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Henry Miller

Escrever, eu meditava, deve ser um ato destituído de vontade. A palavra, como a


profunda corrente oceânica, tem que flutuar na superfície de seu próprio impulso. Uma
criança não tem nenhuma necessidade de escrever, é inocente. Um homem escreve
para destilar o veneno que acumulou devido à sua maneira falsa de vida. Está
tentando recapturar sua inocência e no entanto tudo o que consegue fazer
(escrevendo) é inocular no mundo o vírus de sua desilusão. Homem nenhum colocaria
uma palavra no papel se tivesse a coragem de viver aquilo em que acredita. Sua
inspiração é desviada na fonte. Se é um mundo de verdade, beleza e mágica que
deseja criar, por que põe milhões de palavras entre si e a realidade daquele mundo?
Por que retarda a ação - a não ser que, como outros homens, o que realmente deseje
seja o poder, a fama, o sucesso? "Os livros são ações humanas na morte", disse
Balzac. No entanto, tendo percebido a verdade, ele deliberadamente entregou o anjo
ao demônio que o possuiu.

Um escritor corteja o seu público tão ignominiosamente como um político ou qualquer


outro saltimbanco; adora manipular emoções, receitar como um médico, conquistar
um lugar para si mesmo, ser reconhecido como uma força, receber a taça cheia de
adulação, mesmo que isso demore mil anos. Ele não quer um novo mundo que possa
ser estabelecido imediatamente, porque sabe que jamais seria adequado para ele.
Quer um mundo impossível em que seja um soberano fantoche sem coroa dominado
por forças totalmente fora do seu controle. Contenta-se em dominar insidiosamente -
no mundo fictício dos símbolos - porque a simples idéia de contato com realidades
rudes e brutais o assusta. Certo, tem um domínio da realidade maior do que outros
homens, mas não faz nenhum esforço para impor ao mundo aquela realidade superior
pela força do exemplo. Satisfaz-se apenas em pregar, em arrastar-se na esteira de
desastres e catástrofes, um profeta crocitante da morte sempre sem honra, sempre
apedrejado, sempre evitado por aqueles que, por mais inadequados que sejam para
suas tarefas, estão prontos e dispostos a assumir responsabilidades pelos negócios do
mundo. O escritor verdadeiramente grande não quer escrever: quer que o mundo seja
um lugar em que possa viver a vida da imaginação. A primeira palavra trepidante que
põe no papel é a palavra do anjo ferido: dor. O processo de colocar palavras no papel
equivale a tomar um narcótico. Observando o crescimento de um livro sob suas mãos,
o autor incha-se com ilusões de grandeza. - Eu também sou um conquistador... talvez
o maior dos conquistadores! O meu dia está chegando. Escravizarei o mundo... pela
mágica das palavras... - Et coetera ad nauseam.

A pequena frase - "Por que não tenta escrever?" - envolvia-me como fizera desde o
início, num atoleiro de irremediável confusão. Eu queria encantar, mas não escravizar;
queria uma vida mais ampla, mais rica, mas não à custa dos outros; eu queria libertar
a imaginação de todos os homens imediatamente, porque sem o apoio do mundo
inteiro, sem um mundo imaginativamente unificado, a liberdade da imaginação se
torna um vício. Eu não tinha respeito por escrever per se, assim como não o tinha por
Deus per se. Ninguém, nenhum princípio, nenhuma idéia tem validez por si mesma. O
que é válido é somente aquele tanto - de tudo, Deus incluído - que é realizado por
todos os homens em comum. As pessoas sempre se preocupam com o destino do
gênio. Eu nunca me preocupei pelo gênio: o gênio toma conta do gênio num homem.
Minha preocupação se voltou para o joão-ninguém, para o homem que se perde na
confusão, o homem que é tão comum, tão ordinário, que sua presença nem chega a
ser notada. Um gênio não inspira outro. Todos os gênios são sanguessugas, por assim
dizer. Nutrem-se da mesma fonte - o sangue da vida. A coisa mais importante para um
gênio é se fazer inútil, ser absorvido pelo fluxo comum, tornar-se um peixe novo e não
uma aberração da natureza. O único benefício, refleti, que o ato de escrever podia me
oferecer era eliminar as diferenças que me separavam do próximo. Definitivamente
não queria me tornar o artista, no sentido de me tornar algo estranho, algo à parte e
fora da corrente da vida.

A melhor coisa que há em escrever não é o labor em si de colocar palavra contra


palavra, tijolo sobre tijolo, mas as preliminares, o duro trabalho inicial, que se faz em
silêncio, debaixo de quaisquer circunstâncias, em sonho assim como acordado. Em
suma, o período de gestação. Homem nenhum jamais consegue escrever o que
tencionava dizer: a criação original, que está acontecendo o tempo todo, quer a gente
escreva ou não escreva, pertence ao fluxo primário: não tem dimensões, forma ou
elemento de tempo. Nesse estado preliminar, que é a criação e não o nascimento, o
que desaparece não sofre destruição; algo que já estava ali, algo imperecível como a
memória, ou a matéria, ou Deus, é convocado, e a esse algo nos atiramos como um
galho numa torrente. Palavras, sentenças, idéias, não importa quão sutis ou
engenhosas, os vôos mais loucos da poesia, os sonhos mais profundos, as visões mais
alucinantes, nada mais são do que hieróglifos toscos cinzelados em dor e tristeza para
comemorar um evento que é intransmissível. Num mundo inteligentemente ordenado
não haveria necessidade de fazer a tentativa irracional de registrar tais acontecimentos
miraculosos. Na verdade, isso não teria sentido, pois se os homens apenas parassem
para refletir, quem se contentaria com a falsificação quando o autêntico está à
disposição e ao alcance de todos? Que homem desejaria ligar o rádio e ouvir
Beethoven, por exemplo, quando poderia ele mesmo experimentar as harmonias
arrebatadoras que Beethoven lutou tão desesperadamente para registrar? Uma grande
obra de arte, quando chega a realizar alguma coisa, serve para nos lembrar ou,
digamos melhor, para nos pôr a sonhar com tudo aquilo que é fluido e intangível. Vale
dizer, o universo. Não pode ser entendida: só pode ser aceita ou rejeitada. Caso
aceita, ficamos revitalizados; se for rejeitada, isso nos diminuirá. O que quer que
pretenda ser, não o será: é sempre algo mais, a respeito do que nunca se dirá a última
palavra. Ela é tudo o que nela colocamos devido à fome daquilo que nos negamos cada
dia de nossas vidas. Se nos aceitássemos tão completamente assim, a obra de arte, na
verdade o mundo todo da arte, morreria de subnutrição. Todo mortal como nós se
movimenta sem os pés pelo menos algumas horas por dia, quando os olhos se fecham
e o corpo fica de bruços. A arte de sonhar completamente desperto estará à alçada de
todo homem um dia. Muito antes disso os livros terão deixado de existir, pois, quando
os homens estiverem inteiramente acordados e sonhando, seus poderes de
comunicação (uns com os outros e com o espírito que anima todos os homens) serão
tão realçados que farão o ato de escrever parecer-se com os grunhidos ásperos e
roucos de um idiota.

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