da ordem, passa a ser
preciso nublar as contradições sociais, negando especialmente o conceito e a prática da
luta de classes. Tratando da ciência, Marx identificou nesse momento histórico uma
linha distintiva clara entre os economistas burgueses clássicos, como Ricardo, e aqueles
que promoveram uma economia vulgar, justificadora da ordem. Ele explica:
Com o ano de 1830, sobreveio a crise decisiva.
A burguesia conquistara o poder político, na França e na Inglaterra. Daí em diante,
a luta de classes adquiriu, prática e teoricamente, formas mais definidas e

508
ameaçadoras. Soou o dobre de finados da ciência econômica burguesa. Não
interessava mais saber se este ou aquele teorema era verdadeiro ou não; mas
importava saber o que, para o capital, era útil ou prejudicial. Os pesquisadores
desinteressados foram substituídos por espadachins mercenários, a investigação
científica imparcial cedeu lugar à consciência deformada e às intenções perversas
da apologética (Marx, 2008, p. 23-24)

A expressão desse fenômeno nas ciências sociais se dá principalmente no positivismo


conservador de Augusto Comte e Émile Durkheim, para ficarmos apenas em alguns
nomes, que, ao submeter o estudo da sociedade às leis naturais e promover uma
concepção de objetividade científica atravessada pela neutralidade, instrumentalizaram
o método científico em nome da ideologia burguesa. Referindo-se à ideia de “lei social
natural”, Löwy comenta:
É apaixonante observar como o conceito que havia servido de instrumento
revolucionário por excelência no século XVIII, que esteve no coração da doutrina
política dos insurretos de 1789, altera o seu sentido no século XIX, para se tornar,
com o positivismo, uma justificação científica da ordem social estabelecida (2009,
p. 31)
Embora na análise de Marx esse fenômeno esteja restrito ao campo científico, nossa
suposição é de que ele se expressa em outras práticas sociais e, especialmente, em
outras formas de conhecimento além da ciência. Assim, não nos parece coincidência,
mas sim coerência histórica, o fato de a ‘grande virada’ da imprensa que fez nascer o
jornalismo informativo hegemônico até os dias atuais ter se dado exatamente em
meados do século XIX. Tampouco parece acaso que as marcas do método científico
burguês, seja a objetividade positivista, seja a subjetividade controlada da sociologia
compreensiva de Weber, estejam presentes de forma muito clara no modelo de
jornalismo em voga, ainda que misturados como elementos de um senso comum
indistinto.
O resultado é que o objetivo (declarado) do jornalismo que se inaugura no momento em
que a burguesia deixa de ser revolucionaria, e se mantém, com pequenas nuances, até os
dias atuais, continua sendo o esclarecimento da sociedade — aquele mesmo que
orientava o ideal iluminista no período revolucionário —, mas agora sem partidarismos,
cada vez mais sem interpretações nem opiniões, deixando os fatos falarem por si.
Trata-se de um modelo que, em linhas muito gerais, passa a ser metodologicamente
controlado, baseado no mesmo par objetividade/neutralidade, que elimina as
contradições, separa informação de opinião e afasta a dialética; um modelo que, apesar
de manter um aparente materialismo pela centralidade que dá aos fatos, abandona o
caráter histórico, fragmentando a realidade em células isoladas que se tornam o
elemento central do jornalismo: a notícia. À fragmentação do conhecimento científico,
cada vez mais isolado em compartimentos estanques, corresponde, por exemplo, a
classificação das informações em departamentos específicos — as editorias — que
ordenam e orientam a forma como se leem (e se produzem) os fatos noticiados.
E, embora nasça para atender aos interesses particulares de uma classe, embalado pelo
seu reconhecimento como atividade profissional278, esse modelo passa a ser aceito como

278
Exemplo desse discurso ideológico amplamente aceito pode ser encontrado nos recentes Princípios
Editoriais publicados pelas Organizações Globo em 2011. Diz o texto: “Pratica jornalismo todo veículo cujo
propósito central seja conhecer, produzir conhecimento, informar. O veículo cujo objetivo central seja
convencer, atrair adeptos, defender uma causa faz propaganda. Um está na órbita do conhecimento; o outro, da

509
universalmente válido e a se reproduzir inclusive nas experiências que se propõem a
contrapor a imprensa burguesa.

3. Do alternativo ao contra-hegemônico

A ideia de contra-hegemonia como atributo de uma outra prática jornalística não é


apenas um adjetivo; refere-se a um conceito gramsciano que trata das estratégias de
enfraquecimento e ruptura com a ordem capitalista no contexto das sociedades
modernas. O autor explica:
O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime
parlamentar, caracteriza-se pela combinação de força e do consenso, que se
equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas,
ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da
maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública — jornais e
associações —, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente
multiplicados (Gramsci, 2007, p. 95)
Como se sabe, Gramsci nunca usou o termo contra-hegemonia, que é aplicado, no
entanto, para se referir ao processo de construção, em luta, de uma hegemonia da classe
trabalhadora, em oposição e substituição à hegemonia burguesa. Falar, portanto, em
jornalismo contra-hegemônico significa reconhecer essa prática (a imprensa, o jornal
mas também um certo modo de fazer) como instrumento e tática dos trabalhadores na
luta de classes.
Se temos convicção de que o jornalismo que buscamos é aquele que se contrapõe à
ordem burguesa, é preciso ter clareza também de que não reivindicamos como contra-
hegemônico, para o contexto de luta atual, o jornalismo ilustrado, capaz de “esclarecer
os “cidadãos. Esse jornalismo ilustrado, que serve de principal referência nostálgica
para as críticas mais contundentes à imprensa empresarial burguesa dos dias de hoje, é
normalmente associado ao período revolucionário burguês. Embora corretas na análise,
essas críticas parecem por vezes ignorar a historicidade que faz com que esse perfil
‘ilustrado’ de um jornalismo voltado para o esclarecimento seja resultado e, ao mesmo
tempo, tática, da ação revolucionária de uma classe — que depois se tornou hegemônica
— e não uma característica ‘ontológica’ do jornalismo, que foi perdida e precisa ser
recuperada. Se o jornalismo nasce como instrumento de uma burguesia revolucionária
que representava o esclarecimento em oposição ao obscurantismo do Antigo Regime
que combatia, supomos nós que ele também se modifica com essa burguesia que, muito
cedo, se consolidou no poder e deixou de ser revolucionária. As ‘trevas’ da monarquia
logo deixaram de ser o obstáculo a ser superado, sendo substituídas, cada vez mais, pela
organização da classe trabalhadora que era crescente naquele momento. Também o
jornalismo, nos parece, ao ingressar na sociedade de classes, deixa para trás o ideal
iluminista que um dia o caracterizou.
Mas não se trata apenas de uma distância histórica. Não nos parece um acaso que esse
ideal de esclarecimento do jornalismo e a defesa da sua responsabilidade em levar as
pessoas a pensarem por si seja parte, ao mesmo tempo, da cartilha burguesa e dos

luta político-ideológica. Um jornal de um partido político, por exemplo, não deixa de ser um jornal, mas não
pratica jornalismo, não como aqui definido: noticia os fatos, analisa-os, opina, mas sempre por um prisma,
sempre com um viés, o viés do partido. E sempre com um propósito: o de conquistar seguidores. Faz
propaganda. Algo bem diverso de um jornal generalista de informação: este noticia os fatos, analisa-os, opina,
mas com a intenção consciente de não ter um viés, de tentar traduzir a realidade, no limite das possibilidades,
livre de prismas. Produz conhecimento’.

510
movimentos sociais contestatórios. Não basta, a nosso ver, que se denuncie o jornalismo
burguês por não cumprir o que promete; é preciso refletir criticamente também sobre os
fundamentos da promessa. A ideia de que, uma vez esclarecidas, as pessoas tornam-se
capazes de formar sua própria opinião e agir ‘conscientemente’ a partir delas traz
problemas de toda ordem. O primeiro é associar as mudanças necessárias na ordem
social a um certo ‘empoderamento’ das pessoas que se dá, fundamentalmente, pelo
conhecimento, pela informação ou, para sermos mais precisos, pelo esclarecimento. Não
por acaso, a base da primeira crítica sistemática que Marx e Engels produziram a partir
do conceito de ideologia foi exatamente ao caráter deletério da concepção idealista, que
retira a base material da produção das ideias.
Nesse sentido, a resposta à ideologia burguesa não pode se esgotar no conhecimento (ou
na informação) e tampouco na pluralidade de vozes e versões baseadas na defesa da
diversidade. O esforço de construção de mídias alternativas, que passa também pela
desconstrução/desnaturalização de um modelo ideológico de jornalismo, só faz sentido
como ferramenta da produção de uma consciência que, processualmente, no mesmo
movimento das lutas concretas, se torne de classe. E, também aqui, aderimos aos
autores que reconhecem o conhecimento como elemento essencial, mas insuficiente,
para o processo de consciência (Iasi, 2006; Lukács, 2003). Além disso, mesmo as
formas de conhecimento pressupostas por esse processo de consciência precisam lançar
mão de estratégias e caminhos diversos para chegar, progressivamente, pari passu com
as condições objetivas de organização da classe, à compreensão da totalidade. Isso, por
um lado, impõe a presença da teoria; por outro, pressupõe mediações com
intencionalidade e organização política.

Parece-nos, ainda, que essa nostalgia iluminista combina referências múltiplas. Se o


esclarecimento que o jornalismo deve produzir “exige uma desnaturalização dos fatos”,
como nos diz Moretzsohn (2007, p. 30), se pode ser compreendido como esforço de
desvelamento da fumaça ideológica produzida pelo mundo da mercadoria, estamos de
acordo com essa enunciação. Mas a referência ao ‘público’ a ser esclarecido — os
“cidadãos” (2007, p. 28) —, tal como a crença de que se pode “oferecer informações
confiáveis para que o público tire suas próprias conclusões (isto é, para que possa
pensar por si)” (2007, p. 29), denuncia a origem liberal-burguesa desse princípio.

Mais do que uma filiação abstrata ao pensamento liberal, esse pressuposto ganha ares de
idealismo ao apostar num tal poder da razão que autonomiza as ideias e ‘conclusões’
das relações materiais objetivas e, com isso, dá à ideia e ao conhecimento (esclarecido)
um poder invertido sobre a ação. Não se trata de negar a importância do trabalho de
comunicação e contra-informação, mas de entender que, levada ao limite, essa tese
iluminista parece ignorar que as pessoas não pensam por si não apenas por falta de
informação, mas porque estão inseridas numa realidade que é, ela própria, invertida e
estranhada, sobre a qual age um complexo mecanismo ideológico baseado em relações
de produção fundadas sob o trabalho alienado. Não fosse assim, bastaria entrar em
contato com a informação ou o conhecimento ‘certo’ e o mundo se revelaria, deixando
as classes — assim reconhecidas — prontas para a ação.
A perspectiva ilustrada de fundo idealista, portanto, reduz toda a materialidade das
relações sociais — que, como explicam Marx e Engels, se expressam nas ideias na
forma de ideologia — a uma questão de opinião, escolha a partir de um certo repertório
de informações. Reafirma, desse modo, os princípios da democracia burguesa, que
aprisionam os caminhos da verdadeira emancipação humana a processos formais

511
estabelecidos no contexto do capitalismo, para sua sobrevivência e perpetuação.
Estabelecendo a pluralidade (de visões, versões, depoimentos, fontes...) como condição
para a ação humana, esse ideal individualiza a ação e esvazia a noção de luta de classes.
Com isso retomamos a centralidade e a complexidade do conceito de ideologia para a
empreita de se pensar sobre as bases de uma imprensa contra-hegemônica. O eixo
orientador da ação de um jornalismo contra-hegemônico, nos termos deste estudo, não
é, sob nenhuma hipótese, uma mera disputa ideológica, que reduza toda a complexidade
da tarefa histórica a uma contraposição de ideias e versões. Primeiro, porque é
pressuposto fundamental da nossa pesquisa que a ideologia tem base material. Segundo
porque, na radicalidade da concepção marxiana — apesar de toda a polissemia que essa
palavra adquiriu na tradição marxista do século XX —, ideologia é um conceito
negativo, atrelado a um processo real de inversão, ocultação, naturalização e
apresentação do particular como se fosse universal que tem como funcionalidade a
justificação da dominação. Na clássica definição da ‘Ideologia Alemã’:
As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a
classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força
espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção
material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão
submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais
faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do
que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais
dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que
fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação (Marx e
Engels, 2007, p. 47).

Importa, portanto, refletir sobre a importância do jornalismo, como modo de produzir


jornal, forma específica de produção de um conhecimento imediato, para que não se
reduza o papel da imprensa contra-hegemônica a uma disputa de versões, à luta pela
pluralidade de ideias e, principalmente, a instrumento de relativização da realidade
objetiva que o jornalismo precisa expressar. A importância do conceito negativo que
recuperamos de Marx e Engels está justamente em nos mostrar que a tarefa de uma
imprensa própria da classe trabalhadora não é construir uma ideologia também própria,
mas sim desvelar, desinverter e desnaturalizar no nível das ideias e do conhecimento
aquilo que é expressão da realidade concreta, e que denuncia a particularidade das
noções que nos chegam como se fossem universais. Do contrário, nos colocamos mais
facilmente sob o risco que ameaça constantemente a imprensa sindical, partidária e
mesmo comunitária, de apenas ‘trocar o sinal’. Como alerta Iasi:
A luta contra o capital não é uma luta para dominar a burguesia, mas aponta para
que, no curso de sua liberação, os trabalhadores eliminem a própria base da
sociedade de classes. Não se trata de estabelecer um novo domínio de classe, mas
para abolir as classes a partir de sua base: as relações de exploração e dominação.
Nesse sentido, interessa aos trabalhadores inverter, velar, obscurecer? Não
interessa aos trabalhadores, no interior de sua luta contra o capital, revelar o caráter
das relações, sua essência, causas e determinações reais, desnaturalizar e apresentá-
las como produto histórico? (2007, p. 81-82)

Assim, partimos da sugestão de que o papel (e o perfil) do jornalismo contra-


hegemônico não é prioritariamente defender um conjunto de ideias que combata as
ideias burguesas, mas agir no sentido de usar a informação e a contra-informação,

512
tratadas a partir de uma intenção de totalidade, para desnaturalizar a dimensão particular
dos fenômenos reais e, assim, ajudar, sempre reconhecendo os seus limites, a desmontar
a ideologia burguesa. Como nos explica Muhlmann, num texto em que descreve e
analisa a trajetória do Marx jornalista:
(...) o combate contra a ideologia não implica de modo algum que nunca se deva ter
contato com ela; muito pelo contrário, luta-se contra a ideologia colocando-se no
mesmo terreno que ela, discutindo com ela, e, pela força da análise crítica,
consegue-se fazer aflorar suas contradições, seus pontos cegos; em suma, ela é
destruída por dentro. É esse processo que transparece no jornalismo de Marx
(Muhlmann, 2006, p. 119).
Toda essa teorização, no entanto, só adquire sentido prático quando integra uma
estratégia que aposta na construção de meios de comunicação próprios da classe
trabalhadora. Com isso reafirmamos que a discussão aqui proposta não é sobre o
jornalismo como atividade profissional, resultando numa alternativa de outra formação
para os jornalistas atuarem ‘melhor’ na mídia burguesa. Esse é um caminho recorrente,
por exemplo, nas críticas que demandam a definição e aplicação de ‘estratégias de
comunicação’ por parte das instituições de esquerda, sobretudo os partidos políticos, o
que em geral inclui a disputa por espaço na mídia hegemônica. Silva e Calil, em texto
analítico e propositivo sobre uma política de comunicação contra-hegemônica, dizem
que a busca de espaço na imprensa burguesa, que eles classificam de ingênua, foi a
estratégia adotada, por exemplo, pelo Partido dos Trabalhadores que, segundo os
autores, se basearia em dois pontos principais: “a) a recusa de um grande investimento
político na constituição de poderosos instrumentos de comunicação próprios; e b) a
permanente tentativa de manter uma boa relação, indistintamente, com os grandes meios
de comunicação de massa”.
Na quase totalidade dos casos, quando tal ‘espaço’ se abria à esquerda – sempre em
decorrência da necessidade da própria mídia burguesa de manter sua legitimidade,
sem a qual sua função hegemônica não poderia ser exercida – abria apenas a
possibilidade de que se pudesse afirmar a discordância com as propostas, projetos e
“reformas” em pauta, jamais tornando possível a afirmação de um projeto político
próprio e o avanço na construção de uma nova hegemonia (Silva e Calil, 2004, p.
1).
Completaríamos essa análise reiterando apenas que um dos maiores riscos dessa busca é
a indiferenciação da luta, que levaria a se abrir mão da radicalidade do compromisso
com a transformação, já que, como nos alerta Fontes, na grande imprensa “uma direita e
uma esquerda adequadas ao capital configuram os limites máximos do debate” (2008, p.
160).

4. Jornalismo para além do capital: caminhos da contra-hegemonia

O esforço de pensar um modo de fazer jornalismo que ‘fuja’ das artimanhas ideológicas
que traduzem o processo real de alienação da sociedade burguesa precisa passar pelo
reconhecimento do que pode ser considerado específico, próprio do jornalismo como
prática social que se diferencia da ciência e da arte, por exemplo. Na impossibilidade de
dar conta de todas essas características específicas, até pelo caráter inconcluso da
pesquisa que embasa este trabalho, elegeremos três aspectos que nos parecem centrais
na definição do jornalismo para além do viés ideológico que essa prática adquiriu na sua
profissionalização burguesa.

513
Em primeiro lugar, admitimos a concepção de Adelmo Genro Filho do jornalismo como
uma forma de produção de conhecimento, que guarda especificidades em relação a
outras formas, como a ciência e a arte. Para esse autor, a peculiaridade do jornalismo
estaria em ser um conhecimento centrado na dimensão singular279 dos fenômenos, mas
que, pensado a partir de uma perspectiva dialética, estaria necessariamente articulado
com as dimensões do particular e do universal, e não isolado como se desenvolveu no
jornalismo burguês. No reconhecimento do jornalismo como uma forma de produção de
conhecimento, parece residir também o reconhecimento da sua objetividade como
forma de apresentação do real – concreto, cotidiano e mais imediato. Resta-nos,
portanto, ‘limpar’ essa objetividade da forma socialmente necessária que ela assumiu no
modelo burguês, atrelando-a não a uma neutralidade ideologicamente construído, mas
subordinando-a às determinações materiais que tornam os fatos realmente objetivos.
Além disso, supomos que o jornalismo se justifica pela função de organizar e mostrar,
dar a conhecer, os aspectos mais atuais da realidade imediata que interfere sobre os
coletivos sociais. E essas características, por sua vez, nos remetem a duas categorias: o
conceito de senso comum, de Gramsci, e o debate sobre o cotidiano na sociedade
capitalista, trazido principalmente por Lukács e Agnes Heller, parecem corresponder ao
universo de ação que pode caracterizar o que há de específico no jornalismo.
Isso significa que as ideias de atualidade e imediaticidade que caracterizam o jornalismo
burguês podem ser traduzidas como uma relação intrínseca do jornalismo com o
cotidiano e seus desdobramentos no senso comum. Pela nossa perspectiva, portanto,
independentemente da forma social que adquiriu na sociedade capitalista, o jornalismo,
por definição, precisa lidar com um conhecimento que seja atual e relativamente
imediato. Mas isso se dá pela sua relação com essa dimensão cotidiana insuprimível da
vida humana; não precisa, portanto, se manifestar como traço ideológico. No jornalismo
burguês, a atualidade é o princípio que justifica e promove, ideologicamente, o
isolamento da notícia e a fragmentação na sua forma de construção e apresentação. Em
nome de uma atualidade que se pretende imanência, o jornalismo nos moldes burguês,
sobretudo na sua versão mais atual, busca produzir o esquecimento, já que a atualidade
não é tratada, nesse caso, como um momento da História, que, apesar de mais imediato
e com ‘demandas’ necessariamente mais pragmáticas, se constitui na relação com o que
o antecedeu e ajuda a organizar o que virá. Numa perspectiva inversa, Heller nos lembra
que “a vida cotidiana não está ‘fora’ da história, mas no ‘centro’ do acontecer histórico:
é a verdadeira ‘essência’ da substância social” (2004, p. 20). E completa: “Toda grande
façanha histórica concreta torna-se particular e histórica precisamente graças a seu
posterior efeito na cotidianidade. O que assimila a cotidianidade de sua época assimila
também, com isso, o passado da humanidade, embora tal assimilação possa não ser
consciente, mas apenas ‘em-si’” (Heller, 2004, p. 20). Além de um recorte temporal,
portanto, o ‘atual’ que nos parece caracterizar o jornalismo é aquilo que mobiliza os
interesses e necessidades humanas imediatas regulares, o que, inclusive, põe em xeque a
novidade como um dos critérios principais de definição de notícia na grande imprensa
burguesa.
Já a noção de senso comum nos ajuda a associar mais diretamente essa caracterização
do cotidiano como domínio das relações imediatas com a questão do conhecimento e,
consequentemente, do modo como se formam as concepções de mundo. Entendida,

279
Na tese, ainda em desenvolvimento, que deu origem a este trabalho, dialogamos criticamente com o
autor no sentido de propor que a centralidade do conhecimento do jornalismo está na dimensão do
particular e não do singular, mas essa discussão ultrapassaria os objetivos deste texto.

514
inclusive, como uma primeira manifestação (imediata) da consciência, a ideia de senso
comum nos permite a aproximação que buscamos com um tipo de conhecimento que,
diferenciando-se claramente da ciência, vai também além do conhecimento sobre e para
a imediaticidade vivida, embora continue sendo fortemente informado pela concretude
da vida prática. Gramsci define: o senso comum é uma “concepção do mundo absorvida
acriticamente pelos vários ambientes sociais e culturais nos quais se desenvolve a
individualidade moral do homem médio” (Gramsci, 2004, p. 114). A noção de senso
comum de Gramsci parte da ideia de que o homem “simples” está submetido a um
amontoado de influências diferentes — e mesmo contraditórias —, vindas de campos e
temporalidades distintas, que orientam não só a forma como ele se comporta, mas
também o modo como compreende o mundo.
É no registro do senso comum, situado e voltado para o cotidiano, que entendemos o
‘conhecimento’ de que trata o jornalismo. Desenhado como uma atividade profissional,
por um lado, e como atividade da cena pública imprescindível à democracia (burguesa),
por outro, o jornalismo se conformou na junção — somatória e não dialética — de
influências diversas. A profissionalização do jornalismo, no momento em que ele se
torna claramente atividade ideológica e econômica, colaborou para que essa
fragmentação ganhasse ares de unidade, capaz de ser resumida num conjunto de regras
— técnicas, éticas — que ganham institucionalidade. Trata-se, portanto, do senso
comum institucionalizado falando e agindo sobre o senso comum não institucionalizado
da sociedade em geral e reforçando-o.
Se tanto o cotidiano, para Lukács e Heller quanto o senso comum, para Gramsci, são
dimensões insuprimíveis da vida humana, marcados principalmente pela dimensão da
imediaticidade, ambos estariam presentes em qualquer forma de sociabilidade, embora,
na sociedade burguesa, ganhem funcionalidade ideológica. De forma sucinta, isso tem
duas implicações principais. A primeira é que, se a associação que estabelecemos
estiver correta, o jornalismo, embora filho da ordem burguesa, tem sentido e função
para além dela. A segunda, e mais importante, é que essas instâncias, tal como
conceituadas pelos dois autores, pressupõem brechas ao cerco armado pela ideologia
dominante. Lukács enumera formas de suspensão do cotidiano que, embora sempre
temporárias, pensadas dialeticamente, fazem com que o sujeito volte ao cotidiano tendo-
o superado parcialmente. Gramsci identifica no senso comum um núcleo sadio do bom
senso, que precisa ser desenvolvido no sentido de uma concepção menos fragmentada e
mais unitária de mundo. Sugerimos que essas são pistas metodológicas importantes para
uma outra prática e uma outra forma de se fazer jornalismo.
A dialética das dimensões singular, particular e universal dos fenômenos — reconhecida
no real e ‘reproduzida’ no plano do pensamento — nos parece um caminho possível
para um novo processo de reconhecimento e tratamento da notícia como matéria-prima
desse outro jornalismo que estamos tentando caracterizar. Parece-nos, inclusive, que é
no exercício de identificação da singularidade/universalidade dos fenômenos
particulares que pode residir o critério geral da notícia, por uma perspectiva contra-
hegemônica.
Tudo isso significa tomar a imprensa e o jornalismo com uma nova perspectiva, que
movimenta outras tantas categorias: Gramsci fala em jornalismo integral; Lenin
identifica as funções de agitação e propaganda do jornal; Marx trata os jornais como
espaço para o exercício e aprimoramento do seu método materialista-histórico-dialético;
Lukács e muitos outros tratam, genericamente, sem fazer referência à imprensa, da
construção de uma consciência de classe. Em todos os casos, o jornalismo ganha a

515
forma de instrumento que serve a uma estratégia de classe; é pensado, pois, como uma
prática que se coloca a serviço não apenas da liberdade de imprensa ou das liberdades
individuais liberais, mas da liberdade/emancipação humana. Esse é, teórica e
politicamente, nosso desafio-síntese.

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517
Mobilizações Sociais e seus impactos sobre o espaço urbano: Um caso na Ribeira,
RJ.

Daniel S de Sousa¹, Ulisses Fernandes².

1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Campus Maracanã, RJ – danielgeouerj@gmail.com
2
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Campus Maracanã, RJ – u.zarza@uol.com.br

Resumo
Em um momento no qual o país insere grandes infraestruturas, seja no âmbito
dos megaeventos, seja na esfera de uma política de crescimento, os conflitos locais
emergem, revelando lutas de interesses de partes especificas da sociedade. Este trabalho
revela um destes conflitos em torno de um empreendimento e a formação de
movimentos sociais.

Como o espaço urbano é dotado de conflitos, a partir do momento em que se


impõe uma obra dessa magnitude há o surgimento de outros agentes com diversos tipos
de interesses e discursos, como a qualidade do pescado que a população compra sem o
tratamento adequado, geração de empregos ou até a violação do zoneamento urbano de
um bairro residencial. Os discursos são coerentes, mas qual seria o verdadeiro objetivo
das mobilizações?

Com isso, se formam mobilizações de dois lados na Ilha, uma a favor a


construção do TPP e a outra contra. Ao decorrer do trabalho pretendemos desmistificar
os discursos das mobilizações e seus agentes envolvidos. Quando se trata de solo
urbano os conflitos de interesses vão eclodir e os discursos para agregar mais membros
à causa podem esconder um motivo que não é revelado sem um estudo mais profundo
das mobilizações.

Palavras-chave: Palavras-chave: Movimentos Sociais; Redes, Espaço Urbano.

Introdução

Em um momento no qual o país insere grandes infraestruturas, seja no âmbito


dos megaeventos, seja na esfera de uma política de crescimento, os conflitos locais
emergem, revelando lutas de interesses de partes especificas da sociedade. Este trabalho
revela um destes conflitos em torno de um empreendimento e a formação de
movimentos sociais.
Como o espaço urbano é dotado de conflitos, a partir do momento em que se
impõe uma obra dessa magnitude há o surgimento de outros agentes com diversos tipos
de interesses e discursos, como a qualidade do pescado que a população compra sem o
tratamento adequado, geração de empregos ou até a violação do zoneamento urbano de
um bairro residencial. Os discursos são coerentes, mas qual seria o verdadeiro objetivo
das mobilizações?

518
Com isso, se formam mobilizações de dois lados na Ilha, uma a favor a
construção do TPP e a outra contra. Ao decorrer do trabalho pretendemos desmistificar
os discursos das mobilizações e seus agentes envolvidos. Quando se trata de solo
urbano os conflitos de interesses vão eclodir e os discursos para agregar mais membros
à causa podem esconder um motivo que não é revelado sem um estudo mais profundo
das mobilizações.
A partir desta pesquisa, se pretende mostrar como foi o processo inicial de
construção do Terminal Pesqueiro do Rio de Janeiro a partir de 2007, até a proibição de
sua construção pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no dia 10 de maio de 2011,
com a aprovação da Lei n°621/2010, sancionada, posteriormente, pelo Prefeito Eduardo
Paes, em 20 de junho de 2011.
É necessário para se iniciar a discursão expor que de acordo com o Decreto
Federal n.º 5.231/04, um Terminal Pesqueiro Público é :
(...) a estrutura física construída e aparelhada para atender às
necessidades das atividades de movimentação e armazenagem de
pescado e de mercadorias relacionadas à pesca, podendo ser dotado de
estruturas de entreposto de comercialização de pescado, de unidades
de beneficiamento de pescado e de apoio à navegação de embarcações
pesqueiras .

Os Terminais Pesqueiros Públicos são parte fundamental da infraestrutura


aquícola e pesqueira do País e funcionarão como entrepostos de pesca nas áreas
litorâneas ou ribeirinhas, de acordo com a necessidade e o interesse público – vide
Figura 1.
Com os trabalhos de campo e as entrevistas constatou-se que há objetivos
diferentes de vários agentes produzindo o conflito de interesses e as articulações em
movimentos sociais. Com isso, construímos nosso questionamento central que aborda
os discursos tanto pelas mobilizações a favor quanto contra a construção do terminal,
observando assim se as mesmas analisam os aspectos positivos e negativos da potencial
construção ou são meios para chegar a seus possíveis interesses velados.

519
Figura 1 - Fonte: Ministério da Pesca. Disponível em http://www.mpa.gov.br/index.php/26-
infraestrutura-e-fomento/459-unidades-de-apoio-a-cadeia-produtiva.html. Acesso em 28 de
junho de 2012.

Objetiva-se assim apresentar como se articulam os discursos das mobilizações


relacionando os aspectos positivos e negativos para os moradores da Ilha do
Governador, em virtude de uma potencial implantação do Terminal Pesqueiro Público, o
que poderia impactar em mudanças na infraestrutura na comunidade como um todo,
afetando principalmente o bairro da Ribeira.
Referente à operacionalização da pesquisa, será desenvolvida tendo como base
uma bibliografia concernente às teorias dos movimentos sociais, bem como aquela
relacionada à estruturação do espaço urbano. Além da utilização de fontes primárias, na
forma de documentos, a pesquisa contará com idas ao campo, buscando entrevistas com
os principais agentes envolvidos.
Fez-se necessário um estudo sobre um pouco da história da Ilha do Governador e
posteriormente o recorte que é a Ribeira para entender como se deu o histórico de
ocupação da área de estudo, para entender atualmente suas características que são
relevantes a pesquisa, como por exemplo, uma classe média que vive no Bairro da
Ribeira.

2 A HISTÓRIA DA ILHA DO GOVERNADOR

520
A primeira expedição portuguesa a explorar a Baía da Guanabara foi a de André
Gonçalves, a qual avistou o Pão de Açúcar em 1° de Janeiro de 1502. Por achar que a
Baía de Guanabara fosse na verdade a foz de um rio, a expedição lusitana a denominou
de Rio de Janeiro. Só recebeu nova atenção dos portugueses em 1531, quando uma
expedição comandada por Martim Afonso de Souza, aporta em suas águas por três
meses para reabastecimento, reparo e construção de embarcações e assim prosseguir em
direção ao sul com a missão de percorrer a costa das novas terras até a foz do rio da
Prata (LAMEGO, 1964).
Não obstante a divisão da Colônia em capitanias, sendo a de São Vicente doada
a Martim Afonso em 1534, praticamente não houve esforço para promover a
colonização na parte setentrional da capitania, abandonada pelo donatário, cuja atenção
encontrava-se presa ao cultivo de cana-de-açúcar na vila de São Vicente (LAMEGO,
1964).
Ao entrarem na Baía de Guanabara, os portugueses encontraram uma extensa
ilha próxima à porção noroeste do recôncavo, rica em fontes d’água, com extensas
florestas e com abundância de pau-brasil. Tudo isso fez com que esta ilha passasse a ter
uma importância na extração da matéria corante, tão requisitada na Europa. A ilha neste
momento era conhecida de duas formas: uma usada pelos Temiminós, habitantes da ilha
na época da chegada dos portugueses, que a chamavam de Paranapuã e suas diversas
variações [Pernapuã, Parnapocu, Paranapecu, Pernapoquu, entre outras], – e que
guardava o significado de o que se ergue no seio da baía ou então furo do rio grande; e a
outra forma era chamá-la de Ilha dos Maracajás, onde Maracajá se refere a uma espécie
de gato do mato – Felis Pardalis. (IPANEMA, 1991).
Ainda de acordo com Lamego (1964), em 1567, Mem de Sá doa quase metade
da Ilha de Paranapuã a seu sobrinho Salvador Correia de Sá, Governador da Capitania
do Rio de Janeiro, secção setentrional da Capitania de São Vicente. E a partir de então
passa a ser conhecida como Ilha do Governador.
Em 1949, na gestão do Prefeito Mendes de Moraes, é inaugurada a primeira
ponte para o continente. Nesta época o bairro se constituía num balneário para a classe
média da Cidade do Rio de Janeiro e com a construção da ponte, se deslocar para o
continente se tornou mais fácil e a partir da ponte, há uma aceleração na urbanização da
Ilha do Governador.

Em 23 de Julho de 1981, através do Decreto Municipal nº. 3157 do então


Prefeito Júlio Coutinho, o bairro Ilha do Governador foi oficialmente extinto, sendo a
referida ilha entendida, a partir daí, enquanto um acidente geográfico onde se
localizariam 14 bairros da cidade. Entende-se a Ilha do Governador por XX Região
Administrativa [RA] do Município do Rio de Janeiro, onde também estão presentes
outras ilhas que sofreram um processo de ocupação diferente da principal.

2.1 ÁREA DE ESTUDO

O bairro da Ribeira – vide Figura 2 – se localiza na ponta sudeste da Ilha do


Governador. De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)
possui cerca de 3.500 moradores, de um total de 212 mil moradores presentes e
espalhados pela Ilha do Governador, em 14 bairros que compõem a XX Região

521
Administrativa, dentre eles estão: Bancários, Cacuia, Cocotá, Freguesia, Galeão, Jardim
Carioca, Jardim Guanabara, Moneró, Pitangueiras, Portuguesa, Praia da Bandeira,
Ribeira, Tauá e Zumbi. É uma área predominantemente residencial e familiar, com a
presença de praças e clubes para o lazer, além de ser um centro gastronômico na Ilha do
Governador.

Figura 2 - Localização da Ribeira Fonte: Armazém de Dados.


http://www.armazemdedados.rio.rj.gov.br/ . Acesso em 01 de Julho de 2014

Ainda de acordo com o Sítio Eletrônico da Prefeitura do Rio de Janeiro, o nome


do bairro vem da Fazenda da Ribeira que existiu no século XIX em estreita faixa de
terra dessa área da Ilha do Governador. Nesse século, a ilha funcionou como centro de
abastecimento da Cidade, incluindo a pesca, cal, tijolos e telhas. Na Ribeira se
estabeleceram portugueses, cultivando o solo além da produção de aguardente e de cal.
A população e suas atividades foram se expandindo e, na segunda metade do século
XIX, a Ribeira já era uma localidade consolidada.
Em 1870, na faixa Ribeira – Zumbi – Pitangueiras, havia mais de cem casas e
estabelecimentos comerciais. Com o advento do século XX, a urbanização se acelera.
Em 1914 ali se instalam duas grandes Companhias de Petróleo, a Royal Dutch Shell e
depois a ExxonMobil [Esso]. Em 1922, a Companhia de Melhoramentos da Ilha do
Governador põe em circulação o bonde elétrico, com linha entre a Ribeira e o Cocotá,
fazendo a conexão com o transporte marítimo, na ponte de atracação de barcas na
Ribeira. O bonde seria extinto em 1964 e muito antes, em 1931, criou-se a primeira
linha de ônibus ligando a Ribeira ao Galeão.

522
O arruamento e loteamento em torno da Rua Paramopama, na Ribeira, datam de
1934 e representam toda a área atualmente habitada do bairro. No Morro do Ouro foi
construída, em 1913, a Igreja da Sagrada Família, em terras doadas pelo negociante
português Horácio Fernandes da Fonseca. O bairro tem uma grande praça, junto ao
terminal de barcas, denominada Iaiá Garcia, e duas praias, a da Ribeira e a da
Engenhoca, essa com faixa de areia aumentada, quiosques e mais frequentada. Na ponte
Dr. Luís Paixão ficava o citado terminal de barcas, hoje transferido para o Terminal de
Cocotá. No bairro, além das instalações das Companhias Petrolíferas, ficam as quadras
esportivas da ACM, Associação Cristã de Moços, e a mais importante feira livre da Ilha.
Embora seja atualmente considerada uma zona residencial três [ZR-3] , tem seu
espaço marcado pela presença de algumas indústrias pertencentes à Shell, Exxon e a
Transnave (estaleiro), que de acordo com o zoneamento vigente, não poderiam estar em
atividade na Ribeira. A explicação desse fato está no passado do bairro, onde as
indústrias se estabeleceram na Ribeira quando esta ainda era classificada como ZR-5,
permitindo a presença das indústrias de grande porte. Com o decreto municipal nº. 2108
de 14 de março de 1979, a Ribeira passa a ser classificada como uma ZR-3 e as
indústrias, que se estabeleceram antes do decreto passam a ser compreendidas dentro
zoneamento atual e continuam desenvolvendo suas atividades.
Em virtude dessas características, os movimentos sociais Sim ao TPP e Na Ilha
Não vão se articular pelos interesses dos grupos, sejam pelos aspectos positivos como
geração de empregos e melhorias para Ilha com a instalação do TPP, ou pelos negativos,
como desvalorização da área, violação de zoneamentos e engarrafamentos.

3 MOVIMENTOS SOCIAIS URBANOS

É importante fazermos uma sucinta discussão, dada à amplitude do assunto,


acerca dos movimentos sociais, possibilitando assim à compreensão e a percepção da
dinâmica dos movimentos sociais específicos à comunidade da Ribeira.
Pesquisou-se em diversas bibliografias conceituações sobre o tema, mas foi em
Gohn (2011) que encontramos uma definição satisfatória sobre movimentos sociais, que
são vistos como articulação de diversas classes e camadas sociais, onde se unem e
começam a atuar no campo político de força social na sociedade civil. Estruturam-se
quando enfrentam algum problema político ou disputas vivenciadas pelo grupo na
sociedade em virtude de interesses em comum, o que dá identidade ao movimento. Os
movimentos podem gerar mudanças nas esferas públicas e privadas, transformando a
sociedade civil e política, interferindo diretamente no espaço geográfico.
Entendendo melhor sobre o que são movimentos sociais, entraremos no
movimento foco da pesquisa, que são os movimentos sociais no meio urbano, onde os
primeiros trabalhos desenvolvidos na análise do tema, de acordo com Gohn (2011)
foram baseados, principalmente, nas perspectivas de teóricos como Manuel Castells e
Jean Lojkine, no decorrer dos anos 70, assumindo uma visão crítica sobre o fenômeno.
Abordaremos um pouco sobre os autores citados acima, começando com Manuel
Castells, que segundo Gohn (1997), interpreta os movimentos sociais urbanos como
uma luta por melhoria urbana. Seus principais agentes são o capital monopolista e a luta
por seus interesses, a luta das classes sociais e o Estado, que funciona como uma
espécie de árbitro e organizador espacial da cidade. Corrêa (1995) explicita um pouco

523
dessa arbitrariedade, quando diz:

uma primeira observação refere-se ao fato de o Estado atuar


diretamente como grande industrial, consumidor de espaço e de
localizações específicas, proprietário fundiário e promotor imobiliário,
sem deixar de ser também um agente de regulação do solo [...]
(CORRÊA, 2007, p. 24).
.
Os movimentos sociais urbanos lutam por uma melhoria no espaço em que vivem ou se
impõem sobre uma possível degradação, como é no caso da Ilha do Governador e a
instalação do TPP, que geraria uma série de problemas de acordo com o movimento
contra o terminal.
Procurando uma definição mais clara sobre movimentos sociais urbanos,
Mizubuti (2007) baseando-se em Manuel Castells, em sua pesquisa sobre movimentos
associativos em Niterói, aborda os movimentos sociais urbanos como práticas entre a
intervenção do Estado e a articulação de luta de classes, que é observado na Ribeira,
onde temos a vontade do Estado pela construção do TPP e a vontade dos moradores do
bairro, que é uma classe média, que teria uma série de prejuízos, principalmente
relacionado ao impacto imobiliário.
Borja (1975) aborda sobre evitar a degradação das condições de vida, ora os
movimentos sociais da década de 70 e do século XXI, principalmente quando
relacionados ao espaço urbano, acoplaram em sua dinâmica um caráter local a sua
atuação. Jordi Borja define:
movimentos reivincatórios urbanos como as ações coletivas da
população enquanto usuária da cidade, quer dizer, de habitações e
serviços, ações destinadas a evitar a degradação de suas condições de
vida, a obter e adequação destas às novas necessidades ou a perseguir
um maior nível de equipamento. Estas ações dão lugar a efeitos
urbanos (modificação da relação de equipamento-população) e
políticos (modificação da relação da população com o poder no
sistema urbano) específicos, que podem chegar a modificar a lógica do
desenvolvimento urbano (BORJA, 1975 apud. GOHN, 2011, p. 196).

Nesse caso, podemos continuar o raciocínio na lógica de Touraine (2010), onde


agora os movimentos sociais entraram na nova dinâmica do capitalismo financeiro e da
globalização perdendo assim a essência que consistia dos interesses antagônicos entre a
burguesia e os trabalhadores, onde o processo de produção perde sua importância e as
transformações do consumo como socialização das relações sociais levam a uma
sociedade individualista ocasionando assim a desejos pontuais e locais dos movimentos
sociais, ou seja, não é comum uma articulação de movimentos com interesses
divergentes, atualmente a resolução pontual dos problemas já basta para que cesse um
movimento insurgente.
Com essa nova dinâmica dos movimentos sociais o território passa a ter uma
nova ressignificação onde é usado para explicar ações locais, assim Gohn diz:
Sendo assim, na ótica geográfica o território passa a ter uma nova
ressignificação onde é usado para explicar ações locais. Território
passa a se articular com a questão dos direitos e a disputas por bens
econômicos. Território passa a ser visto agora como um ativo
sociofinanceiro, porque é um conjunto de condições, predominando o

524
tipo de relações sociais e produtivas que são desenvolvidas onde ele se
localiza. (GOHN, 2010, p. 44)

A discursão apresentada anteriormente é colocada para explicitar o que são os


movimentos sociais urbanos e a nova abordagem sobre o território que nos movimentos
sociais é usado para explicar ações locais.
Os movimentos sociais urbanos estão ligados diretamente ao espaço urbano e
como os diferentes agentes modeladores, em acordo com Corrêa (2007), podem alterar a
organização espacial urbana da cidade, principalmente em relação às classes sociais que
estão presentes nesse espaço e se organizam em movimentos a partir de seus interesses.
No caso da Ilha do Governador, os interesses acabam inflamando os
individualismos dos agentes podendo observar uma demanda local e pontual, sem se
importar com o benefício ou não da construção do terminal, fazendo assim com que o
bairro da Ribeira, seja o principal protagonista e não a Ilha do Governador como um
todo.

3.1 MOVIMENTOS EM REDE

Para entender movimentos sociais atuais devemos analisar a importância que o


mundo globalizado, principalmente com a utilização da internet, reconfiguraram uma
nova maneira de ter acesso a informações e articular mobilizando as pessoas.
De acordo com Diaz (2010) com os avanços das técnicas de engenharia na parte
de eletricidade e sua fluidez de distribuição à longas distâncias, além claro do advento
das telecomunicações, as distâncias se reduzem pelo fato da instantaneidade das
informações.
Com isso, o conceito de rede é de fundamental importância para entender a atual
dinâmica das mobilizações, onde de acordo com Diaz (2010) o conceito de rede se
aplica a circulação e comunicação se adaptando as variações do espaço com o tempo de
maneira que processos de múltiplas ordens como integração produtiva, de mercados,
financeira e de informação sejam feitas de maneira simultânea.
Na Ilha do Governador existiam dois tipos de mobilizações sociais, uma a favor
e outra contra. Gohn (2010) usa a visão de Toro, onde este aborda que mobilização
social é o envolvimento ativo do cidadão, da organização social, da empresa nos rumos
e acontecimentos de nossa sociedade, onde deve ser uma ferramenta de ‘‘ convocar
vontades’’.
O conceito de redes se articula com o ato de ‘‘convocar vontades’’ quando ainda
de acordo com Toro (2010) é necessário para desenvolver processos de comunicações
diretas , atuar em redes comunicativas, formular e difundir mensagens claras, para criar
imaginários sociais que despertem os interesses das pessoas para se engajar nas
mobilizações, sendo assim, criar fóruns e grupos nas redes sociais, se faz necessário no
início de qualquer mobilização.
No caso da Ilha do Governador, as redes de informações foram de suma
importância para os dois movimentos, tanto nos jornais, quanto na internet, as vantagens
e desvantagens da potencial construção do TPP fizeram com que os movimentos
disseminassem informações nos veículos de informações justamente para capturar as

525
vontades e aumentar o número de simpatizantes.
No caso, não podemos confundir movimentos sociais que seria o resultado com
mobilizações sociais, que são o início da captura de vontades, se essa captura falhar, os
movimentos não serão formados. O que há na realidade são duas fases distintas, a
primeira de mobilização e a segunda dos movimentos propriamente ditos, o movimento
é o resultado e não o foco inicial da ação coletiva.
Então com isso podemos perceber que o movimento a favor do terminal ficou na
fase de mobilização, ou seja, teve a propaganda, a divulgação das ideias, mas a
população da Ilha do Governador não ingressou na causa. Já a mobilização contra a
construção do TPP se tornou um movimento social devido a articulação de pessoas e
agentes com interesses em comum, moradores do Bairro da Ribeira e a possível
desvalorização do bairro.

4 MOBILIZAÇÃO A FAVOR – SIM ao TPP

Com os trabalhos de campo e entrevistas com diversos agentes, descobrimos


peculiaridades sobre os movimentos. No movimento a favor, é perceptível o apoio
massivo das associações de moradores para a construção do terminal. São 10
associações ao todo que assinaram um manifesto para a implantação do TPP, dentre elas
estão as associações de moradores da Colônia Z-10, Dendê, Moneró, Vila Joaniza,
Freguesia, Boogie-Woogie, Tubiacanga, Guarabu, Zumbi e Bancários.
O movimento fez uso das vantagens para ganhar força e adesão dos moradores
da Ilha do Governador. A principal é a criação de empregos com a construção do
Terminal Pesqueiro, que foi difundido através de panfletos e propagandas.
Outas vantagens:
- melhoria da qualidade do pescado através do serviço de inspeção federal (SIF), de
vigilância sanitária e do cumprimento de toda a legislação pertinente;
- barateamento do pescado para as famílias, garantido pelas câmaras frigoríficas para
estocagem e regulação da oferta, assim como a abolição da longa e precária cadeia de
intermediação na comercialização atualmente existente;
- criação de atração turística, através de um restaurante panorâmico e visitas guiadas;
- criação de uma escola técnica especializada em atividades naval, turística, pesqueira,
aeronáutica, petróleo e gás;
- melhoria no transporte rodoviário, com duplicação de pista e retornos, que deixariam o
trânsito da ilha mais fluido.
Essas informações foram retiradas de uma audiência pública realizada em 24 de
agosto de 2010, onde o representante do Ministério da Pesca e Aquicultura no Rio de
Janeiro apresentou aos vereadores o projeto de construção do TPP e suas vantagens para
a Ilha do Governador. São transformações que mudariam a organização espacial da Ilha
do Governador, principalmente o bairro que fosse receber o terminal pesqueiro, no caso
a Ribeira.
Na Ilha do Governador, não foi vista uma adesão forte dos moradores ao
movimento a favor, pois a população estava desacreditada em relação às propostas e
suas aplicações, ou seja, ficou a pergunta: essas propostas iriam sair realmente do papel

526
após a construção do terminal?

Figura 3- Reportagem a favor do terminal - Fonte: Portal Ilha Carioca. Disponível em


http://www.ilhacarioca.com.br/moradores-contrarios-ao-terminal-pesqueiro-preparam-protestam-
no-aeroporto-do-galeao-nesta-sexta/.Acesso em 02 de outubro 2012.

Além disso, o movimento contra a construção do terminal utilizou argumentos


embasados em estudos empíricos e em cima de leis que colocavam em cheque a
construção do TPP. O movimento a favor não mostrou estudos contundentes sobre os
impactos ambientais que a construção geraria tentando assim, ganhar forças através de
promessas e absorvendo as associações de bairros o que visivelmente não deu certo,
pois a construção foi embargada e posteriormente proibida.

4.1 MOVIMENTO TERMINAL PESQUEIRO NA ILHA NÃO

O movimento contra a construção do terminal se embasou em leis e estudos de


impactos ambientais e urbanos para impedirem a construção do TPP na Ribeira.
Articulou-se entre moradores da Ilha, principalmente da Ribeira, e alguns comerciantes
locais que deram apoio financeiro para divulgação do movimento. O movimento, de
acordo com integrantes, contou com mais de trezentas pessoas, mas em média de 40
pessoas realmente engajadas com a burocracia e o estudo da construção do terminal.
O principal argumento utilizado é o da violação do zoneamento urbano
municipal. Como já esclarecemos acima, a Ribeira é uma ZR-3, e apesar da área de
construção em questão ser situada no centro do bairro, de acordo com o decreto
municipal nº. 322/76, não é permitida a atividade própria de um terminal pesqueiro.
Assim, só poderia ser instalado o terminal, se fosse modificado o zoneamento vigente
na Ribeira.

527
O movimento pesquisou a fundo sobre impactos da possível construção do
terminal e houve estudos em relação a possível existência de risco aéreo, não só ao
Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro – Tom Jobim, mas também ao Aeroporto
Santos Dumont. De acordo com parecer técnico do Ministério da Aeronáutica [CNPAA]
– doc. 3 – caso fosse construído o TPP, haveria risco de segurança aeroportuária, pois é
uma área conhecida internacionalmente por ser um local de atração de avifauna,
inclusive aves migratórias que periodicamente buscam abrigo e alimentação no
manguezal do Rio Jequiá, protegido como unidade de conservação na forma de uma
APARU – Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana.
O local é também rota dos voos cotidianos dos aeroportos do Galeão e Santos
Dumont, cujo risco aumentaria significativamente com a realização de eventos
internacionais na cidade. Além disso, de acordo com o Ministério da Aeronáutica, a
atividade pesqueira é extremamente atrativa de aves, tanto nas embarcações de
transporte de pescado, quanto nas instalações de recebimento, manuseio, triagem e nos
processos de descarte do refugo da produção, criando riscos assim nas rotas de voos.
O impacto viário também foi alvo de estudos, pois a Ilha do Governador só
possui a saída pela ponte nova e a velha que ainda convergem ao mesmo lugar, à saída
da Ilha, que dá acesso ou à Linha Vermelha ou à Avenida Brasil. Os moradores da Ilha
do Governador sofrem diariamente com engarrafamentos nessa região e em um estudo
realizado por integrantes do movimento contra o terminal, observando outros terminais
como o de Santos, haveria um adicional em uma média de quinhentas carretas por dia.
O espaço viário da área não conseguiria comportar esse número de carretas, o que
congestionaria ainda mais o trânsito.
É perceptível que o movimento contra o terminal pesqueiro se organizou e teve
argumentos mais consistentes que o movimento a favor. Pesquisaram sobre leis de
zoneamento urbano além de pesquisas ambientais e de tráfego viário e aéreo. O que foi
de fundamental importância para impedir a construção do TPP.

528
Figura 4 – Movimento ‘‘Na Ilha Não’’ - Fonte: Portal Ilha Carioca. Disponível em
http://www.ilhacarioca.com.br/moradores-contrarios-ao-terminal-pesqueiro-preparam-protestam-
no-aeroporto-do-galeao-nesta-sexta/. Acesso em 02 de outubro 2012.

PARA NÃO CONCLUIR


Com os trabalhos de campo e entrevistas com os agentes, além de pesquisas
através de jornais e revistas, percebemos que os movimentos se articularam por
interesses de classes no caso da Ilha do Governador.
No movimento contra o terminal, é visível que há uma classe média moradora da
Ribeira. Haveria uma desvalorização dos imóveis com a presença do terminal, pois
geraria engarrafamentos, além de que é constatado, devido estudos em outros terminais,
a presença da prostituição, em virtude dos caminhoneiros que dormiriam na região.
Outro fator de desvalorização é o barulho que os caminhões fariam passando noite e dia
pela Ribeira, além das máquinas utilizadas no TPP, o que geraria um desconforto aos
moradores da área.
No caso do movimento a favor, há um interesse do Governo Federal em que o
projeto fosse aprovado. O governo pensou em uma mudança do zoneamento urbano na
Ribeira e utilizou pressões em órgãos ambientais para que o projeto constasse que não
geraria problemas ambientais. Mas as pesquisas feitas pelo movimento contra o
terminal rechaçou qualquer tentativa do Governo Federal tentar construir o TPP na
Ribeira.
Os representantes das associações de moradores, em parte, possuem cargos
políticos, o que torna duvidoso qualquer apoio que o terminal receba pelas associações.
De acordo com alguns entrevistados, foram oferecidos cargos a alguns representantes de

529
associações em troca de apoio caso conseguissem construir o TPP na ilha.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Decreto Federal nº 5.231. Disponível em


http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5231.htm. Acesso
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CORRÊA, Roberto L. Região e Organização Espacial. 8ª. Edição. São Paulo: Editora
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GOHN, Maria da Glória. Teoria dos Movimentos Sociais: Paradigmas Clássicos e


Contemporâneos. 9º Edição. São Paulo: Editora Loyola, 2011. 391 p.

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LAMEGO, Alberto Ribeiro. O Homem e a Guanabara. 2ª. Edição. Rio de Janeiro:


Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Conselho Nacional de Geografia. 1964.
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MIZIBUTI, Satie. Uma Releitura do Movimento Associativo de Bairro In: SANTOS,


M.; BECKER, Becker M. (Org.) Território, Territórios: Ensaios sobre
Ordenamento Territorial. 3ª. Edição. Rio de Janeiro: Editora Lamparina, 2011. 231-
245 pp.

530
Movimento em Rede – Uma proposta de inclusão digital para a ação social
emancipadora

Rubens Ahyrton Ragone Martins1

1
Instituto Federal de Minas Gerais, IFMG, Campus Congonhas –
rubens.ragone@ifmg.edu.br

Resumo
Para que as organizações comunitárias se transformem e estabeleçam linhas de ações
em um contexto de mudanças estruturais, segundo a abordagem de Redes de
Movimentos Sociais, presume-se a necessidade da interação, principalmente
informacional, entre essas organizações, no sentido de uni-las em torno de demandas
mais abrangentes, quebrando a visão limitada de reivindicações circunscritas às
necessidades locais. A organização em redes, para a troca de informações, articulação
institucional e política e para a realização de reivindicações e de projetos comuns,
aumenta o potencial dos Movimentos Sociais Comunitários, de forma que estes possam
se tornar efetivamente transformadores.
Este trabalho tem como objetivo apresentar uma proposta de projeto que visa
proporcionar um ambiente de inclusão digital com foco na utilização de ferramentas na
internet que permitem criar situações de relações mais intensas entre os atores
envolvidos em determinada realidade, possibilitando a criação de redes de relações que
tenderão a intensificar os fluxos informacionais e as ações coletivas.
Palavras-chave: Redes sociais; Redes de movimentos sociais; Inclusão digital;
Tecnologias da informação e comunicação (TIC); Poder popular.

1. Introdução - A crise da democracia representativa


O princípio da política é a vontade. Quanto mais unilateral, isto é,
quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na
onipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais
e espirituais da vontade e, consequentemente tanto mais é incapaz de
descobrir os males sociais (KARL MARX).
O modelo de democracia representativa, proposto pelos federalistas na constituição do
Estados Unidos da América, está vivenciando um momento de crise e questionamentos
de seu caráter realmente democrático. O que esse modelo de “democracia” propõe é que
a desigualdade e a exploração socioeconômicas coexistam com a liberdade e as
igualdades cívicas, e o alcance da cidadania é fortemente limitado. A “democracia”
estaria, então, confinada a uma “esfera política” formalmente separada (WOOD, 2003,
p. 174). A democracia capitalista permanece nos limites da formalidade, da aparência, e
é incapaz de atingir as bases materiais que produzem a desigualdade na sociedade.

531
Ao mesmo tempo em que permitiu, à população, a extensão da cidadania, restringiu
seus poderes. A democracia capitalista possui uma igualdade formal e acaba se tornando
uma ditadura que se manifesta nos mecanismos de exclusão, restrições e exceções
(WOOD, 2003). Em um modelo que tem como principal lastro a representatividade, a
participação dos cidadãos tem muito pouco, ou quase nenhum, incentivo. Diferente da
concepção grega de democracia, a “moderna democracia” restringe a participação e os
direitos políticos e civis. Essa redefinição, que diluiu o significado de democracia,
ocorreu, segundo Wood (2003) na fundação dos Estados Unidos e foi enunciado pelo
advogado americano Alexander Hamilton, que partiu da premissa de que a “multidão
trabalhadora” deve buscar em seus “superiores sociais” a sua voz política. Na visão
federalista, esse era o meio de evitar ou contornar “parcialmente” a real democracia,
criando uma cidadania passiva.
(...), a democracia capitalista ou liberal permitiria a extensão da
cidadania mediante a restrição de seus poderes. (...) foi capaz de
imaginar um corpo abrangente, mas grandemente passivo, de cidadãos
composto pela elite e pela multidão, embora sua cidadania tivesse
alcance limitado (WOOD, 2003, p.180).
Segundo Fishkin (2002, p. 21-23) os federalistas basearam-se na metáfora do filtro,
considerando que as instituições representativas deveriam refinar a opinião pública
através do processo de deliberação. Os antifederalistas, que se opunham ao ‘filtro de
elite’ (‘elite filtering’), acreditavam que “uma representação justa e igual é aquela onde
os interesses, sentimentos, opiniões e visões do povo são coletados da mesma maneira
como se o povo todo tivesse se reunido para a consulta” (Storing apud FISHKIN, 2002,
p.23). Os antifederalistas defendiam ações que possibilitassem o aumento da
proximidade (closeness) entre os representantes e os representados.
“Os antifederalistas estavam visivelmente assustados com a
possibilidade de que facções conduzidas por atitudes e interesses
passionais adversos aos direitos dos demais pudessem agir
erroneamente.” (FISHKIN, 2002, p. 23)
A democracia representativa americana, que serviu de modelo para muitos países e foi
imposta em outros, não incentiva o exercício do poder político, mas a renúncia desse
poder, transferido-o para outros, ou seja, a sua alienação. A alienação política é um
atributo da democracia representativa. Alienação que representa a perda do homem, de
sua transformação em objeto, e cujo pensamento marxista protesta contrariamente.
Marx está fundamentalmente interessado na emancipação do homem
como indivíduo, na superação da alienação, na restauração da
capacidade dele para relacionar-se inteiramente com seus semelhantes
e com a natureza (FROMM, 1983, p. 16).
A transferência do poder do povo para os representantes constitui a própria essência da
democracia representativa, favorecendo as classes proprietárias. A relação entre a
representação e a alienação do poder leva, inevitavelmente à uma estrutura de poder
com poucos e poderosos centros de decisões.
O Segundo Wood (2003, p.180)o desligamento cada vez maior dos indivíduos das
“obrigações e identidades costumeiras, corporativas, normativas e comunitárias” foi

532
uma das marcas da ascensão do capitalismo.
“A desvalorização da cidadania decorrente das relações sociais
capitalistas é atributo essencial da democracia moderna” (WOOD,
2003, p.183).
O modelo de democracia representativa permite e facilita a formação de um hiato entre
o ‘bem público’ e a vontade dos cidadãos, mudando o foco da política da localidade
para o centro federal, criando “um esvaziamento completo de todo conteúdo social do
conceito de democracia” (WOOD, 2003, p. 187-190). Em sua forma pura, a democracia
é um ideal que o capital não poderá jamais realizar. A democracia “pura” pressupõe a
igualdade, a participação plena de todos no poder, ou seja, uma simetria social efetiva
que deve envolver os aspectos dos direitos políticos na constituição de um governo
efetivamente resultante da vontade popular. Tal democracia se expressa na eliminação
dos privilégios e na ampliação da participação popular nas diferentes esferas da vida
política e social.
Um novo pensamento crítico vai se articulando em torno da questão democrática. É
urgente e necessária uma profunda crítica à democracia liberal (capitalista), buscando
maior aprofundamento das bases democráticas. Neste contexto, o poder popular,
utilizando de ferramentas e métodos que permitam uma democracia mais direta,
apresenta-se como devolução das capacidades de todos os cidadãos em contribuir para o
seu destino. A iniciativa, a criatividade e o poder decisório devem ser experimentados
por toda a sociedade, criando condições para a distribuição de um conhecimento social
formador e legitimador de uma nova realidade participativa, permitindo que a expansão
da democracia se dê a partir da localidade, de forma emergente.

2. Movimentos Sociais
Mesmo aqueles que sustentavam o modelo econômico dependente e concentrador
poderiam se credenciar como interlocutores da transição, desde que manifestassem
apoio à redemocratização, uma conversa fácil, posto o esgotamento político-
econômico dos governos militares e a pressão empreendida pela Comissão Trilateral
em favor da abertura. (...) Este deslocamento conferiu legitimidade às frações das
classes dominantes que aderiram as ditaduras e que se ‘convenceram’ de que era hora
de colocar um fim aos governos militares (exatamente para que os seus objetivos
fossem preservados) (LEHER, 2000, p. 159).
Logo ao final da ditadura implantada a partir do golpe civil e militar de
1964 uma fração dos grupos dominantes tomaram para si a condução do processo de
redemocratização, desviando os movimentos sociais que foram decisivos para o
desgaste e enfraquecimento da ditadura militar - como os movimentos sindicais,
urbanos, camponeses, estudantis etc. – para “um lugar secundário”. Ao mesmo tempo a
ideologia neoliberal propagava sua crença antiestatal.
As classes sociais perdem espaço e os conflitos e lutas de classe são
dissimulados, pois, segundo Leher (2000, p. 160), “as relações sociais de produção são
abstraídas, a exemplo da noção ressignificada de sociedade civil”. A crença no fim da
“centralidade do trabalho na vida social” e a desvinculação com a dimensão econômico-

533
social são características dos novos movimentos sociais, que, ao contrário dos
movimentos sociais tradicionais – que possuíam um caráter revolucionário em relação à
transformação social, “são pragmáticos e pouco ideológicos”, buscando sempre
“mudanças pontuais, concretas, nas políticas de governo (...), não aspirando às
mudanças capazes de levar a ruptura” (LEHER, 2000, p. 161). Leher (2000) considera,
pois, que a mudança dada ao significado de sociedade civil atrelada aos novos
movimentos sociais “apaga as diferenças de classe, as contradições”, auxiliando para
tornar menos graves as tensões sociais e, conseqüentemente, as lutas de classe.
Após a abertura política nos anos 80, as organizações ligadas ao movimento
social, no Brasil, mostraram ter um alcance político limitado, possivelmente pelo fato de
haver, segundo SCHERER-WARREN uma “aparente fragmentação destes grupos de
pressão específica, demonstrando dificuldade na formação de alianças para atuar de
acordo com as regras do jogo democrático” (1996, p. 115). A partir da segunda metade
da década de 80, muitas organizações se reestruturaram e passaram a atuar em conjunto
com outras organizações, formando redes mais amplas de pressão e resistência,
compreendendo o significado e o alcance da ação política propiciados a partir de uma
rede de movimentos.
A partir da década de 90, configura-se, então, uma nova modalidade de
organização dos movimentos sociais. A crise vivida nos movimentos sociais, que levou
ao imobilismo das massas, e as transformações nas realidades internas e externas dos
países latino-americanos tiveram grandes repercussões sobre a prática efetiva dos
movimentos sociais. Preocupados em buscar significados e alcances políticos para suas
ações coletivas, os movimentos sociais lançam mão de práticas políticas de ações
localizadas e redes de movimentos. As organizações sociais deixam de ser analisadas
como organizações específicas e fragmentadas e passam a ser compreendidas através do
“movimento real que ocorre na articulação destas organizações, nas redes de
movimentos” (SCHERER-WARREN, 1996, p. 21-23). As redes de movimentos sociais
vão se formando através de articulações entre organizações e atores políticos, em que os
interesses particulares são deixados de lado e a luta se concentra em tentar intervir na
formação das políticas gerais e na transformação social.
Esta nova cultura tem obrigado muitos movimentos locais e seus
lideres a alargarem sua visão cotidiana original e a descartarem os
remanescentes de seu sectarismo restritivo, se ramificarem em várias
direções e juntarem forças em frentes unificadas de ação (Fals-Borda
apud SCHERER-WARREN, 1996, p. 22).

3. REDES
A primeira e mais óbvia propriedade de qualquer rede é a sua não-linearidade – ela
se estende em todas as direções. Desse modo, as relações num padrão de rede são
relações não-lineares. Em particular, uma influência, ou mensagem, pode viajar ao
longo de um caminho cíclico, que poderá se tornar um laço de realimentação. (Capra,
2001. P. 78)

534
A criação de redes sociais proporciona a formação de redes de conhecimento que
alimentam e dão sentido às visões e estratégias de ação e direção dos atores. Uma rede
social pode ser um ambiente propício para o compartilhamento da informação e,
conseqüentemente, para a criação e proliferação do conhecimento. O fluxo de
informações contínuo e desimpedido é peça fundamental para a formação e o sucesso de
uma rede social e para a aprimoração do conhecimento de seus membros. A distribuição
social do conhecimento se dá através de redes sociotécnicas, mediadas por TIC ou não,
que contribuem para a emergência de uma nova ordem social, como o poder popular.
As redes, além de incluir as organizações formais, conectam também
“núcleos de indivíduos e grupos”, que formariam uma rede de
relações “informais”, todos se conectando em uma área mais ampla de
participantes. “Nas redes sociais, há valorização dos elos informais e
das relações, em detrimento das estruturas hierárquicas”
(MARTELETO, 2001a, p. 72).
As redes sociais surgem, então, como forma de organização política e estratégica,
incentivando ações conjuntas através de intercâmbio de experiências, troca de
informações, conhecimentos e articulações políticas.
O que é novo no trabalho em redes de conexões é a sua promessa
como uma forma global de organização com raízes na participação
individual. Uma forma que reconhece a independência enquanto apóia
a interdependência. O trabalho em redes de conexões pode conduzir a
uma perspectiva global baseada na experiência pessoal (Lipnack e
Stamps, apud MARTELETO, 2001a, p.72).
As articulações entre organizações e atores políticos e, conseqüentemente, a criação de
redes, potencializam os movimentos sociais e a população em geral a retomarem a
característica revolucionária de se constituírem em espaços de construção de uma nova
realidade. Através das redes, as pessoas estarão mais “enredadas” com questões que
atingem diretamente suas vidas, motivando, assim, um conjunto de formas de
participação de atores se interligarem e integrarem redes. Dessa forma, as redes sociais
contribuem para a construção de uma democracia efetivamente participativa, tanto no
contexto da formação quanto na manutenção dessa nova realidade.
Uma rede pode ser definida de várias formas. Regina Marteleto limita a definição de
rede a um “sistema de nodos e elos; uma estrutura sem fronteiras; uma comunidade não-
geográfica; um sistema de apoio ou um sistema físico que se pareça com uma árvore ou
uma rede” (MARTELETO, 2001a, p.72), para que se melhor entenda a definição de
Redes Sociais.
A Rede Social, derivando desse conceito, passa a representar um
conjunto de participantes autônomos, unindo idéias e recursos em
torno de valores e interesses compartilhados (MARTELETO, 2001a,
p.72).
Do ponto de vista informacional, as teias sociais e estruturais dessas
redes revelam as mediações cognitivas e comunicacionais presentes
nas ações, representações e interações dos agentes (MARTELETO,
2001b, p. 1).

535
As redes sociais são sistemas organizacionais que têm a capacidade de reunir indivíduos
e, ou instituições de forma democrática e participativa em torno de objetivos comuns,
através de relações horizontais, interconexas, formando uma estrutura flexível
sustentada pela vontade e afinidade de seus integrantes, estimulando iniciativas de
compartilhamento de idéias, informações, conhecimentos, intercâmbio de experiências e
articulações políticas visando ações conjuntas.
As redes sociais possibilitam a ampliação de novos atores, captando a dimensão da
experiência dos excluídos do debate, catalisando fluxos comunicativos dos setores mais
periféricos da sociedade agindo como “ativos interlocutores para detectar problemas de
forma convincente nesta ou naquela esfera, ou formular demandas e projetos específicos
a serem enviados para as arenas políticas institucionais” (MAIA, 2002, p. 54). A não-
linearidade, ou seja, a capacidade de se estender por todas as direções e a existência de
“laços de realimentação”, que lhe dão capacidade de auto-regulação, são algumas
propriedades principais das redes. Esta auto-regulação possibilita, através da
informação, uma correção do rumo tomado, reportando ao conceito de informação
como um redutor de incertezas.
A estrutura mais ou menos democrática de uma rede social é mensurada pela liberdade
de circulação de informações entre seus membros e, portanto, pela ausência de
manipulação, censuras e controles na circulação da informação.
A articulação através de redes permite uma estrutura organizacional capaz de atender às
necessidades de descentralização, conectividade e flexibilidade desejada por muitos
atores envolvidos em articulação e atuação no movimento social, apresentando-se como
uma solução viável aos cidadãos ativos e conscientes das necessidades de transformação
de sua realidade. A realidade que se pretende estabelecer pode firmar-se através da
articulação de redes, que poderão ser capazes de gerar ações e resultados sociais. É a
possibilidade concreta de atuações a partir do micro com interferência no macro.
Relações mais intensas entre os atores envolvidos em determinada realidade
possibilitarão a criação de redes de relações que tenderão a intensificar os fluxos
informacionais. Poderia trazer também uma noção de comunidades de prática280,
reportando à aprendizagem como um processo pelo qual os indivíduos formam as suas
identidades em relação às identidades sociais do grupo, em um processo de re-
socialização.
No centro desse argumento está uma caracterização da aprendizagem
como o processo de engajamento na prática e, assim, de alguém se
tornar membro de um grupo social de praticantes. (...) é no nível
comunitário, nível em que a prática é compartilhada, que as
identidades individuais são, principalmente, forjadas. (Paul Duguid
apud FLEURY, 2001, p.65-66).
O trabalho em comunidades de prática, mediadas ou não pelas TIC e quando bem
entendidas e promovidas, pode proporcionar melhorias efetivas, agregando valor de
várias formas relevantes:

280
- Grupos que se formam em torno da prática e que, no processo, desenvolvem conhecimento coletivo e
distribuído.

536
 Orientando a estratégia;
 Iniciando novas práticas;
 Solucionando problemas com rapidez;
 Transferindo experiências;
 Desenvolvendo habilidades;
 Ajudando no recrutamento e retenção de atores.
A possibilidade de explorar problemas e situações em comum em um ambiente de
liberdade, criatividade e respeito leva inevitavelmente à uma solução colaborativa de
problemas. A prática compartilhada ao longo do tempo habilita os participantes
desenvolverem uma perspectiva comum e entenderem seu trabalho e como seu trabalho
se ajusta ao ambiente circundante, unindo-os, assim, em uma comunidade informal
(FLEURY, 2001, p. 67). Acrescentar valor aos fluxos de informação a que acede e tirar
partido deles para adicionar valor aos processos em que intervém poderia dar
capacidade aos atores sociais de intervir de forma mais eficaz e estratégica em suas
realidades.
A organização em redes sociais permitiria, com o auxilio das TIC, uma atuação a partir
da localidade, formando um “tecido social que resulta dos fios invisíveis de
comunicação entre os homens”. Este organismo social é resultante da união, através de
interesses comuns, de atores por meio da troca de informações e conhecimentos a qual
exige a interconexão de uns aos outros, conduzindo a um pensar e a um agir socialmente
(EGLER, 2007, p.8).
Disseminadas pelo tecido social, essas redes cívicas, são agentes
fundamentais para promover a ‘politização de novas questões’,
modificando formas de comunicação, representação e interpretação de
problemas na sociedade. (MAIA, 2002, p. 53)
Novas formas de agregação social, mediadas por tecnologias de informação e
comunicação, conduzem para formas alternativas de constituição dos organismos
sociais através de redes de natureza auto-organizada. A auto-organização reforça a
capacidade coletiva de agir, pois permite, através de redes, a saída do individual para o
coletivo.
A auto-organização permite a resolução de problemas com o auxílio de uma multidão
de elementos relativamente simples. É uma característica de sistemas emergentes. A
partir de rotinas de nível baixo, usando regras locais, entre agentes que se interagem,
emerge uma forma coerente, criando “um comportamento de nível mais alto, apropriado
para o ambiente”.
São sistemas bottom-up, e não, top-down. Pegam seus conhecimentos
a partir de baixo. Em uma linguagem mais técnica, são complexos
sistemas adaptativos que mostram comportamento emergente. Neles,
os agentes que residem em uma escala começam a produzir
comportamento que reside em uma escala acima deles: formigas criam
colônias; cidadãos criam comunidades; um software simples de
reconhecimento de padrões aprende como recomendar novos livros. O

537
movimento das regras de nível baixo para a sofisticação do nível mais
alto é o que chamamos de emergência (JOHNSON, 2003, p. 14).
Fritjov Capra (2001) demonstra como a circulação de informação de forma não-linear é
capaz de produzir um processo circular de aprendizagem crescente que leva, como
conseqüência, à reorganização dos próprios elementos do sistema:
Devido ao fato de que as redes de comunicação poderem gerar laços
de realimentação, elas podem adquirir a capacidade de regular a si
mesmas. Por exemplo, uma comunidade que mantém uma rede ativa
de comunicação aprenderá com seus erros, pois as conseqüências de
um erro se espalharão por toda a rede e retornarão para a fonte ao
longo de laços de realimentação. Desse modo, a comunidade pode
corrigir seus erros, regular a si mesma e organizar a si mesma.
Realmente, a auto-organização emergiu talvez como a concepção
central da visão sistêmica da vida, e, assim como as concepções de
realimentação e auto-regulação, está estreitamente ligada a redes
(CAPRA, 2001. P. 78)
Capra parte de um aspecto morfológico (a sua não-linearidade) para chegar a uma
propriedade organizacional da rede: sua capacidade de auto-organização. O que se
destaca aqui, justamente, é o que as definições formais de rede não conseguem
demonstrar: o conjunto de nós-e-linhas da rede produz organização e é, na verdade, uma
forma de organização.
A ordem é produzida por uma dinâmica de auto-ajuste recíproco entre cada um dos
elementos que compõem a rede, em função de laços de realimentação. Os elementos da
organização-rede se ajustam uns aos outros, em função de seus erros e acertos, até o
estabelecimento de um modo coordenado de funcionamento. É um processo de intenso
movimento e rearranjo. Não há um controle central em tal dinâmica, isto é, não é um ou
outro dos elementos que comanda o grupo. Não. A organização emerge das relações
entre os elementos. Trata-se, portanto, de um processo de auto-organização. Nunca o
termo "coordenação" foi tão bem empregado. Na rede, a ordem é uma co-produção de
todos.
Redes permitem a formação de um organismo capaz de definir uma ação política em
defesa de interesses através da união dos atores, e toleram uma ação coordenada, na
busca de uma forma autônoma de ação social. Da perspectiva de organizações sociais,
educacionais e culturais locais, agências públicas, ativistas comunitários e políticos, as
redes urbanas constituem uma versão moderna das ágoras, uma nova maneira de
fortalecer os relacionamentos dentro das comunidades, um mecanismo de discussão e
organização.

4. TIC e poder popular

Capaz de criar condições institucionais que impulsionam a consolidação de uma


realidade de democracia mais direta, as redes sociais, intermediadas pelas TIC
(Tecnologias da Informação e Comunicação) ou não, põe em vigor uma relação entre
forças baseadas em critérios impessoais, objetivos e universais no acesso público a bens

538
e serviços, a informações e conhecimentos e possui grande potencial educativo, que
conduz a ganhos em várias dimensões da cidadania.
Os avanços nos dispositivos de interação entre o homem e Tecnologias da Informação e
Comunicação (TIC), tornam o processo comunicativo mais próximo da discussão face a
face. As TIC possuem a capacidade de revolucionar o modo pelo qual as pessoas, em
pequenos ou grande grupos, obtém informações e conhecimentos, interagem e se
comunicam. O advento das novas tecnologias redefine as possibilidades de
participação, ampliando vertiginosamente as possibilidades de comunicação e de
formação de uma esfera pública virtual, para a ação coletiva (FISHKIN, 2002, p. 17;
EGLER, 2007, p. 71). Possibilitando, assim, a criação de uma opinião pública mais
atenta, informada e comprometida, que expresse o real interesse da população em
intervir na criação de sua realidade, permitindo a emergência de uma opinião pública
deliberativa.
O desafio principal é valorizar e dividir a inteligência distribuída em
todas as partes das comunidades conectadas e explorar os efeitos
sinergéticos que agora podem ser alcançados em tempo real. (FREY,
2002, p. 149)
As redes mediadas pelas TIC ampliam os espaços de troca, criam uma nova praça
comunitária e, de certo modo, inventam um novo tipo de cidade. Desenvolvem uma
perspectiva ampla, crítica e voltada para a ação sobre a realidade tecnológica,
econômica, social e cultural que está acontecendo à nossa volta neste instante,
reconstruindo os relacionamentos entre pessoas, informações e conhecimentos.
As TICs se constituem em dispositivos tecnológicos, possibilitando o
estabelecimento de espaços de mediação entre atores públicos e
privados. A tecnologia amplia a capacidade de participação social;
cria nova escala de associação; articula as redes sociais; possibilita
novas formas de transformação de organização política e de ação
coletiva; torna possíveis novas formas de conexão entre Estado e redes
sociais, resultando numa forma alternativa de constituição do Nós e de
sua totalidade. Tem por pressuposto a ação coletiva e direta dos seus
membros, ou seja, os atores se unem para potencializar as suas
possibilidades de ação para o enfrentamento de problemas urbanos. –
(EGLER, 2007, p. 83)
A mediação através de Tecnologias da Informação e Comunicação amplia as
possibilidades de colocar interligadas as ações dos atores políticos, produzindo a
mobilização para a criação de um sentido comum no processo de transformação social.
As TICs podem ser catalisadoras não apenas da mudança de enfoque
dos serviços públicos, em direção a um modelo mais dirigido ao povo,
com maior qualidade, mais personalizado, holístico, efetivo e criativo,
mas oferecem também a possibilidade de sustentar novos modos de
criação de redes sociais e políticas e novas formas de participação
democrática. (FREY, 2002, p.147)
Tecnologias da Informação e Comunicação se utilizadas apropriadamente possibilitam a
revigoração das comunidades locais, o fortalecimento dos laços sociais e de

539
solidariedade, e o aumento da participação política em processos de tomada de decisão.
Para atingir esses objetivos Frey (2002, p. 149) considera fundamental a influência do
papel desempenhado pelos agentes públicos na “regulagem e influência do emergente
ciberespaço político” e que a implementação estratégica de uso das TIC sob uma
perspectiva emancipatória possui essencialmente cinco campos de ação potenciais:
1. Criação de pontos de acesso público à internet e quiosques
interativos.
2. Inclusão digital – campanhas de ensino da linguagem digital.
3. Apoio às aplicações da cidadania, fomentando uma esfera pública
virtual através das possibilidades da internet.
4. Criação de comunidades virtuais e locais.
5. Alocação de poder aos bairros.
A internet pode proporcionar o meio de interação ao qual as pessoas possam trocar
informações, consultar e debater, de maneira direta, contextualizada, rápida e sem
obstáculos burocráticos, possibilitando a criação de redes cívicas.
A rede internet, e todas as TIC correlatas, possuem possibilidades democráticas,
compreendendo segundo Gomes (apud MAIA, 2002, p. 46) três fenômenos interligados:
 É um complexo de conteúdos;
 É um ambiente de interconexão;
 É um sistema de interações.

...., a internet mostra-se como um importante lugar, uma arena


convencional, na qual o espaço se desdobra e novas conversações e
discussões políticas podem seguir seu curso. (MAIA, 2002, p. 47)
“A intranet local tem o importante papel de dar apoio à rede cívica
“real” e mostrar o potencial das TICs em contribuir na luta contra a
pobreza e no fortalecimento dos laços sociais de bairro.” (FREY,
2002, p. 158)
A internet minimiza os custos da participação política e pode proporcionar ferramentas
de colaboração e interação social através do qual a população, movimentos sociais e
poder público podem trocar informações e conhecimentos, consultar e debater, de
maneira direta, simétrica, contextualizada, rápida e sem estorvos burocráticos.
As Associações comunitárias utilizando de ferramentas disponíveis na internet podem,
através de suas redes sociais, coordenarem a ação coletiva e recrutarem membros, bem
como produzir e distribuir material informativo de maneira eficiente, barata e autônoma.
As TIC, através de suas potencialidades culturais e sociais, podem ser uma ferramenta
fundamental para o fortalecimento de comunidades locais, sendo exploradas e usadas
em beneficio do aumento da cidadania. As TIC oferecem a possibilidade de sustentar
novos modos de criação de redes sociais e políticas e novas formas de participação
democrática.

540
5. Movimento em Rede - Uma proposta de Inclusão digital para a ação social
emancipadora

Figura 2 - Aula inaugural da segunda turma do projeto. Fonte: Arquivo do


Projeto.

O grande desafio à inclusão digital é, segundo Frey (2002, p. 152), evitar que tal
ensinamento digital se limite às habilidades técnicas, deve-se também, e principalmente,
enfatizar as potencialidades culturais e sociais das TIC, que podem ser exploradas e
usadas em benefício do aumento da participação popular.
A inclusão digital deve, segundo Silveira (2001, p. 29), contemplar os seguintes
elementos:
 “A aprendizagem é um processo permanente e personalizado;
 Navegar na rede é uma forma de obtenção de informações que
podem gerar conhecimento;
 É direito das comunidades obter a orientação presencial de seus
jovens e adultos para refletir criticamente em um espaço de saber
flutuante, contínuo e permanentemente renovável;
 A aprendizagem em rede é cooperativa;
 Praticar e desenvolver a inteligência coletiva;
 Reconhecer, enaltecer e disseminar pela rede os saberes
desenvolvidos pela comunidade;
 Permitir às pessoas o desenvolvimento de múltiplas competências na
rede;
 Assegurar o conhecimento de informática e incentivar o processo
permanente de auto-aprendizagem”.

O projeto Movimento em Rede procura oferecer uma proposta de inclusão digital, para
lideranças comunitárias, que foque no uso das TIC (Tecnologias da Informação e
Comunicação) como instrumentos facilitadores e pontecializadores das atividades
sociais dentro das comunidades, sob uma perspectiva que coloca as redes como
constituintes de uma nova morfogênese social.
Incluir digitalmente o ator social buscando capacitá-lo a manipular, reunir, distribuir,
processar e analisar informações através de ferramentas na internet de forma a
contribuir para a construção do conhecimento e sua transformação em ações,

541
possibilitando assim a potencialização e ampliação de suas atuações para exigir direitos,
alargar a cidadania e melhorar as condições de sua comunidade. Essa atuação em rede
permitiria, entre as lideranças comunitárias, a integração, auxílio mútuo e troca de
conhecimentos e experiências. As TIC fornecem base material para a expansão
permanente das redes em toda a estrutura social.
O projeto conta com o apoio e parceria do Instituto Federal de Minas Gerais – Campus
Congonhas - MG e da União das Associações Comunitárias de Congonhas -
UNACCON. Em julho de 2013 foi iniciada a primeira turma quase que exclusivamente
de lideranças comunitárias.
Ampliando as parcerias, que agora conta também com a FAMOCOL – Federação das
Associações Comunitárias de Conselheiro Lafaiete e o Movimento VIVA LAFAIETE,
iniciamos no início de 2014 a segunda turma e em julho de 2014 a terceira turma. A
partir da segunda turma tivemos militantes sociais diversos, como sindicalistas,
ambientalistas, artistas e associações diversas, além dos militantes das associações
comunitárias.

Figura 3 - Aula Inaugural da terceira turma do projeto. Fonte: Arquivo do


Projeto.

A primeira etapa do projeto foi dedicada à capacitação dos alunos bolsistas, para que
compreendam os objetivos, a base teórica e as metodologias do projeto. Após esta
primeira etapa, as atividades foram se repetindo a cada turma. São essas atividades:
 Palestra de abertura do curso
 Aulas
 Aplicação de questionários
 Mini-curso de Análise de Conjuntura
A palestra de abertura do curso procura sempre apresentar temas que permitam um
aprofundamento teórico relevante ao curso. Nas duas primeiras turmas discutimos o
papel da associação comunitária na ampliação da democracia. Na terceira turma
recebemos o Professor André Mayer, do curso de Serviço Social da Universidade

542
Federal de Ouro Preto e coordenador do Centro de Difusão do Comunismo, que
proferiu a palestra ‘A miséria das relações sociais na ordem do capital’.

Figura 4 - 'A miséria das relações sociais na ordem do capital'. Aula Inaugural da
terceira turma do projeto. Fonte: Arquivo do Projeto.

O curso de inclusão digital, oferecido pelo projeto, possui 45 horas aulas e, além de
dialogar com os alunos a partir de uma concepção materialista da realidade como uma
construção social, introduz o conceito de redes de movimentos sociais e atuação em
rede como forma de potencializar os trabalhos da Associação Comunitária, oferecendo o
conhecimento sobre ferramentas na internet que permitem, às organizações dos
movimentos sociais, a ampliação de suas potencialidades de intervenção na realidade.
As aulas do curso são predominantemente práticas e tem os seguintes módulos:
 Redes
 Redes Sociais;
 Internet;
 Ferramentas de Busca;
 Sítios de interesse público;
 Redes Sociais (Ferramentas);
 Blogs;
 Petição on-line;
 Agenda Compartilhada;
 Enquetes on-line;

543
Figura 5 - Aula prática em laboratório. Fonte: Arquivo do Projeto.

Após um embasamento teórico sobre redes sociais, os alunos foram aprendendo a


refinar a busca por informações na internet, conheceram sítios eletrônicos que possam
lhes interessar em suas atividades comunitárias, criaram as páginas de suas associações
na plataforma de rede social Facebook, alimentando-as de informações, divulgando-as,
fazendo contato e compartilhando informações com outras entidades, recebendo
retornos das pessoas na rede através de comentários, criando grupos de discussão e
eventos. Criaram blogs e os divulgaram pelas redes sociais. Aprenderam a fazer uma
petição on-line, a trabalharem colaborativamente, a usarem agendas eletrônicas
compartilhadas e a realizarem enquetes on-line em suas comunidades. Percebendo,
assim, as potencialidades do uso das TIC para o trabalho em rede, possibilitando o
compartilhamento de informações, conhecimentos e realização de ações conjuntas.
Preocupado em fornecer uma orientação aos participantes de como fazer uma análise de
sua realidade mais imediata para que possa se expressar através das redes sociais, logo
ao final do curso é promovido minicurso de análise de conjuntura com o seguinte
conteúdo:
 O que é conjuntura.
 Por que analisar a conjuntura.
 Quem são os atores que atuam na sociedade.
 A relação entre a economia, a política e a ideologia.
 O que são as condições objetivas e subjetivas.
 A ação espontânea versus ação consciente.
 O que é consciência de classe e a ação consequente.
Para este mini-curso contamos com a colaboração do Professor Fábio Bezerra do
Instituto Federal Sudeste MG campus Muriaé.

544
Figura 6 - Minicurso de análise de conjuntura. Fonte: Arquivo do Projeto.

Busca-se também, no projeto, verificar a existência de canais de informação inter-


associações e como as associações vêem a importância dessa interação informacional. A
metodologia de Análise de Redes Sociais, através do estudo das relações, dos vínculos e
das trocas informacionais entre as associações, é um meio para se pôr em prática uma
análise estrutural cujo objetivo principal é explicar os fenômenos analisados através de
como a rede foi ou é formada.
São aplicados, em cada turma, questionários para verificar os canais de troca
de informações e conhecimentos utilizados pelos atores sociais e desenhar a rede de
relações informacionais entre esses atores. Utilizamos a metodologia ARS – Análise de
Redes Sociais. Marteleto (2001a, p. 72) considera que a análise de redes sociais instala
um novo paradigma na pesquisa sobre estrutura social:

Para estudar como os comportamentos ou as opiniões dos indivíduos


dependem das estruturas nas quais eles se inserem, a unidade de
análise não são os atributos individuais (classe, sexo, idade, gênero),
mas o conjunto de relações que os indivíduos estabelecem através das
suas interações uns com os outros. A estrutura é apreendida
concretamente como uma rede de relações e de limitações que pesa
sobre as escolhas, as orientações, os comportamentos, as opiniões dos
indivíduos.
A análise de redes sociais se concentra nas relações e nos atributos dos
elementos estudados, entre suas propriedades relacionais. Na análise de redes sociais, os
elementos básicos são os nós ou elos, que representam os atores da rede, e a relação que
se estabelece entre os elos é o que nos interessa analisar. O papel e o status de um ator,
bem como a função das relações entre atores, vão depender da “posição estrutural dos
elos”. A forma da rede exerce influência sobre cada relação.

A estrutura mais ou menos democrática de uma rede social é mensurada pela


liberdade de circulação de informações entre seus membros e, portanto, pela ausência de

545
manipulação, censuras e controles na circulação da informação. Nas redes sociais não
são excluídas as relações de poder e de dependência, apesar de sua estrutura horizontal e
extensa.

Estudar a informação através das redes sociais significa considerar as


relações de poder que advêm de uma organização não-hierárquica e
espontânea e procurar entender até que ponto a dinâmica do
conhecimento e da informação interfere nesse processo
(MARTELETO, 2001a, p. 73).
Para este trabalho iremos medir a quantidade de relações diretas dos atores
(Degree), pois as pessoas com maior número de contatos diretos são consideradas elos
importantíssimos dentro da rede social. Porém devemos estar atentos que a troca de
informações se dá em vários níveis. Os atores também recebem informações de forma
indireta, o que torna necessário, para uma melhor análise do fluxo informacional dentro
da rede, a medição das “cliques” (Cliques) e “centralidades” (Centrality), de forma a
termos uma melhor compreensão dos papéis desempenhados por cada ator na rede.

Para identificar dentro da rede quais são os elos (atores) que mantém relações
“mais estreitas ou mais íntimas” usamos as cliques, que são “grupos de atores no qual
cada um está direta e fortemente ligado a todos os outros” (Emyrbayer apud
MARTELETO, 2001a, p. 75). As cliques podem também identificar uma
movimentação em torno de um determinado assunto ou problema. As “cliques
intercampos” são formadas por um membro de cada campo social e identificam os elos
responsáveis “por estabelecer relações e facilitarem as trocas informacionais entre seu
campo e os demais” (MARTELETO, 2001a, p. 76).

A posição de um ator em relação aos outros, levando em conta a quantidade de


elos que se colocam entre eles, é chamada “centralidade”. Com o cálculo da
centralidade podemos identificar a posição em que um ator se encontra em relação às
trocas e à comunicação na rede. Quanto maior o índice de centralidade de um ator,
maior é o seu grau de influência na rede, pois ele estará mais bem posicionado em
relação ao fluxo informacional. A centralidade nos permite conhecer a posição dos elos
no interior da rede e a estrutura da própria rede. Trabalhamos com três tipos de
centralidade (MARTELETO, 2001 a, p. 78-79):

 Centralidade da informação (Centrality-Information): Um ator é central


em relação à informação, “quando, por seu posicionamento, recebe
informações vindas da maior parte do ambiente da rede, o que o torna, entre
outras coisas, uma fonte estratégica”.

 Centralidade de proximidade (Centrality-Closeness): Indica que um ator


“é tão mais central quanto menor o caminho que ele precisa percorrer para
alcançar os outros elos da rede. Isso mede, em última análise, a sua
independência em relação ao controle de outros”.

 Centralidade de Intermediação (Centrality-Betweenness-Nodes): “É o


potencial daqueles que servem de intermediários. Calcula-se o quanto um ator

546
atua como ‘ponte’, facilitando o fluxo de informação em uma determinada
rede”.

A rede abaixo, utilizada como exemplo, foi desenhada durante a segunda turma do
curso e inclui 39 atores de 16 entidades (cores) ligadas ao movimento social de quatro
cidades (formas) da região. O projeto prevê a coleta de dados e construção da rede em
todas as turmas.

Figura 7 - Rede Social – 2ª Turma. Fonte: Arquivo do Projeto.

Esse tipo de análise possibilita identificar os modelos de relacionamento entre atores


sociais da região, participantes ou não do projeto. Utilizamos o método da bola de neve
como forma de incluir atores na rede. Começamos a coleta com os alunos do curso de
inclusão digital e, a partir deles, estendemos a coleta a outros atores sociais. A coleta
feita em uma determina turma sempre inclui os alunos das turmas anteriores, permitindo
verificar a relações, assim como as suas mudanças no tempo. Os dados coletados ainda
são insuficientes para qualquer tentativa de análise da rede que se forma através das
relações entre atores sociais na cidade de Congonhas, MG.

6. Conclusão
Este trabalho se propôs a apresentar uma proposta de inclusão digital voltada à
capacitação de atores dos movimentos sociais, principalmente do movimento social
comunitário, para o uso de ferramentas disponíveis na internet que possibilitam
melhorar a comunicação, as trocas de informações e conhecimentos e as ações
conjuntas, permitindo uma atuação, através de rede de movimentos, que potencialize a
capacidade de intervenção na realidade. Buscando contribuir com a construção de
formas de democracia direta, criando espaços de debate e tomada de decisão conjunta
com a população, criando condições para uma forma de poder emergente, o poder
popular.
O projeto, ainda, não apresenta resultados concretos com relação ao aumento da
capacidade de intervenção desses movimentos sociais na realidade. Observaram-se

547
melhorias na capacidade de intervenção, mas muito pontuais, ligadas às necessidades
locais. Devido, possivelmente, a grande necessidade por serviços públicos pelos quais
passam as comunidades. A facilidade de se divulgar essas demandas pelas redes sociais,
com grande potencialidade de reverberação dessa noticia, faz da internet um grande
aliado na luta por melhores condições de vida nas comunidades. Notou-se também um
uso mais constante das páginas, pessoais e das entidades, e dos blogs para divulgação de
eventos promovidos pelas comunidades e também como ferramenta de comunicação
entre os atores.
A dificuldade mais marcante percebida durante o curso é relacionada ao habito de uso
das TIC. A pouca habilidade de uso do computador e da internet por uma parte
significativa dos atores sociais, principalmente as lideranças comunitárias que
enfrentam uma crise de renovação de lideranças, dificulta o aproveitamento pleno das
potencialidades da atuação em rede de movimento mediada pelas TIC.
Para aproveitar essas potencialidades democráticas das TIC, em todas as suas
possibilidades, devemos estar atentos à importância de desenvolver aplicações
específicas para a plataforma internet que estimulem a participação da população local
nos processos políticos de tomada de decisão, alavancando o uso das TIC em favor da
alocação de poder à população e de fortalecimento das redes cívicas locais. As TIC têm
a possibilidade de se tornarem, dentro das comunidades, um elo forte na relação
população/poder público, permitindo, através de redes, intensificar a luta pelos valores
nos microdomínios da vida cotidiana, bem como a transferência de informações e
conhecimentos fundamentais para a institucionalização de uma realidade realmente
democrática.
O uso das TIC, provocando a transformação pela capacidade de permitir a cooperação,
mobilização e ação coletiva, redefine as relações entre a sociedade e o Estado através da
participação de novos atores que alteram a arquitetura das instituições e as
possibilidades de interação social, substituindo políticas urbanas tradicionais por um
outro modelo mais interativo e mediado por redes sociais apoiadas pelas TIC, as redes
sociotécnicas.
Quanto maior o número de caminhos abertos, maior será a percepção,
o conhecimento e a área criativa, e maior o número de usuários
potenciais, - a ser posteriormente expandido -, interessados em
espaços de interação e conhecimento, e em participar no processo de
tomada de decisão desde o princípio. O incentivo à troca cultural e
informacional que a rede cívica cria é o habitat ideal para elaboração
de uma nova abordagem, nascida de processos cognitivos e
comunicativos bottom-up e não impostos por administrações e
burocracias. (GUIDI, 2002, p. 181)
É mister investigar os fatores que fazem com que as redes sociotécnicas tornem-se auto-
sustentáveis e respondam às necessidades da comunidade, permitindo a emergência de
uma cultura que estimule a criatividade e que promova avanços na utilização de TIC.
As autoridades locais têm o papel de estimular e planejar a integração
no nível cívico, voltando sua atenção especialmente para a função
estratégica dos serviços relacionados à comunicação e disseminação

548
de conhecimento, para atividades e ações progressivamente
organizadas em um sistema de redes interdependentes para o benefício
de uma cidadania ativa. (GUIDI,2002, p. 184)
Políticas agressivas que levem à democratização do acesso comunitário às tecnologias e
também à capacitação técnica e cognitiva para plena participação, são fundamentais
para a institucionalização das condições necessárias e dos procedimentos que
estabelecem a prática participativa entre os cidadãos, criando possibilidades de
interpenetração entre a tomada de decisão institucionalizada, a opinião pública
constituída de modo informal e o uso das TIC na promoção de novas habilidades, novos
hábitos e novas dimensões de comunicação.
A abordagem da democracia eletrônica desenvolve-se neste contexto para engajar os
cidadãos no envolvimento ativo de estabelecer prioridades, tomar decisões, informar,
ser informado, adquirir novos conhecimentos, desenvolver a capacidade e a liderança
comunitária e se relacionarem, permitindo assim a criação de uma nova realidade
participativa.
É necessário construir a resistência, procurando intervir na realidade que se forma,
criando uma identidade para o povo a partir do lugar onde ele mora. É do lugar onde ele
mora que se articulam as principais relações. Seu habitat é um espaço privilegiado para
se educar, trocar informações e conhecimentos, intervir na realidade, enriquecer as
relações. A comunidade é um espaço propício para a socialização. A rede de relação
mais próxima acontece na própria comunidade, um espaço promissor para a
concretização da democracia direta.
Essa noção espacial de que a cidadania, como parte integrante da emancipação política,
se dá a partir do lugar onde se mora, nos leva a desejar que a construção desse espaço
seja uma coisa que não venha de fora para dentro, mas que parta de uma concepção
local, emergente, envolvendo informação, conhecimento, cultura, educação, esporte,
lazer, música e a entidade comunitária em um papel agregador. O foco deve ser a rede
de relações a partir da comunidade, rompendo com uma realidade cultural que
deseduca. A cidadania, termo muito usado, tem que ser materializada, não pode ficar
somente nos discursos, ou seja, no abstrato, no subjetivo, tem que ser objetivada. Se a
cidadania não for expressa de maneira prática na vida das pessoas, ela perde o sentido,
vira um ‘chavão’ e acaba por desencantar. Quando se começa a exercitar a cidadania a
partir do lugar onde as pessoas vivem, a possibilidade de expansão democrática se dará
a partir das bases, permitindo o micro intervir no macro. A democracia se expandirá
através da localidade, e será concretizada através de princípios que, se respeitados,
permitirão a realização do ideal democrático. Há, pois, a necessidade de mudança no
processo educativo, na cultura, abrindo perspectivas de mudanças no comportamento
coletivo.

7. Referências Bibliográficas
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549
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WOOD, Ellen Meiksins: Democracia contra capitalismo. São Paulo: Ed. Boitempo,
2003.

551
Novas estratégias para uma comunicação popular e comunitária

Camille C. P. Pereira¹
1
Universidade Federal Fluminense - UFF, Instituto de Artes e Comunicação Social,
IACS 2, Niterói-RJ– camilleperisse@gmail.com

Resumo
O presente artigo se propõe a apresentar estudos que auxiliem no entendimento teórico
da área Comunicação Comunitária. Por ser um campo de conhecimento extremamente
ligado à práxis, a Comunicação necessita constantemente de atualizações e reavaliações
do que já tem sido feito. Partindo de autores brasileiros, o trabalho busca reconhecer o
que determina as atuais condições de nossos veículos de comunicação comunitários,
para que seja possível pensar cuidadosamente em estratégias para suas demandas. O
movimento de mídia comunitária tem crescido e ganhado notoriedade, travando
importantes discussões político-culturais no seio da academia e dos movimentos sociais
e as quais, consequentemente, vêm sendo levadas ao poder público. Esse debate tem
permitido o resgate da participação popular política, repensando a democracia e
contribuindo para a emancipação humana na construção do poder popular.

Palavras-chave: Comunicação Comunitária; Comunicação Popular; Comunidade;


Favela; Hegemonia

1 Introdução
Os processos que envolvem a construção de uma comunicação que segue uma lógica
diferente dos grandes meios, já tendo sido conceituada como comunicação popular,
alternativa e comunitária; envolvem movimentos de resistência, surgindo em pequenos
grupos marginalizados que se unem a partir de interesses, território ou modo de vida em
comum, com uma identidade e reivindicação de seu reconhecimento e seus direitos,
incorporando-se na luta discursiva contra hegemônica.
Algumas produções acadêmicas atribuem ao surgimento desta outra forma de
comunicação no Brasil o contexto histórico de um país onde não havia participação
política de classes populares. No período da ditadura militar, como forma de
organização dessas classes, havia manifestações no âmbito de uma “comunicação
popular”. Por conta da forte censura, grupos que não se sentiam representados pela
mídia usavam principalmente panfletos, boletins e pequenos recursos para se manifestar.
Com a reabertura política e inserindo-se em um período de mais de duas décadas de
democracia representativa, a comunicação popular se ampliou, ainda mais com o
desenvolvimento das TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação),
desenvolvendo-se tanto em mídias locais com interesses comerciais quanto em mídias
comunitárias – as quais se caracterizam, dentre outros fatores, pela valorização da
cultura local, compromisso com a cidadania e contribuição para a democratização da
comunicação.
Estes processos também se inserem em um contexto histórico de grande concentração e
visão comercial das mídias. A partir de um processo de globalização e de declínio em

552
investimentos sociais, este é um panorama observado em muitos países, apesar de
recentes contra tendências latino-americanas deixarem o Brasil em um posto ainda mais
grave com relação aos seus vizinhos.
O presente trabalho pretende, dessa forma, resgatar esse atual debate político sobre a
democratização da comunicação no sentido de multiplicação de vozes, em que situações
concretas de meios comunitários que primam por outra lógica – contrária a interesses de
mercado e à sociedade de consumo – emergem com urgência na vida social cotidiana.
Para tanto, a base em referências bibliográficas e em casos específicos para
compreendê-los em sua complexidade de detalhes e em sua diversificação, explicitando
a heterogeneidade em que ocorrem as transformações históricas, se faz necessária. As
análises particulares constituem pilares para um pensamento mais abrangente, sendo
não só de interesse público, mas de necessidade acadêmica.

2 Comunidade e comunicação no Brasil


Para entender os efeitos das relações sociais no campo da Comunicação, ainda mais no
recorte espaço-temporal das comunidades, é preciso levar em conta o processo global
que vivemos aceleradamente nas últimas décadas. Raquel Paiva (2003), como referência
nacional nos estudos de Comunicação Comunitária, inicia suas observações com a
leitura de que a estratégia de mercado da globalização consiste em valorizar o consumo,
distanciando os indivíduos da sociedade contemporânea de uma participação social e da
prática de cidadania. A esfera do trabalho, por sua vez, apresenta uma massa de mão de
obra que não sente os mesmos efeitos da globalização, já que há um desemprego
estrutural arraigado pela exclusão e preconceito. Também em Harvey (2011) esse
processo se configura como acumulação flexível, dentro de um “novo” período
chamado pós-modernidade.
Segundo Paiva, a mídia contemporânea, representando todas as instâncias das políticas
econômicas liberais, estaria aparentemente indissociável ao sistema econômico
capitalista. “A concepção da informação como produto, mercadoria, instala uma
realidade trazida pela massa: a de público consumidor, de consumidores que elegem e
adquirem produtos hipoteticamente necessários” (PAIVA, 2003, p. 24). A proposta de
Comunicação Comunitária tem seu espaço na sociedade seguindo, porém, outra lógica –
e qual seria? A dos excluídos, dos que ficaram à margem do processo de global de
acumulação flexível? Segundo a autora, é a lógica do “espírito comum”.
A partir do momento em que a representação do real na mídia de grande circulação é
questionada pelos grupos marginalizados, que se encontram distantes daqueles
processos de produção, pode surgir a necessidade e o desejo de produzir uma
comunicação própria desses grupos. Meios de comunicação em favelas cariocas e em
outros espaços de minorias vêm crescendo no país. Para entender melhor esse
fenômeno, podemos resgatar definições clássicas e contemporâneas acerca dos
conceitos de comunidade e de Comunicação Comunitária, a partir das autoras brasileiras
de referência nesse tema.

2.1 Leituras filosóficas de comunidade


Entender comunidade abrange não só o seu conceito, mas a sua prática. Desde o
pensamento romântico alemão, o entendimento de comunidade vem se transformando
de acordo com as novas determinações das nossas relações materiais e sociais,

553
chegando, nos dias atuais, a um conceito que abrange muito mais que o mero vínculo de
indivíduos a um território.
Segundo Paiva (2003), a vida em sociedade está em crise, e por esse motivo está em
voga a discussão sobre o espírito da comunidade, que é visto, por um lado, como
solução para o esfacelamento da estrutura societária, mas, ao mesmo tempo, não há
muita clareza sobre até onde ele poderia nos levar. “A palavra comunidade tem
aparecido como investida de um poder de resgate da solidariedade humana ou da
organicidade social perdida” (PAIVA, 2033, p. 19). Ela sempre esteve no imaginário do
grupo social e é fundamental para a construção do mundo.
Há uma oposição entre os conceitos de sociedade e comunidade, o que gera alguns
problemas metodológicos. “Trata-se de oposição emocional, que redunda quase sempre
numa escolha de valores e na constatação da perda de um paraíso” (PAIVA, 2033, p.
67). Ferdinand Tönnies, no clássico livro Comunidade e Sociedade, publicado
originalmente em 1887, mas somente se tornando best-seller a partir da segunda edição
em 1912, explorou a antítese entre esses termos. Comunidade (Gemeinschaft), para ele,
seria o espaço destinado a colocar o grupo em consenso e disseminar valores e costumes
em comum, através da linguagem. Já na sociedade (Gessellschaft), a vontade
prevalecida seria a individual, industrializada, diferente da sociedade rural. “Apesar de
consistir numa obra tópica e referencial para o estudo do que vem a ser comunidade,
não há como abstrair o fato de que Comunidade e Sociedade comporta uma crítica à
Gesellschafct, à sociedade, fundamentada principalmente nas bases do racionalismo
iluminista” (PAIVA, 2003, p. 70).
Em virtude das múltiplas propostas de comunidade, pode-se resumir os conceitos
clássicos a partir dos seguintes critérios sistematizados por Peruzzo:
Numa leitura de conjunto, na tentativa de apresentá-la de forma
didática e concisa, infere-se que, a partir dos clássicos, uma
comunidade pressupõe a existência de determinadas condições
básicas, tais como: a) um processo de vida em comum por meio
de relacionamentos orgânicos e certo grau de coesão social; b)
autossuficiência (as relações sociais podem ser satisfeitas dentro
da comunidade, embora não seja excludente); c) cultura comum;
d) objetivos comuns; e) identidade natural e espontânea entre os
interesses de seus membros; f) consciência de suas
singularidades identificativas; g) sentimento de pertencimento;
h) participação ativa; i) locus territorial específico; e j)
linguagem comum. (PERUZZO, 2006, p. 13) 281

Paiva se aprofunda na discussão sobre a noção espacial, ecológica, que objetivamente


define comunidade como um grupo ligado a seu território. Ela defende que a
territorialidade está ligada às comunidades mais tradicionais, que se utilizam do fator de
proximidade das relações humanas, sendo assim útil à sociologia e ao serviço social

281

Peruzzo ressalta que não é necessário que todos os critérios apareçam para
uma comunidade ser legítima.

554
para planificar e criar condições para o funcionamento orgânico das comunidades.
Porém, o “território” virtual determinado pelos novos meios de comunicação vislumbra
outras possibilidades de comunidade. Com os aparatos das TICs, a distância e o tempo
são prescindidos pelas relações humanas, o que desloca o conceito de comunidade para
o de um vínculo mais afetivo. Peruzzo, baseada em Palácios, também reconstrói o
raciocínio:

O sentimento de pertencimento, elemento fundamental para a


definição de uma comunidade, desencaixa-se da localização: é
possível pertencer à distância. Evidentemente, isso não implica
a pura e simples substituição de um tipo de relação (face-a-face)
por outra (a distância), mas possibilita a coexistência de ambas
as formas, com o sentimento de pertencimento sendo comum às
duas. (PALÁCIOS apud PERUZZO, p. 13-14)

Não se pode ocultar também a relação entre comunidade e totalitarismo, o qual possui
em suas bases ideológicas a valorização da família e o nacionalismo para se alcançar um
paraíso – assim como no campo da religiosidade cristã, com as noções de comunidade
ligadas à fraternidade, reciprocidade, confiança e comunhão, dando uma aura de
beatitude ao conceito (PAIVA, 2003, p. 67). Para o cristão, a retomada da comunidade
sempre existiu como um fator determinante para a retomada do paraíso. Seu pressuposto
é de que na comunidade os indivíduos ligam-se uns aos outros, em uma experiência de
alteridade.
Ao longo do tempo, tal sentido idealista de comunidade já chegou a beirar a
irracionalidade, como no exemplo histórico do nazismo. E, pelo lado religioso ou
fascista, alguns consideram a comunidade um sistema social opressor, o que gera
repulsa a esse conceito.
Por esse prisma pode-se entender com propriedade o porquê de
a ideia de comunidade ter ficado, através dos tempos, num lugar
tão estranhamente distante do quotidiano da humanidade, mas o
mesmo tempo sempre presente como disposição emblemática,
ideal a ser sempre buscado, algo praticamente impossível de
concretização no mundo dos mortais. Uma ideia que sempre
esteve muito frequentemente enfileirada nos propósitos
religiosos ou então assumiu a face mais trágica já produzida
como sistema político. (PAIVA, 2003, p. 83)

Aplicando o conceito à conjuntura atual, Paiva entende, então, que comunidade daria
margem a três projetos possíveis: como instituição; como unidade de gerenciamento da
estrutura social (defendido pelo pensamento norte-americano: a estratégia de pressão);
ou como cooperativismo (uma estrutura que explicite as diferenças sociais entre classes,
na busca coletiva por soluções). O cooperativismo se destaca, assim, com o surgimento
crescente nas últimas décadas de empreendimentos solidários que empregam e
empoderam trabalhadores ou de grupamentos voluntários, como as ONGs, que avançam
nas áreas abandonadas pelo poder público. A crítica que se tem feito a essas

555
organizações é o fato de poderem reforçar a isenção do Estado em seus compromissos
sociais, passando elas mesmas a se responsabilizarem por combater – pontualmente – a
miséria, o desemprego, a destruição ambiental e outros problemas inerentes ao
desenvolvimento capitalista.
O caráter comunitário das cooperativas se daria por suas características internas: “A
forma de organização comunitária, fundada sobre sentimentos de fraternidade e
confiança, é baseada na economia da reciprocidade, pela qual a terra e todos os bens
pertencem a todos, que eles podem dispor livremente” (PAIVA, 2003, p. 97).
Resgatando vários exemplos “novas formas” de cooperativas, como “Travaux d’Utilité
Collective” (França), Organizações Econômicas Populares (Chile), Cooperazione Terzo
Mondo (Itália), Novo Palmares e Royal Flash (Rio de Janeiro), a autora enfatiza a ação
da cidadania, de mudanças na realidade e de não visar o lucro como características
desse tipo de organização.
A ideia de “sem fins lucrativos” não significa, portanto, que este tipo de trabalho não
possa ser remunerado ou se preocupar com a forma de angariar fundos e seu
autossustento. “Ora, a autonomia de classe depende não apenas de um horizonte teórico,
mas também de sua capacidade de auto-financiar-se, isto é, de ser capaz de prover a
existência de suas próprias organizações, o que exige enorme inventividade e
capacidade – teórica, prática e moral – para forjar uma nova sociabilidade” (FONTES,
2006, p. 06). Ou seja, pelo contrário, a preocupação financeira é fundamental para
desvencilhar-se da lógica dominante de mercado que rege a vida humana: a venda da
força de trabalho por um valor inferior à sua quantidade real, gerando mais-valia para o
patrão; a subordinação do trabalho a hierarquias internas e à concorrência externa.

2.2 Sobre a comunicação na comunidade


A trajetória dos movimentos sociais populares no Brasil começou a apresentar maior
vínculo com a comunicação ao final da década de 1970 (PERUZZO, 1998). Os
movimentos nasceram após a opressão à participação política e de situações degradantes
nas classes populares. A cooperação emergiu como forma de organização dessas classes,
já havendo incidências de utilização de uma “comunicação popular”: em um país onde a
censura era forte, os grupos oprimidos usavam panfletos, boletins e outros recursos para
se expressar. Por outro lado, o movimento das rádios comunitárias teve início, segundo
Paiva (2003), nos anos 1980 principalmente nas regiões Norte e Nordeste, mantendo
relações com setores progressistas da Igreja Católica.
Com a reabertura política e a nova perspectiva do Brasil como país democrático, as
tentativas de se fazer uma comunicação alternativa se multiplicaram. “Na prática, a
Comunicação Comunitária por vezes incorpora conceitos e reproduz práticas
tipicamente da comunicação popular em sua fase original e, portanto, confunde-se com
ela, mas ao mesmo tempo outros vieses vão se configurando” (PERUZZO, 2006, p. 6).
A Comunicação Comunitária foi surgindo e ganhando nome com o movimento das
rádios “livres”, a partir dos anos 1970. Segundo Cicilia Peruzzo (2006), essas rádios
nem sempre surgem com caráter político definido, sendo por vezes criadas tão somente
devido ao gosto pela técnica da radiodifusão. A autora considera, no entanto, que elas
são por si mesmas um protesto contra a forma de hegemonia da comunicação de massa
no país. É a concretização da vontade (implícita, em alguns casos) de democratização da
comunicação, da vontade de efetivar o direito à liberdade de expressão. Nesse sentido, é
interessante observar que esses veículos alternativos surgiram no período da ditadura

556
militar, quando a comunicação era explicitamente não democratizada.
Paiva (2003) traz o dado de que muitas dessas rádios no Rio de Janeiro nasceram sob
influência de políticos, da Igreja Católica, ou por experiências individuais. Seguindo a
mesma lógica das grandes corporações, alguns desses veículos podem se configurar
como “mídia local”, definida por Cicilia Peruzzo (2006) como um tipo de mídia que
teria um propósito na oportunidade lucrativa que o local apresenta, na exploração de
nichos de mercado.
Mas, pelo simples fato de estarem fixados em determinada
região, poderiam tais veículos ser compreendidos como
verdadeiras emissoras comunitárias? Da maneira que atualmente
existem, é difícil incluí-las nessa categoria. Geralmente com
uma programação limitada a músicas e publicidade, alguns
desses veículos [rádios] convivem até mesmo com a restrição de
não falarem em política. (PAIVA, 2003, p. 145)

Portanto é interessante compreender, ao se estudar meios alternativos, que sua condição


não está desvinculada da mesma lógica que rege os meios de grande circulação. O que
os diferencia é justamente sua posição política de caráter hegemônico ou contra-
hegemônico.
As abordagens dos meios hegemônicos ignoram a pluralidade e as contradições contidas
nos territórios que podem ser chamados de favelas ou comunidades – os termos
escolhidos por esses veículos também representam qual discurso oficial se quer proferir
acerca do tema (PAIVA e NÓRA, 2008). “Trata-se do momento em que restam poucas
opções diferentes do espectro oferecido, que se corporifica como oficial” (PAIVA, 2003,
p. 135). O termo “favela” é usado pelos meios de comunicação brasileiros quando se
quer destacar aspectos negativos, geralmente em associação à violência e ao tráfico de
drogas, de um território que se caracterizaria por ser desprovido de políticas públicas.
Em sua agenda setting, a mídia justificava a necessidade das remoções. Este uso
linguístico de favela está, assim, de acordo com o senso comum, como exemplifica o
relatório da ONG Observatório de Favelas do Rio de Janeiro:
O eixo de representação da favela é a noção da ausência. Ela é
sempre definida pelo que não teria: um lugar sem infraestrutura
urbana – sem água, luz, esgoto, coleta de lixo –, sem
arruamento, sem ordem, sem lei, sem moral e globalmente
miserável. Ou seja, o caos. (SOUZA E SILVA e BARBOSA,
2005, p. 24)

No âmbito jurídico, não havia definição de favela, exatamente por ser algo que estaria
fora da legalidade. Em 1990 a Prefeitura do Rio sancionou a Lei Orgânica Municipal,
que estabelecia o princípio de não-remoção das favelas, apesar desta continuar sem
definição, e em 1992, quando o Plano Diretor da Cidade estabeleceu uma política
habitacional e planos de ação, houve a primeira definição legal (e contraditória) do
termo “favela”:
Art. 147 - Para fins de aplicação do Plano Diretor (1992), favela
é a área predominantemente habitacional, caracterizada por

557
ocupação da terra por população de baixa renda, precariedade da
infra-estrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e de
alinhamento irregular, lotes de forma e tamanho irregular e
construções não licenciadas, em desconformidade com os
padrões legais. (PLANO DIRETOR, 1992, p. 20)

Já o uso de “comunidade”, no atual senso comum, começa a inserir esses territórios na


lei e na sociedade, como forma de garantir um controle sobre eles. Comunidade
pressupõe, nesse sentido, uma noção semelhante às concepções mais utópicas, e uma
ação mais incisiva e inclusiva do Estado no território: no Rio de Janeiro, cidade
referencial, o modelo importado de segurança pública concebido em 2008 com as
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) disseminou o uso do conceito, pois, na teoria,
um policiamento comunitário integral, junto a projetos sociais (executados pela “UPP
Social”) retirariam daquele território “favelizado” seu controle pelo crime organizado e
levaria aos moradores o acesso aos serviços urbanos. Essa concepção permite que se
produza juízos de valor simples e fáceis sobre estes territórios, legitimando intervenções
externas e um tratamento semelhante a todos eles. “O tratamento das comunidades
como se fossem comparáveis entre si (por, digamos, um órgão de planejamento) tem
implicações materiais a que as práticas sociais das pessoas que nelas vivem têm de
responder” (HARVEY, 2011, p. 190).
Nesse caso, a mídia de grande circulação se utilizou também do sentido de
“comunidade” para representar as antigas favelas sem o reconhecimento de quem ali
vive, com um claro posicionamento a favor dessas políticas de padronização e
higienização. Porém, segundo Paiva, ao mesmo tempo em que a comunicação globaliza
o local e o reduz a essas representações, provoca em sua disseminação outras reações:
“A padronização do enfoque e a impregnação pelo consumo propiciam, no esgotamento
das formas, também a perspectiva de opções até então alijadas. Este é o panorama que
permite a inserção de novos atores informativos e novas propostas comunicacionais”
(PAIVA, 2003, p. 135).
As experiências classificadas como “Comunicação Comunitária” expressam assim,
dentre outros fatores que serão vistos adiante, o desejo de desconstruir o senso-comum
dos termos “favela” e “comunidade”, mesmo quando desconhecem a existência – ou
mesmo se não houvesse existência – da modalidade de pesquisa que também se
preocupa com essa desconstrução. “Assim, torna-se evidente mais uma outra razão para
a criação de um veículo de comunicação comunitária: a vontade de ‘produção de
discurso’ próprio, sem filtros e intermediários” (PAIVA, 2003, p.139). Sendo uma forma
de apropriação das ferramentas de mídia, a Comunicação Comunitária vem emergindo
como possibilidade de um movimento catártico e de uma contra-hegemonia. Porém,
essa possibilidade apenas se concretiza quando há constantes reflexões, reformulações e
experimentações, permitindo sua autonomia. É quando a teoria se alia à prática. Sua
práxis exprime, dessa forma, as contradições vividas no cotidiano urbano no que diz
respeito às relações sociais, aos conflitos de classe e aos processos culturais de
significação e uso social da mídia. Cabe às instituições acadêmicas reconhecer esses
aspectos para de fato contribuírem com o desenvolvimento de uma teoria indissociável à
prática.

3 Pressupostos de uma comunicação comunitária

558
Com o recente crescimento da produção acadêmica sobre o assunto, Cicília Peruzzo,
sendo também uma referência nacional, desenvolveu uma série de estudos de caso sobre
meios de comunicação locais, alternativos e comunitários. A autora defende uma
compreensão da Comunicação Comunitária como uma categoria específica dentro do
campo da comunicação.
É importante que se entenda que a mídia comunitária se refere a
um tipo particular de comunicação na América Latina. É aquela
gerada no contexto de um processo de mobilização e
organização social dos segmentos excluídos (e seus aliados) da
população com a finalidade de contribuir para a conscientização
e organização de segmentos subalternos da população visando
superar as desigualdades e instaurar mais justiça social.
Inicialmente ela se configurou como uma comunicação
alternativa e que assim foi chamada – e continua sendo em
muitos lugares – mas que recebeu várias outras denominações
como comunicação participativa, comunicação horizontal,
comunicação popular etc. A expressão Comunicação
Comunitária é de uso recente, certamente numa tentativa de se
dar conta às transformações nesse âmbito, ou seja, da passagem
de uma comunicação mais centrada no protesto e na
reivindicação e muito ligada aos movimentos populares para
uma comunicação mais plural e de conteúdo abrangente
(PERUZZO, 2000, p. 149)

A partir dos estudos de Peruzzo, algumas características esperadas de meios de


comunicação comunitária seriam: a) ausência de fins lucrativos; b) programação
comunitária; c) gestão e propriedade coletiva; d) interatividade; e) valorização da
cultura local; f) compromisso com a cidadania; g) agir para a democratização da
comunicação (PERUZZO, 1998). Paiva (2003) também ressalta as premissas: a) de um
comprometimento político; b) do papel participativo como exercício da cidadania; c) da
mudança dos critérios de noticiabilidade (para que seja mais considerado aquilo que
interessa diretamente a comunidade); d) do tratamento didático contextualizador dado à
informação; e) da valorização da cultura local, f) da promoção da educação.

3.1 Sobre a ausência de fins lucrativos e a gestão e propriedade coletiva


Peruzzo afirma que o veículo comunitário não deve ter fins lucrativos, mas enxerga a
possibilidade da utilização da venda de espaços publicitários para investimentos no seu
próprio desenvolvimento. Às rádios comunitárias, como explica, é vedada por lei a
publicidade, sendo permitidos “apoios” culturais para custear as produções de
programas. Já os jornais não enfrentam este problema, porém uma série de questões
complexas também se apresenta, como a questão da independência editorial.
Os princípios de gestão de um meio comunitário defendidos por Peruzzo em muito
assemelham-se a modelos de democracia participativa. Para ela, existem três níveis de
participação possíveis (passiva, controlada e participação-poder), sendo importante em
um meio de comunicação comunitário a participação-poder, em que o exercício do
poder é partilhado, ao contrário da participação na qual ocorre a delegação das tomadas

559
de decisões. Para que o exercício do poder possa ser compartilhado, a pessoa tem que
estar envolvida ativamente em todos os níveis de decisão, como nos casos da co-gestão
e da autogestão. A diferença entre ambas é que na co-gestão “as decisões centrais
permanecem reservadas à cúpula hierárquica, não se alterando a estrutura central de
poder” (PERUZZO, 1998, p. 82). Na autogestão, por outro lado, há mais
horizontalidade e a pessoa é capaz de aprender o protagonismo de decisão em todas as
esferas da vida: econômica, política, social, cultural.
Dessa forma, a autora propõe a existência de espaços onde a comunidade possa
deliberar sobre propostas apresentadas pelos produtores do veículo, que não deveriam
ser apenas “representantes eleitos” para tomar decisões. Para que o meio seja
verdadeiramente comunitário, também é necessário que ele não pertença a um só
indivíduo da comunidade, mas que seja de propriedade coletiva. Essa concepção
também se aproxima ao caráter de cooperativismo revisto com o estudo da Raquel
Paiva.

3.2 Sobre a programação comunitária e novos critérios de noticiabilidade


As autoras ressaltam a necessidade de o veículo ter um “vínculo orgânico” com a
comunidade local, mantendo conteúdos (programas, no caso das rádios, ou matérias, no
caso dos jornais) que falem das necessidades da comunidade, de sua cultura, suas
comemorações etc. O conteúdo deve pautar os assuntos de maior interesse da
comunidade. (PERUZZO, 1998, p. 257) e (PAIVA, 2003, p. 139). A valorização da
cultura local também está incluída nesse ponto. A ideia é que o conteúdo cultural do
veículo não seja simplesmente uma reprodução do que é produzido culturalmente por
outros atores que não os próprios membros da comunidade.
Em muitos casos, de fato o conteúdo do veículo comunitário é majoritariamente
composto por temas que dizem respeito à sua luta por direitos e visibilidade. Isso ocorre
também porque, muitas vezes, os meios de comunicação comunitária são fundados e
construídos por moradores que já têm alguma relação com a vida comunitária, no
sentido do espírito comum – ou seja, já carregam uma bagagem de outros coletivos.
Peruzzo chama a atenção, por outro lado, para a tendência dos veículos populares não se
pautarem mais exclusivamente em reportagens de caráter reivindicatório:
O caráter mais combativo das comunicações populares – no
sentido político-ideológico, de contestação e projeto de
sociedade – foi cedendo espaço a discursos e experiências mais
realistas e plurais (no nível do tratamento da informação,
abertura à negociação) e incorporando o lúdico, a cultura e
divertimento com mais desenvoltura, o que não significa dizer
que a combatividade tenha desaparecido. Houve também a
apropriação de novas tecnologias da comunicação e
incorporação da noção do acesso à comunicação como direito
humano. (PERUZZO, 2006, p. 06)

Podemos considerar, no entanto, que o olhar sobre o conteúdo de um veículo


comunitário deve ser cuidadoso e não preconceituoso. Deve-se considerar o vínculo
psicológico com os moradores da comunidade, e esse vínculo às vezes necessita ser
mantido através de temas cotidianos aparentemente não relevantes para a comunidade,

560
como narrativas ficcionais, horóscopo, etc.

3.3 Sobre interatividade e participação


Como vimos, o meio comunitário deveria permitir que a comunidade no geral participe,
inclusive por meio da produção de conteúdo (PERUZZO, 1998, p. 258). Nas rádios
comunitárias, como exemplifica, é comum que moradores disponham de algum espaço
e autonomia para a produção de seus próprios programas. Paiva ainda defende que
“Quanto mais estreita for a relação entre o veículo e os propósitos e objetivos duma
comunidade, mais seus membros vão estar envolvidos em sua produção, e
proporcionalmente maiores serão sua representatividade e reconhecimento como
veículo comunitário” (2003, p. 137).
Peruzzo, por sua vez, explica que nossa população foi formada, desde a época colonial,
sob regimes que não permitiam, incentivavam ou facilitavam a participação. “Nossas
tradições e nossos costumes apontam mais para o autoritarismo e a delegação de poder
do que para o assumir o controle e a co-responsabilidade na solução dos problemas”
(PERUZZO, 1998, p. 73). Isso tornaria necessário um esforço maior dos envolvidos
durante o estabelecimento de práticas solidárias e participativas. A pesquisadora
defende, portanto, a ideia de que essa participação deve ser conquistada e reivindicada,
tal como no modelo de democracia participativa. Já Paiva sugere que a atuação de
profissionais da comunicação dentro da comunidade, como agente social, deve incitar a
articulação comunitária: “a função desse profissional, considerado frequentemente
como agente externo, é provocar a participação” (PAIVA, 2003, p. 143).
É importante que haja participação da comunidade no veículo que lhe pertence, porém
somente a abertura para a participação não provê garantias de que a mesma acontecerá.
É preciso considerar que nem sempre a interatividade proposta pelas autoras é viável na
prática. Isso porque não devemos considerar comunidade como a busca pelo “paraíso”
que não comporta conflitos e contradições; na realidade é possível distinguir diversos
projetos comunitários, por vezes incompatíveis, dentro de um mesmo grupo que se
entende por comunidade.

3.4 Sobre compromisso com a cidadania e agir pela democratização da comunicação


A “educação para a cidadania” (PERUZZO, 1998, p. 258) deveria estar tanto na
produção de conteúdo como na própria existência e organização do veículo. A
Comunicação Comunitária pode, nesse sentido, dar vazão à socialização do legado
histórico do conhecimento, facilitar a compreensão das relações sociais, dos
mecanismos da estrutura do poder (compreender melhor a política), dos assuntos
públicos do país, esclarecer sobre os direitos da pessoa humana e discutir os problemas
locais. (PERUZZO, 2002).
Para Peruzzo, cidadania inclui direitos nos campos da liberdade individual, da
participação política e também direitos sociais. Isso quer dizer que ser plenamente
cidadão inclui ter direitos iguais perante a lei, direito à participação política e acesso a
um modo de vida digno, com garantia à educação, saúde, moradia etc., mas inclui
também ter deveres. Entre eles estão “o cumprimento das normas de interesse público”
e a “responsabilidade pelo conjunto da coletividade” (PERUZZO, 2002, p. 2).
A questão da participação, portanto, aparece como fundamental na vida social para a
autora. A cidadania é considerada uma conquista e, como tal, pode ser ampliada de

561
acordo com a capacidade do povo de “conquistá-la”. Essa capacidade é medida
justamente pelo grau de participação da população – participação nos movimentos
sociais, sindicatos, associações. Ou seja, a população deve se organizar para reivindicar
que a cidadania – que inclui o direito à participação – seja sempre ampliada. É uma via
de mão dupla. Participar é um direito e um dever do cidadão, assim como, segundo
Paiva “a maior capacidade para esse exercício encontra-se vinculada à conscientização
do exercício da cidadania [grifo meu] como direito e dever social” (PAIVA, 2003, p.
144). Ou seja, as autoras colocam os dois processos em ordens diferentes, mas podemos
considerar que nem a participação antecede a cidadania nem necessariamente contrário.
Os dois processos se dão de forma dialética e podem ser construídos organicamente ou
com interferência de agentes externos.

3.5 Para além de critérios


Faz-se necessário, no entanto, considerar que a caracterização de meios de comunicação
comunitários não deve se configurar em um delineamento rígido de critérios
excludentes, visto que esses meios foram e são fruto de um processo histórico de
décadas, em que cada vez surgem outros tipos de luta, mais transformações culturais e
outras formas de se reunir e protagonizar ações.
O maniqueísmo desproblematiza. Quando concentramos nossas
energias reflexivas na complicada questão da autenticidade ,
perdemos a chance de utilizar a força das contradições para
compor a análise. Sem dúvida, são inúmeros os casos de
deturpação das iniciativas de Comunicação Comunitária, e os
estudos da área não podem vilipendiá-los, sob o risco de ver
dissolvido seu objeto de análise. Mas acreditamos que a
utilização de critérios eliminatórios baseados no que seria um
modelo de mídia comunitária, pouco ou nada contribui para essa
questão, já que nos faz perder de vista a dimensão criativa e
multifacetada que esses meios assumem. (MALERBA in PAIVA
& SANTOS, 2008, p. 154)

Há uma flexibilidade, porém não total relatividade, naquilo que pode ser chamado hoje
em dia de “Comunicação Comunitária”. Pode-se questionar se os estudos exploratórios
sobre quais veículos estão dentro ou fora da modalidade já se tornaram ultrapassados
diante da complexidade política do tema.

4 Teorias políticas que fundamentam o estudo


A teoria gramsciana norteia o estudo sobre as novas formas capitalistas em que o
homem, sua cultura e, consequentemente, os meios de comunicação se inserem.
Utilizando-a como fundamento, podemos compreender a realidade cotidiana em que
emergem e “afundam” diversas tentativas de se construir comunicação alternativa e
comunitária. Oriundo de uma cidade provinciana da Itália, e buscando compreender, no
contexto do pós-guerra, por que as pessoas não se revoltavam contra a ordem vigente, o
cientista político Antonio Gramsci debruçou-se sobre o capitalismo em sua fase
monopolista, desenvolvendo em seu período de prisão (1926 – 1937) uma teoria
original sobre a sociedade civil e sua relação com o Estado, a partir de conceitos

562
fundamentais de Marx, Engels e Lênin.
Gramsci visualizou um cenário complexo nas relações de poder e nas organizações de
interesses, o que o levou a refundar o conceito de uma das dimensões da vida social: a
sociedade civil.
Agora, nas sociedades “de tipo ocidental”, haveria também a esfera da sociedade civil,
onde ocorrem mediações que estabelecem certo consenso, que configuram a hegemonia
de uma classe através de mecanismos de convencimento e dispositivos chamados
aparelhos privados de hegemonia. Os aparelhos privados de hegemonia são os
organismos sociais que representam os interesses dos atores que o compõem,
configurando assim o conflito e o consentimento na luta pela hegemonia. Através dos
aparelhos privados de hegemonia é possível, portanto, instaurar uma subordinação dos
outros grupos a seu modo de vida e produção. Na dimensão cultural, estes aparelhos se
revelam através da literatura, folclore e outros campos estratégicos da cultura, como os
meios de comunicação – surgidos com a imprensa: panfletos, jornais, revistas; e com
outras tecnologias: telégrafo, rádio, televisão, etc.
Dessa forma, com o conceito de Estado ampliado - “Estado é todo o complexo de
atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só se justifica e
mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados”
(GRAMSCI, 2000b, p. 331) – Gramsci entende que não há apenas um aparelho
repressivo que legitima a dominação da burguesia, há também a sociedade, dentro do
Estado.
Porém, a hegemonia não exclui a ocorrência de contradições e conflitos na sociedade
civil. Existem, assim, forças contra hegemônicas que lutam para conquistar espaços na
sociedade civil. De acordo com Gramsci, um processo revolucionário só seria possível
através desse processo ético político, configurando uma “Guerra de Posição”.
O fato de que um Estado seja mais hegemônico-consensual e
menos ‘ditatorial’, ou vice-versa, depende da autonomia relativa
das esferas superestruturais, da predominância de uma ou de
outra, predominância e autonomia que, por sua vez, dependem
não apenas do grau de socialização da política alcançado pela
sociedade em questão, mas também da correlação de forças
entre as classes sociais que disputam entre si a supremacia.
(COUTINHO, 1999, p. 131)

Os meios de comunicação, como aparelhos privados de hegemonia, direcionam o


pensamento coletivo para determinados interesses – e estão inclusos aí os meios
comunitários, que podem ser situados dentro dos interesses contra-hegemônicos.
Portanto, levando em conta o pensamento do autor italiano, percebe-se que as teorias e
práticas de cultura e comunicação estão ligadas à política e ao poder em um amplo
sentido. E é importante lembrar que a “hegemonia e as formas de dominação do capital
não começam e não se esgotam na mídia” (FONTES, 2009, p. 11). A mídia é apenas
uma das vertentes em que se configura agora a visível Guerra de Posições.

5 Considerações Finais
Para se falar em estratégias de Comunicação Comunitária e sua vinculação com o poder

563
popular, é necessário entender de onde surgiu esse campo, e qual a relação histórica
entre comunidade e sociedade. Mesmo em seus múltiplos sentidos, é necessário
entender bem a posição em que se quer chegar antes de usar o conceito de comunidade.
Não se deve defender uma utopia ultrapassada de paz e harmonia entre os indivíduos,
pois assim nunca poderíamos vivê-lo na prática. A Comunicação Comunitária, que
intrinsecamente está ligada politicamente ao que define comunidade e à questão da
democratização dos meios de comunicação, não deve ser considerada em termos rasos e
estigmatizados. Muitas vezes, ela se configura como um processo contra-hegemônico na
sociedade civil. Porém, é necessária uma visão dialética para entender o processo de
transformações que esta prática carregou ao longo de sua história.
Sabendo-se que os meios de comunicação são importantes mediadores de sentido na
sociedade civil, e que se inserem no plano cultural que configura a hegemonia, é notável
que, na conjuntura social brasileira já explicitada neste trabalho, os veículos de
Comunicação Comunitária
surgem como uma possibilidade [grifo da autora] de que novos
sentidos sejam agenciados nas esferas de negociação do poder:
indivíduos historicamente excluídos do processo
comunicacional têm a chance de que suas demandas passem a
circular na sociedade através de suas próprias enunciações.
(MALERBA, 2008, p. 153.)

Dessa forma, os conflitos existentes em uma luta pelo poder (e direito) da fala se
encaixam dentro da concepção de Gramsci de sociedade civil e hegemonia. Os meios de
comunicação funcionam como aparelhos privados de hegemonia, e, no Brasil, a
concentração desses meios em mãos de poucos conglomerados comerciais, com
vantagens dentro da legislação e das ações arbitrárias do Estado, demonstra a
dificuldade de se estabelecer uma resposta contra-hegemônica dos grupos de interesse
desfavorecidos. Porém, as tentativas têm-se multiplicado, configurando um importante
movimento de multiplicação de vozes e resistências no mundo da informação.
Os veículos alternativos incluem-se assim na categoria dos
aparelhos privados de hegemonia de Gramsci: atuam na
sociedade civil como organismos coletivos de natureza
voluntária, relativamente autônomos em face do Estado em
sentido estrito e gerados pela moderna luta de classes.
(MORAES, 2008, p. 45)

Levando-se em conta essas questões, estudar o caráter contra-hegemônico e outras


diferentes características dos veículos de Comunicação Comunitária significa
reconhecer seu papel dentro da sociedade civil, papel que se processa em outra lógica e
que promove cotidianamente a possibilidade de uma tomada de consciência rumo a
transformações, bem como explicita a falta de representatividade e a pirâmide de poder
inerentes à lógica hegemônica na qual a comunicação veio se constituindo.

564
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565
EIXO 8
Os movimentos
contra a opressão
de gênero, raça,
etnia e orientação
sexual
566
'Marcha das Vadias' y Mujeres en el escenario Político282

Camila R. Firmino283, Gabriela V. Iglesias284

Resumen

En el texto discutiremos desde la perspectiva de militantes feministas autónomas,


amparadas por las categorías de la teoría y práctica feminista, para reflexionar sobre el
evento “Marcha de las Vadias”. Iniciaremos contextualizando el surgimiento del
movimiento, sus estrategias y valores. Luego buscaremos comprender como aborda la
categoría “mujer” y el binomio igualdad-diferencia y como el término “vadia” es
significado por el movimiento. Finalmente, presentamos una breve descripción del
evento, a partir de la experiencia vivida en la Marcha de las Vadias del Distrito Federal.
Palabras Claves: Marcha de las Vadias; Feminismo; Igualdad; Diferencia

1. Panorama de la 'Marcha das Vadias' en el Brasil

“Las mujeres no deberían vestirse como putas para no ser victimizadas”285, fue lo que
dijo un policía en una charla en la Universidad de Toronto, Canadá en 2011, sobre la
seguridad en el campus. Es decir que una mujer no puede vestirse como puta para no ser
violada, la frase ha generado gran efecto en las movilizaciones feministas
contemporáneas de algunos países. En Toronto, el hecho generó diversos debates y trajo
el tema al ámbito público, culminando en la primer Sluts Walks286 en 3 de abril de 2011,
con la consigna “Cualquier cosa que usemos, cualquier lugar que vayamos, si es si, no
es no”287. El evento fue creado por dos mujeres, Sonya Barnett e Herther Jarvis (que no
se consideran feministas institucionalizadas – Helene, 2013: 69), divulgado en la red
social Facebook y adherido por varias mujeres autónomas y por grupos de feministas,
llegando a reunir cerca de cuatro mil personas.
La consigna contesta de la idea invertida de culpabilidad de la victima, expresada en la
frase del policía. Como si la exposición del cuerpo de la mujer fuera la causa de la
violación, abuso o violencia sufrida. Esta lógica criminaliza a la victima y libera al
propio agresor. La Marcha reivindica la libertad de exposición del cuerpo de la mujer y
re-ubica el rol del agresor como el responsable por el acto de violencia.
El acto de Toronto promovió una ola de marchas por diversos países del mundo288. En

282
Este artículo fue presentado para su publicación en la Revista Contrapunto (número 5°), editada y
publicada por el Servício Central de Extensión de la Universidad de la República del Uruguay –
SCEAM-UDELAR
283
Analista Técnica de Políticas Sociais do Governo Federal do Brasil, Braslia-DF
camilafirm@gmail.com
284
Tecnica del Nucleo de Economia Solidaria da Universidade de São Paulo, NESOL-USP, Campus São
Paulo, São Paulo-SP, gv.iglesias@gmail.com
285
“Women should avoid dressing like sluts in order not to be victimized”. (traducción propia)
286
Sluts Walks fue traducido al português como Marcha das Vadias y al español, como Marcha de las
Putas.
287
“whatever we wear, wherever we go, yes means yes, and no means no”. (traducción propia)
288
Países que ya realizaron 'Sluts Walks': Estados Unidos, Inglaterra, Sudáfrica, Alemania, Francia,
Holanda, Suecia, Escocia, Portugal, Israel, Dinamarca, España, India, Singapur, Nueva Zelanda,
Honduras, Australia, Corea del Sur, Nepal, Rumania, Uruguay, Argentina, México, Nicaragua,

567
Brasil la primera marcha fue convocada por mujeres de San Pablo. En la ocasión
marcharon en protesta a una declaración que el comediante Rafael Bastos, de la
televisión brasileña hizo en su programa de stand up: “Toda mujer que veo en la calle
reclamando que fue violada es muy fea. Qué reclama? Debería agradecerle a Dios. Esto
para ti no fue un crimen sino una oportunidad. El hombre que hizo eso [violación] no
merece prisión, merece un abrazo.”289. Además de la falta de respeto hacia a la imagen
de la mujer, el comediante reafirma la frase del policía de Toronto y hace una apología a
la violación. La marcha reunió cerca de 300 personas y terminó con un acto frente a la
casa de la comedia de la cual el comediante es parte. Además de la marcha, la
declaración del comediante generó un debate publico en los medios y una intimación de
la policía.
Así quedaba inaugurada la Marcha de las Vadias - MDV en Brasil, la cual en poco
tiempo se multiplicó por diversas ciudades brasileñas, según el mapeamento realizado
através de internet, hasta el año de 2014, la Marcha ha sido organizada en todas las
capitales brasileñas, con excepción del Estado de Acre, es decir que ocurrió en 26
Estados del país290. En anexo se presentan los links de acceso a la organización y
divulgación de la Marcha en las capitales brasileñas, es un movimiento que esta
diseminado e incorporado por diversos colectivos de mujeres por todo el Brasil. Se trata
de un público femenino muy amplio y diverso, para muchas representa su primera
experiencia política, para otras, pertenecientes a los grupos organizados, representa una
consigna y movimiento de protesta a sumarse. En general, las marchas son organizadas
de manera horizontal, espontanea y autónoma, sin mediación de grupos tradicionales de
izquierda, como partidos políticos o sindicatos, aunque los integrantes de estas
instituciones suelen participar de los actos o de la organización de los mismos.
Las redes sociales son elementos centrales que caracterizan parte de la dinámica de la
MDV, internet representa una herramienta importante en el proceso de movilización.
Las MDVs son convocadas por Facebook y divulgadas a través de materiales gráficos
que plantean sus pautas fundamentales. Durante la marcha, muchas de las consignas
están escritas en los cuerpos de las participantes que los utilizan como herramienta de
protesta: la defensa del derecho y libertad del uso del propio cuerpo, cuestionan la moral
cristiana y los valores hegemónicos y patriarcales, presentes en nuestra sociedad.
Así se utiliza el cuerpo como forma de expresión política: “Mi cuerpo, mis reglas”,
“Res-peito”, “Yo no vengo de tu costilla, tu vienes de mi útero”, “Soy Puta, soy Libre”,
“Eh Machista, mi orgasmo es una delicia”, “Si es Si, No es No”, “Yo también siento
calor”, “Basta”, “Contra la Violencia” son algunas de las frases que fueron dichas por
medio de los cuerpos de estas mujeres. Enfrentar y resignificar la desnudez es otro

Ecuador, Colombia y Brasil. In Helene, Diana 2013: 76, 77). En la nota 10 complementamos el
relevamiento hecho por Helene, relacionando los nuevos países de Latinoamérica que realizaron la
Marcha das Vadias.
289
“Toda mulher que eu vejo na rua reclamando que foi estuprada é feia pra caralho. Tá reclamando do
quê? Deveria dar graças a Deus. Isso pra você não foi um crime, e sim uma oportunidade. Homem que
fez isso não merece cadeia, merece um abraço”. (traducción própria). In: “Nota de repúdio às piadas
de mau gosto do ‘humorista’ Rafinha Bastos”. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Maio de
2011. Disponible en: http://www.aptafurg.org.br/novo_site/index.php/noticias/37-ultimas-
noticias/142-nota-de-repudio-as-piadas-de-mau-gosto-do-humorista-rafinha-bastos. Recuperado de 20
de agosto de 2014.
290
Capitales brasileñas donde ocurrió la Marcha: São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte
(BH), Distrito Federal (DF), Curitiba (PR), Porto Alegre (RS), Florianópolis (SC), Corumba (MS),
Cuiaba (MT), Cuiaba (MT), Goiás (GO), Vitória (ES), Salvador (BA), Fortaleza (RN), Recife (PE),
Palmas (TO), Aracaju (SE), Alagoas (AL), João Pessoa (PB), Natal (RN), Teresina (PI), São Luis
(MA), Belem (PA), Macapá (AP), Porto Velho (RO), Manaus (AM).

568
desafío que se pone la MDV, al cuestionar los patrones estéticos y de género de la
sociedad.

Figura 1 – Marcha de las Vadias de Campinas en 2011. Fonte: Cristina Beskow (2011)

Figura 2 – Marcha de las Vadias de Campinas en 2011. Fonte: Cristina Beskow (2011)

Figura 3 – Marcha de las Vadias de Campinas en 2011. Fonte: Cristina Beskow (2011)

569
Figura 4 – Marcha de las Vadias de Campinas en 2011. Fonte: Cristina Beskow (2011)

Una campaña muy interesante llevada a cabo por la MDV en el Distrito Federal en 2012
estuvo centrada en la discusión de los significados de lo femenino y de las mujeres
feministas. Por medio de producción de carteles digitales, se generó un cuestionamento
acerca
de la
imagen
estereot
ipada
de la
mujer
feminist
a y de
las
ideas
feminist
as.

Figura 5 – Carteles Digitales para Divulgación de la Marcha de las Vadias de Brasilia

Las frases utilizadas re-ubica los temas del feminismo en los acontecimientos cotidianos
de muchas mujeres. Muchas de las afirmaciones destacadas son compartidas por
mujeres que no se consideran feministas, limitadas por la visión del feminismo
estereotipado. Los carteles amplían la perspectiva sobre la militancia de la mujer por
politizar algunos temas considerados del sentido común y otros tabúes, a fín de traerlos
al ámbito publico para ser debatidos.
Aunque sea un fenómeno contemporáneo tiene gran presencia por toda Latino América.
Según nuestro relevamiento por internet, la Marcha das Vadias ocurrió em 15 países
latinoaméricanos291, siendo que en su mayoría ya se
instauró como un evento
anual. Divulgados por los
medios de
comunicación,
mayoritariamente, por el
aplicativo de Facebook,
son espacios virtuales
que denuncian los delitos
contra la mujer y analizan
las relaciones de género en
la sociedad. Entretanto,

291
Hasta el año de 2014 la Marcha das Vadias ya ocurrió en los siguientes países de Latinoamérica: Brasil,
Uruguay, Argentina, México, Nicaragua, Ecuador, Colombia, Honduras, Costa Rica, Peru, Panamá,
Venezuela, Bolívia, Chile, Republica Dominicana. En anexo se presentan los links con informaciones
de la Marcha en cada país.

570
en el ámbito académico las Marchas no han sido demasiado estudiadas, en una
búsqueda por los bancos de datos de artículos y tesis, pocas referencias fueron
encontradas, teniendo en cuenta la dimensión práctiva y novedosa del fenómeno. A
pesar de ello, vale mencionar trabajos de Costa Rica, Mexico y Argentina que, en
general, hacen un análisis de la Marcha en sus países, desde la perspectiva del uso del
cuerpo, las significaciones de las consignias, analisis de los discursos utilizados y de las
representaciones de los feminismos contemporáneo292.

2. La 'Marcha das Vadias' entre la Igualdad y la Diferencia

Aunque las banderas del movimiento feminista tradicional estén presentes en la MDV,
nos interesa preguntarnos ¿dónde se ubica dentro del debate contemporáneo de las
teorías feministas referentes a la igualdad y la diferencia?. La hipótesis que nos
planteamos es que se trata de una manifestación que logra romper con la dualidad de la
igualdad y la diferencia, por reivindicar la igualdad de género a partir de la diferencia de
la mujer y entre las mujeres. Las MDVs cuestionan los patrones estéticos hegemónicos,
y como veremos mas adelante, marchas como la MDV-DF incluyen personas trans293
por entender que la identidad de género no corresponde al sexo y que no basta
reconocer los derechos de las mujeres a partir de una categoría fija. Es preciso también
cuestionar a categoría mujer, evidenciando tanto las múltiples opresiones cuanto el
carácter biologizante de esta categoría.
Primeramente es importante aclarar los rasgos centrales de este debate. Lo haremos
utilizando como base en el texto de Lola Luna “De la emancipación a la
insubordinación: ¿de la igualdad a la diferencia?”. En los ochenta, las teorías post-
estructuralistas hicieron un aporte teórico a los conceptos manejado por las feministas,
agregando una nueva perspectiva en la cual se centra el discurso de la diferencia sexual.
Se trata de un momento denominado por Luna de “Insubordinación de las mujeres”, una
vez que buscan la superación de la desigualdad desde la afirmación de la diferencia.
Este 'feminismo de la diferencia' estuvo por mucho tiempo colocado en un conflicto
teórico por el movimiento feminista, al entenderlo desde de la dualidad entre la
diferencia y la igualdad.
Sin embargo, esta dualidad limita las posibilidades de análisis, una vez que crea falsas
oposiciones, de las cuales una se vuelve excluyente frente a la otra. Como alternativa
Luna propone otra perspectiva de análisis, que establece la desigualdad como oposición
a la igualdad, sacando el foco de la diferencia como opuesto a la igualdad. De esta
forma, se abre un nuevo eje del debate, en lo cual es posible analizar la igualdad desde
la propia diferencia.

292
Para mas información ver: HARTOG, G; PADILLA, A. L. C.; AMADOR, L. G. Expresiones de la
intimidad política desde el cuerpo de las mujeres activistas. Revista Palabra, V. 13 (13), 2013 - DÍAZ,
G. F.; PASTOR, C. Tu mamá también: Apropiaciones de la Marcha de las Putas en Argentina. Anais
del 2º Congreso Interdisciplinario sobre Género y Sociedad: “Lo personal es político”, UNC, 22, 23 y
24 de mayo de 2012 - ALCÁZAR, A. A.; RUDÍN, M. A. Géneros, sexualidades y diversidades: los
cuerpos como terreno de conflicto. IN: Informe de Coyuntura Costa Rica. Costa Rica – Informe de
coyuntura de enero a diciembre de 2011. N 301 CLACSO, 2011.
293
El término “trans” es usado con el mismo significado propuesto por Aimar Suess, o sea, se refiere a
todas las personas que eligieron una identidad o expresión de género diferente a la atribuida al nascer,
incluyendo personas transexuales, transgéneros, travestis, cross dressers, no géneros, multigéneros, de
género fluido, género queer e otras autodenominaciones relacionadas”(Suess, 2010: 29 apud Ávila ,
Grossi)

571
Luna propone el debate de la diferencia mas allá del cambio en la teorización de las
feministas, tiene que ver con la búsqueda de la identidad femenina:
Fue un punto de partida para muchas feministas en busca de su propia
identidad. Fue una etapa de reafirmación de ser mujeres, de revalorización.
Por otro lado la diferencia fue y es, un punto repulsivo, que asusta, porque
pone en cuestión parte de la teoría femenina-marxista. La evidencia de la
diferencia de la mujer respeto al hombre, es el punto de partida hacia otra
etapa en el proceso del feminismo, la etapa de liberación personal partiendo
de la diferencia. (Luna, 2000: 33)
Por otro lado el discurso de la igualdad tuvo fuerte impacto en las reivindicaciones de
políticas públicas en el ámbito de la institucionalidad del derecho de la mujer. A pesar
de la actual existencia de este discurso en la esfera de los derechos sociales, Luna
apunta al fortalecimiento que el discurso de la diferencia ganó en los últimos tiempos
dentro del propio movimiento y resalta su importancia para un avance en el proceso de
autonomía de la mujer respecto al modelo masculino que permanece vigente.
Es importante destacar el papel fundacional que tuvo el discurso de la igualdad desde el
siglo XIX, el cual tuvo que ver, sobretodo, con el contexto político y social de la época,
una vez que cuestionaba el derecho de la mujer de ser reconocida como un Ser Pensante
igual que el hombre. Por otro lado, con los cambios de la sociedad y del pensamiento
filosófico, es necesario un avance en el discurso en este sentido. El debate de la
diferencia tiene un rol importante en ese proceso para unir los dos conceptos, que por
mucho tiempo se mantuvieron como oposiciones excluyentes en el debate del
movimiento. Como apunta Scott:
Sin embargo, no una renuncia a nombre de una igualdad que implica similitud o
identidad, sino por el contrario, en nombre de una igualdad que se apoya en las
diferencias que confunden, desorganizan y vuelven ambiguo el significado de
cualquier oposición binaria fija. (Scott, 1992: 22)
La MDV logra avanzar en la praxis y transforma el binarismo igualdad/diferencia para
Igualdad/desigualdad. Trae al ámbito publico las desigualdades sufridas por las mujeres
cotidianamente a partir de una llave de afirmación de las diferencias. En la búsqueda
por una autonomía frente al patrón masculino y heteronormativo de vida, plantean
consignas que reafirman la diversidad intrínseca de la categoría mujer cuestionando sus
bases biologizantes. Trabajan temas tabú, como el aborto, la desnudez, el sexo, la
sexualidad, la violencia de género, los patrones heteronormativos, la mujer-objeto y
reivindican la libertad para Ser y Estar en el mundo. La MDV reivindica a libertad de la
existencia de diversas posibilidades estéticas y de identidad, un ejemplo son las
pancartas con la frase: "Libertad para los rollos, yo no soy tu Barbie" y el
involucramiento de personas trans en las marchas.
Quizás este rasgo central sea uno más de los motivos que hace que se agregue una
nueva generación de mujeres jóvenes que pasan a militar a partir de la experiencia de la
organización de la MDV, que estaban alejadas y no se sentían atraídas por del debate del
movimiento feminista de la generación anterior. Podemos asociar a la MDV a lo que
algunas autoras han denominado feminismo joven:
Al parecer, la formación de una vertiente joven en el feminismo adviene mas de
reformulaciones dentro del propio feminismo, con la problematización de la
categoría unificadora mujer, que por nuevas demandas resultantes de nuevas
relaciones marcadas por género e generación. (Gonçalves, Pinto: 2011:39-
Traducción propia)
Esto porque las jóvenes feministas no rechazan las banderas históricas del feminismo,

572
pero incluyen otras estéticas, lenguajes, estrategias de comunicación y expresión
artística y musical.
Julia Paiva Zanetti (2011) al analizar la trayectoria de cuatro jóvenes militantes
feministas expone que aunque las jóvenes siempre hayan participado del movimiento
feminista, solo ahora ellas reivindican espacios de discusión y cuestiones propias de la
juventud tal cual hicieran las mujeres negras y lesbianas en el correr de la segunda ola.
Según la autora los términos 'jóvenes feministas' y 'feministas adultas' son de uso
corriente y señalan el proceso de diferenciación entre los espacios de militancia
resultante en gran parte de un conflicto generacional. Este proceso de diferenciación no
ocurre en la MDV por se predominantemente protagonizada por mujeres jóvenes.
Existe esa categoría reividicativa de 'jóvenes feministas', mientras tanto es notorio que
la MDV dialoga principalmente con las jóvenes.

3. Proceso de significación del término Vadia

Slut, Vadia, Puta son términos utilizados de forma peyorativa en las relaciones de
género en nuestra sociedad, nunca se los utiliza como un elogio hacia a alguien.
También componen dichos populares que seguramente el lector haya escuchado o
pronunciado en alguna(s) ocasión(es) en su vida: “La gran Puta”, “La Puta que te
parió”, “Hijo de Puta”. La construcción cognitiva del término es resultado de un proceso
comunicacional a lo largo de la historia pero no es algo estático, sino que posee una
dinámica propria, resultado de las interacciones sociales. Atribuirle otros significados al
término, es parte de uno de los objetivos de la MDV. Para entender su proceso de
significación, podemos remitirnos a la semiótica. El proceso comunicacional esta
compuesto por la fuente, el emisor, el canal de comunicación, el mensaje y el
destinatario (Eco, 1980: 21). En esta cadena, la información solo existe en la presencia
del receptor ya que es en esta instancia que se da su reconocimiento:
Es justamente en el receptor que la faceta de la semiótica se hace presente, una
vez que solo es reconocida la posibilidad de alteración de estructura, cuando
los signos que son percibidos entran en contacto con los signos del receptor, en
un proceso de Semiosis Ilimitada (definido por Eco, 1980, p.60), que es cuando
se da la acción de un signo sobre otro en la construcción de la significación o
del sentido. (Azevedo Neto, 2001: 40. traducción propia)
El reconocimiento del signo pasa por una conexión con otras significaciones de
determinada unidad cultural294 del receptor configurándose un ciclo de semiosis. Así se
considera información a todos los significados que se conectan por medio de esta
cadena de signos. Desde la perspectiva de la semiótica de Eco, se establece una relación
tripartita entre el signo, el objeto y el interpretante (Eco, 1980):

Significado – Interpretante -PROSTITUTA

294
“Todo interpretante de un signo es una unidad cultural semántica. Estas unidades se constituyen de
manera autónoma en una cultura, en un sistema de oposiciones cuya interrelación global se llama
sistema semántico global. Por regla general se determinan como estando constituidas en campos
semánticos o incluso en simples ejes de oposición. El sistema de las unidades semánticas viene a ser la
manera como en una cultura determinada, se segmenta el universo perceptible y pensable para
constituir la forma del contenido.” in ECO, Umberto. Signo. Labor, Barcelona, España: 1980, pág.
177.

573
Signo - VADIA Objeto – Referente - MULHER
Se utilizaron las referencias de Eco (1980) y Peirce (1931) para denominar cada vértice
del triangulo. Para interpretar la ilustración se puede afirmar que desde un objeto de
referencia se genera un signo, el cual es entendido como “algo que se pone en lugar de
otra cosa o por alguna cosa” (Eco, 1980: 22), que a la vez genera un significado para su
interpretante. En el caso analizado, consideremos a la Mujer como Objeto de
Referencia, el cual en relación con el interpretante, se la nombra Vadia y se le atribuye
el significado de Prostituta.
Pero lo relevante en nuestro caso, es aclarar que esta relación no es fija para cada objeto,
es decir, de cada signo se pueden desencadenar incontables significados “El signo no
representa la totalidad del objeto sino que -mediante diferentes abstracciones- lo
representa desde un determinado punto de vista o con el fin de alguna utilización
práctica.” (ECO, 1980: 27, 28)
Tomando la categoría signo es importante acentuar su poder de referencia en relación a
si mismo, a su objeto y al interpretante. Así, a partir de un objeto, el signo Vadia posee
una expresión significante en sí mismo y un contenido que expresa un significado, que
le es atribuido por un interpretante. Los atributos semánticos de Vadia no están restrictos
a un solo significado, sino a diversas unidades culturales semánticas, este proceso se
explica por la connotación del sentido lingüístico, que se puede desarrollar desde un
signo. Desde esta perspectiva la MDV, pone en curso un proceso comunicacional en que
se le atribuyen otros significados al signo Vadia por las mujeres, ya sea el día de la
marcha, en los documentos escritos o en su propia cotidianidad.
“Somos todas Vadias”, “Si ser libre es ser vadia, somos todas vadias”, “Ser mujer es ser
vadia”295, al reafirmarse como Vadia, se positivizan los rasgos considerados negativos,
utilizados como ofensas en las relaciones de género, y se les generan nuevos
significados a partir de su inversión. Tal como lo hace la 'Marcha das Vadias' do
Distrito Federal MDV DF , en su Manifiesto de 2012:
Ya fuimos llamadas de vadias porque usamos ropas cortas, ya fuimos llamadas
de vadias porque tuvimos sexo antes del casamiento, ya fuimos llamadas de
vadias por simplemente decir “no” a un hombre, ya fuimos llamadas de vadias
porque levantamos el tono de voz en una discusión, ya fuimos llamadas de
vadias porque no seguimos lo que la sociedad o nuestra familia esperaba de
nosotras, ya fuimos llamadas de vadias porque andamos solas por la noche e
fuimos violadas, ya fuimos llamadas de vadias porque nos emborrachamos y
nos violaron cuando estabamos inconscientes, por un o varios hombres al
mismo tiempo, ya fuimos llamadas de vadias cuando torturadas durante la
Dictadura Militar y en todos los regímenes carcelarios antes y después de eso.
Ya fuimos y somos diariamente llamadas de vadias apenas porque somos
MUJERES (…) Negras, blancas, indígenas, estudiantes, trabajadoras,
prostitutas, campesinas, transgéneras, madres, hijas, abuelas. Somos de
nosotras mismas, somos todas mujeres, somos todas vadias! (Marcha das Vadias
del Distrito Federal, 2012- Traducción propia)

4. El Caso de la 'Marcha das Vadias' del Distrito Federal: Un relato de


experiencia vivida

295
Son algunas de las frases utilizadas como consigna de la MDV. (traducción propia)

574
Como ya fue colocado, la MDV no es una organización o un grupo con coordinacón
central, por el contrário, las marchas ocurren en diversas ciudades del país por
iniciativas locales. Cada marcha es organizada por un colectivo local y cada colectivo es
autónomo en sus acciones y en su forma de organización. Buscamos discutir sobre la
MDV a partir de nuestra experiencia en tanto militante feminista autónoma participante
también de la organización de la marcha, no hablamos en nombre de la MDV DF, ni
tampoco pretendemos que esta descripción sea conclusiva, pues sin dudas existen otras
interpretaciones y perspectivas sobre el evento. Traeremos una breve descripción de la
MDV DF, una de las mayores en términos cuantitativos de participantes y de la cual una
de nosotras participara en el año 2013. La primer MDV DF de 2011 y su organización:
Comenzó en Facebook, a partir del contacto con algunas mujeres feministas que
se conocían pero que un no conformaban un colectivo. Fuimos llamando a
otras amigas, creamos un evento de divulgación de la primer reunión de
construcción de la marcha en Facebook y, para nuestra sorpresa, cerca de 60
mujeres aparecieron para la reunión. Creamos una lista de e-mails que contaba
con unas 80 mujeres involucradas de diversas formas en la marcha. (Marcha
das Vadias do Distrito Federal)
En 2011 fueron 2000 personas marchando, en 2012 y en 2013 fueron cerca de 4000
personas en marcha en cada año. En el año 2013 participaron de la MDV DF cerca de
300 mujeres. El colectivo se organiza por medio de comisiones (comunicación,
agitación, trayecto, seguridad, batucada) que articulan en reuniones generales y con
auxilio de la comunicación vía internet. Puede participar de la organización, integrando
al menos una de las comisiones, cualquier mujer o persona trans que esté de acuerdo
con la carta de principios. Sin embargo, para participar de la organización es necesario
participar de, por lo menos una de las reuniones generales que ocurren tanto antes de
iniciarse los trabajos en las comisiones como durante este período, pues son en estas
reuniones que las comisiones articulan, encaminan y deliberan sobre los arreglos
necesarios para el evento. La organización es, por tanto horizontal. A pesar que muchas
de quienes componen la organización sean afiliadas a Partidos Políticos o pertenezcan
también a otras organizaciones o movimientos sociales, en conformidad con la carta de
principios de la MVD DF “Para respetar a heterogeneidad de posicionamientos políticos
e ideológicos de las mujeres que construyen la Marcha, colectivos, movimientos,
organizaciones, instituciones y partidos no componen la organización de la Marcha das
Vadias DF.”( Marcha das Vadias do Distrito Federal)
He participado de colectivos feministas autónomos desde 2003 y sin duda alguna la
MDV es la acción feminista que reúne mas mujeres en un mismo espacio físico con un
mismo propósito. La visibilidad que la marcha da a las pautas feministas y el
empoderamiento que proporciona a sus participantes son importantes contribuciones de
la MDV para la lucha feminista. Las pancartas, la música acompañada por la batucada,
las consignas y las charlas traen tanto antiguas reivindicaciones del movimiento
feminista tales como la legalización del aborto, el fin de la violencia contra las mujeres,
el derecho al placer sexual; como protestas contra cuestiones puntuales como, por
ejemplo, las declaraciones machistas y homofóbicas del Deputado Federal Marcos
Feliciano296 y los proyectos de ley conocidos como Estatuto do Nascituro297 e Cura

296
El Diputado. Federal Marcos Feliciano es pastor neopentecostal electo en 2010 e es acusado de
homofobia y racismo por haber posteado en las redes sociales comentarios considerados ofensivos a
homosexuales y negros. Presidió en el año 2013 la Comisión de Derechos Humanos y Minorías de la
Cámara Legislativa.
297
El Consejo Nacional de los Derechos de las Mujeres se manifestó contrario al Proyecto de Ley
478/2007 que dispone sobre el estatuto do nascituro, en trámite en el Congreso Nacional, alegando

575
Gay298. El sentimiento de empoderamiento es recurrentemente relatado por las
participantes de la marcha que muchas veces se emocionan por estar en un evento de
protesta protagonizado por mujeres. Muchas jóvenes y mujeres relatan haber tenido su
primer contacto con el feminismo por medio de sus participaciones en las MDVs.
Las redes sociales aceleran la circulación de las informaciones y con eso posibilitan una
divulgación mas eficiente de los eventos. En este sentido, el uso de la tecnología de la
información, por las feministas de la MDV, se asienta como un catalizador para la
acción en red propia de muchos movimientos sociales como el movimiento feminista.
También la estructura horizontal persiste como forma privilegiada de organización en
los movimientos feministas:
Esto es válido apenas para las organizaciones estructuradas, como para los
espacios de decisión del movimiento (foros y encuentros). Así, rompiendo con
las formas tradicionales de organización verticalizada, el feminismo se
construye con base en la participación efectiva de sus militantes. En Brasil
hasta los años 1990, el principal espacio para el debate colectivo eran los
encuentros feministas nacionales (anuales y luego, bienales) y latinoamericanos
(bienales). Posteriormente tomaron forma las redes y foros locales y regionales,
fortaleciendo la organización política y dando mayor efectividad a las
campañas y agendas del movimiento. (Gonçalves, Pinto; 2011: 33- traducción
propia)
Si por un lado la MDV consigue colocar miles de personas en la calle pautando las
demandas feministas y proporcionando la difusión del ideario feminista a personas que
nunca habían tenido contacto con él, por otro no ha logrado superar las cuestiones que
se encuentran en la superposición de clase, raza y etnia. A pesar que en la carta de
principios estas cuestiones sean patentes: 'Creemos que el fin de la violencia contra la
mujer está directamente ligado a la transformación de los valores conservadores y
hegemónicos en nuestra sociedades, asi como la superación del patriarcado, de todos los
fundamentalismos, de la lesbofobia, la bifobia, la transfobia, la homofobia, del
machismo, del racismo y del capital; la composición de la marcha ha sido marcada por
la asimetría de clase y de raza. A pesar que entre las involucradas en la MDV DF haya
mujeres negras y/o histórica y económicamente excluidas, su mayoría es de mujeres
blancas y de clase media, así como yo.
Las mujeres negras de la marcha propusieron un grupo de trabajo para abordar las
cuestiones raciales en el interior de la MDV DF, ya que las demandas de las mujeres
negras remiten a las cuestiones de clase y de racismo que no son vividas pero deberían
ser percibidas por las mujeres blancas. Sin embargo, en la época, el GT quedó vacío
demostrando que la cuestión racial no fue tratada con centralidad por la MDV DF.
Aunque fue propuesto por las mujeres negras de la marcha era esperado que este GT
fuera frecuentado sobretodo por las mujeres blancas a fin de que de ese modo pudieran
desconstruir sus privilegios y que en alguna medida la MDV DF fuera capaz de abarcar

que violaría los Derechos Humanos de las mujeres, al pretender reconocer la dignidad humana desde
el útero lo que, según este consejo, dificultaría la realización de los abortos en los casos no punibles
por el Código Penal: riesgo de vida a la gestante y violación, o bien como en casos de embarazo de
feto anencéfalo, que dejó de ser castigada por decisión del Supremo Tribunal Federal.
298
Una resolución del Consejo Federal de Psicología (CFP), de 1999, prohibió a los profesionales de
participar de terapia para alterar a orientación sexual. En 2011, el diputado federal João Campos
(PSDB-GO) protocoló en la Cámara de Diputados un Proyecto de Decreto Legislativo, conocido
como “Cura Gay”, que proponía suprimir la resolución do CFP referente al asunto. Un mes después de
ser aprobado el proyecto en la Comisión de Derechos Humanos y Minorías de la Cámara Legislativa
el autor del proyecto solicitó el retiro del mismo luego que su partido se posicionara contrariamente
(EBC).

576
la especificidad de las mujeres negras. La MDV DF también sufrió críticas de otros
colectivos de mujeres negras por no tomar la cuestión racial como central. Una de las
críticas habla respecto al uso del término vadia. Las posiciones críticas al término
colocan que las mujeres negras ya son socialmente sexualizadas indepedientemente de
su comportamiento o de la ropa que vistas, así, la re-significación del término vadia no
sería una crítica a la sexualización de las mujeres negras en Brasil sino apenas a la
sexualización de las mujeres blancas que huyen del patrón de 'dama recta'.
En Brasil aun tenemos mucho por lo que luchar en lo que refiere a las desigualdades299
entre mujeres y hombres: legalización del aborto, la criminalización de la homo, trans
y bifobia, igual división entre mujeres y hombres de las tareas de cuidado, políticas
públicas que den soporte al enfrentamiento de la violencia contra las mujeres y las
tareas de cuidado (tales como restaurantes, lavanderías y guarderías públicas y escuelas
de período integral para tado la población), igualdad de acceso, permanencia y salarios
en el mercado de trabajo, entre otras. Pero también se deben superar las desigualdades
entre las propias mujeres llevando en consideración que la lucha feminista debe
contener en si una práctica de descontrucción de privilegios que nos permita cuestionar
y enfrentar las estructuras patriarcales, capitalistas, racistas y heteronormativas.
La MDV se ha colocado como un evento capaz de reunir millares de personas en torno a
las pautas feministas históricas. Las tecnologías de la información son herramientas
importantes que catalizan la articulación y la acción en red propias de los movimientos
feministas. También se percibe por medio del lenguaje y estrategias de comunicación la
asociación de la MDV a lo que se ha denominado 'feminismo joven'. Se observa que la
MDV en la medida que cuestiona los patrones estéticos, de sexualidad y de identidad de
género hegemónicos, cuestiona también la propia categoría 'mujer' como categoría fija.
En el caso de la MDV DF vimos que a pesar de haber existido un esfuerzo de pautar las
especificidades de las mujeres negras y/o histórica y económicamente excluídas no se
consiguió que estas cuestiones fueran centrales para la marcha. En este sentido,
percibimos que el diálogo y la tensión entre los sujetos del feminismo (sobre todo entre
feministas negras y blancas) es parte constitutiva del movimiento feminista, pues el
sujeto del feminismo no es la mujer sino la mujer marcada por las diferencias de clase,
raza, etnia orientación sexual, identidad de género, edad, etc. Lo que el feminismo negro
ha traído a colación es que debemos cuestionar nuestros privilegios para enfrentar las
desigualdades comenzando desde dentro de las organizaciones o movimientos que
integramos.

5. Referencias Bibliográficas

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como terreno de conflicto. IN: Informe de Conyuntura Costa Rica. Costa Rica –
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ABEH, Natal, 26 e 27 de novembro de 2010.

AZEVEDO NETO, C. X. (2001). A Arte Rupestre no Brasil; Questões de transferência


e representação da informação como caminho para interpretação. Tese (Doutorado) -

299
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conselho-nacional-dos-direitos-da-mulher-sobre-a-aprovacao-do-estatuto-do-
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http://marchadasvadiasdf.wordpress.com (Recuperado de 20/08/2014)

“Marcha de las Putas, um exito em todo el mundo”: http://www.belelu.com/2011/06/marcha-de-las-putas-


un-exito-en-todo-el-mundo/ (Recuperado de 20/10/14)

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579
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581
“Parada do Orgulho LGBT - Rio: um desfile-mobilização e suas estratégias de
transformação”

Gisele S. Paris1

1
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro-RJ –
gsparis@hotmail.com

Resumo
Este trabalho pretende analisar algumas práticas comunicativas implantadas em torno
da Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro, na edição do evento de 2013, como vetor de
socialização e as ações que acompanham esse fenômeno comunicacional na cultura
contemporânea.
Partindo das primeiras observações participantes da pesquisa etnográfica realizada no
evento, busca-se analisar a relação que as mobilizações sociais pretendem estabelecer por
meio de processos comunicativos com os sujeitos na sociedade, e no endereçamento da
temática nos debates públicos. De forma mais específica, como se constitui o evento e em
que medida as dimensões estratégicas aqui propostas como a espetacular, a festiva e a
argumentativa se sobrepõem e se inter relacionam para mobilizar os participantes e demais
atores, ganhando materialidade nos espaços de visibilidade pública alcançados pela Parada
do Orgulho LGBT.

Palavras-chave: Parada LGBT; Carnavalização; Mobilização; Sociabilidade;

1 Introdução
A proposta deste trabalho é analisar práticas comunicativas da Parada do
Orgulho LGBT do Rio de Janeiro que operam como vetor de socialização e as ações
que acompanham esse fenômeno na cultura contemporânea.
As Paradas LGBT alavancadas pelo formato bem-sucedido na capital paulista,
expandiram-se de norte a sul do país, seguindo datas aproximadas e adotando modelos
similares de organização com caminhões de trios elétricos, potentes amplificadores,
fantasias, decoração com as cores do arco-íris, shows, drag queens, gogo boys e a
participação de celebridades e militantes políticos, sobretudo em anos de eleição. Entre
os participantes é comum encontrarmos mulheres usando gravata, homens vestindo-se
com trajes usualmente femininos, outros com roupas de couro aludindo à fetiches, além
de fitas do arco-íris amaradas na cabeça ou bandeirinhas flamejantes nas mãos. Nos
arredores da mobilização, trabalhadores formais e informais aproveitavam o evento para
vender desde bebidas variadas a guloseimas e acessórios com símbolos do orgulho
LGBT.
Fortemente marcada por seu aspecto lúdico, o evento adquiriu contornos e
tendências a se configurar como carnavalização, no sentido bakhtiniano, de relevância

582
do riso popular no entendimento do contexto da obra de François Rabelais, afirmando
que “sua amplitude e importância [da carnavalização] na Idade Média e no
Renascimento eram consideráveis (...) opunha-se à cultura oficial, ao tom sério,
religioso e feudal da época”(BAKHTIN, 2010, p.3), caracterizando-o para além de uma
atividade político-cultural.
Como objeto das mais variadas discussões, pleiteando políticas públicas por
meio das práticas interativas dos sujeitos na sociedade, a Parada LGBT – Rio, realizada
no bairro de Copacabana, têm instaurado estratégias de espetacularização e práticas de
festa, alcançando milhares de participantes na edição do evento em 2013.
A magnitude da Parada LGBT - Rio tem mobilizado um público bem maior do
que os LGBTs da cidade. Desperta o interesse de diferentes grupos que associando-se
ao que, neste trabalho denomino como desfile-mobilização, também buscam
reconhecimento de direitos como a tolerância religiosa e o combate à violência contra
mulheres, entre outros.
Interferindo na vida cotidiana da orla da praia de Copacabana, paisagem de forte
referência internacional e da realização de eventos de grande visibilidade e repercussão,
o desfile-mobilização é construído e consumido por seus participantes
concomitantemente com um espaço urbano. Uma área tradicionalmente utilizada para o
lazer e paisagem de referência mundial aliada à realização deste evento, caracteriza-se
como uma estratégia de expressão política, que pretende gerar tematizações à esfera
pública, buscando que os participantes ultrapassem o estágio de participação
contemplativo nesse processo comunicativo e atue como um agente político e cidadão
integrando-se num envolvimento coletivo.
Objetivando alcançar esse diálogo, faz-se necessário entender e caracterizar as
práticas comunicativas estabelecidas na Parada do Orgulho LGBT. Pelo ponto de vista
de Mafra (2008, p.81), há três dimensões de análise: a dimensão espetacular, entendida
como a que objetiva “despertar o interesse, capturar a atenção dos sujeitos”; a dimensão
festiva, que “permite o engajamento in loco, corpóreo dos indivíduos” e a dimensão
argumentativa “que torna disponível publicamente argumentos que justificam uma
transformação coletiva mais ampla e estimulam e sustentam um debate público”.
Entendendo que na prática as categorias se misturam e se sobrepõem, percebe-se que a
articulação de tais práticas visa alcançar existência pública. Como caracteriza Ricardo
Freitas:
“Os eventos são acontecimentos especiais que socializam informações e
experiências de ordem técnica ou afetiva, representando, assim,
processos de mediação social. No caso dos megaeventos, isso se
multiplica de forma exponencial quanto a patrocínios, públicos-alvo,
infraestrutura, recursos humanos especializados, entre tantos outros
aspectos econômicos, além de representar uma enorme possibilidade de
se vivenciar novas sociabilidades.”. (FREITAS, 2011)
O desenvolvimento altamente especializado dos meios, técnicas e instrumentos
de comunicação, bem como a forte presença gerada nos meios de comunicação, tem
amplificado os processos comunicativos e as tematizações. Sendo assim, para ganhar
existência pública, diversas mobilizações planejam estratégias comunicativas, tanto para

583
despertar a atenção da mídia, quanto para convocar públicos específicos à participação e
ao debate, no intuito de conseguir visibilidade para alcançar a esfera pública e o
reconhecimento de suas propostas.
Quando os brados dos participantes das Paradas LGBT solicitam uníssonos
igualdade de direitos e respeito à diversidade sexual, o que também está sendo
agenciado é que na sociedade efetivamente haja uma “multiplicidade de vozes e
consciências independentes e imiscíveis (...) uma polifonia de vozes plenivalentes”
(BAKHTIN, 1981, p. 4). Percebe-se uma busca por uma sociedade plurivocal, uma
“polifonia”, entendendo-a como a orquestração de várias vozes que necessariamente
não se fundam numa única.
Nas últimas três décadas, a luta do movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais,
travestis e transexuais) por mudanças sociais vem conquistando aceitação, visibilidade e
espaços midiáticos. Como esclarece George Yúdice (2004, p.76), as identidades sexuais
reveladas pelos LGBTs “foram sendo incorporadas a uma série de mecanismos
governamentais (no sentido foucaultiano) que fornecem a obrigatoriedade de
representá-las”, abrindo caminhos de socialização de uma população de cidadãos não só
exigente de direitos e liberdade como de produtos diferenciados que logo se traduziram
na oferta de novos produtos, serviços e estabelecimentos abertamente dirigidos para
atender ao alto nível de poder de consumo, incluindo os homossexuais como DINKs
(double income, no kids, - dupla renda, sem filhos). Observa-se, entretanto, que o
próprio Estado se apropria dos discursos temáticos da “Diversidade” e colabora com a
expansão de estabelecimentos Gay Friendly , em troca de maior visibilidade para a
cidade em veículos de comunicação de massa e sitios na internet que potencializam não
só a magnitude das Paradas LGBT como o incremento ao turismo local .
Assim, considerando-se que a visibilidade é um fator chave para o cumprimento
dos objetivos de crescimento e fortalecimento, as mobilizações sociais procuraram
transformar as lutas por reconhecimento em lutas por visibilidade. Fazer-se ver e ouvir
tornou-se o centro das turbulências políticas do mundo moderno. Busca-se que as
reivindicações e preocupações dos indivíduos tenham um reconhecimento público,
servindo de apelo de mobilização para os que não compartilham o mesmo contexto
espaço/temporal. Toda as ações produzidas naquele “pedaço” (MAGNANI, 1998),
intencionam envolver via sociabilidade e repercutir também na grande mídia, vista
como um espaço privilegiado para a exposição das causas e ações dos movimentos, por
ofertar uma
visibilidade ampliada das disputas e controvérsias existentes na vida
social e se torna central para a divulgação das produções simbólicas que
acontecem nos diversos campos sociais.(FERNANDES, 1999, p.1)
Diante deste cenário, observa-se a relação que as mobilizações sociais
pretendem estabelecer por meio de práticas comunicativas com os sujeitos na sociedade,
e no endereçamento de tematizações à esfera pública, engendrando recursos
estratégicos, que se misturam e se sobrepõem em vários ângulos como: o espetacular, a
festa e a argumentação. Pretende-se investigar como tais práticas comunicativas
constituem diferentes esferas de visibilidade pública, produzindo sentidos de variada
abrangência e impacto.

584
Como pressuposto inicial deste trabalho, considera-se tratar de um processo de
mobilização que agrupa três categorias analíticas - espetáculo, festa e argumentação, em
torno do movimento LGBT. Não seria suficiente dizer que os indivíduos estão
mobilizados quando contemplam, por meio do espetáculo, ou quando se envolvem por
sociabilidade, via dimensão festiva. Torna-se essencial que haja a possibilidade de
interlocução. Assim, a questão fundamental envolvida neste processo, para que
realmente um debate público aconteça a partir da realização da Parada do Orgulho
LGBT, deve ser a densidade argumentativa presente e visível que irá expor as razões e
promover um debate mais enriquecedor, buscando também a posição de diversos atores.
2 Breve histórico das práticas homossexuais e da marcha gay

Na contemporaneidade a ciência se ocupa em discutir sobre a determinação da


sexualidade ser biológica ou cultural, e a discussão legal é se o Direito deve estender todas as
conquistas que os heterossexuais possuem também aos homossexuais. Paralelo a isso
ocorrem nos espaços públicos, entendidos como as ruas, escolas, hospitais e espaços
destinados às atividades de lazer, as batalhas mais duras, onde os homossexuais buscam o
respeito e a isonomia. Nesse sentido, as Paradas do Orgulho LGBT tem exercido importante
papel, uma vez que o evento promove um espaço onde há um sensível aumento no nível de
tolerância com as diferentes formas de se relacionar, promovendo uma coexistência com a
dita normalidade.
Registros históricos encontrados por pesquisadores apontam que até a Antiguidade
era natural viver a sexualidade nas suas mais variadas formas com certa naturalidade.
Modelos formais de organização militar foram forjados a partir das práticas homossexuais:
“Os gregos da Antiguidade produziram uma quantidade considerável de
literatura sobre a arte da guerra e a homossexualidade, mas os momentos
em que os dois temas se cruzam são poucos. As cidades de Ilia e Tebas
exploraram regularmente o ethos homossexual para fins militares,
habitualmente postando pares de namorados, um ao lado do outro em
batalha. Pouco se sabe da prática militar Iliana, mas o "Bando Sagrado de
Tebas", organizado em 378 a.C., não só foi inteiramente composto por
amantes homossexuais, mas formou o núcleo duro do formidável
exército tebano, até que foi esmagado por Filipe da Macedônia na batalha
de Queronéia em 338 a.C.. O comandante de Tebas, Pammenes,
defendeu o emparelhamento de amantes no campo de batalha como um
princípio de organização militar, e foi uma prática entre seus guerreiros
que os membros mais velhos dos pares romanticamente ligados
apresentassem os conjuntos de armaduras para os membros mais jovens
quando eles chegassem à idade de luta. (BURG, 2002, p. 05).”
A situação mudou a partir do aparecimento do cristianismo e do surgimento das
primeiras nações europeias na Idade Média, época em que o sexo passou a ser visto como
pecado, exceto se praticado para fins de reprodução. A prática de qualquer ato sexual
diferente deste fim era passível de punição e seus praticantes submetidos a penitências, ou
até mesmo a morte.
No século 19 a relação entre pessoas do mesmo sexo mudou sua conotação de
pecado para a de doença e crime, e no fim da década de 60, nos EUA, iniciava-se outra

585
batalha, conhecida como os acontecimentos de Stonewall, em New York. Prisões arbitrárias
eram comumente realizadas pela policia local de forma a criar um clima de medo que
auxiliava a pratica de extorsão contra frequentadores de um bar gay. Em 28 de junho de
1969, durante uma batida policial, um grupo de clientes se recusou a ceder às extorsões o
que deu início a uma revolta que perdurou por três noites, quando os homossexuais
reprimidos demonstraram uma fúria até então desconhecida contra seus tradicionais
opressores, culminando na prisão de 13 pessoas. Nas semanas seguintes novos protestos
eclodiram até que por fim, no dia 27 de julho, foi organizada aquela que é considerada a
primeira marcha gay dos Estados Unidos, onde ativistas reuniram-se na Washington Square
e caminharam em marcha até Stonewall, gritando palavras de ordem que não eram habituais
naquela época.
A partir de então outras marchas de rua foram organizadas para relembrar estes
acontecimentos, inspirando diversas Paradas LGBT, onde milhares de pessoas buscam uma
visibilidade que lhes é negada por séculos, lutando contra a discriminação a que vem sendo
submetidas desde que os padrões heteronormativos de sexualidade, que ainda estão em
vigor, foram impostos pelas forças dominantes.
No Brasil os primeiros movimentos organizados se formaram no início dos anos 80,
com o surgimento de grupos de ativistas e associações que posteriormente constituíram-se
em Organizações não governamentais - ONGs. A atuação destes grupos, e de outros que
foram surgindo posteriormente, buscava promover o resgate da autoestima da população
LGBT, além de lutar pelo pleno reconhecimento dos direitos e cidadania dessa parcela da
população. Entretanto, a luta sofreu um grande abalo pela vinculação do surgimento e
disseminação da AIDS aos homossexuais, ofuscando sua busca por igualdade e causando a
desmobilização de alguns grupos, enquanto outros passaram a se dedicar prioritariamente ao
combate a esta doença.
Transcorridos quinze anos das primeiras mobilizações brasileiras, uma nova geração
de homossexuais incentiva a retomada das ruas em busca de seus direitos. Em 1995,
centenas de pessoas seguiram proferindo palavras de ordem atrás de um carro de som. Surgia
então a primeira Parada do Orgulho Gay, que aconteceu na Praia de Copacabana, no Rio de
Janeiro. Em 1997, realizou-se a primeira Parada do Orgulho Gay de São Paulo, com
aproximadamente dois mil participantes. Em 2011, o número de participantes em São Paulo
alcançou a marca de quatro milhões300, atingindo um número recorde de público, tornando-
se uma das maiores paradas do mundo. A APOGLBT – Associação da Parada do Orgulho
GLBT, ONG organizadora do evento em SP, em parceria com a Prefeitura, estendeu e
diversificou as atividades oferecidas em um único dia para um mês de duração, atuando em
variadas frentes de eventos culturais, educativos e de promoção de direitos e cidadania
como: feiras culturais da diversidade, festivais de cinema, festivais literários, seminários,
ciclos de debates e premiações. As atividades ocorrem do Mês do Orgulho LGBT, que
acompanha o mês de realização da Parada.

3 Visibilidade e Expressão

300
http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/apesar+da+chuva+parada+gay+de+sao+paulo+reune+4+milh
oes/n1597047897559.html, acessado em 08/08/2014.

586
O ano de 2013 trouxe fortes expectativas para o Rio de Janeiro, cidade sede da
realização de diversos megaeventos nesta década. Como cenário de alguns destes
ajuntamentos, Copacabana apresenta-se não só como uma das praias mais famosas do
mundo como também, palco propício para diversas manifestações culturais da cidade,
atraindo alta visibilidade e transformando a dinâmica de lazer da orla num espaço de
expressão política.
Toda beleza à beira mar, a infraestrutura com hotéis, quiosques, serviços e logística
de transportes que constantemente atraem grande número de turistas, além do fluxo
gerado pelo forte comércio local, constituem o cenário da tradicional Avenida Atlântica.
Espaço estratégico ideal para o grande desfile-mobilização em prol do reconhecimento
de direitos civis: a 18ª edição da Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro.
Das ruas que desembocam na orla não cessavam de chegar turistas, jovens,
idosos, estudantes, políticos, ambulantes, grupos organizados, ativistas e demais
participantes que se aglomeraram no posto 5, em frente a Rua Sá Ferreira, ponto de
concentração do evento. Juntavam-se aos banhistas, ciclistas, moradores e trabalhadores
do bairro mais populoso da zona sul, que teve sua rotina de final de semana
completamente alterada, com a chegada de 13 caminhões de trios elétricos, mudanças
no trânsito e toda a logística de organização e produção deste grande evento.
Uma entre outras tantas ações do movimento LGBT - lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros – e que já se chamou GLS – gays, lésbicas e
simpatizantes – as Paradas do Orgulho LGBT são “mega-manifestações de visibilidade
massiva e afirmação cidadã do povo GLTBS do Brasil”301. De acordo com o material de
apresentação do Grupo Arco-Iris ela via além disso, sendo “uma atraente vitrine para
expressar conceitos e ideias associados a valores como paz, cidadania, respeito à
diversidade humana, liberdade, alegria e justiça social, imprimindo e/ou ratificando uma
vantagem positiva das organizações privadas e governamentais envolvidas e parceiras
em sua realização.”.
Em 2013, a edição carioca reuniu um público estimado em um milhão de
pessoas302 entre lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e heterossexuais. É
reconhecida pela Riotur como o terceiro maior evento oficial da cidade maravilhosa303,
ultrapassado apenas pela Festa de Ano Novo e pelo Carnaval de Rua.

Como em toda realização de megaeventos, a Prefeitura do Rio implantou em


etapas um esquema especial de trânsito que operou mudanças significativas no bairro,
de sexta-feira, dia 11, a domingo, dia 13 de outubro. Como já ocorre em domingos e
feriados, a pista da praia, que corresponde à metade da Avenida Atlântica, no sentido zona
sul – centro, foi interditada até a Avenida Prado Junior. São três quilômetros de extensão de
um espaço urbano reservado ao desfrute do tempo livre. Moradores locais ou das imediações
costumam fazer suas caminhadas com animais, rotinas de exercício, passeios com carrinhos
de bebê, levar as crianças para patinar, andar de bicicleta, curtir a praia ou simplesmente
conversar embaixo de uma sombra e apreciar as paisagens da praia de Copacabana, sentados
na beirada do calçadão. Especialmente para esta ocasião, a outra metade da pista, que faz o

301
http://www.abglt.org.br/port/paradasabc.php acessada em 08/08/2014.
302
http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/rio-parada-do-orgulho-lgbt-reune-um-milhao-de-pessoas-em-
copacabana,c9fe323c703b1410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html acessado em 08/08/2014.
303
Apostila de apresentação aos voluntários da Parada LGBT da ONG Grupo Arco-Iris, 2014.

587
sentido contrário do trânsito, junto aos prédios da Avenida Atlântica, foi fechada entre a Rua
Joaquim Nabuco e Avenida Prado Junior, a partir das 14h, iniciando efetivamente a
concentração do momento mais esperado da Parada - o desfile, duplicando o espaço da área
para a livre circulação e acomodação dos participantes e pedestres.

Os mais de 140.000304 moradores do bairro Copacabana, que atualmente


começam a vislumbrar uma expectativa de alívio, ainda que parcial, na mobilidade da
área com a implantação da maior malha de ciclovias da cidade, receberam da prefeitura
a recomendação de utilizarem o transporte público ao longo do final de semana, além do
estacionamento de veículos proibido nos dois lados da Avenida Nossa Senhora de
Copacabana, uma das vias principais do bairro que concentra o polo comercial, a partir da
Rua Miguel Lemos. A reabertura das ruas e, consequentemente, o restabelecimento da rotina
fica sempre condicionado à dispersão do público e a limpeza das vias pela COMLURB –
Companhia Municipal de Limpeza Urbana que, além dos garis, mantém um caminhão de
sinalização acompanhando o último carro do desfile retirando os grandes balões decorativos
de gás hélio com a logomarca dos patrocinadores e parceiros fixados em postes, além de
reposicionar a sinalização e as placas ao longo da via.

Milhares de participantes circulavam buscando aproveitar momentos de lazer


consumindo quase completamente a via símbolo da capital carioca, inspirada no
calçadão de Lisboa e usada por Burle Max na margem da praia. O mosaico de ondas
composto por pedras portuguesas brancas e pretas estampa o calçadão da Princesinha do
Mar nos mais variados produtos assinados com alusão ao Brasil e principalmente à sua
segunda maior metrópole, o Rio de Janeiro, considerado o melhor destino gay do
mundo305, que recebeu a Copa do Mundo em junho de 2014, se prepara para os eventos
comemorativos de 450 anos da cidade em 2015 e para sediar os Jogos Olímpicos em
2016.
A decoração estrategicamente elaborada com cores fortes e vibrantes em todos
os caminhões de trios elétricos com arcos de bola, corações, pipas listradas, CDs
pendurados para refletir luzes e cores, painéis com a marca do evento, atraíram os mais
distraídos olhares para o acontecimento caracterizando eficazmente sua dimensão
espetacular, entendida como a que objetiva despertar o interesse, fazer ver e capturar a
atenção dos sujeitos. A ideia de espetáculo, na perspectiva apontada pelos estudos de
Guy Debord (1997), pondera que “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas
uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”. Para o autor, trata-se de um
processo calcado numa lógica capitalista, mercadológica e de leitura do “espetáculo”
como um processo negativo. Sob esse enfoque, nenhuma possibilidade de autonomia
para os sujeitos é apresentada tomando todos os esforços como inúteis, em todos os
aspectos da vida social (político, econômico, cultural), porque não haveria como fugir
do aprisionamento ao sistema, por sua própria natureza de produção de imagens em
série.
Contudo, movimentos e projetos de mobilização operam uma lógica um pouco
distinta da do mercado. Há um esforço para se alcançar a esfera pública e colocar suas
questões como de interesse coletivo, mobilizando os sujeitos para causas e estimulando
debates públicos ampliados. Pode-se classificar como característica espetacular toda a
304
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/index_bairro.htm acessado em 07/08/2014
305
http://www.riosdehistoria.com/rio-de-janeiro-tourism/lgbt-in-rio?langid=20 acessado em 07/08/2014

588
música e a decoração dos trios elétricos, entre outros aspectos. Foram flagrados muitos
moradores, convocados pelos potentes watts de som, debruçados nas janelas de seus
altos apartamentos para assistir e/ou registrar em fotos e filmagens o desfile da Parada
do Orgulho LGBT em Copacabana.
A enorme bandeira nas cores do arco-íris, com cento e vinte metros de
comprimento e dez metros de largura, foi estendida ao chão da avenida entre os dois
primeiros trios devidamente protegida por seguranças contratados para o evento. O
ícone símbolo da celebração, tradicional em todos os anos, causa uma euforia por sua
magnitude e pelo próprio ritual de abertura que implica durante o desfile. Na edição de
2013, para intensificar o caráter espetacular do momento, sobre a bandeira surgiram
quatro dançarinos fantasiados com calças colantes, sem camisa e com botas brilhantes,
nas cores vermelho, rosa, preto e lilás, com largas asas de anjo e exibiram uma
coreografia de saudação, cooptando a apreciação da maior parte dos olhares para a
performance. Ao final da apresentação os seguranças levantaram a bandeira convidando
os participantes a se posicionarem embaixo dela, dando-lhe suporte e ao mesmo tempo
fazendo-a tremular, a partir de então envolvendo-os diretamente na ação e deslocando-
se pela avenida acompanhando o ritmo do desfile.
Na concepção de Renan Mafra (2008), dentre as estratégias comunicativas de
espetacularização, tratando-se de processos de mobilização social, há alguns elementos
relacionados a duas esferas: o sensacional e a encenação. A esfera do sensacional
abrange elementos grandiosos, excepcionais, extraordinários, admiráveis que buscam
contrapor o ordinário e instalar uma ruptura das regras cotidianas enchendo “os olhos”
dos sujeitos, objetivando mostrar determinada causa como merecedora de ser vista e
notada. A busca por elementos que coloquem o apreciador na condição de espectador,
desfrutando da ação representada e utilizando um artifício ficcional com ideias de
estruturas narrativas, abrangem a esfera da encenação.
Nesse sentido, pode-se considerar toda a operação do ritual da bandeira como
espetacular, formando uma esfera de visibilidade que convoca, a partir de seu
expressivo tamanho, formato e cores, mesmo que parcialmente, dentre outras ações,
uma audiência que se envolve numa relação comunicativa instantaneamente por meio
da contemplação. Simultaneamente envolve os participantes contemplando também a
esfera da encenação. O propósito final é que o público ultrapasse o estágio de
participação contemplativo nesse processo comunicativo e atue como um agente
político e cidadão integrando-se num envolvimento coletivo.
A Parada do Orgulho LGBT busca cumprir assim seu papel de expressar uma
resposta pública de uma parcela da população que busca a possibilidade de ser ouvida
socialmente. Ou nas palavras de Frederico Viana Machado:
“Ao lançar na esfera pública o debate sobre a condição de
LGBT´s, as Paradas procuram deslocar o significado
construído histórica e socialmente acerca dessa população
e propõem-se a lançar novos signos sociais de forma a

589
desarticular a carga axiológica pejorativa em torno do
gay.”(2007)306
Mikhail Mikhailovich Bakhtin (1895-1975) formulou conceitos no início do
século XX que apresentam-se de uma atualidade surpreendente. Para o complexo
cenário contemporâneo de poder, em que múltiplos e diversos atores solicitam a
possibilidade de serem ouvidos, seu pensamento oferece abertura ao diálogo. O autor
formulou suas ideias a partir de uma troca permanente no famoso Círculo de Bakhtin,
com o intuito de construir conceitos através do diálogo e do conflito de ideias.
Para Bakhtin qualquer significado é ideológico. “O domínio do ideológico
coincide com o domínio dos signos: são mutuamente correspondentes” (1987, p. 32).
Uma das funções da ideologia é neutralizar determinados valores para toda a sociedade.

“Na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico


é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer,
estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da
evolução social e valorizar a verdade de ontem como
sendo válida hoje em dia.” (Id., 1981., p. 47).

Porém, os signos são necessariamente interindividuais: diferentes subjetividades


presentes ao evento com interesses múltiplos se valem de tais signos. Os indivíduos
esgarçam os sentidos pré-dados, pré-concebidos em busca de um novo consenso
coletivo. E o espaço de luta dos atores sociais em torno dos significados pode ser
exatamente essa tensão proporcionada pela flexibilidade, pela instabilidade do signo.
Podemos considerar o evento da Parada do Orgulho LGBT como uma
enunciação social coletiva. Durante o tempo de duração da marcha, as diversas
singularidades lá presentes assumem uma unidade artificial a fim de dar visibilidade a
uma demanda que as afeta coletivamente. Bakhtin afirma que qualquer que seja a
enunciação considerada, na sua totalidade, ela é socialmente dirigida e determinada da
maneira mais imediata pelos participantes do ato de fala, explícitos ou implícitos. E, por
ser socialmente dirigida, qualquer enunciação estará exposta a uma tensão própria:
estando inevitavelmente ligada a uma cadeia infinita de significados antecedentes e
posteriores, ao mesmo tempo em que parcialmente nega, também afirma o dado social e
historicamente construído, extrapolando seus limites anteriores com maior ou menor
eficácia. Mesmo que os sujeitos da enunciação tenham a intenção explícita de negar
totalmente o significado, isso não é possível, porque a enunciação será sempre feita num
ambiente social cujos indivíduos terão seus pressupostos - e suas próprias intenções -
que afetarão ativamente a compreensão.
“Compreender a enunciação de outrem significa orientar-
se em relação a ela. A cada palavra da enunciação que
estamos em processo de compreender, fazemos
corresponder uma série de palavras nossas, formando uma
réplica.” (BAKHTIN, 1987, p. 132)

Na verdade, essa compreensão ativa será essencial para a vitalidade do signo.


Na arena semântica social sempre há uma luta ideológica: de um lado, os participantes
da enunciação com possíveis intenções de deslocamento do sentido e, de outro, a
compreensão ativa dos demais participantes da situação de enunciação, munidos de seus

306
http://www.sociologia.ufsc.br/npms/frederico_viana.pdf acessado em 01/02/2014.

590
pressupostos socialmente construídos e intenções próprias, que podem ou não estar em
conflito com o deslocamento sugerido. O importante não é a coincidência entre as
intenções da enunciação e o resultado da compreensão, mas a possibilidade de
ocorrência do diálogo e consequente abertura a negociação.
Movimentos e projetos de mobilização, e, principalmente, sua cobertura
midiática enaltecem caricaturas e estereótipos do homossexual. O resultado seria o
reforço de estigmas em torno da população transexual, travesti, gay, lésbica e bissexual,
quando o propósito da Parada LGBT seria justamente negá-los. Contudo, cabe
retomarmos algumas reflexões que Bakhtin faz sobre a dinâmica própria dos signos
sociais: “o ser, refletido no signo, não apenas nele se reflete, mas também se refrata”
(1987, p. 46). Na batalha pelo deslocamento do significado, que, neste caso, conta com
o importante papel que exercem os meios de comunicação, os enunciadores encontrarão
sempre o ambiente hostil da ideologia que busca paralisar os sentidos e torná-los válidos
para toda a sociedade. Quando, por exemplo, as câmeras de televisão ou lentes
fotográficas procuram focar personagens mais pitorescos que participam das Paradas, na
verdade buscam reflexos exteriores das imagens que foram socialmente construídas em
torno dos homossexuais, proporcionando o espetáculo. Mas em tal busca o importante é
que a negociação do sentido nunca cessa, e é no jogo da enunciação deste ritual que ela
se intensifica.

4 Sociabilidade e carnavalização

A primavera era a estação presente mas o termostato do relógio na avenida da


praia marcava a temperatura de vinte e quatro graus celsius e um céu azul, propiciando
o uso de vestimentas mais leves e confortáveis. Shorts, camisetas, cangas, sandálias ou
tênis são os preferidos da turma que gosta de praticar exercícios. Os moradores das
imediações sem filhos, em geral, estão sem bolsas, portando apenas celular e um
chaveiro. Os menos tímidos preferem exibir o corpo com o traje mais usual do carioca
nas proximidades da praia: biquíni ou sunga e chinelo. Os frequentadores não
moradores da zona sul traziam suas próprias cadeiras e barracas, além das bolsas e
mochilas que armazenam de forma mais segura os acessórios de quem precisa fazer uso
do transporte público para chegar à praia ou ao evento. Cada turma apresenta seus sinais
de pertencimento e praticamente não hesitam em espiar e se aproximar, participando de
um convívio “corpóreo” da festividade, mesmo que em intensidades diferentes, de perto
ou de longe, o desfile dos grandiosos “palcos ambulantes” e a aglomeração de pessoas
formava uma mistura notável de cores, sons e personagens propiciando um
envolvimento afetivo.
Os potentes amplificadores de som dos enormes trios elétricos estacionados
entre as ruas Sá Ferreira e Joaquim Nabuco propagavam a música pela avenida e
anunciavam que naquele dia, a orla de Copacabana era o “pedaço” da diversidade,
compreendido no sentido inferido por José Guilherme Magnani (1998), designando um
tipo particular de sociabilidade e apropriação do espaço urbano. Apesar de usufruírem
de um certo anonimato, e da impessoalidade das relações, neste “pedaço” todos sabem
quem são, de onde vêm, do que gostam e do que se pode ou não fazer. Não é preciso
fazer nenhum tipo de interpelação aos frequentadores pois, como cita o autor:
“[Eles] não necessariamente se conhecem, mas se
reconhecem: venham de onde vierem, trazem na roupa, na

591
postura corporal, na linguagem, os sinais exteriores de seu
pertencimento. Por causa dessa ênfase mais nos aspectos
simbólicos, aqui o pedaço é menos dependente da variável
territorial: se for o caso, muda-se de ponto e
pronto.”(MAGNANI,1998, p.12)
Magnani compartilha do paradigma de Georg Simmel, sociólogo alemão, que
pensa a sociabilidade como uma forma de sociação, onde o indivíduo pode estar com e
para o outro, trocando conteúdos e interpretando realidades. A interação entre
indivíduos compreendida como relação social é o que produz a sociedade, realizando
um fluxo incessante no “pedaço”, onde os indivíduos estão ligados uns aos outros
exercendo uma influência mútua. No momento das trocas, são estabelecidas as relações
e a vida social. (SIMMEL, 2006, p.17).
Uma diferente movimentação no local era percebida pelos que chegaram mais
cedo na Avenida Atlântica. Quem foi à Copacabana para a Parada, ou não, dificilmente
escapará deste impulso de estar junto socializado, de uma interação consciente ou
inconsciente. Uns mais inibidos apenas observam a movimentação, o colorido da
decoração da festa e aproveitam para se distraírem ou paquerar. Tudo sempre regado a
muita cerveja, caipirinha, “shot” – uma espécie de sacolés de vodka com sabores - ou
algum outro drink vendido pelos ambulantes ou pelos garçons dos quiosques que
circulam entre as pessoas com bandejas cheias de drinks. Consome-se o desfile e no
desfile. Grupos com a camisa oficial do evento, vendida no quiosque, ou alguma peça
com as cores do arco-íris – pulseiras, bonés, bandanas, brincos, óculos, gravatinhas,
colares e bandeiras. A produção de alguns participantes tem dedicação especial com
fantasias bem elaboradas de dançarino gogo boy, anjos coloridos, freiras ou também
estilizados em personagens que aludem a algum fetiche. Muitas versões da fantasia do
soldado grego, remetendo talvez aos adereços do “Bando Sagrado de Tebas”. Além de
ícones referenciando policiais, bombeiros, marinheiro, super-homem, entre outros. A
empatia com o momento lúdico associada à alegria e à felicidade dos outros
democratiza a sociabilidade configurando, nas palavras de Simmel (2006), um “jogo de
cena”. Um “mundo artificial onde não há atritos, onde sentem-se iguais e buscam
exclusivamente a interação sem nenhum desequilíbrio por tensão material.” (SIMMEL,
2006)
Nos acessórios surgem algemas, coletes de couro, boinas, botas de cano alto,
trajes de gala, máscaras, guarda-chuvas, chicotes, chapéus e também adereços como
brincos, cintos e arcos de cabelo decorados de improviso com os preservativos
distribuídos em vários pontos. E muita purpurina e brilho. Materiais cintilantes e
espelhados para refletir a luz do sol ou mesmo de alguns holofotes. Detalhes reluzentes
fazem a diferença na performance dos corpos trabalhosamente esculpidos e marcados
nas roupas colantes, nos decotes e nas fendas. As drag queens chamam muita atenção
com suas indumentárias ultra produzidas, maquiagens contrastantes e coloridas, sendo
convidadas por produtores responsáveis para integrar a área dos “palcos ambulantes”.
De lá animavam o público com danças e coreografias exibidas no alto dos caminhões
trios elétricos, espaço de destaque reservado aos VIPs do evento.
Antes de chegarem aos carros de som, enquanto caminham em direção à Parada,
as mais produzidas são assediadas como celebridades por outros participantes que

592
solicitam tirar uma foto, o que geralmente é atendido com uma pose e satisfação. Mas
nem todos os participantes produzidos conseguem o alto dos trios. Há uma outra
possibilidade de ganhar destaque no desfile. Os não selecionados para o alto dos trios
podem receber o convite de compor um outro espaço reservado na frente e na traseira
dos trios, separado por uma corda sustentada por seguranças. Neste local espera-se que
os participantes saibam dançar e coreografar músicas mais populares. Tanto a foto
quanto a dança coreografada exigem um nível de interação dos participantes com o
evento. Interagindo, os atores transcendem a posição de mera audiência contemplativa e
por meio do engajamento, reforçam laços e vínculos promovendo uma sociabilidade.
Atrás do último carro da Parada LGBT do Rio um grupo de ativistas fantasiados
e mascarados com roupas cor-de-rosa promoviam “ataques” jogando um punhado de
purpurina em cima dos participantes. Em alusão ao vandalismo tão citado meses antes
ao longo das manifestações populares307ocorridas em junho de 2013, os ativistas
elaboraram a ação do grupo no evento, e a denominaram de “pink vandalismo”. Antes
de realizar o bote gritavam para o público: “Faz cara de medo! Olha o pink
vandalismo!” - e jogavam a purpurina, que a princípio assustava e depois arrancava
muitas gargalhadas dos participantes. Uma pequena vantagem da criatividade dos
manifestantes cariocas que aproveitaram o fato de ter a realização do evento após as
intensas manifestações.
A característica de ações como esta é vislumbrar a sociabilidade não apenas
como uma interação mas como uma interpretação das relações coletivas em sociedade.
Ao impor uma participação não só de convidados mas, também, de anfitriões na ação do
“pink vandalismo” mantêm-se no evento uma dimensão estratégica, festiva, propondo
uma modalidade de participação compreendida como convivialidade.
Nesta dinâmica há um contexto performativo maior que permeia o evento e se
articula sobre os pactos de interação, estruturas interpretativas e condicionamentos
institucionais de comportamento, e mais significativamente, da produção de
conhecimento que deve ser compreendida e experimentada de formas diferentes em
sociedades diferentes. É fundamental fornecer condições para que os diversos atores
entendam as razões da causa e sejam capazes de agir como interlocutores, debatendo e
não apenas celebrando, o que em uma impressão rápida pode parecer apenas uma
grande festa, uma carnavalização.
O pensador russo da linguagem enxerga a própria festividade, em qualquer de
suas vertentes, como uma “forma primordial, marcante, da civilização humana” onde se
exprime uma determinada concepção de mundo:
“O riso e a visão carnavalesca do mundo (...)
destroem (...) as pretensões de significação incondicional e
intemporal e liberam a consciência, o pensamento e a
imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o
desenvolvimento de novas possibilidades. Daí que uma
certa “carnavalização” da consciência precede e prepara

307
As “Jornadas de junho” foram manifestações populares em diversas cidades brasileiras resultantes de
uma sequência de acontecimentos que se transformaram em uma revolta urbana de proporções
inusitadas, suscitando confrontos e ações de vandalismo reprimidas de forma desmedida pela polícia
militar.

593
sempre as grandes transformações. (BAKHTIN, 2010, p.
43)

Motivações diversas arrastam cada um dos integrantes da multidão que participa


da mobilização. Mas, além de sua simples presença compor uma ação coletiva que
“questiona as posições institucionais de legitimação do silenciamento da
homossexualidade” (MACHADO & PRADO, 2007, p. 12), o espírito carnavalesco que
o anima é o mesmo que ri de uma verdade única e aponta “para um futuro ainda
incompleto” (BAKHTIN, 2010, p. 9).

5 Multiplicidade de vozes equivalentes


O painel principal, na frente do primeiro trio elétrico, estampava o lema da
Parada do Orgulho LGBT do Rio de Janeiro, do ano de 2013, com o logotipo formado
por 6 mãos fechadas para o alto nas cores do arco-íris: “Somos milhões de vozes”.
Presente em materiais de promoção, informativos e nas camisas com um complemento
“Poder LGBT - Power”. A premissa enfatiza a questão quantitativa de cidadãos que
reivindicam direitos civis usando uma estratégia política de identidades. A situação de
discriminação308, estigmatização, não reconhecimento de direitos e a consequente
guetificação da população LGBT, impõe barreiras que os impedem de negociar de
forma igualitária os sentidos que circulam na sociedade. Quando o Estado, enquanto
corpo cristalizado dos acordos sociais, não estende determinados direitos a uma parcela
da população devido a sua orientação sexual, está favorecendo um processo de
“invisibilização” desses atores, que têm influenciado de forma cada vez mais
significativa a cultura e as instituições sociais. Colocar os atores na casa dos “milhões”
apresenta e lembra a diferentes instâncias da sociedade o tamanho e a força que
empoderam o grupo em diversas frentes como cidadãos, consumidores, eleitores e
demais papéis que desempenham cotidianamente.
Ao fomentar o debate sobre a condição do homossexual, as Paradas do Orgulho
LGBT procuram deslocar o significado construído histórica e socialmente acerca de
travestis, lésbicas, transexuais, gays e bissexuais. Propõem-se a lançar novos signos
sociais de forma a desarticular a carga axiológica pejorativa em torno do gay.
Metaforizando um termo tomado da linguagem musical, Bakhtin (1984) delineia a ideia
de polifonia como a orquestração de várias vozes que necessariamente não se fundam
numa única (1981, p. 4). Procura-se fugir exatamente da fusão forçada e mentirosa que
impõe um “padrão de normalidade” quanto à sexualidade. E busca-se que os diversos
atores sociais tenham a possibilidade de agenciar seus valores em pé de igualdade com
os demais. O caráter de mobilização social presente reivindica que mais vozes sejam
ouvidas e tenham o mesmo valor que as dos demais atores sociais e também questiona a
condição do homossexual na sociedade.
Nesse sentido, diferente do lema apresentado no Rio e também objetivando
chamar a atenção para a importância de dar visibilidade à causa, com a atitude
individual de se assumir como LGBT, a 17ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, um
308
- Pesquisa divulgada no livro Sexualidade, cidadania e homofobia : pesquisa 10ª Parada do Orgulho
GLBT de São Paulo – 2006 revelou que 67% (dois em cada três) participantes da Parada entrevistados já
foram vítimas de algum tipo de discriminação por sua orientação sexual.

594
entre os dois eventos que tem permissão exclusiva de fechar a principal via da cidade, a
Avenida Paulista (o outro é a Festa de Final de Ano), divulgou para a edição de 2013 o
lema “Para o armário nunca mais! União e conscientização na luta contra a homofobia”.
De acordo com a organização a justificativa do tema309 foi uma forma de quebrar
preconceitos à volta de quem “sai do armário” e como uma resposta ao intenso
conservadorismo observado no atual cenário político e social do Brasil, convocando
uma participação geral da população no dia 2 de junho de 2013. Neste momento, ainda
não havia surgido os protestos que se proliferaram pelas capitais brasileiras,
inicialmente contra o aumento das passagens de ônibus, com diversas manifestações
populares que ganharam intenso apoio.
Ao afirmar “Para o armário, nunca mais!”, a Parada convoca os LGBTs para o
enfrentamento, recolocando a questão no sentido social fazendo da opção de assumir-se
publicamente algo necessário e urgente, essencial para exercer sua autenticidade.
Um bom exemplo do que para o autor Charles Taylor, em A Ética da
Autenticidade (2010), pode ser considerado como uma posição do individualismo da
autorrealização fortemente disseminado na atualidade – ser autêntico. Seria uma espécie
de individualismo centrado no self e um desligamento concomitante de preocupações
mais importantes, sejam elas religiosas, políticas ou históricas. Por trás da
autorrealização está o ideal moral de ser fiel a si mesmo.
Subentende-se que a partir desse cumprimento moral de “assumir-se”,
desenvolvem-se todas as possibilidades de crescimento do sujeito. É importante buscar
compreender essa força moral por trás da noção de autorrealização, na ‘cultura da
autenticidade’(TAYLOR 2010, p.27). Esse convocatório tem açambarcado as
subjetividades contemporâneas não deixando dúvidas sobre o desperdício ou a
incompletude de suas vidas ao resistir a esses chamados. Apoiado no que o autor chama
de ‘liberalismo da neutralidade’, que relativiza questões do que poderíamos considerar
uma vida boa, entendendo que cada indivíduo deve buscá-la a sua maneira, dentro de
sua compreensão do que isto seja. A relatividade das questões torna-se, sob este
aspecto, uma condição para uma sociedade livre. Conclui Taylor:
“Ser fiel a mim significa ser fiel a minha própria originalidade, e
isso é uma coisa que só eu posso articular e descobrir. Ao
articular isso eu também me defino. Estou realizando uma
potencialidade que é propriamente minha. Essa é a compreensão
por trás do ideal moderno de autenticidade e dos objetivos de
autorrealização e autossatisfação nos quais são usualmente
expressos. Esse é o pano de fundo que confere força moral à
cultura da autenticidade, incluindo suas formas mais degradadas.
Absurdas ou triviais. É o que dá sentido à ideia de “fazer suas
próprias coisas” ou “encontrar sua própria realização”.(Ibid,
p.39)

309
http://www.paradasp.org.br/noticia/para-o-armrio-nunca-mais-apoglbt-divulga-tema-da-17-
parada.html acessado em 08/08/2014.

595
No campo individual, sabemos que uma vez tomada a decisão de “sair do
armário”, não há como retornar. Após o reconhecimento e visibilidade de algumas
conquistas, a população LGBT passou a ser abertamente perseguida por setores
fundamentalistas e intolerantes que visam cercear a igualdade plena, o respeito às
diversidades e a laicidade do Estado. Cabe aqui uma reflexão: Estariam assim as
liberdades individuais em urgência maior que uma forma direta de colocar em pauta
discussões como a luta pela isonomia de direitos, o combate a “cura gay” ou os
assassinatos homofóbicos310 que vêm aumentando em escala desproporcional? Quão
benéfica pode ser a tática de incentivo para “sair do armário”?
Taylor (2010) aponta este ideal moral como “um quadro de como seria um modo
de vida melhor ou mais elevado, onde ‘melhor’ e ‘mais elevado’ são definidos não em
relação ao que possamos desejar ou precisar, mas sim oferecer um padrão do que
devemos desejar.”. Esse padrão do que devemos desejar corrobora com a noção de que,
como humanos, somos marcados pela linguagem e destinados a um ambiente cultural,
discursivo, no qual é preciso contar com quem “saiba” essencialmente do que
precisamos, ou então não iremos sobreviver. Somos todos irremediavelmente marcados
pela experiência da passividade como aponta Maria Rita Kehl, no texto “A passividade”
(2009). Somos assim, não por deixarmos de agir para alcançar o que desejamos, mas
porque, muitas vezes, dependemos de um outro para ouvir o que devemos desejar.
Segundo a autora, o filhote humano é marcado pela dependência de que um outro deseje
se ocupar dele, que saiba interpretar suas expressões de insatisfação e sofrimento, e
responda a elas.
Diversos modelos daquilo que supostamente devemos desejar nos são
apresentados diariamente pelas celebridades contemporâneas. O modelo de referência
que oferecem é também o de desafio, da expressão pública de sua orientação sexual que
difere da maioria, de quem se coloca em risco no julgamento alheio para exercer essa
tão valorizada liberdade individual.
Sem dúvidas a “saída do armário” de muitos cidadãos, auxilia que cada vez mais
se entenda a homossexualidade com naturalidade. O ato de se afirmar como
homossexual aborda uma questão social importante, mas em seu núcleo esta é
meramente uma questão individual. Há quem acredite numa impressão ilusória de que
na atualidade brasileira seja mais fácil assumir a homossexualidade. Houve épocas mais
duras, sem dúvidas, mas facilidade não parece ser ainda uma classificação adequada,
diante de uma divisão tão grande de opiniões em nossa sociedade.
6 Densidade argumentativa para o debate
Do início ao fim do desfile da edição carioca, em cada um dos 13 caminhões de
trios elétricos, diversos banners e faixas continham dizeres e mensagens convocatórias e
esclarecedoras sobre diferentes questões que, especialmente nos últimos anos, se
relacionam com o aumento de casos de discriminação e violência envolvendo
preconceito. Conjuntamente, algumas pesquisas indicam o aumento do número de
denúncias o que poderia apontar uma crescente confiança da sociedade na condução dos
casos e nos seus resultados311, a partir das políticas públicas elaboradas.
310
- Segundo o banco de dados do Grupo Gay da Bahia, em 2013 houve 313 assassinatos de LGBT no
Brasil, um homicídio a cada 28 horas em média.
311
http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-27/governo-lanca-sistema-nacional-lgbt-para-integrar-

596
Na lateral dos diversos caminhões trios elétricos os largos painéis apresentavam
a expressão política e as razões de existência do desfile-mobilização e suas diversas
causas com os seguintes textos:
“Não desperdice o seu poder. Junte aliados para os LGBT. Juntos podemos
combater os preconceitos.”;
“Famílias unidas pelo amor e respeito à diversidade.”;
“Pelas aprovações da lei e da PEC do casamento civil igualitário. A homofobia
destrói famílias.”;
“Lésbicas e mulheres bissexuais: queremos visibilidade e respeito.”;
“Estupro é crime. Não tenha medo. Denuncie. Disque 180.”;
“Por um Rio com liberdade religiosa e direitos humanos.”;
“Debater, conscientizar, dialogar, informar, somar, realizar, conhecer,
compartilhar, respeitar, construir. Toda forma de discriminação deve ser
combatida. Juntos em defesa da liberdade religiosa e dos direitos da população
LGBT.”;
“Mais educação e oportunidades de trabalho para travestis e transexuais”;
“Ambiente saudável é ambiente sem homofobia”;
“Um lugar tão maravilhoso como o Rio não combina com homofobia.”;
“Por políticas públicas de inclusão e o combate ao ódio e preconceito.”;
“Movimentos sociais pela conquista de direitos.”.
Diversas questões e reflexões que apesar de breves expõem e disponibilizam
publicamente argumentos que, após um envolvimento coletivo, visam gerar um debate
público e uma possível transformação coletiva.
Ao longo dos anos a Parada LGBT vem se transformando, se “modernizando”,
ao incorporar elementos pouco ortodoxos. Corroborando com o pensamento de Bakhtin,
o autor José Guilherme Magnani cita que “o que é visto porém, como descaracterização,
muitas vezes não é senão a única ou mais adequada resposta possível diante de
determinado contexto.” (1998, p.26). Adequar os elementos as lógicas das práticas
cotidianas de uma metrópole emerge como solução possível para atrair e gerar novos
debates.
Complementares as estratégias que propõem visibilidade e interação, as ações
comunicativas de uma dimensão argumentativa no evento buscam mobilizar um
raciocínio acerca da temática (MAFRA). Disponibilizando informações e argumentos
que fomentem a importância do debate público, instaura-se um processo dialógico para
que os sujeitos possam de forma coletiva chegar a acordos sobre situações que afetam a
todos. Torna-se fundamental na contemporaneidade que haja a possibilidade de
interlocução com diversas esferas na sociedade, um debate público com densidade
argumentativa, que irá expor as razões e promover um diálogo mais enriquecedor,
buscando também a posição de diversos atores.

politicas-contra-preconceito

597
6 Daniela Mercury “sai do armário” - engajamento e capital solidário

Em abril de 2013, ao anunciar seu relacionamento amoroso com a jornalista


Malu Verçosa, via imagens postadas em seu perfil numa rede social, com rostos
sorridentes e troca de alianças em Lisboa, a cantora Daniela Mercury, teve sua
declaração transformada em notícia com grande repercussão midiática. Em poucas
horas, o tema obteve meio milhão de referências na internet, além de manter-se nos
principais veículos de comunicação ao longo da semana. Após tomarem a decisão de
sair do armário ou apenas declararem publicamente seu apoio, seja lá qual for a
motivação, grande parte dos famosos dirigem suas ações para reforçar alguma causa.
Participam de projetos com propósito de incluir na pauta política o casamento gay,
buscam desenvolver maior conscientização sobre as ações em prol do público LGBT e
contribuem com maior visibilidade para o movimento anti-homofobia.
Consequentemente, enfatizam uma imagem politicamente engajada que beneficia
também o aspecto econômico de sua carreira. Agregada à sua atuação política se dá uma
estratégia para alcançar maior visibilidade e por conseguinte, um acúmulo daquilo que
Bruno Campanella compreende como ‘capital solidário’.
Nos EUA, onde tanto o preconceito quanto a oposição tem recuado bastante na
opinião pública, a prática de assumir-se gay ou de expor publicamente sua opinião
quanto à causa, tem incentivado diversos políticos, celebridades e empresas a também
expressarem em público suas posições.
Uma reportagem intitulada “A nova sustentabilidade?” , relata que a adesão
favorável à causa tem se tornado tão majoritária que há indícios de que as empresas
americanas “tem tratado o assunto em seus departamentos de marketing, tal qual vem
operando com as questões relativas ao tema da sustentabilidade”, reforçando para o
leitor a ideia da importância do posicionamento público para grandes empresas e para a
urgência da tomada de decisões por seus gestores, que envolvem, certamente, o risco de
perda financeira em seus mercados. Apontam os DINKs (double income, no kids –
dupla renda sem filhos) como “um público numeroso”, responsáveis pela movimentação
de bilhões por ano, devido ao alto poder de compra, abrindo caminhos para que se torne
urgente para estes empreendedores considerar formas de participação de suas empresas
na próspera indústria Gay Friendly .
O tema da união homossexual está tão iminente nesse cenário que nem mesmo a
campanha de reeleição do presidente Barack Obama, em andamento em 2012, passou ao
largo da questão. Na reta final do primeiro mandato o candidato afirmou apoiar a união
civil entre homossexuais . Seu primeiro passo foi encerrar a política de esconder a
existência de militares gays, praticada fortemente nas Forças Armadas, que tinha como
lema: “Não pergunte, não conte”. Após o resultado de pesquisas, que indicavam mais de
cinquenta por cento dos eleitores aprovando a união gay com equivalência de direitos, a
decisão tomada pelo presidente Obama de apoiar a causa entrou em prática no seu
discurso. Resultado: em apenas noventa minutos, a campanha democrata arrecadou para
seus cofres o valor de um milhão de dólares em doações . Essa ação foi uma manobra
cuidadosamente planejada que tencionava os benefícios políticos e financeiros
envolvidos na ocasião. Claramente estudada e calculada pela equipe de assessores e
afins, ilustra bem essa relação de causa e efeito que o acúmulo de ‘capital solidário’

598
opera. Ao associar sua campanha à causa produziu-se uma espécie de comprometimento
que, aparentemente, não atende diretamente aos seus interesses pessoais, contribuindo
para a formação do seu ‘capital solidário’, “que pode ser acumulado e posteriormente
convertido em capital econômico” (CAMPANELLA, p.7).
Certamente, de um candidato a um cargo na política, espera-se que coloque os
interesses da nação acima de seus interesses pessoais e que tenha a capacidade de
influenciar positivamente a resolução de complexos problemas sociais e políticos de seu
país e junto a outros. Entretanto, o fenômeno funciona na mesma lógica em diferentes
esferas de atuação por onde circulam as celebridades, ampliando e qualificando o
capital de visibilidade que esta já possui, buscando atender a demanda de um mercado
consumidor de “politicamente engajado”.
A revelação pública como bissexual combinada a uma participação ativa em
campanhas humanitárias, como embaixadora da Unicef desde 1995 e como fundadora
da ONG Instituto Sol da Liberdade proporcionam a cantora Daniela Mercury uma
“expansão dessa forma imaterial de capital, que se distingue por sua conexão moral”
(Ibid, p.11), ou seja seu ‘capital solidário’, como explicita o autor:
“aquele que se mostra como um conjunto de competências
legítimas desenvolvidas por um dado agente que combina a
capacidade de obter alta visibilidade na mídia com a
disponibilidade de sustentar publicamente atitudes moralmente
exemplares sobre as questões atuais”.(Ibid, p.14)
E essa expansão não demorou a gerar frutos, produzindo novos trabalhos e
novos produtos. O governo do Estado da Bahia decidiu investir não só no patrocínio do
show da cantora na Parada do Orgulho LGBT de São Paulo , que aconteceu em junho
de 2013, como também em ações promocionais, protagonizadas pela artista, para
divulgar o estado nordestino como destino turístico. Segundo a Empresa de Turismo da
Bahia S/A - Bahiatursa, os homossexuais são um dos principais públicos alvo do setor
turístico do Estado. Usufruindo de grande visibilidade, a revelação da cantora de axé
music sobre sua opção sexual, amplamente retratada na mídia como um ato de protesto
politico, conferiu-lhe uma espécie de título, transformando-a em um ícone da causa gay.
Dessa forma, como toda celebridade, que é conhecida por mais pessoas do que ela
mesma conhece, tornou-se a personalidade da mídia mais cobiçada pelos organizadores
do evento e pelo público LGBT, a participar deste desfile-mobilização, tornando
realizável as expectativas em torno da causa e principalmente para o mercado
consumidor do segundo maior evento da cidade de São Paulo, consequentemente
gerando resultados positivos também para sua própria imagem.
A carreira da artista, que teve seu ápice em 1992 com o sucesso nacional “O
Canto da Cidade”, é recheada de prêmios incluindo um Grammy Latino de Melhor
Álbum de Música Regional, seis Prêmios TIM de Música, um prêmio pela Associação
Paulista de Críticos de Arte, três prêmios Multishow de Música Brasileira e dois
prêmios pelo MTV Vídeo Music Brasil, com melhor videoclipe e fotografia. Entre a
revelação da relação com Malu Verçosa e a Parada do Orgulho LGBT, no evento 13º
Prêmio Cidadania em Respeito à Diversidade Sexual , promovido pela Associação da
Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, em maio de 2013, ela recebeu um dos troféus

599
da premiação na categoria ‘Ação Política’. Devido ao reconhecimento do prêmio, desde
de 2009, a cerimônia de entrega de troféus que acontecia durante a Feira Cultural
LGBT, no Vale do Anhangabaú, passou a ser realizada em data e local diferentes,
conferindo-lhe maior visibilidade dentro do Mês do Orgulho LGBT.
O prêmio tem por objetivo o reconhecimento da atuação dos premiados como
sendo de alta representatividade na vida dos LGBTs e também como um momento de
divulgação e valorização das atividades que contribuíram com o movimento na
consolidação do respeito à diversidade, bem como um estímulo às práticas socialmente
responsáveis. Destaca a realização dos fatos mais significativos no cenário político,
social e cultural contribuindo na promoção dos direitos humanos. É frequentemente
entregue a ativistas e pessoas com histórico de engajamento efetivo em ações políticas
da causa LGBT, como: Marta Suplicy, durante seu mandato como senadora, o
Movimento Anarcopunks, que foram organizadores das primeiras paradas e de atos
políticos em praças públicas, o deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ), pelo trabalho
que vem desenvolvendo em prol do respeito aos Direitos Humanos de minorias
historicamente estigmatizadas, entre outros. Na entrega do prêmio, o ponto alto do
discurso de agradecimento da cantora Daniela foi o relato de que “ficou preocupada
com a repercussão que a notícia traria e que recebeu surpresa o carinho e o aceite dos
fãs”. Além de endossar o coro contra as ações do então deputado homofóbico, não
houve menção a uma intenção ou ação política diretamente, na qual estivesse engajada
ou com pretensão de colocar em andamento para colaborar com a luta por justiça social
para a causa. Havia o medo da reação negativa de seus fãs e demais públicos. Seu
trabalho em prol da causa, nesse sentido, obteve reconhecimento como ação política
pelo fato de, como celebridade que dispõe de notória visibilidade, se assumir gay. Por
outro lado, o desfile-mobilização também ganha destaque na mídia com a presença da
famosa e assim ambos os lados se favorecem, especialmente no cenário midiático.
O acúmulo de capital solidário, “que é produzido por meio da participação de
celebridades em ações midiáticas baseadas em princípios bem delineados de consciência
social, bondade e altruísmo.” (Ibid, p.7), repercutiu na carreira da estrela do axé music
com o recebimento de novos convites e trabalhos na indústria do entretenimento, da
qual já faz parte. Do dia de sua postagem na rede social com a revelação do casamento
até os dias atuais, além de muita exposição na mídia, uma enxurrada de propostas de
trabalhos surgiram como: shows na Parada do Orgulho LGBT de SP e Salvador; show
na festa de São João – para a qual a banda Calypso, da cantora Joelma, havia sido
contactada, e foi preterida ; a produção de um filme documentário sobre ‘A História
Musical do Axé’; a produção de sua nova turnê chamada de “Pelada”; três livros - sobre
seus figurinos e outro sobre a abertura do circuito do Carnaval (Barra-Ondina), de
autoria de Camille Paglia; um romance contando sua história com a jornalista Malu
Verçosa, que é também a autora; além de diversas campanhas publicitárias e outras
participações em produções musicais de amigos.
Assim, aliando sua credibilidade como celebridade e homossexual à visibilidade
nas ações sociais ou humanitárias, legitimada por meio de premiações, a cantora exibe
um conjunto de habilidades desenvolvidas que constituem o seu capital solidário.
Quanto mais elaborado de forma estratégica para reforçar essas habilidades, maior será
a possibilidade da celebridade transformá-lo em capital econômico.

600
Após um grande período de violências simbólicas e preconceitos, o debate em
torno da revelação da orientação homossexual publicamente, o “sair do armário”, vem
se intensificando ao longo dos últimos anos. De fato, as questões em torno da liberdade
sexual, do reconhecimento da igualdade de direitos, da luta contra a homofobia e de
novos arranjos familiares trazem para a sociedade a necessidade de debater mais
amplamente essas questões. Junto a isso, na era globalizada, há uma imposição ao
sujeito de “dizer-se como alguém” e é preciso fazê-lo constantemente, exibindo
inclusive, sua orientação sexual. Exibir-se, nesse sentido, seria uma forma de exercer
sua liberdade.
Essa é também a regra imposta a celebridades que operam como modelos de ser
e agir na sociedade moderna. Ao declarar publicamente sua homossexualidade, exibem
coragem pela capacidade de “desafiar” o julgamento alheio, heteronormativo,
ratificando os valores neoliberais de liberdade, autenticidade e autorrealização. Mesmo
quando declaram que estão assumindo sua sexualidade para usufruir sua liberdade,
como pessoas públicas que são, suas declarações ganham visibilidade midiática e
passam a se entrelaçar com as questões pertinentes as causas LGBT. A partir de então,
passam a ser planejados como estratégia de marketing, uma vez que esse
entrelaçamento favorece a formação do capital solidário da celebridade, que de forma
imaterial, agrega valor social ao capital de visibilidade que o famoso já possui,
qualificando-o. A revelação pública de uma celebridade ganhou um revestimento de
intenção de protesto político, gerando uma nova narrativa midiática, com a produção de
novos sentidos, mesmo que suas declarações reivindiquem sempre sua liberdade
individual.
Ao mesmo tempo, o engajamento social destas celebridades em diferentes
causas humanitárias e ambientais produz um capital solidário que posteriormente se
converte em novas oportunidades de trabalho para ela, fomentando seu capital
econômico.
Em geral, ao participar de campanhas sociais ou humanitárias, as celebridades
não proporcionam discussões aprofundadas sobre o assunto e, carecendo de argumentos
que fomentem a discussão numa esfera pública, suas causas não geram uma
transformação de fato, seja para enriquecer o debate público, seja via projetos ou ações
efetivas de políticas públicas. Emprestar sua visibilidade a determinados eventos ou
apenas estar presente como engajado politicamente com uma causa, frequentando
ambientes e/ou consumindo produtos derivados de determinados esforços em prol de
uma causa social ou ambiental, não concretiza as transformações necessárias para que
mudanças sejam colocadas em prática.
7 Conclusão

O caráter de mobilização social que também caracteriza a Parada do Orgulho


LGBT reivindica que mais vozes sejam ouvidas e tenham o mesmo valor que as dos
demais atores sociais e também questiona a condição do homossexual na sociedade.
Interferindo na vida cotidiana da orla da praia de Copacabana, paisagem de forte
referência internacional e da realização de eventos de grande visibilidade e repercussão,
o desfile-mobilização é construído e consumido por seus participantes
concomitantemente com o espaço urbano.

601
No texto “A Metrópole e a Vida Mental”, Simmel explicita que “A metrópole
extrai do homem, enquanto criatura que procede a discriminações, uma quantidade de
consciência diferente da que a vida rural extrai”(1973). O caráter sofisticado da vida
psíquica do homem metropolitano, que precisa sobreviver e conviver com intensos
estímulos nervosos, exposto pelo autor permeia, de certa forma, a lógica da estratégia
utilizada na realização do desfile-mobilização. Para driblar a “atitude blasé” do homem
da metrópole a Parada do Orgulho Gay utiliza diferentes dimensões que se sobrepõem e
se inter-relacionam de forma espetacular, interativa e argumentativa.
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publico-de-1-milhao-neste-domingo.html.

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Disponível em http://www.rio.rj.gov.br/web/riotur/exibeconteudo?id=4674109.

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http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/apesar+da+chuva+parada+gay+de+sao+paulo+
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Mott, Luiz. ABC DAS PARADAS GAYS - Cartilha com informações úteisde como
potencializar as Paradas GLTBS, 2004. Disponível em
http://www.abglt.org.br/port/paradasabc.php .

Parada do Orgulho LGBT reúne um milhão de pessoas em Copacabana. Disponível em

http://noticias.terra.com.br/brasil/cidades/rio-parada-do-orgulho-lgbt-reune-um-milhao-
de-pessoas-em-copacabana,c9fe323c703b1410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html.
Portal GEO RJ – População de Copacabana. Disponível em
http://portalgeo.rio.rj.gov.br/bairroscariocas/index_bairro.htm

Rios de História – Tour histórico - Gay Friendly. Rio de Janeiro: apaixone-se, entregue-
se e sinta sua energia. Disponível em http://www.riosdehistoria.com/rio-de-janeiro-
tourism/lgbtin-rio?langid=20.
Para o armário, nunca mais! – APOGLBT divulga tema da 17ª Parada. Disponível em
http://www.paradasp.org.br/noticia/para-o-armrio-nunca-mais-apoglbt-divulga-tema-da-
17-parada.html

604
Governo lança Sistema Nacional LGBT para integrar políticas contra o preconceito.
Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-06-27/governo-lanca-
sistema-nacional-lgbt-para-integrar-politicas-contra-preconceito

Manual de Comunicação LGBT - Disponível em


http://www.abglt.org.br/docs/ManualdeComunicacaoLGBT.pdf

Outros:

Apostila de apresentação aos voluntários da Parada LGBT. ONG Grupo Arco-Iris, 2014.

605
EIXO 9
Poder Popular e a
democratização da
economia

606
Empresas Recuperadas por Trabalhadores: o que a luta pelo trabalho autogestionado tem a
contribuir com o decrescimento

Raffaele E. Calandro1

1
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – IFCS/UFRJ – Rio de Janeiro-RJ –
calandro@predialnet.com.br

Resumo
O presente trabalho pretende debater o fenômeno socioeconômico denominado
Empresas Recuperadas por Trabalhadores (ERTs), este termo formulado por Andrés
Ruggeri (2011; 2014) busca descrever um processo extremamente plural que
geralmente surge em um contexto plural que surge da luta dos trabalhadores com intuito
de manterem a fonte de renda, podendo ser acentuar nos momentos de crises ou
falências. Na Argentina, tais processos ganharam expressividade após 2001, devido as
consequências das políticas neoliberais aplicadas durante a década de 90. Em outros
países, como o Brasil, os casos foram mais pontuais, porém dignos de análise. A partir
das dificuldades encontradas no decorrer das recuperações, também com o
discernimento dos agentes de que são capazes de administrar os meios produtivos,
abre-se espaço para a contestação de alguns paradigmas econômicos. Assim se pretende
desenvolver uma hipótese que vê na recuperação do trabalho por via da autogestionados
um passo importante para a criação de uma economia plural, bem como uma proposta
crítica a economia política e utilitarista. Torna-se relevante o dialogo entre ERTs, não
só com a s tradicionais teorias críticas ao capitalismo, como outras como o
decrescimento proposto por Serge Lautoche (2012). Pois, há características tanto no
decrescimento, como nas ERTs que propõe barreiras a constante acumulação de capital.

Palavras-chave: Empresas Recuperadas; Desenvolvimento; Autogestão;


Decrescimento; Economia Plural.

1 Introdução
As Empresas Recuperadas por Trabalhadores (ERTs) são fenômenos geralmente
decorrente de um momento de crise, terminam por abrir um espaço à organizações
econômicas singulares que no jargão econômico poderiam ser classificadas, no mínimo,
como heterodoxas. Trata-se de um processo no qual os trabalhadores de forma
organizada lutam para retomar a produção de um empreendimento com o proposito de
manterem seus postos de trabalho.
Neste trabalho busca dar um panorama das ERTs, como alguns autores tem definido
esse processo, quais são os casos mais relevantes e verificar as diferenças e
aproximações com a da Economia Social e Solidária (ESS) e com a teoria do
decrescimento. Com isso, se pretende verificar como os movimentos populares em luta
por terra, habitação, e principalmente, por trabalho – como os casos das ERTs –
promovem também questionamentos a “sociedade de crescimento” (LATOUCHE,
2012).
Este artigo está dividido em sete seções, a parte seguinte a esta breve introdução é

607
dedicada a um debate sobre o terno ERTs, pois alguns autores ao se depararem com o
fenômeno optaram por nomeá-lo de modo distinto, pois não seguem os mesmo critérios
adotado pelo pesquisador argentino Andrés Ruggeri (2011; 2014). Tal variações ao
definir o fenômeno leva a algumas equívocos que merecem ser esclarecidos.
Já na teceria seção, dando continuidade, a questão da definição das ERTs busca-se
mostrar as diferenças entre essas e os empreendimentos da ESS. Seguindo a proposta de
apresentar uma panorama a respeito das ERTs a quarta parte é dedicada a exemplificar
alguns casos relevantes e quinta a mostrar quais são as agendas politicas dessas
organizações.
Por fim a sexta parte apresenta a proposta de decrescimento de Latouche e a partir do
que foi apresentado mostrar como as ERTs acrescentariam a esse projeto. Sendo a
sétima parte a conclusão das ideias desenvolvidas no artigo.

2 Definindo o termo Empresa Recuperada por Trabalhadores


O fenômeno aqui compreendido como ERTs pode receber os mais distintos adjetivos
empresas autogestionárias (MENEZES, 2008), fábricas recuperadas (NOVAES, 2007;
FAJN, 2010312; PIRES, 2014), gestão cooperativa (HOLZMANN, 2001) ou até mesmo
controle operário (VERAGO, 2011). Porém essas expressões, carregadas de
significados, não traduzem por completo o processo que se pretende analisar nas
páginas a seguir, podendo inclusive, levar o leitor a conclusões equivocadas sobre o
fenômeno.
Apesar do termo empresas recuperadas sob autogestão ser mais elucidativa, e até certo
ponto mais correta, aqui se optou por uma adaptação do termo utilizado por Andrés
Ruggeri (2011; 2014), empresas recuperadas por sus trabajadores, a tradução, não
literal, também pode ser encontrada nas obras dos brasileiros Flávio Chedid Herinques
(2010), Herique T. Novaes e Maurício Sardá de Faria (2014)313. As razões para escolha
foram, primeiro, pela ênfase dada a palavra recuperada, uma autodenominação advinda
dos próprios trabalhadores e aponta para capacidade desses de retomarem a produção de
plantas industriais, ou atividades, que antes estavam condenadas a falência. Segundo
por não se restringir às fábricas e abranger os diversos setores produtivos. Terceiro por
contemplar os atores deste processo, os trabalhadores, ressaltando que não é uma
recuperação que segue um processo tradicional, por uma via puramente institucional,
jurídico-administrativa, no qual os agentes principais são empresários e advogados.
Segundo Braverman (2012) o princípio da administração científica desenvolvido
iniciantemente por Frederick Taylor – e que mais tarde serão retomados por Fayol, Ford,
entre outros, até alcançar as técnicas de administração e gestão atuais – consistem na
dissociação entre o processo de trabalho e o conhecimento a respeito desses, ou seja,
promove uma separação ente a concepção (trabalho mental) e a execução (trabalho
manual), a gerência é responsável por manter o monopólio do conhecimento,
controlando e planejando as etapas e os modos de produção. A abordagem

312
Gabrel Fajn (2010) se utiliza algumas vezes da expressão empresas e fábricas recuperadas, o que ao
nosso entender seria uma redundância pois a palavra empresas englobaria também as fábricas.
313
Em seu livro (2007) Herique T. Novaes optou pela expressão Fábrica Recuperada (FR) e não busca um
análise sobre o termo, chega a mencionar que poderia ter usado o termo autogestão, mas demandaria
justificativas. Na mesma obra quando se refere a alguns casos argentinos denomina empresa
recuperada, termo que será adotado pelo autor a medida em que se avança o debate sobre o tema.
Maurício Sardá de Faria (2011) anteriormente também se utilizou do termo fabrica recupera.

608
bravermaniana é reforçada pelo o processo tradicional de recuperação das empresas em
dificuldades financeiras, geralmente tal processo só contempla esferas econômicas e
jurídicas marginalizando os interesses dos trabalhadores.
Portanto, quando aqui se mencionar empresa tradicional abrange todas aquelas cuja
gestão não parte de um processo democrático dentre os trabalhadores. Assim sendo a
natureza jurídica dos empreendimentos que tão origem as ERTs são os mais diversos.
Não se pode ignorar os casos de ERTs oriundas de cooperativas, como por exemplo as
Industrias Metalúrgicas y Plásticas Argentina (IMPA) em Buenos Aires e Cooperativa
Central de Laticínios da Bahia (CCLB) em Feira de Santana. Pois nem todas
cooperativa obedece o principio da auto gestão.
Bem como, as ERTs não devem ser caracterizadas de acordo com as opções de
organização que assumiram na recuperação. A formação de uma cooperativa, solução
mais recorrente entre os casos brasileiros (HENRIQUES et al, 2013); a criação de uma
associação de trabalhadores para a cogestão da empresa; ou mesmo a ocupação
permanente sob controle operário, como é o caso da Flaskô. Esses são alguns exemplos
de soluções encontradas pelos trabalhadores para a gestão dos empreendimentos e
podem ser considerados ERTs.
As ERTs consistem em um processo econômico e social (RUGGERI, 2014), que
pressupõe a existência de uma empresa tradicional cuja falência, inviabilidade, ou
mesmo até mesmo remanejamento da planta industrial provocará uma reação
organizada dos trabalhadores, na tentativa de manterem seus empregos. Outro ponto
crucial para caracterizar uma ERT é a adoção, por parte dos trabalhadores de
ferramentas democráticas para a gestão da produção. Assim, as ERTs não poderiam ser
consideradas propriamente um modelo revolucionário, mas o resultado de uma luta pelo
direito ao trabalho.
O mapeamento das ERTs brasileiras (HENRIQUES et al, 2013) realizado por
pesquisadores de diversas instituições de pesquisa, com intuito de identificar os casos
nacionais de forma mais ágil, desenvolveu seis perguntas para configurar um processo
de recuperação:
- Há um processo organizado de luta pela recuperação/manutenção?
- Houve falência ou encerramento/interrupção das atividades da antiga
empresa?
- Os trabalhadores da antiga empresa participaram da recuperação?
- A empresa formada tem identificação com a anterior?
- As instalações e equipamentos são os mesmos da antiga empresa?
- As máquinas e instalações adquiridas são fruto do processo de recuperação?
(ibidem p.13)
A partir da análise desses pontos pode-se valiar o processo de recuperação com mais
facilidade, e descartar os empreendimentos autogestionadas não oriundos de empresas
tradicionais.
Porém, enquanto a síntese do que seria o processo de recuperação parece ser algo
consensual, o debate sobre os modelos de autogestão ainda gera muita controvérsia. Não
só porque exige uma avaliação mais qualitativa, como também, por haver distintos
olhares sobre o que seria uma empresa autogestionária. Portanto, o levantamento das
ERTs brasileiras optou por uma saída simples a autodenominação (ibidem p.32). Apesar
de avaliar a estrutura organizacional, e a frequência das assembleias gerais, bem como,
o número de trabalhares associados e/ou que tem direito a voto e o perfil e a relevância
das decisões tomadas nas assembleia (ibidem p.114), a autogestão é um mecanismo que
deveria estar presente no dia a dia da produção, portanto mesmo observando os

609
elementos apresentados pelo levantamento, ainda poderiam surgir dúvidas.
Apesar de as experiências de autogestão não se iniciarem na Iugoslávia socialista, foi
com o regime de Josip Broz Tito que experiências autogestionárias ganharam difusão,
segundo Pompilio Locks Filho e Marília Veríssimo Veronose (2012, p.270) há um
relativo consenso dentro das ciências sociais quanto a esse fato. Porém, no tange a
conceituação de autogestão há diferentes interpretações, enquanto algumas privilegiam
os aspectos econômicos, ouras priorizam os princípios políticos. Para não alongar o
debate, já que o objetivo aqui não realizar uma análise do termo, este trabalho levará em
consideração o significado de autogestão mencionando no Dicionário do Pensamento
Marxista:
Em sentido estrito, autogestão refere-se à participação direta dos
trabalhadores na tomada de decisões básicas da empresa. Os meios de
produção são socializados (de propriedade da comunidade dos trabalhadores
ou da totalidade da sociedade). (...) Num sentido mais geral, a autogestão é
uma forma democrática de organização de toda a economia, constituída de
vários níveis de conselho e assembleias (MARKOVIC,2001, p. 23).

3 Diferenciação: Economia Social e Solidária e Empresas Recuperadas


Como aponta o atual Secretário Nacional de Economia Solidária, Paul Singer (2002), a
economia solidária – aqui nomeada Economia Social e Solidária (ESS) – também tem
como princípio a autogestão, sendo as cooperativas de produção um exemplo de
empreendimento solidário. Completa mencionando que a ESS e o “novo
cooperativismo” são caracterizados pela enfase dada à democracia e a igualdade, pela
autogestão e pelo repúdio ao assalariamento (ibidem p.111).
Mas para Andrés Ruggeri (2014, p.43-48), mesmo apresentando pontos em comum as
ERT e a ESS – bem como, o cooperativismo – não devem ser tratados como sinônimos.
Primeiro porque os empreendimentos da ESS são extremamente heterogêneos, tais
como os programas de crédito e microempreendedorismo – em alguns casos chegando a
abarcar as micro e pequenas empresas – onde existe uma clara exploração do trabalho.
Segundo porque os teóricos e agentes da ESS propõem uma economia alternativa, uma
“outra economia”, mas é duvidosa a possibilidade de existência de um setor solidário
em meio a uma economia de livre mercado.
A análise de Andrés Ruggeri sobre a ESS, se aproxima em alguns aspectos das ideias de
Henrique Wellen (2012). Para este autor há uma séria dificuldade em precisar os termos
teóricos de tais empreendimentos. A crítica de Herique Wellen a economia solidária –
termo que o autor insiste em colocar entre aspas pois o considera uma inovação
semântica sem nenhuma “evidência substantiva que aponte para a possibilidade de
união dessas duas antípodas” (2012, p.19) – está fundamentada em uma teoria marxista,
que apesar de não ignorar a diversidade e a grande diferenciação entre os agentes e
organizações da ESS, não busca observar as implicações de cada conjunto
separadamente, tratando um campo heterogêneo e dinâmico como algo uniforme e
estádio. A crítica, ou até mesmo a defesa, da ESS é um processo complexo pois esta
envolve um grande número de empreendimentos que podem abranger inúmeros
programas, inclusive o microcrédito – um mecanismo de como bate a pobreza rejeitado
por David Harvey, pois suas características neoliberais se mostram incapazes de prover
soluções para o um desenvolvimento geográfico desigual (2011, p.119-124/204).
Segundo Wellen, as teses relativas a ESS estão centradas em dois movimentos, que se
dão de modo dialético: “a transmutação do valor de troca em solidariedade e a

610
transformação de qualidades solidárias em mercadorias” (2008, p.106). É importante
analisar tal processo, pois é através da exemplificação desse fenômeno que o autor irá
construir os argumentos para sua crítica.
Ao descrever o primeiro movimento, de “transmutação do valor de troca em
solidariedade”, Wellen (ibidem p.106-109) reprova severamente visão de Paul Singer.
Primeiramente, aquele aborda a defesa que esse último faz do mercado como um
instrumento de liberdade e realização individual, concluindo que tal ponto é uma
mistificação das individualidades que não permite observar a dominação que o capital
exerce sobre as vontades humanas.
A defesa da competição e do mercado como uma entidade necessária, mesmo
estando ligada à denúncia da desvantagem social proveniente das diferenças
sociais acumuladas, nega a discussão central do próprio capital como uma
força social, como causa geradora dessas desigualdades, sendo sua proposta
de fornecimento de vantagens para quem não as tem uma forma de
legitimação dessa mesma força social, não tocando, portanto na causa do
problema (ibidem p.107).
Deduzindo assim, que o socialismo com mecanismos estatais de controle das constantes
desigualidades provocadas pelo mercado, sugerido pelo Secretário de Economia
Solidária, está mais próximo de um modelo keynesiano, do que um socialismo de
transição.
Dando continuidade a crítica, Wellen irá se referir a interpretação romântica que o autor
faz da atual configuração do sistema capitalista. Na fase monopolista, em que se
encontra o capitalismo, o valor de troca deixa de ser um mediador das relações sociais,
para se tornar objetivo central, desse modo, tal impeto por lucratividade passa a dominar
todas os segmentos da vida social. Para haver espaços não-capitalistas de
cooperativismo, ou de solidariedade, dentro dessa conjuntura seriam necessário esferas
sociais com grande nível de autônomas, fato que contradiz a alta interdependência
existente entre essas.
É uma mistificação pensar que as relações internas dentro de uma
comunidade estão suspensas das determinações do capitalismo e que a
‘economia solidária’ poderia forjar, de forma independente, um tipo de
racionalidade peculiar. Para superar a ideologia capitalista e fazer submergir
qualidades autenticamente humanas, é preciso um movimento que abarque a
totalidade social e que não se restrinja à comunidade (…) (ibidem p.109).
O elevado grau de voluntarismo presentes nas teses da ESS e a crença na superação do
sistema capitalista através de uma conquista gradativa, também estava presente nos
ideias dos socialistas utópicos. Porém, a fase concorrencial do capitalismo em que esses
últimos se encontravam, permitia “uma margem de manobra” para o cooperativismo. Já
no estágio do capitalismo monopolista a sobrevivência do empreendimentos da ESS só
é possível quando há um apelo para solidariedade como um diferencial. E assim, ao se
postular a solidariedade como vantagem competitiva há o segundo movimento descrito
por Wellen a “transformação de qualidades solidárias em mercadorias” (ibidem p.109-
112).
Assim se pode observar a diferença circunstancial entre ERTs e os empreendimentos da
ESS. Mesmo eles tendo em comum o princípio da autogestão deve-se lembrar que as
ERTs não buscam propriamente a transformação por uma via solidária. Andrés Ruggeri
(2014) ao descrever as ERTs atenta que estas estão muito mais próximas do movimento
operário, sindical, das mobilizações populares por terra e moradia – Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto

611
(MSTS), por exemplo – do que propriamente dos princípios da ESS. Aliás, o lema do
MST “ocupar, resistir, produzir” foi adotado pelo Movimiento Nacional de Empresas
Recuperadas (MNER) em 2001. É claro que não se pode negar a ESS como um
movimento social, porém em seus aspectos teóricos ela se aproxima do terceiro setor e
da filantropia.

4 As empresas recuperadas no Brasil e no Mundo


Os processos aqui denominados ERTs converteram as empresas em um território de
disputa social no qual os trabalhadores participam diretamente na tentativa de manterem
sua fonte de renda (FAJN, 2010, p.8). Tais fenômenos socioeconômicos que ganharam
expressão nas últimas décadas, principalmente na Argentina após a crise de 2001. No
Brasil, como também em outros países os casos são mais pontuais, no entanto, alguns
desses são muito significativos para a compreensão mais ampla do fenômeno.
O terceiro levantamento de empresas recuperadas argentina (RUGGERI, 2010) apontou
para um total de 205 empresas há quatro anos atrás, recentemente um quarto
levantamento já apontou para existência no país austral de mais de 300 ERTs
(RUGGERI, 2014). Destas experiências se pode destacar alguns exemplos
emblemáticos, como a ocupação da gráfica Gaglianone em abril de 2002 que
posteriormente originou a Cooperativa de Trabajo Chilavert Artes Graficas (ou
simplesmente Chilavert). O Hotel BAUEN na esquina entres as Av. Callao e Corrientes,
no coração de Buenos Aires. Também pode-se sitar a Cooperativa Fábrica Sin Patrones
(FaSinPat), mais conhecida por seu antigo nome Cerámica Zanón, empresa que exerce
uma infalência política importante na província de Neuquén. Talvez essas junto às
IMPA representem as ERTs mais conhecidas na Argentina, como também as mais
relevantes para o movimento das empresas recuperadas. Esse país há também uma série
de organizações – algumas ligadas a centrais sindicais – que representam as ERTs, uma
delas é o MNER que surgiu em meio a crise de 2001.
No Brasil , atualmente são 67 os casos de ERTs (HENRIQUES et al, 2013), segundo
Josiane Lombardi Verdego (2011) na década de 90 do último século foram cerca de 150
as empresas que ao entram em processo de falência tiveram a gestão assumida pelos
seus trabalhadores. Talvez o fenômeno de ERTs no Brasil apresente uma retração, como
suspeita Henrique T. Novaes (2007). Porém, como os números anteriores ao
levantamento, publicado em 2013, não são precisos se torna difícil conformar tal
suspeita.
A Flaskô, localizada em Sumaré (SP) é o caso de ERT mais conhecido no Brasil, talvez
pela redução da jornada de trabalho e pela luta junto as movimentos sociais. Porém ela
tem muitas particularidades pois é única fábrica ocupada, gerida por um conselho de
fábrica. Seus trabalhadores optaram por não criar uma cooperativa e lutar pela
estatização sob controle operário (DELMONDES e CLAUDINO, 2009). Há outros
casos menos conhecidos, porém significativos, como a Cooperativa de Extração de
Carvão (COOPERMINAS) que emprega 720 trabalhadores em Forquilhinha (SC).
Bem como, o sistema cooperativo UNIFORJA, localizado em Diadema (SP), formando
pela Cooperativa de Central de Produção Industrial de Trabalhadores em Metalurgia
(UNIFORJA), Cooperativa Industrial de Trabalhadores em Tratamento Térmico e
Transformação de Metais (COOPERTRATT), Cooperativa de Trabalho em Laminação
Forjado Especial (COOPERLAFE) e Cooperativa Industrial de Trabalhadores em
Forjaria (COOPERFOR).

612
No Uruguai, segundo a Unidad de Esdudos Cooperativos del SCEAM de la
Universidad de la República, existem 20 empresas recuperadas no país, Aline Suelen
Pires (2014) também encontrou referências bibliográficas que apontavam para
existência de ERTs na Venezuela, Colômbia, Paraguai, Bolívia e México, porém seriam
casos pontuais. A doutora também aponta para as experiências denominas Worker
Takeover (WTO) que surgiram na Europa na década de 1980. Há casos anteriores como
a notória ocupação dos trabalhadores à fábrica de relógio francesa Lib, em 1973, na
cidade de Besançon. Atualmente na França, se destaca o caso da Fralib, uma unidade de
produção de chás do grupo Unilever fechada com objetivo de ser transferida para o leste
europeu, ela foi ocupada pelos trabalhadores em 2010 que lutam para retomar a
produção no local original.

5 A agenda política das empresas recuperadas


Paul Singer (2004), diz que o atual estágio do capitalismo, a era da “flexilidade”,
possibilita o desenvolvimento solidário. A afirmação posiciona as cooperativas dentro
da nova dinâmica do capital. Portanto, para compreender relevância dos mesmos não
seria adequado analisá-los de modo isolado, ou verificar comparações entre pares. É
preciso observar o conjunto, não a unidade – cabendo aqui uma visão do processo – e
verificar a dinâmica entre as ERTS e as dinâmicas do capital.
Para David Harvey (2011; 2013) a partir da década de 1970, uma série de mecanismos
financeiros foram lançados para se resolver a crise de sobreacumulação – ou seja, para
falta de alternativas para valorizar o capital. Para tanto se lançou uma série de medidas –
políticas neoliberais – com intuito de abrir novas oportunidades de investimentos.
Porém, esses mecanismos propostos como solução da crise, não erram distintos da
acumulação primitiva ou original , descrita por Marx – mercantilização da terra,
expulsão violenta das populações campesinas, direito exclusivo a propriedade privada
(outras formas extinta: comum, coletivo, estatal), mercantilização da força de trabalho,
suspensão de formas alternativas de produção e consumo, processo de colonização,
apropriação de ativos (inclusive dos recursos naturais), monetarização da troca usura,
dívida nacional. Tal acumulação, como aponta Harvey, não é um privilégio da fase
inicial do capitalismo, ela nunca deixou de existir e ganhou vida nova a partir de 1970,
portanto ele dá um nome mais elucidativo para esse processo violento, acumulação por
espoliação que hoje ocorrer de diversas maneiras, mas principalmente através de
mecanismos legais, financeiros e de crédito.
A luta dos trabalhadores das ERTs é uma realidade pois o sistema jurídico não privilegia
a racionalidade econômica, a fim de manter dos aparados produtivos, mas sim a lógica
predatória que beneficia poucos indivíduos (FAJN, 2010, p.8). Como aponta Gabriel
Fajn as empresa recuperadas “representan tal vez, uno de los emergentes más
dramáticos de la destrucción sistemática del aparato productivo y de la lucha por parte
de los trabajadores por conservar sus empleos” (ibidem, p.3). Uma década de um
governo neoliberal levaram a Argentina ao colapso de 2001, fuga de capitais, corralito,
corrida aos bancos, falências em massa, desemprego. As respostas a esse saqueo foram
os movimentos piqueteiros, os clubes del trueque, as ERTs.
Desde de então as ERTs se consolidaram como um movimento em luta, obtiveram
algumas vitórias e expropriações a favor dos trabalhadores, porém ainda faz falta uma
política do Estado argentino que potencialize essas experiências, segundo Andrés
Ruggeri falta os governantes compreenderem que as ERTs não são um plano de
assistência social, falta “entender al trabajo autogestinado como una forma de trabajo de

613
mejor calidad humana y de pontencialidad económica a futuro, como modelo posible y
punto de partida para una soliedad más justa y humana” (2014, p.12).
A luta do MST vai muito além de uma simples distribuição de terras improdutivas,
busca-se também as condições para que os pequenos agricultores produzam de maneira
sustentável. Luta-se por uma soberania alimentar, por produção agrícola de alimentos
mais saudáveis, contra o uso indiscriminado de agrotóxicos, contra a monocultura,
contra os transgênicos. Assim como a luta dos trabalhadores das empresas recuperadas
não termina na garantia de seus postos de trabalho, ela é também a luta por trabalhos
mais humanos e dignos, contra a exploração e a favor da autogestão, conforme descrita
anteriormente, atravessando todos os setores produtivos, proporcionando uma forma
democrática de se organizar a economia.

6 Decrescimento, economia plural e Autogestão


O cCapital não é uma coisa (como os economias clássicos definem: dinheiro, bens ou
meios de produção), é uma relação de social presente em um período histórico
particular, mas no entanto, durante o processo produtivo de valor assume a forma de
coisa. Capital é um processo de produção cuja classe burguesa (detentora do monopólio
dos meios de produção) se utiliza do trabalho vivo (dos homens livres despossuídos
destes meios) para expandir um valor inicial. E exatamente ao subordinar o trabalho
como fonte de produção de valor, gera a nescidade de sempre valorar-se, com o risco de
deixar de ser capital, e perder sua capacidade de gerar “riqueza”. Ou seja, para o capital
se constituir como tal deve manter-se constate em que o “valor se valoriza”, um ciclo
ad infinitum em que a valorização deve estar sempre presente, qualquer empecilho ou
interrupção desse ciclo gera perda. Assim sendo o capital é o valor que se valoriza
(MARX, 2012; HARVEY, 2013).
Tal peculiaridade faz com que os capitalistas entre um uma corrida por novos
investimentos, novas formas de valorizar o capital que eles detêm, com o risco do deixar
de se valorizar e assim perderem sua condição de capital. Esta lógica pode ser
observada também na contabilidade social – nos sistema de contas nacionais – pois
sempre há a necessidade de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Assim a
economia global está baseada nesta lógica hegemônica em que acumulação de capital
torna-se essencial, qualquer barreira, ou diminuição desse fluxo acumulativo leva a crise
(HARVEY, 2011).
Porém, o planeta Terra não irá suportar uma acumulação ad infinitum. Logo, Serge
Lautoche (2012) defende uma lógica de decrescimento, contestando os ideais de
crescimento, desenvolvimento e progresso. Para tanto ele busca uma economia plural
baseada na diversidade das tradições. Assim ao abandonar essa lógica de crescimento
pelo crescimento, permite “reorientar a aventura humana em direção à pluralidade de
destinos” (ibidem, p.48), permitindo uma mudança nas estruturas de distribuição e um
maior democratização dos direitos e usos sobre os recursos naturais e produtivos.
A retomar o que foi descrito sobre as ERTs, se pode verificar que elas vão de encontro
as propostas de Latouche. Mesmo porque, segundo Gabriel Fajn:
la incidencia del fenómeno de empresas recuperadas en la Argentina es muy
acotada en términos económicos, el impacto es mínimo en la economía
general, pero su huella, en términos políticos y simbólicos ha sido
fundamental. La recuperación de empresas forma parte hoy de la memoria
política de los trabajadores y de la caja de herramientas de sus estrategias de
lucha contra el sistema. En síntesis, este es un fenómeno en tránsito,

614
contradictorio y complejo con un futuro abierto y por ahora incierto (2010,
p.20).
Da mesmo forma, no Brasil, os impactos macroeconômicos das empresas recuperadas
são mínimos, mas ao verificar as mudanças no território, pode-se observar que as
atividades dos trabalhadores transcenderam os muros das fábricas, se expandindo à
vizinhança, ao bairro, à cidade. Portanto, deve-se buscar uma análise centrada no
território, compreender como a dinâmicas dos conflitos que iniciaram o processo de
recuperarão, estruturam as relações social no espaço e proporcionaram mudanças
muticas vezes significativas na região.
Na Chilavert, hoje funcionam uma escola popular, um centro de documentação das
ERTs, um centro cultural (RUGGERI, 2014). Os trabalhadores das IMPA sonham em
construir uma universidade (RAMALHO R., 2013). A Unión Solidária de Trabajadores
(UST) destina 25% do seu excedente para investimentos na comunidade, já a Zanón e a
Flaskô realizam parceria com profissionais de diversas áreas e se articulam com os
movimentos sociais com intuito de melhorar a qualidade de vida nas suas respectivas
localidades (HENRIQUES, 2010, p.269).
Assim, podendo compreender o poder coletivo como a capacidade dos agendes sociais
de influenciar de modo direto, ou indireto as ações políticas e econômicas em
determinado território (RAMALHO J. R. et al, 2013) e não apenas através das
instituições é que se pode verificar a relevância da luta dos trabalhadores das empresas
recuperadas.
Claro que os benefícios de uma política governamental voltada para as ERTs traria
benefícios que vão transcendem o local. A recuperação de empresas por meio da
autogestão pode, por exemplo, apresentar-se como uma outra via às “alternativas
infernais” (ACSELRAD, 2010). Ou seja, tornando os plantas indústrias menos móveis,
pois há a possibilidade dessa ser expropriada em favor dos trabalhadores. E se hoje “a
ameaça empresarial de fechamento de empresas mostra-se um instrumento de luta
antissindical” (ibidem, p.118) as ERTs poderiam ser uma resposta possível. Mas não é
necessário ir tão longe para verificar a relevância das ERTs.
Segundo Serge Latouche (2012) decrescimento é uma redirecionamento à pluralidade,
sendo assim impossível um modelo único para sociedade, claro abarcando princípios
não-produtivista, e abandonando uma sociedade centrada puramente no crescimento
econômico. “Assim, o decrescimento proporciona um quadro geral que dá sentido a
numerosas lutas setoriais ou locais, favorecendo compromissos estratégicos e alianças
táticas” (ibidem, p.48).
ERTs são espaços onde se são questionadas as formas tradicionais de produção através
de uma democracia direta, da autogestão, levando em alguns casos a redução da jornada
de trabalho bem como a distribuição igualitária dos ganhos. O decrescimento passa
exatamente por repensar relações de produção, distribuição, bem como as jornadas de
trabalho. Claro que atualmente elas não respondem a todas as propostas do
decrescimento, inclusive não são todas as ERTs que buscam um desenvolvimento
sustentável, porém é uma das ferramentas que se concretiza. Pois a restruturação do
espaço organizacional, promovido dentro das ERTs, tem como resultado destruir as
tradicionais relações capital-trabalho, promovendo uma coletivização não só do espaço,
mas também da gestão (FAJN, 2010).

615
7 Conclusão
As ERTs são um processo no qual os trabalhadores reestruturam os mecanismos de
gestão de empresa. Apesar de se assemelhar em alguns aspectos com a ESS não deve ser
tratado como sinônimo, pois a luto desdes trabalhadores está muito mais próxima de
movimentos sociais, como o MST ou MTST, que propriamente da construção de uma
economia solidária.
Esse fenômeno converteu o espaço da empresa em território de disputa, deve ser lido a
partir das dinâmicas que surgem desse conflito. Não só relações empregados e ex-patão
tornam-se importante para compreender a ERT, como também as relações com o
entorno, moradores, associações comunitárias, movimentos sociais.
São notórias as diferentes formas de lutas, ou no campo da ESS, entre aqueles que busca
um decrescimento, ou as trabalhadores assegurando o seus postos de trabalho. Porém na
maioria das vezes, tais processos ou ideias caminha juntas e criam barreiras para a
acumulação do capital. Sendo assim nossos olhares não apenas torna-se críticos, mais
também, propositivos. Postulando uma economia plural e democrática que não mira na
acumulação de valor um objetivo máximo como ocorre na economia tradicional.

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617
O Movimento das Comunidades Populares e a luta pelo Poder Popular

Mariana Affonso Penna 1

1
Universidade Federal Fluminense – UFF – Niterói-RJ – mariana.penna@yahoo.com.br

Resumo
O Movimento das Comunidades Populares (MCP) viveu a “época áurea” dos
movimentos de base no Brasil recente, marcada pelo surgimento e crescimento da
esquerda católica, pela formação de Comunidades Eclesiais de Base, pelos movimentos
populares de reivindicação e ação direta nos bairros, pelo novo sindicalismo, dentre
outros. Seus militantes vivenciaram também o findar dessa época e suas
transformações: a institucionalização, as apostas políticas eleitorais, o crescimento e a
alteração de perspectiva das ONGs. Ainda assim, apesar dessas mudanças, mantiveram-
se firmes “nadando contra a corrente” da hegemonia, tendo sempre em vista o grande
objetivo do movimento, qual seja, construir a comunidade de iguais na Terra. Com 45
anos de história, com trabalhos comunitários consolidados em doze estados brasileiros,
o MCP acredita construir hoje as bases de um novo modo de produção, comunitário,
capaz de superar o capitalismo e de edificar o Poder Popular. Este artigo tem por
propósito apresentar um panorama geral sobre a constituição histórica do Movimento
das Comunidades Populares, demonstrando algumas das principais transformações
pelas quais passaram no decorrer de sua trajetória e apontando para algumas das
contribuições que este movimento social traz hoje para (re)pensar a militância política e
as lutas sociais por um socialismo com liberdade.
Palavras-chave: Movimentos sociais; Comunidade; Economia coletiva; Poder popular;
Socialismo.

1. Uma história de pessoas que se negam a serem vencidas


Fala-se, com certa frequência, em história dos vencidos com referência à história
daqueles que lutaram ou até mesmo morreram por representarem outros projetos de
sociedade que não o dominante ou que passou a dominar. Foram pessoas que viveram,
pensaram, sonharam ou até planejaram outros mundos, porém tiveram suas ambições
frustradas ou interrompidas, abortadas pelos detentores de maior poder. Por história dos
vencidos, também compreendemos a história de classes, povos e grupos sociais que
foram ou estão submetidos de alguma maneira a grupos dominantes.
Todas essas histórias merecem e precisam ser contadas, mas não é uma dessas histórias
que eu quero contar. Não porque a história que desejo contar não tenha como atores
pessoas que tenham construído e realizado projetos contra hegemônicos. Não porque
tais atores não fossem eles próprios pertencentes às classes populares. O motivo é outro:
quero contar a história de pessoas que ainda se negam a serem vencidas.
Mas como contar essa história? Certamente será uma difícil tarefa a ser executada e é
este o objetivo da minha pesquisa de doutorado em História, atualmente em andamento

618
e que terá nesse artigo apresentado um panorama geral. Mas antes de desenvolver
qualquer discussão metodológica, balanço bibliográfico ou mesmo uma resumida
apresentação da pesquisa, desejo começar com uma metáfora. O ditado diz que “não
adianta nadar contra a corrente”, diz-se, porém das pessoas que assumem lutas por
transformações sociais que elas estão justamente a “nadar contra a corrente”. Bem, eu
poderia dizer sobre as pessoas cujas histórias eu desejo contar que, tais sujeitos,
dedicam suas vidas a nadar contra a corrente. Mas o fazem não de frente, no meio do
rio, investindo todas suas energias para contrariar o fluxo da água. De forma distinta,
partem das margens deste rio, onde a proximidade com a areia, com a vegetação e com
as águas vindas de córregos e de outras nascentes, faz com que a velocidade da corrente
seja mais branda. E seguem por ali, margeando, descansando quando necessário, mas
sempre adiante.
Justamente por se manterem nas margens, nadando contra a corrente de maneira
discreta, pouco se ouve falar deles. Refiro-me ao MCP, Movimento das Comunidades
Populares, existente há 45 anos, mesmo que com diferentes nomes durante esta
caminhada. Surgiu em 1969, a partir da Juventude Agrária Católica, passou a chamar-se
Movimento de Evangelização Rural, a seguir Corrente dos Trabalhadores Independentes
em 1986 e depois Movimento das Comissões de Luta em 1992. Hoje atua em por volta
de cinquenta comunidades, em doze estados brasileiros, onde desenvolvem algum tipo
de trabalho. São iniciativas de economia coletiva (produção, venda e serviços), mini
bancos populares, escolas de formação em variadas áreas, escolas de reforço escolar e
creches, grupos de futebol, grupos de saúde (ginástica para idosos, produção de
remédios caseiros), grupos de dança e teatro, organização de almoços coletivos, dentre
outros.

2. O projeto estratégico que o Movimento das Comunidades Populares


constrói
Cada trabalho desenvolvido pelo MCP nas comunidades onde atuam está relacionado
com uma das chamadas “colunas” que o movimento deseja “construir” para “edificar” o
Poder Popular. Mas afinal: o que seriam as colunas? Qual a concepção de “Poder
Popular” defendida pelo movimento?
Todo esse vocabulário ligado à construção civil é proposital, estas metáforas, usada
pelos próprios participantes do movimento, visam melhor explicitar a maneira como
entendem ser necessário atuar, a fim de alcançar a desejada emancipação social. Não
consideram a transformação como fruto de um arroubo de vontade popular, um
acontecimento repentino sem raízes. A revolução, para eles, é como uma casa, há que
ser construída, passo a passo. O objetivo final é a comunidade, e parafraseando uma
militante do movimento: “Comunidade, para a gente, é o mesmo que Comunismo”.
Portanto, comunidade para o MCP não é um eufemismo para favela, como tão
costumeiramente utilizado por políticos e Organizações Não Governamentais (ONGs).
Ela é a “utopia”. Comunidade é o império do Coletivo, a manifestação viva do Poder
Popular, ou, como cantava Zé Vicente em música que é referência para o MCP: o
“Reinado do povo”.314 E como funcionaria esse “reinado”? É justamente isso que o
MCP considera estar construindo no momento: o gérmen do Poder Popular. Isso se
traduz na organização das tais colunas que correspondem para eles a esferas do social
basilares na construção de uma nova sociedade: Economia Coletiva, Religião, Família,

314
“Utopia”, Música de Zé Vicente.

619
Saúde, Moradia, Escola, Esporte, Arte, Lazer e Infraestrutura.315 Uma vez que cada uma
dessas necessidades fosse atendida a partir da participação popular direta, aí sim a
revolução socialista poderia se tornar uma realidade, pois o povo teria enfim “aprendido
a se governar”.

3. A organização política para o MCP


Para o povo então aprender a governar, ao invés de esperar a iluminação vir de
vanguardas intelectuais, as lideranças deveriam “emergir” do próprio povo e junto ao
povo captar seus anseios e conduzir para a transformação social. Este emergir, porém,
não é por geração espontânea, tem que ser estimulado. Os militantes precisam distribuir
tarefas, fazer consultas constantes e se manterem sempre “no nível da base”, para assim
formar novos militantes que deem continuidade ao trabalho e façam-no crescer. Por
isso, a composição social do Movimento das Comunidades Populares é muito distinta
daquela predominante em muitos movimentos sociais, nos quais a presença de
universitários e pessoas ligadas à academia, de maneira geral, é bastante presente. Desta
maneira, os militantes do Movimento das Comunidades Populares estão no meio do
povo e são, eles próprios, oriundos das classes populares.
Estando no meio do povo, é uma preocupação ainda, não se destacar da massa, por isso
advogam como princípio ser um movimento de massas e viver como vive a massa e em
meio à massa, vivenciando seu cotidiano, tendo experiências de vida semelhante.
Conforme dita a tradição maoísta, da qual se consideram herdeiros, “viver como peixe
dentro d’água”.

4. Concepção de povo para o MCP


Quando falei acima em povo ao me referir à composição social do Movimento das
Comunidades Populares cabe esclarecer que utilizei o vocabulário empregado pelo
próprio movimento. Na universidade, nos meios de comunicação de massas, em
organizações políticas, dentre outros espaços, a palavra pode assumir diferentes
significados. “Povo” pode ser, por exemplo, entendido como o conjunto poli classista de
uma nação/país (confundindo-se com a ideia de “população”), como também pode
significar as classes oprimidas economicamente numa sociedade qualquer. No entanto,
não é intenção deste artigo apresentar as diversas formas de conceituar “povo”, nem
mesmo selecionar uma que pareça conceitualmente mais precisa, mais adequada. Ainda
assim é importante situar o que o movimento estudado entende por “povo”, visto que
isso explica não somente sua composição social como também suas estratégias e táticas
políticas.
Para o MCP – conforme se verifica historicamente no levantamento de fontes, em
especial em seus documentos de estratégia, análises de conjuntura e estudos do método
de atuação – a sociedade estaria dividida basicamente em três classes: classe rica, classe
média e classe popular (pobres). Aparentemente esta interpretação da divisão social
pode parecer coincidir com aquela clássica padronização social a partir da renda e
consumo em oposição a uma conceituação que leve em conta as relações de produção
como fator determinante da classe social. Porém, o MCP tem uma conceituação
específica. Os ricos representam a classe proprietária, os capitalistas, os pobres são os

315
Sobre as colunas do MCP, ver: Quem somos. De onde viemos. Para onde vamos! Jornal Voz das
Comunidades. Brasil, março de 2006, ano 1 – nº 1, p. 2.

620
trabalhadores em geral ligados ao trabalho manual, pois para eles a classe média se
distingue dos pobres principalmente pelo acesso à educação superior que garante um
padrão de renda mais elevado. Essa interpretação da classe média vem desde os
documentos basilares para a fundação do movimento em 1969, até a elaboração
estratégica e tática empregada pelo movimento ainda na atualidade. No texto fundador
“Ação Cultural” (MER, 1969), lemos:
Os setores médios são gente que veio do polo dominado e que teve
possibilidade de participar de alguma forma dos privilégios do polo
dominante. Isto se consegue através de um emprego público, do estudo, do
apadrinhamento, etc.
Não se trata de uma interpretação muito precisa, mas ao analisar historicamente
percebemos que a vinculação entre “classe média” e “estudo” é um elemento importante
e constituinte da trajetória do MCP. Porém, logicamente, como falamos de um
movimento social, de relações humanas, nada é definitivo, estático, nem isento de
contradições e consequentemente de mudanças.
Com relação à classe popular a preponderância da utilização de “pobres”, ao invés do
clássico “proletários” de parte significativa da esquerda, pode ser interpretada como
decorrente de diferentes razões. Uma é que o termo “pobres” é de conhecimento geral e,
portanto mais “didático”, por ser de fácil e imediata compreensão. Outro motivo é a não
limitação ao operariado urbano como sujeito revolucionário, mas sim a busca por uma
extensão desse sujeito revolucionário a uma coletividade mais ampla de oprimidos que
engloba os operários, camponeses, indígenas. Vale ainda considerar que a origem
católica do movimento tenha também contribuído para a valorização do “pobre” como
foco da luta transformadora e logicamente a pobreza não é exclusividade da classe
operária.
No entanto, quando me refiro à conceituação da divisão de classes sociais para o MCP
há que se considerar que falo do que preponderou em seus 45 anos de história, ainda
que conforme verificamos, em alguns momentos de sua trajetória outros enfoques e
abordagens em relação às classes tenham sido ocasionalmente adotados.

5. Origens católicas
Dentre as mais notáveis influências teóricas do MCP destaca-se certamente a tradição
maoísta, a qual consideram mãe do método por eles empregados, o “Linha de Massas”.
No entanto, para além de ainda reivindicarem os valores e modos de vida atribuídos aos
primeiros cristãos, a própria origem do movimento é religiosa. Conforme conta a
memória oficial do MCP, sua história começou no ano de 1969. Ou melhor, se formos
pegar as raízes mesmo, esta história começa antes. Teria surgido a partir da Juventude
Agrária Católica (JAC), que, por sua vez, fazia parte da Ação Católica Brasileira. Esta
iniciativa de inserção social da Igreja Católica surgiu no Brasil em 1935 e, se
inicialmente predominava em sua direção o setor conservador, para não dizer
reacionário da Igreja Católica, posteriormente foi a ala progressista que prevaleceu,
sendo inclusive berço de organizações políticas de resistência ao regime militar que
vigorou no Brasil de 1964 até 1985. Principalmente a partir das reformas oficializadas
no famoso Concílio Vaticano II, a Igreja Católica passou a buscar formas de se
aproximar do povo, pois consideravam que era o momento de “ir ao mundo”, de se
relacionar com os problemas “terrenos”. Daí também é derivada a “opção pelos pobres”
que abriu espaço para uma série de práticas que posteriormente se relacionaram com o
surgimento da chamada Teologia da Libertação, que buscou conciliar o cristianismo e o

621
marxismo ao envolver-se diretamente nas lutas das classes populares. De acordo com
Michael Löwy, esta nova concepção dentro do catolicismo foi capaz de dar um “salto
qualitativo em relação à concepção católica tradicional do pobre”, já que “(...) este já
não é considerado como vítima passiva, objeto de caridade e assistência, mas sim como
sujeito de sua própria libertação.” (LÖWY, 1989). Graças a esta ruptura - fruto da
experiência prática dos cristãos comprometidos no curso dos anos 60 e 70 - a
problemática da teologia da libertação convergiu com o princípio político fundamental
do marxismo: a emancipação dos trabalhadores será a obra dos próprios trabalhadores.
Esta nova forma de se relacionar com a “questão social” no interior da Igreja Católica,
foi fruto então de experiências concretas de diversos agrupamentos. Dentre eles
destacam-se os grupos de juventude criados pela Ação Católica Brasileira. Havia a
Juventude Agrária Católica (JAC), a Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude
Independente Católica (JIC), a Juventude Operária Católica (JOC) e a Juventude
Universidade Católica (JUC). Dentre esses grupos de juventude, com direito a todas as
vogais do alfabeto, alguns tiveram bastante visibilidade devido à parcela desses grupos
aderirem à luta armada e ao combate direto ao regime militar, com destaque para a JUC.
Porém, para os fins deste artigo o que mais nos interessa é a Juventude Agrária Católica,
a JAC, pois ela é considerada berço do Movimento de Evangelização Rural (MER),
entendido pelos militantes do Movimento das Comunidades Populares como sua
primeira “etapa”.

6. As “etapas” e a elaboração de memória


A ideia de “etapas” é algo muito presente na construção da memória do movimento e
parece estar diretamente ligada a estratégia e táticas por eles empregadas. Isto porque
quando passaram a falar a partir da década de 2000 em construir as dez colunas que
sustentarão a comunidade, trazem consigo a ideia de um processo, de algo que é feito
passo a passo. Da mesma forma, quando percebem as transformações históricas do
movimento como etapas, valorizam principalmente os acúmulos acima das rupturas no
decorrer do processo de reformulação.
A Juventude Agrária Católica, porém, apesar de ser berço do movimento, não é
considerada como parte deste, seria apenas sua origem. O Movimento de Evangelização
Rural surgiu da Juventude Agrária Católica, porém nessa transformação de JAC em
MER, consideram que as rupturas se sobrepuseram aos acúmulos, e por isso a JAC não
é considerada por eles como uma etapa do Movimento das Comunidades Populares. Isto
porque, conforme aponta Gelson Alexandrino:
A JAC se propunha a fazer um trabalho com os jovens, mas só a nível de
namoro, família, casamento, lazer (...). Mas ficava nisso, enquanto existia
uma problemática de sofrimento, de exploração e de vida braba mesmo, que
envolvia todo mundo, uma questão de classe mesmo.316

7. Um movimento de trabalhadores ligado à Igreja Católica


Afirmar que a JAC não constitui uma “etapa” do movimento não significa que a herança
da JAC seja menosprezada como algo sem valor. É reconhecida a importância de uma
estrutura nacional legada da JAC, assim como a relação com a Igreja Católica. Porém, a
inexistência de uma crítica ao capitalismo, de uma proposta de superação ou ruptura
316
Gelson Alexandrino da Silva. Entrevista concedida a Mariana Affonso Penna em 16 de novembro de
2012, no Rio de Janeiro.

622
com a ordem vigente, fez com que a JAC não pudesse ser incorporada pelo movimento,
em sua produção de memória, como “etapa” deste. Já a partir de 1969, com o
surgimento do Movimento de Evangelização Rural, foi adotada uma postura mais
conscientemente política e de ruptura:
Por que MER? A gente ia transformar a JAC num movimento... de
trabalhadores, dessa vez ligado à Igreja, (...) não o inverso. A gente antes era
um movimento da Igreja ligada aos trabalhadores e a gente inverteu,
passamos a ser um movimento de trabalhadores ligado à Igreja. (...) dando
essa guinada a gente começou a se aprofundar no marxismo, no leninismo e
mais ainda no maoísmo. (...) E ao mesmo tempo nunca deixamos de estudar
o cristianismo. (...) Então a nossa estratégia hoje ela é fundamentada nessas
quatro fontes que são: o marxismo, o leninismo, o maoísmo e o
cristianismo.317
A importância atribuída pelos militantes mais destacados do MCP a essa primeira
“etapa” está justamente no fato de ter sido nesse momento que foi formulado o método
de trabalho junto às massas, o método que é predominantemente de origem maoísta,
qual seja: o “Método Linha de Massas”.
Dentro da Ação Católica, utilizava-se o que chamavam do método “ver-julgar-agir”, que
consistia basicamente em identificar uma questão/problema, em seguida avaliar,
“julgar” e por fim atuar sobre a problemática levantada. No final da década de 1960, a
necessidade do protagonismo popular ganhava cada vez mais espaço no meio católico,
assim uma das primeiras influências no movimento foi o chamado “Método Paulo
Freire”, utilizado por eles ainda na época em que eram parte da Ação Católica
Brasileira, ou seja, quando ainda eram Juventude Agrária Católica (JAC). As reflexões
de Paulo Freire contribuíram segundo os militantes para evitar a prática tão comum na
esquerda de “invasão cultural”, ou seja, de impor ao povo valores, que não vêm dele, de
forma autoritária. A partir da palestra de Paulo de Tarso Santos, foi elaborado o
documento “Ação Cultural” em 1969, que de acordo com os ativistas mais antigos, foi
um divisor de águas. A partir da discussão e incorporação dessa discussão, e com o
adendo de novas ideias de origem marxista, mais explicitamente, do Método Linha de
Massas de Mao Tse-tung, foi que se constituiu o “Método” do movimento que dois anos
depois (1972) passou a se chamar Movimento de Evangelização Rural. Tal método se
baseia na criação de espaço para a decisão coletiva (Pesquisa > Sistematização >
Devolução > Plano de Ação) ao mesmo tempo em que mantém uma organização com
certa verticalidade, responsável por organizar e coordenar o movimento de massas
através de seu método.
Mas foi principalmente a partir da leitura de Wilhelm Reich (REICH, 1988) que
consideraram ter compreendido o porquê da necessidade desta forma de atuação –
Método Linha de Massas. A necessidade de haver espaço de atuação vertical se
explicaria pela ideia de incompatibilidade das massas com a liberdade, explicada por
Reich como tendo origem na milenar repressão sexual das sociedades patriarcais. No
entanto, era preciso atentar sempre para o risco de burocratização e “invasão cultural”.
Para tal, os militantes deveriam submeter toda e qualquer ação política à consulta prévia
através de pesquisas, que uma vez sistematizadas, eram novamente apresentadas às
bases, para a partir daí elaborar um plano de ação para as questões apresentadas. A esta
forma de atuação política que busca “governar de baixo para cima” eles chamam “o
Método”.

317
IDEM.

623
8. O sindicalismo como foco
Como o próprio nome diz, durante o período do MER, a atuação era principalmente na
área rural. Envolviam-se nos problemas relacionados aos pequenos produtores, meeiros
e assalariados rurais. As lutas variaram de acordo com a área em que o movimento
atuava, como a questão do preço da soja para os pequenos proprietários no Rio Grande
do Sul, ou a luta em torno da redução da porcentagem de produção a ser entregue pelos
meeiros aos proprietários da terra, que ocorreu principalmente no nordeste, assim como
pela manutenção da posse da terra nessa mesma região. Mas havia em geral como
objetivo comum de atuação a inserção sindical, ou mesmo a criação de novos sindicatos
rurais. Paralelamente, atuavam também na implantação de Comunidades Eclesiais de
Base, principalmente no Nordeste, junto aos setores progressistas da Igreja Católica. Em
Recife o MER construía o “Encontro de Irmãos” onde atuara Dom Hélder Câmara.
Aos poucos, porém o movimento foi acompanhando a tendência de esvaziamento do
campo (êxodo rural) e transferindo seus militantes também para áreas urbanas.
Passavam a se inserirem no setor operário, que começou a ser priorizado a partir
daquele momento. O foco permaneceu nos sindicatos, na verdade esta atuação se
ampliou, e o movimento passou a se constituir como uma corrente sindical. Foi o
surgimento da Corrente dos Trabalhadores Independentes (CTI) que ocorreu no ano de
1986.
O período em que passaram a se organizar como Corrente dos Trabalhadores
Independentes foi marcado por uma forte atuação sindical, disputando direções sindicais
consideradas pelegas e corruptas, ou, quando em situações menos favoráveis,
integrando direções mesmo pelegas para, através do trabalho cotidiano, mudar os rumos
do sindicato. Estimularam e integraram diversas greves. As transferências de militantes
para trabalharem em fábricas foram intensas nessa época, revelando que o principal
interesse do movimento era atuar no setor operário, o que me parece indício da forte
influência da leitura leninista, enfatizada no período. Digo isto, pois conforme esta
tradição, o proletariado, entendido normalmente como classe operária é considerado
sujeito da revolução socialista. Como fica bastante evidente na leitura dos jornais da
Corrente dos Trabalhadores Independentes318 (CTI, 1988-1989), o próprio vocabulário
sofreu transformações: ao invés de ricos, burguesia; ao invés de pobres, proletariado e
camponeses; ao invés de Dia da Classe Trabalhadora, o 1º de Maio é chamado de Dia da
Classe Operária319. Ainda que seja muito difícil e complicado definir a causa dessa
transformação, é possível considerar elementos que de maneira mais ou menos intensa
possam ter contribuído para essa guinada. Um deles já foi apresentado que é de ordem
teórica, a aproximação ao pensamento leninista. Mas há que se considerar também que
o próprio convívio com outras correntes políticas no interior dos sindicatos possa
também ter trazido estes novos elementos para o movimento. O cotidiano de atuação
sindical costumeiramente cria um ambiente de politização em termos de discussão
teórica que passa pela incorporação de todo um vocabulário militante estranho ao
cotidiano dos que estão fora daquele meio. É possível que, mesmo em menor escala do
que ocorre na maioria dos agrupamentos políticos inseridos nestas entidades de classe, a
CTI tenha de alguma maneira também sido influenciada, mesmo com a preocupação
que vem desde a época do MER de “viver como peixe dentro d’água” e portanto
buscarem dialogar sempre “no nível das bases”.
É nesse período que o movimento optou também por encampar uma grande campanha

318
Corrente dos Trabalhadores Independentes, Todos os números de 1988 a 1989.
319
Corrente dos Trabalhadores Independentes. Ano I, número 02, Julho de 1988.

624
contra a dívida externa, entendida por eles como o principal problema que atingia o país
e prejudicava os setores mais empobrecidos da população. Isto transpareceu não apenas
no relato dos militantes, como nos jornais da CTI é quase hipnótico. Toda matéria busca
de alguma forma relacionar os problemas específicos dos trabalhadores, nas variadas
áreas em que atuava o movimento320, com a questão da dívida externa.

9. Divergências e rupturas
O contexto do início da década de 1980 que precedeu a fundação da CTI foi marcado
por mudanças significativas na política nacional. Era o período da chamada “abertura
política” e das discussões para a elaboração da Constituinte. Foi marcado também pela
fundação do Partido dos Trabalhadores, que aglutinou parcela significativa dos
militantes contrários ao regime militar, muitos dos quais envolvidos diretamente em
movimentos sociais de base. Essas mudanças certamente influenciaram no que pode ser
considerada uma crise interna do Movimento de Evangelização Rural, que levou à
fundação da CTI e à saída de uma parte das pessoas que atuavam no movimento na
época em que este se constituía como corrente sindical.
Aparentemente destacam-se alguns motivos para que estas pessoas saíssem/fossem
retiradas do movimento: 1. Havia entre muitos deles a intenção de aproximação ao
Partido dos Trabalhadores, enquanto que a posição que se tornou hegemônica no
movimento pautava a independência frente a partido políticos e a não participação
eleitoral, pois avaliavam que a “redemocratização” não representava avanço para a luta
da classe trabalhadora. Para este grupo, tratava-se tão somente de um rearranjo das
formas de dominação burguesa. 2. Uma parte dos dissidentes discordava também da
decisão de organizar o movimento como partido com inspiração leninista, pois segundo
estes, a mudança nas estruturas organizativas do movimento reduzia sua democracia
interna e burocratizaria as lutas devido ao centralismo. 3. Por fim, outra discordância foi
a decisão tomada pelas principais lideranças do movimento de que só poderiam se
manter vinculados às instâncias de coordenação da CTI, os militantes que fossem
genuinamente trabalhadores “manuais” (camponeses, operários, assalariados rurais)
com militância ativa junto a classe, os militantes oriundos da classe média ou em
“posição de classe média” passariam à posição de apoios/assessoria. Houve
discordância em relação a essa decisão, pois alguns desses militantes que estavam em
posição considerada de classe média haviam atuado durante muito tempo no MER, mas
não conseguiram se adaptar às experiências das transferências e incorporação a
trabalhos manuais, o que os afastava do perfil militante priorizado pelo movimento.
Desde sua fundação, conforme aparece no documento “Ação Cultural”, o movimento
tinha como reflexão uma crítica forte aos valores considerados de classe média e
achavam que indivíduos de origem de classe média só poderia ser revolucionários caso
rompessem efetivamente com sua origem de classe e incorporassem valores da classe
trabalhadora.
Os militantes dissidentes não chegaram a formar um novo coletivo. De um modo geral,
a maioria continuou a militar em algum espaço, mas de forma independente. Alguns se
filiaram ao PT. Mantiveram apenas um encontro anual, no qual eles trocam experiências
e debatem a conjuntura.
Os que se mantiveram na CTI deram prosseguimento ao trabalho sindical, priorizando a

320
Apesar do objetivo de expansão no meio operário ser bastante evidente, mantém-se a atuação junto aos
pequenos proprietários rurais, assalariados rurais e mesmo uma atuação por espaço de moradia.

625
tentativa de se expandirem em meio aos operários. Seguiram organizando e participando
de greves, se inserindo ou criando novos sindicatos e tocaram como principal bandeira
de luta a questão do não pagamento da dívida externa.

10. Da “esfera da produção” à “esfera da reprodução”


Na década de 1990 os militantes da então Corrente dos Trabalhadores Independentes
começaram a avaliar que mesmo conseguindo aglutinar massas para manifestações,
campanhas e greves, o trabalho de base cotidiano se enfraquecia. Avaliaram também
que grande parte da massa pauperizada estava fora do trabalho formal. Importante notar
que a década de 1990 é um período marcado por significativa instabilidade econômica e
crescimento do desemprego. Íris Maria Salazar Reis, militante experiente do MCP que
reside atualmente na Bahia, em entrevista a mim concedida, apresentou sua percepção
sobre “o momento da virada”:
Em 1990 eu participei do primeiro Encontro Nacional (...) numa cidade
chamada Lagoinhas. (...) Nesse encontro foi uma grande discussão (...) foi a
virada histórica que foi a AN-90. (...) foi um sucesso, acho que mais de oito
mil participaram da discussão do roteiro. (...) nesse encontro de 1990 já
tinha a ideia das comissões de luta, da transformação da CTI para MCL
porque naquela fase ali o movimento sindical, que quando eu entrei era um
trabalho de massas e tanto, já estava perdendo esse trabalho de massas. As
vezes tinha só os trabalhos de massas, mas não tinha os grupos organizados.
Já estava com dificuldade, em decadência. Aí surgiu essa ideia de criar as
comissões de luta, mas não tinha nome, era só Comissões de Luta. (...) 321
Era, portanto necessário, na avaliação daquelas pessoas, atentar para os problemas que
“o povo mais sofrido” apresentava como importantes e criar formas de lutar para
resolvê-los. Conforme dizia Íris, foi o período da “luta forte”:
Com a AN-90 foram criadas várias comissões de luta que eram em cima das
quatro perguntas-chave que levantavam os problemas e encaminhavam a
ação. (...) Aí saiu a orientação de fazer as lutas fortes (...) acampamento,
ocupação dos órgãos públicos, trancamento de estrada. Então quando foi em
1991, em 1992, as lutas fortes pipocaram. Nossa menina do céu! Tudo com a
força do povo, sem ter ligação com as entidades. (...) A luta a gente puxava
independente do sindicato (...). E lá em Imperatriz a gente fez muita luta...
hum... a gente fez tanta luta, só coisa assim loucura, tá entendendo? (risos)
Sabe o que é loucura? Loucura assim, né, juntar o povão assim todo, né?
Mobilizar, ir pra a câmara municipal, (...) tudo com saco, com os talões de
água e luz na mão (risos) pra entregar pra eles reivindicando, reivindicando
emprego. Nossa bandeira era emprego, a mais forte. 322
Com essa transformação, veio também a transferência dos militantes para áreas de
periferia, pois conforme avaliação feita por eles, era necessário valorizar os setores
“mais sofridos do povo”. No início, como percebemos no relato de Íris sobre as “lutas
fortes”, o caráter de organização popular com fins reivindicatórios era bastante
marcante. Para alcançar esse objetivo, as consultas através de questionários para
levantar os problemas e encaminhar soluções foi novamente o método utilizado para
desenvolver este trabalho. Herança da época do MER, mantida durante o período da
CTI, as pesquisas se revelam uma prática constante do movimento aparentemente desde
sua origem, assim como a ideia de sistematização dessas pesquisas pelos militantes,

321
Íris Maria Salazar Reis. Entrevista concedida a Mariana Affonso Penna em 21 de setembro de 2012,
em Feira de Santana.
322
IDEM.

626
seguida pela chamada “devolução” às bases através dos planos de luta.
Conforme avançou a luta nesse caminho, os militantes do então chamado Movimento
das Comissões de Luta (MCL) foram também sentindo a necessidade de envolver e unir
a população das áreas que atuavam em torno do movimento, organizando-os em
trabalhos de base mais duráveis, para além da luta reivindicatória por si só. O esporte e
lazer era uma maneira que perceberam viável de iniciar esse trabalho. Não à-toa que a
organização de times de futebol, nos vários estados em que o MCL atuava, foi uma das
iniciativas pioneiras. Daí à formação das escolas comunitárias (infantil, reforço escolar
e de formação profissional), aos grupos de saúde, à formação dos primeiros grupos de
economia coletiva (costura, lavanderia, mercadinho, produtos de limpeza, dentre outros)
e demais trabalhos comunitários foi um passo. E para operar essa mudança, a direção do
movimento optou por criar uma associação, denominada então de Associação Nacional
de Apoio às Comunidades Populares (ANACOP). Através dessa associação, com a qual
obtiveram recursos de uma Organização Não-Governamental europeia, via
intermediação de apoiadores da Igreja Católica, construíram sedes locais e nacional para
o movimento avançar na construção das Comunidades Populares.
Todo esse giro do então chamado Movimento das Comissões de Luta que muda o foco
de atuação do sindicato para áreas de periferia, poderia ser interpretado como uma
mudança de atuação da “esfera da produção” para a “esfera da reprodução social”. No
entanto, considero um tanto limitada essa visão, pois parece que uma vez que o
movimento passa a priorizar a mobilização em torno de questões que afetam uma
determinada região, mas por fora de uma entidade de classe ou de uma fábrica, por
exemplo, que a questão econômica é jogada de lado. Considero equivocada essa
interpretação, primeiro porque dá a entender que a chamada “esfera da reprodução” não
teria ela própria uma dimensão econômica. O movimento se por um lado passou por
certa ruptura com a prática sindical, por outro lado foi uma retomada da ideia de partir
dos problemas mais imediatos do povo, que são em geral problemas econômicos, que
motivou a mudança de rumos. Um documento de 1993, “Os três objetivos do MCL”
demonstra uma reavaliação do movimento em termos de como mobilizar e conduzir a
luta em busca do Poder Popular. Percebem que não adianta atacar direto a causa dos
problemas, como haviam feito em relação à luta pelo não pagamento da dívida externa,
entendida por eles como causa/origem de grande parte dos problemas econômicos
enfrentados pelo povo pobre. Era portanto necessário partir das necessidades mais
imediatas, para aliviar “as dores do povo” era preciso combater os problemas mais
urgentes que os atingiam, só assim seria possível mobilizar, ganhar força e construir um
povo forte para fazer frente aos problemas-raiz.
Os problemas mais sentidos são aqueles descobertos nas pesquisas. Os
problemas mais sentidos podem não ser os problemas principais do povo.
(...) Mas como é mais fácil resolver as consequências do que a causa, o povo
apresenta os problemas secundários como se fossem os principais. Isso
acontece porque o povo sente que devido a pouca consciência e organização
da massa, ele não tem força para resolver os problemas principais. É como
uma pessoa que está sentindo uma dor muito forte. Ela não quer saber qual é
a causa da dor, primeiro ela quer amenizar a dor para depois ver como ataca
a causa. Então o primeiro passo é ver com resolver de imediato esse
problema mais sentido, que na nossa comparação, pode ser um comprimido
ou uma injeção contra a dor. Diminuída a dor, aí sim deve-se partir para os
exames, para descobrir a causa da dor e qual é o tratamento que irá curar a
doença.
Assim também deve ser o Movimento. Através da luta de massas temos que
resolver os problemas secundários do povo. Com isso estaremos diminuindo

627
seu sofrimento. (...)
Quando pesquisamos, arrumamos, devolvemos e tiramos um plano de ação
com a massa devemos ter como objetivo resolver os problemas. (...)
O MCL deve se preocupar em resolver os problemas mais sentidos pelo povo
para que o povo acredite no Movimento. (...) através da luta de massas,
independente e autônoma. (“Os 3 objetivos do MCL”, 1993: pp.1-2)
Desta maneira percebemos que as lutas reivindicatórias do movimento não assumiam
um caráter reformista, visto que o horizonte de atacar as causas estava sempre presente,
ainda que entendido como um momento posterior. Essa avaliação, me parece, é uma
resposta ao problema apresentado na entrevista por Íris, que foi a decadência do
trabalho no âmbito sindical, muito focado na causa dos problemas, porém pouco capaz
de solucionar os tais “problemas mais sentidos” para além das fábricas.

11. Em busca da Comunidade


Percebemos que de uma luta reivindicatória, a princípio, conforme defendem alguns
teóricos, mais ligada aos espaços de moradia, ou seja, “esfera da reprodução social”, aos
poucos o movimento assumiu a necessidade de investir em iniciativas econômicas,
ainda que localizadas nessas áreas também de moradia. Essa retomada da preocupação
econômica, inclusive em novos moldes, está diretamente relacionada ao conceito de
Comunidade como gérmen da sociedade futura, socialista, horizonte que o movimento
pretende alcançar. Agora a tática principal não é mais se inserir numa fábrica e
mobilizar os trabalhadores, nem mesmo criar sindicatos rurais e organizar os
camponeses ou assalariados rurais em torno de seus interesses. O objetivo fundamental
agora é criar grupos de produção, vendas e serviços coletivos. Esses grupos diretamente
vinculados ao movimento, aliados a outros trabalhos como escolas comunitárias, grupos
de saúde, religião, arte, dentre outros (correspondentes às já mencionadas 10 colunas)
dariam a base para emergir das Comunidades Populares o Poder Popular, que por sua
vez se constitui do poder econômico, político e ideológico (no sentido de conjunto de
ideias/cultura) da classe trabalhadora.
A tática de criar Comunidades Populares se baseia, portanto na ideia de que do mundo
velho deve emergir um novo mundo e que este não surge do nada, mas é um acúmulo de
forças. Assim, para iniciar aqui e agora a construção de uma nova sociedade, é
necessário seguir passo a passo rumo a um novo modo de produção que supere as
mazelas do capitalismo.
Alguns poderiam considerar que esta tática coincide com a ideia de Economia Solidária
reivindicada por Paul Singer (SINGER, 2008). Porém, trata-se de algo muito distinto,
visto que a Economia Solidária de Singer deveria se construir a partir de uma relação
direta com o estado e contar com seu apoio para se desenvolver. O Movimento das
Comunidades Populares é crítico dessa perspectiva, e acredita que a Economia Coletiva
e Comunitária (em oposição à Economia Solidária) precisa se desenvolver de forma
independente, autônoma, com a força do próprio povo, organizado pelo movimento.
Assim, o que os diferencia é a questão da autonomia, pois por mais que o movimento
tenha obtido recursos externos para criar e ampliar Comunidades Populares, se auto
sustentar e, através das iniciativas econômicas, gerar renda para os moradores das
comunidades, é um horizonte de curto prazo – em certa medida, já alcançado.
Neste sentido é que foram então aos poucos ampliando e solidificando os trabalhos
comunitários. Conforme firmavam um trabalho numa comunidade e percebiam como

628
positivo seus resultados, este servia de exemplo para ser aplicado em outras. Foi assim
com o Grupo de Investimento Coletivo (GIC), um mini banco, inspirado inicialmente
no Banco Palmas, mas que diferente deste é completamente independente, organizado e
gerido de maneira autônoma pelo próprio movimento com recursos das pessoas que
participam do movimento e pessoas que moram nas Comunidades Populares. Foi
iniciado na Comunidade Sítio Matias em Feira de Santana, sendo depois ampliado para
os demais estados. Hoje são 32 GICs, sendo 31 deles em Comunidades Populares e um
voltado pra os funcionários do metrô do Rio de Janeiro. Da mesma maneira acontece
com os mercadinhos, com os grupos de costura, as lavanderias, produção de materiais
de limpeza e outros mais. As reuniões para trocar experiências são uma das formas de
difundir essas atividades, acompanhadas de pesquisas, “arrumações”, “devoluções” e
plano de ação.
Em 2006, criaram também um jornal, o Jornal Voz das Comunidades (JVC), que serve
ao mesmo tempo para socializar as informações do movimento em suas diversas áreas
de atuação, algo que antes era feito através de boletins e relatórios internos, como
também para dialogar com pessoas simpáticas às suas práticas e com outros grupos
políticos afins. Iniciou-se um momento em que decidiram tornar um pouco mais
conhecido seus trabalhos e ampliar os aliados. Parafraseando o que me foi dito algumas
vezes por militantes do MCP: antes eles precisavam se esconder no meio do povo para
criar o trabalho, mas agora já podiam “sair da toca”, ser um movimento mais aberto e
buscar a reaproximação daqueles que se “perderam no caminho”, assim como buscar
novos apoiadores. Ou seja, houve primeiro um momento de voltar-se para dentro e
outro de abrir um pouco mais, ainda que o foco seja o desenvolvimento das
Comunidades Populares.
Esta atual configuração, marcada pela tentativa de aprimorar e estender ainda mais os
trabalhos nas Comunidades Populares, assim como buscar maior diálogo com outros
grupos – tendo como objetivo estratégico, neste aspecto, construir uma frente popular –,
é entendida pelo movimento como uma nova etapa, o Movimento das Comunidades
Populares. Este novo nome foi formalizado em agosto de 2011 no I Encontro Nacional
das Comunidades Populares.

12. Minha aproximação ao MCP e o porquê do interesse nesse movimento


Foi nesta “etapa” que conheci e me aproximei do movimento. Isto se deu em 2009,
através da militância, numa tentativa coletiva de articular diferentes movimentos sociais
numa espécie de frente popular no Rio de Janeiro, que na época ganhou o nome de
“Reunindo Retalhos”. Esta frente não teve continuidade, ainda que tenha realizado
alguns encontros, inclusive para discutir e aproximar iniciativas de economia coletiva e
ter também organizado apoios a luta por moradia na cidade do Rio de Janeiro. Porém,
mesmo tendo fim, dessa frente emergiram articulações mais perenes, dentre elas a
aliança que se estabeleceu entre o movimento no qual participo, atualmente denominado
Movimento de Organização de Base (MOB) e o Movimento das Comunidades
Populares.
Como historiadora, busquei então aliar minha formação profissional (doutorado) com o
interesse de aprofundar meus conhecimentos sobre um movimento social/organização
política cuja experiência historicamente relevante me parece também contribuir com
reflexões valiosas para a militância política.
Se alguns considerariam questionáveis as motivações desta pesquisa, argumentando a

629
favor da necessidade de um suposto afastamento entre pesquisador e objeto – postura
que felizmente já se encontra “fora de moda” em muitos meios – considero que não há
nenhum demérito nesta motivação. Ao contrário, acredito que esta pesquisa se justifica
exatamente pela possibilidade de trazer reflexões que contribuam para a prática política.
Mas por que o interesse específico no Movimento das Comunidades Populares?
Após a queda da União Soviética, – evento hegemonicamente interpretado como a
falência do socialismo enquanto modelo viável de organização da sociedade – se por um
lado percebemos maior descrença em relação a projetos alternativos ao capitalismo, por
outro a crítica à burocratização e ao autoritarismo em meio às esquerdas ganhou novo
fôlego. Um movimento que passou a ser internacionalmente conhecido a partir de 1994,
qual seja, a luta zapatista no estado sul-mexicano de Chiapas, tornou pública a proposta
de construção de um socialismo em outros moldes. Descartaram a tomada do poder
como propósito e em lugar propuseram e buscaram praticar uma gestão coletiva e o
máximo horizontal em seus espaços de atuação (HOLLOWAY, 2000). Também com o
surgimento de novas tecnologias de informação, com destaque para o advento da
Internet, novas formas de fazer política pareciam se tornar uma realidade. O zapatismo
mexicano é um claro exemplo disso (GITAHY, 2003), seguido pelo intenso, porém
efêmero, “movimento antiglobalização”, que chamou a atenção mundialmente através
das grandes manifestações contra as cúpulas do capitalismo global no final da década de
1990 (Seattle, 1999) e principalmente no início do século XXI (Quebec, 2001, Gênova,
2001). Tais eventos foram ao mesmo tempo fruto de redes de comunicação virtuais,
como também difusores das mesmas. O Centro de Mídia Independente (Indymedia)
surgiu nesse período e através dele foram articuladas diversas manifestações
mundialmente, assim como encontros e intercâmbio de ideias.
No Brasil a influência deste contexto internacional não foi inexpressiva, porém o
movimento popular mesmo, composto pelas classes mais empobrecidas da população,
não fazia parte desta nova onda de mobilizações. Os grandes movimentos urbanos que
sacudiram a década de 1970 e principalmente de 1980, tornaram-se aparentemente
inexpressivos a partir da década de 1990, sendo substituídos, segundo alguns, pela
institucionalização e crescimento das Organizações Não Governamentais (CARDOSO,
1994; DOIMO, 1995). Aparentemente, só no campo com o Movimento dos
Trabalhadores Sem-terra, os ventos da contra hegemonia pareciam levantar a poeira da
apatia reinante naquela década.
Nesse contexto iniciei a militância, com referência principalmente nas leituras e
experiências libertárias, que ganhavam mais espaço naquele período. Um método de
atuação que valorizasse a horizontalidade e a crítica a todo tipo de autoritarismo parecia
ser uma postura mais coerente de luta por transformações da realidade social. Porém,
apesar de terem “pipocado” diversos grupos inspirados numa perspectiva de atuação
libertária, a maioria deles era de duração efêmera (PENNA, 2010). Atribuo essa
característica à falta de uma metodologia de organização e uma estrutura organizativa
que fugissem da informalidade excessiva, que culmina no que Jo Freeman denominou
de “tirania das organizações sem estrutura” (FREEMAN, 2005) e ao mesmo tempo
criem mecanismos que garantam ampla participação nas decisões. Também no campo
do anarquismo social, a crítica ao descompromisso do assim chamado “anarquismo
como estilo de vida” apontava para a necessidade de uma melhor estruturação interna e
organização política (BOOCKCHIN, 2008). Desta maneira, diversos coletivos lograram
estabelecer organizações políticas e movimentos sociais em moldes mais perenes.
Porém, os novos sujeitos que Eder Sader apontava como tendo entrado em cena a partir
da década de 1970, ganhando maior visibilidade na década de 1980, pareciam mitos

630
sepultados no passado. Isto porque ainda que o caráter de autonomia, horizontalidade e
independência com relação a governos e partidos políticos fosse defendido por esses
coletivos libertários que surgiam no final da década de 1990 e principalmente na década
de 2000, o predomínio das classes populares na condução daquelas lutas já não era o
que prevalecia. Durante minha adolescência em Petrópolis, mesmo entre os ativistas que
conheci, lideranças populares que viveram aquela fase áurea de mobilizações com
ocupações urbanas e lutas reivindicatórias por bens básicos, o que sobressaía era a
frustração, como se um importante processo de transformação tivesse sido abortado,
principalmente pela burocratização subsequente.
Mas o protagonismo popular ficou registrado por autores como Sader, (SADER, 1988)
quem diferentemente de interpretações mais negativas sobre o caráter daqueles
movimentos (DOIMO, 1995 e CARDOSO, 1994) percebe as classes populares como
sujeitos de fato daqueles processos de luta social, e não meros reprodutores de uma
política tirada de cima para baixo, conforme defende Doimo com relação ao domínio da
hierarquia católica sobre as ações populares do período. Outras interpretações, como é o
caso de Cardoso consideram a aparente autonomia dos movimentos sociais na época
como reflexo da impossibilidade de diálogo com o estado, devido ao autoritarismo do
regime militar. Acredito que ambas as interpretações amenizam ou mesmo retiram
daquelas pessoas seu papel como sujeitos históricos de transformação. Além disso,
parecem fazer tábula rasa das disputas e conflitos por hegemonia internas aos
movimentos sociais e que dentre estes projetos, o de institucionalização saiu vitorioso
frente ao projeto de construção autônoma e independente dos movimentos. Isto,
portanto, significa não ignorar que tais projetos existiram e que disputaram hegemonia.
De qualquer maneira, independente da interpretação que se dê para a ascensão e queda
das mobilizações populares nas décadas de 1970 e 1980, fato é que, no período
posterior à assim chamada “abertura democrática” tanto os movimentos sociais de base
como os estudos acadêmicos a respeito deles se reduziram substantivamente. Porém,
isso não significou o fim destes, nem mesmo sua completa absorção pelo aparato
estatal.
Dentre o que remanesceu da resistência surgida ainda no período do regime militar, o
Movimento das Comunidades Populares despertou grande interesse por se tratar
justamente de uma exceção à regra. Seu caráter excepcional se manifesta em diversos
aspectos: primeiramente pela longevidade, visto que surgiu há 45 anos; além disso, é
um movimento composto exclusivamente por pessoas oriundas das classes populares e
sem formação universitária, inclusive as lideranças; possui como referencial teórico o
marxismo-leninismo, com destaque para a influência maoísta, ainda assim, suas
escolhas políticas divergiram daquelas que predominaram em outros agrupamentos
marxistas-leninistas, tais como aqueles que durante o período do regime militar optaram
pela luta armada, ou os que posteriormente optaram pela disputa eleitoral; possui um
forte viés religioso cristão, baseado, segundo eles no que propunham os cristãos
primitivos e mantém acesa a ideia de uma religião libertadora, mesmo num período de
quase desaparecimento da Teologia da Libertação; buscam se organizar nacionalmente e
mesmo trabalhando com um modelo de organização bastante disciplinado e baseado em
diversas instâncias de coordenação, têm a preocupação constante de não deliberar sobre
a base social com a qual atuam, mas sim a partir de consensos identificados pelas
pesquisas, confirmados (ou não) nas “devoluções” e desenvolvidos como planos de luta
deliberados coletivamente.
Todas essas características geraram grande interesse, mas ao mesmo tempo uma série de
inquietações. Isto porque, tendo sido formada como militante em meio às tradições

631
libertárias do socialismo, portanto avessas à perspectiva marxista-leninista, estive
durante muito tempo imbuída de uma visão generalizante desta corrente do pensamento
político, a qual a associava inevitavelmente a uma prática vanguardista, autoritária, para
não dizer até mesmo oportunista e dissimulada. Porém, conforme reflexão e a
reavaliação, concluí que o embate político em termo das escolhas e formas de atuação
política envolve paixões e exalta diferenças onde, muitas das vezes, há mais
semelhanças do que oposições. Assim, muitos se apegam a terminologias e as
absolutizam como se sempre, invariavelmente, correspondessem a uma mesma prática.
Porém, percebemos que a experiência objetiva é muito mais complexa, marcada por
uma série de hibridismos que desafiam os limites das categorias que tentamos impor à
realidade.
E estes hibridismos, estas mesclas, são justamente uma característica marcante do
Movimento das Comunidades Populares, pois conforme afirma Gelson Alexandrino:
Então a nossa estratégia hoje é fundamentada nessas quatro fontes que são:
o marxismo, o leninismo, o maoísmo e o cristianismo. (...) Eu vou colocar
aqui o que de cada fonte dessas a gente utiliza, porque a gente conseguiu
fazer uma adaptação a nossa realidade das quatro fontes.323
Essa disposição a adaptar a teoria conforme a sua realidade, assim como de adaptar sua
prática conforme as mudanças de conjuntura parecem ser o “segredo” da perenidade
deste movimento. Conforme fábula atribuída à tradição chinesa, a maior resistência do
bambu às tempestades se dá não por esta planta possuir uma estrutura mais rígida, ao
contrário, é a sua maleabilidade que o faz mais resistente. Desta forma, a radicalidade
expressa na prática do MCP se dá não por acessos de explosões ocasionais, mas pela
persistência na luta:
Eu acho que a gente está na Comunidade, a gente tem que fortalecer a fé,
fortalecer a nossa fé e acreditar que a gente vai em frente, porque a luta é
essa, tem dificuldade, tem problemas, mas se você acredita, você sempre
consegue. E não esperar chegar tudo no mesmo dia porque é devagar. Se
você tem esperança, devagar chega lá. 324
Assim concluiu a entrevista Jair Ferreira de Lima, tesoureiro do Grupo de Investimento
Coletivo da Comunidade Popular de Acreúna, Goiás. Sua fala é significativa, pois
demonstra o caráter processual das lutas contra hegemônicas. É lógico que não se trata
criar uma aura de pureza e infalibilidade do Movimento das Comunidades Populares,
tampouco de pensar que este não é perpassado por disputas e mesmo contradições,
como ficou evidente em alguns momentos deste artigo. Afinal, estas supostas “falhas”
são inerentes a toda e qualquer atividade/relação humana. Cabe aos próprios
movimentos sociais avaliarem e julgarem suas escolhas, assim como se permitirem
influenciar por outras experiências de luta que considerarem válidas. Neste sentido, não
quis romantizar a luta travada nesse quase meio século de trajetória do MCP, mas sim a
partir dessas experiências, trazer, ainda que de maneira muito resumida, as
contribuições deste coletivo para pensar nossa principal utopia, que é a construção de
uma sociedade justa, livre e igualitária, em outras palavras, uma sociedade governada
pelo Poder Popular.

323
Gelson Alexandrino da Silva. Entrevista concedida a Mariana Affonso Penna em 16 de novembro de
2012, no Rio de Janeiro.
324
Jair Ferreira de Lima. Entrevista concedida a Mariana Affonso Penna em 6 de outubro de 2012 em
Acreúna.

632
13. Conclusão:
Fruto de pesquisa de doutorado em História325, este artigo visa contribuir para a
discussão sobre os Movimentos Sociais no Brasil Recente, através do estudo da
experiência histórica do Movimento das Comunidades Populares. O objetivo foi
demonstrar algumas das principais transformações pelas quais esta coletividade política
passou no decorrer de sua trajetória e apontar algumas das contribuições que este
movimento social traz hoje para (re)pensar a militância política e as lutas sociais por um
socialismo com liberdade.
O Movimento das Comunidades Populares é hoje um movimento social organizado em
doze estados brasileiros, com um trabalho direto e cotidiano focado em regiões
periféricas, principalmente em favelas. Nestas favelas, desenvolvem uma série de
atividades que entendem necessárias à construção de uma nova sociedade, baseados na
ideia das dez colunas básicas para a criação do poder popular nas comunidades em que
atuam. Tais colunas são: Sobrevivência Econômica, Religião, Família, Saúde, Moradia,
Escola, Esporte, Arte, Lazer e Infraestrutura. Ou seja, a cada coluna correspondem
ações específicas. São por volta de 50 as comunidades nas quais o MCP está inserido,
ainda que o grau de inserção varie. Na maioria das comunidades existem escolas do
jardim da comunidade (EJC), Escolas Comunitárias de Formação (EFC), escolas
comunitárias de reforço escolar, grupos de teatro, grupos de saúde, dentre outros. Em
cada comunidade busca-se também desenvolver Grupos de Investimento Coletivo
(GIC), uma espécie de “mini banco” popular administrado pelo movimento. Grupos de
produção, de venda e de serviços também são parte da atuação do setor econômico do
movimento. Cada uma dessas práticas corresponde à atuação de uma das colunas que o
movimento deseja desenvolver tendo em vista lançar as bases de um novo modo de
produção.
Esta configuração atual do movimento é fruto de um processo de mais de quarenta anos.
Seus ativistas consideram que a origem da coletividade política que compõem remonta à
Juventude Agrária Católica (JAC), que por sua vez é parte da Ação Católica Brasileira.
Em 1969, de acordo com as principais fontes acessadas, ativistas da JAC, motivados
pela nova conjuntura, marcada pela ampliação da repressão discutiram a necessidade de
organizar um movimento com proposta claramente anticapitalista. Surgiu assim o
Movimento de Evangelização Rural (MER) que focava seu trabalho em sindicatos
rurais, luta pela terra e trabalhos comunitários no campo. Para os ativistas que compõem
o Movimento das Comunidades Populares hoje, esta foi a primeira “etapa” de
construção de seu movimento. Treze anos depois, resolveram mudar novamente de
nomenclatura: Corrente dos Trabalhadores Independentes (CTI). A esta mudança de
nomenclatura correspondeu uma mudança de atuação, agora mais urbana e sindical.
Durante este período, como foi possível observar tanto no Jornal Voz das Comunidades
(2006-2012), como no jornal desenvolvido pelo movimento na época (Corrente dos
Trabalhadores Independentes) o movimento se engajou em campanhas, em especial a
campanha contra a dívida externa, entendida como a principal causa dos problemas da
classe trabalhadora latino americana. Mas a partir de 1990 reavaliaram suas práticas e
perceberam que, apesar das mobilizações sindicais se manterem, as lutas nas bases e a
politização desta, tinham se enfraquecido. Por isso, decidiram priorizar os setores

325
Esta pesquisa está sendo realizada no âmbito do Programa de Pós Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, sob orientação da professora Laura Antunes Maciel (UFF) e
coorientação no exterior do professor Michael Löwy (EHESS/CNRS - França). Recebe financiamento do
CNPQ e Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (referente ao período de Estágio
Supervisionado no Exterior).

633
entendidos por eles como os mais sofridos do povo: “desempregados, peões de fábrica,
moradores da periferia das cidades, assalariados e camponeses pobres”. Criaram as
Comissões de Luta para atuar nas questões que atingiam mais diretamente esses setores
através de ações de reivindicações por demandas ao poder público. Assim surgiu o
Movimento das Comissões de Luta (MCL), que com o passar do tempo e com a
ampliação do trabalho nas Comunidades, agora focados não na reivindicação, mas na
criação de espaços de gestão coletiva diretamente vinculados ao movimento, se
converteu em Movimento das Comunidades Populares, sendo este novo nome
formalizado em 12 de agosto de 2011, em Assembleia Nacional, em Feira de Santana.
Percebemos então, que o Movimento das Comunidades Populares, que surgiu em 1969,
passou pela “época áurea” dos movimentos de base, marcado pelo surgimento e
crescimento das Comunidades Eclesiais de Base, pelos movimentos populares de ação
direta, pelo novo sindicalismo, dentre outros. Seus militantes vivenciaram também o
findar dessa época e suas transformações: a institucionalização, as apostas políticas
eleitorais, o crescimento e a mudança de perspectiva das Organizações Não-
Governamentais. Ainda assim, apesar dessas mudanças, mantiveram e aprofundam cada
vez mais o que chamam de “procura pela comunidade perdida”, adaptando suas práticas
às diferentes conjunturas e reavaliações internas.
A longevidade do movimento foi um dos elementos que chamou à atenção desde os
primeiros contatos que tive com ele, assim como seu caráter popular, marcado pelo
protagonismo de trabalhadores manuais e moradores das periferias urbanas e rurais na
condução deste agrupamento político. Também a proposta de organização política,
demonstra uma significativa abertura para participação das bases nas decisões do
movimento. Estes elementos, aliados à sua crescente capacidade de promover a
autonomia econômica do Movimento através de seus trabalhos com Economia Coletiva,
trazem para a esquerda, experiências inspiradoras em termos de evidenciar novas
possibilidades de atuação. Desta forma, a experiência política do MCP lança luz para
novas maneiras de atuar e de se organizar, para além das esferas já tradicionais do
sindicalismo e da política institucional (eleitoral), para além também dos movimentos
sociais autônomos de caráter exclusivamente reivindicativo, sem por outro lado se
confundirem com os trabalhos assistencialistas típicos de muitas ONGs, pois diferentes
destas, muitas das vezes financiadas pelo grande capital, o MCP têm a ruptura com o
capitalismo como horizonte, a ser alcançado pela construção do Poder Popular através
de um socialismo com bases comunitárias.

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SINGER, Paul. Economia solidária. Estud. av., São Paulo , v. 22, n. 62, Apr. 2008 .
Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
40142008000100020&lng=en&nrm=iso>. access on 08 Sept. 2014.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142008000100020.

Fontes Citadas no artigo:


- Ação Cultural. 1969.
- “Quem somos. De onde viemos. Para onde vamos!”. Jornal Voz das Comunidades.
Brasil, março de 2006, ano 1 – nº 1, p. 2.
- Corrente dos Trabalhadores Independentes. Brasil, fevereiro de 1988, ano 1, número
01 - Corrente dos Trabalhadores Independentes. Brasil, agosto de 1990, ano 3, número
06.
- MCL, Os três objetivos do MCL, 1993.

Entrevistas:
- Gelson Alexandrino da Silva. Entrevista concedida a Mariana Affonso Penna em 16 de
novembro de 2012, no Rio de Janeiro.
- Íris Maria Salazar Reis. Entrevista concedida a Mariana Affonso Penna em 21 de
setembro de 2012, em Feira de Santana.
- Jair Ferreira de Lima. Entrevista concedida a Mariana Affonso Penna em 6 de outubro
de 2012 em Acreúna.

635
EIXO 10
Conflito entre a
ampliação da
Democracia e o
Capitalismo

636
A Estratégia Democrática e Popular e um inventário da Esquerda Revolucionária:
Socialismo ou Democracia?

Caio da Silva Martins1, Fernando Prado Corrêa2, Isabel Mansur Figueiredo3, Stefanno Motta4,
Victor Neves de Souza5

1
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutorando na Escola de Serviço Social –
caioufsc@gmail.com
2
Universidade Federal da Integração Latino-Americana, Professor no Instituto Latino-
americano de Economia, Politica e Sociedade – fernandoprado@gmail.com
3
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutoranda na Escola de Serviço Social –
isabelmansur@gmail.com
4
Universidade Federal do Rio de Janeiro – Doutorando na Escola de Serviço Social –
stefannomotta@yahoo.com
5
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutorando na Escola de Serviço Social –
victornsouza@gmail.com

Resumo
Este texto parte da hipótese inicial de que vivemos hoje o encerramento de um ciclo
histórico, o ciclo do Partido dos Trabalhadores (PT), e de sua estratégia para a revolução
brasileira: a Estratégia Democrática e Popular. Na busca por apreender a estratégia
correspondente a um determinado ciclo histórico procuramos rastreá-la a partir da teoria
social que necessariamente a informa, e que encontra sua expressão unitária e coerente
na obra de certos intelectuais. Neste sentido, focamos no estudo das obras de Caio
Prado Jr., Florestan Fernandes e Carlos Nelson Coutinho como um primeiro passo no
sentido da realização de um inventário referente à transição do ciclo do PCB –
correspondente à estratégia nacional e democrática – ao ciclo do PT – estratégia
democrática e popular. Busca-se também apontar como a obra de Ruy Mauro Marini,
em sua crítica prática e teórica à estratégia nacional e democrática, pode ter sentado
algumas bases para uma necessária superação contida na estratégia democrático-
popular.
Palavras-chave: Revolução brasileira; Estratégia democrático-popular; Ciclo histórico
do PT.

1) Introdução - para uma autoavaliação da esquerda brasileira no século XXI


O debate sobre a revolução é dos mais ricos no campo da esquerda, tendo-se constituído
em controvérsia perene. O trabalho teórico e a atuação prática de Marx e Engels
representam marco definitivo na superação de tendências golpistas, isolacionistas ou
“iluministas” marcantes na atuação anterior de setores revolucionários, tendo alçado a
polêmica central a outro patamar. A oscilação polar, desde então, costuma se dar entre

637
reformas e revolução como dois corolários possíveis – e não necessariamente
incompatíveis – do pôr-se em luta da classe trabalhadora, do movimento operário.
O tema remonta, em sua vertente comunista, ao processo de constituição da
classe trabalhadora enquanto classe para si, ou seja: enquanto sujeito histórico portador
da emancipação humana como possibilidade, com projeto societário próprio e
autônomo. Este processo encontra, no plano histórico-universal, três balizas
fundamentais: a revolução europeia de 1848 (a “Primavera dos Povos”), quando a classe
trabalhadora se antagoniza à burguesia e rompe-se definitivamente o “terceiro estado”
feudal; a Comuna de Paris de 1871, quando pela primeira vez a classe trabalhadora
toma o poder em suas mãos e inicia a implementação de um conjunto de medidas
tendentes à emancipação humana; a Revolução de Outubro de 1917, a partir da qual a
classe trabalhadora consegue efetivar, pela primeira vez na história, um Estado de
transição socialista. Neste ponto, é necessário lembrar que o processo de constituição da
classe enquanto classe para si não é linear nem muito menos se desenrola
unidirecionalmente: encontra culminações e depressões a depender do próprio evolver
das condições econômicas, políticas e sociais em cada formação nacional, bem como da
capacidade de resistência e atuação da classe trabalhadora através de suas formas
organizativas. Os marcos estabelecidos aqui assinalam, portanto, níveis de culminação
ou “pontos máximos de consciência”, o que não significa que a classe neles permaneça
ou a eles retorne necessariamente.
No Brasil este processo está muito estreitamente relacionado ao próprio
surgimento da classe trabalhadora no contexto de transição de formação colonial à
formação propriamente capitalista. Ele tem como balizas fundantes a eclosão do
movimento operário organizado nas primeiras décadas do século XX e sua culminação
na fundação do Partido Comunista – Seção Brasileira da Internacional Comunista em
1922. Desde 1922, portanto, está posto o debate sobre a revolução brasileira, que se
expressou em vertentes diferenciadas. Se também aqui, por um lado, estão presentes os
pólos “reformas” e “revolução”, por outro lado é possível encontrar, em cada ciclo
histórico, certas composições ou configurações estratégicas que pautam todas as
demais posições sobre o assunto em uma época dada em certa formação social. Quer
sejam favoráveis, quer sejam contrárias a estas configurações-chave, todas as demais
posições são forçadas a se posicionar em relação a elas.
Por isso, tais configurações estratégicas se mostram como únicas e inescapáveis
em cada ciclo, e partimos da hipótese de que isso está relacionado ao fato de que elas
articulam, em torno do objetivo da revolução (e no caso brasileiro, da revolução
brasileira), visões sociais de mundo unitárias e coerentes a partir das quais conquistam
posição dirigente face à classe trabalhadora.
Quanto às visões sociais de mundo: visões de mundo são a expressão psíquica
da relação entre certos grupos humanos e seu meio social e natural, sendo seu número
necessariamente limitado em dado período histórico devido a sua pertinência necessária
a um grupo. O termo “expressão psíquica” remete ao reflexo no pensamento das
determinações postas pela realidade objetiva tais como se apresentam num campo
externo ao sujeito que busca apreendê-la – ou seja, ao processo de passagem da
existência das categorias de objetivamente postas a reflexivamente apreendidas. Nas
sociedades divididas em classes sociais, é a estes grupos que se vinculam

638
fundamentalmente as visões de mundo, representando o máximo de consciência
possível de cada classe. Podemos afirmar então que as visões sociais de mundo se
constituem a partir de interpretações unitárias e internamente coerentes da realidade
objetiva, capazes de apreender determinações postas por ela e a partir daí servir de base
a programas eficazes de intervenção – o que significa que podem distorcer, ocultar e
mistificar aspectos fundamentais do real desde que isto não inviabilize sua eficácia.
Quanto aos ciclos históricos: a categoria de análise ciclo histórico representa
uma precisão em relação à mera periodização, pois envolve a assimilação da
possibilidade concreta de retorno – ainda que em patamar superior – a certos níveis de
consciência anteriormente atingidos. Por exemplo: no Brasil, podemos encarar o
surgimento do Partido dos Trabalhadores na virada dos anos 70 aos 80 como um retorno
em nível superior (na medida em que está atrelado ao desenvolvimento do próprio
processo histórico de consolidação do capitalismo brasileiro) ao nível de consciência
atingido pela classe em 1922 quando da fundação do PC-SBIC (posteriormente Partido
Comunista Brasileiro, PCB) – independentemente de que posição no espectro político
cada um destes partidos ocupe hoje.
Quanto às configurações estratégicas: a partir da contribuição, no campo
militar, do general prussiano Carl von Clausewitz ([1832-37] 2008), é possível defini-
las como a articulação no plano da teoria das diversas formas e momentos da luta ou do
confronto entre as forças em presença aos objetivos finais perseguidos por cada uma
delas – não é, portanto, o objetivo final (objetivo estratégico), mas a articulação
referida. A estratégia revolucionária dos comunistas é, portanto, a articulação entre as
diversas frentes e modalidades de luta da classe trabalhadora ao objetivo final da
construção de uma sociedade sem classes, da sociedade humanamente emancipada.
Neste sentido, há uma diferença entre estratégia e tática, sendo esta última a resultante
das decisões referentes a cada momento deste processo, ou seja, a cada um destes
confrontos tomados em sua singularidade. Ainda: para conformar uma estratégia
revolucionária no sentido da articulação referida a partir do ponto de vista da classe
trabalhadora, é necessário partir da base material real em que se atua, refletida no plano
do pensamento em uma teoria social que organiza a visão social de mundo unitária e
coerente desta classe.
No Brasil é possível marcar dois daqueles ciclos históricos, a cada um
correspondendo uma destas articulações estratégicas. Chamemo-los pelos nomes do
principal partido autônomo da classe trabalhadora ao qual as configurações estratégicas
em questão estiveram vinculadas: o “ciclo do PCB” – correspondente à estratégia
nacional e democrática para a revolução brasileira; o “ciclo do PT” – correspondente à
estratégia democrático-popular.
Mas como apreender a estratégia correspondente a um determinado ciclo
histórico? É necessário, para isso, recorrer à teoria, ao reflexo unitário e coerente, no
plano do pensamento, da realidade sobre a qual se busca intervir e que informa a
estratégia. O pensamento, por sua vez, é aspecto parcial do homem vivo e inteiro. Daí se
inferem duas conclusões: por um lado, sua verdadeira significação só aparece quando o
integramos ao conjunto da vida que o engendra, que por sua vez só é compreensível
imersa na totalidade de relações entre seres humanos em dado momento histórico. Nas
sociedades capitalistas, a particularidade fundamental à qual necessariamente se

639
vinculam os indivíduos singulares, constituindo-se na mediação mais importante entre
estes e a totalidade social, é a classe social. Assim, para compreender uma obra no
campo da teoria social é necessário situar esta obra relativamente à classe social à qual
se vincula o intelectual (individual ou coletivo) que a produz.
Por outro lado, aquele que busca interpretar ou avaliar a obra de um autor deve
situá-la enquanto parte constitutiva de uma totalidade provida de sentido histórico.
Encontrar este sentido, por sua vez, depende da avaliação da obra e do conjunto dos
esforços de interpretação da realidade empreendidos pela classe e por seus intelectuais
enquanto conjunto unitário e coerente e da explicitação dos projetos societários a que se
vinculam – que são projetos baseados em visões de mundo de classes sociais.
Na escolha dos autores a serem estudados, deve-se levar em conta a importância
histórica da obra em questão. Esta importância está relacionada: de uma parte, à sua
aproximação da unidade e coerência de uma visão de mundo – do “máximo de
consciência possível” do grupo social ao qual se vincula –, reproduzindo, no plano da
teoria, o movimento social real experimentado empiricamente pela classe e
interpretando a realidade; de outra parte, à própria praxis social da classe trabalhadora e
ao lugar que a referida obra tenha ocupado, histórica e concretamente, no evolver do
comportamento desta classe e dos rumos tomados por suas formas de organização
política – ou seja, à seleção real operada historicamente pela própria classe, através de
seus instrumentos de ação política, da obra em questão para estimular seu debate, seus
posicionamentos, sua ação.
Nesse sentido, temos envidado esforços no estudo das obras de Caio Prado Jr.,
Florestan Fernandes e Carlos Nelson Coutinho como um primeiro passo no sentido da
realização de um inventário referente à transição do ciclo do PCB ao ciclo do PT. De
outro lado, tomamos a teoria marxista da dependência como um possível “germe” da
superação à controvérsia ora exposta, na medida em que teorizou e pressupôs uma
estratégia socialista em plena transição entre os dois ciclos aqui debatidos.
Por fim, a tensão contínua entre estratégias de revolução “permanente” ou por
“etapas” parece, a partir das experiências politicas de governos socialistas da América
Latina, apontar para um novo patamar, fato que abordaremos na conclusão deste
trabalho – que é antes de tudo um trabalho em pleno andamento326.

2) Caio Prado Júnior e a “Revolução Brasileira”


Caio Prado (1966) foi um dos principais intelectuais a avaliar criticamente o projeto
hegemônico da esquerda brasileira (PCB) após a derrota histórica expressa no golpe de
1964. Em seu livro A revolução brasileira, articula suas principais teses sobre o Brasil
numa contraposição veemente aos paradigmas que fundamentaram o modelo de
revolução democrático-burguesa do Partido e da Internacional Comunista. Sua

326
Optamos por não sobrecarregar o leitor com exaustivas notas de rodapé ao longo desta Introdução. Há
diversas categorias em uso aqui, como “visão social de mundo”, “ciclo histórico”, “articulações
estratégicas” etc. que mereceriam o devido aprofundamento ou pelo menos a referência às obras e aos
autores de onde vieram. Para encontrar estas referências, pode-se recorrer ao trabalho recente de um dos
autores deste texto: SOUZA, 2012.

640
contribuição parece ser, portanto, fundamental para o pensamento revolucionário
brasileiro e para lançar luz ao novo ciclo estratégico que futuramente se consolidaria.
Diante do diagnóstico apresentado pelo projeto do PCB sobre a fase antifeudal e
anti-imperialista da revolução brasileira, Caio Prado vai afirmar, como fruto das
características próprias da sociedade colonial brasileira, relações econômicas que muito
mais se assemelhariam ao assalariamento e trabalho livre do que a qualquer estatuto de
relação feudal. Assim, a contradição principal da formação social brasileira não se
encontraria no campo, pois este teria sido, nesta formação social e econômica,
influenciado por fatores de natureza mercantis voltados para a exportação – o “sentido
da colonização” teria feito do Brasil uma “empresa capitalista” inserida em relações
internacionais de capitalismo comercial.
No que se refere à dominação imperialista, esta teria sido engendrada pela
mesma origem: a colonização do Brasil teria influenciado as instituições econômicas,
políticas e sociais, que “têm sua origem nessa mesma civilização e cultura ocidentais
que seriam o berço do capitalismo e do imperialismo” (p.121). Sob a herança dessa
trajetória, a economia brasileira teria evoluído com raízes no capitalismo mercantil
baseado no fornecimento aos mercados externos, “o que definiria a característica de
relação com o imperialismo” (p.122) em uma “situação de dependência e subordinação
orgânica e funcional” (p. 182)
Não existia, na formação brasileira, uma burguesia nacional que seria, à priori,
inimiga do imperialismo, mas uma burguesia brasileira. Isso aniquilaria a tese de uma
burguesia progressista – nacional e anti-imperialista – oposta aos interesses de setores
latifundiários, classe reacionária e necessariamente ligada ao imperialismo por
excelência. As burguesias estavam ligadas a ramos de produção distintos, mas muito
mais se relacionavam do que se apartavam. Isso se devia a certos fatores, dos quais os
principais serão enumerados a seguir. Em primeiro lugar, de um ponto de vista histórico
os primeiros representantes do que seria um rudimento da burguesia urbana brasileira
eram comerciantes portugueses aos quais se somariam, a partir da abertura dos portos,
os comerciantes de outras nacionalidades. A característica heterogênea no que diz
respeito à sua origem não suplantaria a homogeneidade de seus interesses e a maneira
de conduzi-los, ao que se adendaria o impulso de terem encontrado relações econômicas
organizadas segundo valores compatíveis com o capitalismo – isto é, atividades
essencialmente mercantis. A abolição da escravidão – no que diz respeito à
consolidação das relações capitalistas de produção a partir da força de trabalho “livre” –
e o estimulo às atividades produtivas no início do século XX, em especial o café,
borracha e cacau, seriam os elementos cruciais para que a vida econômica brasileira se
organizasse em moldes essencialmente capitalistas.
No que diz respeito às suas consequências sociais, a rápida ascensão dessa
burguesia formaria uma classe que, apesar de representar distintos setores e atividades
econômicas, se fundiria em interesses comuns, sendo, portanto, altamente coesa.
Ressalta, ainda, que muitas das primeiras indústrias do Brasil foram construídas por
fazendeiros de café, o que torna ainda mais indissociáveis esses setores sociais. Assim,
“os diferentes setores da burguesia evoluíram paralelamente, ou antes, confundidos
numa classe única formada e mantida na base de um mesmo sistema produtivo e igual
constelação de interesses” (p.182).

641
A natureza de uma economia voltada para fora e submetida às imposições do
imperialismo determinaria a insuficiência da capacidade produtiva brasileira – que,
devido à não superação da heteronomia herdada dos tempos de colônia, continuava
condicionada pelas necessidades externas à nossa formação social, e não às
necessidades internas do próprio povo brasileiro. Por se expandir a partir de relações de
trabalho da massa trabalhadora com baixos níveis de vida, a impossibilidade de
consumo qualificado seria uma decorrência das deficiências orgânicas da vida
econômica e social do país. A superação dessa contradição e o desenvolvimento de uma
economia interna seria pressuposto para libertação do país de suas contingências
coloniais.
Tal desenvolvimento deveria ser atingido como consequência de uma
verdadeira reorganização e reorientação da economia pela indução, a partir do Estado,
de um desenvolvimento geral e sustentável, que levasse em conta, em primeiro lugar, o
aumento da demanda e sua articulação com as necessidades fundamentais de consumo.
Insiste-se, portanto, no argumento de que o principal problema do Brasil não seria a
questão da terra, mas a existência de uma massa de trabalhadores destituída de tudo e,
consequentemente, impossibilitada de criar demanda para um mercado interno cujo
desenvolvimento seria necessário para a completude do Brasil enquanto nação. A
condição principal para o amadurecimento desta nova realidade seria a esquerda propor
um programa de reformas necessárias ao progresso e ao “desenvolvimento do país e do
povo brasileiro” (p. 330).
Caio Prado está em busca de um Brasil-Nação, que negue sua condição colonial
ininterrupta, criando assim as bases para a possibilidade de uma revolução socialista,
que não estariam dadas então. Para criá-las, fazia-se necessário completar e autonomizar
o mercado interno, o que não se realizaria apenas a partir da livre iniciativa privada,
posto que essa se moveria por interesses egoístas – o lucro. Seria necessário que uma
“vontade geral” (Estado) induzisse o desenvolvimento capitalista brasileiro – entendido
enquanto desenvolvimento nacional – e que uma aliança entre trabalhadores e
camponeses pressionasse o Estado para que este pautasse a reorientação do mercado
brasileiro para a satisfação das necessidades da população brasileira, e não dos grandes
grupos transnacionais.
Assim, a revolução brasileira de Caio Prado não é imediatamente socialista, uma
vez que seria para ele “impossível” uma revolução socialista numa formação social
como a brasileira – posição sustentada pelo autor em inúmeras passagens do referido
livro. Curiosamente – e isto é muito interessante – a posição de Caio Prado, que parte de
críticas ácidas à interpretação do Brasil por parte do PCB, considerada fantasiosa, chega
a um ponto muito próximo daquele partido em termos de proposta de programa e de
ação – e podemos mesmo dizer: de estratégia (e isto tem a ver com o problema de
método que assinalamos anteriormente e que não poderá ser desenvolvido agora). Seu
programa da revolução brasileira baliza-se em um caráter nacional e parece antecipar
elementos importantes da Estratégia Democrática e Popular e do ciclo estratégico que se
segue.

642
3) Florestan Fernandes: tarefas em atraso e a dialética de revolução dentro e fora
da ordem
Florestan Fernandes (1976), talvez o principal sociólogo brasileiro, vai se dedicar, em
seu ensaio sociológico sobre a Revolução Burguesa no Brasil, à compreensão do
particular desenvolvimento de nossas relações capitalistas, a que atribuiu o caráter de
modernização conservadora. Segundo ele, o desenvolvimento capitalista e a
democracia no Brasil estariam desvinculados e não seriam consequência do
desenvolvimento um do outro – fato que se constituiria como uma “resultante política
da forma própria de acumulação de capital nos quadros do capitalismo periférico e
dependente”. Essa visão suplantaria definitivamente àquela que via na revolução
burguesa uma possibilidade de revolução nacional e democrática.
Aqui, a partir de um processo híbrido em que a burguesia não seria uma classe,
mas que se fundaria como uma unidade de interesses comuns de “várias burguesias (ou
ilhas burguesas) que mais se justapõem do que se fundem” (p. 204), a revolução
burguesa no Brasil aconteceria com características de uma modernização conservadora
ou revolução encapuzada, se quisermos usar seus termos. Em primeiro momento, essa
transição conservadora seria encabeçada por elites nativas que não se contrapunham
propriamente à sociedade colonial, mas às restrições advindas do estatuto colonial, pois
este “neutralizava sua capacidade de dominação em todos os níveis da ordem social” (p.
32). É nesta ruptura, no processo de Independência, que “o poder deixará de organizar-
se de fora para dentro para organizar-se a partir de dentro”, conservando duas
características, uma revolucionária e outra conservadora: a que buscava a ruptura da
condição heteronômica a que tinha sido relegada a economia brasileira e outra que
buscava fortalecer a mesma ordem social. Seu desdobramento teria sido a negação da
Independência como episódio revolucionário, sendo o estatuto colonial sobrepujado
como estado jurídico-político.
Egressa da situação colonial, por meio do processo que conduziu ao
rompimento do estatuto colonial, nossa economia urbana nasceria tendo como base um
sistema econômico agrário, escravista e dependente. Um segundo marco importante no
processo de dinamização econômica e amadurecimento das condições internas para uma
dominação burguesa teria sido o período da abolição da escravidão e o começo de uma
nova era em que se consolidaria o trabalho livre. Assim, Florestan destaca que, nos
períodos antecedentes a uma dominação propriamente burguesa, as elites nativas e em
especial a oligarquia rural ou agrária teriam tido possibilidades de modernizar-se, porém
buscando manter sua influência na dominação. Junto aos imigrantes essa oligarquia
desenvolveria uma concepção burguesa de mundo, assumindo, para si, o pioneirismo da
modernização. Ainda assim, seus interesses e sua unificação enquanto bloco de poder se
dará em oposição à pressão dos novos “assalariados ou semi-assalariados do campo e da
cidade” (p. 210).
O terreno político será o campo de confluência de interesses e onde estabelecerá
seu pacto tácito de dominação de classe: “(...) visavam exercer pressão e influência
sobre o Estado e, de modo mais concreto, orientar e controlar a aplicação do poder
político estatal, de acordo com seus fins particulares.” (p. 204). Florestan caracteriza a
irrupção da dominação burguesa no Brasil como fundada em um modelo autocrático
burguês que, se apropriando de elementos arcaicos, acorrentava a “expansão do

643
capitalismo a um privatismo tosco, rigidamente particularista”. A forma autocrática
amalgamava um desenvolvimento em que os elementos mais atrasados se repõem
permanentemente “como se o ‘burguês moderno’ renascesse das cinzas do ‘senhor
antigo’” (p. 168). Uma das principais características dessa congière de interesses
burgueses seria a sua quase neutralidade para a difusão de procedimentos democráticos,
sendo transpassada, portanto, por um perfil autoritário e particularista.
O caráter da formação econômica do capitalismo no Brasil, em função de sua
não autonomia em relação à dominação externa, é estruturalmente dependente,
subdesenvolvido e periférico. Daí advém mais uma das suas características particulares:
sob a situação de dependência os estratos dominantes não possuiriam autonomia
necessária para conduzir e completar uma revolução democrática e nacional. Na
verdade, a dominação burguesa teria que adaptar-se, segundo Florestan, a um tipo de
transformação capitalista em que a dupla articulação – desenvolvimento desigual
interno e dominação imperialista externa – constituiriam a regra. Essa dupla articulação
consistia na relação entre o setor arcaico (rural) e moderno (urbano) no Brasil e na
associação de interesses internos e externos.
Neste diapasão, momentos específicos em que a burguesia participara de
aventuras nacionalistas – que ele nomeia de radicalismo burguês – deixaram claro que
ela, por mais que lutasse por causas justas, não teria coragem de romper com a
dominação imperialista e com os limites do subdesenvolvimento interno. Como
consequência, padronizava-se uma modalidade de “demagogia populista” sob a qual
não se abririam espaços políticos para a participação democrática de amplos setores e se
agitariam interesses nacionais como se fossem interesses universais. Estas experiências
“radicais” teriam permitido à jovem burguesia o despertar para “sua verdadeira
condição, ensinando-a a não procurar vantagens relativas para estratos burgueses
isolados, à custa de sua própria segurança coletiva e da estabilidade da revolução
burguesa” (p. 365).
É nesse sentido que a dominação autocrática se fortalecerá e criará sua dinâmica
própria de relação. Sua ordem converter-se-ia numa permanente ditadura de classes
preventiva, que teria seu aspecto abertamente autoritário mascarado por demagogias
populistas, e seria a base para a conciliação das burguesias e de seus interesses.
As conclusões apontadas por Florestan (1981) abriram caminho a uma
reorientação no que diz respeito aos postulados da Revolução Brasileira. Sua apreciação
estava fortemente fincada na impermeabilidade da autocracia burguesa à pressão dos de
baixo, o que levaria ao que chamava de revolução dentro da ordem que, encontrando
resistências, acabaria possibilitando uma revolução contra a ordem. Seria o embate
entre o aprofundamento de tarefas em atraso efetivadas por um programa de reformas
que se chocariam com os interesses dominantes e poderia levar à revolução contra a
ordem. Neste sentido,
[...] o envolvimento político das classes trabalhadoras e das massas populares no
aprofundamento da revolução dentro da ordem possui consequências
socializadoras de importância estratégica. A burguesia tem pouco que dar e cede
a medo. O proletariado cresce com a consciência de que tem de tomar tudo com
as próprias mãos e, a médio prazo, aprende que deve passar tão depressa quanto
possível da condição de fiel da "democracia burguesa" para a de fator de uma

644
democracia da maioria, isto é, uma democracia popular ou operária
(FERNANDES, 1981).
Esta reorientação guarda, por um lado, considerável elevação do nível de
radicalidade em relação às formulações anteriores, já que coloca a revolução socialista
na ordem do dia e busca esboçar um caminho para viabilizá-la desde o tempo presente e
da luta concreta. Por outro lado, entretanto, apresenta um importante ponto em comum
com elas, que estará justamente no centro da eventual reconversão da proposta
florestaniana em prisioneira dos limites da democracia burguesa: Florestan, ao
considerar que a burguesia brasileira não aceitará fazer concessões democratizantes à
classe trabalhadora em luta – ou seja, ao considerar o padrão autocrático como norma
insuperável nos limites da dominação burguesa brasileira – aponta para que a própria
luta contra a autocracia deve desembocar na luta socialista, na “revolução contra a
ordem”.
É desta ambiguidade que arrancam os intérpretes petistas de Florestan para
incorporá-lo a seu rol de autores, descaracterizando a radicalidade possível da proposta
do mestre e transformando-o, à sua revelia, em um teórico da ampliação da democracia
como caminho para o socialismo – um passo para sua incorporação “esterilizada” como
teórico do atual projeto petista, de constituição no Brasil de uma “democracia ampla”,
na verdade uma democracia de cooptação mutilada ou interrompida –, projeto este
combatido explicitamente pelo próprio Florestan.

4) Ruy Mauro Marini e a controvérsia da dependência: a crítica à estratégia


nacional e democrática e notas sobre continuidades que informam a estratégia
democrático-popular 327
A categoria de dependência perpassa a história da América Latina desde o próprio
momento das independências formais dos países da região. Desde então, diversas forças
políticas utilizam esta categoria para tratar das relações da região com o resto do
mundo, em especial com a Europa e os Estados Unidos. Mas houve um momento na
história latino-americana que esta categoria foi mais central e entrou em clara disputa
política: ao final dos anos 1960 até meados da década de 1970 – ou, para ser mais
preciso, entre 1964 e 1973, datas simbólicas da contrarrevolução na América Latina e,
não por acaso, após a integração imperialista dos sistemas de produção e após
Revolução Cubana de 1959. É neste então que se concentra o que aqui denominamos de
controvérsia da dependência, um período no qual praticamente todas as análises sobre a
região – e de fato todas no âmbito da esquerda e do marxismo – utilizaram, de forma
mais ou menos destacada, a categoria de dependência para sintetizar as principais
características das formações econômico-sociais latino-americanas.
Precisamente por essa contínua e, em determinado período histórico, também
marcante presença da categoria de dependência nas interpretações da América Latina, é
possível identificar, no plano das história das ideias, diferentes formas de organizar tal
controvérsia, com critérios variados para analisar os autores e suas posições teórico-

327
Parte desta seção retoma passagens de outro texto que já circulou previamente: Correa Prado e Gouvea
(2014).

645
políticas. Para situar a controvérsia da dependência em grandes traços, com especial
atenção para sua trajetória no Brasil, consideramos que é preciso visualizar em seu
interior dois eixos com origens distintas, derivadas de questões motoras diferentes: tal
controvérsia se dá, por um lado, como desdobramento e tentativa de superação dos
debates sobre o desenvolvimento brasileiro, que permearam a disputa intelectual nos
anos 1950 e, por outro, como desdobramento e tentativa de superação dos debates sobre
a revolução brasileira, que no fundo se entroncavam na crítica à estratégia nacional e
democrática até então predominante dentro daquele ciclo histórico da esquerda no
Brasil.
Aqui nos concentraremos inicialmente no segundo eixo, em particular na obra de
Ruy Mauro Marini328. A intenção desta seção é dupla: mostrar como a figura de Marini
– como representante da esquerda revolucionária que emergia na época –, ao estabelecer
a crítica prática e teórica à estratégia nacional e democrática, senta as bases para a
superação atual da estratégia democrático-popular; e, em menor medida, busca-se
apontar como a controvérsia da dependência – tomada em si mesma e considerando a
forma como se expressou no Brasil – no final das contas acaba por gerar linhas de
continuidade da estratégia nacional e democrática e informa a estratégia democrático-
popular.
Em diversos momentos de sua obra, Marini deixa claro que sua preocupação
inicial não seria a de encontrar as falhas das teorias desenvolvimentistas ou oferecer
novas fórmulas para o chamado desenvolvimento nacional. A questão que lhe movia era
outra: a revolução brasileira e latino-americana rumo ao socialismo, que requer a análise
do capitalismo na região. Já ao final dos anos 1960 e início dos 1970, considerando o
peso que as questões do subdesenvolvimento e da dependência tinha na caracterização
da região, Marini começa a disputar essas categorias, apontando para uma leitura
distinta sobre a realidade latino-americana, que informaria uma estratégia socialista e
revolucionária – estratégia esta que, frente à contrarrevolução impulsionada pelas
classes dominantes locais e mundiais durante a década de 1970, sofreria contundente
derrota militar e política.
Naquele contexto, tornou-se comum a identificação da dependência externa
como uma das causas do subdesenvolvimento – sendo este definido pela pobreza
extrema, pela desigualdade interna, pela falta de soberania nacional, entre outras
características sociais latino-americanas. Tal visão da dependência esteve presente, por
um lado, nas análises desenvolvimentistas da Comissão Econômica para a América
Latina e o Caribe (CEPAL), que – enquanto expressão de alguns setores das burguesias
internas latino-americanas e como difusor da ideologia do desenvolvimento que tomou
corpo no pós-guerra329 – defendia reformas estruturais e a ruptura da dependência
328
Em termos de atuação militante, para além de sua trajetória intelectual e acadêmica, Ruy Mauro
Marini Marini foi membro fundador, em 1961, da Organização Marxista Revolucionária-Política
Operária, mais conhecida como POLOP. Por volta de 1969, vivendo exilado no Chile, Marini segue sua
militância no Movimiento de Izquierda Revolucionario (MIR), do qual foi membro do comitê central e,
após o golpe de 1973, seguiu como correspondente internacional. Para uma visão mais ampla de sua
trajetória, ver sua “Memória” (1991) e consultar a página www.marini-escritos.unam.mx.
329
Sobre a ideologia do desenvolvimento que surge no pós II Guerra há ampla bibliografia. Ver, entre
outros, Marini (1992).

646
externa para superar um desenvolvimento voltado “para fora” e criar um
desenvolvimento voltado “para dentro” ou “autônomo”, baseado na industrialização via
substituição de importações, sob a liderança das respectivas burguesias nacionais e com
forte participação estatal – e ainda capitalista. Por outro lado, a noção de dependência
externa figurava na análise da principal força de esquerda do Brasil naquele período – o
Partido Comunista Brasileiro (PCB). Essas duas posturas sobre a dependência
acabavam tendo implicitamente um ponto em comum: a dependência externa impediria
o pleno desenvolvimento capitalista do país, de modo que haveria um capitalismo
insuficiente, que manteria relações de produção “atrasadas”, “arcaicas”, “semifeudais”.
Nesta visão dualista, o subdesenvolvimento era visto como falta de desenvolvimento
capitalista, o imperialismo como uma relação entre nações e a dependência como um
fator externo.
Esta visão, predominante na esquerda durante a década de 1950 até meados da
década de 1960, começa a mudar após a Revolução Cubana de 1959, quando
demostrou-se a possibilidade da revolução socialista num país latino-americano,
trazendo à tona uma questão que passaria a orientar a esquerda revolucionária: em nosso
continente, a efetiva independência somente poderia ser conquistada com o socialismo.
Desde uma perspectiva marxista-leninista e a partir de análises da realidade
latino-americana, Marini apontou que o subdesenvolvimento e a dependência não são
apenas fruto de uma relação externa de subordinação a outros países, mas surgem
igualmente da especificidade das relações internas de exploração. Em sua perspectiva,
o capitalismo latino-americano não podia ser visto como um capitalismo ainda
insuficiente. Aqui o desenvolvimento capitalista esteve marcado pelo passado colonial,
pela inserção subordinada da ex-colônia na divisão internacional do trabalho e pelas
transformações qualitativas que esta sofre com a emergência do imperialismo como fase
monopolista do desenvolvimento capitalista. Não se tratava de falta de capitalismo,
mas sim um capitalismo dependente.
Portanto, a dependência não seria apenas a face do imperialismo vista desde a
América Latina. Sem abandonar a relação entre dependência e imperialismo, Marini se
dispõe a analisar o papel da região no desenvolvimento capitalista em escala mundial,
em suas determinações internas e externas. O aprofundamento das relações capitalistas
na Europa nos séculos XVIII e XIX contou com um importante fluxo de alimentos e
matérias-primas, fator que teria sido essencial para o rebaixamento do valor da força de
trabalho e para a predominância de extração de mais-valia relativa dos trabalhadores
europeus. Enquanto isso, na América Latina, por volta de 1840 e já na qualidade de
nações formalmente independentes, configura-se a dependência. Conforme aponta em
Dialética da dependência (2005 [1973]):
[...] é a partir de então que se configura a dependência, entendida como uma
relação de subordinação entre nações formalmente dependentes, em cujo marco
as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas
para assegurar a reprodução ampliada da dependência. A consequência da
dependência não pode ser, portanto, nada mais do que maior dependência, e sua
liquidação supõe necessariamente a supressão das relações de produção nela
envolvidas.

647
O início da fase imperialista, por volta de 1870, ao mesmo tempo modificaria e
aprofundaria a dependência. E dentro desta fase, que segue até hoje, ocorreriam ainda
novas reconfigurações, como aquelas relacionadas à industrialização na região – que se
deu de maneira diferenciada entre os países, reproduzindo uma espécie de divisão
regional do trabalho e dando margem ao surgimento do que Marini chamaria de
subimperialismo. Mas em nenhum país latino-americano a industrialização rompeu a
dependência. Após a Segunda Guerra Mundial, sob hegemonia dos Estados Unidos, a
industrialização se deu através de uma integração subordinada dos nossos sistemas
produtivos com capital transnacional e voltada para as elites e para a exportação.
Para Marini, portanto, a interpretação marxista da dependência deve caracterizar
a história latino-americana como parte de um desenvolvimento capitalista com
características particulares e como fruto e determinante do papel desempenhado pela
região no mercado mundial. O fato de conviverem diferentes relações de produção em
uma mesma formação social não exclui que a determinação em última instância de sua
lógica de reprodução social esteja baseada no capitalismo330.
O capitalismo dependente estaria marcado por três elementos, todos interligados
e constantemente reconfigurando-se em sua mútua interação: i) pela transferência de
valor para as economias centrais; ii) pela superexploração da força de trabalho; e iii)
pela agudização das contradições inerentes ao ciclo do capital, uma vez que a lógica
determinante de acumulação nas economias dependentes produz em geral mercadorias
destinadas para a exportação. Em suma, ao longo de sua obra Ruy Mauro Marini
destaca: a) o capitalismo latino-americano como capitalismo específico (sui generis); b)
a dependência como especificidade deste capitalismo, resultado e determinante do
desenvolvimento capitalista em escala mundial e inserido nas distintas divisões
internacionais do trabalho, nas quais a América Latina ocupa papel subordinado; c) a
dependência, ainda, como transformação interna das relações de produção, também
fruto e determinante da reprodução ampliada capitalista, interna e externamente; d) a
negação de uma aliança da classe trabalhadora com a burguesia, seja nacional ou
internacional; e) a atualidade da revolução socialista como a única maneira de romper a
dependência.
Quanto à análise que Marini faz em diversos momentos de sua obra sobre o
caráter da revolução brasileira, sobre a determinação das classes revolucionárias e seus
aliado, sobre a forma que o processo revolucionário pode assumir nas condições
concretas do país e sobre as diferentes articulações estratégicas em disputa331, cabe

330
Neste sentido, critica frontalmente o noção dualismo estrutural, que perpassava muitas análises da
época, inclusive marxistas: “[...] não tem cabimento falar de uma dualidade estrutural dessa economia tal
como se costuma entendê-la, isto é, como uma oposição entre dois sistemas econômicos independentes e
mesmo hostis, sem confundir-se seriamente sobre a questão. Pelo contrário, o ponto fundamental está em
reconhecer que a agricultura de exportação foi a própria base sobre a qual se desenvolveu o capitalismo
industrial brasileiro” (2012, p. 133). Note-se que esta perspectiva foi exposta já em 1966, bem antes da
famosa Crítica da razão dualista (1972), de Francisco de Oliveira.
331
Embora Dialética da dependência seja a mais conhecida e, talvez, a mais importante obra de Ruy
Mauro Marini, é em Subdesenvolvimento e revolução (2012 [1969/1974]) que se encontra a síntese de sua
visão sobre esses temas para o caso do Brasil, com destaque para o artigo ali contido sobre o “O
movimento revolucionário brasileiro”. Em diversos textos Marini também analisou a fundo todas essas

648
expor algumas passagens de seus textos, numa tentativa de alcançar a um só tempo uma
síntese de seu posicionamento e uma exposição clara sobre sua postura frente ao debate
estratégico. Em eu artigo sobre a “dialética do desenvolvimento capitalista no Brasil”
(2012 [1966], p. 132-135) afirma o seguinte:
As lutas políticas brasileiras dos últimos quinze anos [1950-1965,
aproximadamente] foram a expressão de uma crise mais ampla, de caráter social
e econômico, que parecia não deixar outra saída ao país que não uma revolução.
Contudo, uma vez implantada a ditadura militar em abril de 1964, as forças de
esquerda se viram obrigadas a revisar suas concepções sobre o caráter da crise
brasileira, como ponto de partida para a definição de uma estratégia de luta
contra a situação que prevaleceu ao final. Em um diálogo às vezes cheio de
amargura, os intelectuais e líderes políticos vinculados ao movimento popular
propõem hoje duas questões fundamentais: o que é a Revolução Brasileira? O
que representa a ditadura militar em seu contexto?
As respostas se orientam, em geral, ao longo de dois fios condutores. A
Revolução Brasileira é entendida, primeiramente, como o processo de
modernização das estruturas econômicas do país, principalmente através da
industrialização, processo esse que é acompanhado por uma tendência crescente
à participação das massas na vida política. Identificada assim com o próprio
desenvolvimento econômico, a Revolução Brasileira se iniciaria no movimento
de 1930, tendo se estendido sem interrupção até o golpe de abril de 1964.
Paralelamente, e na medida em que os fatores primários do subdesenvolvimento
brasileiro são a vinculação ao imperialismo e a estrutura agrária – que muitos
consideram semifeudal –, o conteúdo da Revolução Brasileira seria anti-
imperialista e antifeudal.
Essas duas direções conduzem, assim, a um só resultado – a caracterização da
Revolução Brasileira como uma revolução democrático-burguesa – e descansam
sobre duas premissas básicas: a primeira consiste em situar o antagonismo
nação-imperialismo como a contradição principal do processo brasileiro; a
segunda, em admitir um dualismo estrutural nessa mesma sociedade, que oporia
o setor pré-capitalista ao setor propriamente capitalista. Sua implicação mais
importante é a ideia de uma frente única formada pelas classes interessadas no
desenvolvimento, basicamente a burguesia e o proletariado, contra o
imperialismo e o latifúndio. Seu aspecto mais curioso é a união de uma noção
antidialética, como a do dualismo estrutural, a uma noção paradialética, como
seria a noção de una revolução burguesa permanente, da qual os acontecimentos
políticos brasileiros nos últimos 40 anos não teriam sido mais que episódios.
A partir da caracterização do capitalismo brasileiro e da emergência do
subimperialismo, bem como da crítica aos equívocos da articulação estratégica
predominante da principal força da esquerda até 1964, Marini se posiciona sobre o
caráter da revolução brasileira e reafirma a atualidade da revolução socialista (2013
[1966], p. 158-160):

questões centrais para o caso do Chile, sendo que parte de suas análises foram compiladas em El
reformismo y la contrarreovolución: estudios sobre Chile (1976).

649
É nesta perspectiva que se há de determinar o verdadeiro caráter da Revolução
Brasileira. Evidentemente, referimo-nos aqui a um processo vindouro, já que
falar dele como de algo existente, na fase contrarrevolucionária que o país
atravessa, não tem sentido. Identificar essa revolução ao desenvolvimento
capitalista é uma falácia, similar àquela da imagem de uma burguesia anti-
imperialista e antifeudal. O desenvolvimento industrial capitalista foi, na
realidade, o que prolongou a vida do velho sistema semicolonial de exportação
no Brasil. Seu desenrolar, no lugar de libertar o país do imperialismo, vinculou-o
ainda mais estreitamente a esse sistema e acabou por conduzi-lo à presente etapa
subimperialista, que corresponde à impossibilidade definitiva de um
desenvolvimento capitalista autônomo no Brasil. [...]
É evidente, assim, que a busca por soluções intermediárias, baseadas nos
interesses dos setores burgueses mais fracos, ou se mostra impraticável, ou é
suscetível a conduzir, em um prazo mais ou menos curto, a classe operária e os
demais grupos assalariados a uma situação pior que aquela na qual se encontram.
Deve-se recear que isso não seja possível sem um endurecimento ainda maior
dos aparelhos de repressão e um agravamento do caráter parasitário que esses
setores burgueses tendem a assumir em relação ao Estado. Em outras palavras,
uma política econômica pequeno-burguesa, nas condições vigentes no Brasil,
exigiria muito provavelmente a implantação de um verdadeiro regime fascista.
Em todos os casos, entretanto, não se estaria solucionando o problema do
desenvolvimento econômico – que não pode ser obtido, como pretende a
“burguesia nacional”, obstaculizando a incorporação do progresso tecnológico
estrangeiro e estruturando a economia com base em unidades de baixa
capacidade produtiva. Para as grandes massas do povo, o problema está,
inversamente, em uma organização econômica que não apenas admita a
incorporação do processo tecnológico e a concentração das unidades produtivas,
mas que as acelere, sem que isso implique agravar a exploração do trabalho no
marco nacional e subordinar definitivamente a economia brasileira ao
imperialismo. Tudo está relacionado a conseguir uma organização da produção
que permita o pleno aproveitamento do excedente criado, ou, vale dizer, que
aumente a capacidade de emprego e produção dentro do sistema, elevando os
níveis de salário e de consumo. Como isso não é possível nos marcos do sistema
capitalista, só resta ao povo brasileiro um caminho: o exercício de uma política
operária, de luta pelo socialismo.
Esta última passagem é elucidativa para aquela dupla intenção exposta ao início
dessa seção. Se, por um lado, Marini afirma a atualidade da revolução socialista e
identifica os elementos que informavam a estratégia nacional e democrática – com
subsídios para a crítica à estratégia democrático-popular –, deixa entrever também
alguns elementos que dariam margem para as elaborações teóricas que informaram e
seguem informando a estratégia democrática e popular. Situadas historicamente e como
parte de uma controvérsia específica, algumas passagens de Marini – tal como em
Florestan Fernandes – podem deixar margem para ambiguidades (quando afirma, por
exemplo a incapacidade de aumento do consumo das grandes massas). Como exemplo
rápido: apegada a essa ambiguidade, confundindo aumento de consumo com fim da

650
superexploração da força de trabalho e esquecendo todo o resto sobre a estratégia
revolucionária, a possível apropriação de Marini pelo viés democrático-popular diria
que a luta por maior poder de consumo seria tendencialmente uma luta estratégica, pois
tocaria num ponto crucial do capitalismo dependente.
De todo modo, em seu momento Marini apontou corretamente para algo que
hoje buscamos inventariar, sem apenas repetir (2012, p. 135):
[...] a esquerda brasileira (nos referimos a seu setor reformista, representado pelo
movimento nacionalista e pelo Partido Comunista Brasileiro) toma como
bandeira a “redemocratização”, destinada a restabelecer as condições necessárias
para a participação política das massas e a acelerar o processo de
desenvolvimento. Em última instância, trata-se de criar de novo a base
necessária para o restabelecimento da frente única operário-burguesa que
marcou o governo de Goulart, isto é, o diálogo político e a comunidade de
propósitos entre as duas classes. É assim que, baseada em sua concepção da
Revolução Brasileira, essa esquerda não chega hoje a outro resultado que não o
de assinalar, como saída para a crise atual, uma volta ao passado.
Uma volta ao passado, porém em outro patamar.
5) Carlos Nelson Coutinho e a democracia como caminho ao socialismo
Entre os anos 1960 e 1980, evidentemente coincidindo com a resistência à instauração e
consolidação no Brasil da forma aberta da autocracia burguesa manifesta no que
Octavio Ianni chamou de “A ditadura do grande capital”, o tema da democracia se
afirma como centro do debate político no Brasil, inicialmente no campo mais à esquerda
mas posteriormente, principalmente a partir dos anos 80, como parte de um grande
“consenso” – entre aspas devido ao fato de que tal “consenso” comporta grandes
diferenças no âmbito de um marco geral comum.
Carlos Nelson Coutinho foi um dos pensadores mais destacados neste processo
de confluência em direção ao tema da democracia, notadamente entre os socialistas.
Assim, conhecer profundamente sua contribuição é uma das precondições para
compreender adequadamente o evolver do pensamento político brasileiro no período em
questão – e, para isso, não é de menor importância considerar que todo o seu
pensamento maduro é marcado por certa remissão peculiar a Antonio Gramsci e por um
profundo debate com o pensamento conhecido como “eurocomunista”332. Isto se deve a
um conjunto de razões, e não apenas a “escolhas individuais”, como procuraremos
apontar a seguir. Estas “escolhas” guardam relações mais profundas com fenômenos
sociais e políticos abrangentes com os quais Carlos Nelson se encontrava bastante
envolvido no período em que se dá a passagem de seu foco de interesse à teoria
política333.

332
Quanto ao chamado “eurocomunismo”, cf.: BERLINGUER, 2009, CARRILLO, 1977, MANDEL,
1978, TOGLIATTI, 1980.
333
Dentre estes enumeraremos sumariamente os mais importantes, aos quais se deve estar atento ao longo
da exposição a seguir: a) as polêmicas no movimento comunista internacional, já prenunciando a grande
crise seguida pelo colapso das experiências socialistas; b) a disputa de rumos no PCB, que se aprofundou
e encarniçou cada vez mais após a derrota de 1964 e que atingiu seu ponto culminante na virada dos anos

651
Primeiramente devemos tocar no ponto da “via prussiana”, chave para a
interpretação do Brasil formulada por Carlos Nelson.
É possível localizar o início da reflexão sistemática de Carlos Nelson sobre a
política – que será sempre marcada pelo acento sobre a questão democrática – já durante
a ditadura, alguns anos antes de seu exílio: data de 1972 artigo, assinado sob o
pseudônimo Guilherme Marques, intitulado Cultura e política no Brasil
contemporâneo, “seguramente redigido com vistas a influir na reelaboração da política
cultural que resultaria do planejado, mas não efetivado, VII Congresso” do PCB
(NETTO, 2012, p. 64); data de 1972 (publicado em livro em 1974), também, a
elaboração do “antológico” artigo sobre o significado de Lima Barreto na literatura
brasileira, em que Carlos Nelson avança em seu tratamento da política no Brasil. Ainda
mais que isso: neste artigo, Carlos Nelson avança no que se constituirá futuramente em
sua interpretação da peculiaridade histórico-estrutural brasileira (ou sua
“interpretação do Brasil contemporâneo”) afirmando, pela primeira vez, “a tese segundo
a qual a formação social brasileira se caracteriza pela sua constituição moderna
enquanto resultante da ‘via prussiana’” (id, p. 64). O marcante neste raciocínio é que “o
caminho do povo brasileiro para o progresso social – um caminho lento e irregular –
[teria ocorrido] sempre no quadro de uma conciliação com o atraso” (COUTINHO,
[1972] 1974, p. 3 grifo meu) e operado “pelo alto”, sem o acordo das massas populares,
excluindo-as da vida política. Este raciocínio, vale assinalar, é completamente
compatível com aquele de Florestan sobre o “padrão autocrático” da dominação política
operada pela burguesia brasileira.
Em segundo lugar, é necessário tocar no ponto – habitualmente polêmico – da
relação de Carlos Nelson com o Partido Comunista Italiano e a proposta apregoada por
este partido de “via democrática para o socialismo”.
É importante, antes de mais, deixar absolutamente claro um ponto: Carlos
Nelson se aproxima das posições políticas do PCI porque precisa fundamentar sua
adesão a um conjunto de ideias sobre a democracia que já gozava de larga tradição no
debate do PCB e dos comunistas, da democracia como caminho para o socialismo (cf.
KONDER, 1980). O caminho de Carlos Nelson não é “do eurocomunismo à democracia
como valor universal”. Antes, o mais correto é pensar no sentido contrário.
Esta relação, que anteriormente já era de admiração, aprofunda-se com o exílio
de Carlos Nelson na Itália a partir de 1976. O destino escolhido foi a Itália, e seu
“período italiano” de cerca de dois anos pode ser considerado um divisor de águas em
sua trajetória intelectual e política. A escolha pelo país peninsular se deveu,
imediatamente, a razões de três ordens, todas intimamente relacionadas (COUTINHO,
2006, p. 173): em primeiro lugar, sua admiração pelo Partido Comunista Italiano; em
segundo lugar, seu domínio do italiano, superior ao domínio de outros idiomas
estrangeiros; em terceiro lugar, sua admiração pela obra de Antonio Gramsci. Quanto à

70 aos 80 – cujos desdobramentos levaram, por um lado, à defecção do secretário-geral Luiz Carlos
Prestes, e por outro lado à derrota, no início dos anos 80, do “grupo renovador” do qual Carlos Nelson
fazia parte seguida por sua saída do partido; c) o processo de “redemocratização” da sociedade brasileira
em curso a partir de fins dos anos 1970, durante o qual entraram em cena os germes que levaram ao
surgimento do PT, partido ao qual Carlos Nelson viria a aderir no fim dos anos 1980. Isto posto,
retomemos o fio da exposição.

652
primeira razão, que de certo modo foi a praticamente determinante, passemos a palavra
a Carlos Nelson:
Em dado momento, ficou impossível minha situação no Brasil. [...] Escolhi ir
para a Itália exatamente porque meu grande modelo era o Partido Comunista
Italiano. Para muitos comunistas, o grande modelo era o PCUS [...]. Para mim,
era o Partido Comunista Italiano. Minha grande dor não foi a queda do muro de
Berlim ou o fim da URSS, mas o fim do Partido Comunista Italiano.
[...] Minha ida para a Itália foi certamente um dos momentos mais importantes
na minha formação política e intelectual. [...] Terminei, [...], a partir de minha
experiência com o PCI, tornando-me “eurocomunista”. Tinha ainda alguns
preconceitos “marxistas-leninistas” quando fui para a Itália. [...] Nunca fui pró-
União Soviética, sempre tive uma forte dúvida em relação ao socialismo que lá
era construído, mas ainda tinha meus preconceitos. [...] aprendi muito nessa
minha estada na Itália. Meu ensaio A democracia como valor universal não teria
sido escrito se não fosse esse meu período italiano.
[...] Eu diria que o período que passei na Itália foi meu doutorado. Aprendi
muito, foi muito importante para minha formação política e intelectual.
(COUTINHO, 2006, pp. 173-175)
O trecho citado não apenas fundamenta a primeira razão de sua escolha pela
Itália, como também permite antecipar tema que será possível apenas indicar neste
espaço, qual seja: a ligação de mão dupla entre, de uma parte, a admiração pelo PCI
combinada à adesão ao “eurocomunismo” como portador da via revolucionária
adequada às “sociedades ocidentais” – a via democrática para o socialismo – e, de outra
parte, a apropriação cada vez mais profunda e segura do legado teórico gramsciano.
Ambas as dimensões tiveram óbvias – e nem tão óbvias – repercussões no pensamento e
na ação político-prática de Carlos Nelson ao longo do restante de sua vida.
Em terceiro lugar, é necessário apontar para a esfera da disputa de rumos no
interior do próprio PCB para a consolidação de suas posições.
Durante o exílio, Carlos Nelson esteve na Itália durante 1976 e 77, seguindo
para estada de poucos meses em Lisboa e posteriormente para Paris, onde passou o ano
de 1978 (COUTINHO, 2006, p. 174): esteve, assim, entre um e dois anos na Itália,
alguns meses em Portugal e cerca de um ano na França. Neste período, além de ter
“feito seu doutorado” na Itália, Carlos Nelson esteve bastante envolvido em atividades
políticas a partir de sua chegada a Paris.
Em decorrência das insuficientes condições de segurança para os dirigentes do
PCB no Brasil e do espocar de ditaduras pelo restante da América Latina, muitos deles
se viram forçados ao exílio em diferentes países europeus. Em 1975, quinze já se
encontravam aí, e, considerando o número de prisões e assassinatos que haviam
vitimado os outros, o centro dirigente do partido se encontrava, na prática, espalhado
pela Europa (tanto do Leste como do Oeste). Com a anuência dos (poucos) membros
que haviam permanecido em liberdade no Brasil, o Comitê Central (CC) foi
formalmente transferido para o exterior, e começou a funcionar efetivamente já em
janeiro de 1976 (PRESTES, 2012, p. 197).

653
Segundo Anita PRESTES (2012, pp. 197-234 e 2012a, p. 42), desde a primeira
reunião do CC se estabeleceu polarização entre, de um lado, o secretário-geral Prestes,
e, de outro, Armênio Guedes, membro muito ativo da direção, então residente em Paris.
Enquanto Prestes vinha se distanciando teoricamente da linha aprovada no VI
Congresso do Partido a partir de avaliação da insuficiência da estratégia nacional-
democrática para a construção do projeto socialista, Guedes havia aderido às chamadas
“teses eurocomunistas” e apostava na centralidade da “questão democrática” – da
democracia como caminho e, até certo ponto, finalidade, da luta socialista. Não será
possível desenvolver os detalhes teóricos da polêmica neste espaço, bastando aqui
assinalar que no contexto desta disputa Guedes propôs e aprovou no Comitê Central do
partido a criação de uma Assessoria a ser organizada por ele e sediada em Paris. Esta
Assessoria viria a ser composta por intelectuais militantes do PCB residentes em países
europeus, com a tarefa de ajudar na discussão dos problemas brasileiros.
A partir daí, se formou em torno de Armênio Guedes um núcleo de intelectuais
com certa homogeneidade de posicionamento – constituída a partir da identidade de
seus participantes com as teses “eurocomunistas” ou “renovadoras” –, que participou
ativamente da polêmica que se travava na direção do partido no exílio e teve em Guedes
uma espécie de porta-voz no Comitê Central do Partido (NETTO, 2012, pp. 64-68;
PRESTES, 2012, pp. 203-234 e 2012a, pp. 43-49). Carlos Nelson Coutinho compôs esta
Assessoria e escreveu regularmente para o jornal do partido, também dirigido pelo
grupo de Guedes. Teve, portanto, papel destacado neste grupo cujos integrantes ficaram
conhecidos como os “renovadores”334.
Há aqui algo que interessa diretamente a nossa exposição, presente na lembrança
de NETTO (2012, p. 67) de que é “neste processo de luta interna, em Paris, que Carlos
Nelson – em estreita relação com os estudos que desenvolve à época – assume a
dimensão específica da política e a situa no centro da sua reflexão”.
Podemos dizer, portanto, que foi em decorrência (e, pode-se dizer, como
culminação) deste envolvimento com o debate interno do PCB entre, de um lado, uma
posição que afirmava a democracia como caminho e fim da luta socialista, e, de outro,
uma posição que trabalhava pela superação desta relação de subordinação da luta
socialista à forma democrática, e com os olhos voltados para o Brasil em processo de
“abertura” ou “redemocratização”, que Carlos Nelson escreveu o ensaio que se tornou
verdadeiro divisor de águas na esquerda brasileira: A democracia como valor universal,
publicado em março de 1979 na revista Encontros com a Civilização Brasileira.
José Paulo Netto dá uma ideia do impacto do artigo ao afirmar (NETTO, 2012,
p. 71):
Ninguém, ao que eu saiba, contesta que foi Carlos Nelson aquele que colocou a
discussão da relação democracia/socialismo no coração da agenda da esquerda
brasileira, com o ensaio “A democracia como valor universal” […]. […] na

334
A Assessoria do Comitê Central foi composta por: Armênio Guedes (responsável), Zuleika Alambert,
Carlos Nelson Coutinho, Leandro Konder, Milton Temer, Aloísio Nunes Ferreira, Antônio Carlos
Peixoto, Mauro Malin (então residentes em Paris) e Ivan Ribeiro Filho (residente na Itália). A redação de
Voz Operária era constituída por Armênio Guedes (diretor), Milton Temer e Mauro Malin (redatores). Cf.
PRESTES, 2012a, pp. 43-44.

654
esquerda […], desde então, a questão democrática ficou cravada de forma
definitiva e não mais pôde ser eludida – e talvez resida aí o mérito substantivo
que se deve atribuir ao texto tornado famoso.
Encerremos este ponto com rápida avaliação geral do ensaio que se tornou
famoso, e que nos remete diretamente ao próximo item de nosso artigo. A citação a
seguir sintetiza muito bem o ponto de partida para esta avaliação:
Pretendendo superar, de uma só vez, o esgotamento da estratégia do PCB e os
limites do “imediatismo voluntarista” de uma “nova esquerda” que surgia,
[Carlos Nelson] indicava que a sociedade brasileira apresentava elementos de
modernidade capitalista (monopolista) que exigiriam uma nova estratégia, a qual
para além do momento imediato da transição democrática, deveria apontar para
o socialismo. O caminho indicado por Carlos Nelson colocaria o acento na
democracia, cujas mediações e elementos constituintes deveriam compor tanto o
momento de construção do “bloco histórico” hegemonizado pelos trabalhadores,
como forma de torná-los “classe dirigente”, quanto o próprio momento posterior
de transição socialista, até constituir-se um dos fundamentos da futura sociedade
comunista. (BRAZ, 2012, p. 246)
Esta tentativa de superação por parte de Carlos Nelson aparece, sinteticamente,
nos pontos expressos a seguir.
Em primeiro lugar, a afirmação de que parte da esquerda trabalharia,
equivocadamente, com uma visão “meramente tática” ou “instrumental” da democracia,
não reconhecendo seu “valor universal”, identificando mecanicamente “democracia
política e dominação burguesa”. Carlos Nelson afirma que esta posição teria suas raízes
“numa errada concepção da teoria marxista do Estado” (COUTINHO, 1980, p. 21), que
por sua vez se basearia numa remissão anacrônica ao próprio Marx. Este, em
documentos como o Manifesto Comunista, desposaria uma visão “restrita” do Estado,
que seria válida para grande parte da Europa continental e do mundo em meados do
século XIX, mas que teria sido superada pela própria história em grande parte do mundo
já na virada do século XIX para o XX. A esquerda que continuasse defendendo a
posição expressa por Marx no Manifesto estaria claramente, mesmo se de boa fé,
incorrendo em um erro – no mínimo em um anacronismo.
Em segundo lugar, a afirmação do valor universal da democracia, não como um
universal abstrato e sim como um universal historicamente atingido ou conquistado nas
sociedades capitalistas, em que estaria se espalhando desde meados do século XIX um
processo de socialização da política, fruto da diminuição da jornada de trabalho e das
conquistas de direitos políticos e sociais decorrentes das lutas da classe trabalhadora.
Partindo de certas observações de Lenin e de Marx e extraindo delas valor
metodológico geral, Carlos Nelson considera insuperável a forma democrática de
governo tomada no geral, assim como o mecanismo mais geral de representação
política que está na base da versão moderna desta forma política (cf. COUTINHO,1980,
pp. 21-25).
Em terceiro lugar: sobre o Brasil, Carlos Nelson considera que a via prussiana a
que aludimos acima, o “prussianismo” brasileiro, teria garantido a modernização
capitalista do Brasil, e daí infere que o desenvolvimento capitalista brasileiro, mesmo

655
que sob forma política autocrática, teria, contraditoriamente, gerado as condições
objetivas, acima referidas, para o surgimento de uma movimentada sociedade civil,
expressa naquele momento histórico na reentrada na cena política brasileira da classe
trabalhadora.
Daí, em quarto lugar, nosso autor conclui que a luta socialista no Brasil dos anos
80 dever-se-ia dar através da luta pela constituição de uma democracia de massas,
surgida da “articulação entre as formas de representação tradicionais e os organismos de
democracia direta” (COUTINHO, 1980, p. 29) baseada numa socialização da
participação política que poria “a necessidade de socializar também os meios e os
processos de governar o conjunto da vida social” (COUTINHO, 1980, p. 27). A
ampliação da democracia seria, assim, o caminho para o socialismo.
Isto tudo posto, passemos ao próximo item, onde procederemos a uma avaliação
crítica de certos pressupostos que estão na base do raciocínio apresentado.

6) Estado e questão democrática: um balanço preliminar

Lançando um olhar mais geral sobre o caminho percorrido até agora podemos ver que
existe uma convergência dos autores com relação aos elementos estruturais da formação
social brasileira: a forma dependente de desenvolvimento do capitalismo brasileiro teria
levado a uma “dominação sem hegemonia” (CNC) ou a uma autocracia burguesa (FF) e
a crise da ditadura abriu um novo ciclo, para CNC alterou a correlação de forças e
consolidou uma sociedade civil forte “ocidentalizando” o Brasil, portando “ampliando”
o Estado que agora poderia ser disputado, não seria mais mero comité executivo da
burguesia, permitindo assim reformas radicais que produzissem gradualmente mudanças
estruturais.
Para isso, outro elemento comum nos três autores e que se expressa nas
concepções da EDP é que estas mudanças poderiam acontecer através da pressão de
forças sociais por dentro do Estado. Para CPJ seriam estas forças que pautariam suas
demandas por meio do Estado que permitiria um desenvolvimento sustentável e de
caráter nacional permitindo superar assim as barreiras advindas de uma produção regida
pela propriedade privada e uma economia de mercado, ou seja, a anarquia da produção
capitalista seria superada pela planificação de um Estado pautado por uma vontade
política majoritária e legítima.
Outro elemento comum é a impossibilidade da revolução socialista e a
necessidade de uma mediação previa: um desenvolvimento capitalista no caso da EDN
do PCB e na organização das demandas populares no caso de CPJ, FF, CNC e o PT,
embora com matizes diferentes; de fato para CPJ esta organização das demandas seria
necessária para um desenvolvimento sustentável e nacional orientando a demanda por
parte do Estado; já para FF, CNC e para o PT isso permitiria articular um programa
anticapitalista, antimonopolista e antilatifundiario que, no caso de FF, ao se chocar com
a impermeabilidade do Estado autocrático levaria a uma ruptura, e, no caso de CNC e
do PT, levaria a um conjunto de reformas que junto com a participação nas eleições
permitiria acumular forças para superar o capitalismo.

656
Vejamos: parece haver uma expectativa de que a “ocidentalização” do Brasil e a
entrada em cena do proletariado nos anos 70 abriria a possibilidade de reverter o caráter
autocrático do Estado brasileiro e que a luta pela ampliação da democracia
corresponderia a um acúmulo de forças para superar a ordem capitalista. Nos parece que
esta leitura está embasada numa particular concepção de Estado, democracia, acúmulo
de forças e hegemonia que é preciso problematizar.
Antes do capitalismo não existe separação entre Estado e sociedade civil, entre o
Estado político, o da Constituição, e o Estado não político, o da sociedade civil, o da
vida real do povo. O momento em que os seres humanos já não são só produtores de
trabalho concreto, mas também de trabalho abstrato e perdem o controle de suas vidas
frente ao fetiche da mercadoria, corresponde o momento em que o povo se torna
cidadão, cuja vida também fica regulada por algo externo, a constituição. Os seres
humanos, portanto se alienam porque perdem o controle de suas vidas, já que estas
ficam reguladas por um lado pelo movimento das mercadorias e, por outro, pela
Constituição do Estado abstrato.
A constituição política foi reduzida à esfera religiosa, à religião da vida do
povo, o céu de sua universalidade em contraposição à existência terrena de sua
realidade. (Marx, 2010: p.51). [E no Estado moderno] a Constituição é a
constituição da propriedade privada […] a propriedade privada é a categoria
universal, o nexo universal do Estado (MARX 2010: 124) [...] A propriedade
etc. em suma, todo o conteúdo do direito do Estado é, com poucas modificações,
o mesmo na América do Norte assim como na Prússia. Lá, a república é,
portanto, uma simples forma de Estado, como o é aqui a monarquia. O conteúdo
do Estado se encontra fora destas constituições (Marx, 2010: p.51).
Essa obra juvenil de Marx tem uma grande relevância, pois já aparecem aqui
dois elementos fundamentais da sua teoria do Estado e que permanecerão ao longo de
sua obra: a diferença entre o conteúdo e a forma do Estado, onde o conteúdo está
associado com a defesa da propriedade privada; e o caráter alienante, religioso, do
Estado e da constituição, já que é expressão de uma alienação que acontece na vida real
dos homens.
Esses dois elementos chave na teoria do Estado marxiana denotam uma clara
interpretação do Estado burguês não apenas como instrumento de coerção de uma classe
sobre outra (na sua clássica expressão do Manifesto como “comitê para gerir os
negócios comuns de toda a classe burguesa... (...) e a violência organizada de uma classe
para a opressão de outra”), mas também como instrumento de convencimento dada a
função ideológica que expressa a partir da defesa de uma liberdade e igualdade abstrata
que corresponde a igualdade e liberdade da troca de equivalentes de mercadorias. Ou
seja, o Estado não precisa impor pela força a adesão a essa liberdade e igualdade
abstrata, já que essas são defendidas pelos mesmos seres sociais produtores de
mercadorias que vivenciam de forma permanente e necessária no seu cotidiano a
realização dessa liberdade e essa igualdade através da troca de equivalente, força de
trabalho, para uns, capital para outros. Este entendimento do Estado desmonta a tese de
que em Marx haveria uma teoria “restrita” do Estado, entendendo este como mero
“comitê executivo dos negócios da burguesia” exercido através da coerção. Esta
interpretação não é fiel ao pensamento do próprio Marx.

657
A dimensão ideológica e de convencimento do Estado burguês fruto das relações
sociais de produção sobre o qual ele se ergue é ao nosso entender o elemento central da
tergiversação do outro conceito, o de “hegemonia”, operado por vários gramscianos,
entre outros os eurocomunistas. De acordo com estes, a hegemonia ficaria mais
restringida a uma direção moral e cultural da sociedade a partir da formação do
consenso e da disputa de ideias e valores desprezando o conteúdo material dela, ou seja,
o convencimento dos trabalhadores produzido diariamente a partir da posição
subordinada que esses ocupam nas relações materiais de produção, esquecendo o que o
mesmo Gramsci afirmava em Americanismo e Fordismo, que "a hegemonia nasce no
chão da fábrica". Para Gramsci hegemonia não só é o convencimento exercido pela
burguesia através de seus aparelhos privados de hegemonia, mas será o caráter
“educador” da própria sociedade burguesa e do capital, ou seja, o convencimento do ser
social que vive de forma permanente relações capitalistas de produção. Esta
interpretação tergiversada do conceito de hegemonia, implica desconsiderar também a
necessidade de construir uma contra-hegemonia (embora esse não seja um termo usado
diretamente por Gramsci) a partir da socialização dos meios de produção. As ideias em
disputa não pairam no ar, mas são expressão de correlações de força entre as classes em
luta.
Entendemos assim que acreditar que a disputa do Estado burguês ou dos
aparelhos privados de hegemonia burguesa corresponda a um avanço da hegemonia dos
trabalhadores é um equívoco. Gramsci não desperta nenhuma ilusão sobre a mera
participação do partido no interior do Estado burguês, pois sabe que a disputa da
hegemonia não se dá na disputa de espaços dentro desse Estado, mas nos espaços
independentes desse e com autonomia histórica (ou seja, com projeto de classe).
Passemos a palavra ao disputado autor:
As organizações revolucionárias (o partido político e o sindicato profissional)
nasceram na esfera da liberdade política, no campo da democracia burguesa,
como afirmação e desenvolvimento da liberdade e da democracia burguesas,
num campo em que dominam as relações de cidadão a cidadão: o processo
revolucionário se desenrola no campo da produção, na fábrica, onde as relações
são de opressor a oprimido, de explorador a explorado, onde não existe liberdade
para o operário, onde não existe democracia; o processo revolucionário se
desenrola onde o operário é nada e quer se tornar tudo, onde o poder do
proprietário é ilimitado, é poder de vida ou de morte sobre o operário, sobre a
mulher do operário, sobre os filhos do operário (GRAMSCI, 1955: p. 124 Il
Consiglio di fabbrica).
Política e economia constituem uma unidade inseparável e a construção do poder
da classe trabalhadora, desse novo poder, como prefiguração do novo Estado em germe
já no capitalismo, requer a confrontação com o poder burguês, na fábrica, lugar onde a
burguesia funda seu poder como classe, e onde os operários podem se tornar produtores
e construir sua autonomia histórica enquanto classe. Os gramscianos que concebem
hegemonia como sinônimo de consenso relegam a caracterização da citação anterior ao
período pré-carcerário de Gramsci, argumentando uma superação dessa visão nos
Cadernos do Cárcere uma vez que aí ele introduz a diferença entre sociedades
ocidentais e orientais: “no Oriente o Estado era tudo, a sociedade civil era primordial e

658
gelatinosa... No Ocidente o Estado é só uma trincheira avançada, atrás da qual está uma
robusta cadeia de fortalezas e casamatas” (GRAMSCI, 2001: p. 866, Quaderno 7 § 16);
isso levaria estes intérpretes de Gramsci a concluir que a guerra de movimento, de uso
da violência para o assalto ao poder adequada para Oriente, deveria ser substituída no
Ocidente pela guerra de posição, a ocupação das trincheiras avançadas na sociedade
civil. Entretanto Gramsci não descarta a necessidade do uso da força para aniquilar os
adversários, mas alerta ao fato de que o uso da força, nas sociedades ocidentais, não é
suficiente; é preciso também a formação de uma “vontade coletiva nacional popular” e
de uma “reforma intelectual e moral” das quais o partido, ou o “moderno príncipe”, será
o principal impulsionador e organizador (GRAMSCI, 2001: p. 952-953, Quaderno 8 §
21). Entretanto, isso não significa que a conquista da hegemonia em Ocidente se dê
exclusivamente no campo das ideias ou da conquista do consenso, pois uma reforma
moral não pode estar desvinculada de uma luta no terreno econômico:
Pode haver reforma cultural, isso é, elevação cultural dos elementos
subalternizados da sociedade, sem uma precedente reforma econômica e uma
mudança no modo de vida? A reforma intelectual e moral é sempre vinculada a
um programa de reforma econômica, aliás, o programa de reforma econômica é
o modo concreto através do qual se apresenta cada reforma intelectual e moral
(GRAMSCI, 2001: p. 953, Q 8 § 21).
Para romper com o domínio e a hegemonia burguesa então não será suficiente
disputar as ideias, as concepções de mundo, os valores, as instituições do Estado, mas
será preciso disputar também o poder burguês, poder que se materializa e consolida nas
relações de propriedade e no controle e direção do processo de produção. A hegemonia,
então, além de não poder prescindir do uso da força, também não pode prescindir da
dominação econômica, que acaba sendo também outro tipo de força, uma força material
e constante, substanciada na subordinação real e formal do trabalho ao capital.
A ideia de que a luta pela democracia no contexto de “ocidentalização” do Brasil
corresponderia a um acúmulo de forças para superar a ordem capitalista vem mostrando
seus limites. No Brasil, houve um processo de socialização da política: os trabalhadores
construíram suas próprias organizações, incorporando e “organizando” milhões de
pessoas na “vida política”, e articulando organismos de democracia direta (CUT, MST,
etc.) e indireta, ou institucional (PT), e conseguiram chegar ao governo. A pergunta que
nos cabe fazer é: esse processo levou a uma conquista de hegemonia por parte dos
trabalhadores? Parece que não. Pelo contrário: isso produziu um dos momentos mais
contrarrevolucionários e de maior apassivamento da classe trabalhadora na história
desse pais. Esses sujeitos coletivos da classe trabalhadora organizaram grandes massas e
criaram várias instancias de participação (só para dar alguns exemplos: os metalúrgicos
da CUT de São Bernardo têm hoje 89 comissões de fabrica, o PT desenvolveu a
experiência dos orçamentos participativos, criou o setor de mulheres, negros, na área da
saúde se criaram os Conselhos de Saúde, assim como no Serviço Social, e em muitas
outras categorias profissionais se criaram espaços de participação, de consulta, fruto de
reivindicações dos diferentes setores da classe trabalhadora); entretanto esse processo de
“socialização da política” cumpriu, a nosso ver, uma função de despolitização da
política e da vida social em geral.

659
O que seria a socialização da politica: a ampla participação de todas as classes
em diferentes espaços, não apenas da produção, mas de distribuição, consumo,
fiscalização. Agora isso é uma socialização da politica, mas é uma socialização
da politica que visa controlar, gerir, decidir sobre alocação de bens produzidos
como mercadorias, sobre direitos de assalariamento, de condições de trabalho; é
a socialização da politica de como gerir a produção do capital. Agora se isso
funciona perfeitamente é um excelente mecanismo de legitimação da ordem e
não do questionamento dela. É sempre uma democracia mesquinha, restrita; o
pressuposto da democracia proletária é eliminar a propriedade privada; sem isso
não tem socialização da politica, isso é chave (IASI 2013).

8) Conclusões de um trabalho em andamento: hipóteses em movimento


Estas conclusões vão em sentido um pouco diferente do que se espera
normalmente de um artigo acadêmico. Isto porque toda esta pesquisa que realizamos até
aqui, mais do que nos permitir encontrar todas as respostas que buscamos, antes de tudo
nos permitiu colocar perguntas que nos parecem interessantes e pertinentes, hipóteses
de trabalho para continuar – e contribuir para uma auto-avaliação da esquerda brasileira,
que julgamos necessária no momento atual. Seguem então nossas “Conclusões em
forma de hipóteses”:
1) Vivemos hoje o encerramento de um ciclo histórico, o ciclo do Partido dos
Trabalhadores (PT) e de sua estratégia: a Estratégia Democrática e Popular.
2) A lógica interna desta Estratégia, sua tensão permanente entre acúmulo de forças
e ruptura, tende a constrangê-la nos marcos da ordem burguesa. Isto nos leva a
afirmar que a Estratégia Democrática e Popular foi plenamente desenvolvida nos
três sucessivos governos do Partido dos Trabalhadores. A expressão mais clara
de seu encerramento deu-se nas manifestações de Junho de 2013, ou “jornadas
de junho”.
3) A Estratégia Democrática e Popular, portanto, não foi abandonada, nem traída,
nem rebaixada: ela foi realizada nas condições próprias que as suas contradições
internas apontavam. Para articulação entre a hipótese anterior (2ª), a presente
hipótese e a seguinte (4ª), faz-se indispensável o debate sobre o caráter do
Estado e suas formas de expressão, no caso em questão, o debate “democrático”.
4) A realização desta Estratégia passou pela constituição do que Florestan
Fernandes chamou de uma “democracia de cooptação” no Brasil e passou pelo
processo de transformismo – como apontado por Gramsci – do Partido dos
Trabalhadores e de boa parte das direções dos movimentos sociais da classe
trabalhadora.
5) Neste contexto, a pequena burguesia política passou a ser operadora do projeto
político dos sucessivos governos Petistas, apontando para modificação do
caráter de classe deste projeto.
6) A Estratégia Democrática e Popular guarda elementos de ruptura e continuidade
com a Estratégia Nacional e Democrática. A estratégia socialista seria uma
maneira de superar o impasse posto pelas estratégias baseadas em “acúmulos de
força” e “etapas”. Neste sentido, o inventário dos autores da teoria marxista da
dependência se faz fundamental e pode lançar luz à essa controvérsia perene,

660
uma vez que assinala essa mesma discussão no período de transição entre esses
dois ciclos estratégicos.
7) A permanente tensão entre “permanentismo” e “etapismo” nos ciclos históricos
correspondentes às estratégias socialistas para revolução no Brasil pode ser
avaliada em um novo patamar: a partir do encerramento destes dois ciclos é
possível recolocar, em outra qualidade, a discussão sobre os desafios à revolução
permanente.
8) Afirmar o encerramento de um ciclo não significa necessariamente afirmar o fim
de certos partidos, a ascensão de outros ou o “esgotamento” de certo padrão de
desenvolvimento, estagnação econômica etc. A ideia de encerramento de um
ciclo aplica-se tão somente ao encerramento das possibilidades revolucionárias
contidas em tal ou qual projeto político – no caso do presente trabalho, nos
referimos ao esgotamento das possibilidades revolucionárias contidas nos
projetos nacional e democrático (formulado pelo PCB em certo momento de sua
atuação, tendo sido posteriormente reavaliado e considerado historicamente
superado por este partido) e democrático e popular (formulado pelo PT em certo
momento e ainda reivindicado por este partido, numa disputa ainda em curso em
torno de “qual seria o sentido” deste projeto).
9) O “encerramento de um ciclo” não é um momento definido, com data e hora
marcada para ocorrer. Desenrola-se antes num lapso temporal, podendo se
arrastar por meses, anos ou mesmo décadas. Vale lembrar: na história, o velho
não termina nunca de morrer enquanto não nasce o novo. E mesmo então
elementos de um podem permanecer como momentos superados no outro.
10) Os caminhos e descaminhos da história brasileira já demonstraram que a
“democratização” neste país não atingiu e nem atingirá os padrões de “bem-
estar” de suas congêneres europeias, as “democracias de cooptação” pra valer,
das quais falava Florestan. Na verdade, em tempos de declínio do compromisso
fordista (cf. BIHR, 1991), a tendência é a contrária: que aquelas regridam em
direção a algo um pouco mais próximo do padrão autocrático mais aberto. Trata-
se do que Paulo Arantes (em “A fratura brasileira do mundo”, in ARANTES,
2004) chamou de a “brasilianização” dos centros capitalistas mais
desenvolvidos, sugerindo ironicamente que mudou o sentido em que o Brasil
pode ser hoje considerado o “país do futuro”: o país se tornou, agora, uma
espécie de futuro possível para os países centrais em tempos de regressão social
generalizada.
11) Neste contexto, apresenta-se mais claramente que nunca a necessidade de
realizar o esforço de superar as posições políticas de esquerda que apostaram na
não-atualidade da transformação socialista.

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661
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662
Algunos debates conceptuales sobre democracia, socialismo y hegemonía
Alejandro Casas335
Resumen
El interés del artículo se centra en abordar someramente el campo conceptual de las
relaciones entre democracia, socialismo y (contra) hegemonía desde el campo de la
tradición del materialismo histórico, con particular interés por la obra de Antonio
Gramsci, pretendiendo aportar a la reflexión sobre algunas transformaciones
contemporáneas desde las luchas sociales y de las propuestas de izquierda en América
Latina y el Caribe.
Una revalorización importante de las izquierdas o progresismos en el gobierno en esta
última década y media, junto con la de diversos movimientos sociales, ha sido la de la
democracia. Desde las iniciativas gubernamentales la misma parece haber quedado
circunscripta a un terreno básicamente procedimental; sin embargo en otras ocasiones se
ha avanzado hacia formas de participación más sustantiva y participativa, con particular
protagonismo de diversos movimientos sociales.
En un primer momento nos abocamos a fundamentar la importancia de la articulación
entre socialismo y democracia(s), a partir de un rápido repaso de algunos debates
teóricos y de algunas transformaciones contemporáneas; luego pasamos al análisis de
cómo la cuestión se ha planteado en líneas generales en el seno de la discusión clásica
del campo del materialismo histórico, para finalizar con algunas breves implicancias
para el contexto actual.
Palabras clave: democracia; socialismo; hegemonía; Gramsci; América Latina

Introducción
Diversas perspectivas teóricas vinculadas a la teoría crítica (y en particular al campo del
materialismo histórico) plantean la existencia de una crisis estructural del sistema de
capital, de carácter inédito en términos históricos (Mészáros, 2002), o la vigencia en las
últimas décadas de un régimen de acumulación por desposesión (Harvey, 2006). En
términos civilizatorios el capitalismo parece denotar un claro agotamiento, que se
expresa como crisis civilizatoria (Löwy, 2011), en un contexto agravado por una crisis
ambiental de desproporciones desconocidas para la humanidad. Esto se recubre por la
vigencia de concepciones posmodernas, que no parecen expresar más que una
“modernidad in extremis” (Hinkelammert, 1989), y en este sentido denotan los peores
aspectos de una modernidad que aún no ha sido superada ni ha cumplido tampoco con
sus promesas de desarrollo y emancipación humana.
En América Latina hemos asistido en esta última década y media, a importantes
transformaciones en los planos político-económico y cultural, luego de varias décadas
de dictaduras y políticas neoliberales. También vivimos una importante ola de
resistencias y luchas frente a la imposición cuasi ortodoxa, con variantes según los

335
Dr. en Servicio Social (UFRJ). Prof. Agreg. con dedicación exclusiva del Departamento de Trabajo
Social de la Facultad de Ciencias Sociales, Universidad de la República, Uruguay
alejandro.casas@cienciassociales.edu.uy

663
contextos, de dichas políticas neoliberales de ajuste estructural. Aquí sin duda las
movilizaciones y movimientos sociales jugaron un papel más que significativo.
Esto ha dado lugar a una era de gobiernos progresistas en la región, algunos más
emparentados con el “socialismo del siglo XXI” (Venezuela, Bolivia, Ecuador), el
propio proceso de la revolución cubana con sus continuidades y revisiones, y otros más
inclinados hacia posiciones neo-desarrollistas y social-liberales o “social-demócratas”
(Brasil, Uruguay, Paraguay hasta el golpe de Estado al gobierno de Lugo, Argentina con
sus particularidades de un “peronismo a la izquierda”), etc., donde además recobran
nuevos bríos los proyectos de integración latinoamericana
¿Qué sucede mientras tanto con los movimientos sociales? Sin duda puede percibirse un
cierto debilitamiento, que está asociado de un lado a que algunas demandas pueden estar
siendo atendidas por algunas de las políticas implementadas; en otros casos puede
hablarse sin duda de un proceso de fragmentación entre las demandas, que no logran
cuajar en un horizonte común de reivindicaciones y acciones comunes; pero por otra
parte también puede percibirse un proceso de cooptación, de neutralización, de
“transformismo” (cf. Gramsci, 2003), que hace que muchos de estos movimientos y
movilizaciones (y muchos de sus líderes e intelectuales) hayan quedado presos de una
lógica institucional y centrados en el aparato estatal; pero también han emergido nuevas
luchas, por ejemplo aquellas vinculadas a las luchas contra el modelo neo-extractivista,
o vinculadas a una “nueva agenda” de derechos.
También parece evidenciarse una crisis teórica, ideológica y de proyecto en los propios
movimientos sociales con carácter mas antisistémico (cf. Wallerstein, 1985), a la que no
son ajenas los propios partidos políticos de izquierda, así como diversos grupos de
intelectuales, que otrora podían acercarse a la conformación de un bloque histórico
contrahegemónico (cf. Gramsci, 2003). Esto se produce en el contexto de la ofensiva de
un capitalismo cada vez más depredador y excluyente a nivel mundial, agravado luego
de la caída del bloque soviético, pero para el que la izquierda en general no ha podido
ofrecer una alternativa teórica, pero también socio-política y económica, en un sentido
socialista, que no repitiera las graves distorsiones del modelo soviético.
Sin duda una revalorización importante de las izquierdas o progresismos en el gobierno,
junto con la de diversos movimientos sociales, ha sido la de la democracia. Si bien ha
quedado circunscripta a un terreno básicamente procedimental, alimentando formas de
participación tutelada y fragmentada de la sociedad civil y de los movimientos y
organizaciones sociales en general, en otras ocasiones ha avanzado hacia formas de
participación más sustantiva, acercándose a formatos de una democracia más
participativa.
Otra cuestión parece suceder con la discusión sobre la hegemonía, en tanto que
construcción de un nuevo proyecto societal, que supere la fragmentación generada por
el sistema de dominación, al mismo tiempo que trascienda concepciones falsamente
vanguardistas (p.ej. asentadas en la forma clásica de la dirección de las luchas sociales
por el “partido”), o por el contrario, exhaltadoras de la fragmentación, combinando
estrategias antiopresivas y anticapitalistas. (cf. Wood, 2000).
Aparece una heterogeneidad muy amplia en el campo del movimiento popular en
general en América Latina, y no todos los movimientos sociales o movilizaciones de

664
dicho campo asumen una perspectiva antisistémica, digámoslo más claramente, donde
combinen y articulen claramente estrategias anticapitalistas y antiopresivas (cf. Wood,
2000). Más bien parece evidenciarse que la fragmentación presente en general en el
campo popular, está estrechamente vinculada a la dispersión de las reivindicaciones y
los horizontes ético-político compartidos, a movimentos de “cuestión única” (Mészáros,
2002), etc.
Partimos en ese sentido del supuesto que no es posible construir un orden radicalmente
democrático y libre sin abolir las relaciones de explotación, pero tampoco esto es
posible sin abolir también, y al mismo tiempo, las diversas relaciones de dominación y
opresión (incluyendo aquí a la propia naturaleza y ambiente no estrictamente humano),
que por otra parte se encuentran fuertemente imbricadas en la realidad concreta de las
clases y diversos grupos en nuestras sociedades. (cf. Ansaldi y Giordano, 2012: 35-39).
Partiendo de una concepción de una democracia radical (cf. Rebellato, 1999), ello
supone pensar en una dimensión claramente material de la democracia (cf. Dussel,
2006), que incluye de por sí la posibilidad de la tendencial superación de las relaciones
de dominación no estrictamente económicas, pero que a la vez no se puede entender ni
concretar sin la superación de las relaciones de explotación, incluyendo un nuevo
relacionamiento no destructivo con la naturaleza externa al ser humano.
En este sentido el interés de este artículo se centrará en el campo conceptual de las
relaciones entre democracia, socialismo y (contra) hegemonía, con particular interés y
con el telón de fondo de tematizar el campo de los movimientos sociales antisistémicos,
en la actual coyuntura de America Latina (aunque aquí no hagamos referencias directas
al punto).
Nuestra pretensión para este artículo se ubica en un plano más conceptual y exploratorio
de investigación, pero se articula con aquellas preocupaciones socio-históricas.
Primeramente nos parece pertinente situar algunos de los términos del debate, y sobre la
importancia que entendemos puede tener abordar estas cuestiones.
1. ¿Porqué discutir sobre democracia, socialismo y hegemonía?
¿Porqué puede ser importante replantearse actualmente la cuestión de la democracia y el
socialismo, articulándose a una praxis de tipo contrahegemónica? A nuestro entender
esto tiene que ver con algunas razones, tanto de orden teórico como también de tipo
socio-histórico.
En primer lugar porque, luego de la caída de los mal llamados “socialismos reales”,
hemos asistido a una imposición teórica e ideológica en términos de la combinación
entre democracia (básicamente representativa) y economías (y sociedades) capitalistas
de mercado. El propio (neo)liberalismo ha intentado operar dicha identificación,
presentándose como el “fin de la historia” y de las utopías revolucionarias (al final de
esta sección retomamos algunos contraargumentos para cuestionar dicha identificación).
En segundo lugar, nos parece que en el seno de la propia izquierda la cuestión tampoco
ha estado muy clara, tanto en términos políticos como conceptuales. En muchos casos lo
que se ha operado ha sido una sustitución de las luchas en torno a una sociedad
socialista por una revalorización de la democracia formal, incluso participativa o

665
directa, pero donde lo que ha tendido a suceder es que ha dejado de plantear la cuestión
del propio socialismo, “tirando al niño con el agua de la bañera”.
Paul Hirst se refiere, a comienzos de los 90, al posicionamiento de la izquierda 336 luego
de la caída de los socialismos reales, el avance de la hegemonía neoconservadora y el
aparente triunfo de la “democracia representativa” a nivel global:
“La izquierda se rindió a la democracia. Aceptó el gobierno representativo, las
elecciones multipartidarias y los electorados amplios (…) La izquierda está
aceptando y endosando un sistema deficiente de responsabilización democrática.
Está también aceptando un proceso de disputa política en que partidos de
izquierda sólo pueden vencer, en la mejor de las hipótesis, periódicamente, y
que, cuando vencen, el margen para el cambio social y político amplios por
medios parlamentarios es muy restricto” (Hirst, 1993: 8, traducción propia)
En tercer lugar, han surgido nuevos discursos teóricos e ideológicos, no necesariamente
ubicados en el escenario y doctrinas neoliberales (aunque en ocasiones compartiendo
con ellos muchas premisas y conclusiones), que se amparan generalmente en lecturas
posmodernas, que tienden a enfatizar en la cuestión de las identidades, las diferencias,
los micro-relatos, colocando un énfasis en nuevas luchas sociales, pero que en su amplia
mayoría dejan de considerar la importancia de la lucha de clases en la sociedad actual, a
la vez que reniegan de los sujetos revolucionarios y de alternativas emancipatorias
anticapitalistas de orden sistémico.
En este sentido nos parece importante reivindicar la importancia (y también identificar
algunos déficits) que ha tenido la elaboración teórica en el seno de la izquierda (no
digamos necesariamente en la tradición marxista), en relación a la cuestión democrática.
Las respuestas que la “izquierda democrática” viene dando a la cuestión, sobre todo
pensando en los debates en el contexto europeo y norteamericano actual, no parecen ser
alternativas transformadoras. Varias respuestas han emergido en este sentido (cf. Hirst,
1993: 9-10): de un lado la propuesta de un “nuevo republicanismo”, basándose en la
idea de la ciudadanía, que defiende el fortalecimiento de la participación activa en
instituciones políticas comunes, y la ampliación de los derechos sociales y políticos de
los ciudadanos (una versión de esta corriente es la desarrollada por Chantal Mouffe);
por otro lado aquella tendencia más marcadamente contraria al Estado, que defiende el
papel decisivo de las iniciativas de la “sociedad civil”, que se fundamenta en base a una
sociedad civil organizada y activa para actuar como fiscalizadora y “casi que como
substituto del Estado”, que involucra, entre otros aspectos, las experiencias de los
nuevos movimientos sociales en las sociedades occidentales337. También debe tenerse

336
Debemos tomar en cuenta que el análisis de Hirst se refiere fundamentalmente a las democracias
occidentales, por lo que esto no necesariamente puede ser trasladado mecánicamente para las izquierdas
en el plano de las sociedades periféricas o del tercer mundo (aunque estemos tentados de identificar
varios paralelismos con el proceso que han desarrollado muchas izquierdas en nuestra región). No
compartimos de todas maneras el diagnóstico de Hirst en términos de su propuesta de afirmación de un
socialismo democrático, que en su concepción debe abandonar el marxismo ya que éste no ofrecería
ninguna teoría política viable para enfrentar los límites de la democracia representativa. (Hirst, 1993: 9)
337
Es importante recalcar que dichas concepciones de la sociedad civil tienen muy poco que ver con el
que resulta de la tradición marxista, y en particular con la concepción gramsciana, a pesar de inspirarse
por momentos en esta última, como veremos luego. Al decir de Ellen Wood: “Resultaba evidente que la
concepción de Gramsci de "sociedad civil" tenía por objeto constituir un arma contra el capitalismo, no
una adaptación a éste. Pese al atractivo de la autoridad de Gramsci, que se ha vuelto uno de los

666
en cuenta la propuesta de una democracia deliberativa que formula Habermas, basada
en su ética del discurso y teoría de la acción comunicativa y con un marcado énfasis
racionalista, que se pretende como una superación tanto de la vertiente liberal como de
la misma concepción republicana. (cf. Habermas, 1994). Por otro lado aparecen
versiones como las del propio Hirst que plantean la necesidad de una incorporación
ciertamente ecléctica y llamativa, buscando fortalecer la posición teórica desde un
“socialismo democrático”, de posiciones cercanas a la tradición corporativista, el
pluralismo político inglés, y el decisionismo de Carl Schmitt338.
En cuarto lugar, como intentábamos reseñar en la introducción, han emergido
efectivamente nuevas contradicciones y luchas sociales, así como nuevos procesos
político-económicos se están gestando a nivel del capitalismo mundial, con un
importante protagonismo para la región latinoamericana y los movimientos y luchas
sociales, que abren un nuevo campo potencial teórico y práctico para repensar la
cuestión de las relaciones entre democracia y socialismo, más allá de los discursos
neoliberales, socialdemócratas o posmodernos, eventualmente también presentando
importantes componentes euro o nortecéntricos339. Es en este campo de discusiones
teóricas es que nos queremos situar, aunque en este artículo sólo abordaremos muy
parcialmente las contribuciones de dichas tradiciones.

ingredientes básicos de las teorías sociales contemporáneas de la izquierda, en el uso actual este concepto
ha perdido su clara intención anticapitalista. Ahora ha adquirido un nuevo conjunto de significados y
consecuencias, algunos muy positivos para el proyecto de emancipación de la izquierda, otros muy lejos
de serlo. Los dos impulsos contrarios pueden resumirse de la siguiente forma: el nuevo concepto de
"sociedad civil" indica que la izquierda ha aprendido las enseñanzas del liberalismo acerca de los peligros
de la opresión del estado, pero parece que estamos olvidando las lecciones que alguna vez aprendimos de
la tradición socialista respecto a las opresiones de la sociedad civil. Por un lado, los defensores de la
sociedad civil están fortaleciendo nuestra defensa de las instituciones y relaciones no estatales contra el
poder del estado; por otro, tienden a debilitar nuestra resistencia a las coerciones del capitalismo” (2000)
338
Sobre la importancia creciente de la incorporación de la propuesta de los planteos decisionistas y la
lógica política del amigo/enemigo de Carl Schmitt, en distintas versiones de la teoría social y política
contemporánea, y lo que parece más paradójico, desde tradiciones de izquierda (por ejemplo en la
propuesta de la nombrada Chantal Mouffe), ver el análisis de Atilio Borón y González, 2002.
339
Es este sentido pueden situarse, a modo de algunos ejemplos y sin agotar este campo, los aportes de
autores como John Wolloway, con su propuesta de “cambiar el mundo sin tomar el poder”, con fuerte
influencia de la experiencia zapatista y la revuelta argentina pos 2001, con un planteo crítico de la
institucionalidad, una reivindicación de la sociedad civil, e importantes influencias de una “dialéctica
negativa”. (cf. Wolloway, 2002; Wolloway, Matamoros y Tischler, 2007). Al mismo tiempo surgen
aportes teóricos interesantes vinculados al desarrollo del proceso boliviano actual y la lucha de los
movimientos sociales, con fuerte base indígena, con la propuesta de Luis Tapia (cf. 2008), que incorpora
análisis inspirados en Gramsci y en la propuesta del boliviano René Zavaleta. También deben
mencionarse algunas relecturas de la tradición marxista en América Latina, con fuertes influencias
gramscianas, en la lectura del argentino José Aricó (1982, 2012) y del brasileño Carlos Nelson Coutinho.
(cf. entre otros 1994,1999 y 2006, Coutinho y Nogueira, 1988). No debemos olvidar aquí las
contribuciones sobre la cuestión de la democracia del alemán costarricense Franz Hinkelammert (en
particular en 1990), del uruguayo Yamandú Acosta (cf. 2005, 2008) y del más tardío Enrique Dussel, con
su concepción de “transmodernidad” y la destacable tentativa de fundamentación y formulación de una
“política de la liberación” (cf. 2006, 2007 y 2009). Un análisis específico ameritaría también la obra del
portugués Boaventura de Sousa Santos, con su propuesta de una sociología de las ausencias y de las
emergencias, su tentativa de “democratizar la democracia” y su concepto de “traducción”. (cf. 2000,
2006, 2009). Otros aportes sin duda deberían tomarse en cuenta, como los de José Nun (2002), Norbert
Lechner (1990), Francisco Weffort (1993), Atilio Borón (1997), o de Pablo González Casanova (1995)

667
Una premisa esencial de este desarrollo es que no se puede equiparar la tradición liberal
y la democrática, y que en este sentido no hay necesariamente una incompatibilidad
teórica entre democracia y marxismo340, sino que, por el contrario, la incompatibilidad
se presenta entre democracia (substantiva) y capitalismo (cf. Wood, 2000)
En este sentido son sugerentes las implicancias del aporte de Carlos Nelson Coutinho,
en relación al concepto de democracia como un “concepto en disputa”:
“Hace algunas décadas, el pensamiento explícitamente de derecha – desde el
catolicismo ultramontano hasta los diferentes fascismos – combatía abiertamente
la democracia; hasta incluso el liberalismo, en buena parte de su historia, se
presentó explícitamente como alternativo a la democracia. Esta situación se
alteró a partir de la segunda mitad del siglo XX” (Coutinho, 2006: 13, trad.
propia)
Si el liberalismo, en tanto que expresión representativa de la ascensión histórica de la
burguesía, se situaba a la izquierda del espectro político hasta al menos la Revolución
Francesa, hay luego un progresivo giro hacia concepciones más conservadoras, lo que
tiene implicancias en concepciones más restrictivas y limitantes de la democracia, que
pueden apreciarse en obras tan diversas como las de Benjamin Constant, Tocqueville,
Mosca, Kant, Weber, lo que llega hasta formulaciones más contemporáneas como las de
Giovanni Sartori, Schumpeter, Robert Dahl o Norberto Bobbio. Por otra parte hay un
combate cada vez más explícito, no solo contra las posiciones socialistas, anarquistas o
comunistas, sino sobre todo frente a las oriundas de la teoría de Marx, en la medida que
estas van a tener una expresión política y social cada vez más importante en los siglos
XIX y XX. Pero también existe una confrontación con la tradición de la “soberanía
popular”, que se consagra sobre todo con la obra de Jean Jacques Rousseau y de los
jacobinos franceses. Si bien no se trata de un pensador socialista, partiendo de una
postura de un cierto anticapitalismo romántico y pasadista, choca de frente con
cualquier concepción minimalista o procedimental de la democracia, que la despoja de
cualquier dimensión económica y social. Para Rousseau no “hay democracia efectiva
donde existe excesiva desigualdad material entre los ciudadanos” (cf. Coutinho, 2006:
13-27):
“Para el autor de El contrato social, democracia significa participación de todos
en la formación del poder. Sólo es legítima una ley cuando es aprobada por
asamblea popular; el pueblo soberano no delega su soberanía a representantes,

340
Al referirnos al marxismo sin duda que hacemos referencia a un campo plural y heterogéneo, pero que
se ha visto sin duda fuertemente contaminado por influencias economicistas y deterministas, al amparo
sobre todo de la versión marxista-leninista del período staliniano, o de las tendencias estructuralistas de
un planteo como el de Althusser, o del desarrollo de un planteo “activista” como el del maoísmo en el
caso de la revolución china. Al mismo tiempo el “marxismo” se ha implicado fuertemente en su
vinculación con contextos socio-históricos y geográficos particulares, y con procesos revolucionarios
concretos, lo que debe también ser tenido en cuenta. Por otra parte el campo del llamado “marxismo
occidental” tampoco ha estado exento de múltiples controversias. Nos posicionamos en todo caso desde
un retorno al Marx original, y en este sentido cobra su importancia el legado de Rosa Luxemburgo, del
propio Lenin, de Gramsci, diversos aportes de la Escuela de Frankfurt, de Lukács, de Mariátegui, de los
aportes de las teorías de la dependencia en América Latina, etc. Dicho regreso al Marx original implica a
su vez que nos posicionemos en el sentido de un marxismo crítico que se desarrolla y que se piensa desde
las condiciones de las sociedades y los conflictos y luchas sociales de América Latina, ya no como “calco
y copia”, al decir de Mariátegui, sino como una tarea desafiante y creativa.

668
sino solo encomienda, o sea, nombra funcionarios que ejecutan su voluntad (…)
no acepta el instituto de la representación (característicamente liberal), sino que
defiende una democracia directa, con plena participación popular (…) [Para
Rousseau] no hay democracia efectiva donde existe excesiva desigualdad
material entre los ciudadanos” (Coutinho, 2006: 25, trad. propia)
Se trata por lo tanto de una disputa y oposición entre distintas concepciones de
democracia. En buena medida esto supone concebir a la democracia – lo que por otra
parte se corresponde efectivamente con procesos socio-históricos concretos –, en un
sentido substantivo, y que además ha sido reivindicada y producto de distintas luchas
sociales y populares a lo largo de al menos los últimos dos siglos. Esto sucede inclusive
no sólo en relación a la conquista de derechos sociales y económicos, sino que también
está asociado a los derechos civiles y políticos. Por ejemplo la demanda por sufragio
universal surge a partir del movimiento cartista de los trabajadores en Inglaterra a
comienzos del siglo XIX, y ello recién se produce a partir de 1918, incluyendo el voto
de las mujeres. Lo mismo sucedía con su otra demanda fundamental, la limitación legal
de la jornada de trabajo. (cf. Coutinho, 2006: 19)
Dicho contenido “social” de la democracia (y también implicando un desarrollo de las
“virtudes” del ciudadano, en base a una concepción activa y ya no pasiva de la
participación democrática), ya estaba contenido en la visión de Aristóteles, alejado de
cualquier paralelismo con la muy posterior y moderna tradición liberal, quien indicaba
que “una democracia es un Estado en que los hombres libres y los pobres, siendo
mayoría, son investidos del poder del Estado” (apud Williams, 2007: 125). Por otra
parte prevaleció históricamente, hasta bien entrada la modernidad, una concepción
negativa de la democracia:
“Pero el hecho es que, solamente en excepciones ocasionales, la democracia en
los registros que poseemos era hasta el S19 un término fuertemente
desfavorable; fue solamente a partir del final del S19 e inicio del S20 que una
mayoría de partidos y corrientes políticas se unieron en una declaración de fe en
la democracia. Ese es el hecho histórico más sorprendente” (Williams, 2007:
126)
Es del uso norteamericano alterado de “democracia representativa” formulado por
Hamilton en 1777, que se desarrolló el sentido moderno de la misma. Aquellas otras
ideas (que atravesaron distintos períodos históricos, culturas y a distintos pensadores y
líderes políticos) del gobierno del pueblo, o de la multitud, o de las mayorías de
hombres libres y pobres que se gobernaban a sí mismos, o del “gobierno del pueblo, por
el pueblo y para el pueblo” (o del poder popular), y de la que es oriunda la tradición
rousseauniana, fue cayendo en descrédito frente a dicha concepción de la democracia
representativa (incluso claramente restringida en sus orígenes) que se volvió
hegemónica: “Democracia era todavía un término revolucionario o al menos radical
hasta mediados del S19, y el desarrollo especializado de democracia representativa fue
al menos en parte una reacción conciente a ese entendimiento” (Williams, 2007: 128-9,
trad. propia):
“(…) se puede verificar la divergencia entre dos significados modernos de
democracia. En la tradición socialista, democracia significaba poder popular: un
Estado en el cual los intereses de la mayoría del pueblo eran preponderantes y

669
ejercidos y controlados en la práctica por la mayoría. En la tradición liberal,
democracia significaba elección abierta de representantes y ciertas condiciones
(derechos democráticos, como libertad de expresión) que mantenían el carácter
abierto de la elección y de la discusión política” (Williams, 2007: 128-9, trad.
propia)
Dicha concepción de democracia substantiva, entendida como poder y soberanía
popular, implica varias cuestiones. Por un lado no desconoce la importancia de la
fijación de reglas abiertas, transparentes y plurales del “juego” democrático. Pero
también supone que dichas reglas sean efectivamente democráticas, es decir que
contemplen no solamente formas de representación, sino que también estimulen los
institutos y las modalidades de la democracia directa y participativa. Supone además, y
no de forma secundaria, que existan también las condiciones jurídicas y económico-
sociales para que tales reglas y decisiones sean efectivamente cumplidas. (cf. Coutinho,
2006). En este sentido una verdadera democracia se enfrenta con límites objetivos en el
marco del orden social regido por la lógica del capital (volveremos luego sobre este
punto)
2. Algunas desarrollos y tensiones sobre democracia, socialismo y hegemonía en la
tradición del materialismo histórico
Decía el último Nicos Poulantzas, en su Estado, poder y socialismo, de 1978:
“No existen clases sociales previas a su oposición, es decir, a sus luchas. Las clases
sociales no existen “en sí” en las relaciones de producción, para entrar en lucha
(clases “para sí”) sólo después o en otra parte. Situar el Estado en su vinculación con
las relaciones de producción es configurar los primeros contornos de su presencia en
la lucha de clases” (…) “son las luchas, campo prioritario de las relaciones de poder,
las que tienen siempre primacía sobre el Estado. Esto no concierne sólo a las luchas
económicas, sino al conjunto de las luchas, incluídas las políticas e ideológicas”
(1991: 26, 48)
Esta lectura del último Poulantzas abre posibilidades para, alejándose de anteriores
influencias del estructuralismo de Althusser y recuperando importantes aportes de
Gramsci, replantearse y fundamentar una “vía democrática al socialismo”, anclada en
una importante significación de las luchas sociales. (cf. Coutinho, 1994: 64-69)
Sin embargo entendemos que es con el pensamiento de Antonio Gramsci, en el marco
de la tradición marxista, donde encontramos elaboraciones e intuiciones teóricas
fecundas para plantear adecuadamente esta cuestión, aún sin agotar obviamente la
temática ni ofrecer respuestas acabadas para los desafíos actuales. Pero veamos algunas
cuestiones previas sobre algunos desarrollos presentes en la tradición oriunda del
pensamiento de Marx y Engels.
No es que la cuestión democrática no haya estado planteada como tal en el seno del
desarrollo del “marxismo original”. Hay indicaciones en el propio Marx y Engels al
respecto. De un lado, si en su primera etapa de producción, sobre todo en el período
1848-50, hay en dichos autores una concepción “restricta” del Estado, un paradigma
“explosivo” del proceso revolucionario y una concepción de “doble poder” (entendido

670
como algo transitorio)341, dichas concepciones fueron parcialmente superadas en las
obras tardías del propio Marx, y también en Engels, que vivió doce años más que su
compañero. Ello se correspondió además históricamente con determinaciones del
Estado, la economía y la lucha política en general, que remitían con justeza a
características concretas del Estado burgués de mediados de mediados del siglo XIX en
adelante, incluyendo algunas transformaciones de fines de dicho siglo en los modernos
aparatos de Estado (parlamento electo por sufragio tendencialmente universal, partidos
políticos legales y de masa, resultantes además de reivindicaciones de las propias luchas
obreras)342 (Coutinho, 1994: 26-7).
Por su parte Lenin se mantuvo en lo esencial en la concepción “restricta” del Estado,
residiendo su esencia, para el líder revolucionario, en sus “aparatos coercitivos y
represivos”343. Por el contrario, según Coutinho,
“No hay, en la obra madura de Marx y Engels, al contrario de lo que afirma Lenin,
ninguna afirmación de tales aparatos consensuales deban ser quebrados o destruídos.
Lo que en ella se puede constatar es la idea de que tales aparatos pueden cambiar de
función (como en el caso de las asambleas electas por sufragio universal) o adquirir
nuevas determinaciones (fusión de poder ejecutivo y legislativo), como podemos ver
en los comentarios de Marx a la forma estatal asumida por la Comuna de París, que
él consideraba “la forma política al fin descubierta para llevar a cabo la
emancipación económica del trabajo” (Coutinho, 1994: 35)
Por su parte la crítica a la generalización de la experiencia bolchevique fue combatida,
no sólo por el centro y la derecha “socialdemócratas” de la época (Kautsky, Bernstein),
sino también por la más importante representante occidental de la “izquierda” marxista,
Rosa Luxemburgo. Como indica Coutinho, tanto para Luxemburgo como para Max

341
Decían Marx y Engels en el Mensaje del Comité Central a la Liga de los Comunistas, de 1950: “Al
lado de los nuevos gobiernos oficiales, los obreros deberán constituir inmediatamente gobiernos obreros
revolucionarios, en la forma de clubes obreros o de comités obreros, de tal modo que los gobiernos
demcrocático-burgueses (…) pierdan inmediatamente el apoyo de los obreros” (apud Coutinho, 1994: 23-
4, traducción propia)
342
Engels, en un texto de 1891, incorpora la cuestión de la “república democrática”, dando lugar a la
superación de la comprensión de la dominación de clase sólo a través de la coerción (como en los primera
etapa de la concepción de Marx y Engels, e incorporando también mecanismos de legitimación que
aseguran el consenso de los gobernados: “Una cosa absolutamente cierta es que nuestro Partido y la clase
obrera sólo pueden llegar a la dominación bajo la forma de la república democrática. Esa última es,
inclusive, la forma específica de la dictadura del proletariado” (apud Coutinho, 1994: 27-8). Por su parte
Marx, en carta a Kugelman en 1871, y según Coutinho, ya estaba atento al hecho de que el Estado
capitalista puede “ampliarse” o se amplió efectivamente. En países como Inglaterra, Estados Unidos y
Holanda, por ejemplo, el Estado no se reduciría a una “máquina burocrático-militar”, pero habría
extendido su actuación mediante el desarrollo de aparatos consensuales, que implican o resultan de un
“pacto”. El escaso peso de la máquina burocrática en esos países, según Marx, justificaría la posibilidad
en los mismos de un camino pacífico (específicamente parlamentario) para el socialismo. Fue lo que él
admitió públicamente en un discurso en 1873, en un Congreso de la Asociación Internacional de
Trabajadores. (Coutinho, 1994: 35)
343
Sin incurrir aquí en un análisis de las concepciones, muy complejas por cierto, y vinculadas al
desarrollo de tareas político-revolucionarias, de Lenin y de Trotski (defensor de la perspectiva de la
“revolución permanente”), cabe indicar que tampoco Trotski logró superar una visión restricta sobre el
Estado, permaneciendo en lo fundamental girando en torno a la concepción de Engels y de Marx del
período 1848-1850. (cf. Coutinho, 1994: 42). Obviamos aquí también, por una cuestión de espacio, las
contribuciones del austromarxismo de Max Adler y Otto Bauer en el período de entreguerras, que
representaron algunas novedades en relación al tema (cf. Coutinho, 1994: 42-49)

671
Adler (referente del austromarxismo), uno de los puntos en que indican como ejemplo
de no-universalidad de la experiencia bolchevique es el modo de concebir la relación
entre democracia consejista, inspirada en los soviets, y la democracia representativa o
formal:
“(…) para ambos, no se trataría de destruir las antiguas instituciones de la
democracia formal, como pretendía Lenin en su combate al parlamentarismo,
sino de articularlas con las nuevas formas de democracia directa encarnadas en
la experiencia de los consejos o soviets. Esa posición reaparecerá más
explícitamente en la “escuela gramsciana (…) bajo la forma de una propuesta de
integración entre organismos de democracia directa y mecanismos de
democracia representativa” (Coutinho, 1994: 43-44, trad. propia)
Aún con riesgo de esquematizar, y sin espacio para fundamentarlo adecuadamente aquí,
diremos que es con el pensamiento y la praxis de Antonio Gramsci, que se opera una
revalorización de la cuestión democrática en el seno del materialismo histórico. No hay
una negación de las contribuciones de Marx en Gramsci, como han querido señalarlo
algunas visiones liberales “de izquierda” como la de Norberto Bobbio (1987), ni
tampoco un análisis poco consistente, como parece sugerirlo Perry Anderson (1981).
Muy por el contrario, lo que existe es una continuidad, desarrollo y profundización de
algunas de las proposiciones centrales de Marx con su desarrollo de la economía
política, para el campo de la política y de la teoría del Estado en el autor. Con Gramsci
se sientan las bases, entre otros aspectos, para desarrollar una “ampliación de la teoría
del Estado” en el seno del marxismo, a la vez que el reconocimiento de una nueva
autonomía a la esfera de la política y de la lucha ideológica. (cf. Coutinho, 1994, 1999;
Aricó, 2012). Al decir de Coutinho, existe una superación dialéctica en Gramsci,
entendida como conservación/renovación, de algunos aspectos y legados de la teoría de
Marx y de Lenin, sentando las bases, con términos lukácsianos, para la elaboración de
una “ontología materialista de la praxis política”. (Coutinho, 1994)
En este sentido es que son novedosas y sugerentes sus categorías y reflexiones sobre la
hegemonía, reforma intelectual y moral, revolución pasiva, transformismo, sociedad
civil y Estado, sobre los intelectuales, sobre la relación entre teoría y praxis (con énfasis
para la praxis político-pedagógica), sobre el bloque histórico, las relaciones políticas y
de fuerza en la sociedad, sobre cultura popular y conocimiento científico o filosofía, etc.
Hay un fuerte cuestionamiento a algunas lecturas economicistas y deterministas del
marxismo de la III Internacional (cf. Rebellato, 1988), a la vez que un cuestionamiento
a algunas tendencias burocratizantes y centralistas que se estaban produciendo en la
experiencia soviética, sobre todo luego de la muerte de Lenin y con el ascenso al poder
de Stalin y de la vigencia de lo que fue conocido como “marxismo-leninismo”. Por otra
parte sus contribuciones abren nuevas pistas para contribuciones para el desarrollo del
marxismo para las realidades de las sociedades periféricas y dependientes del
capitalismo central, con particular énfasis para las realidades latinoamericanas (cf.
Coutinho y Nogueira, 1988)
En particular nos interesará centrarnos en las contribuciones de Gramsci en relación a la
hegemonía y la democracia.
Decía Gramsci sobre el Estado y la sociedad civil, entendiendo el primero como un
“equilibrio entre sociedad política y sociedad civil”, donde no sólo aparece asociado

672
estrictamente al contenido coercitivo, sino también al consenso o hegemonía, en las
Cartas desde la Cárcel:
“(…) ciertas determinaciones del concepto de Estado, que de costumbre es
comprendido como sociedad política o dictadura, o aparato coercitivo […] y no un
equilibrio entre la sociedad política y la sociedad civil (hegemonía de un grupo
social sobre toda la sociedad nacional ejercida a través de las llamadas
organizaciones privadas, como la Iglesia, los sindicatos, las escuelas, etc.) y
precisamente es en la sociedad civil en la que sobre todo actúan los intelectuales”
(Gramsci, 1998) 344
Para Gramsci la sociedad civil345 está vinculada a la búsqueda de la hegemonía,
entendida fundamentalmente como dirección o “reforma intelectual y moral”, en el
marco de los llamados “aparatos privados de hegemonía. Esta sociedad civil está
vinculada a la relativa autonomía que adquiere la sociedad civil en los tiempos de
nuestro autor, que implica su caracterización como una nueva esfera del ser social, y
que está asociada a los procesos de “socialización de la política”.
Por su parte el Estado en sentido estricto, involucra los aparatos coercitivos, y remiten
en lo fundamental a los aparatos de dominación identificados ya por Marx y Engels,
encarnados en grupos burocrático-ejecutivos relacionados a las fuerzas armadas y
policiales, y a la imposición y aplicación de las leyes.
Gramsci introduce además otros conceptos, para distinguir las relaciones entre sociedad
civil y Estado en las sociedades contemporáneas. Es en las sociedades “occidentales”
donde más claramente puede apreciarse aquellas nuevas determinaciones, en oposición
a las llamadas “sociedades orientales”346. En las primeras se ha operado un proceso de
“socialización de la política” que se vincula con el desarrollo y expansión de distintos
instituciones y funciones sociales: sistema escolar, iglesias, partidos políticos,
organizaciones profesionales, científicas y artísticas, medios de comunicación popular y
masivos, etc. En estos aparatos privados la adhesión a los mismos es voluntaria y no
coercitiva, teniendo además una dimensión pública y política.
“En Oriente el Estado era todo, la sociedad civil era primitiva y gelatinosa; en
Occidente, entre Estado y sociedad civil existía una justa relación y bajo el temblor
del Estado se evidenciaba una robusta estructura de la sociedad civil. El Estado sólo

344
O en otro concepto de los Cuadernos de la Cárcel: “Estado es todo el complejo de actividades
prácticas y teóricas con las cuales la clase dirigente no sólo justifica y mantiene su dominio sino también
logra obtener el consenso activo de los gobernados” (Gramsci, 1998)
345
No podemos fundamentar aquí la diferenciación entre la sociedad civil en Marx, Hegel y en Gramsci.
Diremos sólo que para Marx, en lo fundamental, la sociedad civil es identificada como “sociedad
burguesa”, entendida como conjunto de relaciones sociales capitalistas. Gramsci toma tanto elementos de
la propia concepción de Marx como de Hegel, para fundamentar y elaborar su propia concepción. Se trata
en todo caso de una esfera intermedia entre la estructura económica y el Estado coerción. Gramsci toma
no sólo el campo de la sociedad civil como sociedad burguesa de Marx, o como “sistema de necesidades”
en el concepto de Hegel, sino que incorpora también el momento de las “corporaciones” hegeliano o de la
representación de los intereses de los distintos grupos sociales (que en Hegel incluía además a la familia)
y de la elaboración y organización de la ideología y la cultura que se da en su seno, reformulando la
cuestión de la eticidad hegeliana (que en Hegel estaba estrechamente asociada al Estado). Tratamos de
estos asuntos en nuestra disertación de Mestrado (1996).
346
Cabe aclarar que dichos términos no remiten a diferenciaciones estrictamente geográficas o vinculadas
a universos culturales como occidente-oriente, sino que son más bien distinciones analíticas.

673
era una trinchera avanzada, detrás de la cual existía una robusta cadena de fortalezas
y casamatas; en mayor o menor medida de un Estado a otro, se entiende, pero esto
precisamente exigía un cuidadoso reconocimiento de carácter nacional” (Gramsci,
2003: 83)
Por su parte este nuevo concepto de Estado (Estado en sentido amplio es igual a
sociedad civil más sociedad política), supone también una nueva teoría de la revolución,
que contrapone explícitamente a la concepción de la “revolución permanente”, tal como
fuera formulada por Marx y Engels en 1850 y defendida luego por Trotski. (cf.
Coutinho, 1994: 59 y ss). Es en el plano de la sociedad civil donde las fuerzas
revolucionarias y el movimiento de los trabajadores deben guiarse por la llamada
“guerra de posiciones”, intentando la conquista progresiva del consenso y de la
dirección político-intelectual en una sociedad; mientras tanto la “guerra de
movimiento”, en términos de una guerra frontal contra y para tomar el poder del Estado
central, pierde centralidad, como la tuviera para los bolcheviques y en general para las
sociedades que no habían desarrollado este equilibrio entre Estado y sociedad civil. En
buena medida el replanteo teórico y la definición de nuevas estrategias de construcción
de procesos revolucionarios, están asociados a la derrota de los movimientos
revolucionarios en Europa occidental en el período de entreguerras, lo que inclusive
estuvo vinculado al avance del fascismo y nazismo en Europa. Como sintetiza
Coutinho:
“(…) Gramsci quiere destacar el carácter procesual y molecular de la transición
revolucionaria en las sociedades “occidentales”: la expansión de la hegemonía
de las clases subalternas implica la conquista progresiva de posiciones a través
de un proceso gradual de agregación de un nuevo bloque histórico, que
inicialmente altera la correlación de fuerzas en la sociedad civil y termina por
imponer la ascensión de una nueva clase (o bloque de clases) al poder del
Estado” (Coutinho, 1994: 60, trad. propia)
Palmiro Togliatti, por su parte, retoma en buena medida el legado gramsciano, y
planteará su concepto de “democracia progresiva”, como marco adecuado para la guerra
de posiciones por la conquista de la hegemonía. En su opinión se trata de combinar
instituciones representativas tradicionales, como por ejemplo los parlamentos, con
nuevos y cada vez más numerosos organismos de democracia de base: la “forma
político-estatal de la democracia progresiva abre el espacio para la superación gradual
del capitalismo mediante la realización de “reformas de estructura” tanto políticas como
económicas”. (Coutinho, 1994: 61-2, trad. propia). Giuseppe Vacca intenta por su parte
articular dicha concepción procesual de transición revolucionaria con un concepto
igualmente procesual de dualidad de poderes.
En el caso de las últimas obras de Nicos Poulantzas, inspirándose también en las
concepciones de Gramsci y de las posiciones del eurocomunismo (sobre todo el
italiano), el proceso de ampliación del Estado no se limita a la gestación y difusión de
los aparatos privados de hegemonía, como en Gramsci. También incorpora la presencia
masiva de agencias estatales interviniendo en el área económica y garantizando
condiciones para la reproducción del capital social global. Por su parte, si bien para
Poulantzas el Estado sigue siendo, en el largo plazo, un instrumento de la burguesía,
también es caracterizado como una “condensación material de una correlación de

674
fuerzas entre clases y fracciones de clase” (apud Coutinho, 1994: 65). En este sentido va
más allá de concebir la lucha por la hegemonía como acotada a la conquista de
posiciones en el seno de la sociedad civil, como en Gramsci, pero también habla de una
lucha procesual a ser encarada también en el propio interior de los aparatos estatales en
sentido estricto, en aquello que Gramsci llamaba como “sociedad política” (Coutinho,
1994: 66). Pero también se diferencia de Lenin, quien sostenía una concepción de doble
poder en base al poder de los soviets que confrontarían directamente con el Estado
burgués, llegando a una “situación revolucionaria” que derrocaría su poder y lo
substituiría por el nuevo poder de los soviets. En Poulantzas, en cambio, al acentuar su
concepción procesual y renegar de una visión “explosiva” de la transformación
revolucionaria y del doble poder, se trata de que,
“El problema esencial de la vía democrática al socialismo y de un socialismo
democrático [consiste en] concebir una transformación radical del Estado mediante
la articulación entre la ampliación y la profundización de las instituciones de la
democracia representativa (que fueran también una conquista de las masas
populares) y la explicitación de las formas de democracia de base y la proliferación
de focos autogestionarios” (Poulantzas, apud Coutinho, 1994: 67-8, trad. propia)347
Reflexiones finales
Plantear la vigencia de las concepciones gramscianas sobre la hegemonía y la
democracia supone rescatar la importancia de la necesidad de una construcción
contrahegemónica, de tipo político-cultural, pero que tenga como horizonte la
superación del orden regido por el metabolismo social del capital. Ellas se enfrentan,
entre otras, a concepciones liberales o neoliberales, neo-desarrollistas, multiculturalistas
o posmodernas sobre la cuestión.
Por un lado parece quedar clara la contradicción estructural entre una democracia
substantiva y el orden capitalista-liberal; por otro lado algunas lecciones de la historia
reciente apuntan a reivindicar la compatibilidad y mutua potenciación entre tradiciones

347
En un sentido similar se manifestaba Pietro Ingrao, en términos de las íntimas conexiones entre
socialismo y democracia, articulando una democracia de base con formas representativas y pluralistas, a
la vez que suponiendo una estrategia de superación de las relaciones de producción capitalistas: “(…)
significa construir una democracia política que tenga condiciones no sólo de intervenir en la economía
con fines igualitarios o solidaristas, sino también cambiar las relaciones de producción y, más aún, de
realizar un cambio de clases dirigentes. Por lo tanto se trata de construir una democracia abierta al
socialismo, que permita alcanzar una transformación socialista basada en el consenso, en el momento de
la hegemonía, y no en el momento de la coerción (…) La expansión de la democracia, la participación de
las masas en la gestión del poder económico y político, el análisis crítico, la justa relación dialéctica
entre la elaboración del partido político y la experiencia de la clase y de las masas no son por lo tanto un
lujo, una concesión a otros, sino una necesidad para desarrollar la lucha (…). Nosotros, comunistas
italianos, siempre rechazamos la tesis, que se nos atribuyó, según la cual la democracia sólo sirve a
nuestra lucha antes de la toma del poder y no después. No podemos aceptar esa tesis porque, sobre todo
después de la toma del poder, cuando la tarea de construir la nueva sociedad se vuelve predominante y la
resistencia del pasado se exprime en la “permanencia” de viejos modos de ser y de pensar, el análisis
crítico, la ampliación de la participación de las masas, la creación de nuevas formas de organización
social que liquiden los residuos del viejo modo de producción se convierten en un elemento decisivo”
(Ingrao, 1980: 124-5, 134-5, trad. propia)

675
socialistas y democráticas, que se orientan en la senda de la soberanía y el poder
popular.
En este sentido cabe hablar de un concepto como el de “democratización”, que puede
considerarse, siguiendo a Coutinho, como un valor universal. Pero ello supone tener
ciertos recaudos:
“(…) la socialización de la participación política [se expresa] en una creciente
socialización del poder, lo que significa que la plena realización de la
democracia implica la superación del orden capitalista, de la apropiación
privada del Estado, y la consecuente construcción de un nuevo orden social, de
un orden socialista. O sea: de un orden donde no exista apenas la socialización
de los medios de producción, como los “clásicos” del marxismo insistieran, sino
también de la socialización del poder” (Coutinho, 2006: 22, trad. propia)
Dicha socialización del poder o poder popular (entendido en un sentido amplio,
vinculado a la democratización social, cultural y política de las relaciones sociales) no
puede cometer algunos errores del pasado, como la absorción y neutralización de la
sociedad civil y de los movimientos populares por el Estado o el partido de vanguardia,
que niegue la autonomía de los movimientos sociales y populares, a la vez que
desestimula un pluralismo socio-cultural y un reconocimiento de la diversidad.
Tampoco puede confundirse con la afirmación y exaltación de las “identidades” y de las
“diferencias” (étnico-raciales, de género, generacionales, nacional-populares, etc., sobre
todo si se las piensa de forma desligada de las relaciones de clase), que corren el riesgo
de fortalecer la fragmentación de los sujetos y las luchas.
Esto parece particularmente importante en Nuestra América, en un contexto donde la
resistencia enfrentada desde los movimientos sociales y fuerzas populares frente al
neoliberalismo, ha supuesto el ascenso de fuerzas progresistas y de izquierda, que no
han logrado (y en algunos casos tampoco lo han intentado) romper con las ataduras de
la acumulación global de capital. Tampoco han superado, por lo general, un concepto de
desarrollo extractivista, concentrador y depredatorio de los recursos naturales, aunque sí
parece haberse avanzado en colocar alternativas posneoliberales en la agenda de las
luchas sociales y políticas.
En este sentido el protagonismo y la afirmación de un bloque histórico
“contrahegemónico” constituye un desafío acuciante que precisa de la combatividad y
elaboración crítica de los movimientos sociales y populares, que no se orientan
meramente en dirección a procurar transformaciones institucionales en el nivel del
Estado (aunque la invención de nuevas formas de Estado es sin duda una tarea
imprescindible), pero que avancen en las resistencias y construcción de alternativas de
tipo civilizatorio frente a la imposición barbarizante de las fuerzas del poder político
global y del gran capital.
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679
Direitos humanos e desenvolvimento social: a democracia é viável dentro do
contexto capitalista?

Urá L. Martins 1
1
Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal do Estado
do Pará. Bolsista da FAPERJ.
Rio de Janeiro - uramartins@ig.com.br.

Resumo
O artigo apresentará reflexão acerca da viabilidade da democracia dentro do contexto
capitalista. Para tanto, será realizado breve histórico e contextualização dos direitos
humanos e das normas que versam sobre a questão democrática no plano internacional e
nacional. A seguir, será apresentado um contraponto entre o desenvolvimento
econômico e o desenvolvimento social. Com base na Teoria Crítica, será analisada a
viabilidade da democracia, considerando os efeitos provenientes do sistema capitalista.
Com tal intuito, serão demonstradas as bases materiais da sociedade atual, bem como as
desigualdades sociais típicas das relações de cunho capitalista, o que gera a produção
assimétrica de oportunidades. Ao final, será feita uma análise das causas subjacentes
que envolvem o choque de interesses entre a democracia e o capitalismo, verificando-se
quais são as formas de emancipação que são permitidas dentro de um sistema que
subordina os valores humanos aos objetivos de acumulação do capital.
Palavras-chave: democracia; capitalismo; desenvolvimento social; direitos humanos.

1 Introdução
Sabe-se que a mera existência de normas possibilitando a participação social do
cidadão não é suficiente para que tal participação ocorra no plano concreto. Tal
efetivação depende de um conjunto de fatores capazes de possibilitar uma mudança real
e concreta na sociedade, ou seja, é necessário dar condições de possibilidade para tanto.
Há uma patente necessidade de fortalecer e ampliar a democracia, com a
finalidade de suprir as deficiências e fragilidades diagnosticadas no exercício da
democracia representativa, considerando-se a atual crise democrática, os inúmeros casos
de corrupção, financiamento de campanha, dentre outros fatores que contrariam os
interesses sociais.
Sendo assim, a crise da democracia representativa revelou a necessidade de
reflexões sobre o exercício dos direitos democráticos, considerando as bases materiais
(modo de produção) da sociedade atual.
O problema reside no fato do capitalismo conter uma lógica totalizante que
determina e condiciona as relações sociais, impedindo, assim, que as pessoas possam
gozar de direitos iguais, no sentido de ter as mesmas oportunidades.

680
Para que seja realizada uma análise crítica dos direito humanos e do
desenvolvimento social, segundo a perspectiva democrática, torna-se necessário analisar
alguns pontos sensíveis ligados ao tema, quais sejam: Se as capacidades individuais
dependem das disposições econômicas, sociais e políticas, o estudo da questão
democrática pode ignorar as bases materiais (modo de produção) da sociedade atual? O
capitalismo permite a plena expansão das liberdades reais dos cidadãos, necessárias para
garantir sua condição de agente capaz de exercer uma cidadania ativa?
Com o intuito de responder tais questões, serão utilizados referenciais teóricos
que tratam o tema segundo uma perspectiva crítica, visto que devem ser considerados os
inúmeros tipos de opressão gerados pelo sistema capitalista.
2. Direitos humanos e democracia: breve histórico e contextualização
Os direitos humanos tiveram reconhecimento gradual. Inicialmente, surgiram
como Declarações e Cartas, integrando, posteriormente, as Constituições dos países.
Dessa forma, foram sendo reconhecidos quando as condições materiais da sociedade
propiciaram o surgimento das Declarações de Direitos, através da conjugação de
condições objetivas e subjetivas para sua formulação (SILVA, 1999, p. 177).
Em 1215, através da Magna Carta do Rei João da Inglaterra, de 15.06.1215,
constata-se o início de um movimento com o intuito de promover limitações ao poder
do Estado. Contudo, a referida Carta apenas beneficiou o estamento superior da
sociedade inglesa, nobreza e realeza, tendo o povo ficado fora do referido pacto. Na
realidade, foi um “relevantíssimo acerto de cúpula, embrionário para uma posterior
etapa de verdadeira afirmação de direitos humanos e de limitação ao poder de tributar”.
(SCAFF, 2006, p. 39-40).
Comparato (2004) ressalta que a positivação dos Direitos Humanos ocorreu,
inicialmente, através da Declaração de Direitos do povo da Virgínia de 1776, que
representou o registro de nascimento dos direitos humanos na história, tendo
influenciado as demais declarações.
No ano de 1789 foi elaborada a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, fruto da Revolução Francesa, seguindo a orientação da ideia de liberdade,
igualdade e fraternidade, tendo influenciado a constitucionalização dos direitos e
liberdades individuais.
Para Lesbaupin (1984), a nova ideologia atendia aos interesses da burguesia em
ascensão, sendo que o direito à liberdade, à propriedade, à segurança, etc, foram
concebidos como direitos do homem, direitos naturais.
De fato, foi através da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, que ocorreu a
consagração universal de tais direitos. Dentre os direitos democráticos previstos na
referida Declaração, cabe ressaltar os previstos no art. 21, a seguir expostos:
Artigo 21.º
1. Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos
negócios públicos do seu país, quer diretamente, quer por
intermédio de representantes livremente escolhidos.

681
2. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de
igualdade, às funções públicas do seu país.
3. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes
públicos; e deve exprimir–se através de eleições honestas a
realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto
secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a
liberdade de voto.
4. A democracia promove um ambiente para a proteção e
realização efetiva dos direitos humanos. Estes valores estão
incorporados na Declaração Universal dos Direitos Humanos e
mais desenvolvidos no Pacto Internacional sobre os Direitos
Civis e Políticos, que consagra um conjunto de direitos políticos
e liberdades civis que sustenta a democracia.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, por sua vez, teve o
condão de atribuir obrigatoriedade ao conjunto de direitos políticos e liberdades civis
previstos na Declaração Universal de 1948, tendo sido aprovado pela Assembleia-Geral
da ONU em 16 de dezembro de 1966, mas apenas internalizado no Brasil em 1992,
através do Decreto n. 592, de 06 de julho de 1992 (BRASIL, 1992).

O mencionado Pacto estabelece em seu artigo 25 que todo cidadão terá o direito
e a possibilidade, sem qualquer tipo de restrição, de acesso aos seguintes direitos:

Art. 25(...)

a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente


ou por meio de representantes livremente escolhidos;

b) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas,


realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto,
que garantam a manifestação da vontade dos eleitores;
c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções
públicas de seu país.
Cumpre ressaltar que os direitos humanos ainda estão em fase de concretização
material. Nesse sentido, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada entre
6 e 8 de setembro do ano 2000, nos Estados Unidos, foi aprovada a Declaração da
Cúpula do Milênio das Nações Unidas, conforme Resolução A/RES/55/2, através da
qual foram estabelecidos os objetivos de desenvolvimento do milênio, destacando-se o
seguinte:
Não pouparemos esforços para promover a democracia e
fortalecer o estado de direito, assim como o respeito por todos
os direitos humanos e liberdades fundamentais
internacionalmente reconhecidos, nomeadamente o direito ao
desenvolvimento.
Bobbio (2004) afirma que existem três gerações dos direitos humanos. Cabe
mencionar que o termo gerações recebe críticas, no sentido de que tal nomenclatura

682
pode significar que ocorreu substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela
qual alguns autores, acertadamente, entendem que o termo dimensões explica melhor a
ideia de expansão de direitos, cumulação e fortalecimento. Portanto, a noção de que os
direitos humanos possuem gerações parece supor que tais direitos se sucedem, quando
na realidade, tais direitos se expandem e se fortalecem através de cada dimensão
(SCAFF, 2006; SARLET, 1998).
A primeira dimensão dos direitos humanos representa a existência de direitos
fundamentais dos cidadãos, implicando numa atuação negativa do Estado, que está
limitado legalmente para interferir na esfera individual, como o direito à vida, à
liberdade, à propriedade, à igualdade, direito à participação política, dentre outros.
Porém, necessário frisar que os principais beneficiários, de fato, foram os que
pertenciam à classe de proprietários. Noutras palavras, a desigualdade gerada pela
sociedade de mercado (modo de produção capitalista) permaneceu intocável.
Nesse contexto, a liberdade de mercado necessitava da intervenção mínima do
governo, ou seja, não havia a concepção de igualdade no sentido de diminuir as
discrepâncias sociais e econômicas. Ao contrário, garantiu-se a liberdade suficiente para
produzir a emancipação da burguesia.
Atuação negativa significa que o Estado não pode interferir na esfera de
liberdade dos indivíduos. Contudo, Grimm (2006) esclarece que a proteção negativa dos
direitos fundamentais demanda custos e despesas, ou seja, tem um preço. Isto porque
direitos fundamentais de primeira dimensão nem sempre podem ser defendidos de
maneira natural pelos particulares, necessitando, assim, que o Estado efetue prestações
prévias de caráter público.
Portanto, a igualdade e a liberdade segundo a ótica liberal, somente poderá ser
compreendida considerando o contexto do papel do liberalismo na transição da ordem
econômico-social feudal para o capitalismo, representando uma nova ideologia que
trouxe justificação racional às novas relações sociais estabelecidas em prol da nova
classe (burguesa). (LESBAUPIN, 1984, p. 41).
O conceito de liberdade igual não pode se tornar efetivo com independência das
condições reais de utilização da liberdade. Dessa forma, os direitos fundamentais
entendidos de maneira negativa apenas estabelecem liberdade formalmente igual, visto
que em situações de desequilibro material, a liberdade formal se transforma em direito
do mais forte. (GRIMM, 2006, p. 162-163).
Diante da necessidade de uma maior atuação estatal, decorrente da constatação
de que não bastavam apenas igualdades e liberdades formais se não fossem efetivados
tais direitos, surgiram os direitos de segunda dimensão, representados pelos direitos
sociais, culturais, econômicos, os quais visam garantir uma igualdade material.
Verifica-se que os direitos fundamentais surgiram ligados à ideia do Estado
Liberal, sendo que com a transposição para o Estado Social, os direitos fundamentais
deixaram de ser representados apenas por direitos de liberdades, segurança e
propriedade, para alcançar conotações sociais e econômicas, diante das novas
necessidades oriundas do processo de industrialização e seus reflexos.

683
Conforme exposto, os direitos humanos possuem origem liberal, razão pela qual
foi atribuída primazia aos direitos individuais, em especial, ao direito de propriedade.
Para Lesbaupin (1984), mesmo com a expansão de direitos, através do acréscimo dos
direitos sociais e econômicos, tais direitos ficaram subordinados aos individuais.
Assim, a desigualdade social é implicitamente admitida, a
condição de cidadania de segunda classe é introduzida, aparece
a separação entre os que poderão usufruir dos direitos e os que
não terão acesso a eles. A parte da sociedade que não tem acesso
à propriedade não tem condição de participar dos direitos
declarados a não ser de forma subordinada. Os direitos
propostos pelo liberalismo clássico são universais em sua
formulação, mas esta universalidade é abstrata, na medida em
que os direitos são realmente particulares. (LESBAUPIN, 1984,
p. 164-165).
Posteriormente, surgiu a terceira dimensão, representada pela necessidade de
proteção coletiva, sendo que os direitos de terceira dimensão são os vinculados à
fraternidade e à solidariedade, destacando-se o direito ao meio ambiente e à
autodeterminação dos povos.
Atualmente, Bonavides (2007) menciona uma quarta dimensão que seria
resultante da globalização dos direitos fundamentais, nascendo, assim, os direitos à
democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo.
Evidencia-se, portanto, que as dimensões dos direitos fundamentais refletem o
processo gradual de reconhecimento de tais direitos, de forma dinâmica e dialética.
Cabe ressaltar que o avanço no reconhecimento dos direitos fundamentais não decorreu
de meras concessões do Estado, tendo sido resultado dos movimentos sociais que
reivindicaram o reconhecimento estatal de tais direitos.
No caso do Brasil, a Constituição Federal de 1988 consolidou uma ruptura com
o regime de ditadura militar que vigorou entre os anos de 1964 a 1985. Inaugurou-se,
assim, uma nova topografia constitucional, ao assumir um novo ponto de partida,
revelando uma mudança paradigmática. “Isto é, de um Direito inspirado pela ótica do
Estado, radicado nos deveres dos súditos, transita-se a um Direito inspirado pela ótica
da cidadania, radicado nos direitos dos cidadãos.” (PIOVESAN, 2012, p. 90).

Cabe ressaltar que a democracia representativa está prevista no art. 1º, parágrafo
único, da Constituição Federal de 1988, no sentido de que “todo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
Constituição”. Além disso, há várias normas no corpo da Constituição que estabelecem
outras modalidades de instrumentos democráticos. 348

348
Dentre outros, a Constituição Federal de 1988 estabelece os seguintes instrumentos democráticos:
previsão do plebiscito, referendo e iniciativa popular como modalidades de exercício da soberania
popular (art. 14); estabelecimento da cooperação das associações representativas no planejamento
municipal, bem como previsão de que através da iniciativa popular poderão ser elaborados projetos de lei
de interesse específico do Município, da cidade ou de bairro, através de manifestação de pelo menos 5%
do eleitorado (art. 29, incisos XII e XIII); direito de qualquer contribuinte examinar e fiscalização as

684
Depreende-se que o problema não é ausência de topografia jurídica das normas
vinculadas à democracia. Sendo assim, a reflexão deve considerar o plano material, pois
os direitos humanos e a democracia ainda estão em processo de construção, conforme
será demonstrado nas próximas linhas.
3. Desenvolvimento econômico versus desenvolvimento social
O Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas
(PNUD) de 2014 indica que o Brasil está na 79ª posição no ranking anual de
desenvolvimento, medido pelo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Porém,
outro estudo do PNUD (2013) que trata a questão da desigualdade, demonstra que o
Brasil ainda é um país muito desigual.
É cediço que a análise dos dados empíricos sobre a questão democrática não
pode utilizar critérios meramente quantitativos, caso contrário, haverá uma percepção
distorcida da realidade, pois qualquer reflexão acerca da realidade deve considerar todos
os fatores que permeiam o caso.
Sen (2000) ensina que o desenvolvimento não pode ser concebido através de
uma ótica restrita, seguindo apenas os indicadores resultantes do crescimento do
Produto Nacional Bruto (PNB). Ao contrário, o desenvolvimento deve ser analisado
segundo uma ótica que considera a expansão da liberdade humana.
O referido autor faz uma análise sobre o desenvolvimento, tendo como enfoque
as liberdades humanas, contrariando visões mais restritas de desenvolvimento. Isto
porque a análise acerca do desenvolvimento não deve ficar restrita ao campo
econômico, nem ao enfoque utilitarista, sendo constatado o encadeamento existente
entre diversos tipos de liberdades, como as disposições sociais e econômicas e os
direitos civis. (SEN, 2000, p. 17).
Dessa forma, Sen defende ser necessário reconhecer o papel das diferentes
formas de liberdades no combate aos males sociais, pois a condição de agente de cada
um estaria restrita e limitada pelas oportunidades sociais, políticas e econômicas, dentre
outras. (SEN, 2000, p. 09-10).

Contudo, o referido autor desconsidera a questão central que representa a raiz de


todos os males, qual seja: a raiz econômica (modo de produção capitalista) como
causadora de privação dos diversos tipos de liberdades.

Eis o ponto central para a análise do objeto deste artigo: O estudo da questão
democrática pode ignorar as bases materiais (modo de produção) que a sociedade
capitalista está inserida? O capitalismo permite a plena expansão das liberdades dos

contas municipais (art. 31, § 3.o); direito do usuário, na forma da lei, de participação na administração
direta e indireta (art. 37, § 3.o); direito de qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato
denunciar irregularidades ou ilegalidade perante o Tribunal de Contas (art. 74, § 2.o); previsão do caráter
democrático da gestão da Seguridade Social (art. 194, VII); consagração da participação da comunidade
como diretriz do Sistema Único de Saúde (SUS) (arts. 197, 198, III e 227, § 1.o); participação popular no
controle das ações de assistência social (art. 204, II); gestão democrática do ensino público (arts. 205 e
206, VI); promoção e proteção do patrimônio cultural (art. 216, § 1.o).

685
cidadãos, necessárias para garantir sua condição de agente capaz de exercer uma
cidadania ativa?
Com a finalidade de responder às referidas perguntas, será apresentada uma
reflexão sobre a viabilidade da democracia dentro do contexto capitalista, sem ter a
pretensão de esgotar o tema.
4. Reflexões sobre a viabilidade da democracia no contexto capitalista
4.1 Concepções acerca da democracia
O posicionamento sobre a questão da possibilidade da democracia no contexto
capitalista dependerá do tipo de concepção sobre o termo democracia, razão pela qual
será feita breve exposição preliminar sobre o assunto.
Bobbio (1998) ensina que existem três tradições históricas. A primeira,
conhecida como a clássica teoria aristotélica das três formas de Governo, considera a
democracia como “Governo do povo, de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles
que gozam dos direitos de cidadania, se distingue da monarquia, como Governo de um
só, e da aristocracia, como Governo de poucos” (BOBBIO, 1998, p. 319).
A segunda teoria seria a medieval que busca apoio na soberania popular,
existindo a “contraposição de uma concepção ascendente a uma concepção descendente
da soberania conforme o poder supremo deriva do povo e se torna representativo ou
deriva do príncipe e se transmite por delegação do superior para o inferior” (BOBBIO,
1998, p. 319).
A terceira e última teoria, segundo Bobbio (1998), seria a teoria moderna,
também conhecida como a teoria de Maquiavel, tendo origem com o Estado moderno,
seguindo o raciocínio de que existem duas formas históricas de Governo: a monarquia e
a república.
Wood (2007) considera incompatível o capitalismo com a democracia, desde
que o termo democracia seja concebido em sua interpretação literal (poder popular; o
governo do povo). Tal tese resulta do entendimento segundo o qual não é possível um
capitalismo governado pelo poder popular, considerando que o capitalismo resulta na
sujeição das condições básicas de vida aos ditames da acumulação capitalista, bem
como às leis do mercado.
Existem, ainda, outras concepções acerca da democracia, vinculando-a com o
constitucionalismo, através das liberdades civis, limitando, assim, a atuação estatal.
Nesse sentido, a democracia seria definida segundo a perspectiva de limitação do poder
arbitrário do Estado, com a finalidade de proteger o indivíduo e a “sociedade civil” das
intervenções estatais. Ocorre que a distribuição do poder popular, ou melhor, a
distribuição de poder entre classes, está ausente em tal concepção democrática.
(WOOD, 2007, p. 420)
Dito de outra forma, a referida concepção democrática não considera o poder do
povo, ao contrário, limita-se a considerar seus direitos passivos, através da existência de
proteções individuais contra a intervenção estatal. Wood explica que “esta concepção de
democracia focaliza meramente o poder político, abstraindo-o das relações sociais ao
mesmo tempo em que apela a um tipo de cidadania passiva na qual o cidadão é
efetivamente despolitizado.” (WOOD, 2007, p. 420).

686
Ao analisar a democracia segunda a perspectiva do socialismo, Harnecker
(2010) menciona que o grande desafio é construir um sistema de representação
democrática que possa expressar os interesses reais da classe trabalhadora e da
sociedade em geral.
As classes populares exigem a concretização dos direitos humanos, capaz de
garantir igualdade social, bem como uma maior participação na condução política, razão
pela qual Lesbaupin (1984) defende que permitir o exercício somente da democracia
formal, não representa o pleno respeito aos direitos humanos.
Quando se fala em exigir direitos, necessário demonstrar a diferença entre
enfrentamento direto entre classes e práticas revolucionárias. Sobre a questão, Santos
(1991) ensina que as lutas entre classes assumem perfil de enfrentamento direto quando
a classe dominada aceita o contexto imposto pela classe dominante. Logo, ao aceitar a
situação existente, é feito um enfrentamento em busca de melhores condições salarias,
por exemplo. Porém, isto não implica em consequências revolucionárias.
Em razão do exposto, não deve ser ignorada a chamada democracia formal, a
despeito de sua patente crise. Contudo, não é coerente uma interpretação pífia no
sentido de conceber a emancipação humana restrita à identificação da democracia
formal com o capitalismo.
4.2 Democracia e capitalismo: interesses conciliáveis?
Sabe-se que as capacidades individuais estão limitadas pelo modo de produção
vigente. Nesse sentido, a condição de agente capaz de participar ativamente da
democracia, seja na modalidade representativa, seja na participativa, está limitada pela
distribuição desigual de oportunidades, motivo pelo qual o estudo da questão
democrática não pode ignorar as bases materiais sob as quais a sociedade está inserida.
A questão problemática reside no fato de o sistema capitalista ter como traço
característico justamente negar aos cidadãos o acesso igualitário aos direitos
fundamentais. Não há como considerar igualdade de direitos quando a sociedade está
baseada em classes opostas, exercendo o capitalista seu poder de se apropriar da mais-
valia através do trabalho daqueles que apenas dispõe de sua força de trabalho.
Com lucidez, Lesbaupin (1984) ressalta que o capitalismo admite a concessão de
direitos sociais somente até o limite que não represente ameaça ao direito de
propriedade, ou melhor, ao direito de acumulação.
A seguir, serão apresentadas as perspectivas de Ellen Wood e David Held sobre
a questão.
4.2.1 Perspectiva de Ellen Wood
O capitalismo tem como característica o estabelecimento de relações de poder
voltadas aos interesses privados, originando, assim, uma distribuição desigual de
oportunidades, as quais geram efeitos na possibilidade de participação social dos
cidadãos que sequer possuem condições dignas de vida. Em razão disso, Wood
menciona a necessidade de cautela ao utilizar o termo sociedade civil de forma
abrangente, tornando a lógica totalizadora e o poder de coerção próprio do capitalismo
invisível, pois “sociedade civil pode ser entendida como um código ou máscara para o
capitalismo, e o mercado pode se juntar a outros bens menos ambíguos, como as

687
liberdades políticas e intelectuais, como um objetivo desejável acima de qualquer
dúvida”. (WOOD, 2006, p. 210).
Dessa forma, Wood (2006) ensina que, ao reduzir o sistema social do
capitalismo a um conjunto de instituições da sociedade civil, fragmentando a sociedade,
há a transmissão de uma falsa ideia de inexistência de um poder superior. É nesse
sentido que há uma estratégia característica do argumento da “sociedade civil” que
defende que o marxismo é reducionista ou economicista, na medida em que reduziria a
sociedade ao seu modo de produção (economia capitalista).
Wood (2006) ensina que os argumentos em prol da sociedade civil, ao negar a
lógica totalizante do capitalismo, ignoram a questão histórica e empírica dos efeitos
gerados pelas relações estabelecidas no seio capitalista, reduzindo o capitalismo ao peso
de “outras” instituições.
Para negar a lógica totalizante do capitalismo seria necessário
demonstrar convincentemente que essas outras esferas e
identidades não vêm – pelo menos de nenhuma forma
significativa – dentro da força determinativa do capitalismo, seu
sistema de relações sociais de propriedade, seus imperativos
expansionistas, seu impulso de acumulação, a transformação de
toda vida social em mercadorias, a criação do mercado como
uma necessidade, um compulsivo mecanismo de competição e
de “crescimento” autosustentado etc. (WOOD, 2006, p. 211-
212).
Segundo Wood (2006) nas sociedades capitalistas há a separação da condição
cívica da situação de classe, uma vez que o direito de cidadania não depende da posição
socioeconômica. Por outro lado, a igualdade cívica não afeta diretamente a desigualdade
de classe, logo, a democracia formal não altera a exploração de classe existente.
A referida autora faz um contraponto entre a democracia capitalista moderna e a
antiga democracia:
Na democracia capitalista moderna, a desigualdade e a
exploração socioeconômicas coexistem com a liberdade e a
igualdade cívicas. Os produtores primários não são
juridicamente dependentes nem destituídos de direitos políticos.
Na antiga democracia, a identidade cívica também era
dissociada do status socioeconômico, e nela a igualdade política
também coexistia com a desigualdade de classe. Mas permanece
a diferença fundamental. Na sociedade capitalista, os produtores
primários são sujeitos a pressões econômicas
independentemente de sua condição política. O poder do
capitalista de se apropriar da mais-valia dos trabalhadores não
depende de privilégio jurídico nem de condição cívica, mas do
fato de os trabalhadores não possuírem propriedade, o que os
obriga a trocar sua força de trabalho por um salário para ter
acesso aos meios de trabalho e de subsistência. Os trabalhadores
estão sujeitos tanto ao poder do capital quanto aos imperativos

688
de competição e da maximização dos lucros. (WOOD, 2006, p.
173).
Wood (2011) ressalta que alguns sustentam a necessidade de transferir a questão
do terreno da luta de classes para o âmbito de bens extraeconômicos (emancipação de
gênero, igualdade racional, paz, saúde ecológica, cidadania democrática, etc). Contudo,
a referida autora menciona que o capitalismo tem uma tendência a desconsiderar as
desigualdades extraeconômicas, visto que as lutas concebidas no referido âmbito não
apresentam perigo ao capitalismo, embora a probabilidade de êxito seja pequena, caso
permaneçam isoladas da luta anticapitalista. Noutras palavras, para Wood (2001),
mesmo que o capitalismo não seja capaz de garantir a emancipação da opressão feita no
âmbito extraeconômico, o alcance de tal emancipação também não poderá garantir a
erradicação do capitalismo.
Mas, na realidade, a economia do capitalismo invadiu e estreitou
o domínio extraeconômico. O capital assumiu o controle privado
sobre questões que já pertenceram ao domínio público, ao
mesmo tempo em que transferia para o Estado várias
responsabilidades sociais e políticas. Mesmo as áreas da vida
social que estão fora das esferas de produção e apropriação, e
fora do alcance imediato do controle capitalista, são sujeitas aos
imperativos do mercado e à transformação dos bens
extraeconômicos. Praticamente não existe aspecto da vida na
sociedade capitalista que não seja profundamente determinado
pela lógica de mercado (WOOD, 2011, p. 239).

A lição que talvez sejamos forçados a aprender de nossas atuais condições


econômicas e política é que um capitalismo humano, “social” e verdadeiramente
democrático e igualitário é mais irreal e utópico que o socialismo. (WOOD, 2006, p.
250).
4.2.2 Perspectiva de David Held
Ao tratar a questão democrática, Held (1997) entende ser necessária uma
reflexão sobre qual tipo de autonomia os indivíduos possuem. Nesse sentido, o referido
autor trabalha com o princípio da autonomia, conceituado da seguinte forma:
As pessoas deveriam gozar de direitos iguais (e,
consequentemente, de obrigações iguais) na estrutura que gera e
limita as oportunidades a elas disponíveis; isto é, elas deveriam
ser livres e iguais na determinação das condições de suas
próprias vidas, até onde elas não utilizem esta estrutura para
negar o direito de outras. (HELD, 1997, p. 69).
O referido autor questiona como “um sistema de poder político, econômico e
social que gera assimetrias sistemáticas de oportunidade é compatível com o princípio
da autonomia?” (HELD, 1997, p. 69).
Para responder à indagação mencionada, o autor trabalha com uma categoria
denominada nautonomia, que consiste na “produção e distribuição assimétrica de

689
oportunidades de vida que limitam e corroem as possibilidades de participação política.”
(HELD, 1997, p. 70).
Coaduno com o pensamento de Held (1997), visto que as pessoas que estão
situadas em um padrão assimétrico de oportunidades, socialmente condicionado, como
o acesso à renda, às oportunidades educacionais, etc, não possuem condições de
possibilidade para exercer uma cidadania ativa plena.
Nesse sentido, Held sustenta que os direitos civis e políticos não são capazes de
viabilizar, por si só, a autonomia social, econômica e política. Dessa forma, o referido
autor defende que “feixes de direitos que são pertinentes a cada uma das esferas de
poder podem ser vistos como parte integrante do processo democrático. Se qualquer um
desses feixes estiver ausente, o processo democrático será unilateral, incompleto e
distorcido” (HELD, 1997, p. 75).
Held (1997) trabalha com sete feixes de diretos que corresponderiam aos locais
de poder-chave, os quais seriam condições de possibilidade para a participação dos
cidadãos: direito à saúde, direitos sociais, direitos culturais, direitos civis, direitos
econômicos, direitos pacíficos e direitos políticos.
Necessário ressaltar que Held (1999) não descarta a importância do conflito de
classe como instrumento para o desenvolvimento dos direitos dos cidadãos, porém,
sustenta que a análise da cidadania requer o exame das conquistas dos grupos, classes e
movimento em prol de uma maior autonomia, em contraste com as formas de
hierarquia, estratificação e opressão política.
Se cidadania implica participação na comunidade, e se
participação na comunidade implica formas de participação
social, então é infrutífero conceber que a cidadania está
primariamente relacionada com a classe ou as relações
capitalistas de produção. A cidadania sofre a intervenção das
pessoas na comunidade em que vivem; e a elas se lhes nega a
cidadania, em função de critérios de gênero, raça e idade, entre
outros. Analisar a cidadania como se fosse uma questão de
inclusão ou exclusão das classes sociais equivale a eclipsar uma
multiplicidade de dimensões da vida social que têm sido centrais
na luta por ela. (HELD, 1999, p. 215).
Para o referido autor, “o estudo da cidadania deve ocupar-se de todas as
dimensões que favorecem ou restringem a participação das pessoas na comunidade em
que vivem e a complexa pauta de relações e processos nacionais e internacionais que as
atravessam”. (HELD, 1999, p. 219).
Em suma, Held (1999) faz uma crítica à análise e avaliação dos direitos dos
cidadãos segundo a dimensão ideológica que considera as relações de classe em
primeiro plano, pois sustenta que são desconsideradas outras disputas que permeiam a
concepção moderna de Estado.
4.2.3 Dissonâncias entre as visões de Sen, Wood e Held
Amartya Sen (2000) adota uma perspectiva de desenvolvimento que requer a
expansão das liberdades que possuem relação entre si. Todavia, o referido autor

690
desconsidera a questão central que representa a raiz de todos os males, qual seja: a raiz
econômica como causadora de privação dos diversos tipos de liberdades. Em
contrapartida, Wood (2011) defende que as bases materiais da sociedade atual revelam a
existência de um modo de produção econômico que gera e acentua as desigualdades
sociais.
Held (1999), por sua vez, não entende como coerente a análise e avaliação dos
direitos dos cidadãos segundo a dimensão ideológica que considera as relações de classe
em primeiro plano, pois sustenta que são desconsideradas outras disputas que permeiam
a concepção moderna de Estado.
Em sentido oposto, Wood considera primordial analisar a luta de classes,
alertando para o seguinte: “se o efeito do capitalismo é criar uma categoria puramente
econômica de classe, ele também cria a aparência de que classe é apenas uma categoria
econômica, e de que existe um vasto mundo além da ‘economia’ onde o ditame de
classe já não é válido” (WOOD, 2011, p. 241).
O capitalismo submete a vida social às exigências do mercado, através da
mercantilização da vida em seus múltiplos aspectos, razão pela qual, segundo Wood
(2011), não prosperam as aspirações vinculadas à autonomia, à liberdade de escolha e
ao autogoverno democrático. 349
Diante do exposto, coaduno com o pensamento de Wood, visto que a questão
democrática deve considerar as bases materiais da sociedade atual, com todas suas
respectivas mediações, considerando a lógica totalizante do capitalismo.
Dentro desse contexto, fica clara a existência de interesses inconciliáveis, na
medida em que a grande maioria fica sujeita a condições desumanas, em prol de uma
minoria que detém os meios de produção.
5. Considerações finais
O capitalismo tem como objetivo gerar cada vez mais acumulação de capital,
ocorrendo, por conseguinte, a sujeição das condições de vida dos cidadãos aos ditames
de tal regime. Tal situação resulta em uma clara separação de interesses: de um lado, o
interesse privado de acumulação; de outro, os interesses sociais.

Conceber democracia apenas na perspectiva de limitação do poder estatal, sem


que ocorra, de fato, melhor distribuição de poderes entre as classes, apenas servirá para
eternizar a cidadania meramente passiva.

Portanto, a mera existência de igualdade formal, sem que haja uma efetiva
concretização no plano material, nada mais é do que uma abstração, pois a igualdade de
direito não modifica as diferenças de oportunidades que são socialmente condicionadas,
em decorrência do modo de produção existente.

349
Recentemente, após a reeleição da Presidenta Dilma, a Câmara dos Deputados no dia 28.10.14, através
do Decreto Legislativo n. 1491/14, sustou a Política Nacional de Participação Nacional, instituída através
do Decreto n. 8.243, de 23 de maio de 2014. O caso ainda aguarda apreciação do Senado Federal.

691
Não há que se desconsiderar a importância da democracia formal, porém, é
necessário expandir as liberdades reais dos cidadãos, para permitir uma maior
participação, não somente na democracia representativa, mas também na democracia
participativa, através da decisão e controle sobre o direcionamento das políticas públicas
capazes de gerar maior inclusão social.
A partir das referências bibliográficas citadas e das respectivas dissonâncias
existentes, depreende-se que não merecem prosperar concepções que concebem a
questão da luta de classe apenas como uma categoria econômica, desconsiderando a
lógica totalizante do capitalismo que determina e condiciona as relações sociais,
impedindo, assim, que as pessoas possam gozar de direitos iguais, no sentido de ter as
mesmas oportunidades.
Diante do exposto, é patente o fato de o capitalismo ter como um dos seus
efeitos nefastos a produção assimétrica de oportunidades, através do privilégio
concedido a uma minoria. Em contrapartida, a democracia representa a necessidade e
interesse de todos, ou seja, existe uma clara colisão de interesses inconciliáveis.
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http://bibliotecavitual.clacso.org.ar/ar/libros/campus/marxispt/cap. 18.doc. Acesso em
10 de julho de 2014. p. 417-431.

693
El poder político de las Finanzas: crisis democrática y social
Luis Enrique Casais Padilla 350·

Resumen

La apertura financiera, la desregulación bancaria y la sumisión de los Estados nación a


los Organismos Financieros Internacionales han sido los tres pilares principales de
valorización de los capitales internacionales en las últimas décadas. En este proceso, las
finanzas han ido ganado espacio político, influyendo cada vez más en las decisiones de
los Estados soberanos elegidos democráticamente. Así, se imponen políticas de
privatización y austeridad que amplían nuevos horizontes de valorización, mientras se
recortan los salarios y derechos de la mayoría de los trabajadores.
La ofensiva contra los asalariados y la expansión del sector financiero son dos caras de
la misma moneda: la caída en la tasa de ganancia, un problema con raíces profundas en
la evolución del capitalismo.
Palabras clave: Finanzas. Poder político. Crisis democrática. Crisis social

Abstract

Financial liberalization, bank deregulation and submission of nation States to


International Financial Organizations have been international capital valorization pillars
in recent decades. In this process, finance has been gaining political space increasingly
influencing decisions of democratically elected sovereign governments. Thus, imposed
privatization and austerity policies that expand mechanism of valorization while
workers wages and rights are cut.
Offensive against workers and financial sector expansion are two sides of same coin:
fall of profit rate, a problem with deep roots in capitalism evolution.
Keywords: Finance. Political power, Democratic crisis. Social crisis.
Introducción
La explosión y el desarrollo de la crisis ha generado grandes debates y la aparición de
un gran número de análisis desde distintas perspectivas teóricas. Sin ánimo de realizar
una evaluación sobre los diferentes paradigmas que interpretan el momento histórico
actual, son de destacar los aportes sobre la base de un examen crítico y marxista de las
causas y del carácter profundo de esta crisis capitalista. Para muchos de estos
intelectuales, se trata de una crisis del capitalismo global financiarizado, donde la
hipertrofia financiera jugó un papel decisivo, tanto en el estallido de la propia crisis
como en el crecimiento económico de las décadas previas.
El desarrollo descomunal de capitales ficticios de las últimas décadas, favorecido por la
desregulación de los mercados financieros, ha sido el mecanismo principal de

350 Professor visitante do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade


Federal do Espírito Santo (UFES). Av. Fernando Ferrari, 514, Campus Universitário de
Goiabeiras – Vitória –ES. CEP: 29.075-910. Brasil. enriquecasais@yahoo.es
· Este artigo tem sido possível graças à ajuda do Programa Coordenação de Aperfeiçoamento

de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

694
valorización de los capitales internacionales ante el agotamiento del modelo de
acumulación surgido tras la finalización de la II Guerra Mundial. En paralelo, a medida
que las finanzas se consolidaban como el método principal de valorización, se ha
desarrollado un proceso donde éstas han ido ganado espacio político, influyendo cada
vez más en las decisiones de los Estados soberanos elegidos democráticamente.
Por ‘finanzas’, entendemos: la fracción superior de la clase capitalista y las
instituciones financieras y agentes de su poder. (…) Por tanto, el concepto
finanzas tiene un significado más amplio que el del sector financiero. Las
finanzas son definidas como el sector superior de la burguesía y su
característica principal es la capacidad de controlar los mecanismos de las
instituciones económicas según sus intereses (DUMÉNIL y LEVY, 2007:132).
Este modelo de acumulación contradictorio estalla nuevamente en 2008, reflejado en la
quiebra de Lehman Brothers y la nacionalización de AIG por el gobierno de los Estados
Unidos de Norteamérica (EUA). Ante el temor a un tsunami financiero que se pudiera
desencadenar en un efecto dominó mundial de quiebras bancarias, o por motivos todavía
no aclarados, los bancos centrales de las principales economías inyectaron ingentes
cantidades de dinero público en las mayores entidades financieras transnacionales. Si
bien se consiguió evitar la quiebra del sistema a costa de socializar las pérdidas, las
acciones conjuntas de los bancos centrales se han mostrado inoperantes para solucionar
la crisis, ya que sólo postergan en el tiempo el verdadero problema de crisis estructural
y capitales ficticios acumulados en las economías capitalistas.
El ascenso al poder político de las finanzas ha sido espectacular en las últimas décadas,
donde hoy en día es un verdadero poder en la sombra que influye políticamente en los
principales centros del poder mundiales. Como ejemplo, la Reserva Federal de Estados
Unidos (Fed, por sus siglas en inglés), que es un banco privado, 351 actuó a espaldas del
Congreso Federal para ayudar a un nutrido grupo de bancos privados, lo que era ilegal,
y después consiguió influir en los legisladores para que se aprueben los programas
Quantitative Easing 352 que han rescatado a la banca privada Norteatlántica en un
escandaloso proceso de socialización de pérdidas y privatización de beneficios.
Para el caso de la Unión Europea (UE), este proceso se refleja en el poder político sin
precedentes que hoy posee la llamada Troika – Comisión Europea (CE), Banco Central
Europeo (BCE) y Fondo Monetario Internacional (FMI)- todos ellos organismos sin
ninguna representatividad democrática, pero que deciden las políticas fundamentales,
imponiendo a los gobiernos normas y regulaciones favorecedoras a los intereses de los
capitales, que se encuentran en clara contradicción con los programas electorales de los
gobiernos elegidos democráticamente. Estas políticas están permitiendo al capital
superar una barrera histórica en su proceso de acumulación en Europa: la privatización
y desmantelamiento de los Estados del bienestar surgidos después de la II GM. Por
tanto, estamos asistiendo a expolio económico apoyado por un secuestro de la
democracia en la UE.

351 Posee la concesión de emisión de moneda (el dólar de Estados Unidos) del gobierno
estadounidense, entre otras funciones.
352 La flexibilización cuantitativa (en inglés Quantitative easing,) es una herramienta no

convencional de política monetaria utilizada por algunos bancos centrales para aumentar la
oferta de dinero, aumentando el exceso de reservas del sistema bancario.

695
El artículo se estructura en tres apartados principales y unas conclusiones. El primero
analiza el papel de las finanzas y los capitales ficticios en la naturaleza de esta crisis.
Seguidamente, se muestra el proceso de concentración del poder político alcanzado por
las finanzas, reflejado en las decisiones adoptadas por los principales Estados nación del
planeta; donde por una parte realizan un salvataje masivo de la quebrada banca mundial,
en un escandaloso proceso de socialización de pérdidas, y por otra, aplican medidas de
ajuste y regresión social que están provocando una profunda crisis social, especialmente
en Europa. El tercer apartado desarrolla los mecanismos mediante los cuales los
capitales están socavando los salarios y derechos de los trabajadores en el mundo, en
una lucha de clases que, parafraseando al millonario estadounidense Warren Buffet, “los
trabajadores vamos claramente perdiendo”.

1. Las finanzas y los capitales ficticios en la naturaleza de la crisis


Plantear el papel de las finanzas en la fase actual del capitalismo –y, por tanto, en la
naturaleza de la crisis- obliga a tener una perspectiva histórica. A principios del siglo
XX surgieron diferentes análisis que profundizaban sobre el capital financiero, la
internacionalización de capitales, el papel del Estado y de la crisis. Lenin enfatizaba
además la descomposición del capitalismo, de la cual destacaba la irracionalidad, el
parasitismo y el militarismo, planteando al imperialismo como fase superior, la última,
en una crisis general histórica. Asimismo lo caracterizaba como un Capitalismo
Monopolista de Estado, en donde los grandes monopolios, el capital financiero y el
Estado se entrelazaban en un mecanismo único de Acumulación (LENIN, 2004).
La Crisis del 29, el fascismo y la II Guerra Mundial mostraron ese funcionamiento del
proceso de acumulación capitalista que requirió de la guerra y la destrucción para
restaurar la tasa de ganancia.
La reconstrucción europea de la postguerra fue impulsada por el imperialismo
estadounidense siguiendo un modelo donde la participación de los Estados tuvo un rol
central y los trabajadores alcanzaron cambios sustanciales en sus condiciones de vida y
de trabajo. Desde la teoría económica se le caracterizó como Keynesiasmo o Estado del
bienestar y desde el marxismo se profundizaba en el funcionamiento del imperialismo,
del capital trasnacional, del Estado, del capitalismo monopolista de Estado y de los
mecanismos de regulación.
A partir de este nuevo orden, los mercados laborales se organizaron dentro del sistema
de Estado-nación. Por consiguiente, independientes y aislados de la competencia
internacional que otros mercados laborales más favorables a los intereses del capital
pudieran ofertar.
Durante este periodo, los Estados-nación pudieron diseñar sus propias políticas
y éstas estuvieron en mayor o menor medida influenciadas por los sindicatos y
partidos políticos de izquierda. Este orden social relativamente favorable al
desarrollo económico y a mejorar las condiciones de vida de los trabajadores se
mantuvo hasta que se liberaron las restricciones internacionales impuestas a los
flujos comerciales y de capital (CASAIS, 2013:2).
Este modelo de posguerra entra en fase de agotamiento desde finales de los años

696
sesenta. La respuesta del capital a la crisis estructural de largo plazo del capitalismo
consiste en cambios sustanciales en las políticas a aplicar, de manera que se pueda
restaurar las tasas de acumulación y ganancia. Así, se producen una serie de cambios
centrales: una profunda reestructuración de la producción y una nueva división
internacional del trabajo; redefinición de las funciones del Estado; transformaciones
financieras y cambios de los mecanismos de regulación con la liberalización y la
formación de áreas supranacionales para la acumulación y reproducción del capital
(MORALES, 2012).
La llamada “estrategia neoliberal” es, en definitiva, el modelo bajo el que los capitales
internacionales se organizaron para tratar de revertir una situación que no estaba
favoreciendo sus intereses, al menos en cuanto a las perspectivas de apropiación de la
plusvalía generada. Así, se articularon tres factores que permitieron al capital
internacional mejorar sus tasas de ganancia: 1) La flexibilización laboral; 2) La
liberalización comercial y aduanera (globalización comercial) y 3) La desregulación
financiera (globalización financiera) (CASAIS, 2013).
En este contexto, la economía capitalista comienza ser denominada por muchos autores
como la de la etapa de la financiarización. Ésta se presenta no sólo por la dinámica
contrapuesta del sector financiero frente a la economía real, sino porque las ganancias
de las grandes empresas dependen más de la renta financiera que de las utilidades
productivas.
Nuestra tesis es que la globalización, con todas sus características, se distingue
de otros períodos de la historia del capitalismo por el dominio del capital
especulativo parasitario (forma particular más concreta del capital a interés)
sobre el capital productivo. En esta fase, el capital industrial se convierte en
capital especulativo, y su lógica es totalmente conforme a la especulación y
dominada por el parasitismo. Por lo tanto, es la lógica especulativa del capital en
su circulación y reproducción en el espacio internacional que define esta nueva
etapa. Sin lugar a dudas, este fenómeno está asociado con la ruptura del patrón
monetario internacional desde los años 70 (CARCANHOLO y NAKATAMI,
1999: 285).
En palabras de Corazza (2003):
Esta financiarización de la economía se expresa de diversas maneras: como
valoración financiera superior al crecimiento de la producción real; como
competencia y macro-estructura financiera, que implica y subordina la dinámica
de la acumulación real; como proceso de integración y globalización de los
mercados financieros, que están por encima de fronteras y autoridades
nacionales, en la medida en que estos mercados perdieron sus referencias
espaciales, asumiendo la forma de redes articuladas de flujos financieros
"desterritorializados" que operan continuamente en tiempo real; y, finalmente,
las propias crisis financieras se han convertido en autónomas y se convierten en
las causas de las crisis económicas. De hecho, es como si estuviéramos

697
efectivamente bajo el control de una riqueza abstracta, de carácter monetario,
financiero y ficticio. (CORAZZA, 2003: 1-2) 353
Así, uno de los aspectos centrales a analizar en el estudio de la etapa capitalista actual es
el que se da entre la producción y la apropiación del excedente capitalista. La plusvalía
obtenida de la explotación obrera es la fuente de la riqueza, pero una vez generada en el
ámbito de la producción hay una disputa por su apropiación. En palabras de Chesnais:
“Lo que ha entrado en crisis no es la acumulación del capital, sino la forma particular de
reparto de riqueza que se ha adoptado desde los años 70 del siglo pasado, es decir el
neoliberalismo o capitalismo neoliberal” (CHESNAIS ET AL., 2012). Así, el creciente
aumento de la deuda y la expansión de los mecanismos (en su origen) no es expresión
de un capital ficticio, sino que se trata de plusvalía originada en la esfera de la
producción que en lugar de ser reinvertida es girada al campo de lo financiero.
La separación entre propiedad de capital y su función en la producción es posible por la
existencia de un mercado específico que permite la creación de activos financieros sin
contrapartida real, permitiendo que acciones, obligaciones, créditos bancarios y títulos
del Estado circulen como mercancías (GILL, 2002). En esta separación se sintetiza el
concepto de “capital ficticio”.
Su existencia se reviste en un carácter ilusorio, no es capital, sólo representa
derechos sobre ingresos futuros. Duplican el capital que representan al poder ser
vendidos en mercados donde se rentabilizarán y en donde poseen un precio que
se conforma y evoluciona ajeno a la situación del capital real al que están
vinculados, perdiéndose, “hasta sus últimos rastros, toda conexión con el
proceso real de valorización del capital como un autómata que se valoriza por sí
solo (MARX, 1977: 601).
Husson (2010) afirma que no hay una huida de la rentabilidad al sistema financiero,
sino una punción y un endurecimiento de la competencia, que afectan a la producción y
a la acumulación. El parasitismo de las finanzas, “explica el débil dinamismo de la
inversión por la punción ejercida sobre el capital global” que trae como resultado el
rasgo más impresionante de capitalismo financiarizado: la recuperación de la tasas de
ganancias sin restablecimiento de la acumulación. El aumento de la tasa de explotación
permite la recuperación de la tasa de ganancia, sin crear nuevos lugares de acumulación
en la misma proporción. La financiarización establece una competencia exacerbada,
necesaria para mantener la presión al alza de la explotación, y establece, al mismo
tiempo, una forma de reparto adecuada a las nuevas condiciones de reproducción del
capital (bajas tasas de acumulación), sirviéndose para ello, del giro neoliberal de las
políticas que asegura que el capital triunfe sobre el trabajo.

2. El poder político de las finanzas


Durante 2008, en pleno apogeo de la fase actual de la crisis mundial, los dirigentes de
los Estados más poderosos proponían terminar con los paraísos fiscales, controlar los
fondos de alto riesgo (hedge funds) y sancionar los abusos de los especuladores

353La traducción del portugués ha sido realizada por el autor del artículo, por lo que pudieran
existir diferencias si el artículo de referencia fuera traducido al español con posterioridad.

698
causantes de la crisis. José Manuel Durão Barroso, Presidente de la Comisión Europea
(CE), declaraba: “Las autoridades políticas no toleraremos nunca más que los
especuladores vuelvan a levantar cabeza y nos arrastren a la situación anterior”
(RAMONET, 2010: 1). Y sin embargo, no sólo hemos vuelto a la situación anterior,
sino que, de nuevo, los mercados y los especuladores son los principales actores y
beneficiarios de la crisis.
La política de la disciplina fiscal, de la reducción del déficit, la deuda, el tamaño del
gobierno y del sector público, que nos gobernó antes de la crisis, se esgrime ahora como
programa para salir de ella. Se trata, en definitiva, de reducir el Estado del bienestar,
recortar los derechos laborales, debilitar a los sindicatos, reducir los salarios y aumentar
la explotación para, en definitiva, incrementar los beneficios de las clases empresariales.
Desde hace más de cuatro años, las autoridades que realmente gobiernan en la Unión
Económica y Monetaria Europea (UEM); es decir, la Comisión Europea, el Banco
Central Europeo (BCE), y el Fondo Monetario Internacional (FMI),- la hoy llamada
Troika-, imponen al resto de los países unas medidas de ajuste severo con la
justificación de que son imprescindibles para salir de la crisis. Pero sus efectos, lejos de
ser los que predican quienes las proponen y llevan cabo, son justamente los contrarios.
Es una evidencia clamorosa que la situación de países como Grecia, España, Portugal o
Irlanda, que han sido “rescatados” se encuentran mucho peor que antes de aplicar el
‘recetario neoliberal’. Y ninguna de las economías en donde se han aplicado las
medidas de austeridad y ajuste para salir de la crisis, han salido de ella. La mayoría,
incluso han vuelto a entrar en recesión, mientras sus poblaciones trabajadoras viven una
espiral descendente con menos ingresos directos, servicios públicos más deteriorados y
peores expectativas vitales a medio y largo plazo.

El mensaje es: “Ha llegado el momento de tomar ‘decisiones valientes’ para salir de la
crisis”. Que significa realmente: “Hay que seguir recortando los gastos sociales,
educativos y de investigación, disminuir las partidas sanitarias, paralizar la inversión
pública, congelar las pensiones, rebajar el sueldo de los funcionarios, abaratar el
despido, descafeinar la negociación colectiva, aumentar la edad de jubilación, destinar
menos dinero a las personas dependientes y subir los impuestos. Todo ello, para reducir
el déficit público como exige Europa y dar confianza a los mercados”. Este es el
discurso que las instituciones y los medios de comunicación nos quieren imponer bajo
la máxima de que es la “única solución posible para salir de la crisis”.

Los miembros de la Troika, alentados principalmente por la banca, actúan como centros
de poder externos a la región. Toman decisiones que los Estados de la Unión deben
acatar en sus estrategias y programas de gobierno. El colapso de las economías griega o
española, por poner de ejemplo, con más del 26 % de desempleo y una débil demanda
interna, precisan de un estímulo económico que sólo los Estados pueden ofrecer. Sin
embargo, las imposiciones caminan en la dirección contraria; se exige la venta a precio
de saldo de los bienes y servicios públicos a los ‘inversores privados’ y la máxima
reducción del gasto público, excepto para el pago de los intereses de la deuda.
El deterioro, cuando no supresión, de los derechos sociales adquiridos tras años de
luchas obreras y la privatización de activos públicos, persigue el objetivo de maximizar
las plusvalías de los capitales internacionales a costa de profundizar en la precarización

699
de las condiciones de vida de la mayoría de los trabajadores y ciudadanos de la Unión
Europea.
Las privatizaciones forzadas a las que están siendo sometidos los gobiernos de los
países miembros de la Unión, están suponiendo enormes palancas ampliadas de
valorización para las empresas privadas, que están adquiriendo los bienes públicos
rentables a precios excepcionalmente bajos. Y mientras esto está ocurriendo, los
Estados cada vez necesitan retraer mayores cantidades de los erarios públicos para pagar
las deudas acumuladas en manos de los grandes grupos financieros, que además siguen
siendo ‘rescatados’ con el dinero y los impuestos de los mismos ciudadanos a los que se
está expoliando.
Con el estallido de la crisis, parecería lógico pensar que se estaban dando las
circunstancias adecuadas para que se diera un cambio de rumbo en la economía como el
que predicaban en los primeros momentos los líderes mundiales. Para entender porqué
no se ha dado este proceso hay que detenerse en el enorme poder político y de
gobernanza que han alcanzado las finanzas en las últimas décadas.
Posiblemente ante el miedo a un Tsunami Financiero, o por razones todavía no
aclaradas, la Fed comenzó en 2008 a prestar, garantizar y comprar activos en secreto, a
espaldas del Congreso y del Gobierno de EUA, por un valor mayor a 30 billones de
dólares (la mitad de la producción mundial actual), donde una gran parte de estas
obligaciones fueron extendidas a bancos europeos (BLOOMBERG, 2011). 354
A bancos y corporaciones amigas de la Fed se les otorgaron préstamos gigantescos a
tasas de interés de 0,25 %, con el objetivo de que dispusieran de liquidez en un
momento de desconfianza generalizada en el sistema, pues los principales actores eran
conocedores del nivel de fraude y estafas que ellos mismos habían generado. 355
Los conocidos rescates, en esencia, consisten en la compra de bonos de los Estados y
activos financieros respaldados por hipotecas (muchas de ellas de alto riesgo), y así
dotar de liquidez ilimitada a las entidades financieras elegidas en un proceso obsceno de
socialización de las pérdidas acumuladas por décadas de fraude financiero. De ahí que
los gobiernos de las principales economías del mundo precisaron de una campaña
mediática sin precedentes para convencer al conjunto de la población de la absoluta
necesidad de rescatar a los grandes grupos financieros debido al riesgo sistémico que la
quiebra de uno sólo de ellos pudiera desencadenar. De ahí surge el concepto anglosajón
too big to fail (TBTF, por sus siglas en inglés). 356

354 Cuando el artículo habla de billones, se refiere al sistema métrico vigente en España. Por
tanto, nos referimos a lo que en el mundo anglosajón (y también en Brasil) serían trillones; es
decir, millón de millones.
355 La lista de empresas rescatadas por la FED a espaldas de los contribuyentes es bastante

larga. Entre las instituciones financieras de origen estadounidense están: Goldman Sachs,
Citigroup, JP Morgan Chase, Morgan Stanley, Merrill Lynch, Bank of America, Bear Stearns,
Pacific Management Investment Co. (PIMCO); y la lista de bancos extranjeros incluye a Royal
Bank of Canada, Toronto-Dominion Bank, Scotiabank, Barclays Capital, Bank of Scotland,
Deutsche Bank, Credit Suisse, BNP Paribas, Societe Generale, UBS, Dexia, Bayerische
Landesbank, Dresdner Bank, Commerzbank, Santander y BBVA. (The Washington Post, 2010).
356 En finanzas, riesgo sistémico es el riesgo común para todo el mercado entero. Puede ser

interpretado como "inestabilidad del sistema financiero, potencialmente catastrófico, causado


por eventos idiosincráticos o condiciones en los intermediarios financieros". Se refiere al riesgo

700
No obstante, el resultado de estas operaciones ha sido que las corporaciones elegidas
para sobrevivir no sólo lo han conseguido, sino que en muy pocos años se han
apropiado de la mayor parte del sistema financiero mundial, continuando el proceso de
concentración financiera que se inicia en los años 90 del pasado siglo. Así, desde el
principio de la crisis, más de 2.000 bancos pequeños de EUA y Europa han
desaparecido, absorbidos por estas mega corporaciones. “Sólo en 2013 desaparecieron
269 instituciones financieras europeas y entre diciembre de 2010 y septiembre de 2013,
767 estadounidenses” (UGARTECHE y NOYOLA, 2014: 2).
Con los programas de estímulo monetario los mercados de valores volvieron a crecer ya
que los bancos y grandes empresas dispusieron de crédito barato. Así, se dotó a la banca
de inversión de un mayor apalancamiento y con ello, se favorecieron apuestas
especulativas en los mercados de renta variable (commodities, acciones, tipos de cambio
y bienes raíces). En definitiva, los capitales se centraron en los espacios donde se
conseguían los mayores rendimientos; por tanto, en lugar de prestar a las empresas
industriales o invertir en nueva capacidad productiva, prefirieron buscar una mayor
rentabilidad nuevamente en el capital ficticio (propiedades, acciones y bonos). De ahí se
desprende que el repunte de los mercados de valores no haya arrastrado la recuperación
del mercado de trabajo en ninguna parte.
Estas acciones no han supuesto ninguna solución a los problemas reales de la economía,
ya que consisten en fomentar la especulación y no la inversión en la economía real. Los
mercados de valores han tenido un auge importante, mientras la inversión tangible en
los sectores productivos del capitalismo no sólo no ha crecido, sino que se mantiene en
niveles inferiores a los previos a la crisis del 2007. Según la propia Fed, el impacto de
cinco años de programas de estímulos económicos, han generado tan sólo unos pocos
puntos porcentuales de crecimiento en la economía real estadounidense. Estimaciones
de Pimco 357 sugieren que la Fed puede haber generado un gasto superior a 4 billones de
dólares para conseguir un rendimiento total de tan sólo el 0,25% del PIB. Mientras
tanto, los grandes beneficiarios de ese estímulo aparentemente baldío han sido los
bancos estadounidenses que han visto triplicar desde marzo de 2009 el precio de sus
acciones (THE WALL STREET JOURNAL, 2013).
En el otoño de 2014, el BCE ha anunciado que va a ampliar las operaciones de compra
de activos a la banca. Si ya se ha mostrado que los programas de estímulo monetario
aplicados son un absoluto fracaso en cuanto a rendimientos para la economía real, ¿qué
empuja ahora al BCE a anunciar nuevos estímulos? La respuesta, una vez más se
encuentra en el enorme poder de las finanzas.
En Europa, el volumen de la morosidad en los bancos europeos alcanzó los 1,2 billones
de euros a fines de 2012, duplicando su nivel existente a fines de 2008. En cuatro años,
el volumen de los créditos morosos aumentó de 514.000 millones de euros hasta 1,187
billones de euros. El deterioro se debe, en buena medida, a la delicada situación

creado por interdependencias en un sistema o mercado, en que el fallo de una entidad o grupo
de entidades puede causar un fallo en cascada, que puede hundir el sistema o mercado en su
totalidad.
357 Pacific Investment Management Company, LLC. (Pimco), es la firma de inversión de bonos

más grande del mundo, y uno de los mayores gestores de activos de inversión globales de
renta fija del mundo.

701
económica que viven Irlanda, España, Portugal e Italia, fruto de las políticas de
austeridad impuestas por la Troika. Pero países aparentemente tan solventes como
Alemania, que ya realizó un rescate interno de su banca en 2008 por importe de
480.000 millones de euros, tiene un volumen de créditos morosos en 2012 de 179.000
millones de euros. “Aún existen más de 2,4 billones de euros en activos basura en los
balances de las entidades financieras europeas” (PWC, 2013). Y en los próximos años la
morosidad en la UE seguirá en aumento debido al inestable clima económico que
sacude a las economías europeas. Por tanto, el BCE parece dispuesto a comprar esa
basura tóxica y a socializar una vez más las pérdidas financieras acumuladas, que se
colocarán en las espaldas de los trabajadores.
La Unión Económica y Monetaria se creó como una estructura político-
económica que defiende perfectamente los intereses de las rentas financieras, al
imponer límites estrictos sobre déficits fiscales, y las capacidades de los
diversos bancos públicos de la región. Así, para tratar de asegurar la
imposición del ajuste en Europa, que implica el desmantelamiento de las
conquistas sociales, el capital financiero dominante impulsa, con la
colaboración subordinada de los capitales nacionales, un entramado
institucional supraestatal que anule los marcos estatales en los que se han
institucionalizado estas conquistas. Es el llamado proceso de integración
comunitario, cuyos orígenes históricos se encuentran en la imposición de una
determinada reconstrucción económica tras la II Guerra Mundial por parte de
la potencia hegemónica, Estados Unidos. (ARRIZABALO, 2014: 134)
Se calcula que los Estados europeos vienen pagando a la banca privada unos 350.000
millones de euros cada año en concepto de intereses desde que dejaron de ser
financiados por sus antiguos Bancos Centrales, para regirse el BCE en la máxima
autoridad monetaria en la Zona Euro. Por poner un ejemplo, Francia ha tenido que pagar
1,1 billones de euros en intereses desde 1980 (cuando el banco central dejó de financiar
al gobierno) a 2006 para hacer frente a la deuda de 229.000 millones existente en ese
primer año. Es decir, si Francia hubiera sido financiada por un banco central sin pagar
intereses se habría ahorrado 914.000 millones de euros y su deuda pública sería hoy
insignificante (HOLBECQ y DERUDDER, 2009). Este ejemplo es válido para
cualquier país de la Unión Europea sin que haya ninguna justificación lógica que
ampare esta situación, salvo el enorme poder que las finanzas han conseguido en la
esfera política y gubernamental mundial.

Los Estados nacionales y el protoestado que es la Unión Europea son los


órganos de ejercicio del poder de la clase dominante, el 1% opuesto al 99%.
Mario Draghi, antiguo responsable de Goldman Sachs en Europa, dirige el
BCE. Los banqueros privados han colocado a sus representantes o a sus aliados
en puestos clave en los gobiernos y las administraciones. Los miembros de la
Comisión Europea están muy atentos a la defensa de los intereses de las
finanzas privadas, y el trabajo de lobby que los bancos ejercen ante
parlamentarios, reguladores y magistrados europeos es de una eficacia temible.
La interconexión y la imbricación inextricables entre los estados, los gobiernos,
los bancos, las empresas industriales y comerciales, y los grandes grupos
privados de comunicación constituyen, por otra parte, una de las características

702
del capitalismo, tanto en su fase actual como en las precedentes (TOUSSAINT,
2014:2).

3. Los ataques a los mercados laborales y la actual crisis social y democrática


El orden impuesto después de la II GM favorece la asunción por parte del capital
internacional de una serie de medidas que, en cierto sentido, favorecieron los intereses
de la clase trabajadora, al constatarse un desarrollo efectivo de las fuerzas productivas.

La categoría teórica “fuerzas productivas” ocupa el lugar central en el análisis


del devenir histórico de las sociedades. Cuando se habla de “desarrollo” (o de
“desarrollo económico” o “desarrollo económico y social”), asociado a un
cambio estructural global que se traduce en una mejora sostenida de las
condiciones de vida del conjunto de la población, entonces se está hablando de
desarrollo de las fuerzas productivas. Por eso el contenido de las fuerzas
productivas no consiste simplemente en el potencial productivo de una
sociedad, expresado en la productividad que se puede obtener de la fuerza de
trabajo, de acuerdo a su cualificación y a la disponibilidad de medios de
producción con determinado grado de progreso técnico. Va mucho más allá,
porque incluye su utilización efectiva en términos precisamente de las
condiciones de vida de la población (ARRIZABALO, 2014: 354).

Este modelo de desarrollo entra en crisis a mediados de los años 60 del pasado siglo.
Las tasas de ganancia caen. Por tanto, el capital vuelve a centrar sus objetivos en
desvalorizar la fuerza de trabajo para revertir esta situación. Así, diversos cambios en
las políticas gubernamentales provocaron, entre otros factores, que la participación de
los salarios se fuera reduciendo como porcentaje del PIB real.

A finales de los años 60, los cambios en la política económica estuvieron muy
influenciados por lo ocurrido en la esfera política. El marco de relaciones laborales de
tipo fordista empezó a ser visto con sospecha y los trabajadores se organizaron para
exigir más. El ciclo de huelgas que se inicia hacia 1967 tiene lugar en distintas partes de
Europa (incluso a ambos lados del muro de Berlín) al mismo tiempo y conectará con
reivindicaciones de tipo político que pretendían trascender el perímetro de los marcos
establecidos anteriormente. Las insurrecciones se sucedieron en Francia, EEUU,
Checoslovaquia, Suecia o España, combinando reivindicaciones salariales con
demandas políticas mucho más ambiciosas. Durante esos años, la exigencia de trasladar
la democracia política a la economía, aumentando la participación de los trabajadores en
las decisiones de las empresas e incluso, en alguna ocasión, en su propiedad, dio paso a
medidas que situaban el debate en el mismo sitio en donde se había quedado la
socialdemocracia a finales del siglo XX, entre la reforma y la revolución.
Sin embargo, la falta de reacción de los partidos de izquierda tradicionales, junto con la
adopción de medidas represivas por parte de los gobiernos, se aplacaron buena parte de
las reivindicaciones, y comenzaron a llegar al poder en Europa partidos que
promovieron un cambio de paradigma de política económica donde, principalmente en
el Reino Unido con el gobierno de Margaret Thatcher, se cuestionaban los acuerdos

703
anteriores en materia social, comenzaba un ataque contra los sindicatos y se planteaba la
reducción del papel del Estado en la protección social. 358
En el transcurso de siguientes décadas la mayoría de los países reformaron sus Estados
de bienestar. El Estado de bienestar dejaba de ser un elemento de consenso y empezaba
a observarse como una fuente de gasto que había que racionalizar, así como el origen de
numerosos desincentivos económicos que afectaban a la productividad.

La larga historia de lucha de clases sobre los salarios, las condiciones de los
contratos -duración de la jornada, la semana de trabajo y la vida laboral-, junto
con las luchas por los niveles de las prestaciones sociales -el salario social-, son
un testimonio de la importancia del límite potencial de la acumulación de
capital. Por tanto, éste fue el principal bloqueo que había que superar si se
quería avanzar en obtener mayores ganancias (CASAIS, 2013: 3)

Marx identificó el problema de la realización, que él consideraba intrínseco al


capitalismo. Marx analiza la necesidad constante de expansión del capital analizando el
proceso de realización y la relación cuantitativamente desigual entre el trabajador como
productor y el trabajador como consumidor de mercancías. 359 Después de la II Guerra
Mundial, los salarios reales crecieron en proporción a la productividad del trabajo, lo
que ayudó a financiar el crecimiento del consumo. Esta proporción se mantiene más o
menos constante hasta la década de 1980.360 A partir de esta década, esta situación no se
da. La solución que permitió suprimir el crecimiento de los salarios reales mientras una
proporción creciente del ingreso nacional se desviaba a los beneficios del capital fue
resuelto por la “ingeniería financiera”, que permitió una escalada significativa de la
deuda del sector privado, principalmente entre los consumidores. El aumento de la
deuda fue respaldado por la creación de una amplia gama de productos financieros de
rápido crecimiento para ampliar su rentabilidad. Esta apropiación del ingreso real
proporcionó los recursos que permitieron el crecimiento espectacular del sector
financiero, pero a su vez significó que el crecimiento del consumo debía ser financiado
a través de la aceleración del crédito. Todos los componentes de la deuda privada
crecieron a partir de los años 90, pasando a ser los trabajadores / consumidores los
principales deudores del sistema.

Dada la imposibilidad de la economía para poder seguir aumentando el consumo basado


en una demanda efectiva real, la ingeniería financiera unida a las bajas tasas de interés
se convirtieron en la base que permitió aumentar nuevamente el endeudamiento a

358 Es importante dejar claro que esto no supone una reducción del Estado: el keynesianismo
militar de Estados Unidos y demás democracias occidentales es clara prueba de ello.
359 El salario del trabajador (correspondiente al trabajo necesario) debe ser menor que el valor

total producido por el trabajador. Sin embargo, la plusvalía debe hallar un mercado adecuado a
fin de realizarse. Como cada trabajador debe producir más valor que consume, la demanda del
trabajador en tanto consumidor no podrá ser nunca una demanda suficiente para la plusvalía.
360 La constancia de la participación salarial en el ingreso nacional, resultado de una estrecha

relación entre la productividad del trabajo y el crecimiento de los salarios reales, era uno de los
6 hechos típicos del crecimiento económico capitalista identificados por el economista de la
Universidad de Cambridge (Reino Unido) Nicholas Kaldor en 1957. Una de las condiciones
esenciales para la estabilidad es que el crecimiento del consumo se encuentre impulsado por el
crecimiento de los salarios reales, y que éstos sean relativamente proporcionales a los
crecimientos de la productividad.

704
principios del siglo XXI, hasta que la burbuja de crédito estalló provocando un nuevo
episodio de la crisis no resuelta en la que se encuentra el capitalismo desde finales de la
década de los 60.

De acuerdo con Marx, las crisis son, además de fenómenos inevitables dentro del
capitalismo, eventos que ayudan al sistema a recuperarse de una insuficiente tasa de
ganancia. Es decir, las crisis permiten descartar inversiones no rentables y, por medio
del llamado ejército industrial de reserva -el número de trabajadores desempleados-,
disminuir salarios y condiciones laborales.
Para las economías avanzadas se observa que esta situación se ha dado en la realidad:
Tras cada crisis, las empresas han mejorado su carga impositiva y sus niveles de
ganancias, y los trabajadores han salido de ellas con menores sueldos y mayores niveles
de impuestos. El canal por el que esto ocurre siempre es político. Los gobiernos se
amparan en la necesidad de tomar medidas urgentes y extraordinarias para subir el peso
de los impuestos a los trabajadores, mientras que bajan los que corresponden a las
empresas, ya que éstas amenazan con invertir en el extranjero dadas las “condiciones
desfavorables” que se encuentran en su país.
Los beneficios empresariales después de impuestos, medidos como porcentaje del PIB
no han dejado de crecer desde los años 70, y después de cada crisis ha sido el momento
en el que se han consolidado los mayores aumentos. La disminución de la carga
impositiva a las grandes corporaciones va asociada a la necesidad que tienen los Estados
de retener el capital propio, sobre todo en épocas recesivas. Así, en estos momentos,
suelen ser especialmente atendidas las demandas de rebajas fiscales por parte de los
grandes capitales. Al término de cada crisis el resultado es de claro beneficio para las
grandes empresas. El canal por el que se obtienen estos beneficios proviene del mercado
de trabajo, ya que el aumento del desempleo propio de la crisis alimenta el “ejército de
reserva” de desempleados y deja a los trabajadores mucho más a expensas del dominio
de los empresarios. Los salarios disminuyen o se congelan, y fluyen directamente hacia
las arcas de los beneficios empresariales (MITCHELL, 2012).
Entre las medidas de política económica relacionadas con el neoliberalismo, nos
encontramos en primer lugar con los intensos procesos de desregulación financiera y
liberalización comercial, que supusieron la respuesta por parte del capital internacional
para superar las barreras de valorización que se enfrentaba ante el agotamiento del
modelo surgido tras la II GM. Asimismo, La importancia “ampliada” de estas medidas
de política económica radica en el hecho de éstas son capaces de acelerar la
flexibilización laboral.
Así, la flexibilización laboral busca deteriorar las condiciones de trabajo, el poder
adquisitivo de los salarios y la protección social de los trabajadores. Pero estos intentos
del capital de apropiarse de mayor parte del plusvalor no hubieran obtenido los
resultados deseados sin la aplicación de las otras medidas: la liberalización comercial y
la desregulación financiera.
El mecanismo por el que la globalización influye sobre los mercados laborales se
manifiesta por la vía de la competencia internacional. A partir de estas reformas, todos
los trabajadores del mundo deben competir por los trabajos disponibles a escala
planetaria ya que permiten que cualquier bien se pueda producir en el lugar que sea más

705
beneficiosos para el capital. Por tanto, la llamada globalización comercial y financiera
son los elementos clave para imponer una mayor disciplina en las políticas fiscales y
laborales de los Estado-nación, que si no se comportan de acuerdo a los intereses del
capital, éste podrá moverse libremente y aprovechar los excedentes mundiales de
trabajo a través de la deslocalización.

La liberalización de los movimientos de capital, especialmente a partir de la década de


1990, provoca que los Estados se vean sometidos a un proceso de competencia para
captar los capitales internacionales. Así, prácticamente todos los Estados del mundo
abordan una serie de reformas a efectos de atraer el capital de otras economías. Para el
caso de las economías periféricas, además de las reformas fiscales aplicadas que
incluyen ciertas bonificaciones para el capital extranjero, se profundizan en los procesos
de privatización de empresas estatales y en la desregulación de los mercados laborales.

Gráfico 1. Modelo fondomonetarista de ajuste.

Fuente: Elaboración propia


Por “imposición” o por convencimiento, la mayoría de los países empezaron una carrera
suicida de abaratamiento de costes laborales, reformando legislativamente sus mercados
de trabajo y los derechos sociales, como casi única alternativa para ganar ventajas
comparativas. Esta estrategia de abaratamiento de costes laborales se ha mostrado
desastrosa para los intereses de los trabajadores y los sistemas de protección social.
Salarios más bajos, menos ventas al detalle y una fuerza de trabajo más pequeña
redundan en un colapso de la recaudación fiscal, lo que alimenta un círculo vicioso de
recortes de gastos seguidos de menores ingresos fiscales.
Esto nos lleva a un punto central dentro del análisis de la situación actual por la que está
atravesando el mundo en general, y Europa en particular: El crecimiento incontrolado
de las desigualdades económicas imposibilita los pilares básicos de la democracia.
El sistema económico avanza hacia un mundo cada vez más desigual, donde las

706
políticas aplicadas están acrecentando las diferencias entre una minoría poseedora de los
medios de producción y los capitales, y una gran mayoría cada vez más empobrecida.
La relevancia de este análisis radica en señalar el aspecto político de la creciente
desigualdad económica; por tanto, la solución debe ser política.
Del carácter político de la desigualdad se desprende una idea sencilla: desigualdad y
democracia son incompatibles. El crecimiento incontrolado de las desigualdades
económicas imposibilita los pilares básicos de la democracia; el control popular sobre la
toma de decisiones y la igualdad a la hora de ejercer dicho control. De ahí los
movimientos diarios por parte del capital y del poder político asociado a él para
desmantelar los esfuerzos de reivindicación democrática por parte de los trabajadores y
población en general.
El aspecto central que el poder político está tratando de frenar es la participación
ciudadana. La salud de un sistema democrático depende en gran medida del grado de
participación ciudadana en el mismo, no solo a través de las elecciones, sino también a
través de los partidos políticos y plataformas ciudadanas, la sociedad civil, los medios
de comunicación, la libertad de expresión y manifestación, etc. Es de esta manera como,
en teoría, se asegura la igual participación de la sociedad en el control popular sobre la
toma de decisiones. La desigualdad económica provee a las élites la capacidad de
controlar, a través de su riqueza, a los medios de comunicación, partidos políticos y
autoridades; y eliminar o inutilizar los mecanismos existentes para la participación
ciudadana.
Conclusiones
Esta crisis es la historia del fracaso de un modelo ultraliberal en el que la receta que se
nos quiere imponer es profundizar en el error. Las élites económicas nacionales y
globales no deberían sorprenderse de que la opinión pública reaccione con una mezcla
de cólera, e incomprensión no sólo hacia los bancos, sino hacia todo el sistema político
que los está alimentando a costa de enormes sacrificios para las clases populares que no
tuvieron ninguna responsabilidad en esta crisis.
Durante el periodo de posguerra, los trabajadores organizados bajo los sistemas de los
Estados nación consiguieron imponer una serie de condiciones al capital, que durante
unas décadas permitió un desarrollo productivo y social favorable a los intereses de los
trabajadores y gran parte de la sociedad; especialmente en los países más desarrollados.
No obstante, ante la constatación de las caídas de las tasas de ganancia por parte de los
capitales, el modelo entra en una fase de agotamiento. Así, el objetivo para restaurarlas
se centrará en limitar salarios y demás beneficios de los trabajadores.
La guerra contra el mundo del trabajo se desarrolla en un frente amplio, donde el
cambio de paradigma político, expresado en nuevas políticas económicas y políticas a
aplicar, se va a mostrar central para acabar con los derechos de los trabajadores. Para
conseguir desmantelar las fuerzas sindicales y conseguir el objetivo de socavar los
salarios, se precisó de la liberalización del comercio y de los mercados financieros. Así
se crea un “mercado de trabajo mundial” en el que las legislaciones protectoras hacia los
trabajadores de los Estados-nación quedaron inservibles, ya que los Estados, ante el

707
temor de que sus capitalistas abandonen el país para invertir fuera de sus fronteras,
empezaron a legislar cada vez a favor de los capitales y en contra de los trabajadores.
De ahí la importancia de las políticas de liberalización comercial y aduanera
(globalización comercial) y desregulación financiera (globalización financiera). Estas
medidas, que per se, suponen una palanca ampliada de valorización de los capitales, a
su vez han sido centrales para alcanzar el sometimiento de los trabajadores a las
exigencias del capital.

Así, a medida que las finanzas se consolidaban como el método principal de


valorización, se ha desarrollado un proceso donde éstas han ido ganado espacio político,
influyendo cada vez más en las decisiones de los Estados soberanos elegidos
democráticamente. En este proceso se ha concentrado el poder financiero y político en
pocas manos privadas, fuera del alcance de las decisiones de los pueblos soberanos
representadas en las urnas.

En un análisis político de las transformaciones que las finanzas han provocado en estas
décadas sobre las estructuras políticas y jerarquías financieras, se constata que se ha
modificado sustancialmente el organigrama del poder en el mundo. Así, en el devenir de
la crisis, los Estados obedecen los dictados del capital internacional en aras de cumplir
con sus emisiones de deuda pública y compromisos crediticios en manos de los bancos
transnacionales. Se imponen las políticas de privatización y austeridad que amplían
nuevos horizontes de valorización al capital internacional, mientras se constriñen los
salarios y derechos de la mayoría de los trabajadores. La ofensiva contra los asalariados
y la expansión del sector financiero son dos caras de la misma moneda: la caída en la
tasa de ganancia, un problema con raíces profundas en la evolución del capitalismo.

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709
Estado, Elites e Capitalismo: o imbricamento da dominação de classe com outras
formas de subalternização social

David J. S. Silva¹
¹ Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD, Dourados-MS –
davi_rosendo@live.com

Resumo
Este artigo pretende ser uma contribuição original ao debate científico acerca do Estado
como instituição política e social. Além de discorrer sobre seu papel na conservação da
dominação de classe, o artigo pretende, ao relacionar o conceito de Estado com a
categoria de elites, mostrar como este se constitui em força conservadora e
antiprogressista, e francamente oposta à concessão de direitos, de cidadania plena e de
reconhecimento aos diversos grupos sociais subalternos. Do outro lado, a partir destas
considerações realiza um breve debate sobre quais os obstáculos e possibilidades para a
luta política pela emancipação dos grupos subalternos.
Palavras-chave: Estado; Classe Social; Grupos Subalternizados; Democracia.

1 Introdução: Capitalismo e a promoção da desigualdade social

O parâmetro central para enfoque da realidade estatal será a desigualdade social, que se
apresenta qualitativamente de duas formas: uma, a criação de diferenciação social e de
desigualdade em termos materiais, ou seja, a exploração da mais-valia, e assim a criação
da massa despossuída dos trabalhadores e a sua exploração e subalternização (esta
última entendida como estigmatização, conferência de status humano inferior e
privação\violação de direitos) pelos capitalistas; a segunda, a criação de diferenciação
social e desigualdade por critérios culturais e simbólicos, por criações culturais
destinadas e motivadas especificamente para isso, conferidoras de status diferentes às
pessoas, e amplamente variável conforme a formação social e cultural específica em
questão (concretamente, apenas a título de exemplo, relações sociais como a do
racismo, da misoginia, homofobia, preconceito étnico, capacitismo etc.).
Para compreensão da natureza do Estado tal qual se afigura hoje é premente a leitura e o
evidenciamento de suas conexões internas com o capitalismo e com a classe de pessoas
a quem interessa a imposição do capitalismo e que se beneficiam dele.

2 O imbricamento do fetichismo, mais-valia e outras formas de subalternização

Ao tratar do tema do fetichismo da mercadoria, Marx nos diz que no Capitalismo todas
as relações sociais, no sentido estrito do termo, são subsumidas à relação de troca
econômica de mercadorias, que passa a valer como relação social fundamental, e com
poder de determinação sobre todas as outras, que são substituídas por essa relação,

710
passam a ser mediadas por ela e quando não tanto, passam por transformações ou
influências resultadas do poder da relação que passa a ser fundamental.
Ao tratar do tema do fetichismo da mercadoria, Karl Marx (1946) nos diz que no
Capitalismo todas as relações sociais são subsumidas à relação de troca econômica de
mercadorias, que passa a valer como relação social fundamental, e com poder de
determinação sobre todas as outras, que ou são substituídas por essa relação, passam a
ser mediadas por ela, ou, quando não tanto, passam por transformações ou influências
resultadas do poder da relação que passa a ser fundamental.

“El carácter misterioso de la forma mercancía estriba, por tanto,


pura y simplemente, en que proyecta ante los hombres el
carácter social del trabajo de éstos como si fuese un carácter
material de los propios productos de su trabajo, un don natural
social de estos objetos y como si, por tanto, la relación social
que media entre los productores y el trabajo colectivo de la
sociedad fuese una relación social establecida entre los mismos
objetos, al margen de sus productores. Este quid pro quo es lo
que convierte a los productos de trabajo en mercancía, en
objetos físicamente metafísicos o en objetos sociales.” (MARX,
1946, 37-8) [grifo meu].

O fetichismo da mercadoria, como processo social ensejado pelo Capitalismo, é


responsável pelo engendramento daquilo que em termos filosóficos chamava-se
alienação: o não reconhecimento do ser humano de que é o verdadeiro criador da
sociedade e autor da própria história. O sentimento de impotência e incapacidade diante
de um mundo que lhe escapa, que é maior que ele, e tem suas determinações e
exigências impassíveis, impossíveis de mudar, um mundo impossível de se escapar
senão em sonhos. Ao não sentimento do homem como autor da própria vida e própria
história vem acompanhada sua incapacidade política – que não é exclusiva do
capitalismo – de dirigir a própria existência.
“Lo que aquí reviste, a los ojos de los hombres, la forma fantasmagórica de una relación
entre objetos materiales no es más que una relación social concreta establecida entre los
mismos hombres.” (MARX, 1946, 38). O caráter de ser justamente uma relação criada e
mantida pelos próprios homens é justamente aquilo que o modo de produção baseado
em mercadorias, através do fetichismo, esconde. E como os homens não conseguem
perceber que são os verdadeiros criadores e sustentadores desse mundo passam a
acreditar que ele seja mesmo como é, que tenha existência própria, e não questionam a
possiblidade de viver de uma forma diferente. No fetichismo “las relaciones entre unos
y otros productores, relaciones en que se traduce la función social de sus trabajos,
cobran la forma de una relación social entre los propios productos de su trabajo.” (Id.,
Ibid., 37). E não aparecem, pois, aos homens, como relações entre eles próprios.
As mercadorias se apresentam assim; e assim também se apresentam todas as relações
sociais na sociedade capitalista. E porque elas se apresentam e se impõem

711
inelutavelmente assim, é que a vida se torna para os homens desse modo: toda ela
mediada pela mercadoria dos seus trabalhos [e mesmo quando eles não têm consciência
plena da dimensão com que isto determina suas vidas].
Ao determinar que as pessoas valham pelo seu trabalho, e igualmente pela remuneração
que recebem pelo seu trabalho, e sendo seu trabalho (sua força de trabalho ou sua
empresa) aquilo unicamente que cada ser humano tem a oferecer, o Capitalismo tende a
impor que as outras determinações sociais não tenham influência ou ao menos não tanta
quanto a econômica. Cada homem é socialmente, para os outros e tem a imagem de si
mesmo que é criada nessa relação com os outros, apenas a mercadoria que tem para
oferecer no mercado.
Assim que o Capitalismo impõe que a mercadoria que cada homem é seja aquilo que o
define, e que em seu mundo as pessoas não se relacionam como pessoas, porém sempre
pelas mercadorias que tem a oferecer, assim é que ele interpõe a troca de mercadorias
como mediadora de todas as relações humanas. Pode-se dizer que sua tendência íntima e
geral é impor esta forma de relação sobre todos os âmbitos do social e substituir as
outras relações sociais mediadoras das relações humanas por ela. [E a avaliação do
estágio dessa imposição – sempre dialética – assim como das razões pelas quais essa
imposição ainda não se completou e a identificação das forças e tendências sociais que
atuam contra a objetivação ampla e definitiva dessa tendência são tarefas para outro
trabalho].
“Este carácter fetichista del mundo de las mercancías responde (…) al carácter social
genuino y peculiar del trabajo productor de mercancías.” (MARX, 1946, 38) [grifo
meu]. Desse modo, o fetichismo sendo aquilo que preenche o âmbito das relações – as
únicas relações aceitas possíveis e conhecidas pelo homem em determinada sociedade,
portanto as únicas relações possíveis de serem vividas por ele - e representações sociais
- com as quais este significará e dará sentido ao mundo -, por mais que seja uma
substância falsa, é ela quem determinará a representação e a vida humana efetiva. O
fetichismo, de mística, de aparência invertida da realidade no âmbito da produção,
através de sua imposição férrea ao campo das relações e representações sociais,
converte-se em realidade (social). Tem peso de realidade nesse campo. De tal forma que
os seres humanos não conseguem experimentar a possibilidade de pensar a realidade de
uma forma diferente.
Entretanto, quando Marx afirma, no mesmo texto, que no capitalismo todas as relações
sociais tendem a ser substituídas ou no mínimo subsumidas à troca de mercadorias,
podemos crer que está assim falando da lei geral do capitalismo, da lei que o caracteriza
e o realiza com forma de sociedade, do capital como relação social, da tendência geral
do capitalismo; e não, em nenhum momento, que desconsidera nem exclui, obviamente,
que outros fatores e circunstâncias sociais entrem em jogo na determinação das relações
sociais entre pessoas e grupos – interpretação que se sustenta com base em seus
trabalhos em que realiza um tratamento analítico ao desenrolar de fenômenos e relações
sociais concretas e práticas, como nos seus estudos sobre as relações políticas concretas
na Luta de Classes na França (1850), em O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1851), e na
Guerra Civil na França (1871).

712
Estas são as obras de Marx onde mais aparece a complicadíssima tensão entre criação
social/luta política, de um lado, e o peso férreo da sociedade instituída, a força desta
para não mudar. São as obras onde Marx considera todas as contingências da ação
humana na sociedade, e como o campo da ação humana é aberto, e dado a ser guiado
por moções diversas. Nestas obras aparecem a análise da ação humana política e
economicamente interessada; entretanto, o campo de ação social e política dos homens
não aparece como determinado necessariamente pela base material, como querem os
deterministas, mas com uma grande variabilidade de contingência, e suscetível a outras
determinações, especialmente aquelas causadas pela visão de mundo dos homens e pela
maior ou menor capacidade destes de compreender o quadro total da sociedade em que
vivem e agem. É possível compreender nestas obras como a constituição da
subjetividade dos homens – e na constituição destas podemos elencar fatores culturais e
fatores ligados à visão social de mundo -, malgrado o peso dos interesses econômico-
materiais na determinação de suas ações, tem peso sobre a luta política e os destinos da
sociedade.
A não-determinação necessária da ação humana e sua contingência e limitação aparece
nos episódios de luta política analisados por Marx. Nestes, mesmo quando há
possibilidades objetivas sociais de mudança, a transformação social esbarra ou é
atravancada nas inúmeras contingências em que se perde a ação e a consciência
humana. Nem só de condições objetivas para mudar vive o homem; a possibilidade
social objetiva efetiva de mudança não é suficiente por si só para a mudança. A classe
interessada na mudança social precisa orientar sua ação e tem que lidar com a
incompletude desta, com sua própria fragilidade como ser humano diante da sociedade e
com a fragilidade e insuficiência de sua ação diante da tarefa objetiva em si, de revestir
ou preencher sua subjetividade com a mesma matéria de que se fazem as coisas sociais
objetivas, e assim dar objetividade à crítica que formula e ao projeto social que sustenta.
Assim, a subjetividade humana, formada pelo código cultural, visão social de mundo e
consciência política, é fator significativo na luta política e nos destinos da sociedade.
Ou seja, a teoria social marxista não exclui a criação de outras categorias sociais de
entendimento da realidade e de diferenciação entre os homens e nem a organização das
pessoas, materializando forças políticas, em torno dessas categorias. Relações sociais de
subalternização, estigmatização e exclusão que não têm gênese ou sociogênese nem
direta nem puramente na relação social do capital nem da mais-valia, existem e tem
codeterminação junto a essas relações fundamentais sobre a totalidade da sociedade.
Quanto a estas relações sociais pautadas por elementos ‘simbólicos’, podemos propor
três chaves de leitura e interpretação. Poder-se-ia dizer que são relações que existem
mesmo numa sociedade capitalista - o que não contradiz as tendências fundamentais de
exploração da mais-valia e do fetichismo da mercadoria, se se tiver em mente os citados
textos marxianos de análise de relações sociais e políticas concretas; segundo, poder-se-
ia argumentar que, como a tendência geral da sociedade capitalista é a histórica
imposição da troca como mediador exclusivo da vida social, estas relações e fenômenos
sociais descritos como provenientes de outra natureza, se tratam de relações datadas de
sociedades pré-capitalistas, e que sua tendência seria desaparecer ao longo do tempo
conforme o fetichismo se impõe absolutamente. Nenhuma dessas duas leituras concebe

713
de forma separada a tendência geral e modo peculiar de exploração e subalternização
capitalista das formas histórico-culturais de subalternização. Mas enfatizam as possíveis
formas de se relacionar dessas tendências diferentes.
A terceira leitura, que é a que será levada adiante aqui, tem como base o fato de não ser
novidade que as relações sociais do racismo, do machismo e da homofobia, apenas para
citar algumas delas, são continuamente incorporadas pelo capitalismo de forma a
potencializar – e nunca contradizer - o exercer da lei geral do capital: a maximização da
exploração do trabalhador, para aumento continuado dos lucros. Sem se questionar,
assim, a origem e\ou a natureza dessas relações culturais de subalternização, se
capitalistas ou pré-capitalistas, sabe-se que elas foram historicamente incorporadas
definitivamente ao capitalismo e entram em consonância com o caráter distintivo e
definidor do capitalismo, qual seja, a tendência geral da exploração da mais-valia, e
têm, por efeito colateral ou não, papel tanto quanto o fetichismo da mercadoria na
definição das relações sociais e no caráter da sociedade.
Não tenho dúvidas de que esses fenômenos sociais estruturantes dessas relações só
existem ainda na sociedade capitalista porque foram incorporados pelo capital e são
úteis ao fortalecimento e a maximização de sua natureza e razão de ser. Caso contrário,
teriam desaparecido, ou no mínimo perdido força. O determinante da vida humana são
as relações sociais engendradas para o trabalho, para a produção da vida material, e
mais ainda na sociedade capitalista, a possibilidade e efetiva incorporação de elementos
pela relação social do capital é fundamental para a continuidade da existência de
qualquer fenômeno nessa sociedade.
Mesmo, no esquema conceitual marxiano, se consideradas como formas de relação
social pré-capitalistas, o racismo, a misoginia, a homofobia e etc., são relações sociais
ainda presentes e estruturantes da vida das pessoas mesmo na sociedade capitalista.
Como resquícios da sociedade pré-capitalista, ou como indicativos de que o capitalismo
não realizou ainda totalmente sua tendência geral, de interpor o comércio de
mercadorias entre todas as pessoas e a mercantilização de todas as relações sociais,
fazendo desaparecer outras formas de relações sociais – por motivos que não serão
investigados aqui -, essas formas de relações sociais autoritárias e que tem por conteúdo
um tratamento desigual e parcial entre os membros da sociedade, perduram e não
apenas como vestígios, mas tem peso massivo sobre a totalidade da sociedade, conexão
clara e profunda com a exploração da mais-valia, ou seja, com a exploração do homem
sobre o homem, e sobre a consideração diferencial do Estado em relação às demandas
dos diferentes grupos sociais, no que concerne a sua distinção conforme o lugar que
ocupam na estrutura de poder.
Este artigo visa assim percorrer o caminho de explicitar a exploração capitalista sobre a
totalidade da sociedade, e o da natureza desse espaço social aberto, sobre o domínio
geral de classe, para a criação e embate de outras formas de subalternização culturais e
simbólicas. Para aceder a esse objetivo, será utilizada como estratégia metodológica
aqui o recurso ao conceito de elites (PERISSINOTTO e CODATO, 2011), para
explicitar a forma da atuação e conservação dos interesses e código cultural locais, e dos
preconceitos e subalternidades existentes em cada formação social particular, além de
apenas as forças de dominação universais do capitalismo.

714
3 A natureza do Estado capitalista

O capitalismo baseia o trabalho e a produção das condições materiais necessárias à vida


na exploração da mais-valia. Ou seja, faz da instituição do trabalho, como elemento
constitutivo do ser humano, meio de enriquecimento de uns homens sobre outros. E
para isso, institui e faz uso da exploração do homem sobre o homem.
O Estado tem o caráter de unificador do corpo social, contra as lutas contra-
hegemônicas, contra os setores que não querem submeter-se à exploração capitalista.
Ou seja, existe para unificar o corpo social à força. E mesmo recorre à violência para
isso. Seu monopólio do uso da força sobre um território é necessário e se dá por esse
motivo.
Entretanto, não é assim que o Estado se apresenta. O Estado Moderno pretende estar
acima dos interesses privados.
Na apresentação liberal da instituição do Estado, da qual é exemplo a de Modesto
Florenzano (2007), não há nada que diga que o Estado tenha constitutivamente, nem
deva ter normativamente, qualquer coisa com a igualdade social. Essa apresentação
exalta apenas sua eficiência, para a regulamentação das relações sociais, em oposição ao
estado monárquico e aristocrático; e nesse sentido o Estado atua apenas como entidade
administrativa; não há espaço para demanda social no interior do Estado weberiano.
Demandas por transformação social, por eliminação de privilégios de classe, como a
propriedade privada dos meios de produção, que separa os homens em trabalhadores
que recebem salários exíguos e proprietários que detém lucros homéricos, não tem
espaço nesse Estado, e são vistas mesmo como reivindicações não legítimas à medida
em que visariam a alterar a regularidade instituída - e a regularidade estatal trata-se da
mais racional dentre todas as outras possíveis (a tradicional e a carismática), importando
pouco que seja ele que se autoproclame assim.
Para legitimar a validade do Estado democrático de direito diante das críticas às
iniquidades que sob ele se escondem e que suas vicissitudes permitem, Florenzano
afirma que seus críticos subestimam “seu funcionamento complexo, consagrando
valores e práticas da civilização, cujo abandono não é menos que desastroso, como
mostraram as experiências totalitárias do século passado.” (FLORENZANO, 2007, 13-
4). Para responder às críticas ao Estado constitucional de direito, Florenzano afirma que
os totalitarismos são ruins. Esta afirmação não se sustenta nem por si mesma, e muito
menos na consideração de que totalitarismos são a única alternativa de organização
política e societária. Obviamente a crítica marxista ao Estado de direito ‘burguês’ não se
trata em hipótese alguma de não reconhecer a validade das ‘liberdades formais’; trata-se
apenas de reconhecer que elas não são suficientes, precisa-se torná-la liberdade
substantiva e estendê-las a todos igualmente (se só algumas pessoas desfrutam de
liberdade, por si só este fato é indicativo de que não vivemos em uma democracia), e de
reconhecer que muitas e profundas iniquidades se escondem sob o manto das liberdades
formais; trata-se de não satisfazer-se com elas.
Uma sociedade só é livre, e, portanto, democrática, se todos desfrutarem de liberdade.
Se a liberdade é bem de poucos, em caráter monopólico e em tom excludente, não se

715
trata de democracia. Para uma democracia, liberdade tem que ser par de sua própria e
autouniversalização.
Na Modernidade prevalece no plano ideológico, como afirma Florenzano citando
Quentin Skinner, a concepção e “a ideia mais abstrata ‘tipicamente moderna do Estado
enquanto forma de poder público, separada do governante e dos governados,
constituindo a suprema autoridade política no interior de um território definido’.”
(FLORENZANO, 2007, p. 30).
O caráter distintivo do Estado reside nessa suposta separação dele como instituição
política, do tecido social, e assim livre do conflito de interesses que nesse possa haver.
Entretanto é uma separação que só existe na ideia, que nunca se realizou de fato. Em
toda a sua história o Estado sempre esteve ligado a poderes e forças sociais, e atuou
deliberadamente em favor de algumas delas em detrimento de outras, de forma aberta
ou dissimulada. A suposta separação do Estado do tecido social é aquilo que garantiu
sua legitimidade e validade, e é, no entanto, precisamente aquilo que não se concretizou.
Que o Estado seja externo ou interno ao tecido social é questão que não se sustenta, pois
de fato ele se insere na sociedade e influencia diretamente as relações sociais e tem
poder sobre a estrutura global da sociedade. Aparecer como externo – e, portanto, isento
– é a qualidade distintiva do Estado, e onde reside boa parte de seu poder de ação sobre
a sociedade.
Na próxima seção, procurarei demonstrar como o Estado Moderno se formou em
consonância com os interesses da burguesia e com as necessidades de regulação e
normatização social do capitalismo. Como o Estado Moderno tem como marca
constitutiva íntima estar ligado às necessidades de reprodução do capital, de modo que
sempre será um Estado em favor do capital, independente de quem sejam as pessoas que
ocupam os postos oficiais de administração estatal e de quais sejam os posicionamento
políticos dessas pessoas.
Na parte seguinte, procuro elucidar através da noção de elites políticas e da cultura e
formação social local, como as formas simbólicas de categorização, diferenciação e
hierarquização entre os homens ganham força e atuam em contextos específicos, e de
que forma se relacionam e se imbricam com a dominação de classe e estigmatização,
privação de direitos e desumanização do trabalhador.

4 Estado e gênese do capitalismo

Há uma cisão radical entre a forma como o Estado foi e é apresentado à totalidade da
sociedade pela teoria política, e a forma que ele realmente assumiu, as ações que
realmente empreendeu, e aquelas de que se absteve, se afastou, e se omitiu, sem ou com
justificações diversas.
A burguesia, a classe social proprietária monopolicamente dos meios de produção e
consequentemente dos produtos do trabalho, estabeleceu sua dominação sobe toda a
sociedade, estabeleceu e impôs – junto com a Revolução Industrial - sua forma de
civilização, uma civilização e um mundo criados à sua imagem e semelhança e

716
conforme e consoante aos seus interesses, e gradativamente mais capaz de absorver e
neutralizar as tentativas de destruí-lo; e nessa história e nesse processo, tomou a
instituição do Estado como forma de sustentar e impor essa civilização de uma forma
que se apresentasse neutra e justa. Uma dominação que conta assim com o suporte dos
atributos do Estado de neutralidade, universalidade e justiça (escondendo o fato de ser
uma dominação segundo os interesses muito particulares da classe burguesa, de ser a
justificação de uma desigualdade, de uma subalternização e exploração, em suma, de
uma injustiça).
Através do Estado, assim – o que quer dizer: sob os signos da neutralidade e
universalidade -, foram lançados e impostos os desígnios e os desejos da burguesia, e
com estes a conformação da sociedade segundo os interesses muito privados desta, e o
consequente alocamento de todas as outras pessoas na categoria de trabalhadores, e a
instituição da legitimidade da exploração de todas essas pessoas nas empresas
capitalistas, conforme os desejos dessas empresas.
Assim, o Estado e as politicas públicas - denominação de cada uma das ações e
omissões concretas do Estado - foram formas da construção de um mundo à imagem e
semelhança da burguesia.
O Estado atuou assim no processo histórico de instituição e imposição do capitalismo e
no constante processo de reproduzi-lo, mantê-lo e conservá-lo diante das investidas para
derrubá-lo.
Florenzano, seguindo o pensamento de Max Weber, atribui o estabelecimento do
capitalismo apenas a uma ampla difusão de um tipo de racionalidade específica. E
ignoram o papel da violência capitaneada pelo Estado para o estabelecimento e
imposição da sociedade capitalista e inclusive do Estado Democrático.
Em toda a parte, foi feito uso da violência para assegurar o estabelecimento do
capitalismo e da forma de Estado que lhe corresponde. Não se sustenta a ideia de
aceitação e universalização do Estado devido a ser um puro avanço nas instituições
políticas, mais evoluído, eficaz etc.

A ampliação do capitalismo, como bem o registra a história


moderna, foi acompanhada de guerras de conquistas de
mercados, territórios, povos e nações, numa escalada de
enfrentamentos que lograram alternar continuamente o mapa
geopolítico da Europa nos séculos XVIII e XIX. Por outro lado,
as funções repressivas internas igualmente se ampliaram e se
especializaram, em particular as de caráter político, já que para
esse tipo de Estado a manutenção da ‘ordem’ no interior das
lutas de classes é fundamental. E não apenas no que diz respeito
aos conflitos entre burguesia e o proletariado, por exemplo.
Também as frações existentes no interior das classes dominantes
transformaram o Estado, em muitas ocasiões, em palco de
intrincados e frequentemente sanguinários conflitos no interior

717
dos ‘blocos de poder’, que acabavam por se refletir em toda a
sociedade. (COSTA, 2010, 263)

Entretanto, o Estado não apenas se tornou meio de legitimar e dar aparência de


impessoalidade e universalidade à imposição do Capitalismo como forma de
civilização; o Estado teve papel central no sucesso do estabelecimento do Capitalismo, a
ponto de ser difícil pensar que este modo de produção teria se estabelecido – e teria
resistido até hoje – não fosse a atuação do Estado, a monopolização do uso da violência
legítima deste e o uso desta mesma violência para submeter as pessoas a condição de
meros trabalhadores (ou seja, a condição de exploração), e para destruir as resistências à
imposição desta ordem.
Ainda nesta questão da relação entre Estado e capitalismo, a forma como o liberalismo
se apresenta também é diametralmente oposta ao sucedido na realidade de fato. O
capitalismo não surge do liberalismo. O capitalismo surge do oposto ao liberalismo. Da
intervenção direta e massiva do Estado em favor de seu estabelecimento.
A dependência do capitalismo face à intervenção Estado para se instalar e se perpetuar é
evidenciada pelo fato de somente após seu relativo estabelecimento é que o Capitalismo
e a ordem liberal puderam prescindir – parcialmente – da ação do Estado e viver apenas
segundo suas próprias leis – ainda que de uma forma não completamente não
problematizável. “A uma estrutura social desta ordem [do capitalismo estabelecido] (...)
é que corresponde a ideologia do laissez-faire, em que o Estado pode dispensar sua
intervenção direta porque o mecanismo social é autorreprodutor.” (SADER, 1998, 13).
Essa asserção mostra a dependência do capitalismo face à intervenção do Estado para
impor-se e tornar-se forma hegemônica de sociedade, e a premissa de que o capitalismo
ao estabelecer-se imporá com alcance sua lei, e, nesse estágio, não dependerá de outras
forças (como o Estado, para reproduzir-se).
O capitalismo não teria se estabelecido, nem se tornado sistema hegemônico mundial,
sem a ajuda do Estado, sem a intervenção direta do Estado nesse sentido; ou melhor,
sem o recurso à força que se apresentava como legítima, absoluta, justa e neutra e
representante do interesse comum de todos, materializada no Estado. A aparência de
neutralidade, coisa absoluta, imparcialidade do Estado foi usada pelo capitalismo para
fortalecer a direção da sua atuação sobre a sociedade, e da conformação desta aos
desígnios do capital, ao aniquilamento das forças contrárias ao capital e aos seus
interesses, e por fim à imposição definitiva do capitalismo sobre a sociedade, e até hoje
a manutenção e conservação do capitalismo, malgrado as lutas constantes contrárias ao
capital, em prol de sua destituição, e, quando menos, em vista do recrudescimento da
realização histórica de suas tendências.
Ainda quanto a esse abismo entre como o Estado liberal se apresenta e como se efetivou
historicamente. É preciso compreender o Estado liberal, o aumento de sua força e sua
ampliação pelo mundo diretamente conectado com o fenômeno do Colonialismo, e toda
a violência que é constitutiva deste.

718
É preciso não esquecer que foram esses mesmos Estados liberais
das principais nações europeias os construtores e guardiães dos
vastos e lucrativos impérios coloniais, que por muitas décadas
mantiveram sob domínio a maioria das nações africanas e
asiáticas. Assim, liberais no âmbito das suas respectivas nações,
opressores e espoliadores em quase todo o resto do mundo.
Livre-iniciativa nas metrópoles, ao lado de ferrenho monopólio
das riquezas e do comércio em seus domínios coloniais. Como
se vê, o propalado não-intervencionismo do Estado liberal, em
principio, só tem sentido na perspectiva de uma ideia abstrata
sobre essa formação, o que, evidentemente, implica também
uma ideia abstrata de sociedade e de história. (COSTA, 2010,
265) [grifo meu].

As ‘guerras por recursos’ assumiram diversas formas e


resultaram em distintas estruturas produtivas nas três fases do
capitalismo. A Idade Europeia, capitaneada pela Grã-Bretanha,
que assumiu seu apogeu na fase imperialista do final do século
XIX, foi marcada de um lado pela presença colonial e militar
nos territórios em disputa entre as potências da Europa, como foi
o caso da Ásia e da África, e de outro, pelo controle sobre a
estrutura da produção, transporte e comercialização, como foi o
caso dos países politicamente independentes, mas
economicamente dependentes, da América Latina. (EGLER,
2011, 12).

As palavras de Costa resumem bem a questão: “liberais no âmbito das suas respectivas
nações, opressores e espoliadores em quase todo o resto do mundo.” Assim o
estabelecimento do capitalismo como forma de civilização não se deu pela difusão
mundial de um tipo único de racionalidade procedimental, como quer Weber. A difusão
e a aceitação universal desse tipo de racionalidade só foi possibilitada pelas submissão
violenta de todos aqueles que a ela não quiserem integrar-se voluntariamente, e pela
repressão violente de todos os tipos de racionalidade diferentes e que quisessem existir
paralelamente àquela.
Tendo exercido papel decisivo no estabelecimento do Capitalismo, o Estado Moderno
segue atuando ligado às forças do Capital, atua garantindo a continuidade do modo de
produção e a perpetuação do poder instituído.

(...) ao aparato estatal como forma de organização de relações


sociais de dominação. Discuti também o problema do poder de
toda classe dominante com relação ao Estado: a necessidade de
assegurar sua representação no aparato estatal e, por outro lado,

719
organizar a mediação de suas relações com as classes dominadas
a partir do próprio Estado. (THERBORN, 1999, 82-3).

5 Estado liberal e a fantasia dos direitos sociais

Até hoje esse Estado criado pela burguesia permaneceu como tal, refletindo e criando as
condições para reprodução de um desequilíbrio de poder na sociedade. Todos os diretos
sociais conquistados ao longo dos séculos XIX e XX não foram senão concedidos pela
burguesia para e por esse Estado burguês e nunca de outra forma senão segundo os
interesses daquela, e sempre na exata medida dos seus interesses. Mesmo medidas
aparentemente contrárias à lógica primária do capitalismo de acumulação sem medida,
como os relativamente altos salários que são pagos a determinados trabalhadores no
exercício de determinadas funções, cumprem sua função de reprodução da sociedade
capitalista ao terem o efeito de fortalecer a noção de meritocracia, e principalmente, ao
criar desigualdade e diferenciação entre os próprios trabalhadores e impedir
gradativamente que eles se reconheçam uns nos outros, impedindo assim a formação de
uma força conjunta, e de uma comunidade de identidade e de interesses, e a formação
de uma vontade coletiva maciça advinda da posição social dos trabalhadores na
sociedade, e segundo o interesse político destes.
Os trabalhadores, tomados como um grupo com características comuns, aqueles que não
têm outra opção na vida social senão a venda da sua força de trabalho, na medida em
que são ativamente explorados pela burguesia, colocam-se em franca oposição social e
política a esta, na medida em que o que esta quer não é exatamente a sua extinção e
aniquilamento, porem é o haurir de suas forças e de sua capacidade de trabalho e
atuação dirigida sobre o mundo, sem lhe dar contrapartida significativa e sem
consideração da sua saúde, de sua vida e de seu bem-estar. Assim sendo, o mundo
sendo organizado pela burguesia desta forma e vitimando os trabalhadores desta
maneira, estes não podem constituir-se como grupo com interesses políticos públicos
diferentes senão os da aberta posição e hostilidade à burguesia como classe e ao mundo
por ela criado. Entretanto, a burguesia opera a vida social e seu poder social de forma a
não permitir a percepção de mundo pelos trabalhadores desta forma, e a colocar como
ilegítima da parte deles a oposição à burguesia e ao mundo e representações sociais
criados por esta.
Assim, mesmo os festejados ‘direitos sociais’, ou direitos dos trabalhadores,
conquistados ao longo do século XX, se observados de mais de perto, constituem em
última instância vetor de conservação da sociedade capitalista, na medida em que, ao
amainar a crueldade da exploração capitalista, mas não extingui-la, desmobilizam a luta
política contra o capital.
A ampla concessão de direitos sociais no Welfare State foi uma forma nítida de
apaziguar as mobilizações sociais e isto é claramente mostrado por Cruz:

(...) importa assinalar o caráter exemplar das mobilizações


aludidas – logo emuladas por inúmeros grupos (...) e o fato de

720
que a resposta governamental ao conjunto dessas pressões foi o
lançamento, em curto espaço de tempo, de uma vasta gama de
programas sociais. (CRUZ, 2007, 368).

Esta leitura evidencia a força conservadora da concessão de direitos sociais: no sentido


de que sua conquista tem um impacto desmobilizador na luta social por uma sociedade
efetivamente igualitária – ou seja, por uma sociedade sem a propriedade privada dos
meios de produção. É algo que a teoria social contemporânea tem que pensar: a luta por
ampliação dos direitos ser uma luta que tem o impacto de fortalecer o capitalismo, com
sua desigualdade e injustiça inerente, à medida que não vem de par com o necessário
questionamento da real substância criadora da desigualdade e violência na sociedade: a
propriedade privada dos meios de produção, e apropriação privada dos produtos do
trabalho coletivo.

(...) seu domínio [da burguesia] não precisa se dar pela posse
direta do Estado; a própria forma de constituição das relações
sociais de produção – da qual o Estado é a expressão – lhe
reserva o papel hegemônico. (...) O Estado revela então que só
existe sob a forma de dissimulação, porque representa a unidade
fictícia de uma multiplicidade. Representa a sociedade, a nação,
os interesses gerais dos indivíduos, abstrações intelectuais sem
determinações reais. (SADER, 1998, 102).

Reconhece-se assim a opressão de classe engendrada pelo capitalismo. Como este


transforma a todos e os divide em proprietários e trabalhadores, as consequências
diferenciais que isto implica para a vida das pessoas. E reconhece-se também o papel do
Estado na imposição e conservação deste sistema, mesmo à revelia da vontade de todos
aqueles oprimidos por ele – e cujo trabalho o sustentam.
Entretanto, conquanto esta atuação, através de suas categorias próprias, incida sobre
todos na sociedade, e malgrado a ciência de que o Estado é responsável e age pela
reprodução das relações sociais do capitalismo, independente de quem sejam os sujeitos
que ocupam os postos de direção no Estado, é preciso reconhecer que a natureza das
elites que ocupam os postos ou/e o poder de Estado, seus valores, convicções,
preconceitos, - não obstante seja indiferente a dominação de classe, que não se alterará
enquanto o Estado Moderno continuar - é um fator determinante para explicar
fenômenos sociais e políticos particulares de cada formação social e de sua relação com
outras sociedades.
Quanto ao aspecto da hegemonia da classe burguesa, ou seja, da conformação da
sociedade, e ao aspecto da luta política no interior dela, não há dúvida de que a função
objetiva do Estado é a reprodução das relações sociais que sustentam e reproduzem
capitalismo, e que isso é decisivo para explicar a maneira de ser do Estado; e esta
explicação mostra como é indiferente quem são os sujeitos concretos que ocupam os
postos do Estado. “Os sujeitos do poder são aqui os procuradores da estrutura. Por isso

721
conta o que eles fazem objetivamente e não aquilo que imaginam fazer ou desejam
fazer.” (PERISSINOTO e CODATO, 2011, 256).
Entretanto, ao se considerar outros elementos de violência social, denegação de
reconhecimento e privação de direitos – todas formas de subalternização e segregação
que são criadas pelos homens a partir de outros critérios, simbólicos e culturais,
diferentes do critério econômico, mas não descolados deste – (como as relações
concretas, já citadas como exemplo, do racismo, da homofobia, misoginia etc.), estes
dependem sim de quais grupos e pessoas concretamente têm influência decisiva sobre o
Estado e suas decisões, e das categorias culturais de cada formação social e código
cultural específico.
Para a explicação dessas questões de subalternização, dominação, opressão de natureza
simbólico-cultural – que não se explicam direta e imediatamente pela relação de classe -
, a compreensão da razão de ser do Estado em si mesmo, como guardião do capital
como relação social, não é suficiente. No que tange esses aspectos, a consideração dos
outros fatores atuantes em cada formação social, principalmente as categorizações de
pessoas segundo critérios diferentes e a criação de hierarquizações a partir dessas
categorias, ou seja, a natureza das elites, seus interesses políticos e sua conformação
social e cultural, precisa ser considerada. Nesses casos, “(...) a natureza da elite
governante (seus perfis sociais, atributos profissionais, valores mentais) pode vir a ser
um fator importante para a explicação dos fenômenos políticos.” (PERISSINOTO e
CODATO, 2011, 256).

6 Elites nacionais: apropriação dialética do Estado capitalista.

Perissinoto e Codato definem conceitualmente

“‘a elite como um grupo formado por indivíduos que, no seu


campo de atividade, conseguem se apropriar em maior
quantidade dos bens ali valorizados’. Ao mesmo tempo, se
reconhece que essa apropriação – que é, por definição, um
processo de luta social – ocorre em detrimento da ‘não-elite’,
definida como os desprovidos desses bens ou como aqueles que
os possuem em menor quantidade ou
qualidade.”(PERISSINOTO e CODATO, 2011, 260).

Assim, no que se refere ao poder político e\ou à apropriação das funções políticas do
Estado, tem-se o que se chama elite política. Entretanto, para este caso, o caráter de
apropriação monopólica e/ou excludente ou quase monopólica dos bens mais
valorizados, conferidores de status e meios de poder é crucial. Essa apropriação e
criação assim da elite política é realizada mediante a necessária exclusão das outras
pessoas e grupos dos meios de poder e das categorias culturais socialmente valorizadas.

722
A esses grupos lhes são atribuídas as categorias sociais portadoras de estigmas
negativos e inferiorizantes.
A mera existência da elite política, nesse sentido, já indica a conformação não
democrática da sociedade, à medida que testemunha a apropriação monopólica da
política por um grupo, e a desapropriação ou o interditar do acesso à política por outros.
No caso da apropriação do poder, da capacidade e da legitimidade política, a elite é que
se apropria da capacidade de operar as estruturas políticas e assim fazer valer seus
interesses. Para tanto ela pode apropriar-se dos postos políticos oficiais, ou não precisa
apropriar-se da execução das funções políticas do Estado, mas detém o poder de tal
forma a agir sobre as decisões do Estado, mesmo não estando ocupando suas funções
administrativas.
Tendo em mente que quem detém o poder social em cada formação histórica concreta se
trata de uma minoria, que o detém de forma monopólica para sustentação da própria
hegemonia e da materialidade e código cultural tal qual interessa a ela, a existência e os
valores concretos, reais e históricos, dessas elites em cada formação histórica concreta
determinada, é determinante de outros tipos de violência e injustiça social, e privação de
direitos em geral, além do apenas econômico, que tomarão corpo nessa formação social
específica.
Assim, conhecer todas as formas de subalternização existentes numa sociedade passa
pela necessidade de conhecer as características específicas dos grupos que detém o
poder, e quem são os grupos que aqueles primeiros afastam do poder e visam a manter
excluídos e estigmatizados, e a categorias e hierarquizações culturais que criam para
isto e o modo como se valem delas para isso.
Indissociavelmente disto trata-se de compreender como os poderes locais e os códigos
culturais locais, com suas categorizações e hierarquizações próprias de pessoas e
grupos, são transformados segundo os novos parâmetros de sociabilidade, poder e
divisão social impostos pelo capitalismo. A adequação ao capitalismo – ou o modo da
absorção por este - de todos os códigos culturais gerados anteriormente é prioritária na
explicação das correlações de forças e das forças que compõem a sociedade, pois é a
forma dessa adequação ou da apropriação dos códigos culturais locais pelo capitalismo
que determinará a continuidade ou não desses mesmos códigos e também a forma dessa
continuidade. A relação social do capital é, pois, determinante e reorganiza as outras
forças e categorias sociais segundo sua forma de poder e subalternização.
O que se depreende disso tudo concretamente é que a caracterização social e cultural da
elite política (no sentido daquela que se apropria diretamente dos postos políticos do
Estado ou que tem influência decisiva e determinante sobre ele) tem peso decisivo sobre
a conformação do Estado e da sociedade. Basicamente, elites racistas fazem um Estado
racista. Elites contrárias à extensão dos direitos civis aos sujeitos de sexualidades não-
normativas, fazem um Estado assim homofóbico – mesmo se não haja qualquer relação
ou interesse direto do grande capital em manter os sujeitos de sexualidades não-
reprodutivas em posição subalterna. O motor dessa privação ativa de direitos aos grupos
LGBT não é exclusivamente a dominação de classe. Mas ele está lá, e compõe o mesmo
Estado que é classista e burguês. É assim também com o racismo e o patriarcado – que

723
conexões mais diretas ou mais visíveis com as tendências do capitalismo -, e é assim
com a estigmatização e exclusão de estrangeiros e povos indígenas, dos deficientes
físicos.
Entretanto, são formas de estigmatização que existem e variam conforme se sustentam
como interesse das elites – leia-se: aqueles que detêm o poder – de cada sociedade em
particular.
Isto produz certa antítese entre a relação fundamental imposta pelo capitalismo, a do
fetichismo da mercadoria, e outras relações sociais que marcam presença e tem força de
determinação sobre a vida das pessoas.
Costa (2010) usa uma linguagem diferente para se referir a esta mesma antítese.

(...) o debate essencial sobre a origem e o caráter do Estado


moderno. Muitos dos seus traços essenciais decorrem de
processos mais ou menos universais, no sentido de que se
relacionam com determinado modo histórico de formação das
sociedades. O papel do conflito de classes parece ser, nesse
caso, de fundamental importância, já que se manifesta (de modo
qualitativamente distinto) tanto em sociedades antigas como
sociedades capitalistas (principalmente). Já que, no interior de
uma sociedade de classes, a sua repartição se determina pela
propriedade ou não de determinados bens (o que está na origem
dos conflitos), deduz-se daí que o significado e as funções do
Estado, essas circunstâncias, tenderão a expressar também essa
determinação geral. Entretanto, o Estado moderno é também o
resultado das mediações das formações históricas específicas de
cada sociedade e de cada país. (...) Aceitando a colocação de
Gramsci de que ele é a própria sociedade organizada, as suas
funções especificamente políticas e ideológicas podem variar
bastante, mesmo em se tratando de países formados na órbita de
um mesmo modo de produção, por exemplo. (COSTA, 2010,
261) [grifo meu].

Como nos mostra Costa, apoiado em Gramsci, o Estado e a sociedade, mesmo quando
formados pelo mesmo modo de produção, ou seja, mesmo quando sob as leis do
capitalismo, são resultado das mediações das formações sociais históricas de cada
localidade. Esta afirmação é coerente com a própria teorização marxista do Estado, que
compreende que as “(...) formas históricas de existência da sociedade capitalista, em que
esse modo de produção aparece sempre mesclado de sobrevivência de outras formações
sociais (...)” (SADER, 1998, 12).

7 Luta Pela Democracia

724
Do exposto poder-se-ia dizer do Estado como se configura que não é apenas liberal-
burguês, ou neoliberal, mas também racista, também homofóbico, também machista,
eurocêntrico, ou seja, também comprometido com os interesses e as hierarquizações das
elites que o dominam.
Na medida em que essas são forças presentes na sociedade, e inquestionavelmente
apropriadas diretamente pelo capitalismo para intensificar a exploração, e o Estado é
indubitavelmente em favor do Capital, essas forças também são recrutadas pelo
capitalismo através do Estado, ou no mínimo com a anuência do Estado; ou seja, estão
também no Estado, e isso se confirma facilmente em casos como o Brasil, em sua elite
política e social, que é conservadora não só no sentido de ser contra a promoção de
direitos aos trabalhadores, especificamente, como estende seu conservadorismo a
aspectos não relacionados aos trabalhadores, mas alvo de disputas sociais, como os
direitos das mulheres, dos indivíduos de sexualidades não-normativas, as formas de
combate ao racismo.
Como vimos ser o interesse geral da ordem burguesa, a desumanização dos
trabalhadores para sua exploração, e a criação de desigualdade e subalternização que
isto implica, e como vimos ser esta dominação de uma elite (a burguesia) imbricada
com outras formas de subalternização e exclusão dadas de acordo com cada formação
social, a desigualdade social, sob todas as formas que se apresenta, não é um dado que
se apresente como problema misterioso a ser combatido solidariamente por toda a
sociedade. A desigualdade, sua permanência e sua acentuação, é interesse ativo desta
elite, que se alimenta desta mesma desigualdade, dela retira sua dominação e seus
privilégios, e, portanto se interessa e age para mantê-la. Não quer combatê-la; ao
contrário. Deseja-a; cria-a ativamente. E sabota as tentativas de eliminá-la.

O interesse geral da classe burguesa, por sua vez, é


essencialmente um ‘interesse político’ (...), isto é, a garantia da
“ordem material” em que essa classe ocupa uma situação
privilegiada ou, para usar uma expressão que em Marx parece
transcender a economia, o interesse na garantia da “ordem
burguesa”. (PERISSINOTO e CODATO, 2010, 39) [grifo meu].

As forças em luta pela democracia precisam saber disso, e ter em mente que não se
resolverão os problemas da sociedade com conciliação e solidariedade – e menos ainda
quando o lado opressor é cioso de sua opressão. Os problemas da sociedade serão
resolvidos somente pela luta e pressão política maciça para fazer retroceder aqueles que
desejam a desigualdade e a exploração.
Como diz Therborn, “a burguesia aceitou a democracia, embora o tenha feito tratando
de limitar ao máximo possível os alcances da mesma” (THERBORN, 1999, 84). E o fez
não apenas no sentido de negar reconhecimento e oprimir e explorar os trabalhadores,
mas também no sentido de impor os seus valores culturais e morais (por definição,
locais, históricos e contingentes, e variáveis para cada formação histórica) e o reverso
da moeda dessa imposição: a consequente estigmatização e exclusão dos outros grupos

725
sociais, com a qual fortalece o próprio poder, cria distinções na sociedade, e estabelece
e impõe o próprio modo de vida como o único modo de vida e de felicidade verdadeira,
depreciando as formas de vida e sociabilidade diferentes da dela. Assim, se branca, esta
elite terá na reprodução ativa do racismo um de seus pilares. Se hétero, a
homoafetividade será depreciada, e a heteronormatividade estabelecida como padrão. Se
adepta de alguma religião, depreciará as outras etc.
Esta estigmatização via categorias culturais, na medida em que cria grupos e categorias
de pessoas ainda mais desumanizadas, possibilita uma intensificação real da exploração
das pessoas nessas condições pelo capital, tanto pela execução de trabalhos comuns,
porém de forma extremamente mal- remunerada, ou ‘precarizada’, quanto pela sua
segregação a trabalhos degradantes, que as pessoas que têm possiblidade de escolha –
ou seja, que não estão massacradas por diversas estruturas simbólicas e materiais de
subalternização e estigmatização – não escolhem realizar.
Consequentemente, na medida em que permitem essa exploração intensificada, estas
estruturas simbólicas, culturais - cuja substância constituinte, cuja irredutibilidade é o
sentido (Weber, Saussure, Freud, Lévi-Strauss, Geertz) - de subalternização, devem ser
pensadas como constitutivas da mais-valia, ou se não tanto, ao menos como
constituintes da forma como se realizou e realiza concretamente a exploração da mais-
valia na história.
Sendo as desigualdades e estigmatizações criadas em dois níveis distintos, o da
materialidade, relações de produção, e o dos códigos culturais (sentido), ainda que
guardem relações, dependências e influências entre si, a luta política pela igualdade e
pela democracia tem que incidir simultaneamente sobre as duas fontes de
subalternização. Uma luta, por si, só não dá conta de resolver as duas sortes
identificadas de problemas: as estigmatizações geradas por categorias culturais, e a
dominação e exploração de classe.
Therborn chama as lutas contra estigmatizações de raiz cultural de “políticas de
identidade” e reconhece o papel e dever do Estado na luta para o reconhecimento dessa
diversidade como “reconhecimento explícito do Estado da multiculturalidade que existe
em toda sociedade” (THERBORN, 1999, 86). Repare-se bem no “que existe em toda [=
qualquer] sociedade”. Independente do modo de produção.
E ainda conforme o autor, “As políticas de identidade da nação, de grupos étnicos, de
gênero, se sexualidade, etc., hoje formam parte constitutiva e central dos debates e das
políticas publicas.” (THERBORN, 1999, 86). Ou seja, têm sua importância, sua
materialidade expressa na mobilização e organização das pessoas em torno dessas
causas e não podem ser simplesmente ignoradas.
Portanto, a luta pela democracia, mesmo dentro do capitalismo, passa pela luta contra a
propriedade privada dos meios de produção, e pela política de identidades
(THERBORN, 1999, 86) e pela política de frentes (CASANOVA, 2002, 198); como
etapas da destruição do poder da burguesia e das elites, poderes por natureza
monopólicos, excludentes e violentos -, o que significa concretamente a destruição da
heteronomia política na sociedade, da exploração dos trabalhadores e das categorias

726
sociais e códigos culturais engendradores de desigualdade, subalternização e
estigmatização entre os homens.
Sendo o Estado reprodutor e perpetuador dessas iniquidades, a luta pela democracia
deve visá-lo como um de seus principais alvos (mas não o único).

Hoje, a luta por uma democracia ampliada e popular, com


pluralismo ideológico, religioso e político, rapidamente postula
a restruturação do poder do Estado. Sem essa reestruturação
torna-se impossível uma política social para a maioria; a própria
democracia ampliada parece insustentável. O fenômeno nos
obriga a formular mais claramente qualquer projeto sério de
democracia da maioria, considerando três dimensões: a do
sistema político, a do Estado e a do próprio sistema social.
(CASANOVA, 2002, 180-1).

Ao mesmo tempo, a aliança das diferentes energias políticas dos diferentes grupos
oprimidos é fundamental na luta pela democracia ampliada. Uma aliança contra o
Estado repressivo, controlado pelas grandes transnacionais (a luta de classes) e pelas
perversas elites locais (sujeitos que estabelecem a subalternização de todos os outros).

Com referência às grandes correntes [de energias políticas


democratizantes] – a democrática, a dos trabalhadores e
marginalizados, e a nacional – mesmo com seus diferentes
níveis de profundidade, estas tem óbvias relações entre si, seja
porque uma delas assuma ou pretenda assumir todas as lutas, ou
porque várias se unam para um projeto comum. De qualquer
modo, ao propor uma das lutas sem levantar as outras, estas vão
aparecendo e as forças acabam enfrentando a alternativa de se
somarem contra um inimigo comum ou se separarem e até
mesmo lutar entre si (...). (CASANOVA, 2002, 189-90).

As forças populares e democráticas mais conscientes sabem que,


ao implementarem a nova luta política, cedo ou tarde terão que
tratar da luta pelo poder, e que ao implementarem a política de
frentes amplas, cedo ou tarde terão que tratar da política de
classes, o que não significa que por isso a política de frentes vai
desaparecer, mas esta irá se mover cada vez mais em torno de
uma luta pela democracia e pela libertação cuja principal base
social será o povo trabalhador e o povo de marginalizados,
informais e excluídos, com o auxílio de todos os grupos e
organizações, que centrem seu objetivo num governo em que os

727
cidadãos governem e os homens e mulheres trabalharem,
participem e não seja explorados. (CASANOVA, 2002, 197).

Até agora se concebendo como opostos e adversários na luta social, não se


reconhecendo um ao outro como projetos políticos legítimos e necessários, os projetos
políticos mobilizados em torno dos trabalhadores e aqueles que mobilizam suas energias
política em torno das políticas de identidade, precisam parar de se enxergar como
inimigos e reconhecer sua luta comum em prol da igualdade, da justiça e da democracia.
A esse desencontro entre esses grupos cabe a sentença de Casanova: “(...) qualquer luta
pela democracia aborda todas as demais lutas.” (CASANOVA, 2002, 190). Se uma luta
não abarca outras mobilizações por igualdade - e se chega a opor-se ou não reconhecê-
las -, ela tem muito pouco de democrática.

8 Considerações Finais
Do fato de que uma elite local, com características próprias se apropria do Estado e
induz uma forma particular, segundo suas singularidades, de atualização local da
relação social do capital. A existência dessas ‘elites’ e a monopolização do poder
político por ela excluem da participação sobre a organização da sociedade todos os
grupos sociais que não fazem parte dela, constituindo-os em grupos subalternos.
A possibilidade do combate a essa estatalidade burguesa, excludente por impedir acesso
idêntico aos processos decisórios e violenta por negar direitos fundamentais aos grupos
que ela mesma constitui como subalternos, está na reorganização da distribuição do
poder social. Nesse sentido, a noção socialista de poder popular apresenta-se como
alternativa teórica para orientar a luta. Nela se concentram a autonomia dos
trabalhadores para gerir a produção e a extinção da monopolização do poder político por
grupos específicos em detrimento do restante da sociedade.
Antonio Gramsci (1981; 2007) elabora enfaticamente a necessidade de os trabalhadores
dirigem a produção, segundo as necessidades próprias e os fins definidos por eles
mesmos. Gramsci propõe essa organização com base nos conselhos de fábrica.
A potencialidade dos Conselhos para a oposição ao elitismo e à apropriação monopólica
do poder de direção da sociedade está em que o Conselho visa a ser um organismo
representativo de todos os que trabalham numa fábrica e em que todos os seus membros
devem poder votar e ser votados. Gramsci supõe que isso não apenas ampliaria o caráter
democrático da Comissão mas capacitaria também esse trabalhador coletivo nela
organizado a controlar e a dirigir a totalidade do processo produtivo fabril.
A forma social dos Conselhos permite então aos trabalhadores controlar a totalidade do
processo produtivo. Tem a potencialidade de poder recuperar autonomia dos homens,
fazê-los deixarem de ser trabalhadores explorados para serem produtores autônomos e
com poder de decisão. Recuperar autonomia dos trabalhadores sobre a decisão de seu

728
processo produtivo. Eliminar alienação, do trabalho, e apropriação privada dos produtos
do trabalho coletivo/social.

O Estado socialista já existe potencialmente nas instituições de


vida social, características da classe trabalhadora explorada.
Ligar essas instituições, coordená-las e subordiná-las numa
hierarquia de competências e de poderes, centralizá-los
fortemente, também se respeitando as necessárias autonomias e
articulações, significa criar desde já uma verdadeira democracia
operária, em contraposição eficiente e ativa ao Estado burguês,
preparada desde agora a substituir o Estado burguês em todas as
suas funções essenciais de gestão e de domínio do patrimônio
nacional. (GRAMSCI, 1981, 34).

A razão de ser do Conselho é promover a educação recíproca e desenvolvimento do


novo espírito social, calcado da solidariedade.
Os Conselhos pretendem a unificação orgânica da classe trabalhadora. “A existência do
Conselho dá aos operários a responsabilidade direta pela produção, leva-os a melhorar
seu trabalho, instaura uma disciplina consciente e voluntária, cria a psicologia do
produtor, do criador da história.” (GRAMSCI, 1981, 43).
A importância de uma auto-organização forte e eficiente para dar conta da autonomia na
produção é tal que é objeto de exploração intensa de Gramsci em um dos seus maiores
textos, Americanismo e Fordismo (2007).
A organização conselhista, entretanto, é necessária mas não suficiente para a
democracia socialista.
Uma das raízes do poder proletário está na sua auto-representação na fábrica, ou, em
termos mais genéricos, em sua auto-representação nos locais e espaços de produção da
vida material. Os organismos de base, assim formados, têm importância decisiva para a
efetivação de uma democracia socialista efetiva.
A concepção conselhista gramsciana, apesar de ser uma concepção pluralista, que
compreende que o poder popular deve se exercer por uma pluralidade de organizações
que refletem a diversidade das atividades e formas de associação humanas, precisa,
entretanto, ser criticada no sentido de realizar certa abstração das diferenças existentes
entre os seres humanos.
Numa democracia socialista, onde impere o poder popular – em oposição ao poder
monopólio de elites -, todos são trabalhadores, todos devem ser produtores, entretanto,
isso não resume tudo o que os seres humanos são. Há aquele aspecto da existência e
subjetividade humana que poderia se chamar étnico ou identitário.
A necessidade de organizar a luta dos grupos subalternos em termos não apenas de
classe, mas também étnicos e identitário, já foi identificada em trabalhos que tratam da
luta de grupos e povos oprimidos contra o capital, como os de Felipe Addor (2012). Ao

729
investigar a história da formação do movimento indígena do Equador, Addor mostra
explicitamente como as primeiras tentativas de articulação dos povos indígenas em
torno do projeto político de luta contra a exploração capitalista-imperialista tiveram
sucesso limitado por não abarcarem o aspecto étnico.

Portanto, a FEI [primeira organização articuladora da luta


política indígena] atuava como tradutora da população indígena,
mas direccionando suas demandas para dentro de uma discussão
política de direitos de classe, de direitos dos trabalhadores
agrícolas, sem, no entanto, promover a luta por uma
identificação de grupos que exigem um reconhecimento
colectivo étnico, ciudadanos-étnicos, na sua relação com o
Estado equatoriano. (ADDOR, 2012, 128).

Esta organização foi exitosa no começo, na conquista da reforma agrária, porém perdeu
força exatamente por sua incapacidade de representar as demandas étnicas dos povos
indígenas.
O mesmo texto demonstra como a organização em torno do fortalecimento do poder
popular indígena ganhou força ao incorporar a identidade/etnia. O movimento indígena
“tem como origem posições classistas em torno dos camponeses, mas, aos poucos, foi
assumindo questões étnicas, incorporando as reivindicações indígenas e negras.”
(ADDOR, 2012, 129).
Rickard Lalander (2009) na mesma experiência do Equador, explicita a necessária união
do discurso classista e do étnico.

Desde su formación en 1976, la UNORCAC se ha identificado


políticamente con el Partido Socialista y el Frente Amplio de
Izquierda (FADI), partidos que se han caracterizado por sus
discursos clasistas e incluso étnicos en comparación con los
otros partidos políticos. (LALANDER, 2009, 192)

Trazendo esta conclusão para as complexidades da sociedade contemporânea, somos


levados a pensar que esta união entre a classe e o étnico precisará se realizar entre todas
as distinções culturais dos grupos subalternizados. O movimento político deverá
incorporar o discurso de classe, étnico e os diversos discursos dos grupos diversamente
subaleternizados: deverá ser, pois, também, pois, afrocentrado, feminista, anti-
homofóbico etc.
A unificação da luta de classe com as lutas étnicas/identitárias já se mostrou
imprescindível para o avanço em direção à concretização de um poder popular em
experiências históricas de lutas políticas específicas. A teorização de Gramsci para
organização dos trabalhadores em conselhos revela elementos de que não se pode

730
prescindir se quer uma organização da sociedade democrática desde as bases e que dê
conta de prover a produção necessária.
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732
Sociedade capitalista contemporânea: a negação da consciência de classe e os
rebatimentos na luta de classes

Lívia N. Ávila¹

¹ Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ – livia.as@hotmail.com

Resumo:
Este estudo propõe uma reflexão voltada para a dinâmica da sociedade capitalista
contemporânea e da condição da luta de classes frente a esse contexto, considerando a
questão da consciência e da consciência de classe do ser social. Trata-se de um trabalho
bibliográfico com abordagem qualitativa, que permite uma melhor apreensão do
movimento do real. Para tal, discute os fundamentos do modo de produção capitalista e
seu movimento na contemporaneidade. Em sequencia é realizada uma discussão sobre o
fetichismo da mercadoria, alienação e reificação como base de sustentação para o
debate das condições atuais do ser social “desprovido de sua consciência”. Logo,
perpassa de maneira sintética pela questão da ideologia burguesa implantada para
beneficiar o sistema capitalista e sua contribuição com a superficialidade do ser social
contemporâneo que encontra-se submetido a um “modo capitalista de se comportar e de
pensar”. Por fim, é elencada a discussão da reificação e sua influência na consciência do
ser social, exaltando a consciência de classe e a condição da luta de classes em meio ao
cenário contemporâneo.
Palavras-chave: Alienação; Reificação; Ser social; Consciência; Luta de classes.

1. Introdução

O presente artigo trás uma breve reflexão inicial acerca do movimento do capital na
sociedade do modo de produção capitalista. Para tal, serão abordados conhecimentos
elementares e centrais do movimento do capital como o trabalho, ser social e a
mercadoria como centro das relações capitalistas. Trata-se de um trabalho de
desconstrução do movimento cotidiano que nos esconde traços que marcam a sociedade
capitalista. Compreender os principais mecanismos que estão atrelados e movimentam a
sociedade capitalista é uma imposição para se conseguir um avanço à essência dos
fenômenos da sociedade contemporânea.
Em sequencia será abordada a questão do fetichismo e da alienação na sociedade
capitalista contemporânea. Esses fenômenos causam a reificação da sociedade em geral,
bem como da consciência do ser social, conjuntura tal que proporciona a negação da
consciência de classe do ser social e coloca a luta de classes em uma condição submissa
ao domínio capitalista.
Propõe-se compreender aqui, a reificação como relações sociais mercantilizadas, ou
seja, vividas na aparência onde indivíduos não são “proprietários de si”, dominados pela
ideologia burguesa e sem a posse de sua consciência sobre isso. Neste sentido, o
objetivo central que move esta análise é reunir subsídios para elucidar o significado
desse processo descrito para a consciência de classe e luta de classes, ou seja, como
esses mecanismos de ordem burguesa se apresentam nesse contexto.
Uma vez que o presente artigo é destinado ao “Seminário Internacional de Poder
Popular na América Latina”, para ser apresentado no eixo temático “conflito entre a

733
ampliação da Democracia e Capitalismo”, aproveito aqui o espaço para ressaltar que a
reflexão aqui proposta é, decerto, pertinente ao eixo temático explicitado e ao temário
geral do evento, visto que, não há como se pensar os caminhos para fortalecimento e
consolidação do poder popular sem pensar a questão da tomada de consciência da classe
trabalhadora e a subjugação da sociabilidade contemporânea às normas burguesas.

2. Modo de produção capitalista: características elementares


2.1 O ser social constituído pelo trabalho
Para analisarmos o modo de produção capitalista ou as categorias centrais do
movimento do capital é imprescindível que tomemos o significado do trabalho como
categoria central no processo de constituição do ser social e na produção material da
vida.
O trabalho, além de ser condicionante da existência humana e pedestal da atividade
econômica é o que origina a forma de sociedade que vivenciamos e instaura o modo de
ser dos homens. De acordo com Netto e Braz (2008, p. 29), o trabalho “representa a
riqueza social”.
A natureza dispõe das matérias para serem transformadas em produtos pelo trabalho, ou
seja, o homem se apossa da matéria prima natural para transforma-la em produto que
proporcione condições de existência da sociedade e atenda a necessidade humana. Para
Marx (2012, p.211):
Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o
homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua
própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio
material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma
de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu
corpo – braços e pernas, cabeça e mãos -, afim de aproximar-se
dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida
humana.
Dessa forma, percebe-se que o trabalho é uma atividade idealizada pelo homem, uma
atividade pensada que requer destreza e conhecimento diante das necessidades do
mesmo361. Assim a realização do trabalho é uma aplicação exclusiva do ser humano,
uma vez que é um labor objetivo, onde são feitas seleções e uso de instrumentos para
fins específicos para a produção de valores de uso. Como ressalta Marx (2012, p. 212)
“no fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na
imaginação do trabalhador”.
Os sujeitos compartilham seus aprendizados e experiências que adquiriram na
transformação da natureza. Para esse compartilhamento, utilizam a comunicação,
revelando a coletividade imposta no trabalho e determinando a sociedade e sua

361
O trabalho se especifica por uma relação mediada entre o seu sujeito (aqueles que o executam, homens
em sociedade) e o seu objeto ( as várias formas de natureza, orgânica e inorgânica). Seja um machado de
pedra lascada ou uma perfuradora de poços de petróleo com comando eletrônico, entre o sujeito e a
matéria natural há sempre um meio de trabalho, um instrumento(ou conjunto de instrumentos) que torna
mediada a relação entre ambos. E a natureza não cria instrumentos: estes são produtos, mais ou menos
elaborados, do próprio sujeito que trabalha. A criação de instrumentos de trabalho, mesmo nos níveis
mais elementares da história, coloca para o sujeito do trabalho o problema dos meios e dos fins
(finalidades) e, com ele, o problema das escolhas: se um machado mais longo ou mais curto é ou não
adequado (útil, bom) ao fim a que se destina (a caça, a autodefesa etc.) (NETTO; BRAZ, 2008).

734
organização. Ou seja, o trabalho além de transformar matéria natural em objetos
materiais, transforma o homem em ser social. Para Antunes, (2007, p.136)
Embora seu aparecimento seja simultâneo ao trabalho, a
sociabilidade, a primeira divisão do trabalho, a linguagem etc.
encontram sua origem a partir do próprio ato laborativo. O
trabalho constituiu-se como categoria intermediaria que
possibilita o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser
social. Ele está no centro do processo de humanização do
homem. Para apreender a sua essencialidade é preciso, pois, vê-
lo tanto como momento de surgimento de pôr teleológico quanto
como protoforma da práxis social.
Nessa perspectiva, compreende-se que o trabalho é responsável pela evolução do
homem, pelo desenvolvimento do ser social. Para Iamamoto (2011, p. 39) “o tema
trabalho e indivíduo social supõe explicitar a noção mesma de trabalho, elucidando a
especificidade do ser social nele enraizada [...]”, pois ao laborar desenvolve-se
objetivações próprias, sendo o trabalho uma dessas objetivações. Esse conjunto de
objetivações do homem se chama práxis362. Netto e Braz (2008, p. 44), ao falarem sobre
a práxis humana, afirmam que “na amplitude, a categoria de práxis revela o homem
como ser criativo e autoprodutivo: ser da práxis, o homem é produto e criação da sua
auto-atividade, ele é o que (se) fez e (se) faz”.
Parafraseando Iamamoto (2011, p. 41):
O trabalho implica, pois, mudanças também no sujeito – homem
– e não só no objeto-natureza. Sob o ângulo material, é produção
de objetos aptos a serem utilizados pelo homem, produção de
meios de vida, através dos quais os homens produzem
indiretamente a sua vida material (Marx e Engels, 1977ª:29).
Sob o ângulo subjetivo, é processo de criação e acumulação de
novas capacidades e qualidades humanas, desenvolvendo
aquelas inscritas na natureza orgânica do homem, humanizando-
as e criando novas necessidades. Enfim, é produção objetiva e
subjetiva, de coisas materiais e de subjetividade humana.
Importa destacar que a produção advinda da práxis, em determinada condição histórico-
social, não permite que os homens se reconheçam como tal dito na citação anterior, ou
seja, autoprodutivo. Em dado momento, o homem deixa de se reconhecer no produto do
seu trabalho, deixa de enxergar seu labor na sua obra finalizada. Essa questão é
chamada por Marx de fenômeno da alienação363, característica presente fortemente
marcada na sociedade capitalista madura, onde a divisão social do trabalho e a
propriedade privada dos meios de produção são base para o desenvolvimento.
Dessa forma, na decorrência da história, o desenvolvimento das forças produtivas foi se
aperfeiçoando, o homem detendo primor sobre seu trabalho e o produto do trabalho foi
sendo aprimorado de forma que a produção fosse maior que a necessária para a
subsistência dos homens em sociedade. Essa produção excedente, ou maior que a
necessária, gerou bens que não eram consumidos imediatamente e que começaram a ser

362
A práxis envolve o trabalho, que, na verdade, é o seu modelo – mas inclui muito mais do que ele:
inclui todas as objetivações humanas. (NETTO; BRAZ, 2008). Outras objetivações podem ser
exemplificadas como conhecimentos artísticos, científicos, filosóficos, etc.
363
A referida categoria será melhor desenvolvida no decorrer do presente artigo.

735
destinados à troca, gerando a mercadoria e o comércio, movimento que origina e da
sustentação ao modo de produção capitalista.
2.2 O núcleo das relações capitalistas: a mercadoria
Para apresentarmos a forma mercadoria no processo de produção capitalista, importa
demonstrar sua importância para o mesmo, estando ela situada em posição central nas
relações de produção e sociais do modelo sócio-econômico vigente. Marx (2012, p. 45)
exalta que “a riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista
aparece como uma “imensa coleção de mercadorias” e a mercadoria individual como
sua forma elementar”.
Como pode-se perceber, a mercadoria é o ponto chave das relações capitalistas. O
processo de troca de mercadorias, ou seja, compra e venda, é atividade habitual no
modo de produção capitalista. Quase tudo pode ser comercializado e até mesmo a
significação do ser social passou a ser medida por quanto de mercadoria cada homem
possui, como diz Barroco (2010, p.157) “o modo de ser capitalista é fundado em uma
sociabilidade regida pela mercadoria, ou seja, em uma lógica mercantil, produtora de
comportamentos coisificados, expressos na valorização da posse material”.
A mercadoria é, como sugere Marx (2012, p.45), “um objeto externo, uma coisa, a qual
pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie”. Dessa
forma, por ser um objeto últil ao homem, a mercadoria possui um valor de uso, valor
qualitativo, como explica Marx (2012, p.46):
A utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Essa
utilidade, porém, não paira no ar. Determinada pelas
propriedades do corpo da mercadoria, ela não existe sem o
mesmo. O corpo da mercadoria mesmo, como ferro, trigo,
diamante etc., é, portanto, um valor de uso ou bem. Esse seu
caráter não depende de se a apropriação de suas propriedades
úteis custa ao homem muito ou pouco trabalho. O exame dos
valores de uso pressupõe sempre sua determinação quantitativa,
como dúzia de relógios, vara de linho, tonelada de ferro etc. Os
valores de uso das mercadorias fornecem o material de uma
disciplina própria, a merceologia. O valor de uso realiza-se
somente no uso ou no consumo. Os valores de uso constituem o
conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social
desta.
Como as mercadorias também englobam o trabalho humano, o valor de uma mercadoria
é calculado diante do tempo socialmente gasto para sua produção, para a produção do
seu valor de uso. Dessa forma, para que as mercadorias possam ser trocadas, é
necessário um valor quantitativo a ser considerado, que é chamado valor de troca, este
que considera o tempo socialmente gasto na produção. Nos dizeres de Marx (2012, p.
47) “como valores de uso, as mercadorias são, antes de mais nada, de diferente
qualidade, como valores de troca só podem ser de quantidade diferente”. Importa ainda
aqui, tornar saliente o dinheiro como uma mercadoria especial no modo de produção
capitalista contemporâneo, pois é a mercadoria na qual todas as outras expressam seu
valor, ou seja, seu preço, chamado por Netto e Braz (2008, p. 89) de equivalente
universal:
O surgimento do equivalente universal permitiu que a circulação
das mercadorias avançasse ainda mais; no entanto, somente

736
quando esse equivalente universal passou a ser uma mercadoria
dotada de propriedades especiais (durabilidade, divisibilidade,
facilidade de transporte etc.), a circulação mercantil pôde
florescer – e forma os metais preciosos (ouro,prata), convertidos
em dinheiro, que se mostraram adequados a essa função. O
dinheiro, pois, é a mercadoria especial na qual todas as outras
expressam o seu valor. O valor de uma mercadoria expresso em
dinheiro,é seu preço.
Ao ser feita uma análise da mercadoria como item central das relações comerciais e
sociais, é indispensável falar do fetichismo da mercadoria, que é algo entrelaçado à
mercadoria e presente nas relações sociais capitalistas. O fetichismo colado à
mercadoria impossibilita que o sujeito que a criou se reconheça na sua criação. É uma
forma misteriosa que carrega as marcas da produção capitalista, os segredos e os
artifícios do capital, o que possibilita o ser social alienado e a reificação das relações
sociais. Essa questão do fetichismo será melhor abordada nas linhas que seguem.
2.3 A esfera do trabalho
Algo importante a ser aqui considerado são as condições necessárias para que haja
mercadoria no modo de produção capitalista. Duas são as cláusulas impostas aos
trabalhadores para a produção: divisão social do trabalho e propriedade privada dos
meios de produção.
A divisão social do trabalho pode ser entendida como uma atribuição exclusiva de labor
a cada trabalhador específico, mais bem provido de artículos nas palavras de Marx
(2012, p.407):
Divisão do trabalho no interior da sociedade é medida pela
compra e venda dos produtos de diversos ramos do trabalho; a
conexão dos trabalhos parcelares na manufatura, pela venda de
diversas forças de trabalho ao capitalista, que as emprega como
força de trabalho combinada. A divisão manufatureira do
trabalho supõe concentração dos meios de produção na mão de
um capitalista; a divisão social do trabalho, fragmentação dos
meios de produção entre muitos produtores de mercadorias
independentes entre si.
A propriedade privada dos meios de produção é a situação em que apenas aqueles que
possuem os meios de produção, ou seja, os patrões capitalistas, possam vender e
comprar mercadoria. Isso inclui comprar a força de trabalho daqueles que não possuem
mercadoria para vender que não seja sua própria força laboral.
A exploração do trabalho é o núcleo das relações capitalistas de produção, pois o
capitalista se apropria do trabalho excedente dos trabalhadores na busca pelo lucro,
como relata Marx (2010, p 46), “o único motivo que determina um possuidor de capital
a empregá-lo, seja na agricultura seja na manufatura ou num ramo particular do
comércio por atacado ou varejista, é o ponto de vista do seu próprio lucro”.
O capitalista, no processo de produção investe quantidade de dinheiro (D) na compra de
um montante de mercadorias (M), que sob o comando do dono do capital e nas mãos
dos trabalhadores ou força de trabalho (F) e pelos meios de produção (Mp), ingressarão
na forma de produção (P) e originarão novas mercadorias (M’) no mercado que serão
trocadas ou vendidas por um preço superior ao de início, gerando um capital monetário
maior (D’) que será investido no processo de produção.

737
Figura 1 - Ciclo do processo de produção de capital

O lucro, ao inverso do que nos parece tão claro na produção capitalista, não está na
diferença da compra e da venda da mercadoria, ele não aparece advindo do processo de
circulação e sim do processo de produção, por meio da exploração dos trabalhadores, da
espoliação do trabalho excedente não pago ao trabalhador e apropriado pelo capitalista.
Esse tempo de trabalho excedente se chama mais-valia e ela é possível pois a força de
trabalho cria valor. E por isso, diz Marx (2012, p.254). “a taxa de mais-valia é, por isso,
a expressão precisa do grau de exploração da força de trabalho pelo capital ou do
trabalhador pelo capitalista”. Netto e Braz (2008, p. 106) ao falarem da mais-valia:
O capitalista não procede a nenhum roubo ou furto ao contratar
o trabalhador para uma jornada de oito horas – paga-lhe
mediante o salário, o valor da força de trabalho (isto é, o valor
da soma dos valores necessários à produção/reprodução do
trabalhador). Entretanto, durante a jornada, a força de trabalho
produz mais valor que o valor requerido para tal reprodução; é
desse valor excedente ( a mais-valia) que o capitalista se
apropria sem nenhuma despesa ou custo.
Ou nos dizeres de Rosdolsky (2011, p.198) em sua obra sobre A gênese e estrutura de O
Capital de Marx:
A mais-valia do capital não aumenta acompanhando o
multiplicador da produtividade; ela aumenta conforme a
diferença entre [de uma lado] a fração da jornada de trabalho
vivo que antes representava trabalho necessário e [de outro] essa
mesma fração dividida pelo multiplicador da produtividade. [...]
Portanto, o aumento da quantidade absoluta de valor do capital
como consequência de um determinado aumento da
produtividade depende da fração da jornada de trabalho que
representa o trabalho necessário e, portanto, expressa a relação
originária entre o trabalho necessário e a jornada de trabalho
vivo.
Os trabalhadores explorados vendem ao capitalista a única mercadoria que dispõe que é
sua força laboral, ou seja, sua força de trabalho. Trocar sua força de trabalho por
dinheiro, ou seja, vender sua força de trabalho ao capitalista, é o único meio que ele
encontra para garantir seu sustento. Desta forma, não encontram saída da exploração
uma vez que precisam do salário que recebem. Além disso,
A experiência cotidiana dos trabalhadores não lhes permite
apreender a distinção entre trabalho necessário e trabalho
excedente: na jornada de trabalho não há nenhuma divisória

738
perceptível entre ambos –sob esse aspecto, o trabalho
assalariado (“trabalho livre”) é mais ocultador da exploração
que o trabalho servil e o escravo (NETTO; BRAZ, 2008, p.
107).
Como é incessante a vontade de lucrar cada vez mais, o dono dos meios de produção
cria estratégias para a obtenção da mais-valia. São duas as modalidades de estratégia
usadas para alimentar o desejo do lucro. A extração da mais-valia absoluta e a extração
da mais-valia relativa. A mais-valia absoluta é o aumento ou a intensificação da jornada
de trabalho sem alteração no salário e a mais-valia relativa significa reduzir o tempo de
trabalho necessário, mediante o desenvolvimento das forças produtivas, esta podendo
ocorrer de duas formas: ou se reduz a quantidade de valores de uso consumidos pelo
trabalhador, ou se reduz o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir a
mesma quantidade de valores de uso.
É dessa forma que a exploração do trabalho humano acontece na sociedade capitalista,
de uma maneira que passa despercebida ao próprio olhar do trabalhar, mas que se
esconde atrás dos olhos cansados e do corpo de pouco grado e explorado do mesmo. O
trabalho não é realizado enquanto um gozo do ser humano, mas sim como algo árduo e
alienado onde o próprio trabalhador não se reconhece na produção do seu trabalho,
como relata Netto (1981, p. 57): “No trabalho alienado, o trabalhador não se realiza e
não se reconhece no seu próprio produto; inversamente, o que ocorre é que a realização
do trabalho, a produção, implica a sua perdição, a sua despossessão: o produto do
trabalho lhe aparece como algo alheio, autônomo”.
Como a exploração do trabalho, atrelada ao lucro são os principais mecanismos para a
manutenção do modo de produção capitalista, as condições básicas para a sobrevivência
do trabalhador são esquecidas, a vida do trabalhador é esquecida e ele é considerado
como útil apenas para produzir a riqueza do capitalista e mais nada. Desta forma, uma
parcela gigante da sociedade está à margem da miséria, vivendo na barbárie
proporcionada pelo capitalismo.

3. Alienação, ser social e a condição da luta de classes


3.1 Sobre a alienação e a consciência
Retomando a questão do modo de produção capitalista, característica evidente na
sociedade contemporânea, viu-se aqui que o mesmo representa um extraordinário e
absoluto desenvolvimento das forças produtivas, remetendo-se ao trabalho, e presumi o
domínio humano sob a natureza, o que possibilita o ser social adquirir consciência de si
mesmo como sujeito histórico:
Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o
homem e a natureza, processo em que o ser humano, como sua
própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio
material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma
de suas forças. Põe em movimento as forças naturais do seu
corpo – braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se
dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil a vida
humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-
a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza. (MARX,
2012, p. 211)

739
Do mesmo modo que foi possibilitado o surgimento do ser social e relações
engrandecedoras das capacidades humanas, o mesmo movimento viabilizou também
artifícios para a negação das mesmas capacidades. Trata-se da contradição que expressa
o mais significante grau de desenvolvimento do ser social e seu maior grau de
alienação. Segundo Netto (1981), o paradoxo coloca a contradição: como pode a
atividade prática – o trabalho – do ser genérico consciente que é o homem conduzir não
ao seu florescimento pessoal, ao despertar das duas potencialidades, mas, ao contrário, à
sua degradação? É a resposta para essa pergunta que será trazida por Marx, em uma
análise do fenômeno geral da alienação364, onde o autor parte de uma constatação
concreta que exprime o fato de que no capitalismo o trabalhador fica mais pobre em
função da riqueza que produz, cria mercadorias e se torna também uma mercadoria
como outra qualquer.
Para Marx (2012, p.57) “a riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista
configura-se em “imensa acumulação de mercadorias” e a mercadoria, isoladamente
considerada, é a forma elementar dessa riqueza”. A mercadoria em sua forma
misteriosa, remetendo ao fetichismo, designa e sustenta uma forma particular de
alienação da sociedade capitalista e potencializa a reificação das relações sociais.
O mistério e a complexidade da forma mercadoria podem ser explicados diante das
proposições do movimento do trabalho e do movimento do valor, ou seja, duas
categorias atreladas com fidelidade às formas burguesas. Dessa forma, refletir sobre a
mercadoria subjaz refletir sobre os segredos dos artifícios do capital.
Como sugere o termo, “a utilidade de uma coisa faz dela um valor de uso. Mas essa
utilidade não é algo aéreo, determinada pelas propriedades materialmente inerentes à
mercadoria, só existe através dela” (MARX, 2012, p. 8). Desse modo, o caráter
misterioso não está no valor de uso da mercadoria. Nem observada como um objeto que
satisfaz necessidades humanas, nem como produto do trabalho humano. Aqui a
mercadoria é uma coisa física e não mais que isso.
Ora, mas se o valor de uso não tem nada a se aproximar com o caráter misterioso
(fetichista) da mercadoria, a questão que devemos nos deter se segue adiante: De onde
procede o caráter misterioso do produto do trabalho na forma mercadoria?
O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto,
simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as
características sociais do seu próprio trabalho como
características objetivadas dos próprios produtos de trabalho,
como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso,
também reflete a relação social dos produtores com o trabalhado
total como uma relação social existente fora deles, entre objetos.
[...] Não é mais nada que determinada relação social entre os
próprios homens que assume a forma fantasmagórica de uma
relação entre coisas [...] produtos da mão humana parecem
dotados de vida própria, que mantém relações entre si e com os
homens. (MARX, 2012, p. 711)
Dessa forma, norteia-se que o caráter fetichista da mercadoria está ligado ao caráter
social do trabalho, ou ao montante dos trabalhos privados que produz mercadorias. Isso

364
Em 1844 Marx analisou o fenômeno geral da alienação condensando suas anotações em um conjunto
de manuscritos que só foram publicados em 1932, com o título de Manuscritos econômico-filosóficos
(MARX, 2010).

740
se da porque os produtores só entram em contato social, ou seja, ficam diante das
relações sociais, na troca de seus produtos do trabalho. É nessa situação que a
característica social terá exaustão, pois é o único momento em que as características
sociais de seus trabalhos aparecem, ou seja, na troca.
Com esse limite imposto, as relações sociais aparecem aos produtores “como relação
entre seus trabalhos privados como o que são, isto é, não como relações diretamente
sociais entre pessoas em seus próprios trabalhos, senão como relações reificadas entre
as pessoas e relações sociais entre coisas” (MARX,2012, p.71).
Percebe-se que o produto do trabalho adquire forma de mercadoria, esta com aparência
misteriosa, pois o modo de produção capitalista ao mesmo tempo em que releva o
caráter social do trabalho, exclui “fantasmagoricamente” qualquer participação social do
seu produto. Essa é a questão do fetichismo da mercadoria que engendra a questão da
alienação e reificação das relações sociais.
Torna-se então claro o problema do fetichismo, que se traduz em relações sociais entre
homens que assumem a forma de relações entre coisas, ou seja, a coisificação das
relações sociais. É um mecanismo próprio do modo de produção capitalista, logo,
universal e que está colado aos produtos do trabalho como uma fita adesiva invisível e
permanente.
O ser social, que vive na aparência das relações sociais, tem dificuldades imensas de
alcançar a essência desse processo e devido a isso, não percebe o fetichismo da
mercadoria, ou seja, encara a mercadoria como se ela tivesse “vida própria”,
naturalizando as relações sociais mediadas pela “coisa”. As relações sociais aparecem
como relações entre objetos ou coisas.
É importante entender que as coisas se tornam mercadorias porque são produtos dos
trabalhos privados. O conjunto desses trabalhos resulta na totalidade do trabalho social.
Para os produtores, as relações sociais entre seus trabalhos
aparecem, como relações materiais entre pessoas e relações
sociais entre coisas e não como relações sociais diretas entre
indivíduos em seus trabalhos. (MARX,2012, p.75)
A questão da troca das mercadorias é também determinante no entendimento do
problema do fetichismo, uma vez que a proporção em que os produtos são permutados
interfere. O valor fixado aos produtos pela repetição se torna um feito e os produtores
realizam essa tarefa sem consciência. Esse momento da princípio a uniformização do
trabalho, onde os produtos são materializados sem a consideração do seu valor social.
Para Marx (2012, p.95):
Só com a troca, adquirem os produtos do trabalho, como
valores, uma realidade socialmente homogênea, distinta da sua
heterogeneidade de objetos úteis, perceptível aos sentidos. Esta
cisão do produto do trabalho em coisa útil e em valor só atua, na
prática, depois de ter a troca atingindo tal expansão e
importância que se produzam as coisas úteis para serem
permutadas, considerando-se o valor das coisas já por ocasião de
serem produzidas. Desde esse momento, manifestam,
efetivamente, os trabalhos dos produtores duplo caráter social.
De um lado, definidos de acordo com sua utilidade, tem de
satisfazer determinadas necessidades sociais e de firmar-se,

741
assim, como parte componente do trabalho total, do sistema da
divisão social do trabalho que espontaneamente se desenvolve.
Por outro lado, só satisfazem as múltiplas necessidades de seus
próprios produtores na medida em cada espécie particular de
trabalho privado útil pode ser trocada por qualquer outra espécie
de trabalho privado com que se equipara. A igualdade completa
de diferentes trabalhos só pode assentar numa abstração que põe
de lado a desigualdade existente entre eles e os reduza ao seu
caráter comum de dispêndio de força humana de trabalho, de
trabalho humano abstrato. [...] Assim, percebe o caráter
socialmente útil de seus trabalhos particulares sob o aspecto de o
produto do trabalho ter de ser útil, aos outros, e o caráter social
da igualdade de valor que se estabelece entre essas coisas
materialmente diversas, os produtos do trabalho.
Essa aparência misteriosa, em que o próprio trabalhador não consegue reconhecer seu
trabalho na mercadoria, cria a ilusão de que as mercadorias tenham nascido por si só.
Essa é uma pendência histórico-social alicerçada pela universalização da produção
mercantil.
Ao se dizer que o trabalhador não se reconhece na mercadoria que foi criada em suas
mãos, importa remeter esse fato à alienação. O ser social se conserva por manter sua
práxis, ou seja, por manter suas objetivações. A alienação é um modelo exclusivo de
objetivação humana e o trabalho como uma das objetivações humanas também se torna
alienado:
[...] a alienação é uma forma específica e condicionada de
objetivação. O trabalho que constitui aquela atividade prática
negativa é um trabalho unidimensional: reduz-se a dimensão da
lucratividade, produção de valores de troca, mercadorias. E não
só produz mercadorias em geral: produzindo-as, produz-se a si
mesmo e ao produtor como mercadorias. Trata-se de uma forma
histórica do trabalho – o trabalho alienado. (NETTO, 1981, p.
57)
No trabalho alienado o trabalhador não se reconhece no seu próprio produto. É como se
o produto fosse algo autônomo. A alienação penetra na esfera da produção tanto pelo
produto do trabalhador, a mercadoria, quanto pela própria atividade laboral do trabalho,
que cria uma alienação de si próprio, ou seja, do próprio trabalhador. É uma forma
dupla de alienação no trabalho.
A alienação do trabalho é imputada à propriedade privada dos meios de produção que
por sua vez sustenta o modo de produção capitalista. Diante disso, Marx afirma que é
sustentável fazer ligação de todas as categorias da economia política à alienação, mas
nos seus Manuscritos de 1844, ele favorece três delas: a divisão social do trabalho
(expressão político-econômica do caráter social do trabalho alienado), a troca e o
dinheiro como força alienada da própria sociedade. Como relata Mészáros (2006, p. 93):
Como Lênin percebeu brilhantemente, a ideia central do sistema
de Marx é sua crítica da reificação capitalista das relações
sociais de produção, da alienação do trabalho por meio das
mediações reificadas do trabalho assalariado, da propriedade
privada e do intercâmbio.

742
Dessa forma, a sociedade alienada se configura como um oposto por inteiro. As relações
sociais são mudadas de ordem para seu sentido contrário, o ser social não se realiza
como ser social em sua essência além de ser dominado pelo objeto de seu trabalho, ou
seja, a mercadoria domina os indivíduos.
Quando tratamos acima a respeito da natureza do problema do fetichismo, percebe-se
que as determinações histórico-econômicas que o permeiam se encontram na
problemática da alienação, pois para Marx, fetichismo é uma modalidade de alienação e
essa alienação aderida ao fetichismo e arquitetada na sociedade capitalista é a
reificação. Explica com clareza Netto (1981, p.71):
O fetichismo põe, necessariamente, a alienação – mas
fetichismo e alienação não são idênticos. A alienação, complexo
simultaneamente de causalidades e resultantes histórico-sociais,
desenvolve-se quando os agentes sociais particulares não
conseguem discernir e reconhecer nas formas sociais o conteúdo
e o efeito da sua ação e intervenção; assim, aquelas formas e, no
limite, a sua própria motivação à ação aparecem-lhe como
alheias e estranhas. É possível afirmar (estendendo a
investigação para além das sugestões marxianas de 1844) que
em toda sociedade, independentemente da existência de
produção mercantil, onde vige a apropriação privada do
excedente econômico estão dadas as condições para a
emergência da alienação.
E completa Mészáros (2006, p.92):
O que é vitavelmente importante, sob esse aspecto, é o fato de
que “a ideia básica de todo o sistema de Marx” – “o conceito das
relações sociais de produção” – é precisamente seu conceito da
alienação, isto é, a desmistificação crítica marxiana do sistema
da “auto-alienação do trabalho”, da “auto-alienação humana” da
“relação praticamente alienada entre o homem e sua essência
objetiva” etc. [...]
Isso posto, a alienação fica qualificada como um método pelo qual os indivíduos
passam a não ser mais “proprietários de si”, como se perdessem a posse do seu
próprio “eu” e de seu vigor criativo e emancipador de ser social (grifos meus). As
mediações sociais que fazem o elo com a vida social do indivíduo ficam destorcidas e
muitas vezes invisíveis aos olhos do sujeito. Diante disso, a alienação se enrijece em
todas as coisas e fendas da sociedade capitalista, das relações de produção e relações
sociais.
O que é vitavelmente importante, sob esse aspecto, é o fato de
que “a ideia básica de todo o sistema de Marx” – “o conceito das
relações sociais de produção” – é precisamente seu conceito da
alienação, isto é, a desmistificação crítica marxiana do sistema
da “auto-alienação do trabalho”, da “auto-alienação humana” da
“relação praticamente alienada entre o homem e sua essência
objetiva” etc. [...] (Mészáros, 2006, p. 92)
Sendo assim, o fetichismo traz consigo a alienação especial e típica do modo de
produção capitalista - a reificação - adquirida na sociedade burguesa constituída, que

743
carrega fielmente as formações econômico-sociais que refletem a sociedade capitalista
consolidada. A reificação é uma feição própria de alienação na sociedade do fetichismo
generalizado, pois nessa sociedade existem dinâmicas particulares aplicadas pelo
fetichismo que estabeleceram formas particulares de alienação exprimidas na reificação.
Importa ressaltar que sociedades precedentes contribuíram para a formação histórica da
sociedade burguesa e as formas de alienação que dessas vieram também somam e fazem
parte da alienação da qual tratamos neste trabalho – a alienação própria da sociedade
burguesa constituída. Por meio disso, é importante o entendimento de que tudo que é
reificado é alienado e nem tudo que é alienado é reficado, tornando claro que a
alienação pode ser expressa de diversas maneiras e a alienação específica da sociedade
capitalista madura – a reificação – é uma delas, a que estamos considerando no presente
debate. Coloca Netto (1981, p.76):
Já sublinhei que Marx afronta o problema do fetichismo (e da
alienação) sempre que o seu objeto de investigação se situa na
moldura da economia política, teoria e prática da sociedade
burguesa. Desde que ele ultrapassa a impostação filosófica
(especulativa) para indagar diretamente do ser social, coloca-se-
lhe a problemática do modus da aparência fenomênica
(imediata) deste ser. Dada a sua preparação teórica, Marx tem
sempre presente que a manifestação imediata do ser social não
revela a sua estrutura e dinamismo – caso contrário, coincidindo
a aparência com a essência, o conhecimento imediato
identificando-se com o conhecimento teórico, pôr-se-ia a
inutilidade da reflexão.
Desta forma, algo claro e evidente para essa problemática é a questão do produto
mercantil, que é o que carrega o mistério do objeto estranho e autônomo ao ser social.
Esse traço se encontra na base da manifestação econômico-social. A mercadoria é o
embrião que vai esboçar os processos alienantes na sociedade, que são de caráter social.
Para Lukács, Marx expressa a reificação da seguinte maneira:
Com esse quiproquó, os produtos do trabalho se tornam
mercadorias, coisas que podem ser percebidas ou não pelos
sentidos ou serem coisas sociais [...] É apenas a relação social
determinada dos próprios homens que assume para eles a forma
fantasmagórica de uma relação entre coisas (LUKÁCS,2012:
198-199 apud Marx,O Capital I, pag. 85).
Por conseguinte, os processos alienantes tem descendência clara do fetichismo, atributo
da produção mercantil. A mercadoria se reproduz em todas as “gretas” da sociedade e a
torna inteiramente mercantilizada. A isso se referencia a reificação, que transforma até
as relações sociais em relações entre coisas e a essa forma se agrega a vida interna e
externa da sociedade, como torna claro Lucáks (2012, p. 198):
Nesse contexto a reificação surgida da relação mercantil
adquire uma importância decisiva, tanto para o desenvolvimento
do objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu
respeito, para submissão de sua consciência às formas nas quais
essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender
esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destruidores,

744
para se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge
desse modo.
É a esse sentido de “submissão da consciência dos sujeitos às formas nas quais essa
reificação se exprime” que Lucáks se refere. E é nesse caminho que a sociedade
burguesa apoiada na divisão social do trabalho vai barganhar para influenciar de
maneira decisiva as formas de objetivação dos sujeitos e o processo de reificação de sua
consciência para que a troca de mercadorias satisfaça qualquer necessidade de sua vida.
3.2 A “imposição” das normas burguesas
Em continuação, importa exaltar que a intenção e a tendência das sociedades são que
nossas condutas, ações e comportamentos se moldem pelas condições em que vivemos
nas famílias, escolas, religiões, etc., para que sejamos formados pelos costumes já
naturalizados. Como consequência se tem a reprodução dos valores propostos, que
parecem inquestionáveis e enrijecidos na sociedade.
Na sociedade classista em que vivemos, a classe dominante determina uma orientação
moral, que advém dos interesses econômicos capitalistas e que se dissipa por toda a
sociedade e todas as classes como uma orientação moral única e indubitável. Todos os
indivíduos se subordinam à ela como uma exigência de integração social. Essa
orientação moral, na sociedade contemporânea se manifesta em um determinado
“código de ética burguesa” instaurado na sociedade capitalista.
Diante disso, a reificação, fenômeno diretamente relacionado à alienação e ao fetiche da
mercadoria, é tema essencial para o entendimento das condições atuais do ser social.
Portanto, elevar-se-ia aqui ao ponto central, que traz a questão das relações sociais
superficiais e coisificadas e a não percepção do indivíduo dessa condição – sugere a
perdição do sujeito e a sua negação diante de suas objetividades. Explicita Mészáros
(2006, p. 98):
Embora o sistema monetário atinja seu clímax como o modo
capitalista de produção, sua natureza mais íntima não pode ser
entendida num contexto histórico limitado, mas sim no quadro
ontológico mais amplo do desenvolvimento do homem por
intermédio do seu trabalho, isto é, do autodesenvolvimento
ontológico do trabalho, pelas intermediações necessárias
relacionadas com a sua necessária auto-alienação e reificação
numa determinada fase (ou fases) se seu processo de auto-
realização.
Para sustentar essa condição de regresso da auto-realização do ser social, não basta
apenas a usurpação no mundo do trabalho e a supervalorização do produto do trabalho –
a coisa – como o problema central que sabe-se ser. Como relata Lukács (2012, p.193),
“a mercadoria não é um problema isolado [...] mas um problema central e estrutural da
sociedade capitalista em todas as suas manifestações vitais”. É necessário também
outras artimanhas.
Desta forma, o mundo burguês, com sua excelência em criar artifícios astuciosos, tem
seu jeito especial de determinar o comportamento do sujeito submetido à célula central
das relações capitalistas – a mercadoria. E a essa forma de se comportar se agrega toda a
vida exterior e interior da sociedade. Para Lucáks (2012, p.198):
Nesse contexto a reificação surgida da relação mercantil adquire
uma importância decisiva, tanto para o desenvolvimento do

745
objetivo da sociedade quanto para a atitude dos homens a seu
respeito, para submissão de sua consciência às formas nas quais
essa reificação se exprime, para as tentativas de compreender
esse processo ou de se dirigir contra seus efeitos destruidores,
para se libertar da servidão da “segunda natureza” que surge
desse modo.
Para que a consciência dos sujeitos se torne um reflexo da moral capitalista e seja
expansível para cada greta da sociedade, a elite burguesa vai padronizar e fazer parecer
natural um “modo capitalista de se comportar, ou ethos burguês” regido por “leis
naturais” também chamadas de ética burguesa.
Para isso, segundo Lucáks (2012, p.214) “o desenvolvimento capitalista criou um
sistema de leis que atendesse suas necessidades e se adaptasse à sua estrutura”. Diante
disso, para entender-se a respeito do que se trata de fato esse modo capitalista de se
comportar, importa fazer uma breve apreensão dos seres sociais, como agem, se portam
e encaram as situações constantes da vida cotidiana.
Os sujeitos na sociedade capitalista são vítimas de uma sociabilidade regida pela
mercadoria que produz comportamentos coisificados e dão imensa importância para a
posse material, a competitividade entre indivíduos e o individualismo.
Barroco (2010), demarca o que é o modo capitalista de se comportar, as atitudes, ações,
necessidades e peculiaridades dos sujeitos sociais com a consciência reificada. Esse
modo exala desejo de posse e transforma as escolhas dos sujeitos, capacidades e
sentimentos em desejos de adquirir algo material, pois para esses seres o dinheiro é a
satisfação máxima que tudo compra.
O utilitarismo moral também é algo marcante no modo capitalista de se comportar, pois
as relações entre os sujeitos são valorizadas segundo sua utilidade material – satisfação
das necessidades materiais. Essa valorização está voltada para a quantificação da
utilidade material e não para a qualidade das relações humanas e seus valores.
Pode-se realçar também a homogeneização das necessidades, fato que exprime a
redução das necessidades ao “ter”, ao possuir algo material. Os indivíduos dominados
pelo ethos burguês são individualistas e egoístas, pensam apenas na sua ascensão, no
seu bem. São totalmente voltados ao “seu eu” e seguem a liberdade da ética burguesa: a
liberdade de um acaba onde começa a liberdade do outro, ou seja, um ser social é livre
sem o outro. Para o ser individualista, o outro é sinônimo de estorvamento, objeto
descartável. Para esses, não existe uma ética fundada em valores comuns. Sendo assim,
o individualismo reproduz a ética impessoal e permite que as relações sejam superficiais
e fragmentadas.
Os valores morais fazem parte da lógica mercantil e se tornam, nesse contexto objetos
de consumo, que podem ser comprados. A moral como mercadoria é reproduzida
diariamente e toda a fragmentação da realidade que rodeia esses indivíduos em todas as
esferas da vida cria uma sociabilidade que torna a ética uma instância abstrata.
Nesse quadro, várias dimensões da vida não são apreendidas como totalidade e o
indivíduo fica alienado em partes da sua vida, valorizando-as como dimensões opostas.
Para Barroco (2010, p.161):
O modo de ser capitalista se reproduz e se legitima eticamente
através do sistema de normas, deveres e representações
pertinentes às necessidades objetivas de (re)produção da

746
sociabilidade mercantil; nesse sentido, precisa da ideologia
dominante, enquanto conjunto de ideias e valores que buscam a
coesão social favorecedora da legitimação da ordem burguesa.
Ou seja, o fato de o consumo de objetos – ou o consumo de quase tudo que existe na
superfície terrestre – fornecer integração social e identidade social é funcional para
manter o modo de produção capitalista. Logo, na sociedade de classes a moral faz parte
da ideologia que contribui para a legitimação da ordem dominante. Contribui para a
disseminação, fortalecimento e reprodução de uma cultura, ou um modo de se
comportar e pensar, favorável ao capitalismo.
Essas condições impostas são reproduzidas como um sistema normativo, onde é preciso
que todos aceitem para legitimar o cenário e ocultar as contradições impostas. Desta
forma, são valores da realidade dominante.
É nesse sentido que a ideologia dominante da sociedade de classes unifica as
contradições e dissimula a realidade impedindo os indivíduos de alcançarem a essência
da mesma, possibilitando a reprodução da reificação.
Lucáks (2012, p. 210-211) releva sobre a consciência do ser social:
Embora essas formas do capital estejam objetivamente
submetidas ao processo vital do próprio capital, à extração da
mais-valia na própria produção, elas só podem ser
compreendidas, a partir da essência do capitalismo industrial,
mas aparecem na consciência do homem e da sociedade
burguesa, como formas puras, verdadeiras e autênticas do
capital. Para a consciência reificada, essas formas do capital se
transformam necessariamente nos verdadeiros representantes da
sua vida social, justamente porque nelas se esfumam, a ponto de
se tornarem completamente imperceptíveis e irreconhecíveis, as
relações dos homens entre si e com os objetos reais, destinados à
satisfação real de suas necessidades. Tais relações são ocultas na
relação mercantil imediata. O caráter mercantil da mercadoria, o
modo quantitativo e abstrato da calculabilidade aparecem aqui
sob sua forma mais pura.
Por ser um movimento essencial à reprodução do modo de produção capitalista e
funcional à ordem burguesa, as maneiras de agir são, sem o menor pudor da classe
dominante, impostas, e passam sempre despercebidas aos olhos do ser social que esta
submetido a elas. Lhe parecem naturais e de vida própria. O sujeito social não toma
conhecimento da totalidade, vive na aparência e desconhece a essência da própria
realidade em que vive. Esse artifício de naturalizar esse modo de se comportar e pensar
é imprescindível para manter a ordem, como relata Lucáks (2012, p.220): “Trata-se de
uma intensificação ainda mais monstruosa da especialização unilateral na divisão do
trabalho, que viola a essência humana do homem”.
Nesse sentido, não é de interesse da classe burguesa que o ser social tome conhecimento
da realidade em que vive, pois seria difícil desta forma manter um controle das atitudes
do mesmo. Para Lucáks(2012, p.226-227):
Esse sistema de leis deve não somente se impor aos indivíduos,
mas ainda jamais ser inteiramente e adequado cognoscível. Pois
o conhecimento completo da totalidade asseguraria ao sujeito

747
desse conhecimento tal monopólio, que acabaria suprimindo a
economia política.
Diante disso, a reificação geral penetrou nas objetivações do ser social e a deixou
condenada por não ser realizada em sua essência, em sua plenitude, pois encontra-se
reificado e tem suas capacidades negadas. Para Lucáks (2012, p.221) :
A submissão necessária e total do burocrata individual a um
sistema de relações entre coisas, a ideia de que são precisamente
a sua “honra” e o seu “senso de responsabilidade que exigem
dele semelhante submissão, tudo isso mostra que a divisão do
trabalho penetrou na ética – tal como, no taylorismo, penetrou
no “psíquico”.
3.3 Reificação, consciência de classe e luta de classes: breves considerações
Esse processo descrito acima corresponde a um momento no qual o ser social vive uma
ideologia que foi desenvolvida para beneficiar a classe dominante e porta uma
consciência que não corresponde com a sua própria existência de classe. Os indivíduos
não se reconhecem em uma classe social e menos ainda, em uma sociedade onde
existem classes sociais antagônicas e sequer reconhecem em sua história a luta de
classes, como nos elucidaram sabiamente Marx e Engels (1998, p.39):“A história de
toda a sociedade até hoje é a história da luta de classes”.
Essa negação da consciência do ser social, em especial da consciência de classe, além
de impactar no desenvolvimento pleno de sua práxis, reflete diretamente na luta de
classes, uma vez que:
A consciência de classe é inseparável das lutas de classes. Ela é
condição para uma luta revolucionária, que vá para além da
mera reivindicação pontual [...] elaborando o conhecimento
científico dos fundamentos da sociedade que pretende
transformar (MONTAÑO; DURIGUETO,2010,p.111).
Essa discussão diz respeito à necessidade do conhecimento do movimento do real, ou
seja, o contato com a essência das relações societárias pelos seres sociais para
alcançarem sua consciência de classe e constituírem-se de meios para a luta de classes.
Deste modo, elencando a polarização das duas classes fundamentais e antagônicas –
trabalhadora e capitalista - o ser social é elemento crucial para se pensar a luta de
classes com vistas ao processo revolucionário. O indivíduo da classe subalterna
(proletariado) é o sujeito protagonista da transformação social. “O proletariado precisa
combater o capital, nos seus fundamentos, pois necessita transformar as relações que o
oprimem e exploram...”(MONTAÑO;DURIGUETO, 2010,p.129)
Ora, difícil pensar em tomada de consciência do ser social e efetivação da luta de
classes em tempos de reificação exacerbada. O desafio é gigantesco. Em virtude disso, a
importância em apontar perspectivas que exijam um esforço de decifrar o movimento
societário e compreender as atuais configurações da atualidade. Essa tarefa se coloca a
todo pesquisador interessado em traçar horizontes para a formulação de propostas que
façam frente ao cenário atual, pois, mesmo a mercê das alternativas impostas por uma
sociedade reificada, impõem-se vislumbrar possíveis formas de defrontar a situação
exposta, pois, a “única luta que se perde, é a luta que se abandona” e a luta por uma
sociedade para além da exploração do homem pelo homem nunca deve ser abandonada,
pois, como Lessa conclui brilhantemente, “só por esta via será possível colocar em

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primeiro lugar o que sempre deveria ter ficado em primeiro plano: as necessidades
humanas, tanto dos indivíduos como da sociedade como um todo” (LESSA,2006, p.97).

3. Referências bibliográficas
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Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2011.

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