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James Holston EsPacos DE CIDADANIA INSURGENTE As cidades esto ligadas ao globo da hist ‘como capacicces elas condensam e conduzem as comentes do cempo socal. Suassuperfcis sobre- postas suas camadas de eseuque pintado sus ca- pas de concretoregiseram a forga dessa cocentes, ‘ure como us, quer como narcativa. Isto €, 88 i= peefcies das cidades contam histSras ¢o tempo, .As cidades estio cheias de hiscérias no tempo; ‘umas, sedimentadase ctalogadas, oats, dsper- sem forma de aseose vestigios. Suas macati- vas sto épicas e cotdianas:falam de migeacio e produsio, li ¢ ris, revolugio ear. Encretanco, ainda que dbvio, seu registro nunca é totalmente legivel, porque cada incursio pelo palimpsesco das superfcies urbanas revela apenas crags dessa re= lagGes. Uma ver vividss na condigia de ieredutt- vis umas is ours, els so registradas como par- te da muliplicidade e da simultaneidade dos pro- ‘essos que convertem a cidade numa infinita geo- mecca de superposicbes. Sus identidades, mods, formas, categorias ¢cipos recombinam-se no cin- za das fuss. Como resultado, a narcativas des ci- dds sfo canto evidentes quanto enigmtias. Co- ecé-las é sempre experimental Deve ter sido com extrema frstragfo, por con- seguinte, que o aruiteroholandés Alda Van Eyke afirmou que “no sabemos nada sobre a vasts mal- 1. A conn 6 “ete au ploniador de Van Ek goto um us plenimente centro dese tee Sou {yao 5 donn Fc, por me ter pee, ana sone ro astoanai que ostenaa ihe pépra raat Se roar oprotena. Se otemos pra usb dosh plenadocs planar nas vias prtanes ecptes ‘sos uzun, vronoe dla sees hoe ram coe tora recone. Oe nla, plnmamerto & {er nas peratlen aur tm sen dee “Sm pranopare date rites saute Near, Gmedsdonnantoge pares neniocortenprinen ocnen. ‘eivgopsles CAM Comatatamodar ene modesto "ur poo aise de Katee strato. Por ot In, Gnas a corscbngte 9 estas mee, Pangaea 6 {arty amateente urns com vlc plea dot tiplicdade — no conseguimos nos entender com ‘la — nem como erquitetos, em como plane res ou qualquer outa cis. Porm, se soceds- deo cem forma, como prem os artes cons: {euie sun conraforma?” (itado em Feampton 1980" 276-77). Tal confisio de ignoricia€ es ‘ecialmente surpreendence, no 86 porque sbando- fava narraciva das eidades, mas cambém porque 0 faz decarando a dssoluct d social no dnb dae dliscipliaas da arguiverarae do planejareto mo decnes A delaaci € parcicularmence amargs, porque sina o fim de um século no qual a dou. ‘Gina seria formulow as quests urbaas de ‘nosso rempo propondo justamente o panejamen- {eater como solute pantie ial do pialismo instal: Plo meno em suas vers eaopéiseltino-ameicanas, modernisma for- jou so que podesfamos amar de um maging. fo do planejamento, desenvavendo seus ips fe- ‘olucioniros de construioe sua convengses de Planejamenco como inserimentos de nda so- ale oncebendo a mudanga em termos do for £0 imginadocorprifcnd nas maracas de sus planos-ditecores ‘Masa incapacidade de Van Eye de encontae forma na sciedade — ou se, dele soa multi ciate — seria um problema dk sociedad, como ‘Stn ein isto drs, one ‘Santen ei stad como Frama tad ur ce eacaram nthe arses Eeseaietestoauemeitureeeas ques bee de pBaroaento om aia vas foman Ness, Troceo os Cla carcetortansteocone paradigms so [Paneaento macau anbor cna eas Soa apicaes conaua esto sleiasonaa guano led entender, ou conseqhéncia de uma posi teérica que teeta as preensSes redentoras € 08 tngajamentos socials do moderismo? Dada a ca pacidede humana para anaratva, e seu inelucé- ‘el registro em arefate, conclu pela segunda al- Temaciva, Ademas, dria que a consternagio de ‘Van Eyl eepresentaoextranbamenco do socal na argutecura modeanae, de modo geral, nos méto- dos de planejamento que a ela se tlacionam. Su- giro que este estranhamento € consequéncia de creas condigoestedricas que escucuram a arual produgio de conceitos, sobre a psagem urbana aquelasdiscplinas: (1) arejeigio do poder reden- for de modernism, que deivenlo 6 da percep- Go dos Fracatsos de eu metodo ut6pico, mas am bmn da disolugio mais genetalizada da propia iad social no planejamenc, na arguieturt 08 fciminisrago pblic ena ciéniassciis, TD 8 incapacidade de arqitecurae planejamento, Gquanc pro8sbes, movererm-ealém desarejeigdo far deseqvalvec uma nova imaginacio socal ti- tise; (ll) a preocupacio da teoria és-moderna om ofrmalismo extético a tecnologia de com ‘ago eos conceit de elidae virtual que cen= dem a desencamna o social para rematetializé-lo omo imagens reificadas. Se nia concluso es {Geer core, entZo o problema que Van Eyk co- loca mais sntropofGpic do que morfoldgico. Ou “ia € ua questo de aprender a incerpr | novo 6 Ge agora lhe aparece coralmente desfami- Viszade« prised ov elon, specie |do social que indicam o seu dinamismo, ‘Como aio acredito que “a sociedade alo tem forma” nem que “aio sabemos nada sobre a vasta rmultiplicidade", quero argumentar que um dos ‘problemas mais urgentes na teoria do planejamen- toe da arquitecuc, arualmente € necessidade de desenvolver uma imaginagio social diferente — ‘uma que nio seja moderista, mas que, no entan- (0, reinvente os compromissas ativistas do moder- ‘ismo com a invengio da sociedade e com a cons- trugio do estado. Sugiro que as fontes desse no _imssikia na vo om nenhuma produgioespe- . Os FUTUROS ALTERNATIVOS DO MODERNISMO ‘Osespagos de uma cidadania insurgente cons- tituem novas formas metropolitanas do social sin dda nfo absorvidas nas velhas, nem por elas lig dadas. Como tal, encarnam possiveis fueuros altes- ‘nativos. E importante distinguir essa idéia do pos- sivel da idéia fandamentalmeate diferente de fu ‘uros alternativos, inerente & doutrina do planeja- mento e arquitetura modernistas, Ambas asi as expressam o paradigma bisico da modernidade, {que enfatiza que os fueurosalternativos si de fato possiveis. Mas a insurgence ea modernist si0.ex- pressdes concorrences, que distinguitei como etn Brifica e ucdpica, respectivamente. Na arquitecu- tae urbanismo modernos, a utopia deriva especi ficamente da cidade-modelo dos Congt?s Itecna- tionaurx d’Architecture Moderne (CIAM). Desde a década de 1920, seus manifestos conclamaram © estado a dar pricridade aos interesses coletivos 50- bre os privados, impondo a0 caos das cidades exis- es, espectvamont, deste projets politico mademisia © 0 Sruuiopeaseltes, a ropdodo um ufbniame insurgent #0 ‘moropbia dt pao asada un axl de opel la mo ‘jae Eu petra ce agradecer as omanzadare deduts one Fincis por censdaroTe a apeseiar verse prévis tie tenes, uma na Ouke Unvrsty sobre ‘New Metoplitan Forms* {hovestormasmatepclanas, ez er Bras ob “A, Soda eutanim’,Agyadgo tan a Terese Cosa ¢ (one Sendecack per suas sugests para. avers tentes a consteugio de um novo tipo de cidade bbaseada em seus planos-direrores. Mas tal modelo deciva, por sua vez, do conhecido ideal da mo- dernidade de que o estado, geralmente sob a for- rma de um governo nacional, pode mudar a socie~ dade e administeat 0 social pela imposiglo de um fururo alternativo cristalizado em planos. Nesse scatido faustiano, 0 projeto do planejamento “demnista.é cransformar um presente nio desejado ie de um fucuro imaginado Seja sob a for- ade urbanism ou de ciéacia socal apliceda, essa idéia de planejamento é vital para a identidade do estado moderno: ela motiva as autoridades politi- cas atentarem criar e legitimar novos tipos de es- feras pablicas, com novos sujitos e subjetividades aque thes cortespondam. Os instrumentos de ais iniciativas definem nio 56 a agenda de desenvol- vimento do estado, mas também suas profissBes liberais ecigncias sociais acredicadas — arquicecu- 1 urbanismo, cemografia, administragdo burocr’- fica, sociologia,criminologia, epidemiologia ¢as- sim por diante —, por meio das quais os governos teatam forjas novas formas de associacao coletiva « hibitos pessoais como base de propensio de suss sociedades para um Futuro proclamado, Ni por ser crtica do presente, nem por ter como objetivo o desmantelamenco ce mormas es- tabelecidas, que essa ideologia do planejamenco € uuépica. Ela parcilha tais caracteristicas com 0 modo etnogrdfico por mim proposto. ut6pica,_ isto sim, porque sua nogio de Furucos alternativos “esti baseada em causas ausentes € seus mérodos, ‘iia eotia de coealdesconrextualizagio. A vers ‘dos CIAM de planejamento modernista é um exemploinstrativ, Hi quatro especto fundamen tas em soa cova de fuss alcerativos, Prime’. ‘ro, ela é baseada numa tensio entre as condicées sociais existences e seu oposto imaginado, Segun- do, este oposco é concebido em termos de causas SENS una estcra ea a Riga 8 pens nos planose em suas recnolngas, que de- Seine colorist elbaitcrar'a rey daamual zpetcceriam, entZo, como um produto natutal Liicio Costa (1980: 15), expressou claramente esse conceito das causas ausentes getadoras quando es- treveu oseguinte em "Razies da nova arquiters fa", em 1930: “Exise, jf perfetamente const da em seus elementos fundamentals uma aova técnica construtva,paradoralmente ainda expe: tadasocedade qua, logicamente, deverdperen- areata Bepepardacidadn Holston i cee". Costa concebia essa tecnologia como algo que encarnava os princfpios imaginades de uma socie- dade que ainda nio existia, mas que ela ajudaria a trazer b existéncia exatamente a0 da corpo a tais principios na forma construida. terceiro €0 quarto aspecto do modelo cons- tiruem uma teoria da colonizacfo para implemen- ‘aca nova triade arquitetura-planejamento-tecno- logia, Seu objetivo ¢ realizar uma transformagio _canco objetiva quartto subjeriva das condigbes exis ces. Em relagio & primeira, a colonizayio depen- de da forca do estado para criar condigGes objeti- ‘vas paca a imposigio de uma nova ordem para a vida urbana. O modelo dos CIAM apela dicera- ‘mente para que a auroridade estatal institua o pla- rnejamenco total do espago construfdo que, segun- do a teotia, constitui essas condig6es e permice a jmplementagio de seus planos-diretores do futu- 10, 0 apelo privilegia 0 desenvolvimento do pré- prio aparelho do estado moderno como 0 supremo poder planejador. Exaramente por causa dessa én- fase, as elites empenhadas na construgio do esta do, quaisquer que sejam suas convicgées politicas, adotaram 0 modelo de desenvolvimento urbano dos CIAM, como atesta a hist6ria do planejamen- to de cidades ao redor do mundo. ‘© modelo também depende de ume transfar= rmagio subjetiva das condicies existentes. Neste ‘caso, inspiraido-se"Em outros movimentos van- uardistas do comego do século XX, 0 modelo uss récnicas de choque para forgar uma apropriagig “ subjeriva da nova ordem social inerence aos seuy panos. Essastécnicas enfatizam a descontexttali- zacio, a desfaniliaizacio ea des-biStorizag, Si \"premissa central de transformagao € que a hava arquitetura(planejamento ucbano criatia, no inte. ior das cidades existentes, pecas subversivas que | iriam regenerar codo o tecido circundante de vida, | social desnacurada. Bl Lissczky (1970: 52) expi- cou concisamente tal premissa em 1929: "A intro. dugio de noves tipos de edificio no velho ecido da cidade afeta 0 todo, eransformando-o". & uma no- glo viral de revolucio, uma teoria de desconeexu- alizagGo na qual a5 qualidades radicais de alguma coisa totalmente fora de contexto infestam e colo- nizam o que circunda. Esta alguma coisa pode ser ‘um simples prédio concebido como um exemplo do plano total, ou se, como um fragmento de sua estécica radical e suas priticassociais, ou pode set ‘uma cidade inceiea peojetada como um exemplat, como no caso de Brasitia. De um modo ou outeo, supde-se que o fragmento radical crie novas formas _de experiéncia social, asociagio coletiva, percep- « habitos pessoais. Ao mesmo tempo, supoe- ‘se que impossibilica a exist@ncia daquelas formas consideradas indesejéveis ao negar as expectativas sociais e arquivetBnicas anceriores sobre a vida ue- bana ™ sce uso da desconcextualizacio provém, em ‘lcima endlise, da conviegio de que é possivel ex- trait antitecicamence das condigées existences, como uma nova entidade posiciva, um ideal ausen- te — ou séja, extrait uma ordem social e estética “Tiaginada “da ealidade tornada estranha eestilha- 1c meio da vontade e poder do individuo", ‘oma éerta vex Adorno descreven o peocesso, numa Giscussio da mdsica de Schonberg (cicada em Buck-Motss 1977: 57)-Tal extracio se realiza,now- «ras palavras, pela sintese subjetive. Ea sfntese & alcancada pelo choque da desfamiliarizagio, duran- © qual o sujeito se identifica com o ideal na di- alécica enquanto meio necessério para transpor a distincia agora evidente entre sua situagio local estilhacada e a proposra de plenitude Futura, ‘A doutrina dos CIAM sustentava que essas propostas de transformacio iam criar uma cida- de que mate ia condigies cevoluct trabalho, moradia, transporte ¢ recreagio. fm argumentava que esta materializagao cecefi- niria a base social da organizacio urbana. As pro- ‘Posigde# ido estavam, a meu ver, etradas, De fato, no decorrer deste século, 0s novos tipos de cons- ‘rugio, estcuturas urbanas e convengbes de plane- jamento dos CLAM criunfaram de tal modo que se ‘ransformaram na prdtica padso dos profissionais de arquitetura e planejamento em odo 0 mundo, Bu diria, ainda, que permanecem assiin até hoje, mesmo quando sua derivacio do modelo dos CIAM to € reconhecida ¢ seu uso nada tem a ver com sta agenda social, como € muitas vezes 0 caso, nos Es- tados Unidos’. (Ver a vista aétea de Houston que precede 0 texto deste artigo). Contudo, se poucas promessas de mudanca prenderam 2 imaginagio do mundo em gran mai- Nip posso discutr mais ammplamente aqui « cidade- ‘modelodos CIAM, que sri! de ums prapectiva histéice cries ne este sare Brasila Helston 1990, epocialrante pp. 31-56). Também no posso dlscut sua eapso com ops: ‘moderismo, o qu teria de fazer para da eubeincia 8 minha tase da persisténcia de sua cominagdo. O meu argumento condita om distngul ene ambient de fat plancado, lrqutatado © conerido da cidade conlempordnea # seus ‘modes da mudanga soo @ acumulagao de capital. Mulo® [wore tom gezerto estas dtimos om termos aos novos pa- ‘rbes de consumic“espapo © tempo" que chamem de ps ‘modemos. Gla comofar, eu £6 chamariaapsieagemurbana de poemoderna quando pudotse entifiar novos modos @ pro: ‘cessoscadesenvoivaracidade que gerassemformagdes espe ‘aia, também socials, que ce contrapusessom ac urease rmoderiste que domina a maiora das cides, Desta perspec: ta, detacte pouco no aapago consulde de Loe Angoes. por ‘exemple, que pudesse constul un ubanisme pésmodero, ‘lem ce uns limtadosexerccios de preservaga nitorea ou ‘or do que esse projeto idealista de faruros aleerna- tivos, poucos geraram também maior perversida- __de,_Um dilema fundamental inevitavelmente do- ‘mina este projeto, se for para ele cer qualquer subs- tincia além do mundo imaginério dos planos. £ tum dilema inerence a todas as formas de planeja- mento — quer como projeto urbanistico, quer como ciéncia social aplicada — que propéem um futuro alcernativo com base em rotalicades ausen- tes: a necessidade de tet de usar o que existe para alcancar o que é imaginado deseri « diferenca ueé- pica entee os dois que éa premissa do projeto, Eo} ‘que & pior, exemplos como o de Brasilia mostrar eas enatvas de mance o plano, a despite dos efeitos corrosivos desse paradoxo utépico, agravam as proprias condigées que geram o desejo de mu-| danga. Perversamente, cendem a cransformar 0 projeto numa versio exagerada daquilo que seus planejadores quetiam antes de cudo evitar*. Considere-se, por exemplo, o sistema moder- nisea de citculagio do trafego. Quando 0 analisa- mos em termos do que ele sistematicemente pre- tende eliminar — o sistema tradicional de ruas com espagos piblicos, multidées urbanas ¢ um certo tipo de espaco politico ao qual a rua di subs- tincia — suas conseqinciassocias tornam-se cla- 1s. O deslocamento da dos “tecintos” abertos e piblicos das russ ¢ pracas para os recin- tos fechados dos parques, clubes, residéncias, €

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