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A maldita herança.

Trabalhismo e discussões historiográficas

Rodrigo José da Costa

Recife, junho de 2014.


Rodrigo José da Costa

A maldita herança. Trabalhismo e discussões historiográficas

Trabalho solicitado na disciplina


Trabalhadores e lutas sociais no século
XX, pela Profª. Drª. Maria do Socorro de
Abreu e Lima, do Programa de Pós-
Graduação em História, do Centro de
Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Pernambuco.

Recife, junho de 2014.


A maldita herança. Trabalhismo e discussões historiográficas

Pelo evento traumático que foi o golpe civil militar e a ditadura que instaurou,
ainda suscitará uma série de novas avaliações, principalmente no tocante ao seu legado
– estas últimas materializadas em publicações de livros e artigos diversos. Isso atesta
não só a vitalidade do tema dentro da sua intrínseca complexidade, como também as
lacunas que ele ainda não preencheu.
Desta maneira, os textos ora aqui analisados, a saber, “A ditadura faz cinquenta
anos: história e cultura política nacional-estatista” de Daniel Aarão Reis (REIS, 2014) e
o artigo “Ditadura ‘civil-militar’? Controvérsias historiográficas sobre o processo
político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente” de Demian Bezerra de
Melo (MELO, 2012), são exemplos de trabalhos que nos últimos tempos têm se
proposto a oferecer novos ângulos assim como suscitar possibilidades de pesquisa ainda
inexploradas.
Nos escritos destes – bem como de outros autores – tem havido significativa
contribuição para o entendimento das múltiplas facetas que o Regime Militar assumiu
enquanto vigorou. Uma variada gama de trabalhos têm se proposto a trazer novas visões
sobre os aspectos pouco visitados da Ditadura, para assim, poder fazer avançar o
entendimento sobre um dos períodos mais marcantes da história republicana brasileira,
história onde ainda há uma série de questões a serem trazidas à tona e, igualmente,
versões largamente aceitas cujas necessitam serem reanalisadas tendo em vista a
multiplicação de fontes de pesquisa que tiveram lugar no proscénio dos debates
recentes.
No entanto, cabe esclarecer que são dois trabalhos com propostas analíticas
completamente diversas; ao passo que o trabalho de Reis aposta numa nova
possibilidade de interpretação sobre o período da ditadura, inserindo-o numa
perspectiva de longa duração, onde analisa o que chama de cultura política nacional-
estatista; o trabalho de Melo se apoia numa discussão teórica onde refuta as análises
propostas pelos últimos trabalhos de Reis e de alguns outros historiadores,
caracterizados pelo autor como revisionistas, para em seguida discutir uma série de
implicações que estas abordagens têm refletido nas leituras sobre o golpe de 1964.
A incursão de Daniel Aarão Reis se apoia numa possibilidade de pesquisa em
desenvolvimento pelo autor, de se analisar uma cultura política nacional-estatista que
teria tido as suas bases lançadas no período enquanto ainda vigorava o Estado Novo,
passado pelos governos de Juscelino Kubitschek no período democrático e já sob a
égide ditatorial, no mandato presidencial de Emílio Garrastazu Médici, desembocando
nos governos de Luís Inácio Lula da Silva nos anos 2000. Intenta demonstrar que ao
longo dos governos acima mencionados, localizados em períodos diferenciados da
história republicana brasileira, haveria uma gama de propostas semelhantes entre eles,
em suma, uma cultura política similar a norteá-los.
Segundo o autor, a cultura política nacional-estatista tem uma arraigada história
no Brasil e na América Latina. Aproveitando-se do enfraquecimento da capacidade de
controle das grandes potências, desde os anos 1930 ela estruturou-se com notável
sucesso em diferentes variantes, empolgando sociedades e fundamentando políticas de
Estado.
Quais as características mais importantes desta cultura política? Um Estado
controlador e intervencionista, quando não, ditatorial. Políticas públicas
desenvolvimentistas e mercado regulado. Movimentos ou partidos, aglutinando
diferentes classes sociais em torno de ideologias nacionais e de lideranças carismáticas,
baseadas em alianças concertadas, ativas e conscientes, entre Estado, empresários
privados e trabalhadores.
Reconhecido o mérito do seu trabalho, já que há mais de uma década vem
tentando fornecer novos ângulos interpretativos sobre a Ditadura e os seus
desdobramentos, o presente trabalho, no entanto, não se sustenta do ponto de vista da
argumentação, nem tampouco no seu desenvolvimento analítico. Recorrendo a uma
noção de cultura política muito genérica, lançando mão de alguns autores franceses que
discutem o conceito, o seu emprego no texto é por demais superficial, o que reflete
diretamente na falta de consistência da argumentação posterior.
Reis, talvez, esquecendo-se dos contextos políticos, sociais e econômicos que
envolviam os presidentes – cujos discursos analisou – parece não levar e consideração
as específicas conjunturas históricas bem como o conjunto de forças que atuavam em
seu interior. De todas as polêmicas nas quais se lançou nos últimos anos, nessa em
particular, o autor, na sua tentativa de tentar propor que o período da ditadura militar
não teria representado um período de exceção na história brasileira, ao invés disso,
estaria circunscrito numa perspectiva de longa duração, orientado por uma cultura
política de desenvolvimento nacional, é por demais sem sustentação mais efetiva.
Já à discussão proposta por Demian Melo enceta outro viés de abordagem, mais
critico, objetivando a desmitificar as noções de golpe e ditadura civil-militar, que
segundo o autor, desde os anos 2000 teriam ganhado ares de “renovação conceitual”
para o entendimento do regime ditatorial implantado em 1964. O trabalho se concentra
basicamente em discutir e refutar muitas das teses lançadas por Daniel Aarão Reis,
dentre elas, o conceito de “civil-militar” sobre o caráter do regime instaurado, para em
seguida se debruçar sobre a cronologia deste último, mais precisamente sobre o fim da
ditadura.
Criticando a tese da participação civil tanto no golpe como na ditadura, Melo
procura demonstrar que a noção de participação civil no desenlace dos acontecimentos
que resultaram na deflagração do golpe já havia sido observada por René Dreifuss em
seu trabalho 1964: A conquista do Estado assim como o trabalho de Luiz Alberto
Moniz Bandeira O governo João Goulart e as lutas sociais no Brasil (1961-1964) já
havia alertado sobre a conspiração tramada pelo governo dos EUA e o seu interesse no
desenrolar dos acontecimentos.
Em que pese o seu esforço em se posicionar contra uma corrente que cada vez
mais se tona hegemônica academicamente, o trabalho do Melo, no entanto, não
incorpora uma série de críticas que já vinham sendo feitas aos trabalhos de Reis e de
seus congêneres. Ao mesmo tempo em que Melo critica o termo “golpe civil-militar”
pela sua pretensão de renovação conceitual, ele parece desconhecer – o que me soa
muito pouco provável – as críticas encetadas por outros pesquisadores, tais como Caio
Navarro Toledo e Marcelo Ridenti, no tocante as intepretações de Reis e de outros
autores sobre o golpe e a ditadura.
Toledo demonstra no seu artigo 1964: Golpismo e democracia - as falácias do
revisionismo de 2004, como naquele momento, o debate sobre os quarenta anos de
deflagração do golpe, as novas tentativas de interpretação sobre 1964 acabaram por
reforçar a retórica dos golpistas de que o presidente João Goulart tramava um golpe,
visto que as esquerdas não teriam compromisso com a democracia. Toledo naquela
oportunidade já havia demonstrado a insuficiência desta proposta ao apontar que quatro
décadas depois do evento, nenhum documento dava margem a tais interpretações.

O transcurso dos 50 anos do Golpe de 1964, que inaugurou uma ditadura no


Brasil só superada mais de duas décadas depois, como era de se esperar, suscitou uma
série de discussões em diversos âmbitos, bem como uma série de análises de caráter
acadêmico. É por demais salutar o surgimento de novas interpretações e novos ângulos
de olhar sobre um processo ainda dolorido da história brasileira recente. No entanto, é
igualmente necessário tomar cuidado com as afirmações que distorçam, ou mesmo que,
tendo a intenção de iluminar a questão, acabe por ter o efeito inverso, o de fornecer
argumentos para os que, sobre o pretexto de salvar a democracia, construíram uma
ditadura, cuja marca teima em não se retirar das instituições que a duras penas procuram
se reconstruir dentro de um novo processo democrático.

Referências
MELO, Demian Bezerra de. “Ditadura ‘civil-militar’? Controvérsias historiográficas
sobre o processo político brasileiro no pós-1964 e os desafios do tempo presente.”
In: Espaço Plural, Vol. 13, n. 27, jul-dez 2012.
REIS, Daniel Aarão. “A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-
estatista”. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto
Sá. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro:
Zahar, 2014.
RIDENTI, Marcelo. “Resistência e mistificação da resistência armada contra a
ditadura.” REIS, Daniel Aarão, RIDENTI, Marcelo, MOTTA, Rodrigo Patto. O
golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois (1964-2004). Bauru: Edusc,
2004.
TOLEDO, Caio Navarro. “1964: golpismo e democracia. As falácias do revisionismo” In:
Crítica Marxista, n. 19, 2004.

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