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DO MATO AO PRATO
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Sementes
05/09/2014
DO MATO AO PRATO
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Ensaio elaborado a convite de Berenice Gehlen Adams para inaugurar a seção Sementes, na 49ª Edição da
Revista Educação Ambiental em Ação. O estudo se propõe a ampliar a reflexão sobre a prática da agricultura
urbana com ênfase nas plantas alimentícias não convencionais e propor a formulação de políticas voltadas a: (i)
diversificar o repertório alimentar no Brasil; (ii) ampliar o acesso aos nutrientes fundamentais à dieta humana e (iii)
impulsionar arranjos produtivos em novos mercados que contribuem para melhoria das condições
socioambientais em cidades.
DO MATO AO PRATO
José André Verneck Monteiro
Pedagogo, especialista em Educação Ambiental, mestrando em Práticas em Desenvolvimento
Sustentável pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Email: educativo@live.com
Resumo
Ensaio elaborado a convite de Berenice Gehlen Adams para inaugurar a seção Sementes, na 49ª
Edição da Revista Educação Ambiental em Ação. O estudo se propõe a ampliar a reflexão sobre
a prática da agricultura urbana com ênfase nas plantas alimentícias não convencionais e propor a
formulação de políticas voltadas a: (i) diversificar o repertório alimentar no Brasil; (ii) ampliar o
acesso aos nutrientes fundamentais à dieta humana e (iii) impulsionar arranjos produtivos em
novos mercados que contribuem para melhoria das condições socioambientais em cidades.
Introdução
O combate à desnutrição vem sendo priorizado em diferentes níveis por diversos
governos, nações e empresas. Acabar com a fome é um dos Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio estabelecidos em 2000 pela Organização das Nações Unidas, cujos resultados serão
avaliados até 2015, ano em que serão lançadas, também pela ONU, das Metas de
[1]
Desenvolvimento Sustentável .
Sem desconsiderar os resultados imediatos concedidos aos 50 milhões de brasileiros
beneficiados pela redistribuição direta de renda, através do Programa Bolsa Família, desde sua
implementação em 2003, convém salientar preliminarmente, que no Brasil o enfrentamento à
fome ainda carece de complementação de ações estratégicas que assegurem capacitação para a
inclusão na cadeia produtiva, das famílias em situação de vulnerabilidade social e insegurança
alimentar e nutricional, em especial das famílias que tem na agricultura sua fonte principal de
sustento.
Não obstante à ação emergencial de salvar vidas em risco pela fome através do acesso ao
recurso financeiro para aquisição de alimentos, cabe destacar que políticas públicas
contemporâneas de combate à desnutrição deveriam consubstaciar diversificação da matriz
agrícola, estímulo à agrobiodiversidade, juntamente com a redistribuição dos pontos focais de
produção de alimentos, privilegiando dessa forma as iniciativas produtivas aliadas à
sustentabilidade ambiental.
Opostamente, o atual modelo nacional de desenvolvimento do agronegócio é pautado por
latifúndios monoculturais, manejados com expressiva utilização de agrotóxicos e combustíveis
fósseis, o que permite asseverar que a agricultura empresarial no país é em grande parcela,
injusta e insutentável sob a ótica socioambiental, pois resulta em exclusão campesina,
degradação ambiental e notável perda da biodiversidade, pelo desmatamento associado e pela
pela erosão da agrobiodiversidade.
Notese que vultosa fração desta produção agrícola é destinada à exportação e à produção
de ração animal cuja carne e leite produzidos também são parcialmente dirigidos aos mercados
externos. Deduzse então que os recursos naturais espoliados do país de certo modo subsidiam a
prática corporativista transnacional, principalmente das indústrias de venenos, petroquímicas e
de sementes geneticamente modificadas.
Para ampliar o acesso à alimentação saudável com menor custo ambiental, é
imprescindível maior estímulo à adoção de práticas que aperfeiçoem o uso das áreas urbanas
com potencial para produção sustentável de alimentos frescos e diversos.
O ato de plantar
Arte e fotografia do autor
A agricultura teve início há aproximadamente dez mil anos. É uma das práticas que
colaborou para que os agrupamentos humanos deixassem de ser essencialmente nômades e
assumissem hábitos de tratar de forma diferenciada os recursos ambientais, produzindo, e não
somente extraindo do campo parte dos alimentos de que necessitavam para sua sobrevivência.
A partir do desenvolvimento das cidades a cultura agrícola foi sendo cada vez menos
praticada no meio urbano e mais concentrada no campo, de onde os alimentos têm de ser
ransportados até o ponto de maior comercialização e consumo.
Desde a segunda metade do século XX houve nas capitais brasileiras intensa
transformação do modo de habitar e as residências térreas vêm sendo substituídas por edifícios
de múltiplos pavimentos, nos quais o quintal passa a ter outros usos comuns como
estacionamento, áreas de circulação e lazer coletivo, com ajardinamento restrito pela falta de
espaço físico e propositadamente para reduzir parte das tarefas braçais requeridas pela
manutenção de áreas verdes. A impermeabilização das áreas externas das casas também
acarretou em redução da prática horticultural caseira, comum até então.
Nesse ínterim as cidades maiores também passam a receber intenso fluxo de pessoas do
interior e de outros estados, atraídos por ofertas de trabalho em construção civil. Já se observa
com mais notabilidade a formação de conglomerados habitacionais em zonas periféricas
destituídas de planejamento urbanístico e acesso aos serviços públicos essenciais de seneamento,
seja em zonas de inundação, de relevo acidentado, à margem de rodovias, em prédios
[2]
abandonados e na maior parcela em residências improvisadas, referidas como favelas , às
quais hoje por eufemismo, questões éticas e preciosismo linguístico chamamse
[3]
comunidades .
Cada vez mais populosas, as megalópoles em formação têm sua capacidade de
entropismo reduzida e demandam uma crescente quantidade de insumos e hortifrutigranjeiros,
cultivados principalmente nas lavouras situadas nas periferias das cidades ou mesmo em outras
regiões.
O custo financeiro de aquisição de alimentos é impactado diretamente pelas distâncias
percorridas desde a produção até o local de consumo de tais alimentos. Controversamente a
prática da agricultura urbana apresenta declínio. Sujar as mãos de terra, talvez tenha adquirido
sentido demeritoso a ponto de ser classificado como coisa de “caipira”, sendo mais cômodo e
“chique”, concretar o piso e se produzir vestualmente para ir fazer compras no supermercado.
No supermercado, diferentemente do secos e molhados de outrora, a experiência de
comprar é livre e quase não depende de atendente que pesava a granel, alcançava com escada as
prateleiras do empório e recebia ou anotava a compra para o pagamento posterior – ato que hoje
se frealiza com digitação de senhas eletrônicas e faturamentos bancários.
Outro aspecto relevante para redução da prática horticultural caseira reside no fato de que
cada vez mais mulheres passam a trabalhar fora de casa, o que lhes subtrai o tempo outrora
dedicado à horta.
Até as feiras livres tiveram seu perfil alterado: poucos feirantes continuam a produzir e
vender város passam a adquirir os produtos para sua banca nas Centrais de Abastecimento.
A modalidade urbana de agricultura
Em face da percepção do valor socioambiental representado pela produção caseira, de
parte dos alimentos utilizados cotidianamente, diversas pessoas e organizações têm empreendido
projetos de agricultura urbana, com expressivos resultados no âmbito educativo e na
sedimentação de ciclos virtuosos de capacitação de pessoas, tomada de consciência,
proatividade, mudanças comportamentais e formação de redes cooperativistas em prol do
alimento produzido na urbe, de modo justo, solidário e sustentável.
A agricultura urbana pode transformar a relação das pessoas com o cultivo de alimentos,
com o ambiente e a sociedade.
Nesse panorama a fome pode ser saciada com ação e criatividade. O ócio e a lamentação
cedem lugar ao tempo/espaço produtivo. O desperdício dá vez ao reaproveitamento de materiais.
O valor do interesse coletivo é celebrado na troca de saberes, sementes e nas colheitas
abundantes.
É notável a íntima relação entre a agricultura urbana com os princípios enraizados pela
Permacultura: cuidar do ambiente; cuidar das pessoas e compartilhar os excedentes.
Nas plantações urbanas todo espaço horizontal, vertical ou inclinado pode ser adaptado e
aproveitado, desde que haja simples condições mínimas: interesse pela transformação; pessoa(s)
disposta(s) a dedicar instantes aprendendo e ensinando a plantar e cuidar; ferramentas simples;
local com insolação média de 5h/dia; disponibilidade de água para irrigação (preferencialmente
de origem pluvial, corretamente armazenada); local para compostagem orgânica e preparo de
caldas.
Não há receita pronta que se adeque a todos os casos, sendo a criatividade,
experimentação e diversificação os principais propulsores para o êxito. Também não há medidas
mínimas ou máximas.
Há uma única regra: se não der certo de um jeito, tente de outro, mas não desista!
Podese plantar uma infinidade de espécies vegetais, com diferentes usos: alimentares,
condimentares, terapêuticas, aromáticas, corantes, repelentes e ritualísticas.
O cultivo pode ser feito em canteiros ao nível do piso, canteiros elevados, recipientes
pendurados em muros, vasos, latas, baldes, embalagens reaproveitadas, banheiras, tinas, garrafas
e onde mais se providenciar drenagem, substrato, arejamento, irrigação e insolação adequados.
Nos casos em que seja requerido o uso de tutores para orientar o crescimento das plantas
(ou auxiliar a sustentar o peso de seus frutos e densas ramagens) podese recorrer ao uso
improvisado de cercas, arames, estacas de bambú, estruturas metálicas reaproveitadas, grades,
telas, redes de pesca danificadas, citandose somente alguns exemplos que podem estar
acessíveis facilmente.
A obtenção de mudas e sementes tende a ser ampliada quando a prática se irradia a
outras famílias da localidade e entre regiões distintas.
Em cada lugar há alguma (s) planta com potencial para ser cultivada como alimento ou
fonte de matéria prima. Para conhecêlas será útil recorrer aos do campo, sacerdotes, sitiantes,
feiras de trocas, hortos, jardins botânicos, lojas agrícolas e no campo natural.
Em síntese algébrica a proposta pode ser expressa criação de oportunidades para: plantar
+ cuidar + colher + compartilhar a fartura = opulência nutricional em vários níveis e escalas.
Plantas alimentícias não convencionais (PANC)
A expressão e sua sigla Plantas alimentícias não Convencionais (PANC) vêm sendo
[4]
difundidas por diversos pesquisadores, notadamente o Dr. Valdely Ferreira Kinupp , que
segundo relato pessoal lançará em breve, um livro sobre o assunto.
Seu estudo originou vários outros trabalhos de pesquisa entre acadêmicos, chefes de
cozinha, nutricionistas e demais profissionais interessados nas tendências modernas da culinária.
Em 2010 o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento publicou o Manual de
[5]
Hortaliças NãoConvencionais .
Para avançar na discussão sobre alimentos de origem vegetal é preciso antes de tudo,
compreender que algum ancestral humano, em algum dia, se prestou a experimentar as plantas
que hoje compõe a alimentação humana.
Por questões de paladar, produtividade, resistência à intempérie e até por razões estéticas,
umas foram selecionadas e/ou geneticamente modificadas – em processos naturais ou humanos.
Algumas destas plantas continuam sendo apreciadas em maior escala e são tratadas até
hoje de modo especial pelo mercado e pelos consumidores, que lhes atribuem valor financeiro e
simbólico. São produzidas, comercializadas e distribuídas por todo o Brasil.
Observe que se alguém menciona a palavra alface, imediatamente a ideiaforça nos induz
à criação de uma imagem mental (ás vezes, até impregnada pela lembrança do sabor, do cheiro,
da forma de preparar e servir), pois a alface já é nossa conhecida, há décadas.
Possivelmente o mesmo fenômeno seja notável com outros itens do repertório alimentar
comum no Brasil: batata, tomate, banana, cenoura, arroz, repolho, laranja, mandioca, pepino,
feijão, berinjela, pimentão, maçã, salsa, couve, abóbora, limão, jiló, couve, quiabo, gengibre,
cravo, etc. Estas são, portanto, plantas alimentícias convencionais que juntamente talvez mais
uns 30 vegetais que estão presentes no imaginário e no senso comum do paladar de pessoas de
dieta diversificada.
As Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) atualmente não usufruem de tal
prestígio popular, mas outrora foram amplamente utilizadas na alimentação básica de nossos
ancestrais. Era comum entre os antigos comer algumas plantas que vicejavam espontaneamente
no quintal e nas ruas. Quando não se sabia o nome, se lhes atribuiam os apelidos de “mato”,
[6]
“inço”, “erva” ou “chicória” .
Possivelmente haja relativamente poucas pessoas que admitam a ideia de comer “mato”,
negligenciando por preconceito ou ignorância, que tais plantas verdadeiramente representariam
saborosos e valiosos alimentos se estivessem à mesa complementando suas refeições diárias.
Também há de se ressaltar a relação entre convenções alimentares consolidadas no
século atual e a atual capacidade de influência que a mídia e os grupos econômicos exercem
sobre as massas que consomem seus produtos: muito mais campanhas publicitárias incitam a
comprar carros e tingir os cabelos do que motivam as pessoas a comer saladas.
Inversamente todo investimento da industria colabora para menter expoentes entre os
maiores do mundo os índices brasileiros de ingestão de refrigerantes, biscoitos e outras
guloseimas.
Outra razão que amplia este hiato de saberes entre as diferentes gerações é o fato de que
muitas das PANC são tidas como “ervas daninhas” ou “infestantes” por interferirem na
produção hortícola, e vêm sendo historicamente combatidas por agricultores e jardineiros, seja
pelo arrancamento ou pelo uso indiscriminado de herbicidas (capina química).
Felizmente a rusticidade é uma de suas virtudes e mesmo apesar de toda a campanha
empreendida em seu desfavor, as PANC continuam sua trajetória de vida, nos permitindo
conhecêlas e saboreálas.
A propósito, conhecer as PANC é fator fundamental para sua ingestão segura. Como são
batizadas popularmente por vários nomes diferentes em cada região, devese ter certeza de qual
espécie se trata e da parte mais adequada ao consumo humano (folha, flor, raíz, caule, semente,
fruto, etc.).
Para fins de exemplificação didática são apresentadas no quadro a seguir apenas dezenas
das espécies com potencial agoalimentar alimentar, cujas informações já são disponíveis na
internet.
Podese obter mais dados sobre cada planta inserindo seu nome científico no campo de
busca da página http://tropicos.org
Utilizando a expressão “composição nutricional + nome científico” em páginas de busca
podese também rastrear os estudos sobre as PANC no campo da dietética.
Ao se associar “receita + nome popular” obtémse sugestões de preparo e ingestão.
Espécie Nome popular Parte comestível Sugestão de consumo
que são acometidas de insegurança alimentar e vulnerabilidade social.
[1]
UN Sustainable development goals .
[2]
Alusão ao nome popular da planta comum nos morros à época, cuja denominação científica atual é
Cnidoscolus phyllacanthus (Euphorbiaceae).
[3]
Vide trabalho de Licia Valladares “A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências
sociais”. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v15n44/4145>.
[4]
Vide Tese de Doutorado: “Plantas Alimentícias Não Convencionais da Região Metropolitana de
Porto Alegre”, disponível em <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/12870>.
[5]
Disponível em <http://bit.ly/1eeC1U9>.
[6]
Nota do autor: possivelmente uma corruptela linguística de escória, resíduo sem valia.
[7]
Médico, coautor do Livro Frutas Brasileiras e Exóticas Cultivadas (de consumo in natura),
publicado em 2006 pelo Instituto Plantarum de Estudos da Flora.
[8]
Vide: Produção Agroecológica Integrada e Sustentável. Disponível em
<http://www.revivendoeldorado.com/images/stories/programa%20mandala/cartilha_sistema_pais.pdf>.
[9]
Vide: Guia Prático de Compostagem Doméstica. Disponível em
<http://www.geota.pt/xFiles/scContentDeployer_pt/docs/articleFile140.pdf>
[10]
Vide: Preparo e Uso de Biofertilizantes Líquidos. Disponível em
<http://www.infoteca.cnptia.embrapa.br/bitstream/doc/153383/1/COT130.pdf>