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A COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO E O "HABEAS-CORPUS" (1)

EVANNA SOARES (2)

I - Versaremos neste breve estudo o processo de "habeas-corpus" quando for apontado Juiz do Trabalho como
autoridade coatora, considerando a competência da Justiça do Trabalho e a natureza desse "writ".

O assunto mostra-se interessante tanto para os que militam na área criminal como na trabalhista, tendo em vista
que a cada dia se tornam mais freqüentes as ordens de prisão expedidas por juízes trabalhistas, sejam de índole
criminal - via de regra por crime de desobediência - sejam civis, estas por infidelidade do depositário. E o "habeas-
corpus" mostra-se como remédio processual hábil para a rápida salvaguarda da liberdade de locomoção.

II - Nada obstante a uniformidade da jurisprudência do excelso Supremo Tribunal Federal, apontando a


competência dos Tribunais Regionais Federais para processamento e julgamento dos "habeas-corpus", quando a
autoridade coatora for Juiz do Trabalho Presidente de Junta de Conciliação e Julgamento (abrangidos os
substitutos) - como se demonstrará adiante - não raramente nos deparamos com ementários onde são vistos
Tribunais Regionais do Trabalho decidindo "habeas-corpus", inclusive denegando-os, sem que se enfrente a
questão da competência da Corte Regional Trabalhista, mediante provocação das partes, Ministério Público, ou "ex
officio".

Tais decisões, porque proferidas por órgão materialmente incompetente, "data venia", são agressivas ao preceito
insculpido no art. 5º, LIII, da Carta Federal de 1988, que afirma que ninguém será processado senão pela
autoridade competente. E, em tais casos, estará a autoridade coatora submetida a julgamento por Tribunal
incompetente, assim também o próprio paciente, não obstante tenha batido em porta errada para defender sua
liberdade de locomoção.

III - Para a boa compreensão da matéria enfocada, não incorrendo no equívoco de pensar que a negação de
competência aos TRTs para julgar "habeas-corpus" impetrados contra Juízes do Trabalho significa a indevida
submissão dos atos de um juiz a tribunal ao qual não está funcionalmente vinculado, é necessário perquirir a
natureza jurídica do "writ" referenciado.

FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO (in "Processo Penal", SÃO Paulo, Ed. Saraiva, 1989, 11a. ed., 4º vol.,
pp. 399/406), ao historiar o "habeas-corpus" no Brasil, evidencia que nos primeiros tempos, por influência de RUY
BARBOSA, foi admitido para proteção de qualquer direito que tivesse como pressuposto o exercício da liberdade de
locomoção, inclusive os casos de natureza não penal. Depois, com a reforma constitucional de 1926 e
especialmente o advento da Carta Federal de 1934, quando foi criado o "mandado de segurança" destinado à
defesa de direito líquido e certo não amparado por "habeas-corpus", este instituto firmou-se com finalidade
exclusiva para socorro da liberdade de locomoção.

Com procedimento disciplinado no Código de Processo Penal, arts. 647 a 667 (a intervenção do Ministério Público,
nos tribunais, é regida pelo Decreto-Lei nº 552, de 25/4/1969), o "habeas-corpus" é ação destinada a amparar a
liberdade de locomoção, assumindo, conforme lição de TOURINHO FILHO, certas vezes, feição de verdadeira ação
penal cautelar, nos casos do art. 648, II, III, IV e V, do CPP, pois visa a impedir que o desenrolar moroso do
processo, ou de outra qualquer providência que possa ser tomada, venha acarretar maior restrição ao status
libertatis do paciente. Nos casos dos itens VI e VII, do mesmo artigo, havendo sentença transitada em julgada,
mostra-se como verdadeira ação penal constitutiva, pois visa a extinguir uma situação jurídica, como se fosse uma
ação rescisória; sem sentença transitada em julgado, seria declaratória, com finalidade de declarar a inexistência
de uma relação jurídico-material. Na hipótese do item I, conforme o caso concreto, o "habeas-corpus" poderá ter
natureza de ação penal cautelar, de ação penal constitutiva ou até mesmo declaratória.

O certo é que, no sistema jurídico nacional, o "habeas-corpus" tem natureza jurídica de ação penal, e assim deve
ser considerado.

IV - Posto isso, tem-se que o "habeas-corpus" - remédio constitucional destinado a assegurar a liberdade de
locomoção (art. 5º, LXVIII, da Lei Maior) - independente de versar ordem de prisão prolatada por juiz civil (aqui
incluído juiz trabalhista) ou criminal, tem sempre natureza criminal ou penal. Não se insere,
conseqüentemente, no conceito de "dissídio individual ou coletivo entre trabalhador e empregador", nem constitui
"controvérsia decorrente da relação de trabalho", de molde a determinar a competência da Justiça Obreira
Especializada, tal como definido no art. 114 da CF.

Como se não bastasse essa singela constatação para afastar a competência da Justiça do Trabalho, no que tange
ao "habeas-corpus", há-de se observar que a própria Carta Federal a defere à Justiça comum - dotada de
competência criminal.

Com efeito vê-se no art. 105, I, c, da CF, que compete originariamente ao Superior Tribunal de Justiça - que não é
órgão da Justiça do Trabalho - processar e julgar os "habeas-corpus" quando o coator for membro (Juiz) dos
Tribunais Regionais do Trabalho. Os Ministros do Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, quando apontados
como coatores nos processos da espécie, têm julgamento no Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, letras c e i).
Esses dispositivos são de clareza solar e inquestionáveis.

Ao disciplinar a competência dos Tribunais Regionais Federais, a Carta Magna, no art. 108, I, d, incumbiu-os do
processamento e julgamento dos "habeas-corpus", quando a autoridade coatora for juiz federal. É nesse conceito
de "juiz federal", tomado no sentido lato (o juiz do trabalho integra a magistratura federal), que se insere o Juiz-
Presidente de Junta de Conciliação e Julgamento. Cabe, assim, ao TRF processar e julgar o "writ" quando o coator
for Juiz-Presidente de JCJ, nos termos do citado dispositivo constitucional, e não aos TRTs - que não gozam de
competência criminal e têm suas atribuições trabalhistas taxativamente enumeradas nos arts. 678 a 680 da CLT -
donde não se inclui, evidentemente, o "habeas-corpus".

Importante considerar que não teria sentido fossem os "habeas-corpus" impetrados contra ato de Ministros do TST
submetidos ao STF; o de Juízes dos TRTs ao STJ, e dos Juízes das JCJs aos TRTs (que, como dito, não gozam de
competência criminal) - em vez dos TRFs...

Tem inteira pertinência o brocardo latino "ubi eadem est ratio, eadem est jus dispositio".

Aliás, a razão da definição dessa competência, afastando-a dos tribunais trabalhistas, é para permitir que o exame
da conduta da autoridade coatora, isto é, se se portou com abuso de poder - o que constitui crime, em tese -, seja
feito pelo mesmo tribunal dotado de competência para processar e julgar esse coator pelos crimes que cometer,
ou seja, o STF, o STJ ou os TRFs, conforme o órgão da Justiça do Trabalho a que se vincule, hierarquicamente, o
membro da Justiça Laboral.

V - Tecidas essas considerações legais, vale salientar o melhor entendimento jurisprudencial acerca do assunto:

- Do Supremo Tribunal Federal:

"CONSTITUCIONAL. PENAL. HABEAS CORPUS. PRISÃO DECRETADA POR JUIZ DO TRABALHO. DEPOSITÁRIO
INFIEL. COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL.

I. No julgamento do CJ nº 6.979-1, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em sessão plenária, que a competência
para conhecer e julgar 'habeas corpus', impetrado contra ato de Juiz do Trabalho de 1º grau, é do Tribunal
Regional Federal e não do Tribunal Regional do Trabalho.

II. Nulidade da decisão denegatória do 'writ' proferida pelo T.R.T. da 9ª Região. Remessa dos autos ao T.R.F. da
4ª Região". (STF, 2ª Turma, HC 68.687-7-PR, unân., Rel. Min. Carlos Veloso, DJU 04-10-1991, p. 13781).

"CONFLITO DE JURISDIÇÃO. HABEAS CORPUS. ORDEM DE PRISÃO DE DEPOSITÁRIO INFIEL DADA POR JUIZ DO
TRABALHO, EM PROCESSO DE EXECUÇÃO DE SENTENÇA PROFERIDA EM RECLAMAÇÃO TRABALHISTA.

Sendo o habeas corpus, desenganadamente, uma ação de natureza penal, a competência para seu processamento
e julgamento será sempre de juízo criminal, ainda que a questão material subjacente seja de natureza civil, como
no caso de infidelidade de depositário, em execução de sentença.

Não possuindo a Justiça do Trabalho, onde se verificou o incidente, competência criminal, impõe-se reconhecer a
competência do Tribunal Regional Federal para o feito". (STF, Pleno, CJ-6.979-DF, Rel. p/ acórdão Min. Ilmar
Galvão, DJU 26/2/1993, p. 2356; acórdão integral in "Revista LTr", 57-04/440).

- Do Superior Tribunal de Justiça:

"HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA.

Ato coator atribuído a Presidente de Junta de Conciliação e Julgamento. Competência do Tribunal Regional
Federal, e não do Tribunal Regional do Trabalho, para julgamento do 'habeas corpus'.

Precedente jurisprudencial".
(STJ, 3ª Seção, C.Comp. nº 2.459-SP, reg. nº 91.21501-5, Rel. Min. Assis Toledo, DJU 16-3-1992, p. 3075).

- Do Tribunal Regional Federal da 1a. Região:

"Compete ao Tribunal Regional Federal conhecer de habeas corpus quando for coator Juiz do Trabalho" (Súmula
10 do TRF-1a. Região).

"CONSTITUCIONAL - PROCESSUAL PENAL - HABEAS CORPUS - COMPETÊNCIA - PRISÃO PENAL DETERMINADA


POR JUIZ DO TRABALHO - ILEGALIDADE.

1. Os Tribunais Regionais Federais são os competentes para conhecimento de 'habeas corpus',


quando a autoridade coatora for Juiz do Trabalho. Aplicação analógica do art. 108, I, ' a' , da CR.
Precedente do STF.

2. Fora do flagrante delito, ocorrido em sua presença, o juiz, que não tem competência para o processo criminal,
não poderá ordenar a prisão penal de quem quer que seja.

3. Juiz do Trabalho que determina a prisão penal de alguém, fora da situação referida, age com ilegalidade e
abuso de poder (Lei 4898/65, art. 4º, 'a'), pois 'ninguém será preso senão flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente" (CR, art. 5º, inciso LXI).

4. 'Habeas corpus' concedido. Determinada remessa de peças à Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho".

(TRF, 1ª Região, HC-90.01.18893-1/RO, 4ª T., Rel. Juiz Eustáquio Silveira, julgado em 25-3-1991).

- Do Tribunal Regional Federal da 5a. Região:

"Processual Penal. Habeas corpus preventivo. Ameaça de prisão por descumprimento de ordem emanada
de Juiz do Trabalho. Competência do Tribunal Regional Federal. Inteligência do art. 108, inciso I,
alíneas a e d da Constituição Federal. Precedente do STF. Ordem de reintegração imediata de empregado
estável sob pena de prisão. Ilegalidade. Não cumprimento que não caracteriza crime de desobediência, desde que
a aplicação das sanções do art. 729 da CLT não ressalva a sua cumulação com a sanção penal. Precedente no
sentido de que 'se pela desobediência de tal ou qual ordem oficial, alguma lei comina penalidade administrativa ou
civil, não se deverá reconhecer o crime em exame, salvo se dita lei ressalva expressamente a aplicação do artigo
330'. Ordem que se concede". (Ac. un. da 2a. T. do TRF-5a. Reg., HC-317-PE, Rel. Juiz Nereu Santos, DJU II,
24/12/1993).

- Do Tribunal Regional do Trabalho da 22a. Região:

"COMPETÊNCIA. 'HABEAS CORPUS' - É o 'habeas corpus', por natureza, ação penal, ainda quando o direito
material agitado seja de cunho eminentemente civil, como no caso da infidelidade do depositário. A Justiça do
Trabalho não tem competência criminal e, portanto, não pode processar e julgar essa ação, impondo-se
reconhecer a competência do Tribunal Regional Federal para o feito - Inteligência do artigo 108, inciso I, letra 'd'
da Constituição Federal". (TRT-22a. Região, Ac. nº 1058/93, Proc. HC-1809/93, Rel. Juiz Cacique de New York,
julg. em 2/10/1993).

Cabe, assim, ao Tribunal Regional Federal com jurisdição criminal sobre o lugar em que o Juiz coator tiver
jurisdição trabalhista, processar e julgar o "habeas-corpus" que tenha por objeto ato que ameace ou impeça a
liberdade de locomoção do paciente, e não ao Tribunal do Trabalho da sua Região.

VI - Conclui-se, portanto, em resumo, que o "habeas-corpus" é ação de natureza penal, não competindo aos
órgãos da Justiça do Trabalho processá-lo e julgá-lo, porque ausente matéria prevista no art. 114 da Lei Maior,
mas sim aos Tribunais Regionais Federais, quando o coator for Juiz do Trabalho Presidente de Junta de Conciliação
e Julgamento; ao Superior Tribunal de Justiça, nos casos de coação imputada a Juiz de Tribunal Regional do
Trabalho e ao Supremo Tribunal Federal quando for apontado como coator Ministro do Tribunal Superior do
Trabalho, de conformidade com a Constituição da República, artigos 108, I, a e d, 105, I, c, e 102, I, c e i,
respectivamente.

_______________________________

1) Estudo publicado na "Genesis - Revista de Direito do Trabalho", março de 1995, págs. 297/301.
2)Membro do Ministério Público da União, Procuradora do Trabalho-Chefe da Procuradoria Regional do Trabalho
da 22a. Região.

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