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Sobre nós:
TEMPOS DIFÍCEIS
Textos Apócrifos
Membro anônimo da
Resistência francesa,
1943
UM_______________________
7 de novembro - 2 de dezembro
2. BOSTON, MASSACHUSETTS
Tudo com eç ou na Casa Bernstein — Doc es e Salgados, loc al que a dra. Gin-
ger Mar ie Weiss consider ava impróprio para qualquer tipo de complic aç ão. E co-
meç ou com o inc idente das luvas pretas.
De modo ger al podia-se afirm ar que, até aquele dia, Ginger nunc a enc ontra-
ra um únic o problem a que não pudesse resolver. Estava habitua da a enf rentar os
desaf ios que a vida lhe propunha e, habitua da aos grandes, não havia por que tre-
mer dia nte de simples problem as do dia-a-dia. Com toda a certeza morr er ia de
tédio se, de repente, sua vida se transf orm asse num mar de rosas. Em mom ento
algum ocorr eu-lhe a possibilidade de enc ontrar-se face a face com uma questão
insolúvel ou insuper ável para seu nível de inteligênc ia ou capac idade. Por ém, sa-
bia que, assim como é cheia de desaf ios, a vida é pródiga em liç ões, algum as
mais
fác eis de engolir que outras. Algum as simples, outras dif ic ílim as. Algum as
até muito indigestas, outras absolutam ente arr asador as.
Ginger era inteligente, bonita, ambic iosa, trabalhador a e exc elente cozinhei-
ra. Sua grande vantagem, no entanto, era que ninguém a levava a sér io no pri-
meir o enc ontro. Magra, de pequena estatur a, cintur a fina, par ec ia tão insignif i-
cante quanto bonita. Muita gente subestim ava-a no prim eir o enc ontro e continua -
vam a subestim á-la dur ante sem anas ou meses, até desc obrir em aos pouc os que
Ginger podia ser grande amiga, exc elente colega ou implac ável inim iga.
A histór ia da noite em que foi assaltada corr eu de boca em boca pelas enf er-
mar ia s do Hospital Presbiter ia no de Colúmbia, em Nova York, onde ela fizer a sua
prim eir a residênc ia médic a, quatro anos antes do inc idente das luvas pretas na
Casa Bernstein.
Como todos os médic os residentes, Ginger às vezes cumpria plantões de mais
de dezesseis hor as; nesses dias, ao sair do hospital, mal tinha forç as para manter
os olhos abertos até entrar em casa. Numa noite de sábado quente e úmida, saiu
do hospital pouc o depois das dez hor as, ao térm ino de um plantão exc epc ional-
mente atribulado, e foi assaltada por um desc endente dir eto do hom em de Nea n-
derthal, um suj eito sem pesc oç o nem testa e com mãos tão grandes como pás de
esc avadeir a.
— Se você gritar — disse o monstro —, arr ebento-lhe a cara. — Saltou à
frente dela como um bonec o de mola e insistiu: — Está entendendo bem, sua pu-
tinha?
A rua deserta e, a vár ios quarteir ões, os carr os mais próxim os aguardavam a
mudanç a do sinal no cruzam ento. Não havia ninguém que a soc orr esse.
O assaltante empurr ou-a para um beco estreito e esc ur o entre dois edif íc ios.
Aos tropeç ões, ela esbarr ou numa lata de lixo, arr anhou o tornozelo, quase caiu,
mas conseguiu equilibrar-se e continuou andando rumo ao fundo do beco.
De iníc io, supondo que o hom em estivesse arm ado, Ginger investiu suas es-
per anç as em súplic as, suspir os e gem idos. Tudo que conseguiu foi que o assaltan-
te se sentisse mais segur o e relaxasse
a guarda. Não resista pensou a doutor a. Se ele estiver arm ado, resistir é mor-
te certa.
— Vá andando!
Com o braç o torc ido para trás, sem poder se mover, Ginger obedec eu. A
meio cam inho entre a entrada e a saída do beco, longe da únic a lâmpada acesa
que havia por ali, o hom em empurr ou-a para um canto e passou a desc rever,
com porm enor es e em voz rouc a, o que planej ava fazer com ela depois de tir ar-
lhe todo o dinheir o. O disc urso deu a Ginger o tempo de que prec isava para certi-
fic ar-se de que o assaltante não tinha arma. Então nem tudo estava perdido. O
hom em vom itava obsc enidades, mas seu repertór io de violênc ia s sexua is era tão
lim itado que, em outras circ unstânc ia s, ser ia côm ic o. Ginger logo o classif ic ou
como um pobre dia bo que conf ia cegam ente no poder da forç a bruta. Hom ens
assim em ger al não andam arm ados, porque sua massa musc ular lhes dá a falsa
impressão de que são invulner áveis. Seguindo esse rac ioc ínio, Ginger conc luiu
que o assaltante não devia ser muito hábil para lutar.
Enquanto o hom em se curvava para esvazia r a bolsa que ela lhe entregar a
sem vac ilar, Ginger enc heu-se de cor agem e aplic ou-lhe nos testíc ulos um ponta-
pé violento e dir eto. O monstro dobrou-se ao meio, urr ando de dor. Sem perder
tempo ela segur ou-lhe uma das mãos e empurr ou o dedo indic ador para trás,
com toda a forç a, até ter certeza de que a dor da mão o fazia esquec er o golpe
nos testíc ulos.
O gesto de forç ar o indic ador para trás pode imobilizar qualquer hom em, por
mais forte que seja. Ao pressionar o nervo digital da parte anter ior da mão, for-
çando ao mesm o tempo os nervos radia is e médios da parte poster ior, Ginger
provoc ava no assaltante uma dor intensa que naquele mom ento já devia atingir
as term inaç ões nervosas do ombro e do pesc oç o.
O hom em agarr ou-a pelos cabelos e sac udiu-a da cabeç a aos pés para que o
soltasse. Foi um contragolpe violento, que a fez gritar de dor e suar frio; mesm o
assim, de dentes cerr ados e o rosto banhado de lágrim as, ela resistiu e forç ou o
dedo ainda mais para
trás. A pressão constante, aplic ada no ponto anatôm ic o corr eto, em pouc o
tempo obrigou o assaltante a soltá-la. Ele caiu de joe lhos, gem endo e xingando:
— Ai! Me solta! Larga meu dedo, sua puta!
Em lugar de obedec er, Ginger agarr ou o indic ador com as duas mãos e, fin-
cando o pé no chão, empurr ou-o duas vezes para trás. Agor a o gigante podia ser
manobrado à sua vontade. Ginger o fez gir ar sobre os joe lhos, vir ar-se para a saí-
da do beco e segui-la, sempre gem endo, trotando sobre três patas como uma
mula manc a. Com os olhos inj etados de raiva e medo, de dor e vergonha, ele a
fitava, babando seus insultos. Seis ou sete passos adia nte, venc ido pela frustraç ão
ou pela dor, o hom em par ou, acom odou-se nas patas traseir as e vom itou o jantar.
Ainda que quisesse, Ginger não podia soltá-lo: ele estava enlouquec ido de
raiva. Soltá-lo ali, sem saber se alguém o agarr ar ia novam ente, ser ia como assi-
nar a própria sentenç a de morte. Sem esc olha, arr astou-o para o meio da calç ada
e obrigou-o a esper ar, ajoe lhado a seu lado, até que apar ec esse um guarda.
Quando afinal vir am aproxim ar-se um polic ia l fardado, o assaltante e a vítim a
sorr ir am alivia dos.
As pessoa s subestim avam Ginger em boa parte por causa de seu pequeno
porte: ela media pouc o mais de um metro e meio e pesava menos de cinqüenta
quilos. Não par ec ia muito forte nem capaz de assustar ninguém. Bem feita de
corpo, não tinha as curvas de uma loir a de capa de revista, mas, de qualquer
modo, era loir íssim a e sempre atraía os olhar es masc ulinos no prim eir o mom en-
to do prim eir o enc ontro. Ginger era a imagem viva da fragilidade: dos cabelos
dour ados ao pesc oç o de Audrey Hepburn, dos ombros magros à cintur a fina, da
pele aveludada aos lum inosos olhos azuis, tudo nela suger ia sua vidade e doç ur a.
Além disso, era natur alm ente calm a e calada, do tipo que pref er e ouvir a fa-
lar — qualidades que quase sempre os menos avisados tendem a conf undir com
tim idez. Sua voz soa va como harpa, tão doce que ninguém a imaginar ia expres-
sando a firm e vontade de uma mulher de aço.
Ginger herdou os cabelos dour ados, os olhos azuis, a beleza e a forç a da mãe,
uma sue c a cham ada Anna, que tinha mais de um metro e oitenta de altur a.
— Você é minha menininha de ouro — disse-lhe Anna, quando Ginger
completar a a sexta sér ie dois anos antes da idade prevista.
Na festa de form atur a, além de rec eber a medalha de melhor aluna da esc o-
la inteir a, Ginger brindar a os presentes com uma brilhante performanc e ao pia no:
Mozart para os mais calm os e um frenétic o reggae para os mais anim ados.
— Menina de ouro... — Anna abraç ou-a, já no cam inho de volta para casa.
O pai, ao volante, chor ava de orgulho. Jac ob era muito emoti-,vo, mas sem-
pre alegava uma alergia, jam ais def inida, para justif ic ar as lágrim as que lhe en-
chia m os olhos a propósito de qualquer coisa. No dia da form atur a, acusava o pó-
len.
— Há muito pólen no ar — resm ungava. — Detesto pólen.
— Você é a perf eiç ão, bubeleh — Anna sorr iu para a filha. — Juntou o que
há de bom em mim e o que há de bom em seu pai... Você vai longe... Esper e só
para ver! Vai para o ginásio, depois para o prepar atór io, depois... para a fac ulda-
de que esc olher. Você é capaz de fazer o que quiser... você é capaz!
As duas únic as pessoa s que jam ais a subestim ar am for am seus pais. Ao pa-
rar em frente à gar agem de casa, Jac ob arr egalou os olhos.
— Mas... o que é que estam os fazendo aqui? — perguntou. — Nossa únic a
filha, nossa filha, que, como é capaz de qualquer coisa, com certeza ainda será
pedida em casam ento pelo rei do Siao e pilotar á uma nave espac ia l rumo à Lua...
nossa filha rec ebe seu prim eir o diplom a e não vam os com em or ar?! Esta noite
mer ec e uma festa em Manhattan, champanhe no Plaza, jantar no Wal-dorf...
Não, não... Tenho uma idéia melhor... Vam os tom ar sorvete no Walgreen!
— Ótim o! — Ginger aprovou.
Naquela noite, o Walgreen rec ebeu a mais estranha fam ília das redondezas:
o pai judeu, pequeno como um jóquei, de sobreno-
me alem ão e nar iz adunc o; a mãe sue c a, loir a, linda, glor iosam ente fem ini-
na, trinta centím etros mais alta que o mar ido; e a filha, uma fada, uma ninf a, pe-
quenina e frágil, tão loir a quanto o pai era mor eno, e bonita como a mãe, por ém
de uma beleza dif er ente, mais sutil, menos palpável. Desde muito pequena, Gin-
ger entendia perf eitam ente que, vendo-a andar de mãos dadas com o pai e a
mãe, as pessoa s pensassem que eles a havia m adotado.
Ginger amava-os tanto que, quando menina, jam ais enc ontrou palavras suf i-
cie ntes para falar sobre o assunto. Depois de adulta, continua va proc ur ando as
palavras certas, mesm o tantos anos depois da morte prem atur a dos pais.
Anna morr eu num acidente de trânsito, pouc o depois da festa do déc im o se-
gundo aniversár io de Ginger; a fam ília Weiss imaginou que Jac ob e a filha estar i-
am perdidos sem aquela sue c a loir a que, aos pouc os, se fizer a respeitar e amar.
Ninguém ignor ava que os três eram unidos e felizes, que se amavam muito. Por
outro lado, ninguém par ec ia ter dúvidas de que o segredo do suc esso do trio fora
enterr ado com Anna. Ela dera um novo rumo à vida do mais obsc ur o dos irm ãos
Weiss — Jac ob, o gentil sonhador, sempre com o nar iz metido em rom anc es poli-
cia is ou de ficç ão cie ntíf ic a. Quando conhec eu Anna, trabalhava como balc onis-
ta numa joa lher ia; quando ela morr eu já era proprie tár io de duas joa lher ia s.
Depois do funer al, a fam ília reuniu-se em casa de tia Rac hel, no Brookly n.
Esc ondida num canto da copa, enj oa da com o cheir o de temper os, rezando a
Deus para que lhe devolvesse a mãe, Ginger ouviu uma conversa entre tia Fran-
cine e tia Rac hel. Tia Fran-cine par ec ia muito preoc upada com o futur o do viúvo
e da órfã jogados ao mundo sem a proteç ão de Anna.
— Os negóc ios vão com eç ar a dar prej uízo... Você sabe que ele não é capaz,
não vai conseguir, nem depois do luto... o pobre luft-mensc hl Anna era a únic a
pessoa sensata naquela casa! Sem ela, estar ão arr uinados em cinc o anos... — di-
zia, subestim ando a sobrinha.
A bem da verdade, Ginger tinha apenas doze anos e, embor a
já cursasse o ginásio, ainda par ec ia uma cria nc inha. Em sã consc iê nc ia, nin-
guém poder ia prever que, em pouc o tempo, estar ia pronta para assum ir o papel
de Anna. Com eç ar a a aprender a cozinhar com a mãe e, como a mãe, ador ava a
culinár ia. Pouc os dias depois do funer al, levou para o quarto todos os livros de re-
ceitas e, com a persever anç a e determ inaç ão que também herdar a da mãe e que
já eram sua marc a registrada, aprendeu tudo o que ainda não sabia. Quando os
par entes de seu pai chegar am para o prim eir o jantar em fam ília depois da morte
de Anna, Ginger ofer ec eu-lhes um banquete: bolinhos de batata com queij o; cre-
me de legum es com alm ôndegas; fatia s de salm ão def um ado; vitela com pá-pri-
ca e molho de ameixas sec as. Para a sobrem esa podia m esc olher » entre pudim
de pêssego e torta de maçã. Franc ine e Rac hel quiser am saber onde Jac ob desc o-
brir a cozinheir a tão fantástic a e ele apontou para a filha. Ninguém acreditou.
Para Ginger, nada havia de exc epc ional: alguém tinha que se enc arr egar do jan-
tar e, na ausênc ia de Anna, a tar ef a cabia a ela; assim, fora para a cozinha e fize-
ra o possível.
O jantar foi apenas o iníc io. Era prec iso também tom ar conta de Jac ob e ad-
ministrar a casa. Ginger pôs mãos à obra com dedic aç ão, entusia sm o e ser ie da-
de, como sempre. Móveis, roupas, piso e tapetes brilhavam de limpos e resistia m
bravam ente às inspeç ões de tia Franc ine. Com pouc o mais de doze anos, Ginger
aprendeu a planej ar o orç am ento e, aos treze, assum iu o controle de todas as des-
pesas da casa.
Aos quatorze foi esc olhida como orador a da turm a, embor a tivesse três anos
menos que o mais jovem de seus colegas. Depois foi aceita por todas as universi-
dades às quais se candidatar a e esc olheu o Colégio Prepar atór io de Barnard.
Amigos e par entes rec om eç ar am a dar sinais de preoc upaç ão: Ginger, de uma
vez por todas, estava dando um passo muito maior que suas pequenas pernas.
Os cursos em Barnard eram rea lm ente mais dif íc eis de acompanhar do que
no ginásio. Ginger já não conseguia aprender em seis meses o que os colegas
aprendia m em doze, por ém aprendia exatam ente o mesm o que os melhor es alu-
nos, em tempo rigor osam ente igual. Suas notas osc ilavam entre nove e dez, e a
marc a mínim a só ocorr eu uma vez, justam ente quando com eç ou a fre-qüentar o
Barnard. Nessa époc a Jac ob sof reu a prim eir a crise de panc rea tite; ela passava
noites em clar o no hospital e de manhã saía corr endo para não perder um minuto
da aula.
Jac ob ainda tinha razoá veis condiç ões físic as quando Ginger completou o
prepar atór io; estava frac o e muito magro na form atur a da fac uldade; e não so-
breviveu até o fim da prim eir a residênc ia médic a. As crises de panc rea tite evo-
luír am para cânc er do pânc rea s, e ele morr eu sem saber que a filha optar ia por
uma segunda residênc ia, dessa vez em cir urgia, no Hospital Boston Me-‘ mor ia l,
abrindo mão, assim, de suas grandes possibilidades como cie ntista e pesquisado-
ra.
Ginger viver a muito mais tempo com Jac ob do que com An-na, razão pela
qual a dor de perdê-lo foi imensam ente maior do que o sof rim ento causado pela
morte da mãe. Por ém enf rentou e venc eu a dor, do mesm o modo como super a-
va todos os obstác ulos que enc ontrava pela frente, e conc luiu a prim eir a residên-
cia com notas exc epc ionais e as melhor es cartas de rec om endaç ão com que
Anna ter ia sonhado.
A segunda residênc ia foi adia da por dois anos, dur ante os quais ela viveu na
Calif órnia, em Stanf ord, dedic ada de corpo e alma a um curso de pós-gradua ç ão
em patologia cardiovasc ular. Depois de um mês de fér ia s — as mais longas de
sua vida —, voltou a Boston. O dr. George Hannaby, dir etor do Departam ento de
Cir urgia do Boston Mem or ia l e mundia lm ente conhec ido por suas liç ões pioneir as
sobre cir urgia cardiovasc ular, aceitou-a como interna, e Ginger afinal pôde dedi-
car-se integralm ente às tar ef as da segunda residênc ia.
Passar am-se oito meses, até que, em novembro, numa terç a-feir a de ma-
nhã, ela entrou na Casa Bernstein para fazer compras, e sua vida mudou. O ho-
mem das luvas pretas: foi então que tudo com eç ou.
Ginger não trabalhava às terç as-feir as e, a menos que algum de seus pac ie n-
tes estivesse em risc o de vida, ninguém a esper ava no hospital. Nos prim eir os
meses, logo depois da chegada a Boston, era com um vê-la trabalhando nos fer ia -
dos ou nos dias de folga, sempre movida por energia e entusia sm o inesgotáveis.
Na verdade, Ginger não tinha para onde ir, senão para o hospital. George Han-
naby obrigar a-a a desc ansar nos dias em que não estava esc alada para os plan-
tões, e enc err ar a a disc ussão afirm ando que os médic os trabalham sob grande
pressão emoc ional e, mais do que ninguém, prec isam de tempo para se rec upe-
rar.
— Se você se esgota, se trabalha dem ais, sem desc ansar nunc a — disse —,
está prej udic ando não só você mesm a, como os pac ie ntes também.
Assim, às terç as-feir as, Ginger passou a acordar uma hora mais tarde: tom a-
va um rápido banho de chuveir o e depois beber ic ava duas xíc ar as de café en-
quanto lia o jornal inteir o à mesa da cozinha, dia nte da janela que se abria para a
Rua Mount Vernon. As dez hor as vestia-se para ir até a Casa Bernstein, na Rua
Charles, e ali comprava carne enlatada, pãezinhos de trigo integral, salada de ba-
tata, carnes fatia das, salm ão def um ado, queij o. Depois voltava para casa e pas-
sava o resto do dia com endo desavergonhadam ente, enquanto lia rom anc es poli-
cia is e aventur as de mistér io. Nos prim eir os tempos, ainda ignor ante na arte e no
prazer de não fazer nada, achava os dias de folga terr ivelm ente longos. Aos pou-
cos, por ém, com eç ou a aguardar com alegria a aproxim aç ão daqueles “dom in-
gos” desloc ados, passando a enc ar ar as terç as-feir as como um dos princ ipais
atrativos da sem ana.
A terç a-feir a negra de novembro com eç ou bem, com vento e céu cinzento,
fria na medida exata para fazê-la sentir-se anim ada e cheia de energia. As dez e
vinte e um Ginger entrava na Casa Bernstein, que, como sempre, estava cheia de
gente. Também como sempre, ela perc orr eu lentam ente o longo balc ão frigor íf i-
co, olhando os pratos salgados expostos um ao lado do outro. Dali passou à seç ão
de massas e conf eitar ia, continua ndo o ritua l de imaginar cada gosto, cada cheir o
e cada textur a de massa antes de comprar algum a coisa. A loja era uma babel de
cheir os e vozes alegres: pão assado, canela e risadas; alho, cebola, cheir o-verde
e conversas rápidas, em inglês temper ado com os mais dif er entes sotaques, do
ídic he ao vernác ulo de Boston, passando pela gír ia da juventude; castanhas assa-
das, repolho, pic les e café; tudo isso acompanhado pelo tilintar de louç a, talher es
e caixa registrador a. Depois de esc olher, comprar e pagar, Ginger calç ou nova-
mente as luvas de tric ô azul-mar inho, ajeitou o pac ote no braç o e a bolsa no om-
bro, e dir igiu-se para a saída.
O pac ote já estava acom odado no braç o esquerdo, quando ela perc ebeu que
deixar a a carteir a sobre o balc ão. Voltou, apanhou-a, guardou-a e, ainda de cabe-
ça baixa, lutando para fec har o zíper * da bolsa, rum ou para a porta. Naquele
exato mom ento, entrava na loja um hom em igualm ente distraído, vestido num
casac o de tweed e usando um chapéu preto de estilo russo. Os dois não se vir am e
colidir am de frente. Ginger foi empurr ada para trás. Ágil, o hom em apanhou o
pac ote de compras antes que caísse ao chão e, com a mão livre, ajudou-a a re-
cuper ar o equilíbrio.
— Desc ulpe — disse. — A culpa foi minha.
— Oh, não! Foi minha!
— Isso acontec e.
— Não vi o senhor entrar.
— Você está bem?
— Estou ótim a. Obrigada.
O hom em devolveu-lhe o pac ote. Ginger agradec eu e estava outra vez aco-
modando o pac ote no braç o, quando viu as luvas pretas que ele usava. Eram lu-
vas car as, de fino cour o, tão bem feitas que mal se viam as costur as. Nada ti-
nham de exc epc ional, mas Ginger gelou de medo. Ser ia, então, por causa do ho-
mem? Não, tratava-se de um suj eito como qualquer outro, um pouc o pálido, de
feiç ões com uns e grossos óculos de tartar uga. Era inac reditável, inexplic ável e ir-
rac ional, mas o problem a eram as luvas. De um mom ento para outro, a partir do
instante em que pousou os olhos nelas, Ginger sentiu o cor aç ão dispar ar.
Form as e cheir os dissolver am-se a sua volta, como parte de um sonho que se
esvai no mom ento de despertar: os fregueses que tom avam café às mesinhas, as
prateleir as cheia s de latas color idas, os cartazes, o relógio de par ede com o logo-
tipo de uma fábric a de conservas, a pilha de vidros de conf eitos, o balc ão envi-
draç ado. Tudo desapar ec ia como que enc oberto por uma névoa vinda das entra-
nhas da terr a. Só as luvas persistia m, mais brilhantes a cada segundo, mais ne-
gras, mais rea is, num mundo onde tudo par ec ia perder a identidade.
— Senhor ita...
Ginger ouviu a voz do hom em como se estivessem separ ados por uma bar-
reir a intransponível, ou como se ela estivesse par ada à entrada e ele à saída de
um longo túnel. A medida que as for- 1 mas sum ia m, os sons cresc ia m até se
transf orm ar numa gigantesc a onda de vibraç ões que lhe martelava os tímpanos e
enc obria até as batidas do próprio cor aç ão. Ginger não conseguia despre-gar os
olhos das luvas.
— Você está bem? — o hom em perguntou, estendendo-lhe a mão num
gesto talvez de solidar ie dade, talvez de desc ulpa, novam ente.
O cour o negro, colado à pele, brilhava com por os quase invisíveis. Ao longo
dos dedos, os pequenos pontos, sem elhantes a cic atrizes. As juntas dos dedos não
passavam de ossos arr edondados sob o cour o...
Era prec iso fugir. De repente, Ginger sabia que tinha que sair dali, fosse
como fosse, para qualquer lugar. Tinha que salvar-se. A cada segundo o medo fi-
cava mais denso e pesado. Não havia explic aç ão possível, nem tempo a perder.
Não sabia de onde vinha o per igo, por ém sabia que se aproxim ava cada vez
mais. No peito, o cor aç ão par ec ia a ponto de explodir. Ela gem eu baixinho, o som
esc apando entre os dentes cerr ados, e lanç ou-se para frente, em dir eç ão à saí-
da. Não entendia a razão de sua atitude, nem a relaç ão que poder ia ter com as lu-
vas pretas. Na corr ida, quase derr ubou o hom em do casac o de tweed, mas nem
sequer o viu. Era possível até que ele não estivesse mais ali, que as luvas pretas ti-
vessem se apartado dele e pair assem vivas e soltas pelo espaç o arm ando o bote.
Ginger não poder ia sair sem empurr ar a porta, e talvez a tivesse mesm o em-
purr ado, por ém não tinha certeza de nada. Sabia apenas que saír a da loja, estava
na rua, lutando para respir ar o ar frio, e prec isava corr er para salvar a própria
vida. A dir eita arr astava-se o tráf ego pesado da Rua Charles — buzinas, ronc o de
motor es, pneus chia ndo. A esquerda, a vitrine da Casa Bernstein reluziu por um
mom ento e desapar ec eu. Então Ginger dispar ou pela rua a fora. Já não pensava
em nada. Era como se a névoa que brotar a do piso da loja cobrisse, naquele ins-
tante, a calç ada, a rua, o mundo. Uma sombra cinzenta, que não par ava de cres-
cer, par ec ia engolir a própria Ginger, devor ando-a lentam ente. Se ao menos ti-
vesse certeza de que aquilo era um pesadelo... Mas, e se fosse? O medo que „
sentia, o terr ível medo que vem com os pesadelos, não ser ia menos real. Talvez
houvesse gente nas calç adas... Ginger não sabia, não via, não ouvia. Prec isava
apenas fugir, o mais depressa possível, para o canto mais distante que pudesse
enc ontrar, depressa, depressa. Sentia os lábios sec os e arr eganhados sobre as
gengivas, os tendões do pesc oç o a ponto de rebentar, o rosto contorc ido de pavor.
E corr ia como se tivesse nos calc anhar es uma matilha de cães danados. Cega,
surda, muda. Perdida.
Minutos depois a névoa desapar ec eu. Ginger estava a meio cam inho da la-
deir a da Rua Mount Vernon, par ada junto à grade de ferr o de uma abastada casa
de tij olos verm elhos. Agarr ou-se a dois montantes da grade com tanta forç a que
os dedos doe r am e enc ostou a testa sua da no ferr o frio. Par ec ia uma prisioneir a
tentando desesper adam ente abrir a cela. E, no entanto, já com eç ava a conf or-
mar-se com o inevitável. Tinha os pulmões ardendo, o peito dolor ido pelo esf orç o
da corr ida e pela falta de ar. Tudo a sua volta par ec ia estranho. O que estava fa-
zendo ali? Por que... como havia chegado até aquela grade?
Algum a coisa a assustar a, mas ela ainda não conseguia lembrar-se do que
poder ia ter sido. A medida que conseguia respir ar com mais calm a, à medida
que o cor aç ão retom ava o ritm o norm al, o medo com eç ava a ref luir pouc o a
pouc o como a maré vazante.
Ginger levantou a cabeç a e olhou ao redor. Viu os galhos sec os
de uma tília erguendo-se como ossos de esqueleto contra o céu pardac ento.
Era novembro, uma fria manhã de novembro, ainda tao esc ur a que as lâmpadas
da rua continua vam acesas. Pouc o adia nte, no topo da ladeir a, estava o Palác io
do Governo. Abaixo, as luzes do cruzam ento da Mount Vernon com a Charles.
Casa Bernstein... Clar o! Era terç a-feir a, ela estava comprando com ida quan-
do... quando algum a coisa acontec eu. Sim, mas o quê? E onde estar ia o pac ote
que carr egava?
Soltou as grades de ferr o e olhou para suas luvas de tric ô. Luvas! As luvas
pretas... O hom em das luvas pretas a assustar a. Não! As luvas pretas do hom em
do chapéu russo a assustar am. O hom em de óculos e olhar míope... e luvas de
cour o preto. Por que a assustar am tanto? O que poder ia haver de tão aterr or izante
num par de luvas de cour o preto?
Da outra calç ada, um casal de velhos olhava para ela e Ginger tentou imagi-
nar o que estar ia m pensando. Será que fizer a algum a coisa terr ível enquanto fu-
gia? Não tinha a menor idéia. Branc o total. Não conseguia lembrar-se de nada a
partir do instante em que vira as luvas pretas. Três minutos? Talvez mais... Um
tempo de oco absoluto, de mem ór ia vazia.
Envergonhada, sem saber o que ter ia feito ou o que estar ia m pensando os
dois velhos, com eç ou a desc er a ladeir a, de volta ao ponto onde aquela louc ur a
havia com eç ado. Junto a uma esquina, enc ontrou seu pac ote de compras sobre a
calç ada. Par ou um mom ento antes de apanhá-lo, proc ur ando lembrar-se do mo-
mento em que o deixar a cair. Nada. Não conseguia lembrar-se de nada.
— Mas... o que é que está acontec endo com igo?! — murm ur ou. As latas de
carne e a bandej a de salm ão havia m caído do embrulho, por ém não faltava
nada; Ginger rec olheu as latas e a bandej a e rec oloc ou-as dentro do saco de pa-
pel. Ainda sem entender o que acontec er a, pôs-se a cam inho de casa. De repen-
te, por ém, par ou, hesitou um mom ento, e marc hou dec idida para a Casa Berns-
tein. Não prec isou esper ar muito, porque, um ou dois minutos depois, o hom em
de óculos de tartar uga, chapéu russo e casac o de tweed apar ec eu a porta da loja.
Ao vê-la, mostrou-se surpreso.
— Oh! — exc lam ou. — Por favor, perdoe-me. Acho que nem tive tempo
de pedir desc ulpas. Foi tudo tão repentino... você saiu corr endo...
Ginger conc entrou-se apenas nas luvas pretas. Uma delas, na mão dir eita,
segur ava com firm eza um pac ote de papel pardo idêntic o ao seu. A outra fazia
gestos no ar, acentua ndo as palavras que ele tentava artic ular. Uma luva de cour o
negro risc ando ara-besc os no ar frio de uma cinzenta manhã de um novembro
cinzento: nada mais, nada menos. Tudo norm al. Luvas rigor osam ente com uns.
Sem o menor sinal de amea ç a ou per igo.
— Não se preoc upe — Ginger levantou os olhos fitou-o no rosto. — Tam-
bém fiquei preoc upada com o que o senhor estivesse pensando e voltei para pe-
dir-lhe desc ulpas. Passe bem. — Tentou sorr ir, já com eç ando a afastar-se. — O
dia hoje está mesm o um pouc o... estranho. Passe bem.
Para chegar ao apartam ento, prec isava andar apenas alguns quarteir ões, ca-
minhada agradável em outras circ unstânc ia s. Naquela manhã entretanto, Ginger
sentia-se como um autêntic o Ulisses do asf alto, obrigada a enf rentar mil per igos
antes de atingir a segur anç a de sua Itac a de conc reto.
Mor ava em Bea c on Hill no segundo andar de um prédio pequeno e antigo
que um banqueir o do séc ulo 19 mandar a construir para residênc ia da fam ília. Ao
ver o apartam ento pela prim eir a vez, Ginger fic ar a seduzida pela elegânc ia e
pelo requinte dos detalhes: forr os de gesso trabalhado, medalhões sobre o batente
das pesadas portas de madeir a, var andas em todos os aposentos, gra-dis de ferr o
na fac hada, e duas lindas lar eir as de márm or e — uma na sala e outra no quarto
de dorm ir. Era um lugar que suger ia perm anênc ia, continuidade, e não havia
nada que ela prezasse tanto como uma vida estável; talvez fosse sua rea ç ão in-
consc ie nte à morte prem atur a da mãe.
Ao entrar em casa, ainda trem ia de frio, embor a o calor da sala aquec ida se
espalhasse até a cozinha, Ginger guardou parte das compras na despensa, parte
na geladeir a, e foi dir eto para o banheir o. Par ou em frente ao espelho e vendo-se
pálida, de olhos verm elhos, ainda assustada, interr ogou-se:
— O que houve, shnook? Desc ulpe, mas você agiu como uma completa
meshuggene. Completam ente farfufket. E por quê? Você é a superdoutor a Weiss,
lembra-se? Por quê, doutor a?
As palavras ecoa r am sem resposta pelo amplo banheir o de par edes altas, e
Ginger sentiu um calaf rio. Algum a coisa muito sér ia havia acontec ido, por em
mais grave ainda era aquele eco dizendo-lhe o que ela tem ia desc obrir: não sei...
não sei...
Jac ob Weiss era judeu apenas por uma circ unstânc ia genétic a. Embor a se
orgulhasse muito dos séc ulos de her anç a cultur al que rec eber a junto com os ge-
nes, não era um hebreu pratic ante. Rar am ente ia à sinagoga e respeitava apenas
os princ ipais fer ia dos religiosos — talvez com o mesm o espír ito alegrem ente he-
rétic o de certos cristãos que se reúnem para devor ar uma festiva bac alhoa-da na
Sexta-feir a da Paixão. Ginger fora ainda mais longe que o pai e já se habitua r a à
idéia de ser agnóstic a. Pesava-lhe o fato de ser cinqüenta por cento judia. Se pre-
cisasse def inir-se, dir ia: “mulher, médic a, trabalhador a compulsiva, politic am en-
te omissa” e mais meia dúzia de atributos, antes de pensar na prof issão de fé reli-
giosa.
Havia mom entos, por ém, que só o ídic he par ec ia ofer ec er-lhe as palavras de
que nec essitava: quando estava muito preoc upada ou muito assustada. Era como
se, em algum nível obsc ur o de sua personalidade, ela rec onhec esse um certo po-
der mágic o na língua paterna, como se aquelas palavras pudessem exorc izar o
mal, o azar ou qualquer catástrof e iminente.
— Sair corr endo pela rua, deixar cair o pac ote, esquec er tudo, até mesm o
seu nome, o lugar onde estava, o que estava fazendo... trem er de medo sem sa-
ber de que... Você agiu como umahrmish-tehl — Ginger balanç ou a cabeç a, as
sobranc elhas franzidàs. —
E se um de seus clie ntes a visse, doutor a Weiss? Quem é que conf ia num mé-
dic o louc o?!
Como de outras vezes, as palavras em ídic he conseguir am acalm a-la, senão
completam ente, pelo menos o bastante para arr anc á-la do estado de pânic o la-
tente e devolver-lhe o usua l tom rosado do rosto e o brilho dos olhos. Perc ebeu
que já não estava trem endo, embor a ainda sentisse as mãos geladas.
Ginger curvou-se sobre a pia e lavou o rosto; depois apanhou uma esc ova e
penteou os cabelos. Despiu-se, enf iou o pij am a e o roupão — unif orm e habitua l
dos dias de folga — e foi para o quarto ao lado do seu, transf orm ado numa espé-
cie de sala de estudos. Com um rápido olhar loc alizou na estante um livro grosso,
com sinais visíveis de uso intenso: o Dic ionário Médic o-Enc ic lopédic o Taber. Co-
loc ou-o sobre a mesa e proc ur ou o verbete “Fuga”.
Conhec ia perf eitam ente o signif ic ado da palavra e não conse-guir ia explic ar
por que estava consultando um dic ionár io que havia quase dec or ado. Talvez tives-
se a esper anç a de que o dic ionár io também servisse de talism ã, como as palavras
em ídic he. Talvez acreditasse que, vendo as palavras impressas na página, conse-
guisse mir ac ulosam ente exorc izar o mal. Clar o. Uma espéc ie de vodu para mé-
dic as civilizadas. Lá estava:
“Fuga (do lat. fuga), s.í. Sever a dissoc ia ç ão de personalidade. Sair de casa ou
de qualquer rec into, sob a ação de impulso inc on-trolável. Passada a crise, pode-
se ver if ic ar perda total ou parc ia l da mem ór ia, em espec ia l dos atos pratic ados
dur ante o per íodo de ausênc ia”.
Ginger fec hou o dic ionár io e devolveu-o à estante. Tinha vár ios outros volu-
mes que poder ia m fornec er novas inf orm aç ões sobre fuga, suas causas, signif i-
cado ou conseqüênc ia s possíveis, mas resolveu deixá-los na prateleir a. Era im-
possível continua r agindo como se aquilo fosse um sintom a de doe nç a grave. Po-
dia ser stress, conseqüênc ia previsível de exc esso de trabalho. Um simples inc i-
dente isolado, sem importânc ia. Uma rápida crise de fuga, mais nada, uma au-
sênc ia de dois ou três minutos. Com certeza, sinal de que estava mesm o prec isan-
do desc ansar. A prova def initiva de que as terç as-feir as eram nec essár ia s e talvez
não suf ic ie ntes. Nesse caso, bastar ia ref azer a agenda de modo a poder sair do
hospital um pouc o mais cedo — uma hora por dia, por
exemplo —, e pronto, adeus stress, fugas e perda de mem ór ia!
Para chegar onde estava, Ginger trabalhar a muito mais do que sua mae ter ia
imaginado, e tudo que fizer a nasc er a sempre de uma únic a idéia: se era mesm o
uma pessoa espec ia l, tinha responsabilidades espec ia is. Anna sabia que ela não
fugir ia de nenhum a dif ic uldade, Jac ob conf ia r a nela até o últim o mom ento de
vida, Ginger não os dec epc ionar ia. Que falta lhe fazia a mãe naquele instante!
Anna a far ia pensar nos sac rif íc ios que lhe custar a chegar até ali, nos fins de se-
mana de plantão, nos anos e anos sem fér ia s... e em todos os outros prazer es que
deixar a de lado. Faltavam apenas seis meses para o fim da segunda residênc ia.
Depois poder ia montar o próprio consultór io e nada, absolutam ente nada, a impe-
dir ia de rea lizar esse sonho — ou mais ainda: esse plano cuidadosam ente elabo-
rado e perf eitam ente exec utado. Ninguém, nada lhe roubar ia o prazer de ter feito
o que dec idir a fazer de si mesm a.
Era o dia 12 de novembro.
Ernie Block tinha medo do esc ur o. Dentro de casa o medo ainda era suportá-
vel, mas na rua, na vasta esc ur idão das noites do norte de Nevada, Ernie entrava
em pânic o. Dur ante o dia pref er ia as salas de janelas grandes. A noite, por ém,
tudo mudava, e ele proc ur ava as salas de pequenas janelas estreitas ou mesm o
sem janela algum a, porque tinha a nítida impressão de que a esc ur idão forç ava
os vidros e sac udia as persia nas como um ser vivo, quer endo entrar a qualquer
custo para devor á-lo. De nada adia ntava corr er as cortinas, porque continua va a
sentir a presenç a da noite, além dos vidros, além das par edes, à esper a do mo-
mento oportuno para dar o bote.
Era um horr or e uma vergonha. De repente, sem mais nem menos, o medo
do esc ur o passou a fazer parte dele. Não sabia a razão; sabia apenas que tinha
medo. Medo. Um medo com um em milhões de cria nç as, clar o. Mas Ernie tinha
cinqüenta e dois anos.
Na sexta-feir a seguinte ao dia de Ação de Graç as, estava sozinho, trabalhan-
do no esc ritór io do motel; Fay e dec idir a aproveitar o fer ia do para ir ao Wisc onsin
visitar Lucy, Frank e as cria nç as, e só voltar ia na terç a seguinte. Para o Natal os
dois tinham planos de fec har o motel e ir para Milwaukee passar as festas com a
filha, o genr o e os netos, mas dessa vez Fay e via j ar a sozinha.
Ernie jam ais se acostum ar ia a viver sem ela, mesm o por alguns dias. Sentia
uma falta terr ível da mulher que era não apenas sua esposa fazia mais de trinta e
um anos, mas também sua melhor amiga. Amava-a agor a muito mais do que
quando se casar am. E, sem ela, achava as noites mais longas, mais terr íveis,
mais esc ur as do que nunc a.
* Às duas hor as da tarde de sexta-feir a, Ernie já havia troc ado os lenç óis de
todos os quartos, varr ido e limpado os banheir os; o Motel Tranqüilidade estava
pronto para rec eber os hóspedes de fim de sem ana. Únic o hotel em quase vinte
quilôm etros de estrada, bem próxim o do acesso à rodovia princ ipal, era um loc al
tran-qüilo, uma pequena ilha verde cerc ada de planíc ie s pedregosas, vegetaç ão
rasteir a e galhos sec os. Quar enta e oito quilôm etros a leste estava Elko, e na dir a-
ção oposta, a sessenta quilôm etros, Battle Mountain. Carlin, que poder ia ser consi-
der ada uma bela cidade, e a vila de Beowawe também não eram muito distantes,
mas no Motel Tranqüilidade não se via sinal de vida pelas redondezas. Chegando
ao estac ionam ento, por exemplo, o novo hóspede tinha a nítida sensaç ão de que
afinal enc ontrar a o únic o lugar do planeta que lhe fornec er ia abrigo e com ida a
meio cam inho de uma longa via gem.
Ernie estava no esc ritór io, limpando o balc ão, debruç ado à proc ur a de arr a-
nhões e marc as deixadas sobre o tampo de carvalho. Em rigor, era um trabalho
desnec essár io, porque ninguém se dem or ava frente ao balc ão o tempo suf ic ie nte
para arr anhá-lo, mas servia para fazê-lo esquec er de que as hor as corr ia m e logo
chegar ia a noite. Se, por acaso, não apar ec esse ninguém para passar a noite no
Motel, ele iria dorm ir com a certeza de que estava completam ente sozinho. Se
não se mantivesse ocupado, voltar ia a pensar que estava em novembro e que em
novembro anoitec e muito cedo, assim, quando a noite afinal chegasse, estar ia
tenso como uma corda de violino, prestes a rebentar de angústia ao menor ruído.
O esc ritór io estava prof usam ente ilum inado desde as prim eir as hor as da ma-
nha. Sobre o balc ão, uma lâmpada fluor esc ente proj etava um retângulo de luz no
feltro verde do tampo. Junto ao arquivo onde guardava as fic has dos hóspedes,
reluzia um abaj ur de haste longa. Do outro lado do balc ão, à dir eita de onde fic a-
vam os aspir antes a hóspedes, havia um display com cartões postais, outro com
livros à venda e uma pequena estante com guia s de via gem e mapas. Ao lado da
porta, dispunham-se um sofá bege e duas mesinhas later ais, cada qual ostentando
um abaj ur de três lâmpadas poder osas, todas acesas. No teto, uma lum inár ia
de vidro fosc o dif undia a clar idade de duas lâmpadas. E a ampla janela envidra-
çada deixava entrar, em toda a plenitude, os raios do sol, que inc idia m sobre o es-
tof am ento do sofá e tingia m de ouro e mel o teto branc o da entrada. Sobre as
mesas later ais, o bronze polido de dois cinzeir os cintilava.
Quando Fay e estava em casa, Ernie conseguia venc er o medo e desligava
algum as lâmpadas, certo de que ela protestar ia contra “tam anho desperdíc io de
energia’ ’. De qualquer modo, a simples visão de uma lâmpada apagada fazia-o
estrem ec er; se não fosse tão importante guardar segredo sobre o que estava
acontec endo, Ernie tinha certeza de que não resistir ia à tentaç ão de, outra
vez, acendê-las todas, assim que Fay e as desligasse.
Tanto quanto Ernie podia perc eber, Fay e ainda não desc onf ia va de nada,
embor a o medo do esc ur o já fosse um torm ento para ele havia quase quatro me-
ses. Melhor assim. Pref er ia que Fay e não desc obrisse; em prim eir o lugar, enver-
gonhava-se de trem er de medo como uma cria nç a e, em segundo lugar, não
quer ia vê-la preoc upada. Não ter ia o que dizer, não saber ia explic ar o que estava
acontec endo. Além disso, não perder a a esper anç a de super ar o que lhe par ec ia
ser uma doe nç a. Mais cedo ou mais tarde estar ia cur ado e, assim, não havia ra-
zão para contar tudo à mulher e causar-lhe preoc upaç ão.
Não podia ser tão sér io. Em cinqüenta e dois anos de vida, Er-nie pouc as ve-
zes fic ar a doe nte, e nunc a com gravidade. Só estiver a hospitalizado uma vez, du-
rante a guerr a do Vie tnã, para tratar de dois fer im entos a bala. Não havia registro
de doe nç as mentais em sua fam ília e não ser ia ele, Ernest Eugene Block, que iria
inaugur ar o ramo genea lógic o dos Block abobalhados e desequilibrados, contando
misér ia s íntim as em divãs de psiquia tras. Ah! Mas não, mesmol Clar o que ia ven-
cer... aquilo. Por terr ível que fosse, por estranho, desc onc ertante, horr ível e assus-
tador que fosse!
Os prim eir os sintom as surgir am em setembro: um ligeir o mal-estar que au-
mentava à medida que ia esc ur ec endo e persistia até o dia clar ea r. No iníc io, não
era muito acentua do, nem acontec ia sempre, mas depois com eç ou a pior ar. Em
mea dos de outubro, o crepúsc ulo já lhe dava calaf rios. Em novembro, o mal-es-
tar transf orm ar a-se em medo e, nas duas últim as sem anas, além do medo, havia
uma ansie dade quase inc ontrolável, que cresc ia com a aproxim aç ão da noite.
Nos últim os dez dias Ernie já não tinha cor agem de sair de casa à noite. Fay e
ainda não desc onf ia va de nada, mas era apenas uma questão de tempo; em bre-
ve ele ter ia que achar algum a explic aç ão, algum a coisa que servisse para dizer à
mulher e que o impedisse de enlouquec er de medo.
Ernie era um hom em tão grande e forte que par ec ia imune a qualquer tipo
de medo. Musc uloso, com quase dois metros de altur a, tinha ombros largos e bí-
ceps poder osos. Os cabelos loir o-acinzentados, cortados rente à cabeç a, deixa-
vam entrever as form as regular es do osso crania no; o rosto simpátic o par ec ia re-
alm ente talhado em pedra. Na esc ola, quando era um astro do futebol, os colegas
o cham avam de “Tour o” — apelido que sobreviveu dur ante muito tempo. Na
Mar inha, em seus vinte e oito anos de serviç o, muitas vezes era cham ado de “se-
nhor” por ofic ia is de patente super ior à sua, tam anha a autor idade que emanava
dele. Qualquer um daqueles ofic ia is fic ar ia muito surpreso se soubesse que, ulti-
mam ente, Ernie sua va frio, trem ia dos pés à cabeç a e cerr ava os dentes, cada
vez que pensava na chegada da noite.
O balc ão brilhava como um espelho, mas Ernie ainda não se dava por satis-
feito e continua va a esf regá-lo com forç a, a imensa mão aberta sobre a flanela
amar elada; quer ia manter-se ocupado para não pensar. As quinze e quar enta e
cinc o, afinal, levantou a cabeç a. O sol havia mudado de lugar e já não par ec ia
dour ado; dir igindo-se rapidam ente para o hor izonte, tornava-se cada vez
mais averm elhado.
As quatro hor as chegar am os prim eir os hóspedes, o sr. e a sra. Gilney ; ti-
nham quase a idade de Ernie e voltavam para casa, em Salt Lake City, depois de
uma sem ana de fér ia s, com o filho, em Reno. Ernie enc ompridou a conversa
com eles o mais que pôde, por ém a via gem fora longa e os dois par ec ia m ter
pressa de ir desc ansar. Lá fora, o sol averm elhava ò hor izonte. Havia pouc as nu-
vens, densas e pesadas como galeões inc endia dos, carr egados de cadáver es, ar-
rastados sem rumo por um mar de sangue.
Dez minutos depois, apar ec eu um hom em alto, pálido e magro; era um fun-
cionár io do Ministér io da Agric ultur a, enc arr egado de medir umas terr as por ali,
e pediu um quarto para duas noites.
Outra vez sozinho, Ernie lutava para não consultar o relógio e não olhar pela
janela. Bastava-lhe o ref lexo do sol na par ede a sua frente para saber que o san-
gue cobria o hor izonte e continua va a brotar por todos os lados.
— Nada de pânic o — disse para si mesm o. — Você esteve no Vie tnã, já viu
tudo o que pode haver de mais terr ível. Merda! Você sobreviveu! Não é possível
que vá trem er agor a, justam ente agor a... só porque está esc ur ec endo!
As dezesseis e quar enta e cinc o o sangue cobria o mundo. 0 cor aç ão de Ernie
dispar ou. Por um mom ento teve a impressão de que suas costelas com eç avam a
fec har-se, como uma enorm e mandíbula, tritur ando-lhe a alma. Aproxim ou-se
da mesa, sentou-se na cadeir a de Fay e, fec hou os olhos e respir ou fundo, uma,
duas, três vezes, tentando acalm ar-se. Ligou o rádio. As vezes, a músic a servia-
lhe de sedativo. Kenny Rogers cantava, triste, falando de solidão.
O sol, afinal, alc anç ou o hor izonte e, lentam ente, mergulhou na terr a. A luz
averm elhada da tarde tornou-se azul-esc ur a, como nos fins de tarde em Singapu-
ra, quando Ernie trabalhava como guarda na embaixada, era muito jovem e não
tinha medo de nada.
O crepúsc ulo chegou. E logo veio o pior: a noite. Na fac hada do motel, as le-
tras azuis e verdes do neon acender am-se autom atic am ente, acionadas pelo me-
canism o fotossensível, mas Ernie sequer perc ebeu. Continua va sentado na cadei-
ra de Fay e, os olhos fec hados, a testa coberta de suor frio.
As seis em ponto, Sandy Sarver saiu corr endo do Restaur ante Tranqüilidade,
bem ao lado do motel. Na verdade, era apenas uma lanc honete, com cardápio
simples e lim itado, que servia lanc hes aos hóspedes e aos cam inhoneir os eventu-
alm ente atraídos pelo lum inoso. Caso algum hóspede desej asse, havia a opç ão de
“pernoite com café da manhã no quarto”, desde que enc om endado de vésper a.
Sandy dir igia o restaur ante junto com o mar ido, Ned; ela atendia os fregueses e
Ned enc arr egava-se da cozinha. Mor avam num trailer estac ionado perto de Be-
owawe e, todas as manhãs, dir igia m-se ao trabalho numa velha cam ioneta.
Quando Sandy abriu a porta, Ernie saltou da cadeir a, lívido, certo de que,
atrás dela, entrar ia a noite, esgueir ando-se por entre suas pernas como uma pan-
ter a.
— Vim trazer o jantar. — Sandy sac udiu os cabelos, como se quisesse jo-
gar para longe a umidade da noite, e coloc ou sobre a mesa uma embalagem de
papelão branc o contendo um cheese-burger, batatas fritas, salada de repolho e
uma lata de cervej a. — Achei que uma cervej a o ajudar ia a engolir todo esse
colester ol.
— Obrigado.
Sandy dava a impressão de não se preoc upar com a apar ênc ia. Exc essiva-
mente magra, tinha cabelos opac os e sempre despentea-dos, unhas roídas, dedos
amar elados pela nic otina. Vestia-se mal, andava cabisbaixa e rar am ente mostra-
va o rosto, sempre lavado. No entanto, conseguir ia ser uma bela mulher se ga-
nhasse alguns quilos, sabia m ente distribuídos do pesc oç o à vir ilha, e seguisse cer-
tos conselhos de beleza elem entar es fornec idos pelas revistas
fem ininas. Era, contudo, uma boa alma. Ernie e Fay e vivia m imaginando
como ela ser ia se dec idisse cuidar melhor de si mesm a e viver com mais alegria.
As vezes, Ernie surpreendia-se preoc upado com Sandy do mesm o jeito
como se preoc upava com Lucy, sua filha, antes de Frank apar ec er e Lucy desa-
broc har em plena felic idade. Tinha a sensaç ão de que algum a coisa muito grave
acontec er a na vida de Sandy, um golpe duro, def initivo, terr ível; um golpe que, se
não conseguiu destruí-la, obrigou-a a baixar para sempre a cabeç a, na tentativa
de proteger-se de novas esper anç as, novas frustraç ões, novas dor es, novos en-
contros com a maldade hum ana.
Ernie exam inou a com ida e abriu a lata de cervej a.
— Par ec e ótim o — com entou. — Ned faz os melhor es cheese-burgers do
mundo.
— E uma sorte ter um hom em que sabe cozinhar. — Sandy esboç ou seu
pequeno sorr iso envergonhado. — Princ ipalm ente no meu caso... sou uma nega-
ção completa na cozinha.
— Ora... aposto que, se você quisesse, ser ia uma exc elente cozinheir a.
— Nada disso. Não sei cozinhar, nunc a soube e nunc a vou aprender.
Ernie corr eu os olhos pelos braç os sardentos de Sandy, emergindo das man-
gas largas do unif orm e.
— A noite está muito fria para andar por aí com essa roupa — disse. —
Você vai acabar se resf ria ndo.
— Oh, não... — Ela sac udiu a cabeç a. — Eu não... Faz muito tempo que
aprendi a nao sentir frio.
A estranha frase soou ainda mais estranha naquele tom de voz. Antes, por ém,
que Ernie conseguisse abrir a boca para pedir-lhe uma explic aç ão, Sandy deu-
lhe as costas murm ur ando:
— Volto mais tarde para apanhar a bandej a.
— Você... O restaur ante está cheio?
— Não muito. Mas está na hora de apar ec er em os cam inhoneir os. —
Sandy par ou a meia distânc ia entre a mesa e a porta. — Para quê tantas lâmpa-
das acesas? — Como se a pergunta não me-
rec esse resposta, continuou a andar e ter ia saído se a tosse engasgada de Er-
nie não a fizesse par ar, a mão na maç aneta da porta entrea berta.
— E que... — A noite estava ali, a um passo da porta, visível, palpável, e
Ernie mal pôde engolir a batata que mastigava. — E que... bem... isto é um mo-
tel... os motor istas que passam na estrada prec isam ver a gente, não é?
— Sim, mas não aqui no esc ritór io. — Sandy replic ou, olhando em torno.
— Você está quer endo se bronzea r?
— Não... Você sabe... um motel mal ilum inado dá péssim a impressão... Os
clie ntes gostam de luz, de clar idade...
— E verdade. Acho que eu nunc a pensar ia nisso... — Ela curvou ainda
mais os ombros, baixou ainda mais a cabeç a. — Deve ser por isso que você é o
chef e. Nunc a penso em coisas importantes, só em bobagens...
Ernie suspendeu a respir aç ão; sentia o cor aç ão bater como um tambor e as
veia s do pesc oç o latej ar em. Por fim, a porta fec hou-se com um estalido, e ele
respir ou. Viu o vulto magro da moça passar pela janela e desapar ec er. Sandy ja-
mais se vanglor ia r a de coisa algum a; ao contrár io, sempre se dec lar ar a inc om-
petente. Dizia que não sabia cozinhar, nunc a soube, jam ais saber ia. Que não pen-
sava em coisas importantes... Def eitos, falhas, nenhum a qualidade, nenhum a vai-
dade, nenhum orgulho. Não era boa companhia, mas, naquela noite, qualquer
cria tur a rac ional ser ia inter essante e prec iosa para Ernie.
Debruç ado sobre a bandej a, ele tentou conc entrar-se na ref eiç ão, esf orç an-
do-se para não levantar a cabeç a até acabar de com er. Era o únic o modo de es-
quec er a noite, o medo, o suor frio que com eç ava a esc orr er-lhe pelas axilas,
pela testa, pelas costas.
As seis e cinqüenta, oito dos vinte apartam entos do motel estavam ocupados.
Era a segunda noite de um fim de sem ana prolongado e havia muita gente na es-
trada; antes das nove hor as, com certeza, a metade dos aposentos estar ia tom ada,
e mais tarde ainda apar ec er ia m outros hóspedes. Contudo... como consegui-
ria manter o motel aberto até mais tarde?!
Ernie era hom em da Mar inha. Fazia seis anos que estava na reserva, por ém
ainda era hom em da Mar inha, daqueles para os quais o dever e a cor agem eram
sagrados, daqueles que jam ais fugir am da luta, que nunc a trem er am frente ao
inim igo, nem mesm o no Vie tnã, com balas voa ndo sobre a cabeç a, com fogo por
todos os lados, com a retir ada cortada, vendo morr er em os companheir os. Na-
quele mom ento, contudo, trem ia de medo, sentia-se inc apaz de perm anec er no
esc ritór io, porque não havia cortinas nas janelas e apenas um vidro fino o prote-
gia da esc ur idão, da noite, do caos. Cada vez que alguém abria a porta, seu estô-
mago dava voltas e uma náusea pesada e dolor ida subia-lhe pela garganta; aberta
a porta, já não havia barr eir a que o protegesse da noite.
Sem quer er, notou que suas mãos trem ia m, úmidas. Estava tão tenso que não
conseguia mais perm anec er sentado; andava de um lado para outro, conc entrado
em não se aproxim ar muito das janelas.
As sete e quinze já não tinha forç as para resistir e, envergonhado, rendeu-se
ao pânic o. Com um gesto rápido, inc ontrolável, acionou o pequeno interr uptor sob
o balc ão e acendeu o lum inoso da porta de entrada: “Não há vagas”. Depois tran-
cou a porta, apagou as luzes e afastou-se para o inter ior da casa, à medida que
as sombras cresc ia m a sua volta como se fec hassem o cerc o. Subiu a esc ada ilu-
minada, na fuga para o quarto, repetindo para si mesm o, a cada degrau, que não
havia razão para corr er, que não havia nada a tem er, que tudo estava como sem-
pre, que Fay e logo voltar ia. E princ ipalm ente dizia-se que ele era um hom em,
não um menino; que não havia ninguém esc ondido no esc ur o para pregar-lhe um
susto. Era inútil, porque não tinha medo de que alguém lhe fizesse mal... tinha
medo da própria noite, e o medo cresc ia sempre.
De repente, dispar ou pela esc ada acim a, tropeç ando, agarr ando-se ao corr i-
mão, sem ver nem ouvir, dom inado pelo pânic o. No quarto, sem cor agem de
abrir os olhos e enc ar ar a esc ur idão, tateou a par ede à proc ur a do interr uptor, ba-
teu a porta, enc ostou-se à madeir a lisa e, muito lentam ente, ergueu as pálpebras.
O quarto
brilhou a sua frente, inundado pela luz sua ve dos abaj ur es ao lado da cama.
Ernie, por ém, continua va a trem er, mal conseguindo respir ar, o corpo banhado
de um suor fétido, o suor do medo. Havia mais lâmpadas no quarto e nas outras
dependênc ia s que Fay e transf orm ar a em verdadeir o lar no andar super ior do
motel; Ernie corr eu de sala em sala, acendendo as luzes, uma a uma, por todos os
cantos. As cortinas ainda estavam fec hadas, exatam ente como as deixar a na noi-
te anter ior, e todas as lâmpadas acesas. E ele com eç ou a sentir-se razoa velm ente
segur o.
Alguns minutos depois, mais calm o, telef onou para o restaur ante e disse a
Sandy que fec har a mais cedo porque não estava passando bem; pediu-lhe que
não o perturbasse e deixasse as contas para o dia seguinte. Então foi para o ba-
nheir o. Quer ia livrar-se daquele cheir o de suor, que lhe par ec ia cada vez mais
forte, entranhado na pele como um estigm a. Abriu o chuveir o e esf regou-se com
forç a, dur ante muito tempo. Por fim, enxugou-se, vestiu cue c as limpas e um
conf ortável roupão de lã, e calç ou os chinelos.
Apesar da ansie dade e do mal-estar, antes da via gem de Fay e conseguir a
dorm ir no esc ur o, embor a com a eventua l ajuda de uma ou duas cervej as. De-
pois que ela partir a, no entanto, quase não dorm ia. As duas noites que passar a so-
zinho for am um longo torm ento que par ec ia inf indável, entrec ortado por mo-
mentos de torpor, sonolênc ia e exaustão. Os olhos ardia m sob a luz forte da lâm-
pada central, que, não obstante, par ec ia-lhe mais indispensável que na vésper a.
O que far ia quando Fay e voltasse? Ser ia capaz de fic ar na cama, imóvel, fin-
gindo que dorm ia no quarto completam ente esc ur o? E se com eç asse a suar frio,
ou a trem er, ou a berr ar de medo no mom ento em que ela desligasse a lâmpada
de cabec eir a? O pensam ento o fez saltar da poltrona onde acabava de sentar-se.
De punhos e dentes cerr ados, quase sem perc eber, Ernie aproxim ou-se da janela
e toc ou a cortina com as pontas dos dedos, cuidadoso, hesitante. No peito, o cor a-
ção novam ente dispar ou.
Fay e conf ia va nele como um pesc ador conf ia no porto segur o. Era o hom em
que ela amava, o hom em forte, indestrutível, eter-
no, que estar ia sempre a seu lado para ajuda-la, ampar a-la, dar-lhe o apoio
nec essár io. O hom em sólido como um roc hedo, como os hom ens devem ser. O
que Fay e pensar ia se, de repente, ele lhe faltasse? Não! Não podia dec epc ioná-
la, não podia frac assar. Aquele ridíc ulo e inc ompreensível medo do esc ur o prec i-
sava desapar ec er até terç a-feir a, antes que Fay e voltasse do Wisc onsin.
Era fác il falar... Bastou pensar na esc ur idão que estava ali, a apenas alguns
passos, atrás das cortinas, para que outra vez sentisse a pele gelar-se de pavor.
Até que, de repente, perc ebeu que só lhe restava uma saída: enc ar ar o inim igo,
partir para a ofensiva. A eterna liç ão da guerr a ensinar a-o a ser forte, a erguer-se
dia nte do fogo inim igo, a aceitar o desaf io. Sempre fora hom em de luta... Ha-
via de dar certo!
Estava par ado frente à janela do quarto, nos fundos do motel. Por trás das
cortinas, dos vidros e das persia nas, abria-se a paisagem deserta e ressequida de
tantos e tantos anos. Nada além de chão e céu até o hor izonte; nenhum a luz além
do brilho distante das estrelas. Prec isava abrir as cortinas, esc anc ar ar a janela,
enc ar ar a imensidão que par ec ia espreitá-lo. Prec isava lutar... pelo menos ten-
tar... Se venc esse, estar ia livre para sempre! E, quando Fay e voltasse, tudo estar ia
bem, como antes.
Com dois movim entos rápidos e dec ididos, abriu a janela e debruç ou-se li-
geir am ente para fora. Enc ontrou apenas a noite de sempre, fria, silenc iosa e
eterna. Mais nada. Nenhum a amea ç a, nenhum fantasm a.
Foi o tempo de um pensam ento. Inexor ável como um pesadelo, passos lentos
mas firm es, a noite com eç ou a aproxim ar-se, a ganhar corpo. Não era visível
nem tinha lim ites, mas era densa, pulsava, cresc ia. A noite e sua legiã o de horr o-
res: fantasm as, mutilados, cadáver es, pesadelo, putref aç ão, morte... E cada vez
mais próxim os.
Quando Ernie finalm ente conseguiu respir ar, a janela estava fec hada e sua
testa sua da apoia va-se no vidro frio. Agor a, pelo menos, havia o vidro. O deserto
de Nevada continua va cresc endo lá fora, chegava até as montanhas invisíveis, ao
longe. Mas as mon-
tanhas movia m-se... afastavam-se... fugia m! Apenas a esc ur idão estér il da
planíc ie perm anec ia, rolando em todas as dir eç ões, avolum ando-se, ocupando a
terr a e o céu. A vasta noite enc obria o mundo, turvava a razão, causava vertigens.
Ernie sentia a garganta contrair-se, os pulmões fec har em-se como balões vazios.
— Ar! — gem eu. — Ar...
O som da própria voz arr anc ou-o do transe. Ele caiu de joe lhos junto à par e-
de, puxando as cortinas num últim o e desesper ado gesto de def esa. Estava salvo.
No quarto inundado de luz nenhum a esc ur idão poder ia atingi-lo. Ainda curvado,
arr astou-se até a cama, enr olou-se na colc ha e fic ou quie to dur ante muito tempo,
esper ando que os dentes par assem de bater e o cor aç ão voltasse ao ritm o norm al.
A exper iê nc ia não dera certo. Arr isc ar a-se a enf rentar a noite, e a noite qua-
se o matar a. Tinha certeza de que, a partir daquele instante, nunc a mais ser ia ca-
paz de sobreviver a um únic o mom ento de esc ur idão.
— Deus... — disse baixinho, olhos no teto. — O que é que está acontec endo
com igo? Deus... Oh! Meu Deus...
Era o dia 22 de novembro.
5. BOSTON, MASSACHUSETTS
Depois do inc idente das luvas pretas, passar am-se duas sem anas sem novida-
des. Nos prim eir os dias, logo após a cena na Casa Berns-tein, Ginger andou tensa,
sempre à esper a de que sobrevie sse outra crise. Mais do que nunc a, mantinha-se
em perm anente estado de alerta, atenta a qualquer possível alter aç ão de suas
funç ões fisiológic as ou psic ológic as. Como não notasse nada de estranho, com e-
çou a tranqüilizar-se. Não havia sintom as de cef aléia, nem náusea s, nem dor nos
músc ulos ou nas artic ulaç ões. Aos pouc os foi se rec uper ando do susto e logo vol-
tou a ser a calm a e segur a dra. Weiss que todos conhec ia m, princ ipalm ente ela
mesm a. Tratava-se de um simples caso de fuga assoc ia da a stress, uma exper i-
ênc ia desagradável que poder ia evitar fac ilm ente com providênc ia s simples
como desc anso, boa alim entaç ão e muita paz.
Quando estava no hospital, por ém, desc anso era a últim a coisa em que pode-
ria pensar. Apesar do jeito lento de falar e da apar ênc ia preguiç osa, o dr. George
Hannaby, chef e da equipe de cir urgiões, mantinha os subordinados num ritm o
maç ante de trabalho e exigia de todos pontua lidade, disc iplina, ordem. Ginger
não era a únic a residente que o assistia nas cir urgia s, mas era a únic a que traba-
lhava exc lusivam ente com ele, uma espéc ie de “eleita”. O grande chef e sempre
a cham ava para qualquer tipo de intervenç ão, desde os mais var ia dos implantes
— de ponte cardía c a ou aórtic a, de veia saf ena ou artér ia mam ár ia, de válvulas
in-trac ardía c as ou marc apassos — até embolectom ia s, cinea ngio-cor onar iograf i-
as e arter iograf ia s.
George mantinha estrita e constante vigilânc ia sobre sua brilhante disc ípula e
jam ais perdia uma oportunidade de com entar os mais insignif ic antes detalhes de
proc edim ento cir úrgic o err ado que observasse. Com seu ar bonac hão e desc on-
traído, o mestre já enganar a muitos residentes ingênuos, os quais, para seu pró-
prio uso e arquivo, costum ava classif ic ar em dois grupos: os que aprendem com
o prim eir o erro e os que jam ais aprender ão. Muitos jovens médic os do serviç o
de cir urgia fugia m dele como o dia bo da cruz. Era irônic o, cáustic o, dem olidor.
Apesar de tudo, trabalhando ao lado de George na sala de cir urgia, Ginger
sentia-se em casa. Era como cozinhar ao lado de Anna ou fazer as provas finais
da esc ola sabendo que os pais dorm ia m tranqüilos, certos de seu suc esso. Clar o
que no hospital os padrões eram inf initam ente mais rigor osos, pois não se trata-
va de fazer um sabor oso suf lê ou tir ar boas notas, e sim de salvar a vida de um
pac ie nte. Quando George Hannaby disse-lhe que ela era uma brilhante cir urgia,
a mais brilhante que já vira em ação, Ginger sentiu-se como se Deus, em pessoa,
a abenç oa sse.
Na últim a segunda-feir a de novembro, treze dias depois do inc idente na Casa
Bernstein, ela assistia o mestre num implante de tripla ponte de saf ena. O pac ie n-
te era Johnny 0’Day, de cinqüenta e dois anos, ofic ia l de políc ia em Boston, pre-
matur am ente aposentado em funç ão de seus problem as cardía c os. Musc uloso,
de fac es averm elhadas, cabelo cortado rente e doc es olhos azuis, Johnny estava
sempre disposto a fazer pia das e rir de suas artér ia s entupidas. Ginger simpatizou
com ele porque lhe lembrava Jac ob, embor a os dois não pudessem ser menos
par ec idos.
Johnny era pac ie nte de alto risc o, mas isso não a far ia sentir-se menos culpa-
da se ele não sobrevivesse ao terr ível pós-oper atór io que o esper ava. De qualquer
modo, consider adas as circ unstânc ia s, Johnny tinha grandes chanc es de sobrevi-
da. Saudável e mais jovem que a média dos pac ie ntes de implante de pontes car-
día c as, não sof ria de hipertensão nem apresentava histór ic o de flebite. Feitas as
contas, tinha um bom prognóstic o.
O verdadeir o problem a não era o pac ie nte, mas a médic a assis-
tente. A todo mom ento voltava-lhe à lembranç a o inc idente das luvas pretas.
Na tarde de segunda-feir a, Ginger fic ava mais tensa à medida que se aproxim a-
va a hora da cir urgia. Sentia a boca amarga; doía-lhe o estôm ago. Desde a noite
que passar a à cabec eir a de Jac ob, no hospital, sabendo que ele poder ia morr er a
qualquer mom ento, jam ais se sentir a tão desampar ada, tão cheia de dúvidas e de
medo. Talvez a sensaç ão fosse agravada pela identif ic aç ão que estabelec er a en-
tre Johnny e o pai. Talvez tem esse falhar com seu pac ie nte e sentir-se, outra vez,
como se estivesse falhando com Jac ob. Ou, talvez, nada disso servisse para expli-
car coisa algum a. Estava tensa, pronto. Quando Johnny entrasse em fase de re-
cuper aç ão, tudo aquilo ter ia passado e todos rir ia m de suas apreensões. De qual-
quer modo, ao entrar no centro cir úrgic o, ao lado de George, Ginger baixou os
olhos para as própria s mãos, com medo de vê-las trem er. Mãos de cir urgiã o não
podem trem er. Nunc a.
A sala de cir urgia tinha par edes branc as, e por todos os lados viam-se os ins-
trum entos e equipam entos de aço inoxidável, vidro e borr ac ha. No centro, como
numa arena lim itada pelas lâmpadas que pendia m do teto, erguia-se a mesa onde
o pac ie nte estava sendo prepar ado pelas enf erm eir as e assistentes.
Johnny 0’Day esper ava na mesa em form a de cruz com os dois braç os aber-
tos apoia dos sobre bandej as de metal, as palm as das mãos para cima, os pulsos e
antebraç os cuidadosam ente depila-dos para rec eber em as agulhas intravenosas.
A enf erm eir a Agatha Tandy, técnic a em cir urgia contratada mais para servir
ao dr. Hannaby que ao hospital, aproxim ou-se dos médic os. Levava dois par es de
luvas de borr ac ha, que calç ou prim eir o em George, depois em Ginger.
O anestesista fez um sinal para George indic ando que o pac ie nte estava pre-
par ado para entrar em cir urgia. Johnny já havia passado pela tric otom ia e seu
tronc o brilhava, depilado e pintado de iodo do pesc oç o à cintur a. Os dif er entes
campos oper atór ios já estavam def inidos, e vár ios lenç óis verde-clar os for am
dispostos de modo a deixar exposta apenas a área na qual o cir urgiã o trabalhar ia.
O anestesista enc arr egar a-se de passar uma larga tira de espar adrapo sobre as
pálpebras do pac ie nte para mantê-las fec hadas e, assim, impedir que os olhos
ressec assem, e Johnny 0’Day respir ava bem, lenta mas regularm ente.
No canto oposto da sala, junto à par ede, uma mesinha baixa sustentava um
gravador portátil. George gostava de trabalhar ao ritm o de Bach, e a músic a, em
volum e baixo por ém perf eitam en-te audível, enc hia a sala. Em ger al, Ginger
também gostava de ter o gravador por perto e acreditava que o efeito relaxante
do som era benéf ic o para toda a equipe médic a; naquele dia, entretanto, nem
Bach conseguir ia o milagre de acalm á-la. Sentia o estôm ago contraído, pesado,
frio.
George tom ou posiç ão ao lado da mesa cir úrgic a. A sua dir eita, Agatha par e-
cia montar guarda frente à bandej a de instrum entos. Junto aos pés do pac ie nte,
postava-se outra enf erm eir a, pronta para resolver qualquer problem a que surgis-
se no dec orr er da cir urgia, quando nenhum dos outros membros da equipe pode-
ria afastar-se da mesa. Uma terc eir a enf erm eir a, com grandes olhos cinzentos
apar ec endo por cima da másc ar a verde-clar a, ajeitou uma imperc eptível prega
num dos campos cir úrgic os e prendeu uma ponta de lenç ol sob a coxa de Johnny.
O anestesista sentou-se num banc o alto, ao lado de seu assistente e junto à cabe-
ceir a da mesa cir úrgic a, acom odando-se para monitor ar os apar elhos que indic a-
ria m a evoluç ão dos sinais vitais do pac ie nte.
Ginger deu um passo à frente, assum iu seu posto e respir ou fundo. Ia com e-
çar o jogo, e suas mãos não trem ia m. O estôm ago, por ém, continua va cada vez
mais pesado e frio. Seus sombrios pressentim entos mostrar am-se inf undados, e a
cir urgia corr eu sem anorm alidades. George, como sempre, trabalhou com rapi-
dez, segur anç a e habilidade, qualidades que já eram sua marc a registrada. Du-
rante a cir urgia, em duas ocasiões dif er entes, afastou-se da mesa e ordenou a
Ginger que desse seqüênc ia ao proc edim ento, o que ela fez com a calm a e a fir-
meza habitua is. Ninguém perc ebeu, mas um fio de suor gelado esc orr eu-lhe de-
vagar entre as costelas quando assum iu o com ando da cir urgia. Outras gotas de
suor
acum ular am-se junto ao gorr o que esc ondia seus cabelos — problem a sim-
ples que a enf erm eir a resolveu num segundo, toc ando-lhe a testa com uma gaze
seca.
Term inada a oper aç ão, George suspir ou satisf eito enquanto tir avam as luvas
e lavavam as mãos na pia:
— Perf eito. A equipe func ionou como um relógio.
Ginger deixou a água morna esc orr er-lhe entre os dedos.
— Você par ec e tão calm o — disse. — Está sempre relaxado, como se esti-
vesse cortando um bife...
— Sei que par eç o calm o. Mas fico tenso quando oper o. E por isso que gosto
de ouvir Bach. — Ele fec hou a torneir a. — Você também estava tensa.
- É...
— Mais tensa do que de costum e. Sei como é. — As vezes, George era ca-
paz de falar com muita doç ur a, cria ndo cur ioso contraste com a aura de autor i-
dade que o cerc ava. — O que importa é que você trabalhou muito bem. Não po-
dem os obrigar o corpo a desc ontrair, mas também não podem os perm itir que a
tensão nos faça err ar. Você esteve perf eita. O segredo é saber usar a tensão... Ela
pode ajudar muito, obriga-nos a ser mais atentos, a conc entrar-nos mais.
— Acho que estou com eç ando a aprender.
George sorr iu e levantou as sobranc elhas:
— Está sendo muito sever a consigo mesm a. Aliá s, como sempre. Estou
muito orgulhoso de você, menina. Quando a vi pela prim eir a vez, achei que você
jam ais dar ia certo como cir urgia. Cheguei a pensar em aconselhá-la a tentar ga-
nhar a vida como açougueir a num superm erc ado. Mas eu me enganei... você vai
ser um suc esso!
Ginger forç ou um sorr iso. George havia perc ebido apenas uma parte do pro-
blem a. Havia mais do que tensão no suor gelado que lhe cobrir a a testa, as
mãos... Ela estava morta de medo! Não era um medo saudável, do tipo que po-
der ia torná-la mais atenta ou aum entar sua conc entraç ão. Era um medo novo,
desc onhec ido. Um medo que ela jam ais sentir a na vida e que George, com cer-
teza, nunc a sentir ía frente à mesa cir úrgic a. E se aquele medo voltasse? E se
apar ec esse sempre que seus dedos toc assem o bistur i? O que poder ia acontec er?
O que ser ia de sua carr eir a?!
As dez e meia da mesm a noite, Ginger estava deitada, lendo, quando o tele-
fone toc ou. Era George Hannaby. Se tivesse ligado mais cedo, Ginger pensar ia
logo que as notíc ia s não eram boas, que Johnny 0’Day tiver a algum a complic a-
ção pós-oper atór ia, ou qualquer outro desastre. Mas àquela hora já se acalm ar a e
riu, tentando falar com a voz empostada:
— A doutor a Weiss não está. Via j ou e só volta no mês que vem.
— Horr ível! Como atriz você ser ia um frac asso. O públic o agradec e, prin-
cipalm ente os internos do pavilhão de cor onár ia s.
— Pois você dar ia um ótim o crític o de tea tro... rec lam a de tudo!
— Você está sendo inj usta. Sou sensível, inteligente, lúc ido e culto. Eu dar ia
um crític o fantástic o. Mas, por favor, cale-se e esc ute. Tenho boas notíc ia s... che-
guei à conc lusão de que você está pronta.
—- Clar o que estou. Mas pronta para quê?
— Para entrar em cena. Tem os um implante de aorta. — George não era
hom em de rodeios.
— Você... quer dizer que... eu é que vou oper ar? Fazer tudo sozinha?!
— Cir urgiã-chef e, doutor a. Responsável pelo pac ie nte até o últim o ponto de
sutur a.
— Implante de aorta?
— Por que não? Será que você se espec ia lizou em cir urgia car-diovasc ular
para passar o resto da vida rem ovendo apêndic es su-pur ados?
Ginger sentar a-se na cama, as costas retas, o telef one trem endo junto ao ou-
vido. O cor aç ão batia-lhe forte, os olhos brilhavam de exc itaç ão.
— Já está marc ada? — perguntou.
— Deve ser na próxim a sem ana. A pac ie nte vai se internar na quinta ou na
sexta-feir a. Cham a-se Fletc her, Viola Fletc her. Na
quarta podem os analisar os exam es e o histór ic o do caso. Se não houver ne-
nhum outro problem a, acho que ela poder á entrar em cir urgia na segunda-feir a
de manhã. Clar o que você estar á livre para pedir qualquer outro exam e que
achar nec essár io. E caber á a você marc ar data e hora para a cir urgia.
— Meu Deus...
— Deus pode ajudar, mas é você quem oper a, não esqueç a. Você vai sen-
tir-se como se fosse mãe dela... Dona Viola, vai renasc er!
— Prom eta que você será meu assistente.
— Isso é praxe, você sabe — George riu. — Clar o que estar ei lá, para o
caso de você prec isar de mim. Mas não tenho dúvidas de que vou usar as mãos
só para bater palm as.
— Se eu me assustar e trem er, você assum e?
— Não seja boba. E clar o que você não vai trem er.
Ginger fec hou os olhos, respir ou fundo e murm ur ou:
— Não sou boba. Não vou trem er.
— Assim é que se fala, doutor a. Você é capaz de fazer o que quiser. Você ê
capaz!
— Posso pilotar uma nave até a Lua e casar com o rei do Sião.
— O quê?
— Nada. Uma pia dinha fam ilia r.
— Agor a, outro assunto — George continuou. — Hoje, na cir urgia de
OT)ay, vi que você estava à beir a do pânic o. Não sei se já conversam os sobre
isso, mas acho importante você saber que essa rea ç ão é absolutam ente norm al
em todos os residentes de cir urgia. Em ger al ocorr e na prim eir a intervenç ão em
que um jovem médic o trabalha como assistente. Os residentes pensam que não
sei, mas costum am dizer que se sentir am “apertados”. Todos eles falam no
“aperto da prim eir a cir urgia”. Com você foi dif er ente porque não acontec eu na
prim eir a cir urgia, nem na segunda, nem na terc eir a... Cheguei a pensar que você
ser ia minha prim eir a residente que nunc a se “apertava” — George riu. —
Acho que você também pensou que não acontec er ia com você... e acho que
deve estar muito preoc upada. Por isso resolvi telef onar espec ia lm ente para dizer-
lhe que o “aperto” é parte importante do
treinam ento. É uma exper iê nc ia de... digam os... amadur ec im ento. O que im-
porta é que você conseguiu super ar sua crise de medo e foi brilhante.
— Não sei como você se sair ia como crític o de tea tro — replic ou Ginger —,
mas não há dúvida de que ser ia um ótim o treinador de futebol. Muito obrigada.
Pouc o depois, ao desligar o telef one, sentia-se tão feliz que ria sozinha, abra-
çada ao travesseir o. De repente, arr anc ou as cobertas de um salto e corr eu até o
arm ár io onde guardava seus velhos álbuns de fotograf ia s. Proc ur ou um deles e
levou-o para a cama, já aberto nas últim as páginas, onde colar a as fotos de Anna
e Ja-cob que mais gostava. Já que não podia tê-los a seu lado naquele mom ento
de absoluta alegria, tentava revê-los, como estavam, vivos e tão próxim os, em
seu cor aç ão.
Bem mais tarde, a lâmpada de cabec eir a desligada, Ginger com eç ava a
mergulhar no estado de sem ic onsc iê nc ia que prec ede o sono, embalando-se da
alegria que George lhe dera, quando subitam ente entendeu. Não havia sof rido
nenhum “aperto” e mesm o que o tivesse exper im entado, isso não a impedir ia
de controlar-se e cumprir seu papel com perf eiç ão. Algum a outra coisa deixar a-
a tensa, e só agor a perc ebia o que era: medo.
Medo de fugir como havia fugido da Casa Bernstein e das luvas pretas. E se
acontec esse em plena cir urgia? E se acontec esse no mom ento de toc ar com a
pinç a um aneur ism a de aorta ou de sutur ar um implante artif ic ia l?
O susto a fez saltar na cama. O sono fugiu como um ladrão surpreendido em
pleno roubo. Ginger continuou sentada na cama, olhos muito abertos, acompa-
nhando o sua ve balanç o das cortinas sopradas pelo vento, observando o ref lexo
do luar na par ede do quarto.
Como poder ia aceitar a responsabilidade de fazer um implante de aorta?
Ora... como sempre aceitar a as responsabilidades que lhe caía m sobre os om-
bros: com ser ie dade e bom senso. Quais eram os fatos? Um inc idente de fuga
causada por stress, estava sob controle, ela sentia-se em perf eitas condiç ões de
saude, e, evi-
dentem ente, o episódio de fuga não voltar ia a acontec er. Clar o que não.
Mas... e se acontec esse?!
Aos pouc os, o cansaç o venc eu as preoc upaç ões e Ginger acabou mergulhan-
do num sono agitado, cheio de sobressaltos. Pouc o depois, o dia com eç ou a clar e-
ar.
Na terç a-feir a, depois de uma proveitosa inc ursão à Casa Berns-tein, com a
despensa e o freezer fartam ente abastec idos, Ginger mergulhou na leitur a de um
ótim o livro polic ia l. Voltava a sentir-se capaz de fazer o que quisesse. Plena e ab-
solutam ente capaz. Assim, a cir urgia da sra. Fletc her retom ava a perspectiva
norm al: era um desaf io, importante e sér io como qualquer bom desaf io,
que exigia atenç ão, conc entraç ão e cuidado, mas empregados conf orm e a
bula, ou seja, sem exager os.
Na quarta, Johnny 0’Day par ec ia outro hom em, anim ado, alegre. Era a pro-
va viva de que os longos anos de estudo e trabalho havia m valido a pena. Ginger
sentia-se como uma das mais prec iosas e importantes engrenagens de uma en-
grenagem mágic a, capaz de salvar vidas, alivia r dor es e devolver a esper anç a
aos desesper ados.
Trabalhou como assistente num implante de marc a passo, cir urgia de rotina
sem problem a algum, e depois fez uma aortogra-fia, também rotineir a. Passou
boa parte da tarde no consultór io de George, ajudando-o no trabalho clínic o, e
exam inou vár ios pac ie ntes novos, quase todos indic ados por outros médic os, em
busc a de dia gnóstic o espec ia lizado.
Quando a enf erm eir a inf orm ou que já não havia pac ie ntes na sala de esper a,
Ginger suger iu a George que analisassem os exam es de Viola Fletc her, cinqüenta
e oito anos, candidata ao implante de aorta. Os exam es não acusavam nenhum a
anorm alidade inesper ada, e ela não hesitou em conf irm ar o dia gnóstic o de Geor-
ge. Conc ordou prontam ente com a nec essidade do implante e ponder ou que de-
via rea lizar-se o mais brevem ente possível, de modo a aproveitar o mom ento em
que os sinais clínic os par ec ia m estabilizados.
— Segunda de manha? — George perguntou.
— Perf eito. — Ginger assinou as requisiç ões e entregou-as à enf erm eir a
enc arr egada de mobilizar o centro cir úrgic o, a equipe e todo o arsenal nec essá-
rio.
Às dezoito e trinta, Ginger completava doze hor as de um dia de trabalho ex-
cepc ionalm ente estim ulante e não sentia nem sinal de cansaç o. George fora para
casa, e ela não tinha mais nada para fazer no hospital; mesm o assim, continuou
visitando os pac ie ntes e exam inando papeletas de acompanham ento, sem a me-
nor disposiç ão de sair. Por fim, resolveu ir até o consultór io de George para dar
mais uma olhada no dossiê de Viola Fletc her.
Desertos àquela hora, os consultór ios partic ular es ocupavam toda a ala poste-
rior do prédio, separ ada do conj unto onde func ionava o hospital propria m ente
dito. Ginger seguiu adia nte, ouvindo seus sapatos de solado de borr ac ha pisar em o
linóleo polido, sentindo no ar o cheir o pesado de desinf etante.
A sala de esper a, os gabinetes de exam e e o cubíc ulo onde George guardava
os arquivos estavam às esc ur as, mas Ginger só se deu ao trabalho de acender as
luzes quando se aproxim ou da mesa onde enc ontrar ia o dossiê que estava proc u-
rando. Abriu uma das gavetas cuja chave George lhe dera fazia meses, apanhou
uma das pastas arquivadas e sentou-se na conf ortável cadeir a de cour o atrás da
mesa. A lum inár ia a sua esquerda desenhava uma pequena ilha de luz sobre a
madeir a polida.
Ginger abriu a pasta, acom odou-se para ler e nesse instante viu um obj eto
que a fez saltar na cadeir a, gritando de susto: o oftal-mosc ópio portátil que Geor-
ge usava para exam es de fundo de olho. Um oftalm osc ópio com um, norm al, que
ela própria utilizar a vár ia s vezes. Ainda assim, o inof ensivo instrum ento tir ava-lhe
o fôlego, fazia-a sentir-se como se, de repente, algum a terr ível amea ç a pesasse
sobre sua cabeç a. Ginger tinha a testa coberta de suor frio, o cor aç ão dispar ado,
o corpo retesado para fugir. O oftalm osc ópio fasc inava-a como uma serpente ve-
nenosa.
Tal qual ocorr er a na Casa Bernstein, duas sem anas antes, todos os outros ob-
jetos pouc o a pouc o desapar ec er am de seu campo de
visão, esf um aç ar am-se, diluír am-se em névoa, até restar apenas o oftalm os-
cópio, que par ec ia brilhar com luz própria. Ginger perc ebia-o nos mínim os deta-
lhes, via cada arr anhão, cada minúsc ula marc a que o uso produzir a no cabo plás-
tic o. Os par af usos, muito pequenos, norm alm ente quase invisíveis, ganhavam
proporç ões irr ec onhec íveis, como se o instrum ento, de uso banal para qualquer
clínic o, cresc esse em dim ensões e em signif ic ados... até transf orm ar-se no tri-
dente do dem ônio, no instrum ento do mal, na arma capaz de destruí-la...
Outra vez o medo desc ia com um manto horr endo e cobria tudo. Ginger le-
vantou-se de um salto. A sua frente, o oftalm osc ópio brilhava fria m ente, as lentes
voltadas para ela... O olho do mal.
— Fuja daqui... — disse para si mesm a. — Fuja! — gritou e o
eco de sua voz arr epiou-lhe os cabelos, soa ndo como um desesper ado pedido
de soc orr o, como o gem ido tortur ado de uma cria nç a perdida.
Voltou-se, derr ubou a cadeir a onde estiver a sentada, quase caiu por cima de
outra, e corr eu para fora da sala, mal conseguindo respir ar. Prec isava muito en-
contrar ajuda, um amigo que a protegesse, mas não havia ninguém. Tinha certe-
za de que algum a coisa a perseguia, aproxim ando-se cada vez mais.
Os consultór ios estavam desertos, o oftalm osc ópio ganhar a vida, saír a da sala
e corr ia à sua proc ur a, caç ando-a pelo corr edor. Ela prec isava fugir.
Pela segunda vez, o manto de névoa negra envolveu tudo.
Pouc o mais tarde, ao despertar do transe, Ginger enc ontrou-se num dos pata-
mar es da esc ada de emergênc ia, no fundo da ala dos consultór ios. Sentada no
chão frio, de costas coladas ao conc reto da par ede, não conseguia lembrar se ha-
via subido ou desc ido quando saír a corr endo do consultór io de George. Uma úni-
ca lâmpada amar elada brilhava sobre sua cabeç a. Ao redor tudo era silênc io, so-
lidão absoluta, ainda mais terr ível porque desabava sobre ela no mom ento em
que sua vida se partia como um copo de vidro, em mil pedaç os, para sempre.
Prec isava de gente, e não enc ontrava ninguém. Quer ia ouvir uma palavra
amiga, e o eco dos corr edor es só lhe devolvia o ruído desesper ado da própria res-
pir aç ão ofegante. Sua vida estava reduzida àquela imagem: um frio beco deserto,
silenc ioso e sem saída. O fato de ainda estar ali, sozinha, era prova de que nin-
guém a vira fugir. Mas isso não lhe servia de consolo, porque Ginger sabia que
não poder ia continua r fugindo para sempre. Sabia de tudo...
A roupa enc harc ada de suor a fez estrem ec er de frio. Já não estava assusta-
da; par ec ia-lhe que a crise de medo fora apenas a rec aída de uma doe nç a antiga
e conhec ida. Levantou-se, passou a mão pelos cabelos e pela testa, e exam inou a
esc ada, sem saber se subia ou desc ia. Resolveu subir.
— Meshugge — resm ungou baixinho, ouvindo o eco de seus passos no corr e-
dor deserto.
Era o dia 27 de novembro.
6. CHICAG O, ILLINOIS
Fazia frio na manhã do prim eir o dom ingo de dezembro, o céu de nuvens bai-
xas e cinzentas prom etendo neve. À tarde, com certeza, ia nevar e o perf il som-
brio da cidade se ocultar ia sob um mac io manto branc o. A noite todas as fam ília s
da cidade com entar ia m a nevasc a — todas menos as fam ília s católic as da par ó-
quia de Santa Bernadette, que só falar ia m do padre Brendan Cronin e de sua mis-
sa matinal.
O padre Cronin levantou-se às cinc o e meia da manhã e, depois de dizer suas
oraç ões, entrou no banho. Em seguida, fez a barba, vestiu-se, apanhou o breviá r io
e saiu da casa par oquia l sem levar o casac o. Ao abrir a porta, deteve-se um ins-
tante e, satisf eito, aspir ou o ar gelado da manhã.
Tinha trinta anos, mas apar entava bem menos, talvez por causa do cabelo
ruivo e crespo ou do rosto coberto de sardas. Era gordo, de uma gordur a mac iç a
e regular da cabeç a aos pés. Do
jardim da infânc ia ao segundo ano do sem inár io, sempre fora cham ado pelo
mer ec ido apelido de “Bolota”, por ém nunc a se deixar a abalar. Sempre bem-hu-
mor ado, tinha um ar de quer ubim e par ec ia inc apaz de fic ar zangado ou triste.
Naquela manha, como sempre, o padre Cronin dava a impressão de estar
em paz com o mundo, mas, na verdade, estava terr ivelm ente preoc upado. Atra-
vessou o pátio em dir eç ão à sac ristia, abriu a porta dos fundos e entrou. A sac ris-
tia cheir ava a inc enso e mirr a, e ao odor fam ilia r mistur ava-se o cheir o do óleo
de polir madeir a usado nos lambris e nos banc os. Sem dar atenç ão a nada, o pa-
dre continuou andando e aproxim ou-se da entrada da igrej a. Par ou um instante,
mas logo seguiu até o altar, ajoe lhou-se e baixou a cabeç a para pedir a Deus que
o ajudasse a carr egar a cruz que lhe pesava nos ombros.
Em ger al costum ava aproveitar aquele mom ento de solidão, antes da chega-
da dos fié is e dos cor oinhas que o auxilia vam no serviç o religioso, para meditar
sobre o mistér io insondável da missa, o milagre da fé, a alegria de ser um dos
convidados â ceia do Senhor. Mas fazia quatro meses que nada disso acontec ia.
Aquele instante de rec olhim ento transf orm ar a-se num mom ento de culpa e afli-
ção, porque não conseguia sentir mais nada. Nada! Tinha o cor aç ão vazio... Já
não acreditava. Desesper ado, cerr ava os punhos, rilhava os dentes, lutava para
rea c ender a fé em seu cor aç ão. Rezava e pedia e suplic ava a Deus que o ampa-
rasse, mas era como se Deus o tivesse abandonado para sempre.
Como em todas as manhãs dos últim os meses, levantou-se, murm ur ou um
Da Domine autom átic o e frio e andou até a saleta onde eram guardados os par a-
mentos sac erdotais. Em outros tempos, no mom ento de vestir-se para a missa,
sentia-se num estado de exaltaç ão e bea titude como se prepar asse o corpo para
testem unhar um belo milagre, um ritua l sagrado que, de algum modo, perm itir ia
aos hom ens partilhar a graç a divina. Quando coloc ava o amicto de linho e a alva
que lhe caía até aos pés, par ec ia-lhe que as vestes aproxim avam-no um pouc o
mais de Deus e, de pleno dir eito, tornavam-no seu ministro entre os hom ens.
Isso, por ém, fora em outros tempos; ultim am ente não fazia senão troc ar de uni-
form e. Nada o emoc ionava. Nem o santo manipulo que coloc ou no braç o es-
querdo, depois de beij ar rapidam ente a pequena cruz bordada. O cor aç ão pesa-
va-lhe como um fardo. Sentia frio, dor, medo, onde antes abrigar a a alegria e o
conf orto da fé.
Tudo com eç ar a em agosto, nos prim eir os dias do mês. A dúvida instalar a-se
aos pouc os e, aos pouc os, acabar a destruindo as mais prof undas crenç as que da-
vam ânim o ao padre Cronin.
Perder a fé é uma tragédia para qualquer sac erdote. No caso do padre Cro-
nin, por ém, era mais do que uma tragédia. Ele não conseguia sequer imaginar o
que ser ia sua vida sem a Igrej a. Filho de católic os fervor osos, desde menino
aprender a a idea lizar o futur o como se houvesse apenas um cam inho à frente:
ser padre. Para isso estudou e lutou, não para agradar aos pais, e sim impelido
por autêntic a e prec oc e voc aç ão religiosa. Sentir a-a brotar ainda na idade em
que seus colegas de esc ola esf orç avam-se para par ec er mater ia listas, agnóstic os,
cie ntif ic istas, modernos.
E agor a, de repente, a fé abandonava-o. A missa, que insistia em celebrar to-
das as manhãs, era a únic a coisa que lhe restava, a últim a ligaç ão real com o
passado, com o que sempre fora sua vida. Sabia, no entanto, que não poder ia fin-
gir por muito tempo. Não poder ia mentir indef inidam ente para os aflitos e deses-
per ados que proc ur avam sua igrej a em busc a de consolo e alívio, pois ele próprio
já não acreditava. A santa missa deixar a de ser um instante de com unhão com
Deus e transf orm ar a-se em grotesc a com édia.
No mom ento em que o padre Cronin coloc ava a estola sobre os ombros, um
menino entrou corr endo na sac ristia e acendeu as luzes.
— Bom dia! — exc lam ou.
— Bom dia, Kerry. Você vai bem?
Kerry McDevit era ainda mais ruivo e sardento que o padre Cronin, e tinha
olhos igualm ente muito verdes.
— Tudo bem — disse ele. — Mas está um frio do cão!
— E mesm o?! Frio... do quê?
— Frio ora, muito frio...
Em outras circ unstânc ia s o padre Cronin achar ia engraç ada a irr ever ênc ia
do menino. Naquela manha, contudo, o cão par ec ia estar mesm o à espreita, e
Kerry fugiu para a sac ristia, assustado com o olhar fulm inante que rec ebeu. Sozi-
nho, o padre Cronin vestiu a casula, passou as tir as pelas costas e amarr ou-as à
cintur a, com a displic ênc ia de um oper ár io atando o avental para com eç ar a tra-
balhar. Na sac ristia, Kerry apanhou o tur íbulo.
Até agosto, aqueles gestos eram santos para o padre Cronin. Toda a sua vida,
cada hora dos seus dias era santif ic ada, porque esc olher a dedic ar-se ao serviç o
de Deus. E dedic ar a-se com tal afinc o que fora envia do a Roma para completar
seus estudos teológic os. Apaixonou-se pela Cidade Santa — pela arquitetur a, pela
Histór ia, pelo povo. Antes de fazer os votos de sac erdote jesuíta, passar a dois
anos no Vatic ano, trabalhando como assistente do monsenhor Giuseppe Orbella,
conselheir o do papa para assuntos de doutrina. O estágio deu-lhe o dir eito de aspi-
rar a algum posto na arquidioc ese de Chic ago, junto ao cardea l, mas o pa-
dre Cronin hum ildem ente pediu que lhe perm itissem ser o cura de algum a par ó-
quia pequena. Foi assim que chegou à Igrej a de Santa Bernadette, depois de visi-
tar o bispo Santef ior e em San Franc isc o e consum ir alguns dias de fér ia s na via -
gem de carr o para Chic ago. Era um simples cura de par óquia, mas vivia feliz,
sem um instante de arr ependim ento ou dúvida.
Naquele mom ento, por ém, vendo Kerry par am entado a sua frente, pergun-
tava-se, pela centésim a vez, o que ter ia acontec ido com ele. Por que sua fé o
abandonar a? Ser ia como uma doe nç a inc ur ável que acabar ia por matá-lo... ou
não passar ia de um mal transitór io?
Como todas as manhãs, Kerry abriu a porta que dava para o altar e cam i-
nhou alguns passos. De repente, perc ebendo que o padre Cronin não o seguia, pa-
rou e vir ou-se para trás, de olhos arr egalados.
O sac erdote vac ilava. De longe, à luz sua ve do altar, a imagem do Cristo cru-
cif ic ado estava de olhos postos nos fié is, mas pare-
cia nao vê-lo. Para ele, agor a, o altar era apenas um palc o, como milhar es
de outros, à esper a dos ator es. Não era mais o lugar sagrado ao qual, dur ante
anos, subir a com o cor aç ão vibrante de amor. Não podia celebrar a missa! Não
podia enganar aquelas pessoa s... Nao podia enganar a si próprio! Aquilo tudo era
uma gigantesc a fraude!
Kerry McDevit franziu as sobranc elhas, mais preoc upado que surpreso.
Olhou para os banc os da igrej a, voltou a olhar para o cura, sem entender o que se
passava.
— Como posso celebrar a missa?! Eu já nao acredito... — murm ur ou o pa-
dre Cronin, numa voz inaudível.
Era tarde dem ais. Com o cálic e na mão esquerda, a dir eita pousada sobre o
véu, seguiu adia nte, sentindo sobre si os olhos acusador es do Cristo cruc if ic ado.
Havia pouc o mais que cem pessoa s na igrej a. Era cedo, e os rostos dos fié is
par ec ia m brilhar mais do que o norm al, quase inum anos, como se Deus, em sua
inf inita sabedor ia, tivesse envia do uma legiã o de anj os capazes de denunc ia r o
pec ado masc ar ado de fé e testem unhar contra a her esia e o sac rilégio.
A medida que a missa avanç ava o desesper o do padre Cronin cresc ia. Quan-
do pronunc iou o Introibo âd altâre Dei, foi como se a misér ia de todos os pec ado-
res desabasse sobre seus ombros. A altur a do Evangelho, ouviu sua própria voz,
fria e oca, repetindo um disc urso que conhec ia de cor e que nao lhe dizia
nada. Sentia os braç os pesados, cada vez mais pesados. Os rostos dos fié is diluí-
am-se numa névoa cada vez mais densa. O padre Cronin sentia o olhar aterr ado
de Kerry e perc ebia o movim ento que corr ia pelos banc os. A roupa grudava-se a
suas costas, o suor pingava-lhe da testa sobre a Bíblia aberta a sua frente. A né-
voa com eç ou a envolver tudo, a massa dif usa dos fié is, o olhar de Kerry, a cruz...
O padre Cronin teve a sensaç ão de que estava caindo, gir ando, sendo carr egado,
sem saber como, para o vértic e de um turbilhão onde só havia trevas e vazio. E
então chegou o mom ento da elevaç ão da hóstia.
— Mentir a! Não posso fazer isso... Não sou sac erdote, não tenho fé! Não
sou... nada\ Deus me esquec eu! Entregou-me ao pec ado, roubou minha fé... Mal-
dito Deus! Mil vezes maldito!
O padre Cronin ouviu-se berr ar de fúr ia, de ódio. Um grito selvagem, inac re-
ditável. E viu-se... Viu a própria mão, arr astada por uma forç a desc onhec ida e ir-
resistível, jogar longe o cálic e sagrado. O vinho manc hou a par ede do altar, res-
pingou o manto da imagem da Virgem Mar ia, e o cálic e continuou rolando
pelo altar até par ar junto ao púlpito, onde, instantes antes, ele havia lido o Evan-
gelho.
Kerry McDevit deu um passo atrás e gem eu baixinho, com medo do que via.
Os fié is levantar am-se, todos, num só movim ento, mas nada par ec ia capaz de
deter a fúr ia de Brendan Cronin. Com um rápido movim ento, ele estendeu o bra-
ço, apanhou a bandej a das hóstia s da com unhão e jogou-a no chão. Gritando de
desesper o, arr anc ou a estola e lanç ou-a longe. Então vir ou-se e corr eu para a sa-
cristia.
Em instantes, tudo voltou ao norm al. O padre Cronin passou a mão pela testa,
viu os par am entos arr anc ados e fec hou os olhos, com medo de adivinhar o que
poder ia ter acontec ido.
Era o dia 1? de dezembro.
No prim eir o dom ingo de dezembro Dom Corvaisis alm oç ava com Parker
Faine no terr aç o do restaur ante Las Brisas, abrigados à sombra de um guarda-sol,
vendo o mar brilhar ao longe. Naquele ano o inverno teim ava em não chegar. Ao
som dos gritos das gaivotas, sentindo no rosto e nos cabelos a brisa do mar, aspi-
rando o perf um e dos jasm ineir os flor idos que subia do jardim, Dom contou a
Parker todos os detalhes, até os mais embar aç osos, de sua terr ível batalha contra
o sonambulism o.
Parker Faine era seu melhor amigo, talvez o únic o a quem Dom podia contar
tudo, embor a, à prim eir a vista, fossem dois hom ens
muito dif er entes. Dom era alto e esguio; Parker, baixo e gordo. Dom fazia a
barba dia r ia m ente e cortava o cabelo a cada três sem anas; barbudo e desgrenha-
do, Parker mais par ec ia fruto do cruzam ento de um gladia dor rom ano com uma
intelectua l beâtnik dos anos 50. Dom era quase abstêm io, enquanto Parker torna-
ra-se fam oso pela sede de álc ool, pratic am ente insac iá vel, e pela exc epc ional
capac idade de beber e jam ais dar a impressão de ter perdido o juízo. Dom gosta-
va de viver sozinho e tinha pouc os amigos; Parker conseguia tornar-se íntim o de
qualquer pessoa com quem tom asse um drinque ou troc asse meia dúzia de pala-
vras. Parker já tinha cinqüenta anos, quinze mais que Dom; rico e fam oso por
mais de um quarto de séc ulo, não entendia como alguém podia sentir-se insegur o
justam ente quando com eç ava a ganhar dinheir o e tornava-se um astro do mundo
liter ár io. Convenie ntem ente vestido para um alm oç o ao ar livre, Dom usava cal-
ça de linho marr om-esc ur o e cam isa bege de mangas curtas e colar inho aberto.
Parker traj ava seu unif orm e habitua l: tênis azuis desbotados, calç a quase branc a,
velha e amarr otada, e cam isa estampada, aberta no peito e saindo do cós. Par e-
cia que cada um deles se prepar ar a para um tipo dif er ente de enc ontro e esta-
vam sentados juntos por mero acaso.
Embor a grandes, as dif er enç as eram pouc o importantes. Dom e Parker ti-
nham enorm es afinidades em vár ios aspectos essenc ia is. Ambos eram artistas,
não por esc olha ou tendênc ia, mas por compulsão. Parker pintava com pinc éis e
tintas, e Dom pintava com palavras. Ambos eram ótim os no que fazia m, sér ios,
aplic ados e muito exigentes. E ambos prezavam muito a amizade que os unia.
Conhec ia m-se havia seis anos, desde que Parker chegar a ao Ore-gon para fi-
car apenas alguns meses, enquanto prepar ava uma sér ie de paisagens no estilo
inc onf undível que alia va, à perf eiç ão, o supra-rea lism o da técnic a com o surr ea -
lism o da imaginaç ão. Pouc o depois de chegar, fora contratado para algum as
conf er ênc ia s na Universidade de Portland, onde Dom trabalhava como prof essor
do Departam ento de Inglês.
À mesa, Dom beber ic ava sua cervej a preta, e Parker lambuzava
os dedos nos salgadinhos de queij o, atento às palavras do Dom falava em voz
baixa — cuidado desnec essár io, já que iu\ mcs,ls próxim as ninguém par ec ia pre-
oc upado em ouvir o que di/wm. Naquela manha, pela quarta vez, acordar a na
gar agem, poi n.ís da caldeir a, tao apavor ado como antes. E, a cada dia que pas-
sava, a situa ç ão par ec ia-lhe mais desesper ador a.
Quando acabou de falar, havia tom ado apenas meia garr ala dr cervej a, sem
sentir gosto algum; a bebida esc ur a e enc orpada desc ia lhe pela garganta como
se fosse água — ou, pior ainda, cola. Ibr ker já consum ir a três drinques duplos e
pedir a um quarto ao garç om, por ém continua va inteir o, como costum ava dizer.
— Mas... Deus do céu! Por que não me contou isso antes? perguntou, sér io.
— Há sem anas?!
— Achei que nao era importante.
— Você é um idiota. Mas... que merda! — Parker tentou manter a voz bai-
xa e gestic ulou, irr itado.
O garç om aproxim ou-se, trazendo o quarto drinque, e inc linou-se para per-
guntar se gostar ia m de alm oç ar.
— Clar o que não — retruc ou o pintor balanç ando a cabeç a. — Dom ingo é
dia de beber, não de com er. O alm oç o nao passa de um pretexto para o uísque, e
eu estou apenas com eç ando. Para alm oç ar, tem os que par ar de beber, e o que é
que vam os fazer no resto da tarde? Se eu sair andando por aí, sem ter nada
para fazer, vou acabar dando trabalho à políc ia e atrapalhando a sesta dos cida-
dãos pac atos... Nao, nao, nada disso. Quer o alm oç ar lá pelas três. E, para nao
perderm os tempo, prepar e outro drinque e traga mais uma porç ão de salgadi-
nhos, por favor. Quer o também mais molho e pim enta e um pratinho com cebo-
las. Aproveite a via gem e traga outra cervej a para o meu amigo. Ele bem que
está prec isando!
— Nao — Dom protestou. — Ainda nao acabei esta.
— Por isso mesm o é que você está prec isando de outra, intelectua l pur itano
e reprim ido. Está aí, todo conf uso, porque insiste em beber cervej a morna.
Fossem outras as circ unstânc ia s. Dom embarc ar ia com prazer
na via gem anim ada, desc ontraída e cheia de alegria que o amigo lhe propu-
nha. Naquele dom ingo, por ém, sentia-se angustia do dem ais para rir.
O garç om afastou-se, e uma nuvem enc obriu o sol. Parker acom odou-se na
cadeir a, respir ou fundo e olhou para Dom:
— Tudo bem... Vam os pensar juntos. Deve haver algum a explic aç ão razo-
ável para isso. Você já pensou em stressy já pensou em ansie dade por causa da
public aç ão do Crepúsc ulo... E daí?
— No com eç o pensei que fosse por causa da ansie dade, mas... acho que
não pode ser só isso. O caso é que as coisas for am se complic ando cada vez
mais. Porr a... Eu sei que estou ansioso, mas não tão ansioso! E também nao estou
morr endo de medo... Minhas crises de sonambulism o são completam ente... lou-
cas! De al-
‘ guns dias para cá tenho passado todas as noites andando. E o problem a não
é só esse. Há milhar es de sonâmbulos pelo mundo... mas duvido que um deles
entre num transe tão prof undo como eu, ou faça as coisas que eu faço. Já con-
tei... eu estava tentando pregar as venezia nas! Pregar... — Dom fez um gesto,
martelando o ar. — Com martelo e tudo! Você não vai conseguir me convenc er
de que um suj eito entra em transe, se mune de pregos e martelo e sai pregando
as janelas da casa só porque esper a, ansioso, a opiniã o de uns crític os idiotas so-
bre seu livro!
— Pode haver algum bloqueio inc onsc ie nte. Quem sabe você está mais an-
sioso do que imagina... A public aç ão do Crepúsc ulo talvez estej a toc ando algum
ponto muito sensível, algum traum a.
— Bobagem. Isso não faz sentido. Na verdade, quando com ec ei a trabalhar
no segundo livro, o Crepúsc ulo vir ou passado. Já nem penso nele. Não, Parker...
— Dom balanç ou a cabeç a, sér io. — Você também não pode estar imaginando
que um suj eito faça as louc ur as que tenho feito apenas porque está ansioso por
causa de uma besteir a...
— Tem razão... Não acredito nessas coisas.
— Eu entro nos arm ár ios para me esc onder. Eu sei, sinto... Quando acordo
ainda estou trem endo de medo, sua ndo frio, com a nítida sensaç ão de que algu-
ma coisa me persegue... algum a coi-
sa que quer me pegar... e que talvez me mate se me enc ontrar. As vezes
acordo com vontade de gritar, a garganta doe ndo, e o grito nao sai. Ontem, afi-
nal, consegui berr ar... “Fique longe de mim! Fique aí, nao se aproxim e!” E hoje
foi a faca...
— Que faca? Você nao me falou nisso.
Dom rec ostou-se na cadeir a, os olhos fixos no copo de cervej a.
— Acordei na gar agem, atrás da caldeir a. E tinha uma faca na mão... a
faca de carne da cozinha... Acho que a peguei e levei com igo.
— Para se def ender? Contra quem?
— Clar o... para me def ender... da coisa que me persegue.
— Mas que coisa ê essa?!
Dom sac udiu os ombros, baixou a cabeç a e apenas murm ur ou:
— Sei lá...
— Não estou gostando nada disso. Você podia ter-se mac huc ado.
— Nao é isso que me preoc upa.
— E o que é, então?
Antes de responder, Dom corr eu os olhos em volta. Tudo par ec ia bem, os
outros clie ntes conc entravam-se no alm oç o e nos drinques, alheios à conversa
em redor.
— Vam os, diga! — Parker insistiu. — O que é que o preoc upa?
— Tenho medo de fer ir alguém.
Parker arr egalou os olhos.
— Não é possível! Está quer endo dizer que ser ia capaz de pegar uma faca
de cozinha e sair por aí... matando gente?! Você está doido! — Balanç ou a cabe-
ça, sorr iu, levou o copo aos lábios, bebeu um gole e deixou que o líquido esc or-
resse, sua ve, pela língua e pela garganta. — Não... Você está delir ando! Acho
que com eç ou a conf undir vida real e ficç ão. Esqueç a! Você não faz o gêner o ho-
mic ida compulsivo.
— Há alguns meses eu também não fazia o gêner o de sonâmbulo...
— Mas, que merda! Você nunc a foi louc o, não está louc o, nem perto de
enlouquec er. Só está pensando que enlouquec eu... e isto é ótim o sinal, porque os
louc os de verdade têm certeza de que são norm ais.
— Acho que vou proc ur ar um psiquia tra. Já fui ao médic o, fiz alguns exa-
mes...
— Médic o, sim, mas... psiquia tra... nem pensar. Ser ia perda de tempo e de
dinheir o. Eu lhe gar anto que você nao é neur ótic o, nem psic ótic o. Dou minha pa-
lavra!
Com um sorr iso no canto dos lábios, o pintor afastou o copo vazio, apanhou o
outro drinque que o garç om acabava de deixar sobre a mesa e, por alguns segun-
dos, conc entrou-se em montar um pequeno sanduíc he de batata frita com molho
de pim enta, maionese e cebola. Coloc ou-o na boca e fec hou os olhos para me-
lhor sabor ea r o prodígio que construír a.
— Talvez haja outra exlic aç ao — disse, ainda sorr indo, depois dç engolir.
— Talvez você ainda nao estej a bem adaptado às grandes mudanç as que aconte-
cer am em sua vida.
— Que mudanç as? — Dom franziu as sobranc elhas.
— Você sabe perf eitam ente a que mudanç as me ref ir o. Lembra-se de
quando nos conhec em os, há seis anos? Você par ec ia uma lesm a... branc o, mole...
— Uma... lesm a?!
— Uma merda de lesm a. E você sabe que é verdade. Tinha talento, mas
vivia como uma lesm inha... — Parker fez uma car eta e juntou os dedos sobre a
mesa, tentando imitar o movim ento da lesm a. — Devagar, mole... Sabe por quê?
Porque morr ia de medo de mostrar seu talento ao mundo... morr ia de medo de
lutar pelo suc esso... morr ia de medo de tentar... e nào conseguir. Morr ia de medo
da vida! Nao quer ia que olhassem para você, que o vissem, que perc ebessem sua
existênc ia. Você se vestia como um joao-ninguém e falava tao baixo que as pes-
soa s mal o esc utavam. Resolveu dar aulas de liter atur a porque a universidade é
um mundo à parte, apar entem ente mais civilizado, menos competitivo. A verda-
de é que você vivia como um coe lho assustado, esc ondido na toca.
— Ah, sim, clar o... — Dom forç ou uma risada. — E por que você resolveu
se aproxim ar de mim?
— Porque você nunc a me enganou. Enganava bem os douto-
res otár ios que trabalhavam com você, mas eu fiquei cur ioso porque desc on-
fie i que havia algum a coisa atrás de sua másc ar a de lesm a. Eu vi sua verdadeir a
face, amigo... E sempre assim... vejo coisas que os outros nao veem, porque sou
artista. Nós, artistas, som os dif er entes do resto da hum anidade justam ente porque
vem os mais do que os outros. Onde os outros veem só uma lesm inha, nós vem os
um hom em.
— Mas eu também sou artista.
— Agor a. Mas nao era quando nos conhec em os. Lembra que dem or ou três
meses para cria r cor agem de me dizer que “esc revia umas coisinhas”?
, — Era isso mesm o que eu fazia naquela époc a.
— Você tinha gavetas cheia s de contos! Mais de cem contos conc luídos! E
ainda nao tinha cria do cor agem para mandar um únic o deles a algum a editor a.
Sabe por quê, nao sabe? Porque tinha medo de ser rej eitado, clar o, mas não era
só isso. Você também morr ia de medo de ser aceito. Morr ia de medo de que
uma grande editor a lhe esc revesse uma carta dizendo que você era um gênio...
— Riu alto. — Lembra o quanto a gente conversou antes de você resolver man-
dar dois ou três contos para a editor a?
— Nao.
— Pois eu lembro. For am seis meses de conversa! Eu já estava quase de-
sistindo de pedir, pelo amor de Deus, que você mandasse os contos, quando, de
repente, você se rendeu e... zás! O coe lho criou cor agem para dar uma espia di-
nha no mundo.
Cada vez mais entusia sm ado, Parker enf iou na boca uma colher ada de mo-
lho de pim enta e maionese, engoliu a metade do drinque e continuou;
— Mas foi só uma espia dinha, porque, quando os contos com eç ar am a ser
public ados, você se assustou outra vez e resolveu par ar de esc rever. Eu prec isava
ir lá visitá-lo todos os dias para fisc alizar... para obrigá-lo a continua r trabalhando.
Quando saí do Oregon e você fic ou sozinho, tratou logo de par ar de esc rever... e
corr eu de volta para a toca. Foi a ressurr eiç ão do coe lho assustado.
Dom sorr iu com o canto dos lábios, mas não protestou. Era a pura verdade.
Quando Parker voltar a para Laguna Bea c h, onde vivia, Dom passar a a rec eber
cartas e cartas dele, sempre no mesm o tom, estim ulando-o a esc rever. Na époc a,
prec isava de inc entivo maior do que simples cartas, que sempre podia m ser dei-
xadas de lado. Estava convenc ido de que não era um bom esc ritor, embor a algu-
mas editor as com eç assem a se inter essar por seu trabalho, e logo par ou de ofer e-
cer-lhes contos. Em pouc o tempo voltou para a toca e esc ondeu-se como um au-
têntic o coe lho assustado. Nao par ou de esc rever, mas os contos jazia m na últim a
gaveta da mesa de trabalho, como antes.
^ Numa de suas cartas, Parker suger ir a-lhe que esc revesse um rom anc e.
Idéia estúpida... Dom achava-se inc apaz, desprovido de talento e disc iplina para
tanto. Um rom anc e era muito mais do que um conto. Maior, mais dif íc il, mais
complexo... Nunc a na vida conseguir ía esc rever um rom anc e! Novam ente Dom
baixar a a cabeç a, curvar a os ombros, voltar a a falar baixo e a andar devagar,
pedindo a Deus que a hum anidade o esquec esse para sempre.
— Há dois ver ões tudo mudou — Parker respir ou fundo. — De repente
você desistiu de dar aulas, criou cor agem e assum iu seu destino. Resolveu ser es-
critor. Do dia para a noite! Nunc a conversam os muito sobre isso. O que foi que
houve?
Dom inick franziu as sobranc elhas, pensou um pouc o e desc obriu que ele pró-
prio também jam ais pensar a sobre o assunto.
— Nao sei. Nao tenho a mínim a idéia — respondeu.
Na universidade, chegar a a époc a de candidatar-se à efetivaç ão como pro-
fessor. De repente, mas sem surpresa, Dom perc eber a que a dir eç ão não estava
inter essada em mantê-lo no corpo doc ente, embor a nao tivesse nenhum motivo
para afastá-lo. Na verdade, ele se esf orç ar a tanto para passar desperc ebido que
os dir etor es simplesm ente acabar am por esquec ê-lo, por deixá-lo de lado, como
um doc um ento de arquivo morto.
Quanto aos colegas, antes de qualquer outra coisa perguntavam-se se ele
quer ia ser efetivado; depois, se estava mesm o inter essado na vida acadêm ic a e,
por fim, se mer ec ia a efetivaç ão. Dom perc eber a logo que, se fosse dispensado
da Universidade de Portland, jam ais conseguir ía emprego em outra esc ola, e as-
sim, dec idir a partir antes que o dem itissem. Num únic o mom ento de cor agem
em anos de rec olhim ento hum ilde e assustado, envia r a curr íc ulos a vár ia s fac ul-
dades e acabar a convidado para uma entrevista no Mountainvie w College, em
Utah. A entrevista custar a-lhe muito esf orç o, mas os dir etor es da esc ola par ec e-
ram bem impressionados pela extensa lista de contos public ados que Dom lhes
apresentar a. Depois de alguns mom entos de conversa, convidar am-no para assu-
mir a cátedra de Redaç ão e Língua Inglesa, como prof essor efetivo — proposta
que Dom aceitou com alívio.
— Saí de Portland em junho — disse, pensativo, servindo-se de ‘ outro gole
de cervej a. — Tinha meu trailer pronto, carr egado de
livros e roupas. Parti satisf eito, não me sentia derr otado... Nao foi uma saída
forç ada, como se tivessem me despedido. Para mim, foi como se... eu quisesse
rec om eç ar a vida. Eu quer ia mor ar em Mountainvie w. Para dizer a verdade, o
mom ento em que me vi na estrada foi um dos mais felizes de minha vida.
O outro balanç ou a cabeç a e conc ordou, irônic o:
— Clar o que você devia estar feliz... Afinal, troc ou uma grande universida-
de por uma esc olinha de aldeia, com pouc os alunos, onde seu medo de viver pas-
sar ia desperc ebido. Ou então, melhor ainda, ser ia visto como mania de gênio
temper am ental.
— Uma perf eita toca de coe lho...
— Clar o... E porque você desistiu das aulas antes mesm o de assum ir?
— Já lhe com ei. Quando cheguei à cidade, na segunda sem ana de julho,
desc obri que nao suportar ia rec om eç ar tudo outra vez, como em Portland. Estava
farto de viver como um coe lho assustado.
— Sim, isso é fác il de entender. Mas... Por quê?
— Não era muito gratif ic ante.
— Nunc a foi gratif ic ante. — Parker abriu os braç os. — O que eu quer o sa-
ber é por que, de repente, você se sentiu “farto de viver como um coe lho assusta-
do”.
— Nao sei.
— Mas você prec isa saber! Deve ter pensado muito nisso. Dom suspir ou,
os olhos distantes, acompanhando o movim ento de um veleir o que deslizava so-
bre as ondas em dir eç ão ao hor izonte.
— Pois é... não pensei... Agor a perc ebo que simplesm ente não pensei... Es-
tranho, não? Sou sempre tão cuidadoso nas dec isões que tomo... Analiso tanto
cada gesto, cada passo... E fiz tudo isso sem pensar muito.
— Aí está! — O outro exc lam ou. — Eu sabia que havia algum a coisa por
aí. Essa súbita mudanç a de comportam ento tem a ver com os problem as que
você está enf rentando agora. Vam os continua r. Você chegou a Mountainvie w e
disse aos car as que não quer ia o emprego...
— Disse... E eles não gostar am de ouvir.
— E depois você alugou um apartam ento na cidade.
— Um apartam ento bem pequeno, quarto e sala, mal dava para andar. Mas
de lá eu via as montanhas. Era lindo.
— Dec idiu viver das econom ia s e esc rever o rom anc e.
— Não era muito dinheir o, mas eu estava habitua do a gastar pouc o.
— Foi um impulso repentino. Um trem endo risc o. Você não era hom em de
corr er risc os. — Parker insistiu. — Por que agiu assim? O que o fez mudar tanto?
— Acho que a idéia de mudar de vida já estava em minha cabeç a desde
algum tempo. Quando cheguei a Mountainvie w, eu me sentia tão prof undam ente
insatisf eito que prec isava tom ar uma atitude.
O pintor respir ou fundo, balanç ou a cabeç a e dec lar ou:
— Não, meu velho... Deve haver outro motivo. Vam os rec api-tular. Con-
form e suas própria s palavras, você estava feliz como um pardal na areia quando
saiu de Portland a bordo do trailer. Tinha conseguido um emprego, bom salár io e
efetivaç ão numa esc olinha de bairr o onde poder ia se esc onder à vontade, até en-
cher o saco. Tudo que prec isava fazer era se acom odar por lá e desapar ec er do
mundo dos vivos. Mas, quando chegou
a Mountainvie w, você já era outro hom em... estava dec idido a jogar tudo
para o alto, alugar um cubíc ulo, arr isc ar-se a morr er de fome e frio... em nome
da arte. — Sac udiu a cabeç a, sem se convenc er. — Que dia bo acontec eu com
você dur ante essa via gem? Deve ter sido um terr em oto... um abalo sísm ic o, algu-
ma coisa inc rível, que o fez cria r cor agem para sair da toca de coe lho, fec har a
porta e jogar fora a chave.
— Não acontec eu nada. Foi uma via gem longa e chata.
— Não para sua cabeç a. Você via j ou léguas com a cabeç a.
Erguendo os ombros, Dom lim itou-se a dizer:
— Tanto quanto posso lembrar, eu estava relaxado, curtindo o passeio, a pai-
sagem... tudo na santa paz...
— Garç om! — Parker gritou. — Mais um drinque e uma cervej a.
— Não, não... — Dom com eç ou. — Eu...
—Eu sei que você ainda não acabou — interr ompeu-o —, mas vou obrigá-lo
a term inar logo com essa droga morna. Você tem que esvazia r mais uma garr af a
e com eç ar a relaxar. Eu liquido o estoque de uísque da cidade, mas desc ubro o
que existe por trás dessas crises de sonambulism o. Tenho certeza de que há algu-
ma relaç ão entre essa revoluç ão que houve em sua vida quando deixou Portland
e o que está acontec endo agor a. Quer saber por que estou tão certo disso? Porque
ninguém passa por duas crises de personalidade, em dois anos, sem que exista al-
gum a relaç ão entre elas. Prec isam os desc obrir o que há de com um entre as
duas.
Dom fez uma car eta e suspir ou:
— Não estou passando por nenhum a crise de personalidade.
— Não mesm o? — Parker debruç ou-se sobre a mesa e, com olhos muito
sér ios e brilhantes, fitou de perto o rosto do amigo. — Tem certeza de que não
está em crise?
— Oh, Deus... Você tem razão. E... é bem possível... e que crise!
A tarde já ia avanç ada quando, afinal, saír am do restaur ante
Las Brisas, ainda sem ter enc ontrado resposta. A noite, Dom prepar ou-se
para dorm ir com a sensaç ão de que partia para o cadaf also, com medo do que o
esper ava nas hor as seguintes, antes do nasc er do sol.
Pela manha, foi arr anc ado do sono, aos berr os. Havia alguém, algum a coisa
fria, pegaj osa, visguenta... uma coisa viva... agarr ada a ele. Lutou como um de-
sesper ado, cego de horr or, saltou, deu pontapés para conseguir livrar-se, e esc a-
pou, andando de quatro pelo esc ur o até bater a cabeç a na par ede.
A esc ur idão par ec ia povoa da de ruídos que ele não conseguia identif ic ar. Os
sons vinham do chão, das par edes, de todos os lados. Tudo par ec ia vibrar. Dom
continuou tatea ndo até enc ontrar um ponto onde duas par edes se unia m e sentou-
se ali, as costas contra a superf íc ie gelada, à esper a. A coisa estava cada vez
mais próxim a... ia chegar... a qualquer mom ento poder ia tocá-lo, envolvê-lo em
seus braç os de visgo.
— O que é isso que está aqui com igo? — murm ur ou.
O bar ulho aum entava sempre: gritos, marteladas, passos. O medo distorc en-
do as sensaç ões, a adrenalina despertando os sentidos, a pele arr epia ndo-se de
horr or, Dom sentiu que havia perdido a guerr a. A coisa estava ali, conf undida
com a esc ur idão, a dois passos dele. Havia lutado enquanto puder a, esc onder a-se
nos arm ár ios da casa e na gar agem, tentar a pregar as janelas, arm ar a-se de
faca... mas agor a estava perdido. Não havia para onde fugir, nem onde esc on-
der-se. Era o fim.
De algum lugar chegou-lhe um som desc onhec ido. Seu nome... Alguém o
cham ava!
— Dom... Dom, responda!
Perc ebeu que estava ouvindo aquele som havia vár ios minutos, talvez hor as.
— Dom inick, responda!
A porta! Alguém tentava arr ombar a porta, martelando fur iosam ente a fe-
chadur a.
Por fim, Dom despertou. Estava sozinho. A coisa voltava, afinal, para as tre-
vas da noite, para o fundo dos pesadelos; não existia, nao era real. Do outro lado
da porta estava Parker Faine, seu amigo, cham ando-o. De repente, foi como se o
pesadelo rec om eç asse. As par edes estrem ec er am, a porta esc anc ar ou-se a sua
frente, e um feixe de luz brilhante cegou-o. Quando conseguiu abrir
os olhos novam ente, protegendo-os com a mão, viu a cabeç a de Parker,
como a de um gigante, delinea da contra o retângulo amar elado.
— Pelo amor de Deus! Você está bem?
Dia nte da porta havia uma verdadeir a barr ic ada: um arm ár io, duas mesi-
nhas-de-cabec eir a, a pentea deir a, e, por cima de tudo, a poltrona de leitur a. Du-
rante o sono Dom prepar ar a-se para resistir a uma invasão; tranc ar a a porta a
chave, e empilhar a dia nte dela todos os móveis do quarto. Parker afastou a bar-
reir a e entrou.
— Você gritava tanto que eu o ouvi lá da rua, quando cheguei
— disse. — O que houve?
— Um pesadelo. Não me lembro de nada. — O outro conti-. nua va enc o-
lhido no canto, exausto, trem endo, sem forç as para se
levantar. — Franziu as sobranc elhas. — O que é que você está fazendo aqui?
— Não se lembra? — perguntou Parker, a voz baixa e tensa.
— Você me telef onou há menos de dez minutos. Gritava muito, pedia so-
corr o. Disse que eles estavam chegando e iam pegá-lo.
— Oh, Deus... — Dom gem eu, o cor aç ão aos saltos, o rosto rubro de ver-
gonha.
— Você deve ter telef onado sem saber... Pensei em cham ar a políc ia, mas
acabei resolvendo vir ver o que era. Imaginei que, se fosse outra crise de sonam-
bulism o, você não gostar ia de acordar com a casa cheia de “tir as”.
Dom abraç ou os joe lhos e esc ondeu o rosto. — O que está acontec endo co-
migo? — murm ur ou, aflito. — Estou completam ente desc ontrolado... Não sei
mais o que faço, o que digo... Há algum a coisa me roe ndo por dentro!
— Chega. — Parker aproxim ou-se. — Nem mais uma palavra sobre isso.
Lutando contra as lágrim as que lhe subia m pela garganta, Dom fec hou os
olhos. Sentia-se frac o e indef eso como uma cria nç a.
— Que hor as são? — perguntou.
— Passa um pouc o das quatro. Mas ainda está esc ur o. — Parker foi até a
janela, afastou as cortinas e olhou para fora. O quarto estava pratic am ente des-
montado. Voltava para junto do amigo quando de repente par ou, os olhos muito
abertos, fixos na cama. — Essa brinc adeir a está com eç ando a fic ar per igosa —
disse, sem se mover.
O outro levantou-se devagar até poder ver o que havia sobre a cama. Era um
verdadeir o arsenal: ali estavam a pistola calibre 22, que dur ante meses fic ar a es-
quec ida numa das gavetas da sala; a faca de cozinha, a mesm a que ele levar a
para a gar agem; o cutelo, rar am ente usado; um martelo; o ferr o pontia gudo que
dever ia fic ar junto à lar eir a mas que, havia tempos, estava guardado na gar a-
gem.
— Estava esper ando o exérc ito russo? — perguntou Parker, muito sér io. —
Uma invasão de extraterr estres? O que o assusta tanto?
— Não sei. Meus pesadelos.
— O que é que você vê nesses pesadelos?
— Não sei.
— Não se lembra de nada?
— Não! Não! Não me lembro de nada, não sei de nada! — Dom gritou, mas
logo, como antes, enc olheu-se novam ente, baixou a cabeç a, cruzou os braç os so-
bre o peito.
Parker aproxim ou-se novam ente, coloc ou a mão em seu ombro e tentou sor-
rir:
— Trate de se acalm ar, amigo. Vá tom ar um banho, vista-se. Vou cuidar
do café. Depois, quando clar ea r, vam os fazer outra visita a esse seu médic o.
Acho que está na hora de pedirm os que ele dê mais uma olhada em você.
Sem cor agem de falar, Dom inick conc ordou com a cabeç a, vir ou-se e foi
para o banheir o.
Era o dia 2 de dezembro.
DOIS___________
2 - 16 de dezembro
1. BOSTON, MASSACHUSETTS
Viola Fletc her, cinqüenta e oito anos, prof essor a prim ár ia, mãe de duas me-
ninas, esposa devotada, mulher feia de ar matreir o e riso torto, jazia em silênc io
sobre a mesa cir úrgic a, em anestesia prof unda, a vida entregue às mãos da dra.
Ginger Weiss.
Dur ante toda a sua existênc ia Ginger prepar ar a-se para um mom ento como
aquele, o mom ento de assum ir o com ando de uma cir urgia de alto risc o que en-
volvia complexo proc edim ento. Anos de estudos, inf initos sac rif íc ios, enorm es di-
fic uldades... ela venc er a todos os obstác ulos e ali estava, hum ilde e, ao mesm o
tempo, orgulhosa de si mesm a. E à beir a do pânic o.
A sra. Fletc her estava anestesia da e prepar ada para a cir urgia, o corpo envol-
to nos lenç óis verde-clar os cuidadosam ente ester ilizados. Apenas uma parte de
seu torso continua va à mostra, exatam ente a área onde o cir urgiã o trabalhar ia:
um quadrado de pele pintada de iodo. Junto ao pesc oç o da pac ie nte erguia-se a
tenda cir úrgic a, uma arm aç ão de metal montada sobre a mesa, de onde pendia
um lenç ol. Do ponto de vista cir úrgic o, a tenda era usada como prec auç ão extra
contra a possibilidade de contam inaç ão da área a ser oper ada. Mas servia tam-
bém para desperso-nalizar o pac ie nte, e talvez fosse essa sua grande serventia, já
que
poupava o cir urgiã o de ver de perto a másc ar a hum ana da agonia e da mor-
te, se, por desgraç a, sua mão trem esse ou a conf ia nç a falhasse.
A dir eita de Ginger, Agatha Tandy estava a postos, frente à bandej a onde,
em perf eita ordem, alinhavam-se afastador es, pinç as he-mostátic as, esc alpelos,
bistur is e vár ios outros instrum entos. À esquerda, outras três enf erm eir as aguar-
davam o gongo inic ia l. Pouc o adia nte, junto à tenda cir úrgic a, o anestesista e seu
assistente mantinham os olhos fixos nos monitor es.
George Hannaby perf ilava-se do outro lado da mesa de cir urgia; mantinha
uma postur a menos de prof essor que de exper ie nte técnic o de futebol vendo o fi-
lho calç ar as chuteir as para o prijneir o grande jogo de sua vida. Com ele, a aura
de forç a, calm a e competênc ia que jam ais o abandonava.
Ginger estendeu a mão dir eita, e Agatha entregou-lhe um bis-turi. A lâm ina
afia díssim a brilhou por um instante sob a luz branc a. Ginger toc ou de leve o traç o
que marc ava o loc al da inc isão no torso da pac ie nte, estrem ec eu e respir ou fun-
do. Por um mom ento, como que evoc adas pelos acordes de Bach que emana-
vam do pequeno gravador ao fundo da sala, surgir am-lhe dia nte dos olhos as
imagens do oftalm osc ópio e das luvas pretas. Bobagem... Aquilo era coisa do
passado... inc identes esquec idos. Ela estava em exc elentes condiç ões físic as, sen-
tia-se bem, tranqüila, alerta, em total conc entraç ão para com eç ar a trabalhar. Es-
forç ou-se uma segunda vez, agor a voluntar ia m ente, e pensou nas luvas. Era o úl-
tim o teste: se pressentisse qualquer anorm alidade, se afastar ia da mesa e suspen-
der ía a cir urgia. Não houve nada. E por que haver ía? Por que Deus a far ia troc ar
anos e anos de trabalho e dedic aç ão por alguns instantes de desc ontrole emoc io-
nal, hister ia passageir a, stress relac ionado ao exc esso de trabalho? Nunc a! Estava
tudo bem. A cir urgia ser ia um suc esso. Tinha que dar tudo certo!
O relógio na par ede marc ava sete hor as e quar enta e dois minutos. Era o
mom ento de com eç ar. Ginger fez a prim eir a inc isão. Aplic ou as pinç as hem ostá-
tic as e continuou a cortar, mar avilhando-se, como acontec ia sempre, com a ha-
bilidade e a segur anç a das própria s mãos. Atingiu a prim eir a cam ada de tec ido
adi-poso, passou pelas cam adas musc ular es e chegou ao centro do tór ax da pac i-
ente. Rapidam ente ampliou a inc isão o bastante para conter suas mãos e também
as mãos de George Hannaby, caso fosse nec essár ia a intervenç ão do cir urgiã o-
assistente. Duas enf erm eir as aproxim ar am-se com os afastador es, aplic ar am as
pás do instrum ento às par edes da inc isão e, lentam ente, fizer am gir ar a rosc a que
as separ ava. Agatha Tandy toc ou a testa de Ginger com um lenç o de papel, aten-
ta às lentes adaptadas aos óculos de cir urgia. Em ger al o suor da testa do cir urgi-
ão embaç ava as lentes, bloquea ndo-lhe mom entanea m ente a visão mic rosc ópi-
ca. A sua frente, t George sorr iu. Não estava sua ndo. Rar am ente sua va dur ante
as cir urgia s.
Com gestos segur os e ritm ados, Ginger proc edeu à ligadur a dos vasos, rem o-
veu as pinç as e entregou-as à enf erm eir a. Na sala silenc iosa, a fita de Bach che-
gou ao fim, enquanto uma enf erm eir a cuidava de virá-la, ouviu-se apenas o sibi-
lo cadenc ia do do pulm ão artif ic ia l. Viola Fletc her estava suspensa entre a vida e a
morte, ligada à máquina que respir ava por ela, sob o efeito de um poder oso rela-
xante musc ular, der ivado farm ac ológic o do cur ar e, seus pulmões mantinham-se
vivos exc lusivam ente graç as ao soc orr o mecânic o dos respir ador es.
Quando George oper ava, a equipe costum ava conversar muito. Ele próprio
estim ulava a troc a de impressões, e até, às vezes, uma ou outra pia da, porque
achava importante trabalhar em clim a desc ontraído. Ginger, no entanto, pref er ia
o silênc io. Aqueles mom entos mágic os, quase sagrados, ela quer ia usuf ruí-los in-
tensam ente, conc entrada no movim ento das própria s mãos.
Através da inc isão do tór ax ao abdom e, exam inou o cólon e constatou que
estava bem, sem anorm alidade apar ente. Tom ou as gazes úmidas que Agatha lhe
estendeu, toc ou os intestinos e instalou as pás dos afastador es junto à par ede da
inc isão, depois vir ou os dois segur ador es na dir eç ão das enf erm eir as inc umbi-
das de manter os intestinos naquela posiç ão, afastados do campo ope-nuor io. Por
baixo, agor a exposta, estava a aorta, artér ia central do corpo hum ano.
A aorta desc e pelo tronc o e chega ao abdom e depois de passar pelo dia f rag-
ma, corr endo par alela às vértebras dorsais. Na parte inter ior do abdom e, pouc o
acim a da vir ilha, a aorta divide-se em dois ram os sec undár ios: as artér ia s ilía c as,
que irr igam a bac ia e transf orm am-se em artér ia s fem or ais ao atingir a porç ão
super ior das coxas.
— Aí está — disse Ginger. — E um aneur ism a. Exatam ente como os raios X
indic avam. — Levantou a cabeç a para o negatosc ó-pio montado a sua frente,
próxim o à par ede. — Está loc alizado junto à sela aórtic a.
Àgatha sec ou-lhe o suor da testa.
Um aneur ism a é como uma bolha de sangue. Ocorr e quando, por qualquer
razão anatôm ic a, uma pequena porç ão da par ede de um vaso se dilata, ultrapas-
sando o diâm etro norm al do vaso. 0 aneur ism a pulsa como um pequeno cor aç ão.
No caso da artér ia aorta, a dilataç ão da par ede do vaso pode ocorr er em qual-
quer lugar, do pesc oç o à vir ilha. Quando acontec e junto à garganta pode causar
dif ic uldades para deglutir alim entos, tosse sever a e rebelde a qualquer ter apia,
dor es no peito, transtornos de respir aç ão ou de fala. No caso de Viola Fletc her, a
dilataç ão provoc ava fortes dor es abdom inais. Sendo uma espéc ie de bolha, o
aneur ism a é um ponto frágil na estrutur a do vaso e, sendo frágil, pode rebentar a
qualquer mom ento. E então a morte é virtua lm ente inevitável. Ginger novam ente
baixou os olhos para o pequeno bulbo averm elhado, cheio de sangue, batendo
lento e vivo. Ali par ec ia residir o últim o reduto do mistér io da vida, um reduto se-
creto que jam ais vira a luz do dia, o segredo dos segredos. Naquele mom ento o
médic o era quase Deus: cria r ia vida onde havia morte, devolver ia a saúde a al-
guém que sof ria, rec onstituir ia a ordem onde a natur eza implantar a o caos. Era
um mom ento de expectativa, acim a do tempo. Viola não estava nem morta nem
viva: estava entregue a suas mãos, a sua per íc ia, à ciê nc ia que Ginger dom inava
a serviç o dos hom ens. A morte era a desaf ia nte. No canto oposto do ringue, Gin-
ger prepar ava-se para enf rentá-la.
Agatha Tandy apanhou um pequeno saco plástic o, fec hado a vác uo, e abriu-
o. Ali estava a porç ão de aorta artif ic ia l que substi-tuir ia a seç ão comprom etida
da artér ia de Viola Fletc her. Era um tubo traquea do, de par edes de fibra sintétic a
por osa, que se bif urc ava em “Y” invertido — perf eita reproduç ão da divisão da
aorta nas duas artér ia s ilía c as.
Ginger pegou o tubo, coloc ou-o sobre a regiã o do aneur ism a, mediu-o e cor-
tou-o com a pequena tesour a que rec eber a da assistente. Então devolveu-o a
Agatha, que, por sua vez, mergulhou-o numa pequena bandej a cheia de sangue
de Viola Fletc her e agitou o rec ipie nte para frente e para trás até enc harc ar o
tubo. Depois de implantada na pac ie nte, a artér ia sintétic a ainda prec isar ia rec e-
ber mais sangue. Ginger desligar ia os vasos, far ia o sangue preenc her completa-
mente a área implantada, tornar ia a drená-lo e só depois passar ia à sutur a def ini-
tiva. Com esse proc edim ento, estim ulava a cria ç ão de uma fina cam ada de san-
gue no inter ior do tubo — elem ento importante para prevenir eventua is vazam en-
tos nos pontos de sutur a. Com o tempo, o contínuo fluxo sanguíneo acabar ia por
form ar outra membrana, essa def initiva, reproduzindo a estrutur a original do
vaso. Então ninguém con-seguir ia distinguir a nova membrana, íntegra e perf eita,
da membrana natur al. Uma nova artér ia estar ia cria da, mas uma artér ia melhor
que a natur al, mais sólida, mais resistente, pratic am ente indestrutível. Quinhentos
anos depois, quando Viola Fletc her já estivesse reduzida a pó, quando sua mem ó-
ria fosse nada sobre o planeta, ainda existir ia o implante sintétic o, tão intato, flexí-
vel e perf eito como naquele instante.
Agatha sec ou o suor da testa de Ginger.
— Está cansada? — George perguntou.
— Estou ótim a.
— Tensa?
— Nem um pouc o.
Era mentir a. George perc ebeu e sorr iu por trás da pequena másc ar a que lhe
cobria os lábios:
— É um prazer vê-la trabalhar, doutor a.
— Também acho.
Uma das assistentes conc ordou, rápida, sem levantar os olhos do que fazia.
— E eu também. — Da cabec eir a da mesa, o anestesista sorr iu.
— Ora... obrigada! — disse Ginger.
— Você tem graç a, doutor a — George continuou. — Tem mãos leves, sen-
síveis. Tudo olha e tudo vê. E uma pena, mas essas qualidades sao muito rar as
em nossa prof issão.
Ginger sabia que George não elogia va ninguém, a menos que estivesse abso-
lutam ente convenc ido do que dizia. Sabia que era hom em de cobrar dever es, ta-
ref as, pontua lidade, perf eiç ão, e rar am ente se dava por satisf eito. Deus do céu!
George Hannaby orgulhava-se dela! Se não estivesse à mesa cir úrgic a, Ginger
com certeza ter ia chor ado de emoç ão. Com a alegria, perc ebeu que George
substituir a Jac ob em seu cor aç ão. Ouvir seus elogios era como ver o risonho rosto
de Jac ob.
A partir desse ponto a oper aç ão prosseguiu norm alm ente. Ginger sentia-se
muito feliz. Esquec eu as preoc upaç ões, esquec eu o medo de ter outra crise e,
mais segur a, trabalhou com redobrada efic iê nc ia. Proc edeu ao controle rigor oso
do fluxo sangüíneo através da aorta, alter ou cuidadosa e metodic am ente o fluxo e
a drenagem dos vasos, ligou as pequenas veia s sec undár ia s com nós de fio plásti-
co, aplic ou as pinç as adequadas nas artér ia s, inc lusive nas ilía c as e na própria
aorta. Em menos de uma hora conseguiu interr omper o fluxo de sangue para as
pernas da pac ie nte, e o aneu-rism a, esvazia do, par ou de pulsar. Com um pequeno
esc alpelo, fur ou o tec ido e, logo, com uma tesour a, abriu a par ede anter ior do
vaso.
Naquele mom ento, Viola Fletc her não tinha artér ia aorta; estava à merc ê da
cir urgiã-chef e, mais dependente e impotente do que nunc a antes — e, provavel-
mente, nunc a depois — em sua vida. Já não havia volta. Daquele instante em di-
ante era prec iso trabalhar bem, sem err ar e, princ ipalm ente, sem perder um se-
gundo de tempo.
Ao redor da mesa, a equipe par ec ia hipnotizada. Ninguém conversava nem
fazia movim entos inúteis ou desnec essár ios. No gravador, a fita chegou nova-
mente ao final, mas ninguém se preoc upou em virá-la. O tempo par ec ia voar,
medido apenas pelo silvo monótono do pulm ão artif ic ia l e pelo bip-bip do eletro-
en-cef alógraf o.
Ginger tir ou da bandej a a aorta artif ic ia l, coloc ou-a na abertur a super ior da
artér ia sec ionada, pinç ou as duas extrem idades inf er ior es e conc entrou-se na su-
tur a super ior. Então, novam ente, conc luída a sutur a, rem oveu duas pinç as e fez o
sangue enc her o tubo plástic o que estava implantando. Até então, sentia a tes-
ta seca, sem vestígio de suor. Tinha certeza de que George perc eber a. Passado o
prim eir o mom ento crític o, sem que ninguém prec isasse pedir-lhe, uma das en-
ferm eir as-assistentes aproxim ou-se do gravador e, outra vez, tornou a ligá-lo.
Embor a ainda tivesse hor as de trabalho pela frente, Ginger sentia-se relaxa-
da e calm a. Desloc ou-se ao lado da mesa, na dir eç ão dos pés da pac ie nte, e afas-
tou os lenç óis. Agatha aproxim ou-se com outra bandej a de instrum entos conten-
do todo o mater ia l nec essár io para duas grandes inc isões, uma em cada coxa,
pouc o abaixo da prega inguinal, no ponto de inserç ão das pernas no tronc o. Passo
a passo, pinç ando veia s e artér ia s, abrindo cam inho entre cam adas musc ular es,
Ginger atingiu as duas artér ia s fem or ais. Repetiu o mesm o proc edim ento adotado
na porç ão super ior da aorta, abriu as duas artér ia s fem or ais, uma de cada vez, e
inser iu nas abertur as as extrem idades do tubo sintétic o.
Em certo mom ento, surpreendeu-se cantar olando baixinho, acompanhando
os acordes que vinham do gravador. Sentia-se o próprio Hipóc rates reenc arnado,
o médic o dos médic os, oper ando havia milênios, desde o com eç o dos tempos.
Par ec ia que nasc er a para fazer exatam ente o que estava fazendo.
Se não estivésse tão conc entrada na sutur a do vaso de Viola Flet-cher, ter ia
pensado em Jac ob. E, pensando no pai, ter ia lembrado
algum as das frases que ele costum ava dizer quando se via dia nte de algo ine-
vitável, da dor ou do frac asso. “O tempo não esper a”. “Ajuda-te e Deus te aju-
dar á”. “Tostão econom izado é tostão mer ec ido”. “A vinganç a a Deus pertenc e”.
“Não julgues, para não ser es julgado”. “Quem com ferr o fere...” Jac ob tinha um
repertór io inf inito de frases. Mas havia uma, em espec ia l, que pronunc ia va sem-
pre: “Antes da queda, vem o orgulho”. Ginger poder ia ter pensado nessas hum il-
des palavras, cheia s de sabedor ia. Mas estava tão feliz, tão satisf eita consigo mes-
ma, tão orgulhosa de sua estréia como cir urgiã-chef e, que se esquec eu da possi-
bilidade da queda.
Continua va atenta às própria s mãos. Voltou ao abdom e, retir ou as pinç as dos
braç os inf er ior es do implante e drenou-os; depois, cuidadosam ente, coloc ou-os
nas abertur as das artér ia s fem or ais e sutur ou as inserç ões. Por fim, retir ou as últi-
mas pinç as e viu o sangue fluir natur alm ente, devolvido ao trilho habitua l. Ainda
dedic ou vinte minutos à sutur a dos últim os vasos e reexam inou todos os pontos à
proc ur a de algum vazam ento: não enc ontrou nenhum. Mãos apoia das na mesa,
deixou-se fic ar, por cinc o minutos, observando a pulsaç ão do implante, perc or-
rendo cada centím etro da artér ia exposta. Estava perf eito.
— Podem os fec har — disse, afinal, levantando a cabeç a.
— Magníf ic o! — aplaudiu George.
Ginger com eç ou pelas inc isões das coxas. Voltou ao abdom e, retir ou os afas-
tador es dos intestinos e rec oloc ou-os na cavidade abdom inal. O resto foi fác il: re-
por e rec onstituir as cam adas de gordur a, as cam adas musc ular es até a pele, cos-
tur ada com um grosso fio negro.
Na cabec eir a, o anestesista retir ou a venda plástic a, que mantinha fec hados
os olhos de Viola, e desligou o respir ador. Uma das enf erm eir as desligou o grava-
dor bem no meio de um movim ento. Ginger aproxim ou-se da cabec eir a da mesa
e olhou para a pac ie nte, que, embor a já respir asse espontanea m ente, conservava
a máquina de oxigênio presa à cabeç a. A outra enf erm eir a despiu as luvas de
borr ac ha.
Sem abrir os olhos, Viola gem eu baixinho.
— Senhor a Fletc her — peguntou o anestesista está me ouvindo?
A pac ie nte não respondeu.
— Viola? Você está bem? Já acordou? — Ginger insistiu.
Os olhos da sra. Fletc her perm anec er am fec hados, mas ela moveu levem en-
te a cabeç a e entrea briu os lábios.
— Estou bem... doutor a.
Uma das enf erm eir as suspir ou, alivia da. A equipe reuniu-se em torno de
Ginger para os últim os cumprim entos, que ela aceitou e agradec eu enquanto dei-
xava a sala, ao lado de George, tir ando as luvas, o gorr o e a másc ar a. Sentia-se
prestes a explodir de satis- t faç ão. Um segundo depois, aproxim ando-se da pia
para lavar as mãos, com eç ou a carr egar o peso da tensão. Os ombros e o pes-
p coço doía m, as pernas sof ria m cãibra, os pés ardia m.
— Deus do céu... — suspir ou. — Estou exausta!
— Eu sei — George sorr iu. — Você está trabalhando há mais de cinc o ho-
ras. Já passa da hora do alm oç o. Implante de aorta é uma verdadeir a mar atona.
— Você também fica exausto quando faz um implante desses?
Clar o que fico.
— E estranho... Quando saí da sala eu estava ótim a. Foi de repente. Lá den-
tro, era como se eu estivesse com eç ando a trabalhar.
— Lá dentro você se sentia como se fosse um deus — George riu, car inho-
so. — Enf rentou a morte, lutou e venc eu. Os deuses não sentem cansaç o, não
têm cãibra nem torc ic olo. O trabalho deles é divertido dem ais para que pensem
no cansaç o que vem depois.
Junto às duas pias, ainda ao lado de George, Ginger tir ou o avental, apanhou
uma das pequenas embalagens de sabonete, abriu-a e com eç ou a lavar as mãos.
Aos pouc os, quase sem sentir, debruç ou-se e fitou o fundo da cuba ovalada. Co-
berta de pequenas bolhas de sabão, a água gir ava um mom ento sobre si pró-
pria, gir ava... e sum ia pelo ralo. Mais água acum ulava-se, gir ava e desapar ec ia,
tragada pelo torvelinho. Gir ava cada vez mais depressa, mais depressa, mais de-
pressa, e sum ia...
A terc eir a crise foi a pior de todas. Pior que o caso das luvas pretas, pior que
o oftalm osc ópio no consultór io de George. De repente, com um grito de pavor,
Ginger jogou longe o sabonete e arr egalou os olhos, o rosto pálido como a morte.
O turbilhão cresc ia, a água gir ava cada vez mais, com eç ava a sair da pia, ia apa-
nhá-la... Ela prec isava fugir! Na corr ida, teve a vaga impressão de livrar-se de
Agatha, que tentava segur á-la, de ouvir a voz de George cham ando seu nome.
Mas foi apenas um instante, e tudo mergulhou na névoa. O cenár io, as persona-
gens, Agatha, George, a ante-sala do centro cir úrgic o... não havia mais nada ou
ninguém. Tudo sum ia, e apenas a pia brilhava com uma luz maligna, amea ç ado-
ra. Estava enlouquec endo. Era uma pia! A pia de sempre, a pia do centro cir úrgi-
co... Não podia deixar-se levar pelo medo. Não quer ia fugir, não, não...
Mas fugiu. Corr eu para fora da sala. A névoa densa diluía as imagens a sua
volta, até envolver tudo. Então as trevas se fec har am.
A prim eir a sensaç ão de Ginger foi de frio. Havia nevado, ainda nevava... os
floc os de algodão caía m devagar, passando adia nte de seus olhos como pequenas
plum as. Não havia vento. Ginger levantou a cabeç a e olhou o muro de tij olos que
se erguia a sua frente, de um lado e outro. Metros acim a, apar ec ia um peque-
no retângulo de céu cor de chumbo. A neve vinha de lá e, em apenas alguns se-
gundos, acum ulava-se sobre seus cabelos... nevava e ela estava sentada no chão,
chor ando e trem endo de frio.
A pele de seu rosto ardia, os ossos da mão com eç avam a doer, os dentes bati-
am. Vestia o cam isolão verde-clar o que usava sob o avental de cir urgia. Tinha o
corpo úmido e sentia o contato gelado dos tij olos em que suas costas se apoia -
vam. Enc olhida a um canto, abraç ando os joe lhos contra o peito, tentava def en-
der-se de algum a coisa. A temper atur a de sua pele com eç ava a baixar, mas ela
não tinha forç as para levantar-se e entrar. Lembrou-se da pia, do ralo engolindo a
água e, afinal, lembrou-se de tudo.
Outra crise! Tiver a outra crise, fugir a desesper ada, atropelando Agatha. Ge-
orge tentar a cham á-la, por ém ela mal o ouvir a. Geor-
ge! Nítida, como numa cena de film e antigo, lembrou-se da expressão de
surpresa que apar ec er a no rosto do médic o ao vê-la fugir. Nao conseguia lem-
brar-se de mais nada; entretanto, podia adivinhar: saír a do centro cir úrgic o gri-
tando, completam ente enlouquec ida, fora de si... Assustar a a equipe, e assustar a
o próprio George, e, afinal, destruir a sua prom issor a carr eir a.
De olhos fec hados, colou as costas à par ede gelada. Mais frio... quanto mais
frio, melhor! Um violento choque térm ic o, a morte rápida e indolor. Estava sen-
tada num dos corr edor es externos do hospital, uma espéc ie de entrada de serviç o
que levava ao prédio princ ipal. A esquerda, uma pesada porta de ferr o dava pas-
sagem à caldeir a que alim entava os aquec edor es, junto às saídas de emergênc ia
daquela ala.
Ginger lembrou-se da noite em que fora assaltada, quando ainda trabalhava
no Hospital Presbiter ia no de Colúmbia. O assaltante levar a-a para um beco par e-
cido com aquele, mas então ela ainda não havia com eç ado a enlouquec er. Era
uma mulher equilibrada, segur a, determ inada a não se deixar venc er. E agor a...
perder a tudo, sentia-se frac a, quase morta de frio e de medo. Terr ível ironia:
morr er sozinha e desampar ada num beco gelado.
Toda a sua vida reduzida a tão pouc o. Os anos de esc ola, a fac uldade, as lon-
gas noites de plantão no hospital, o trabalho, o sac rif íc io para que servir am? Para
ela acabar como um cão vadio, sem rumo e sem dono. Havia frac assado. De-
cepc ionar a George, Anna, Jac ob... Dec epc ionar a a si própria. Era inútil fingir
que não sabia o que se passava. Não sabia exatam ente o que era, mas estava
consc ie nte de que se tratava de algum a coisa muito grave, grave o bastante para
acabar com seus sonhos de trabalhar como cir urgiã. O que podia ser? Crise psi-
cótic a? Tum or cer ebral? Aneu-rism a intrac rania no?
De repente, a porta de ferr o abriu-se, e George Hannaby apar ec eu, o aven-
tal enr olando-se às pernas, a respir aç ão entrec ortada. Deteve-se proc ur ando algo
em seu redor, e depar ou com ela, enc olhida na neve. Ginger viu-o arr egalar os
olhos e franzir as sobranc elhas inc rédulo, e imaginou que estivesse fazendo as
contas
das hor as, dias e meses que havia perdido com ela. Sua melhor aluna, sua as-
sistente exc lusiva, a grande prom essa da cir urgia car-diovasc ular do Mem or ia l...
Ginger fec hou os olhos, enc olheu-se ainda mais junto à par ede e rec om eç ou a
chor ar.
— Mas... o que acontec eu? — George aproxim ou-se, ainda inc rédulo.
Ela respondeu com um soluç o, o rosto esc ondido nas mãos. George que a es-
quec esse, que desapar ec esse dali, que a deixasse sozinha com a misér ia, a vergo-
nha, a hum ilhaç ão. Por que prec isava passar por mais aquela provaç ão? O que
ele quer ia?
— Por favor, diga o que acontec eu. O que... quer que eu faça? ^ Por entre
os dedos, Ginger viu que outras pessoa s também chegavam à porta de ferr o. As
lágrim as não a deixavam ver bem, nem ela prec isava saber quem eram: basta-
va-lhe saber que George estava ali, a sua frente, perguntando-lhe o que aconte-
cer a.
— Não sei... — respondeu baixinho, sem cor agem de levantar os olhos. —
Algum a coisa... está acontec endo com igo...
— O que é?
— Não sei.
A únic a Ginger Weiss que conhec ia nunc a prec isar a pedir ajuda a ninguém,
bastava-se a si mesm a. E agor a mal sabia dizer o que estava acontec endo! —
Seja lá o que for, vam os dar um jeito — prom eteu George, inc linando-se em sua
dir eç ão. — Sei que você não é de se entregar. Está ouvindo? As vezes fico sem
saber o que fazer com você porque sei que não gosta de rec eber ajuda. Sempre
quer fazer tudo sozinha. Mas agor a é dif er ente, não é? Você está meio... perdida...
— Balanç ou a cabeç a. — Desta vez vou ajudá-la, você queir a ou não. Ouviu
bem?
— Estraguei tudo. Dec epc ionei você...
George sorr iu.
— Não, ainda não — murm ur ou. — Sabe... Rita e eu não tivem os filhas. Só
os rapazes... Mas, se tivéssem os tido uma menina, gostar ía m os que fosse igualzi-
nha a você. Doutor a Weiss, você é uma mulher mar avilhosa... fantástic a... espe-
cia l. Jam ais me dec epc ionar ia. Para mim, ser ia uma honr a se, pelo menos uma
vez na
vida, você aceitasse meu ombro, se enc ostasse nele e me deixasse ajudá-la.
Como se eu fosse seu pai.
Ginger levantou os olhos, viu a mão de George estendida para ela e apertou-
a com forç a.
Era segunda-feir a, dia 2 de dezembro.
Ainda se passar ia m muitas sem anas até Ginger desc obrir que outras pessoa s,
em outros lugar es — gente que não se conhec ia —, vivia m a mesm a exper iê n-
cia, sinistras var ia ç ões de um pesadelo sem elhante ao seu.
2. TRENTON, NEW JERSEY
Pouc o antes da meia-noite, Jack Twist abriu a porta, saiu do arm azém e res-
pir ou fundo o ar gelado e úmido. No mesm o instante, um hom em desc ia de um
cam inhão cinzento, junto a uma das rampas de desc arga. Jack não ouvir a ruído
algum porque, com certeza, o cam inhão estac ionar a enquanto o trem passava.
O pátio ao redor estava às esc ur as, apesar das quatro pequenas lâmpadas
amar eladas que, por medida de segur anç a, perm anec ia m sempre acesas balan-
çando ao vento como aranhas engaioladas. Por azar, uma dessas lâmpadas ilum i-
nava exatam ente a porta por onde Jack acabava de sair e o lado dir eito do cam i-
nhão onde se enc ontrava o visitante inesper ado.
O hom em tinha cara de prontuá r io polic ia l: queixo quadrado, lábios finos e
retos, nar iz torto e quebrado mais de meia dúzia de vezes, olhos pequenos e bem
separ ados. Era um dos sádic os obedie ntes que a gang empregava quando prec i-
sava de mão-de-obra extra. Em outras enc arnaç ões poder ia ter ganho a vida
como espec ia lista em estupro e saque nas hordas de Gengis Khan, ou carr asc o
nazista, ou tortur ador-chef e em qualquer prisão sta-linista. No futur o, poder ia
bem ser um Morlock, como H.G. Wells imaginou em A máquina do tempo. Para
Jack, no presente, o hom em era problem a da cabeç a aos pés.
Fic ar am os dois par ados, um na frente do outro, mas Jack
não levantou o revólver nem lhe deu um tiro, como dever ia fazer.
— O que está fazendo aí? — perguntou Morlock, ríspido. Contudo, ao ver a
sac ola de lona que o outro arr astava com a mão esquerda e a pistola na dir eita,
apontada para o chão, arr egalou os olhos e exc lam ou: — Max!
Max devia ser o motor ista do cam inhão, e Jack não esper ou que apar ec esse
alguém para apresentá-los. Voltou-se, corr eu para dentro do arm azém, fec hou a
porta e enc ostou-se à par ede, pensando na hipótese de o Morlock dec idir testar a
pontar ia.
A únic a ilum inaç ão que havia no arm azém provinha de um conj unto de lâm-
padas frac as que também perm anec ia m acesas dur ante toda a noite no esc ritór io
mais ao fundo. Era pouc a luz, mas bastava para que Jack visse os rostos de seus
dois companheir os, Mort Gersh e Tommy Sung, par ados a pouc os passos da saí-
da. Não par ec ia m satisf eitos.
Minutos antes ia tudo tão bem! Havia m desc oberto um dos maior es arm a-
zéns da Máf ia, um dos “ninhos de desova” do dinheir o do tráf ic o de drogas arr e-
cadado em metade do Estado de New Jersey. O dinheir o vinha em malas, sac o-
las, caixas de papelão ou de plástic o e, depois de passar de mão em mão, ao lon-
go de uma cadeia de “pombos-corr eio” que o rec ebia dos traf ic antes, era deixa-
do no arm azém. As maior es rem essas chegavam aos dom ingos e às segundas.
As terç as-feir as, apar ec ia m os bem vestidos contador es para acertar “a contabi-
lidade da divisão de produtos quím ic os” da organizaç ão. As quartas, o dinheir o, já
contado e acondic ionado em maletas, partia para Mia m i, Las Vegas, Los Ange-
les, Nova York ou qualquer outro grande centro onde, afinal, os conselheir os fi-
nanc eir os, bac har éis em Harvard ou Colúm-bia, proc ur ador es da Máf ia ou de al-
gum as “fam ília s”, dedic avam-se a “esquentá-lo”, ou seja, torná-lo legal e rendo-
so.
Jack, Mort e Tommy estavam apenas interr ompendo um dos elos dessa ca-
deia, exatam ente o que ligava os contador es bem vestidos e os doutor es de Har-
vard. Os três apoder ar am-se de qua-
tro pesados sac os de lona cheios de dinheir o e dec idi mm ga\i.n aquela fortu-
na como bem quisessem.
— Qual é o problem a? — perguntar a Jack, Som os apenas um elo novo na
mesm a corr ente. E como se fôssem os interm ediá r ios free-lanc ers. — Os três ri-
ram muito,
Mas naquele mom ento Mort estava outra ve/, muito ser io. Ti nha cinqüenta
anos, ventre salie nte, ombros caídos, e com eç ava a perder os últim os fios de ca-
belos. Como sempre, usava terno esc ur o e chapéu de feltro, por ém acresc entar a
um sobretudo cin zento ao unif orm e habitua l. Jack não se lembrava de jam ais
tê*Io visto com outra roupa. O chapéu perder a o vinc o — o que aliá s o próprio
Mort também par ec ia ter perdido há muito tempo e o terno estava amarr otado,
mas o conj unto dava-lhe todo o ar de um alinhado figur ante num film e de gangs-
ter.
— Quem está lá fora? — perguntou, a voz cansada e azeda de sempre.
— Vi dois car as num cam inhão.
— Gente da turm a?
— Não sei. Bom, para dizer a verdade, só vi mesm o um — Jack corr igiu-se
—, mas vale por dois... Até par ec e o Frankenstein.
— Não há por que se preoc upar. As portas estão tranc adas.
— Eles podem ter as chaves.
A observaç ão fez os três corr er em para as sombras do fundo do arm azém e
esc onder em-se entre as pilhas de engradados e caixotes acom odados nas empi-
lhadeir as. No imenso arm azém, as merc ador ia s enc hia m prateleir as que subia m
até o teto. Televisor es, fornos de mic roondas, liqüidif ic ador es, torr adeir as, peç as
para carr os e trator es, e mais centenas de itens. As prateleir as par ec ia m ordena-
das e limpas, mas o arm azém, como qualquer grande ofic ina deserta, tinha um
ar sinistro e amea ç ador, como se os corr edor es esc ur os ainda abrigassem as vo-
zes e os habitantes do dia.
Com eç ar a a chover forte, e as pesadas gotas de água batendo na laje de con-
creto ecoa vam como passos por entre as prateleir as.
— Bem que eu avisei — resm ungou Tommy. — Eu disse que era per igoso
mexer com essa gente.
Desc endente de chineses, Tommy acabava de completar trinta anos, sete
menos que Jack. — Casas de jóia s — continuou —, carr os blindados, até banc os...
vá lá que seja... Mas a Máf ia! É louc ur a quer er roubar esses car as! E como en-
trar num bar de fuzileir os navais e cuspir na bandeir a.
— Mas você veio, não veio?
— Eu sei, Jack... As vezes faço bobagem.
No tom desalentado de sempre, Mort interr ompeu-o:
— Só há uma explic aç ão para esse cam inhão apar ec er aqui. Eles devem
estar trazendo dinheir o de apostas, cavalos, “pó”, qualquer merda dessas, e com
certeza é mais gente do que os dois que você viu. Devem ter hom ens arm ados na
carr oc er ia guardando a
grana .
— E por que eles não atir am? — Tommy perguntou.
— Porque pensam que som os um exérc ito arm ado até os dentes. Estão
com medo de nós — arr isc ou Jack.
— Provavelm ente eles têm transm issor es de rádio e já pedir am ref orç os.
— Mort ajeitou o chapéu, pensativo.
— Você acha que essa porr a de Máf ia tem uma frota de cam inhões equi-
pados com rádio, como a Companhia Telef ônic a? — Tommy vir ou-se para ele.
— A Máf ia é um negóc io como qualquer outro. Os car as são organizados.
Os três calar am-se, tentando ouvir ruídos que indic assem movim ento no pá-
tio. Nada. Só a chuva tambor ilava na laje. Cada um exam inou a própria arma,
sof istic ada, moderna e... insuf ic ie nte para enf rentar a Máf ia.
De repente, Jack lembrou-se de um film e antigo visto na televisão: munidos
apenas de pedras e porr etes, patriotas húngar os tentavam deter o avanç o dos tan-
ques russos. Como sempre as coisas se complic avam, e ele dram atizava, esc o-
lhendo invar ia velm ente o papel de vítim a, de pobre coitado perseguido pelas for-
ças do mal. Gostava de ser assim. Via a tendênc ia a dram atizar como uma de
suas mais altas qualidades mor ais. Verdade que, enc urr alado
no arm azém, a rea lidade super ava qualquer tentativa de ficç ão: não havia o
que dram atizar.
Mort acabou chegando a algum a conc lusão par ec ida e disse:
— Não vai adia ntar nada tentar sair pelos fundos. Eles já devem ter tom a-
do posiç ão, com pelo menos dois na frente e dois atrás.
As duas únic as saídas possíveis eram as portas de aço das rampas de desc ar-
ga. Não havia janelas, abertur as de ventilaç ão, cham iné, nada. Nem saída de
emergênc ia nem esc ada para subir ao telhado — na verdade, nem existia telha-
do. Ao planej ar o roubo, os três havia m estudado detidam ente as plantas do ar-
mazém, e conhec ia m, palm o a palm o, a arm adilha em que havia m caído.
— Então... o que vam os fazer?
A pergunta de Tommy era dir igida não a Mort, mas a Jack, que fazia questão
de organizar pessoa lm ente todos os “serviç os” dos quais partic ipava. Assim,
Tommy esper ava que ele se enc arr egasse também de improvisar soluç ões quan-
do par ec ia não haver a mínim a esper anç a. Jack era o hom em das idéia s brilhan-
tes.
De repente, por ém, o próprio Tommy bateu na testa:
— Ora! Por que não saím os do mesm o jeito que entram os?
Havia m entrado no arm azém como alguns guerr eir os gregos
entrar am em terr itór io inim igo, numa ligeir a adaptaç ão da idéia do cavalo de
Tróia. Era a únic a maneir a de burlar o elabor ado sistem a de segur anç a que, à
noite, tornava o arm azém pratic am ente inexpugnável. Dur ante o dia a segur anç a
corr ia por conta da honesta fac hada de um depósito que, como tantos outros, ar-
mazenava obj etos, móveis e merc ador ia s de todo tipo perm itido pela lei. Com
um term inal de computador dom éstic o e alguns códigos, Jack conseguir a entrar
no sistem a do arm azém e, ao mesm o tempo, no de um de seus grandes e ilustres
clie ntes, então sim ular a os registros eletrônic os de uma entrega a ser feita num
enorm e engradado lac rado. O plano estava dando certo: o engradado fora entre-
gue naquela manhã e guardado exatam ente nas condiç ões requer idas pelos doc u-
mentos que o acompanhavam. Dentro estavam Jack, Mort e Tommy. Tinham
cinc o opç ões de saída, uma
de cada lado, o que lhes perm itir ía abrir o rec ipie nte ainda que ele fosse aco-
modado entre outros quatro. Pouc o depois das onze da noite, saír am e surpreen-
der am os rapazes do esc ritór io, que jam ais esper avam ver alguém burlar o siste-
ma de segur anç a.
— Podem os voltar para o engradado — Tommy continuou. — Quando eles
entrar em e não enc ontrar em a gente, vão pensar que tiver am uma visão. Ama-
nhã à noite já ter ão esquec ido tudo. Então saím os e acabam os o serviç o, conf or-
me o planej ado.
— Não dá certo. Esses car as não costum am ter visões. Vão desm ontar o
arm azém até nos enc ontrar em — dec lar ou Mort, balanç ando a cabeç a.
— E isso mesm o — Jack conc ordou. — Já sei o que vam os fazer. Em voz
baixa, distribuiu rapidam ente as tar ef as. Tommy corr eu até o painel para desligar
as luzes do arm azém. Jack e Mort apanhar am os quatro sac os de dinheir o e fo-
ram arr astando-os para o setor onde vár ios cam inhões aguardavam as cargas da
manhã seguinte. Estavam ainda a mais de um quarteir ão de distânc ia do obj etivo,
quando Tommy apagou as pouc as luzes. Os dois par ar am, Jack acendeu a lanter-
na que sempre levava presa ao cinto, e continua r am andando. A lona arr astada
sobre o piso produzia um ruído surdo, que ecoa va de modo sinistro no arm azém
deserto.
Com sua própria lanterna também acesa, Tommy reuniu-se aos companhei-
ros; apanhou um dos sac os que Mort carr egava e um dos de Jack. A chuva com e-
çava a dim inuir e, por entre o bar ulho da ventania, Jack teve a impressão de ouvir
um carr o frea r. Ser ia m os ref orç os?
No fundo do arm azém estavam estac ionados quatro enorm es cam inhões, de
cinc o eixos e dezoito pneus, cada qual vir ado para uma das rampas de carga.
Jack aproxim ou-se do cam inhão mais próxim o, subiu e exam inou o painel. Exa-
tam ente como previr a. Todos ali par ec ia m conf ia r cegam ente na segur anç a ele-
trônic a, como se ninguém, em tempo algum, fosse pensar em roubar um dos ca-
minhões. A chave estava no contato, brilhando à luz da lanterna.
Em seguida, Jack e Mort exam inar am os outros três veíc ulos,
onde enc ontrar am também as respectivas chaves. Ligar am os motor es e vol-
tar am ao prim eir o cam inhão. Atrás do banc o havia uma rede com alm of adas,
onde os motor istas, revezando-se à dir eç ão, podia m dorm ir nas via gens mais lon-
gas. Tommy Sand guardava os sac os de dinheir o nessa rede quando Jack e Mort
se aproxim ar am. Jack esper ou que Tommy saísse, sentou-se ao volante, desligou
a lanterna e deu a partida. Mort acom odou-se a seu lado. Os quatro cam inhões
agor a ronc avam alto, com os far óis apagados.
De lanterna na mão, Tommy corr eu para o painel que controlava o mec anis-
mo da prim eir a porta. Esc olheu uma das chaves e ligou-a. Depois, sempre guia -
do pelo feixe de luz, dir igiu-se para a segunda porta e acionou o respectivo mec a-
nism o. Repetiu a oper aç ão com a terc eir a e a quarta portas, desligou a lanterna e
corr eu para o cam inhão onde Jack e Mort o esper avam. Lentam ente, as engrena-
gens chia ndo, as pesadas portas de aço com eç ar am a subir.
Lá fora, os Morlock ver ia m as portas subir em, ouvir ia m o ronc o dos motor es,
mas cada um estar ia olhando para, no máxim o, dois bur ac os negros e não pode-
ria saber por qual deles sair ia o prim eir o cam inhão. Na dúvida poder ia m desc ar-
regar as metralhador as sobre as quatro saídas. Jack, no entanto, estava certo
de que ref letir ía m dur ante alguns segundos antes de optar em por uma resposta
tão violenta e tam anho desperdíc io de muniç ão.
Tommy subiu no cam inhão e tranc ou a porta, apertando Mort entre ele e
Jack.
— Como essas portas são lerdas — Mort resm ungou, no mom ento em que
as portas chegavam a meio cam inho do teto, mostrando-lhes uma fatia retangu-
lar de noite chuvosa, esc ur a e fria.
— Passe por cima dos filhos da puta. — Era apenas uma sugestão. Tommy
jam ais dar ia ordens Jack.
Afivelando o cinto de segur anç a, Jack replic ou:
— E melhor a gente não se arr isc ar. O cam inhão pode fic ar preso no carr o.
A porta continua va subindo. Mãos firm es no volante, Jack perc ebeu movi-
mento no pátio. Dois hom ens arm ados passar am adia n-
te deles, meio curvados, deslizando no piso molhado. Pelo visto, ainda não
havia m dec idido desperdiç ar a muniç ão da “fam ília”.
A prim eir a porta, exatam ente a que fic ava na frente de Jack, já estava quase
aberta. E então, de repente, surgiu o carr o cinzento, os pneus cantando no chão
esc orr egadio. Numa rápida manobra, o motor ista gir ou o volante, e o carr o blo-
queou duas das rampas de desc arga. De seu ponto de observaç ão, Jack viu os
pneus da frente subir em alguns centím etros de rampa e a luz dos far óis, jogada
para cima, ilum inar a cabine do cam inhão que ali ronc ava. Até um cego ver ia
que o cam inhão estava sem motor ista. A prim eir a porta continua va subindo.
— Abaixem-se! — Jack gritou.
Mort e Tommy obedec er am como puder am, e Jack soltou o freio de mão.
Com um pouc o de sorte conseguir ia m passar... For am três rápidos gestos: engre-
nar a prim eir a marc ha, soltar a em-brea gem e pisar fundo no aceler ador.
No mom ento em que só um dos cam inhões se movim entou, os Morlock en-
tender am que tinham uma únic a saída com a qual se preoc upar, e sobre ela con-
centrar am o fogo. A noite enc heu-se do seco ruído sinistro de uma sar aivada de
balas. Jack sentiu uma delas passar zunindo junto ao vidro de sua janela, enc o-
lheu-se sem quer er, por ém manteve o pé firm e no aceler ador. Passou pela por-
ta, desc eu a rampa. Lá embaixo, outro carr o estava estac ionado, bloquea ndo a
passagem. Os ref orç os havia m chegado.
Jack optou pelo aceler ador em vez do freio e sorr iu, satisf eito, vendo o horr or
estampar-se no rosto dos ocupantes do autom óvel quando perc eber am que o ca-
minhão avanç ava. A grade do cam inhão acertou a later al do carr o, vir ou-o de
lado e ainda o arr astou por mais de dez metros. O choque fez Jack saltar do ban-
co, mas o cinto devolveu-o em segur anç a ao assento. Por baixo do painel, Mort e
Tommy gritavam de dor, jogados de um lado para outro como latas velhas.
Para livrar-se do autom óvel, Jack desc er a a rampa em alta veloc idade. Ago-
ra prec isava de toda a forç a que sabia ter — e de muita da que sequer desc onf ia -
va ter — para controlar o cam inhão,
impedindo-o de guinar para a dir eita e colidir de frente com a par ede do ar-
mazém. E conseguiu. Entre sua cabine e o cam inho que levava à saída do pátio
restava apenas um carr o azul-esc ur o ocupado por três hom ens. Dois deles abri-
ram fogo.
Um fez mira abaixo da linha indic ada pelos manua is e acertou a grade, espa-
lhando faísc as para todos os lados. O outro err ou por exc esso, mir ando alto de-
mais: acertou a buzina montada acim a da cabine e silenc iou-a. Jack viu-a pender
ao lado da janela e fic ar balanç ando, presa nos fios.
O cam inhão já estava muito próxim o do carr o. Os fié is servidor es da “fam í-
lia” adivinhar am o per igo e fugir am como coe lhos assustados, um para cada
lado. Jack passou por cima do últim o obstác ulo, reduzindo-o a um monte de fer-
ragens imprestáveis. Seguiu em frente, passou pelo lado do arm azém, pelo arm a-
zém seguinte, por outro arm azém, sempre aceler ando.
Mort e Tommy saír am do esc onder ij o e sentar am-se, gem endo e praguej an-
do. Os dois estavam mac huc ados. Mort tinha sangue no nar iz e Tommy havia
cortado o superc ílio dir eito. Nada que par ec esse grave.
— Por que será que tudo sempre acaba dando err ado? — Mort suspir ou, a
voz ainda mais cavernosa por causa do nar iz mac huc ado.
— Nada deu err ado — Jack ligou os limpador es de pára-brisa. — O que
acontec eu foi que ganham os uma dose extra de emoç ão.
— Odeio emoç ão. — Mort levou um lenç o ao fer im ento.
Pelo retrovisor, Jack viu que o carr o cinzento se prepar ava para
segui-los. Os outros dois autom óveis estavam fora de combate, mas aquele
ainda podia cria r-lhe sér ios problem as. O cam inhão era lento dem ais para uma
pista plana. Além disso, a chuva deixar a a estrada muito esc orr egadia, e ele não
tinha exper iê nc ia suf ic ie nte para dir igir um monstro como aquele, à noite, em
alta veloc idade. Havia também um ruído estranho no motor, algum a coisa que se
soltar a dentro do capô depois da colisão com o carr o azul-esc ur o. Se o cam inhão
par asse de repente, em plena estrada, os três estar ia m mortos e os Morlock rec u-
per ar ia m o dinheir o.
Talvez fossem prom ovidos.
Por ali havia vár ia s fábric as, arm azéns, grandes ofic inas, mas a prim eir a ci-
dade fic ava a quase dois quilôm etros de distânc ia. Muitas fábric as estavam fe-
chadas àquela hora, em total esc ur idão, por ém algum as trabalhavam ininterr up-
tam ente, dia e noite. Pelo espelho retrovisor, cada vez mais perto, vinha o carr o
cinzento. Jack esc olheu uma pequena entrada à esquerda, onde viu uma plac a ilu-
minada: Fábric a Hardwr ight — Embalagens de espum a.
— Merda! Para onde você está indo? — Tommy gritou.
— Não tem os motor para esc apar deles.
— Mas não podem os par ar para negoc ia r a retir ada, porr a! Eles têm me-
tralhador as, já esquec eu? — Mort gem eu por trás do lenç o ensangüentado.
— Deixe com igo. — Jack era o hom em das idéia s.
A fábric a Hardwr ight não estava trabalhando. Mas, atrás do grande prédio às
esc ur as, numa verdadeir a clar eir a ilum inada por lâmpadas de vapor de merc ú-
rio, viam-se dezenas de cam inhões estac ionados. Jack passou pelo edif íc io central
da fábric a, contornou o estac ionam ento e prepar ou-se para uma manobra brus-
ca.
— Segur em-se! — gritou.
Mort e Tommy firm ar am os pés no chão, colar am as costas ao banc o e es-
per ar am o choque.
O gigantesc o cam inhão gem eu em seus cinc o eixos e dezoito pneus, comple-
tou uma curva muito fec hada por trás da fábric a e par ou brusc am ente, a alguns
passos do portão de saída do estac ionam ento. De longe, podia m ver a estrada por
onde havia m chegado. Em segundos, apar ec er am os far óis do carr o cinzento, pe-
quenas rodelas amar eladas que rapidam ente cresc er am na esc ur idão até trans-
form ar em-se em poder osos feixes de luz.
Adia nte do cam inhão, achava-se o portão do estac ionam ento, que, com cer-
teza, jam ais era fec hado. Jack com eç ou a contagem regressiva. De repente, a
marc ha engrenada, pisou fundo no aceler ador. O cam inhão saltou para a frente.
Era, por ém, um veíc ulo pesado, de partida mais lenta do que Jack calc ular a;
além disso, o carr o cinzento corr ia mais do que ele supunha. De qualquer
modo, embor a não conseguisse apanhá-lo à altur a do trinc o da porta dir eita,
atingiu-o em plena carr oc er ia. Foi o suf ic ie nte para fazê-lo gir ar em espir al,
completando uma volta e meia antes de espatif ar-se, de frente, contra o muro do
estac ionam ento. Como não era o caso de ver if ic ar se algum de seus ocupantes
prec isava de soc orr os médic os, Jack manobrou o cam inhão e retom ou a estrada.
Pouc o adia nte avistar am as luzes da cidade.
Podia m, enf im, retom ar o plano inic ia l. A prim eir a par ada prevista, depois
de sair do arm azém, era um posto de gasolina abandonado que os três já havia m
exam inado. Jack deixou para trás as bombas de gasolina e estac ionou ao lado das
ruínas do que po-der ia ter sido um restaur ante. No instante em que puxou o
freio 4e mão, Tommy saltou da cabine e mergulhou na esc ur idão.
Estavam num bairr o de classe média baixa, de ruas estreitas e casas esc ur as.
Na segunda-feir a anter ior havia m deixado por ali um pequeno carr o de latar ia
maltratada e motor perf eito. Era o transporte que os levar ia de volta a Manhattan,
onde poder ia m fac ilm ente esquec ê-lo para sempre em qualquer esquina. A pou-
cos metros do arm azém da Máf ia, esper ava-os um carr o maior, sem chapa e
sem núm er o de motor ou chassi. Se os Morlock não tivessem apar ec ido, os três
ter ia m andado até o autom óvel, que os levar ia ao posto de gasolina, onde o troc a-
ria m pelo carr o menor.
Jack e Mort desc arr egar am os sac os de dinheir o, enc ostando-os à par ede do
posto. Mort voltou à cabine do cam inhão e limpou cuidadosam ente o volante e to-
das as partes onde pudessem ter deixado impressões digitais. Jack perm anec eu ao
lado dos sac os, vigilante. Ninguém estranhar ia a presenç a de um cam inhão aban-
donado num velho posto de gasolina. Era tarde e não havia carr os pelas ruas,
mas se a políc ia passasse por ali em sua ronda habitua l...
Tommy logo apar ec eu com o carr o que manobrou e estac ionou entre as
duas bombas. Mort fec hou o cam inhão, apanhou dois sac os e foi arr astando-os
pelo chão. Jack seguia-o de perto, mas, quando term inou de coloc ar os sac os no
banc o de trás, Mort já estava acom odado, limpando o nar iz. Jack sentou-se ao
lado de Tommy sorr indo para si mesm o.
— Pelo amor de Deus, dir ij a com cuidado — disse.
— Vam os ser condec or ados pela políc ia rodoviá r ia — prom eteu Tommy.
Os pneus derr apar am ao saír em da lama que cerc ava as bombas e derrr apa-
ram novam ente ao toc ar o asf alto da rua, mas Tommy conseguiu controlar o
carr o.
— Por que é que tudo, sempre, acaba dando err ado? — Mort suspir ou.
— Nada deu err ado — disse Jack.
O carr o deslizou no asf alto e quase se choc ou com um dos veíc ulos estac io-
nados junto ao meio-fio. Foi o últim o inc idente. Pouc o adia nte chegar am ao en-
tronc am ento de onde tom ar am a rodovia rumo à cidade de Nova York.
— Por que é que esse carr o derr apa tanto? — Mort perguntou de repente.
— Vá mais devagar.
— Era por causa da lama — explic ou Tommy. — Mas não se preoc upe.
Daqui para frente é só asf alto.
— Esper o que não aconteç a mais nada. Que merda de noite!
— Merda de noite?! — Jack riu. — Mort! Você jam ais será adm itido no
Clube dos Otim istas Anônim os... Linda noite! A melhor noite de nossas vidas! Es-
tam os ric os, rapazes, ric os! Estam os sentados em cima de uma montanha de di-
nheir o!
Mort arqueou as sobranc elhas por baixo do chapéu de feltro que ainda pinga-
va água. Par ec ia surpreso:
— Bem... Olhando por esse lado... Até que melhor a um pouc o.
Tommy Sung deu uma gargalhada. Jack também riu alto. Mort
apenas sorr iu, com entando:
— E tudo livre de impostos.
De repente, o mundo par ec ia fantástic o, mar avilhoso, engraç a-díssim o.
Tommy dim inuiu a veloc idade, postou-se atrás de uma ambulânc ia feer ic am ente
ilum inada e passou em absoluta segur anç a pelo posto de políc ia. A fuga do arm a-
zém já fazia parte do folc lor e de acontec im entos engraç ados que lhes enc hia m a
vida.
Mais tarde, quando as risadas ceder am lugar a olhar es calm os e sorr isos de
franc a adm ir aç ão, Tommy dec lar ou:
— Eu quer ia dizer que... você foi ótim o, Jack. A idéia de usar o computador
para fazer aquelas notas de entrega... o en-gradado... Puxa! E aquele apar elho
que você inventou para abrir o cof re sem prec isar explodir... Que belo trabalho!
Você é dos bons!
— E exc elente na organizaç ão — acresc entou Mort. — Mas é ainda me-
lhor para enf rentar crises. Você pensa rápido. Vou lhe dizer uma coisa... se você
usasse tudo que sabe para ser um hom em de bem, para viver do lado certo da
vida, só Deus sabe o que poder ia conseguir!
— O lado certo da vida?! Existe lado mais certo do que o lado que trabalha
para fic ar rico? — Jack vir ou-se para trás.
— Você sabe do que estou falando.
— Não sou her ói nem estou inter essado em viver “do lado certo”, entre os
“hom ens honestos”. São todos hipóc ritas. Falam em honestidade, verdade, justi-
ça, consc iê nc ia soc ia l, mas vivem como se tivessem a alma em leilão. Não ad-
mitem isso, mas são assim mesm o, e é por isso que quer o distânc ia deles. Eu as-
sum o... para mim, só o dinheir o conta. Quer o ter dinheir o, muito dinheir o, e os
honestos que se fodam. — A medida que falava, Jack perc ebia que sua voz mu-
dava, perdia a alegria, tornava-se cada vez mais fria e cheia de ressentim entos.
— O “lado certo”, “as boas causas”... — Olhou através da chuva, vendo os lim-
pador es bater em cadenc ia dos, de um lado para o outro. — Você passa a vida lu-
tando pelas “boas causas”, e vem um desses otár ios honestos e acaba com você.
Eles que se fodam!
— Falei por falar — Mort arr egalou os olhos, surpreso.
Jack mergulhou nas lembranç as do passado. Amargas lembranç as. Dois ou
três quilôm etros adia nte, disse, a voz tensa e baixa:
— Não sou her ói, droga!
Em dias que ainda estavam por vir, ter ia oportunidade de lembrar essas pala-
vras. E se surpreender ia muito ao desc obrir o quanto estava err ado.
Era o dia 4 de Dezembro, quarta-feir a, à uma e doze da madrugada.
3. CHICAG O, ILLINOIS
Cinc o dias depois de ter roubado mais de três milhões de dólar es da Máf ia,
Jack Twist foi visitar uma mulher morta que insistia em continua r respir ando.
No dom ingo, à tarde, estac ionou seu autom óvel na gar agem subterrânea de
uma clínic a partic ular no East Side e tom ou o elevador para subir à rec epç ão,
onde se apresentou à portar ia e rec ebeu um crac há de visitante.
Ninguém dir ia que estava num hospital. A portar ia e a rec epç ão eram dec o-
radas com luxo e bom gosto, no mesm o estilo arr ef eç o da arquitetur a. Os dois
pequenos originais de Erté, os sof ás e poltronas estof ados as revistas dispostas so-
bre uma mesa baixa, tudo par ec ia saído de um cenár io dos anos 20.
Exc esso de luxo. Ninguém, ligava para os Erté. O hospital econom izava em
mil outros detalhes, por ém jam ais arr isc ar ia comprom eter sua imagem, porque
prec isava continua r atraindo clie ntes milionár ios e manter estáveis os luc ros anu-
ais de cem por cento. Os quartos estavam sempre ocupados: esquizof rênic os ca-
tatôni-cos de meia-idade, cria nç as autistas, jovens e velhos com atosos, todos com
o mesm o prognóstic o fec hado. Eram pac ie ntes em
estado crônic o, de fam ília s ric as o bastante para gar antir-lhes o melhor aten-
dim ento possível.
Sempre que pensava naquele hospital, Jack fic ava indignado: como é que não
existia na cidade um únic o bom hospital a preç os razoá veis para doe ntes mentais
ou portador es de lesão cer ebral irr eversível? Os impostos subia m de hora em
hora e os serviç os públic os deter ior avam-se a ritm o quase idêntic o. Era a mesm a
coisa em todos os lugar es... A classe média que se danasse.
Se não fosse um ladrão prósper o, habilidoso e bem-suc edido, jam ais poder ia
pagar o que os médic os lhe cobravam pontua lm ente a cada fim de mês. Bendito
talento! Grande e bendito talento para a apropria ç ão indébita.
* O crac há de visitante abriu-lhe cam inho até o outro elevador que subia ao
quarto andar, onde fic avam os quartos de par edes branc as e limpas, lâmpadas
fluor esc entes e cheir o de desinf etante hospitalar. No fim do corr edor, últim a por-
ta à dir eita, vivia a mulher morta que insistia em continua r respir ando. Jack pa-
rou na frente da porta, com a mão no trinc o. Fec hou os olhos, respir ou fundo e
entrou.
Era um quarto muito mais simples que o saguão da rec epç ão, por ém agradá-
vel. Par ec ia um apartam ento de segunda categor ia num hotel de luxo: pé-dir eito
alto, lar eir a de pedra clar a, carpete verde-musgo, cortinas clar as, um sofá es-
tampado em tons de verde e duas poltronas. A teor ia dizia que os pac ie ntes senti-
am-se melhor em ambie ntes mais dom éstic os e menos frios que nos quartos de
hospital tradic ionais. Dif íc il acreditar que os pac ie ntes notassem qualquer dif e-
renç a, mas as visitas aprec ia vam o conf orto dos estof ados.
A cama hospitalar destoa va patetic am ente da dec or aç ão ger al, apesar dos
lenç óis estampados em alegre e disc reto color ido. Sobre a cama, a pac ie nte.
Jack aproxim ou-se, baixou a grade e, curvando-se, beij ou o rosto da esposa.
Ela não se moveu. Jack tom ou-lhe a mão e segur ou-a entre as suas. Imóvel, iner-
te, insensível, aquela mão era mac ia e quente.
— Jenny ? Sou eu. Você está bem? Que tal? Está bonita... bonita como sem-
pre.
Na verdade, para uma mulher que, havia oito anos, estava em coma, não
dava um passo, não saír a do quarto, e não tom ar a sol nem respir ar a um átom o de
ar livre, Jenny par ec ia muito bem. No entanto só Jack poder ia dizer sinc er am ente
que a achava bonita. Clar o que Jenny já não era a mesm a, por ém era dif íc il
acreditar que vivia nam or ando a morte desde quase uma déc ada.
Os cabelos perder am o brilho, mas continua vam fartos como antes, tão cas-
tanhos como quando ele a vira pela prim eir a vez, quatorze anos atrás, vendendo
perf um es na seç ão de artigos masc ulinos de uma loja de departam entos. As en-
ferm eir as enc ar-* regavam-se de lavá-los duas vezes por sem ana e de esc ová-
los dia r ia m ente. Se quisesse, Jack poder ia acar ic ia r-lhe os cabelos, a nuca, o pes-
coç o sem perturbá-la, porque já não havia o que pudesse perturbar Jenny. De
qualquer modo, não a toc ou, porque isso o perturbava, e muito.
Jenny não tinha rugas na testa, nem junto aos olhos, sempre fec hados. Estava
magra, por ém menos do que ser ia de esper ar. Par ec ia não ter idade, como uma
princ esa de contos de fada, adorm ec ida fazia séc ulos esper ando o beij o que po-
der ia devolvê-la à vida. Apenas a respir aç ão lenta e cadenc ia da, que fazia os sei-
os subir em e desc er em sob a cam isola e os lenç óis dobrados, indic a que ela ainda
vivia. Uma vez ou outra, Jenny engolia a saliva, movim ento involuntár io e in-
consc ie nte que nada signif ic ava.
Pac ie nte de lesão cer ebral extensa e irr epar ável, jam ais voltar ia a mover-se.
Não havia esper anç a. Jack sabia disso e estava conf orm ado. As coisas ser ia m
ainda pior es se ela não pudesse rec eber os cuidados médic os de um bom hospital
— fisioter apia, exerc íc ios diá r ios que lhe perm itia m conservar o tônus musc ular.
Jack deixou-se fic ar, com a mão da esposa entre as suas, contemplando-lhe o
rosto. Havia sete anos que passava duas noites por sem ana e cinc o ou seis hor as
todo dom ingo ao lado dela. As vezes, quando podia, apar ec ia também à tarde,
dur ante a sem ana, e jam ais se cansava de olhá-la.
Em dado instante, puxou uma das poltronas para perto da cama e sentou-se,
sempre segur ando a mão de Jenny e fitando-a. Então com eç ou a conversar com
ela. Contou-lhe sobre o film e que vira, sobre dois livros que acabar a de ler. Falou-
lhe do tempo, do frio que fazia, do vento. Desc reveu-lhe em detalhes duas lindas
vitrines dec or adas para o Natal que havia visto no cam inho. Jenny não sorr iu, não
pisc ou, não moveu um músc ulo. Perm anec eu como estava havia oito anos, como
continua r ia até morr er: imóvel, inam ovível.
Como ser ia a vida de Jenny se, por acaso, algum a sensibilidade ainda sobre-
vivesse em seu cér ebro quase morto? E se ela ainda pudesse ouvir ou entender o
que se passava a sua volta? O que sentir ia, prisioneir a de um corpo que não res-
pondia a ordens, súplic as, pedidos? Como se sentir ia, inc apaz de com unic ar-se
com as pessoa s que a cerc avam, alheia s, distantes, certas de que ela nada via ou
sentia? Os médic os disser am a Jack que isso era impossível: Jenny não podia ou-
vir nem ver, exc eto, talvez, imagens ou fantasia s inc ompreensíveis para nós e
para ela, retalhos de idéia s, qualquer coisa como rápidos instantes de sensaç ões
que, por vezes, brilhassem entre os circ uitos rompidos de seu cér ebro. Mas... e se
estivessem enganados?
Na dúvida, Jack continua va freqüentando o hospital, sentava-se ao seu lado e
falava-lhe como se ela pudesse ouvi-lo. Do lado de fora, o dia tornava-se cada
vez mais cinzento.
As cinc o e quinze da tarde, Jack levantou-se da poltrona, foi até o banheir o e
lavou o rosto, que enxugou com os olhos fitos no espelho, tentando adivinhar o
que Jenny poder ia ter visto de atrae nte nele. Não era um hom em bonito: tinha a
testa larga dem ais e as orelhas enorm es. Embor a sua visão fosse perf eita, um dos
olhos, ligeir am ente estrábic o, esc apava para o lado esquerdo. — Havia gente que
não conseguia enc ar á-lo ao conversar com ele, pois tentava saber com qual dos
olhos rea lm ente a via. Ao rir, Jack par ec ia um palhaç o de circ o mambembe. Ao
franzir as sobranc elhas, tornava-se amedrontador. De qualquer modo, Jenny o
amar a. E por isso, acim a de todas as outras coisas, Jack também
a amar a apaixonadam ente, Por isso ela lhe fazia tanta falta. Por isso e por
mil outros motivos.
Jack fec hou os olhos e deu as costas ao espelho. Não conseguia imaginar que
pudesse existir no mundo hom em que se sentisse mais só do que ele, naquele mo-
mento. Se pudesse existir solidão maior do que a sua... que Deus o ajudasse a
nunc a desc obri-la.
Voltou ao quarto, aproxim ou-se da cama e despediu-se da esposa. Beij ou-a,
aspir ou o perf um e de seus cabelos e saiu. As cinc o e meia em ponto, deixou o
hospital.
Na rua, sentado ao volante do carr o, olhava em volta. Pedestres, motor istas...
gente como ele. Não, não exatam ente como ele. Aqueles eram os habitantes do
outro lado do mundo, do “lado certo”, os bons, os bem educ ados, os justos, que
desvia r ia m os olhos ou mudar ia m de calç ada se soubessem que ele vivia de rou-
bar, que era um ladrão prof issional. Jam ais aceitar ia m a idéia de que eram os
verdadeir os culpados pelos crim es que com etia, assim como não aceitar ia m a
verdade mais simples: Jack jam ais te-ria se tornado crim inoso se eles, os justos,
os bons, não lhe tivessem feito o que fizer am... a ele e a Jenny.
Jack sabia que a amargur a não resolvia nada, apenas o fazia sentir-se mais
só, distanc ia do de seus sem elhantes. A amargur a era corr osiva, mas em mom en-
tos como aquele, a própria dor par ec ia-lhe bem-vinda, pois dava-lhe a sensaç ão
de que continua va vivo.
Mais tarde, depois de jantar sozinho num restaur ante chinês, Jack voltou ao
espaç oso apartam ento onde mor ava, num dos prédios mais elegantes da Quinta
Avenida, com vista para o Central Parque. Ofic ia lm ente, o apartam ento era pro-
prie dade de uma grande empresa com sede em Lic htenstein, que o comprar a e
pagar a com cheque visado contra um banc o suíç o; em sua conta eram debitadas,
mensalm ente, as despesas de condom ínio.
Jack Twist ali mor ava sob o nome de Philippe Delon. O pessoa l do prédio e os
pouc os vizinhos com quem conversava sabia m apenas que era filho de uma rica
fam ília franc esa e dava muito trabalho aos pais. Era uma espéc ie de ovelha ne-
gra, que a fam ília
dec idir a mandar para os Estados Unidos sob o pretexto de que alguém prec i-
sava supervisionar os investim entos. Na verdade, dizia-se, ninguém o quer ia na
Franç a. O disf arc e era perf eito, pois Jack falava franc ês flue ntem ente e era ca-
paz de conversar dur ante hor as em inglês, com perf eito sotaque estrangeir o, sem
com eter qualquer deslize que o tornasse suspeito. Clar o que não existia fam í-
lia franc esa e Jack era o únic o proprie tár io da empresa sedia da em Lic htenstein
responsável pela conta no banc o suíç o. Vivia das rendas que auf er ia investindo o
que roubava. Não era, de modo algum, um ladrão com um.
No apartam ento, dir igiu-se para o arm ár io do quarto, entrou e rem oveu uma
das divisões do fundo, dali retir ou duas malas,
que levou para a sala, coloc ando-as ao lado de sua poltrona favor ita, junto à
janela. Então foi até a cozinha e apanhou uma garr af a de cervej a no ref riger a-
dor. Voltou à sala, sentou-se e, na esc ur idão, fic ou olhando para o parque coberto
de neve, vendo os arabesc os capric hosos que as luzes desenhavam entre as som-
bras das árvor es desf olhadas.
Estava apenas adia ndo o mom ento de abrir as malas, e sabia disso. Afinal,
com um suspir o, acendeu o abaj ur ao lado da poltrona, puxou a mala menor para
mais perto, abriu-a e com eç ou a exam inar o que continha. Eram jóia s: colar es,
broc hes, pendants, brinc os de dia m antes; uma pulseir a de esm er aldas e dia m an-
tes; três brac eletes de dia m antes e saf ir as; anéis, broc hes, borrettes, pren-dedor es
de gravata, alf inetes de ouro. Fruto de um trabalho que ele próprio havia exec uta-
do, sozinho, seis sem anas atrás. De iníc io pensar a em levar mais alguém; contu-
do, à medida que os planos avanç ar am, chegar a à conc lusão de que não prec isa-
ria de ajuda e, como previr a, o assalto corr eu sem surpresas. A únic a surpre-
sa ocorr er a depois.
Norm alm ente, depois de conc luir um assalto bem planej ado e rigor osam ente
exec utado de acordo com os planos, Jack entrava num estado de exaltaç ão, quase
de euf or ia. Para ele, não se tratava apenas de roubar alguns inc autos, por ém de
algo mais: cada assalto bem-suc edido era como um golpe no queixo do inim igo,
uma lenta e inexor ável vinganç a contra o mundo que lhe roubar a Jenny e,
com ela, o próprio sentido da vida. Até os vinte e um anos, Jack dera ao país o
melhor de si mesm o, e o que rec eber a em troc a? Anos de prisão num chiqueir o
latino-amer ic ano, à merc ê de um ditador assassino. E Jenny...
Ele fec hou os olhos, respir ou fundo. Mesm o tantos anos depois, ainda lhe doía
a lembranç a de sua volta, do reenc ontro com Jenny, do estado em que a enc on-
trou quando, afinal, conseguiu loc alizá-la. Não! Já chegava de dar-se ao país, à
soc ie dade... Era hora de com eç ar a rec eber e, se a retribuiç ão não lhe vinha na-
tur alm ente, sabia onde proc ur á-la. Cada vez que voltava para casa com os bol-
sos cheios de jóia s ou de dólar es, sentia-se exaltado, euf ór ic o, quase feliz. A idéia
de que estava à margem da lei, e acim a das regras, sempre lhe causava prazer.
Assim fora, invar ia velm ente, até o dia em que roubar a aquelas jóia s. Em
casa, exam inando as pedras, Jack perc ebeu que não sentia nada: nem exc itaç ão,
nem euf or ia, nem prazer... nada. A desc oberta assustou-o porque, de qualquer
modo, o prazer perverso de sentir-se vingado ainda signif ic ava algum a coisa, era
um últim o laço que o mantinha ligado ao mundo, aos hom ens e à vida.
Sentado na poltrona, Jack vir ou a mala e espalhou as jóia s sobre os joe lhos,
na esper anç a de reenc ontrar suas antigas emoç ões. Separ ou algum as pedras,
aproxim ou-as da lâmpada. Em rigor, jam ais se perm itir ia deixar no apartam en-
to, por tanto tempo, as provas do roubo. Mas, por outro lado, de que lhe servir ia m
aquelas jóia s, se não lhe pudessem dar um pouc o de alegria? Sobranc elhas fran-
zidas, Jack voltou a rec olher as jóia s, guardou-as na mala e fec hou-a.
Na mala maior, estavam os dólar es da partilha do assalto ao arm azém da
Máf ia, cinc o dias atrás. Conseguir am abrir apenas um dos dois cof res, por ém en-
contrar am mais de três milhões de dólar es, mais de um milhão para cada um,
em notas de vinte, cin-qüenta e cem. Já era hora de com eç ar a converter o di-
nheir o em cheques que pudessem ser rem etidos para sua conta corr ente na Suí-
ça. No entanto, estava acontec endo com os dólar es o mesm o
estranho fenôm eno: Jack ainda não sentia prazer algum em tocá-los ou pen-
sar neles. Os dólar es também não lhe davam a ansia da sensaç ão de triunf o que o
mantinha à tona da vida.
Jack apanhou um maço de notas, exam inou-o, vir ou-o de um lado para outro,
aproxim ou-o do nar iz. O cheir o do dinheir o sempre lhe par ec er a exc itante, mas
aquele dinheir o par ec ia dif er ente, como os dia m antes: não lhe dizia nada, apenas
exalava o suor dos muitos dedos pelos quais passar a. Jack não se sentiu vitor ioso,
nem mais esperto que os otár ios do mundo, nem mais forte que a lei, nem mais
inteligente que os ratos hum anos que povoa vam as ruas do “lado certo” da vida,
cabisbaixos, fazendo o que lhes dizia m que fizessem. Sentiu-se oco.
Se aquilo tivesse acontec ido depois do assalto à Máf ia, talvez pudesse pensar
que o assalto o deixar a indif er ente porque roubar ladrões não era a mesm a coisa
que roubar os imbec is do “lado certo”. Mas... e os dia m antes? Fora um assalto
perf eito, à casa de um perf eito hom em de negóc ios, legítim o representante dos
ratos. Por que não preenc hia m seu vazio?
Um dos motivos que o levar a a planej ar novo golpe, logo depois do roubo dos
dia m antes fora exatam ente esse: estava preoc upado com o vazio que sentia no
peito. Uma das regras que jam ais desobedec ia era a de observar uma folga de
no mínim o algums meses entre um trabalho e outro. No entanto, uma sem ana
depois de roubar os dia m antes, já estava planej ando golpe ao arm azém da Má-
fia. Ora... e se o problem a fosse bem mais simples? Que importânc ia poder ia m
ter dia m antes e milhões de dólar es para um hom em que já não prec isava de
nada? Tinha dinheir o suf ic ie nte para viver com todo o luxo até o fim da vida e
manter Jenny até mesm o se ela lhe sobrevivesse, o que era pratic am ente impos-
sível. Talvez tivesse tentado enganar-se a si mesm o o tempo todo. Não busc ava
emoç ões que lhe dessem a impressão de estar vivo... O que quer ia, na verdade,
era dinheir o, milhões de dólar es... Como já tinha conseguindo acum ular a fortuna
com que sempre sonhar a, o dinheir o perder a a capac idade de emoc ioná-lo.
Jack franziu as sobranc elhas. Era razoá vel, mas altam ente improvável. Co-
nhec ia-se muito bem. Sabia exatam ente o que sentia ao conc luir um trabalho... E
sabia-o, sobretudo, pela falta que lhe fazia m, naquele mom ento, as últim as emo-
ções que ainda o mantinham vivo.
Algum a coisa estava acontec endo, uma mudanç a, uma transf orm aç ão, um
vazio. Não tinha planos, nem desej o algum, nem hor izonte à vista. Um calaf rio
perc orr eu-lhe a espinha. O que ser ia dele... se perdesse o prazer de sentir-se vin-
gado? Como poder ia continua r vivendo?!
Com gestos lentos, pensativos, rec oloc ou os maç os de dinheir o no saco onde
os guardava e repôs o saco na mala. Então apagou a luz e deixou-se fic ar no es-
cur o, beber ic ando a cervej a, os olhos perdidos na neve do parque.
Como se não bastasse o medo de ter perdido o últim o laço que o aproxim ava
dos hom ens, ainda havia o pesadelo, sempre o mesm o, repetindo-se com muita
freqüênc ia, dur ante sem anas, desde algum as noites antes do roubo das jóia s. No
sonho, ele tentava esc apar de um motoc ic lista de capac ete esc ur o... Era isso, pelo
menos lhe par ec ia, pois não se lembrava de quase nada além do capac ete: nem
moto, nem hom em, nem rosto... nada. Uma pessoa sem corpo e sem rosto perse-
guia-o a pé por salas e corr edor es, longos e sombrios corr edor es. As vezes ele
corr ia em campo aberto, por uma inf inita estrada deserta que rasgava a paisa-
gem, banhada pela luz esbranquiç ada do luar. Com o sonho, noite após noite, o
medo aum entava. Nas últim as noites, Jack despertar a aos gritos, sua ndo frio.
A interpretaç ão do sonho par ec ia óbvia: o hom em do capac ete era um polic i-
al; talvez a lei com eç asse a suspeitar dele, talvez Jack com eç asse a ter medo de
ser preso. Era estranho... Por mais óbvia que lhe par ec esse a idéia, Jack não con-
seguia conc entrar-se nela. O sonho dava-lhe outra sensaç ão. O hom em do capa-
cete não par ec ia ser da políc ia... não, não... Era outra coisa. Se, pelo menos, pu-
desse ter certeza de que não voltar ia a sonhar com aquele maldito capac ete... O
dia já havia sido tão dif íc il! Ele voltou ao ref riger ador, apanhou outra cervej a e
novam ente sentou-se junto à janela, na esc ur idão da sala.
Era o dia 8 de dezembro, e Jack Twist — ex-ofic ia l do Corpo de Brigadas de
Elite do Exérc ito norte-amer ic ano, guerr ilheir o treinado em guerr as de que pou-
co se ouviu falar, salvador de milhar es de vidas nos charc os da Amér ic a Central,
sobrevivente das tortur as que enlouquec er am seu melhor amigo, bem-suc edido
ladrão prof issional, hom em de cor agem quase sobre-hum ana — tentava desc o-
brir se lhe sobrava forç a para continua r vivendo. Se já não via sentido em roubar
para vingar-se do que havia m feito a sua vida, prec isava achar outra razão para
viver. E tinha que achá-la logo. Prec isava desc obrir algum a outra coisa. Prec isa-
va... desesper adam ente.
7. ELKO COUNTY, NEVADA
Ernie Block voa va pela estrada, sem ver as plac as de lim ite de veloc idade,
desesper ado para chegar logo ao Motel Tranqüilidade. Não se lembrava de ja-
mais ter corr ido tanto ao volante de um carr o, a não ser naquele dom ingo, no Vi-
etnã, quando servia no setor de Inteligênc ia da Mar inha. Dir igia então um jipe,
atravessando terr itór io alia do, e, de repente, sem saber como, vira-se apanhado
no fogo cruzado de dois pelotões inim igos. As balas passavam zunindo junto à sua
cabeç a, os morteir os arr anc avam lama da estrada, cada vez mais perto. Quando,
afinal, afastou-se da linha de fogo, havia rec ebido três fer im entos de estilhaç os
de granadas, estava tempor ar ia m ente surdo por causa das explosões, lutava para
manter o controle do jipe que ainda corr ia mesm o sem mais pneus nem lonas
nas rodas, e imaginava que jam ais con-seguir ia sentir tanto medo, nem que vi-
vesse mil anos.
Pela estrada, de volta a Elko, o Vie tnã com eç ava a par ec er-lhe brinc adeir a
de cria nç a. Com eç ava a esc ur ec er. Ernie tinha ido a Elko pouc o depois do alm o-
ço, a fim de comprar mantim entos para o motel; levar a o cam inhão e deixar a
Fay e enc arr egada de
atender à rec epç ão. Tinha tempo de sobra para ir e voltar antes do crepúsc u-
lo, mas o maldito pneu inventar a de fur ar, e para troc á-lo ele perder a minutos
prec iosos. E ainda perder a mais tempo na borr ac har ia, em Elko, porque não que-
ria retom ar a estrada sem estepe. Som ando uma coisa e outra, estava mais de
duas hor as atrasado, e o sol já se aproxim ava do hor izonte para os lados de Gre-
at Basin.
Pisando fundo no aceler ador, Ernie ultrapassou todos os outros veíc ulos que
transitavam pela rodovia. De um modo ou de outro, sabia que jam ais conseguir ia
chegar vivo em casa se a esc ur idão o surpreendesse na estrada. Pela manhã al-
guém enc ontrar ia o cadáver de um hom em agarr ado ao volante de um cam i-
nhão, ou, se sobrevivesse, achar ia m os restos do que havia sido, reduzido a trapos,
louc o fur ioso, gem endo e mordendo-se de horr or, depois de ter passado hor as
mergulhado na contemplaç ão da paisagem negra, em completa esc ur idão.
Desde o dia de Ação de Graç as, fazia duas sem anas e meia... e Fay e ainda
não desc obrir a nada. Depois que ela voltou de Wis-consin, Ernie não conseguia
dorm ir sem deixar acesa a lâmpada de cabec eir a, à qual se acostum ar a dur ante
os dias de solidão. Pela manhã, lavava os olhos com água bor ic ada ou gastava vi-
dros e vidros de colír io para enc obrir os sinais da noite maldorm ida. Por sorte,
Fay e não o convidar a para sair à noite, nem falar a em ir ao cinem a em Elko. Por
duas vezes tiver a que andar do esc ritór io até o restaur ante, já noite fec hada.
Eram apenas alguns passos ao lado da par ede do motel, pelo cam inho muito bem
ilum inado, mas Ernie chegar a a pensar que não conseguir ia, e que Fay e acabar ia
desc obrindo seu segredo. Sentir a-se frágil como nunc a, vulner ável, indef eso... e
quase enlouquec ido de medo. Mas conseguir a ir e voltar, e Fay e não suspeitar a
de nada.
Na Mar inha, e mesm o depois da baixa, Ernie jam ais deixar a de corr espon-
der ao que as pessoa s esper avam... Não era justo que Fay e, justam ente ela, fosse
a prim eir a a dec epc ionar-se com ele. Deus! As mãos agarr adas no volante do
cam inhão, os olhos fitando a noite que se aproxim ava, ainda enc oberta pelos últi-
mos
tons alar anj ados do poe nte, Ernie Block franziu as sobranc elhas. Com eç ava a
pensar numa explic aç ão que até então não lhe ocorr er a: senilidade. Podia ser...
senilidade prec oc e. Tinha apenas cin-qüenta e dois anos mas que outra explic a-
ção poder ia haver? Era terr ível, por ém menos assustador do que não enc ontrar
explic aç ão nenhum a.
Entender era fác il. Aceitar é que era dif íc il. Fay e dependia dele! Como po-
der ia perm itir que o carr egasse, como um fardo, pelo resto de seus dias... Um
velho doe nte! Nenhum dos Block jam ais deixar a a fam ília ao desampar o! Ne-
nhum dos mac hos Block poder ia perm itir que sua mulher assum isse as responsa-
bilidades e os enc argos da vida. Não! Impossível. Impensável!
A estrada contornava uma pequena elevaç ão do terr eno antes de chegar à
rodovia. Pouc o mais de um quilôm etro adia nte estava o motel, únic a construç ão
à vista na paisagem deserta. Fay e acender a o lum inoso de neon, que apar ec ia, ao
longe, contra o céu arr oxea do. Para Ernie, foi como a visão do par aíso.
Em alguns minutos a noite estar ia chegando. Ernie foi tir ando o pé do acele-
rador, com medo de atropelar alguém e ser obrigado a par ar antes de chegar em
casa. A agulha do veloc ím etro desc ia: cem, noventa, setenta e cinc o, cinqüenta...
Já estava quase na entrada do motel quando vir ou a cabeç a para o sul, para
longe da estrada. De repente, sem poder entender o que via, sentiu um arr epio na
espinha. Havia algum a coisa na paisagem... algum a coisa que, no lusgo-fusc o do
poe nte, delinea va-se em determ inado ponto, a menos de um quilôm etro a sua
frente. Uma voz inter ior dizia-lhe que ali estava a explic aç ão de todos os seus tor-
mentos.
Mas... o que havia com aquele lugar, aquele lugar em espec ia l? O que o tor-
nava dif er ente do resto da paisagem dos milhar es e milhar es de quilôm etros qua-
drados que Ernie conhec ia tão bem como o chão de sua casa, que já vira tantas
vezes?!
Na baixada do terr eno quase em frente ao motel, no aclive sua ve, um pouc o
antes, nos contornos da terr a, no barr anc o do ar-roio que corr ia silenc ioso, nos ar-
bustos, nas pedras roladas como
por acaso e espalhadas por todos os lados... havia algum a coisa que par ec ia
quer er falar-lhe. Algum a coisa mister iosa que esper ava, exigindo investigaç ão!
Era como se a própria terr a lhe gritasse: “Aqui, Ernie! E aqui que você enc ontra-
rá algum as das respostas de que prec isa... Aqui enc ontrar á parte da explic aç ão
de seus medos noturnos. Aqui...”
Era ridíc ulo e espantoso, mas Ernie viu-se estac ionando o cam inhão a menos
de quinhentos metros de casa. Quer ia ir até lá! Quer ia chegar ao ponto que atraía
sua atenç ão! Sentiu-se como um ilum inado, um esc olhido dos deuses, em plena e
glor iosa epi-fania, par ado dia nte das portas de uma revelaç ão monum ental, es-
pantosa.
Saltou do cam inhão e dispôs-se a atravessar a pista para chegar a uma eleva-
ção do terr eno, do outro lado, de onde poder ia ver melhor a fatia de terr a que o
hipnotizava. Prec isou esper ar que passassem duas carr etas antes de atravessar a
estrada. O cor aç ão batia-lhe forte, e Ernie esquec eu completam ente que a noite
já lhe chegava aos calc anhar es.
Par ou no acostam ento e esper ou, indif er ente ao frio e ao vento gelado que
soprava sem par ar.
Aproxim ava-se o mom ento... Algum a coisa terr ivelm ente importante estava
para acontec er... De repente, foi como se suas sensaç ões gir assem em redem oi-
nho sobre um eixo invisível e mudassem de dir eç ão: não! Algum a coisa já acon-
tec er a... exatam ente ali, naquele loc al! Não conseguia pensar, nem lembrar,
nem entender, mas não duvidava: o medo do esc ur o com eç ar a ali, em algum
mom ento de algum tempo... Ernie desc obriu que sabia de tudo... por ém jam ais
conseguir ia lembrar-se. A mem ór ia o traía e o trair ia sempre!
Louc ur a! Era impossível... Qualquer fato que tivesse ocorr ido ali e fosse suf i-
cie ntem ente importante para desenc adea r tantos efeitos em seu comportam ento
ter ia sido presenc ia do também por Fay e. Ernie não era esquec ido, distraído, ou
idiota... Não era hom em de reprim ir mem ór ia s perturbador as... Lutar a na guer-
ra,
enf rentar a inim igos, enc ar ar a a própria morte, e jam ais se abalar a com ne-
nhum dos horr or es de que fora testem unha.
Ainda assim, o suor gelado continua va a colar-lhe a cam isa às costas. Bem
ali, à frente de sua casa, à vista de todos, algum a coisa acontec er a com ele, um
relâmpago, uma fagulha de rea lidade que seu consc ie nte não conseguiu assim ilar
e sepultou para sempre nas sombras do esquec im ento. De repente, sem razão
apar ente, ele com eç ava a lembrar-se... como se uma pic ada de agulha, dur ante
a noite, inc ompreensível e repentina, o fizesse acordar de um pesadelo.
Cabeç a erguida, pés separ ados e plantados no chão com firm eza, peito aber-
to e forte, ombros poder osos, par ec ia desaf ia r o hor izonte. Quer ia ouvir o que
aquela paisagem tivesse para dizer-lhe, por mais assustador, terr ível, monstruoso
que fosse. Quer ia lembrar-se! Se conseguisse, talvez pudesse viver de novo como
antes, como um hom em! No entanto, assim como se abrir a por um instante, a
mem ór ia fec hou-se novam ente. A paisagem voltou a ser a mesm a de todas as
tardes, sem segredos, sem mistér ios, sem vestígios de acontec im entos insólitos.
Ernie sentiu-se murc har como um balão fur ado, sem trem or es, sem suor frio. No
peito, o cor aç ão retom ou o ritm o norm al e tranqüilo de todos os dias.
Ernie pisc ou, respir ou fundo e olhou em torno sem entender o que fazia no
acostam ento, longe do cam inhão. Pediu a Deus que Fay e não o visse da janela
do motel. Se, por acaso, ela se aproxim asse da porta e olhasse para a estrada,
certam ente ver ia a luz amar elada do pisc a-pisc a do cam inhão. Era a únic a luz
próxim a, uma únic a pequena luz brilhando na esc ur idão da noite que já envolvia
tudo. Apenas no hor izonte, longe, ainda havia uma nesga de sol amar elo-arr oxea -
do.
A noite! Foi como um murr o no peito. A exaltaç ão dos mom entos em que
quase se lembrar a tinham-no feito esquec er o medo da esc ur idão. Sem a exalta-
ção para protegê-lo, estava só, à merc ê da noite, em plena estrada. Gritou e dis-
par ou a corr er. Ouviu o ranger dos freios de um cam inhão que quase o atropelou,
ouviu o gem ido grave da buzina de uma carr eta que desviou do cami-
nhao, e continuou corr endo, aluc inado. A esc ur idão par ec ia agigantar-se a
seu redor, quase alc anç ando-o. Ele par ou um instante junto à porta do cam inhão,
os olhos fec hados, a nítida impressão de que a noite se instalar a na cabine do mo-
tor ista. Bastar ia abrir a porta para fazê-la esc apar para sempre, visc osa, densa...
Num últim o e desesper ado gesto, como se esc olhesse apressar a morte que o
esper ava, abriu a porta do cam inhão e ouviu-a bater contra a carr oc er ia. Sem
pensar, saltou para dentro da cabine. Nada... A noite não chegar a ali. Então era
prec iso fec har-se no cam inhão e esper ar. Olhos fec hados, os dentes batendo de
medo, ele tranc ou a porta e fec hou o vidro. A idéia de que estava a pouc os me-
tros de casa deu-lhe forç as para rea gir. Ernie gir ou a chave na igniç ão e viu os
far óis acender em-se a sua frente... Era luz! Sabia que não tinha condiç ões de vol-
tar à rodovia e aproxim ar-se do motel pela entrada princ ipal; no entanto, talvez
conseguisse controlar-se pelo menos até chegar ao portão de saída do estac iona-
mento. Foi o que fez. Quase sem sentir, manobrou o cam inhão e estac ionou-o
adia nte da janela da rec epç ão. Lá estava Fay e. Faltava apenas atravessar o pátio
do estac ionam ento.
Ao vê-lo aproxim ar-se corr endo, cabisbaixo, Fay e abriu a porta.
— Já com eç ava a me preoc upar — disse, sorr indo.
— O pneu fur ou...
Ernie cam inhou até o balc ão, sem levantar a cabeç a, fingindo que tentava
corr er o zíper da jaqueta. Prec isou de alguns instantes para sentir-se com cor a-
gem de olhar para Fay e e sorr ir. Mas estava em casa, ao lado da esposa, e isso o
devolvia a um estado bem próxim o da norm alidade, o suf ic ie nte, esper ava, para
que ela não desc onf ia sse de nada.
— Fiquei com saudade... — dec lar ou Fay e, de costas para o balc ão, arr an-
jando as pregas da cortina.
— Par ec e que saí há meses...
— E... Acho que estou apaixonada por você. Fiquei com saudade, como se
não o visse há muito tempo. Não posso viver sem você.
Fay e aproxim ou-se do balc ão, enc ostou-se ao lado do mar ido e beij ou-o.
Embor a estivessem casados havia muito tempo, seus beij os eram sempre sinc e-
ros e cheios de calor. Estavam juntos fazia trinta e um anos, mas os beij os de
Fay e ainda tinham o poder de rej uvenesc ê-lo.
— Comprou os mantim entos? E o mater ia l elétric o? As lâmpadas e as to-
madas que enc om endei? — Ela se afastou. — Desc arr egou o cam inhão?
— Não... — Ernie olhou sobressaltado para a porta por onde havia entrado.
— Estou cansado... Não quer o mais trabalhar hoje.
— Mas são só umas lâmpadas... Duas ou três caixas de latar ia...
— Sim, eu sei... — Ele sorr iu e deu-lhe as costas. — Juro que amanhã de
manhã carr ego todas as latas que você quiser. As caixas estão segur as no cam i-
nhão... Mas... — Olhou em torno, perplexo. — Você já prepar ou a rec epç ão! A
dec or aç ão de Natal... Está linda!
— Não diga que você perc ebeu! — Fay e riu alto.
Festões verdes, fitas verm elhas e dour adas, pinhas e bolas color idas enf eita-
vam a porta e a par ede sobre o sofá. Ao lado dos cartões-postais, um Papai Noel
em tam anho natur al curvava-se dando boas-vindas a quem entrasse. Sobre o bal-
cão, renas color idas puxavam um pequeno trenó de louç a, carr egado de presen-
tes.
— Você subiu na esc ada para pendur ar essas bolas? — Ernie ergueu os
olhos para o teto.
— Na esc ada pequena.
— Já lhe disse que é per igoso subir na esc ada quando não estou em casa. E
se você caísse?
— Pois também já lhe disse que não sou feita de porc elana, quer ido. —
Fay e olhou para o mar ido. — O problem a é que voc ês, velhos lobos-do-mar,
passam a vida quer endo se fazer de fortes. Os super-hom ens...
— E mesm o?
Alguém bateu com os nós dos dedos na porta da frente e entrou. Era um ca-
minhoneir o à proc ur a de um quarto para passar a noite. O cor aç ão de Ernie dis-
par ou, e ele só voltou a sentir-se segur o quando viu o hom em fec har a porta no-
vam ente. Tratava-
se de um suj eito alto e magro, de chapéu de cowboy, jaqueta e calç a de
brim. Fay e sorr iu para ele, elogiou o chapéu, como era seu costum e. Ela sempre
achava algum a coisa agradável para dizer a qualquer hóspede que chegasse e
conseguia fazer com que todos se sentissem à vontade, em segur anç a.
Ernie deixou-a preenc her a fic ha do cam inhoneir o e foi pendur ar o casac o
num dos ganc hos junto à porta. Depois dir igiu-se à mesa onde Fay e deixar a a
corr espondênc ia do dia: contas, como sempre, mater ia l de public idade, uma car-
ta pedindo donativos para uma assoc ia ç ão de car idade, o cheque de sua pensão,
o prim eir o cartão de Natal do ano, e um envelope branc o, com um, sem ender e-
ço do rem etente. Ernie abriu-o: continha apenas uma foto color ida, tir ada em
frente ao motel, junto à porta do quarto núm er o nove. Um hom em, uma mulher
e uma menina sorr ia m para a câm ar a. O hom em, com pouc o menos de trinta
anos, era mor eno e simpátic o. A mulher, também mor ena, par ec ia um pouc o
mais jovem. E a menina, entre cinc o e seis anos, era exc epc ionalm ente bonita. A
julgar pelos shorts e cam isetas que usavam e pelo sol que brilhava na par ede do
motel, devia m ter posado para o fotógraf o no auge do ver ão.
Intrigado, Ernie exam inou o verso da foto, à proc ur a de uma dedic atór ia ou
de qualquer identif ic aç ão. Nada. O envelope também não lhe serviu para saber
de quem se tratava. Pelo car imbo do corr eio, conc luiu que a fotograf ia havia sido
postada em Elko, no sábado anter ior, dia 7 de dezembro.
Voltou a olhar para as pessoa s retratadas, tentando lembrar se as conhec ia.
De repente, sentiu a nuca crispar-se, o cor aç ão dispar ar... exatam ente como no
mom ento em que desc obrir a aquela pequena porç ão de terr a junto à rodovia.
Assustado, deixou a foto cair sobre a mesa e vir ou o rosto.
Junto ao balc ão, Fay e continua va a conversar com o cam inhoneir o de cha-
péu de cowboy. Ernie a viu vir ar-se para apanhar uma das chaves pendur adas no
painel e não desviou os olhos. Fay e tinha o poder de acalm á-lo, mesm o de longe,
mesm o sem perc eber que ele a olhava. Já era linda quando a conhec er a e, na-
quele mo-
mento, tantos anos passados, par ec ia-lhe ainda mais bonita. Talvez os prim ei-
ros fios branc os com eç assem a apontar entre seus cabelos loir os mas ser ia dif íc il
perc ebê-los. Os olhos azuis e brilhantes da adolesc ente pela qual Ernie se apaixo-
nar a continua vam os mesm os, talvez mais lum inosos e, com certeza, mais madu-
ros e sábios. Fay e tinha o rosto aberto e franc o das mulher es de Iowa, às vezes
explosivas, mas sempre conf iá veis.
Quando, afinal, o cam inhoneir o se afastou, levando a chave, Ernie já se sen-
tia mais calm o. Levantou-se, apanhou a fotograf ia e levou-a até ao balc ão.
— Sabe o que é isso? — perguntou.
— Uma fam ília em frente ao quarto núm er o nove. — Fay e baixou os olhos
para a foto. — Devem ter passado por aqui. — Franziu as sobranc elhas, exam i-
nando os três rostos com mais atenç ão. — E... mas não me lembro deles. Nunc a
vi essa fam ília... E gente desc onhec ida.
— E por que nos mandar ia m uma foto? Sem nome, ender eç o, nada?
— Ora... Com certeza imaginar am que nos lembrar ía m os deles.
— Mas para isso ser ia nec essár io que tivessem fic ado vár ios dias aqui —
Ernie balanç ou a cabeç a, cada vez mais intrigado. — Que tivéssem os conversado
e nos conhec ido um pouc o melhor, pelo menos. Também tenho certeza de que
jam ais os vi. — Gostava de cria nç as e jam ais esquec er ia aquela menina se al-
gum dia a tivesse visto. — A gar otinha é linda.
— Mais dif íc il ser ia você esquec er a mãe da gar otinha — Fay e com entou,
rindo. — Par ec e artista de cinem a.
— Car imbo de Elko... — Ernie mal a ouviu. — Por que, dia bos, alguém sai-
ria de Elko para vir dorm ir aqui no motel?
— Talvez não mor em em Elko. Talvez tenham vindo nas fér ia s do últim o
ver ão. Tir ar am essa fotograf ia, voltar am para casa... No sábado, por acaso, pas-
sar am por Elko, lembrar am-se de nós e mandar am a foto.
— Sem nome nem ender eç o? Sem um cartão?!
— E... isso é estranho...
— Essas fotos já saem reveladas da câm ar a — ele pensou em voz alta. —
Por que não a deixar am conosc o antes de partir?
A porta,abriu-se outra vez, e entrou um rapaz de cabelos crespos e bigode
farto, esf regando as mãos geladas:
— Tem vagas? — perguntou, aproxim ando-se do balc ão. Ernie deixou-o
entregue a Fay e e voltou para junto da mesa de
carvalho. Tinha a intenç ão de reunir toda a corr espondênc ia e subir, mas dei-
xou-se fic ar, imóvel, pensativo, olhos fixos nos três rostos da fotograf ia.
Era terç a-feir a, 10 de dezembro, à noite.
8. CHICAG O, ILLINOIS
Quando Brendan Cronin se apresentou como atendente no Hospital Inf antil
São José, o dr. Jim McMurtry era o únic o a conhec er sua verdadeir a identidade.
O padre Wy c azik fizer a-o prom eter que guardar ia segredo e, também, que cui-
dar ia de dar muito trabalho a Brendan. Quanto mais desagradáveis as tar ef as,
melhor, rec om endar a o pár oc o. Assim, no prim eir o dia de trabalho, coube a
Brendan troc ar cam as de doe ntes graves, que deixavam os lenç óis empapados de
urina e fezes; limpar urinóis e privadas; auxilia r os fisioter apeutas nos exerc íc ios
passivos aplic ados a cria nç as com atosas; dar com ida na boca de um menino de
oito anos, par alític o; empurr ar cadeir as de rodas; limpar o vôm ito e lavar as rou-
pas de dois pac ie ntes de cânc er, constantem ente nausea dos por efeito da quim io-
ter apia. Ninguém se preoc upou em agradec er-lhe os serviç os nem o cham ou de
padre Cronin. Enf erm eir as, médic os, assistentes, pac ie ntes e faxineir os cham a-
vam-no simplesm en-tes de Brendan e não lhe perm itia m esquec er, nem por um
instante, a farsa em que se transf orm ar a sua vida.
Arr asado pelo sof rim ento daquelas cria nç as, ao final do prim eir o dia Bren-
dan esc ondeu-se no banheir o masc ulino, tranc ou-se por dentro e lá fic ou, chor an-
do. Fora obrigado a massagea r e movim entar artic ulaç ões de pac ie ntes de artrite
reum atóide, cuj as jun-
tas inc hadas e dolor idas mal suportavam o contato da gaze embebida em
anestésic o. Em rar os casos o anestésic o loc al conseguia alivia r a ardênc ia da
pele, sob a qual os ossos par ec ia m partir-se a cada exerc íc io. O calvár io das po-
bres cria nç as era quase insuportável. E havia ainda as que apresentavam músc u-
los atrof ia dos, fer idas pur ulentas e fétidas resultantes de queim adur as, mutilaç ões
causadas por espanc am ento e maus-tratos. Brendan chor ava por todas as suas
cria nç as.
Por mais que se esf orç asse, não conseguia entender o que o padre Wy c azik
pretendia com aquela ter apia pelo desesper o. Se ele já não era um hom em de fé,
por que o obrigava a conviver de perto com os lim ites do sof rim ento hum ano? Se
existia um Deus de miser ic órdia e amor, se Jesus rea lm ente vie r a ao mundo
para nos salvar, por que os inoc entes continua vam a sof rer, morr endo devagar,
um pouc o por dia? Ah, sim... Brendan conhec ia de cor os argum entos dos douto-
res da Igrej a: a hum anidade estava à merc ê da dor e do sof rim ento porque se se-
par ou de Deus, porque o esquec eu, porque ignor ou a graç a divina. Mas de que
valia m os argum entos teológic os frente aos gem idos de uma cria nç a dilac er a-
da pela dor?!
No segundo dia de trabalho, o pessoa l médic o ainda o cham ava de Brendan,
mas as cria nç as já havia m adotado o apelido de “Bolota”, que ele mesm o suger i-
ra aos pac ie ntes da enf erm ar ia, interr ompendo a leitur a de uma longa histór ia.
As cria nç as ador ar am a histór ia que Brendan leu, por ém gostar am muito
mais das outras que ele inventou ao sabor da fantasia, embalado pelos risos que
arr anc ava de alguns, pelos simples sorr isos de outros, pelo silênc io pac if ic ado de
tantos. Para algum as daquelas cria nç as, o silênc io era sinal de máxim a felic ida-
de, pois indic ava que, pelo menos, não ouvia m os próprios gem idos. Ao térm ino
do segundo dia, ele ainda chor ou, tranc ado no banheir o, mas apenas por alguns
minutos.
No terc eir o dia, o apelido gener alizou-se. Médic os, enf erm eir as, atendentes,
todos esquec er am-se de Brendan para sempre: nasc ia “Bolota”, o amigo das cri-
anç as. Se não conseguisse reenc ontrar
a fé, Brendan pelo menos já tinha como ganhar a vida. Poder ia empregar-se
como atendente em hospitais inf antis. Além de fazer tudo o que lhe cabia, ainda
enc ontrava tempo para distrair os pac ie ntes com suas histór ia s e car etas engraç a-
das. Pelos corr edor es, ouvia m-se, a todo instante, as vozes agudas das cria nç as
enf erm as, cham ando-o pelo velho apelido. E Brendan sentia-se rec onc ilia do, se-
não com Deus, pelo menos com a vida. Já não chor ava no banheir o dos hom ens.
As vezes, quando a lembranç a de algum de seus pequenos amigos lhe doía de-
mais, chor ava à noite, no quarto de hotel onde dorm ia desde que deixar a a casa
par oquia l.
Na quarta-feir a à tarde, exatam ente uma sem ana depois de ter sido adm itido
como atendente no hospital, Brendan afinal entendeu o que havia por trás dos pla-
nos do padre Wy c azik. Foi como uma ilum inaç ão — não divina, mas plenam ente
rac ional. Uma desc oberta súbita, repentina, que o colheu enquanto pentea va uma
das cria nç as.
Era uma menina de dez anos, Emm eline, pac ie nte de rara e gravíssim a
afecç ão óssea. Emmy, como todos a cham avam, orgulhava-se muito, e com ra-
zão, de seus lindos cabelos negros, fartos e brilhantes; sempre que podia, esc ova-
va-os sozinha, mas, às vezes, as artic ulaç ões das mãos e dos braç os doía m-lhe
tanto que ela mal conseguia segur ar a esc ova. Na quarta-feir a, Brendan acom o-
dou-a numa cadeir a de rodas e levou para a sala de raios X, onde os médic os re-
gularm ente fazia m o acompanham ento do efeito das drogas que a menina estava
tom ando. Uma hora depois, ele a rec onduziu ao quarto e com eç ou a esc ovar-lhe
os cabelos. Emmy olhava pela janela e, de repente, apontando para fora com o
dedi-nho def orm ado, perguntou:
— Está vendo aquela manc ha de neve?
Brendan olhou na dir eç ão indic ada, mas não viu nada além de uma manc ha
clar a sobre o cim ento cinzento do pátio interno do hospital.
— Par ec e um navio — explic ou ela. — Um lindo navio antigo, com três
velas cheia s de vento, voa ndo por cima das ondas.
De iníc io, Brendan não conseguiu ver nem navio nem velas
cheia s de vento, mas, aos pouc os, insistindo, perc ebeu que, de fato, a manc ha
de neve lembrava vagam ente a figur a que a menina continua va a desc rever com
detalhes cada vez mais ric os.
— E veja só os enf eites na janela — disse ela, depois de esgotar a desc ri-
ção do navio. — Até par ec e que a vidraç a vir ou árvor e de Natal!
Tudo que Brendan distinguia na superf íc ie do vidro eram gotas de água con-
geladas; no entanto, compreendia que a menina as transf orm asse nos enf eites co-
lor idos de uma fantástic a árvor e de Natal. Presa naquele hospital, de onde talvez
nunc a mais saísse com vida, ela prec isava imaginar para si mesm a um mun-
do rçie lhor.
— Deus gosta do inverno e da prim aver a — continuou Emmy. — As esta-
ções são dif er entes porque Ele não quer ia que a gente enj oa sse de ver tudo, sem-
pre igual, sempre a mesm a coisa... A irmã Kather ine disse isso, e agor a estou
desc obrindo que é verdade. Quando o sol bateu no gelo, ali do lado de fora, mi-
nha cama vir ou um arco-íris de verdade. E tão bonito, não é? A neve par ec e um
casac o de pele, todo branc o, enf eitando o mundo... E a gente, quando olha, fica
assim, de boca aberta... Por isso é que não existem floc os de neve iguais... e cada
um é mais bonito do que o outro... E para a gente não esquec er que Deus fez para
nós um mundo muito bonito.
Apesar da doe nç a que a def orm ava, Emmy continua va a acreditar em
Deus, na bondade divina, na perf eiç ão do mundo que Ele cria r a. Não era, aliá s, a
únic a cria nç a do hospital que manif estava tam anha fé. Muitos outros pac ie ntes
continua vam a viver na certeza de que um Pai gener oso e bom os guia va pela
vida, e esse pensam ento dava-lhes cor agem. Brendan quase adivinhava o que lhe
dir ia o padre Wy c azik: “Se essas pobres cria nç as sof rem tanto e nem assim per-
dem a fé, que desc ulpa miser ável você está tentando enc ontrar para o que lhe
acontec eu? E possível que, em sua inoc ênc ia e pur eza, essas cria nç as saibam
muito mais sobre Deus do que você, com seus longos anos de estudo em Roma...
Talvez saibam algo que você esquec eu... E talvez Deus estej a
lhe mandando um rec ado através delas. O que você acha? Pelo menos acha
possível?”
Era uma liç ão, sim, clar a, emoc ionante, mais ainda insuf ic ie nte para restau-
rar a fé em Brendan Cronin. O que o com ovia era a ser ena cor agem com que as
cria nç as enc ar avam o sof rim ento. A possibilidade de existir um Deus capaz de
dar liç ões aos hom ens, lanç ando mão de cam inhos tão tortuosos, não par ec ia ser
o ponto central do problem a.
Pac ie ntem ente Brendan continuou a esc ovar os cabelos de Emmy ; quando
term inou, tir ou a menina da cadeir a de rodas e coloc ou-a na cama. Enquanto pu-
xava os cobertor es e cobria as tristes pernas esquelétic as da enf erm a, sentiu cres-
cer dentro de si nova onda de fúr ia e revolta, a mesm a fúr ia que o invadir a du-
rante a missa na Igrej a de Santa Bernardette, dois dom ingos atrás. Se enc ontrasse
por ali algum cálic e sagrado ou uma bandej a repleta de hóstia s consagradas, cer-
tam ente os jogar ia no chão.
A menina gem eu, e Brendan imaginou que talvez ela adivinhasse o que lhe
passava pela cabeç a. Emmy, por ém, arr egalou os olhos:
— O que acontec eu, “Bolota”? Você se mac huc ou?
— Como...?
— Você queim ou as mãos?
Sem entender, Brendan baixou os olhos para as mãos e viu a mesm a coisa
que Emmy tinha visto: no centro de cada palm a havia uma marc a circ ular,
como se a pele estivesse queim ada e inc hada. Um anel verm elho de quase cinc o
centím etros de diâm etro, muito nítido, com bordas clar am ente delinea das. Par e-
cia que os anéis for am impressos na pele, mas, ao tocá-los com a ponta dos de-
dos, Brendan sentiu que as marc as tinham relevo.
— E estranho — murm ur ou.
O médic o que estava de plantão no pronto-soc orr o do hospital era o dr. Stan
Heeton que, naquele instante, exam inava atentam ente as marc as das mãos de
Brendan.
— Sente dor? — perguntou.
— Não.
— Coc eir a? Sensaç ão de ardor?
— Nada.
— Form igam ento, talvez? Também não? Já teve qualquer coisa par ec ida?
Na infânc ia?
— Não que eu saiba.
— Algum outro tipo de manif estaç ão alérgic a? Não... A um exam e superf i-
cia l par ec e uma marc a de queim adur a muito leve, mas você lembrar ia se, por
acaso, tivesse enc ostado as mãos em algum obj eto quente o bastante para quei-
má-las. Acho que podem os exc luir a hipótese de queim adur a. — O médic o fez
uma breve pausa antes de perguntar: — Você disse que levou a gar ota à sala de
radiologia?
— Sim, mas nem cheguei a entrar na sala de exam es.
— Não há o menor indíc io de que isso seja resultado de queim adur a por
radia ç ão. O mais provável é que seja uma derm a-tose, talvez uma inf ecç ão por
fungos, embor a os sintom as clínic os não conf irm em esse dia gnóstic o. Não há co-
ceir a, nem form igam ento. Além disso os anéis são muito nítidos, o que rar am en-
te acontec e nas inf ecç ões por Mic rosporum ou Tric hophyton.
— E então? — Brendan respir ou fundo. — O que pode ser?
O médic o hesitou por um instante e respondeu, levantando os
ombros:
— Nada sér io... Provavelm ente uma rea ç ão alérgic a. Se as marc as persis-
tir em, você dever á fazer alguns testes para identif ic ar o agente alergênic o.
O dr. Heeton afastou-se da mesa de exam es e dir igiu-se a uma pequena es-
crivaninha para preenc her o form ulár io de rec eitas. Brendan fic ou em silênc io
exam inando as estranhas marc as; depois cruzou os braç os e esc ondeu as mãos.
Sem levantar os olhos, ainda esc revendo, o médic o com entou:
— Vam os com eç ar com um tratam ento simples, à base de cor-tisona. Se
em dois ou três dias as marc as não desapar ec er em, volte ao consultór io. — Es-
tendeu-lhe a rec eita já pronta.
— Há algum risc o de contágio? — perguntou Brendan, apanhando o papel.
— O senhor sabe que trabalho com cria nç as e talvez...
— Não, não! Não se preoc upe. Não há o menor risc o de contágio. Agor a,
por favor, deixe-me dar mais uma espia da.
O padre mostrou-lhe as palm as das mãos e viu o dr. Heeton arr egalar os
olhos:
— Mas... Que dia bo é isso?!
Os anéis havia m sum ido.
Na mesm a noite, no quarto de hotel, Brendan voltou a mergulhar no sonho
que contar a ao padre Wy c azik e que fazia parte da rotina de sua vida. Viu-se dei-
tado em algum lugar desc onhec ido, com os braç os e os pés amarr ados às later ais
da cama. Uma pesada névoa envolvia tudo. De dentro dessa névoa apar ec ia m as
mãos que iam tocá-lo. Mãos enluvadas. As mesm as luvas pretas e brilhantes.
Ele despertou enr olado nos lenç óis, enc harc ado de suor. Sentou-se, acendeu a
lâmpada de cabec eir a, rec ostou-se nos travesseir os e esper ou que as imagens do
pesadelo se esvaíssem. De olhos fec hados, passou a mão pela testa e estrem ec eu.
Com medo do que poder ia ver, ergueu as palm as das mãos até os olhos e aproxi-
mou-se da lâmpada. Os dois anéis de pele verm elha e inf lam ada lá estavam, níti-
dos como no mom ento em que havia m apar ec ido, à tarde. Aos pouc os, por ém,
enquanto Brendan os exam inava, for am desapar ec endo, até sum ir em.
Era quinta-feir a, dia 12 de dezembro.
Sobre o márm or e polido da pentea deir a estava uma linda toa lha de croc hê
ric am ente trabalhada; sobre a toa lha, um par de luvas pretas e um oftalm osc ópio
de aço inoxidável.
Par ada junto à janela, à esquerda da pentea deir a, Ginger tinha o olhar perdi-
do no hor izonte, por cima das ondas de um mar cinzento como o céu daquela tar-
de de dezembro. A neblina conf er ia à paisagem uma espéc ie de lum inosidade di-
fusa e per olada. Nos lim ites da proprie dade dos Hannaby, próxim o à enc osta de
um roc hedo, via-se uma nesga de praia e um anc or adour o coberto de neve.
Havia neve também na trilha gram ada que subia em dir eç ão à casa.
Era uma casa muito grande, construída por volta de 1850, à qual se acres-
centar am vár ios côm odos em 1892, 1905 e, novam ente, em 1950. Uma alam eda
mur ada de tij olos conduzia até duas pesadas portas de madeir a da entrada princ i-
pal. Pilar es, colunas, capitéis, portais esc ulpidos em pedra, janelas emoldur adas,
balc ões de ferr o trabalhado, sac adas abertas para o mar, tudo contribuía para dar
à construç ão um aspecto imponente e maj estoso.
A proprie dade fora adquir ida, em 1884, pelo bisavô de George Hannaby, e já
naquela époc a tinha um nome, como as antigas mansões dos rom anc es ingleses.
Cham ava-se Mir ante do Mar, e era esse o detalhe que mais intim idava Ginger.
No Brookly n, onde nasc er a, as pessoa s mor avam em casas simples e anônim as.
No hospital, George Hannaby jam ais a fizer a sentir-se intim idada ou dim inu-
ída. Era uma figur a respeitável pela exper iê nc ia e pela autor idade, mas não dei-
xava de par ec er-se com qualquer mortal com um, desses que mor am em casas
norm ais. No Mir ante, tudo mudava: George era nobre e Ginger, plebéia. Não
que algum a atitude ou palavra marc asse qualquer lim ite intransponível para ela.
Nem que seus anf itriões fossem capazes de qualquer gesto menos afetuoso... O
que a fazia sentir-se desloc ada eram os fantasm as patríc ios da Nova Inglaterr a
que vivia m no Mir ante.
Ginger ocupava um dos apartam entos de hóspedes, composto de quarto, sala
e banheir o; embor a fosse o mais simples dos vár ios que havia no Mir ante, ofer e-
cia-lhe talvez mais espaç o e conf orto que sua própria casa. Um requintado tapete
em tons de azul e pêssego cobria o assoa lho de largas tábua s de carvalho. O
teto branc o contrastava harm oniosam ente com as par edes pintadas em sua ve cor
de pêssego.
Por todos os lados dispunham-se peç as antigas, transportadas no séc ulo 19
pelos navios merc antes do bisavô de George: lindas côm odas usadas como pente-
adeir as, mesas-de-cabec eir a, gavetei-ros para roupas.
As duas poltronas estof adas em seda, também cor de pêssego, havia m sido
compradas dir etam ente de uma fina loja franc esa. Os dois abaj ur es aos lados da
cama for am montados a partir de candelabros do mais delic ado cristal. Era tudo
perf eito, lindo, mas Ginger sentia-se como se cada porm enor servisse apenas
para impedi-la de esquec er que, ali, a apar ente simplic idade brotava de prof un-
das e robustas raízes de elegânc ia e tradiç ão.
Como já fizer a inc ontáveis vezes nos últim os dez dias, ela se aproxim ou da
pentea deir a e exam inou as luvas pretas; depois calç ou-as, flexionou os dedos, vi-
rou as mãos, à esper a de uma crise de medo. Quanto mais exam inava as luvas,
contudo, menos amea ç ador as lhe par ec ia m. Eram luvas com uns, compradas no
dia em que deixar a o hospital; não par ec ia m ter o poder de provoc ar-lhe qual-
quer tipo de crise. Tir ou-as, depressa, ao ouvir uma batida na porta.
— Está pronta, quer ida? — a voz de Rita Hannaby perguntou.
— Sim. Já estou indo!
Apanhou a bolsa e par ou um instante na frente do espelho. Usava um con-
junto de malha, composto de saia verde-clar a e blusa branc a com um pequeno
debrum verde junto à gola; sapatos e bolsa de cour o em perf eita harm onia com a
roupa; pulseir a de ouro, com a cor e o brilho de seus cabelos. Achou-se def initi-
vam ente chique... Ora, talvez não chique, mas razoa velm ente bem vestida.
A dec epç ão maior esper ava-a no corr edor. Mal pousou os olhos em Rita, sen-
tiu-se em desvantagem. Não estava nem mesm o apenas razoa velm ente bem
vestida. Par ec ia uma bonec a enf eitada... Uma aspir ante, amador a e inc ompeten-
te. Uma aprendiz de elegânc ia!
Magra, como Ginger, por ém um palm o mais alta, aos cinqüen-ta e oito anos
Rita par ec ia uma rainha, da cabeç a aos pés. Os cabelos castanho-esc ur os, trata-
dos por mãos de mestre, eram perf eitos. O rosto, se tivesse feiç ões ainda mais
regular es, par ec er ía sever o. Entretanto, uma boa alma simples e calor osa brilha-
va em seus belos olhos cinzentos, na pele de porc elana, nos lábios fartos, no sorr i-
so fác il. Rita usava tailleur cinzento, colar e brinc os de pér olas,
o chapéu tie feltro preto debrua do com uma fita de taf etá. O mais impressio-
nante naquele festival de ref inada elegânc ia era que nada, absolutam ente nada,
fora planej ado. Quem visse Rita Han-naby poder ia imaginar que passar a hor as
prepar ando-se para sair. Nao. Ginger tinha certeza de que ela já nasc er a com pé-
rolas, porte de rainha e guarda-roupa completo. Era um caso de elegânc ia con-
gênita.
— Você está... deslumbrante! — exc lam ou Rita.
— Perto de você, eu me sinto como se estivesse de jea ns desbotado e ca-
miseta velha.
— Bobagem! Você é mais bonita do que já fui ou ser ei. Esper e só para ver
a qual de nós o garç om atende melhor.
Ginger sabia que era bonita, nunc a perder ia tempo com falsas modéstia s,
mas era bonita como uma fada... Rita era dif er ente: tinha nobreza. Poder ia sen-
tar-se em qualquer trono e ninguém se atrever ia a duvidar de seus legítim os di-
reitos à rea leza.
Nao era culpa dela; desde a chegada de Ginger, tratava-a não como filha,
mas como irmã e amiga. Na verdade, Ginger sentia-se desloc ada no Mirante e
hum ilhada pela elegânc ia de Rita unic am ente por que sua vida estava em ruínas.
Até duas sem anas atrás, não sabia o que era depender de alguém para viver. E ali
estava, não só dependente da car idade alheia, como inc apaz de dar um passo so-
zinha pela rua. Rita dedic ava-se a ela em tempo integral, inventava passeios
agradáveis, proc ur ava assuntos que pudessem inter essá-la, esf orç ava-se ao má-
xim o para fazê-la esquec er os problem as. Em vão: como poder ia alguém deixar
de pensar que, aos trinta anos, estava reduzida à miser ável condiç ão de órfã po-
bre?
As duas desc er am juntas a esc adar ia de márm or e, apanhar am os casac os no
arm ár io do saguão e saír am, enc am inhando-se para o luxuoso autom óvel que as
esper ava dia nte da porta princ ipal. Herbert, uma espéc ie de cruzam ento de mor-
dom o com factó-tum, já ligar a o carr o e deixar a o motor gir ando para esquen-
tar. Não esquec er a, clar o, de ligar também a calef aç ão interna.
Exc elente motor ista, em pouc o tempo Rita deixava para trás as ruas tranqüi-
las dos bairr os residenc ia is e mergulhava no tráf ego intenso do centro da cidade,
em dir eç ão ao consultór io do dr. lmm anue l Gudhausen, na Rua State. A terc eir a
consulta de Gin-ger estava marc ada para as onze e trinta. O plano ter apêutic o
previa três sessões por sem ana —■ às segundas, quartas e sextas-feir as — até
conseguir em desc obrir as raízes psic ológic as do traum a que dava origem às cri-
ses de medo, às rea ç ões de fuga e à perda de consc iê nc ia. Nos mom entos de de-
pressão máxim a, Ginger jur ava que passar ia os próxim os trinta anos de sua vida
deitada no divã do dr. Gudhausen.
Rita planej ava fazer algum as compras dur ante a sessão e depois voltar para
busc ar Ginger e irem alm oç ar juntas. Como sempre acabar ia m com endo em al-
gum restaur ante elegantíssim o, cuja dec or aç ão, por simples que fosse, par ec er ia
o cenár io de uma peça de tea tro, na qual Rita era a estrela e Ginger fazia o papel
de garo-tinha que fingia ser adulta.
— Pensou no que eu lhe disse sexta-feir a passada? — Rita perguntou, sem
desvia r o olhar do trânsito. — O trabalho voluntár io no serviç o soc ia l do hospital?
— Não sei... Acho que vai ser meio... estranho.
— É um trabalho importante.
— Eu sei. Adm ir o muito o que você faz para arr ec adar fundos para o hos-
pital. Sei do equipam ento que conseguir am comprar com o dinheir o arr ec ada-
do... Mas acho que não estou prepar ada para voltar ao Mem or ia l. Não creio que
suportar ia estar tão perto... e ao mesm o tempo tão longe... do únic o trabalho que
sei fazer para ganhar a vida.
— Então não pense mais nisso, quer ida. Tem os outras coisas, como o Co-
mitê Pró-orquestra Sinf ônic a, a Assoc ia ç ão de Ampar o aos Velhos, a Com issão
de Assistênc ia Judic iá r ia aos Menor es... Você ser ia muito útil em qualquer um
desses grupos.
Rita trabalhava em vár ios com itês de assistênc ia soc ia l, não apenas organi-
zando-os, como, também, envolvendo-se pessoa lm ente no trabalho diá r io de
mantê-los em func ionam ento.
— Algum desses a inter essa? — insistiu. — Tenho a impressão de que você
gostar ia de trabalhar com cria nç as.
— Sim, mas... — Ginger respir ou fundo — já imaginou o que poder á acon-
tec er se eu tiver um ataque no meio das cria nç as? Elas morr er ia m de susto, e
eu...
— Ora, que bobagem! Você sempre diz a mesm a coisa quando insisto em
tirá-la de dentro de casa. “E se eu tiver um ataque no meio da rua?” A verdade é
que tem os saído muito, e até agor a você nao teve ataque nenhum. Com certeza
nunc a mais terá. Por ém, mesm o que tenha, agor a, no meio da rua, não vai me
fazer desistir, nem me deixar embar aç ada. Pouc as coisas no mundo conseguem
me embar aç ar.
— Sei que você não é uma violeta de estuf a... Mas não presenc iou um de
meus ataques. Não sabe como eu fico, nem do que
sou capaz...
— Você fala como se fosse o médic o e o monstro de saia s. Sei que não é
assim. Ainda não espanc ou ninguém até matar, espanc ou?
Ginger não podia deixar de rir.
— Você é impossível...
— Então está resolvido. Ótim o! Você vai ser muito útil a nosso grupo.
Com certeza, Rita não via em Ginger um simples caso novo que exigia a sua
atenç ão e boa parte de seu espír ito car itativo; já que fora enc arr egada de cuidar
dela, estava arr egaç ando as mangas e atir ando-se ao trabalho. Nada a deter ia até
conseguir a total rea bilitaç ão da jovem amiga. Suas atenç ões com ovia m Ginger,
por ém, ao mesm o tempo, deixavam-na ainda mais deprim ida, porque a fazia m
perc eber o quanto prec isava de cuidados.
O autom óvel par ou num sem áf or o; era o terc eir o veíc ulo da fila, cerc ado de
outros carr os, cam inhões, ônibus, táxis e vár ios cam inhões de entregas. Através
dos vidros fec hados, os ruídos da rua chegavam até Ginger como se vie ssem de
muito longe. Ao ouvir o som espec ia l de um motor, ela vir ou a cabeç a e olhou
para fora. Então viu uma grande motoc ic leta. No mesm o instante, o motoc ic lista
também olhou em sua dir eç ão. Não tinha rosto, mas apenas um visor espelhado
que se estendia da testa ao queixo.
Foi a prim eir a crise em mais de dez dias. Outra vez a névoa enc obriu tudo. A
únic a dif er enç a em relaç ão às outras crises foi a rapidez com que tudo aconte-
ceu. Não houve etapas, como no caso das luvas, do oftalm osc ópio ou da pia. Des-
sa vez Ginger sentiu-se mergulhar de repente, sem pausa, num ocea no de medo.
No mom ento em que seus olhos enc ontrar am o visor do capac ete, seu cor aç ão
dispar ou, a respir aç ão fic ou suspensa e ela desligou-se da rea lidade, perdendo-se
numa densa onda de terr or.
Prim eir o deu-se conta do som das buzinas. Buzinas de carr os, de ônibus, de
cam inhões. Guinc hos agudos, anim alesc os. Gem idos, zurr os, ganidos, latidos, ui-
vos. Então abriu os olhos. Ainda não conseguia ver com clar eza, mas perc ebeu
que continua va sentada no carr o. Pouc o adia nte, o sinal estava verde, por ém o
autom óvel par ec ia mais próxim o da calç ada, como que atravessado sobre o leito
da rua, obstruindo o trânsito. Por isso soa vam tantas buzinas ao redor.
Ginger ouviu-se soluç ar baixinho. E viu Rita inc linada para ela, segur ando-
lhe os punhos com forç a.
— Você está bem?
Sangue. Depois dos gem idos desesper ados, dos uivos e ganidos... havia san-
gue. A saia verde-clar a estava manc hada de sangue. Assim como suas mãos... e
as mãos de Rita!
— Oh, meu Deus...
— Você está bem?
Uma das unhas de Rita fora arr anc ada e pendia, presa por um fio de cutíc u-
la, balanç ando no ar. O dorso de uma de suas mãos par ec ia ter levado uma mor-
dida! Havia arr anhões também na palm a da mão. O sangue pingava da unha ar-
ranc ada, dos arr anhões e das mordidas. Os punhos do paletó cinzento estavam
empapa-dos de sangue.
As buzinas continua vam protestando, cada vez mais fer ozes.
Ginger levantou os olhos e viu que Rita, sempre tão impec ável, estava pálida
e desgrenhada. Na face esquerda um arr anhão
sangrava, e o sangue, esc orr endo pelo rosto, mistur ava-se à ma-quilagem e
pingava do queixo.
— Graç as a Deus! — Rita suspir ou alivia da. — Já passou.
— O que foi que eu fiz?
— Só me deu uns arr anhões. Nada grave. Você teve uma crise, entrou em
pânic o e tentou sair do carr o. Eu tratei de impedi-la por causa do trânsito.
Manobrando com dif ic uldade para passar ao lado, o motor ista de um carr o
gritou-lhes um palavrão.
— Eu feri você... — Ginger engoliu o suco amargo que lhe subiu pela gar-
ganta, a náusea cresc endo.
Rita continua va impassível, indif er ente às buzinas que soa vam ao redor. Sol-
tou os punhos de Ginger e tom ou-lhe as mãos com car inho.
— Já passou, quer ida. Está tudo bem. Só prec iso de umas pinc eladas de
mertiolate.
O motoc ic lista. O visor espelhado.
Ginger olhou pela janela à esquerda: aquele hom em sem rosto havia desapa-
rec ido. Apenas um rapaz com um passava com sua motoc ic leta ao lado do carr o,
sem intenç ão de amea ç á-la.
A lista aum entava: as luvas pretas, o oftalm osc ópio, o ralo da pia e, agor a, o
visor espelhado. O que poder ia haver de com um entre todos esses obj etos?
— Sinto muito... muito... soluç ou, as lágrim as esc orr endo-lhe pelo rosto.
— Esqueç a. Tem os que tratar de sair daqui. Rita abriu o porta-luvas, apa-
nhou um maço de lenç os de papel e limpou o volante e a alavanc a do câmbio,
ainda suj os de sangue.
Ginger afundou no assento estof ado, fec hou os olhos e tentou par ar de cho-
rar, mas não conseguiu. Era a quarta crise psic ótic a em cinc o sem anas. Chegar a
a hora de lutar. Não podia continua r cabisbaixa dia nte do próprio destino, figindo-
se dóc il e conf orm ada, esper ando a próxim a crise ou o passe de mágic a que
lhe explic asse tudo. Não! Prec isava fazer algum a coisa!
Era segunda-feir a, dia 16 de dezembro, e Ginger dec idiu agir
antes de sof rer uma quinta crise. Ainda não sabia por onde com eç ar, mas sa-
bia que enc ontrar ia um meio. Não podia mais ter pena de si mesm a. Toc ar a o
fundo do poço... o ponto extrem o de hum ilhaç ão, medo e desesper o. Acontec esse
o que acontec esse, não haver ia como pior ar as coisas. Só lhe restava com eç ar
a lutar pela vida. Como sempre fizer a. Ah... e haver ia de conseguir! Sempre con-
seguia... Ia sair do poço, voltar à vida, voltar à luz... E esquec er para sempre a es-
cur idão em que havia mergulhado.
TRÊS______________
Às oito hor as da manhã de terç a-feir a, dia 24 de dezembro, Dom Corvaisis le-
vantou-se e lavou o rosto, sentindo-se ainda tonto por causa dos muitos calm antes
e soníf er os tom ados na vésper a.
Era a déc im a prim eir a noite que dorm ia sem sonhos ou crises de sonambu-
lism o. A ter apia estava func ionando. Que mal pode-ria haver numa tempor ár ia e
controlada dependênc ia de rem édios, se, em pouc o tempo, acabar ia por livrar-se
da afliç ão constante de passar as noites per ambulando pela casa?
Não acreditava na possibilidade de tornar-se dependente, nem mesm o psic o-
logic am ente. Sabia que estava exager ando nas doses, mas ainda não era o caso
de preoc upar-se. Quando os vidros estavam quase vazios, inventou uma compli-
cada histór ia que envolvia um assalto a sua casa e conseguiu que o dr. Cobletz lhe
desse outra rec eita. Mentir a ao médic o para poder comprar os soníf er os e, agor a,
os mom entos de maior clar eza e luc idez eram rar os. Em ger al, seus dias passa-
vam como que envoltos em névoa, a sua ve névoa induzida pela sedaç ão quím ic a
constante. Já nem conseguia pensar no que poder ia acontec er em janeir o, quan-
do se esgotasse o prazo estabelec ido pelo dr. Cobletz para a tentativa de cura clíni-
ca.
Às dez hor as, inc apaz de conc entrar-se para esc rever, Dom vestiu uma ja-
queta de veludo e saiu. Fazia frio. De dezembro a abril, como em todos os anos,
as praia s estar ia m desertas, exc eto em alguns rar os dias um pouc o mais quentes.
Ao volante de seu carr o, desc endo para o centro da cidade, Dom via Laguna
Bea c h como que adorm ec ida sob o céu sombrio e cinzento. Chegou a ocorr er-lhe
a idéia de que talvez sua impressão fosse resultado do entorpec im ento provoc ado
pelos rem édios, mas logo ele tratou de fugir de tão per igosa linha de análise.
Consc ie nte de que não estava em pleno gozo de suas fac uldades de perc epç ão,
dir igia com extrem o cuidado.
A maior parte da corr espondênc ia que rec ebia chegava-lhe pela caixa postal.
Assim, tom ou o rumo do corr eio para rec olher o que houvesse chegado. Como
era assinante de muitas revistas, alugar a uma das gavetas maior es, que, sendo
vésper a de Natal, estava quase cheia. Dom nem se preoc upou em exam inar o
que lhe havia m mandado: reuniu todos os envelopes e revistas e voltou ao carr o
com a intenç ão de passar os olhos na corr espondênc ia enquanto tom asse o desj e-
jum.
Seguiu então para o Cottage, restaur ante popular e já tradic ional, um pouc o
acim a da estrada costeir a. A hora era tardia para o desj ej um e prem atur a para o
alm oç o, de modo que o restaur ante estava quase deserto. Dom esc olheu uma das
mesas com vista para o mar, sentou-se e pediu dois ovos com bac on, queij o, tor-
radas e suco de lar anj a. Enquanto mastigava, com eç ou a exam inar os envelopes.
Além das revistas e de algum as contas, havia uma carta de Lennart Sane, a ma-
ravilhosa agente sue c a que negoc ia va dir eitos autor ais de traduç ões na Esc andi-
návia e na Holanda, e um envelope da Random House. Ao ver o logotipo da edi-
tor a, ele adivinhou o conteúdo, e a exc itaç ão dissipou a névoa que ainda lhe en-
volvia o cér ebro. Dom largou a torr ada e abriu o envelope: continha o prim eir o
exemplar de seu prim eir o rom anc e. Hom em nenhum poder á saber o que uma
mulher sente quando, pela prim eir a vez, toma nos braç os o filho rec ém-nasc ido.
Mas um rom anc ista pode exper im entar uma sensaç ão muito sem elhante
quando, pela prim eir a vez, vê seu nome impresso no prim eir o exemplar de
seu prim eir o livro.
Dom não conseguia desvia r os olhos. Term inar a de com er e estava esper an-
do o café quando, com um sorr iso, dec idiu exam inar o restante da corr espondên-
cia. Entre outros, havia um envelope branc o, sem nome nem ender eç o do rem e-
tente, contendo apenas uma folha de papel com duas frases datilograf adas:
O sanâmbulo dev erá proc urar no passado a origem de seu problema. E lá que
está sepultado o segredo.
Atônito, Dom leu e releu a mensagem. Em sua mão, o papel trem ia. Ele co-
meç ou a suar frio.
2. BOSTON, MASSACHUSETTS
Ginger saltou do táxi e par ou um mom ento dia nte de um prédio de seis anda-
res, revestido de tij olos no melhor estilo vitor ia no. Uma raj ada de vento sac udiu-
lhe os cabelos e agitou os galhos nus das árvor es da Rua Newbury, num ruído
seco de ossos choc alhando. Ela curvou a cabeç a para enf rentar a ventania, pas-
sou pelo portão de ferr o trabalhado e entrou no edif íc io núm er o 127. Dur ante dé-
cadas ali func ionar a o Hotel Agassiz, um dos marc os histór ic os da evoluç ão da
cidade, agor a transf orm ado em prédio de apartam entos. E ali mor ava Pablo
Jackson, sobre quem Ginger sabia apenas o que lera no Boston Globe da vésper a.
Depois que George saiu para ir ao hospital e Rita foi fazer suas últim as com-
pras de Natal, Ginger esc apou de casa, ignor ando os rogos da empregada Lavinia
para que esper asse a patroa voltar. Deixar a um bilhete dizendo que estava bem e
não dem or ar ia; agor a rezava para seus anf itriões não se preoc upar em muito.
O próprio Pablo Jackson abriu-lhe a porta, e Ginger arr egalou os olhos. Esta-
va surpresa não por ele ser negro e ter mais de oitenta anos — esses detalhes já
havia m sido menc ionados no artigo do jornal —, mas pela inc rível vitalidade do
hom em a sua frente. Alto, com mais de um metro e oitenta, esguio, Pablo vestia
cami
sa branc a e calç a preta de vinc o perf eito; os cabelos, branc os e brilhantes,
davam a impressão de envolvê-lo numa aura mágic a e mister iosa. Com um ges-
to galante, convidou-a a entrar e cam inhou a sua frente indic ando-lhe o cam inho
com a elegânc ia de um hom em quar enta anos mais jovem.
Outra surpresa aguardava-a na sala de estar. Embor a não esper asse enc on-
trar um ambie nte digno de museu, fic ou deslumbrada com o aspecto moderno e
arej ado do aposento. Tudo era amplo, elegante, de exc epc ional bom gosto, desde
as par edes clar as até os amplos sof ás conf ortáveis. Um tapete color ido quebrava
a monotonia das linhas retas dos móveis, cria ndo a ilusão de um movim ento de
ondas mac ia s. Acim a do enorm e apar ador, um original de Pic asso atraía irr esis-
tivelm ente a atenç ão.
Ginger sentou-se numa das duas poltronas dispostas frente a frente, junto à
var anda. Agradec eu o café e respir ou fundo:
— Senhor Jackson, acho que com eç am os mal. Eu lhe menti quando fala-
mos pelo telef one.
— Uma conf issão... Não é mau com eç o — ele sorr iu, cruzou as pernas e
esper ou, as mãos de longos dedos negros desc ansando nos braç os da poltrona.
— Não sou repórter.
— Não trabalha no Peopie? — exam inou-lhe o rosto, atento. — Ora, tudo
bem. Soube que você não era repórter assim que a vi. Os repórter es, hoje em
dia, chegam à porta de nossa casa fingindo-se inter essados, ou inter essantes,
como pref er ir, mas sempre são muito arr ogantes. No mom ento em que a vi, pa-
rada à minha frente, tive certeza de que não era um deles.
— Estou prec isando de ajuda. E o senhor é a únic a pessoa que pode me
ajudar.
— Uma donzela em apur os? — Pablo não par ec ia nem zangado nem ansi-
oso para vê-la partir, como ela, de certo modo, rec ea r a.
— Imaginei que não conc ordar ia em falar com igo se eu lhe contasse a
verdade. Sou médic a, residente em cir urgia no Mem or ia l, daqui de Boston.
Quando li o artigo sobre o senhor, public ado ontem no Globe, pensei que talvez
pudesse me ajudar.
— Ser ia um prazer conhec ê-la, mesm o se vie sse apenas para me vender
assinatur as de revistas. Aos oitenta e um anos, um hom em não pode mais se dar
ao luxo de desperdiç ar qualquer chanc e de conhec er gente inter essante.
Ginger sorr iu, agradec ida por seu esf orç o para deixá-la à vontade. Tinha
boas razões para desc onf ia r que a vida soc ia l daquele velhinho de oitenta e um
anos era mil vezes mais exc itante que a sua. Pablo continuou:
— Além disso, nem mesm o um fóssil como eu deixar ia passar a oportuni-
dade de conhec er uma mulher tão bonita como você. Mas vam os ao que inter es-
sa. O que pensa que posso fazer para ajudá-la?
Sentada na beir a da poltrona, ela retesou-se e dispar ou:
— Antes de mais nada, gostar ia de saber se tudo que o Globe disse sobre o
senhor é verdade.
— Na medida em que pode ser verdade o que dizem os jornais... — Pablo
ergueu os ombros. — E verdade que meus pais viver am na Franç a, como amer i-
canos expatria dos; que minha mãe trabalhou como cantor a num café de Par is,
antes e depois da Prim eir a Guerr a Mundia l; que meu pai era músic o. Também é
verdade que eles conviver am com Pic asso e que perc eber am que era um gênio
muito antes de o resto da hum anidade entender isso. Eu me cham o Pablo em ho-
menagem a ele. Meus pais comprar am algum as obras de Pic asso nos tempos em
que ainda eram bar atas, e o próprio pintor lhes deu vár ia s telas de presente.
Meus pais eram pessoa s de bon goüt... bom gosto, como dizem os franc eses. Ja-
mais chegar am a possuir cem telas de Pic asso, como dizia o jornal, mas apenas
cinqüenta. O que, na verdade, foi mais do que suf ic ie nte para lhes dar conf orto
até o fim da vida e para me manter.
— E é verdade que o senhor trabalhou como mágic o?
— Dur ante mais de cinqüenta anos — Pablo riu e ergueu a mão dir eita
como se fizesse um jur am ento, rec onhec endo modestam ente o prodígio de sua
longevidade. Um belo gesto de prestidigitaç ão. Ginger surpreendeu-se, olhos
muitos abertos, esper ando que de
repente surgisse uma pomba branc a, ou um coe lho. — Cheguei a ser muito
fam oso. Sxnspareil, o melhor, sem dúvidas e sem modéstia. Sei que minha fama
foi maior na Eur opa do que na Amér ic a, mas, ainda assim, muita gente por aqui
falava e ouvia falar das minhas mágic as.
— Seu espetác ulo inc luía um ato de hipnotism o, não é? O senhor hipnotiza-
va alguém da platéia...
Pablo respondeu com um aceno de cabeç a:
— Era a melhor parte do show. O públic o fic ava deslumbrado.
— E agor a, pelo que diz o jornal, o senhor está trabalhando para a políc ia,
usando suas técnic as de hipnose em testem unhas de crim es... para fazer com que
se lembrem de detalhes que possam ter esquec ido.
— Sim, mas não é um trabalho regular e constante. — Ele fez um gesto no
ar, como que rec olhendo na cartola o coe lho, a pomba e quaisquer grandes espe-
ranç as que Ginger pudesse ter alim entado. — Nos últim os dois anos a políc ia me
proc ur ou apenas duas vezes, como últim o rec urso.
— Mas... o senhor conseguiu ajudar? As pessoa s se lembrar am do que ha-
via m esquec ido?
— Ah, sim... exatam ente como diz o jornal. Por exemplo... um hom em pa-
rado junto ao meio-fio pode ter visto, de relanc e, a chapa do carr o em que o cri-
minoso esc apou, mas a impressão não é suf ic ie nte para que ele a registre na me-
mór ia consc ie nte. O que acontec e é que, embor a não consc ie nte, o registro per-
manec e em sua mem ór ia. Isso é uma lei... nunc a esquec em os o que vem os ou
sentim os, mesm o que não tenham os consc iê nc ia de todas as impressões
que guardam os. O que a hipnose faz é conduzir a pessoa, através de um transe,
de volta ao passado: com isso é possível fazê-la reviver determ inada situa ç ão. No
caso da testem unha que dei como exemplo, basta pedir-lhe que olhe para o carr o
e “veja” o núm er o da chapa.
— E isso func iona... sempre?
— Não. Mas quase sempre.
— Por que a políc ia proc ur a o senhor? Os psiquia tras que trabalham para a
políc ia não conhec em as técnic as de hipnose?
— É possível que conheç am. Mas são psiquia tras, não espec ia listas em hip-
nose. Quanto a mim, como tenho anos de exper iê nc ia, acabei por desenvolver
um método próprio... técnic as própria s, que, em ger al, func ionam melhor do que
as técnic as conhec idas pelos psiquia tras.
— O senhor, então, é o melhor.
— Um expert... Sim, é verdade. Sou o melhor dentre os melhor es que exis-
tem. Mas por que isso lhe inter essa tanto, doutor a?
Ginger sentar a-se com a bolsa sobre os joe lhos, as mãos cruzadas. Mas, à
medida que falava sobre suas crises, foi entrelaç ando os dedos, cada vez com
mais forç a, até que as artic ulaç ões com eç ar am a doer, esbranquiç adas. A sua
frente, Pablo ouvia, atento, inter essado, deixando-se, aos pouc os, envolver por
sua estranha histór ia.
— Pobre cria nç a... — disse, afinal. — Esper e um mom ento. Esper e, por
favor. — Levantou-se de repente e saiu da sala. Quando voltou, trazia dois cálic es
de conhaque.
— Obrigada, senhor Jackson. Não costum o beber, princ ipalm ente a esta
hora.
— Por favor, me cham e de Pablo. Quanto à bebida, acho que você passou
a noite em clar o, mal tom ou seu desj ej um, e saiu. Seu relógio biológic o, portanto,
não está acertado com o relógio cronológic o das outras pessoa s. Para você, é
como se estivéssem os no meio da tarde, hora perf eita para um conhaque.
Dia nte do argum ento, Ginger aceitou a bebida. Pablo voltou à poltrona, e, por
alguns instantes, nenhum dos dois falou. Foi ela quem quebrou o silênc io:
— Prec iso que me hipnotize, que me faça regredir ao dia doze de novem-
bro, ao mom ento em que saí da Casa Bernstein. E aí que quer o par ar para que
você me interr ogue, até eu conseguir entender por que aquelas luvas pretas me
assustar am tanto.
— Impossível! — Pablo interr ompeu-a. — Não e não.
— Posso pagar...
— O problem a não é esse. Não prec iso de dinheir o. Sou mágic o, não sou
médic o.
— Já estou me tratando com um psiquia tra. Cheguei a suger ir que me hip-
notizasse... mas ele se nega a adotar esse tipo de ter apia.
— E deve ter suas razões.
— Segundo ele, é muito cedo para tentar uma regressão hipnótic a. Disse
que é possível que a hipnose ajude, mas que pode ser per igosa... que prec iso estar
prepar ada para enc ar ar a verdade. Uma conf rontaç ão prem atur a poder ia me le-
var a um... colapso... algum a espéc ie de surto depressivo.
— Conc ordo com seu psiquia tra. Ele sabe que...
— Talvez saiba o que é melhor para os outros pac ie ntes. — Gin-ger quase
gritou, lembrando-se do torm ento que eram as sessões de ter apia, obrigada a fa-
lar e falar, sempre com a sensaç ão de que perdia tempo e dinheir o. — Mas não
tem a menor idéia do que pode ser melhor para miml Se tiver que esper ar ainda
um ano antes de tentar a hipnose, já ter ei enlouquec ido completam ente, e a cura
não vai me servir de nada! Tenho que fazer algum a coisa! E o mais rapidam ente
possível... enquanto há tempo!
— Não posso assum ir uma responsabilidade que...
— Eu sei — Ginger interr ompeu-o, pousou o cálic e sobre a mesa ao lado
da poltrona e abriu a bolsa. — Sabia que você dir ia exatam ente isso. — Tir ou da
bolsa uma folha de papel datilograf ada. — Por favor, leia. — Pablo pegou o pa-
pel e desdobrou-o com mãos firm es.
— O que é isso? — perguntou.
— Uma dec lar aç ão firm ada por mim. Assum o total responsabilidade por
qualquer coisa que possa me acontec er. Você estar á isento de culpas, não poder á
ser proc essado, nem...
Ele devolveu-lhe o doc um ento, sem lê-lo.
— Não estou preoc upado em ser proc essado... A lei é muito lenta, e eu sou
muito velho. Em qualquer caso, já estar ei morto quando chegar a hora de ser jul-
gado pela justiç a dos hom ens. O problem a não é esse, doutor a. O problem a é
que, caso algum a coisa lhe aconteç a, eu mesmo jam ais me perdoa r ei... nem nes-
se mundo, nem no inf erno. E se você entrar em surto depressivo?
— Se não me ajudar agora, e se eu tiver que esper ar um ano para desc o-
brir o que vai ser feito de minha vida, vou entrar em surto depressivo muito antes
do que você pensa! — Ela se levantou, desesper ada, e prosseguiu: — Se me
mandar embor a agor a, se me obrigar a voltar para a casa onde estou, obrigada a
viver da car idade alheia, dependendo da bondade de alguns amigos... Se me
mandar para aquele maldito doutor Gudhausen, eu... não sei... — De repente, fal-
tou-lhe a voz. Ginger engoliu em seco, respir ou fundo. — Não é verdade... eu
sei... Estar ei condenada... Nao posso continuar a viv er assiml Se eu entrar em sur-
to amanhã de manhã... a culpa será sua! Porque pode me salvar e me rec u-
sou sua ajuda!
— Sinto muito, doutor a.
— Por fav or...
— Não posso.
— Negro desgraç ado! — Ginger par ou de repente, lábios entrea bertos,
horr or izada com o que acabava de dizer. Fec hou os olhos e gem eu baixinho, co-
brindo o rosto com as mãos. — Oh, Deus... Desc ulpe, desc ulpei — Deixou-se
cair na poltrona, esc ondeu o rosto entre as mãos e chor ou.
Pablo levantou-se e aproxim ou-se, calm o como sempre.
— Não chor e, doutor a Weiss, por favor. As coisas vão se resolver. Não de-
sesper e.
— Engano seu. As coisas nunc a vão se resolver para mim. Minha vida ja-
mais voltar á a ser o que era...
Antes de replic ar, ele tom ou-lhe as mãos, afastou-as do rosto e obrigou Gin-
ger a fitá-lo. Então sorr iu e mostrou-lhe a palm a da mão dir eita, para que se cer-
tif ic asse de que estava vazia. De repente, rápido, tir ou uma moe dinha pratea da
de dentro da orelha dela. E voltou a fic ar muito sér io.
— Está bem — disse, por fim. — Você conseguiu. Não estou convenc ido
de que devo fazer o que me pede, mas vou fazer. Nunc a, em oitenta e um anos,
consegui resistir a chor o de mulher bonita.
Em vez de par ar de chor ar, Ginger com eç ou a soluç ar alto, alivia da, indif e-
rente às lágrim as que lhe corr ia m pelo rosto. Talvez, finalm ente, com eç asse a
surgir uma esper anç a...
— ... e agor a você está dorm indo, dorm indo... dorm indo prof undam ente...
Está relaxada, solta, cada vez mais solta... e vai responder a minhas perguntas.
Está bem?
— Sim...
— Você não pode se rec usar a responder. Não pode se rec usar. Você vai
responder. Vai dizer a verdade.
As cortinas das três grandes janelas da sala estavam fec hadas e as luzes apa-
gadas. Uma únic a lâmpada brilhava, amar elada, ao lado da poltrona onde Ginger
estava sentada. A luz ref letia-se em seus cabelos e cria va-lhe uma aur éola dour a-
da ao redor do rosto muito pálido. A frente da poltrona, Pablo observava-a, aten-
to. Era uma mulher muito bonita, de uma beleza doce e frágil. Algum a coisa, po-
rém, por trás do rosto de linhas perf eitas, mostrava uma alma de guerr eir a, uma
alma forte, quase masc ulina.
Juste milie u... o meio-term o perf eito, o equilíbrio vital, o corte de ouro dos
clássic os... os contrár ios em harm onia... beleza e car áter em doses iguais.
Ginger mantinha olhos fec hados, mas Pablo perc ebeu, por baixo das pálpe-
bras cerr adas, a intensa atividade das pupilas. Sinal de transe prof undo. Voltou en-
tão a sua poltrona, mergulhada nas sombras da sala, sentou-se e cruzou as pernas.
— Por que é que você tem medo das luvas pretas? — perguntou em voz
baixa.
— Não sei.
— Não esqueç a que você tem que dizer a verdade. Não pode mentir, não
pode esc onder nada... Agor a responda... por que tem medo das luvas pretas?
— Não sei.
— E por que tem medo do oftalm osc ópio?
— Não sei.
— Por que tem medo do ralo da pia?
— Não sei.
— Você conhec e o motoc ic lista da Rua State?
— Não.
— Então, por que teve medo dele?
— Não sei.
Franzindo as sobranc elhas, Pablo suspir ou e balanç ou a cabeç a.
— Tudo bem. Vam os fazer uma via gem no tempo. Par ec e impossível, mas
e possível e até bem fác il. Você vai via j ar de volta à infânc ia. Não há como re-
sistir... O tempo é um rio corr endo para trás... para trás... cada vez mais para trás.
Já não estam os no dia vinte e quatro de dezembro... o tempo continua a corr er
para trás... dia vinte e três... vinte e dois... vinte e um... — E continuou até chegar
ao dia doze de novembro. — Agor a você está na Casa Bernstein, esper ando o tro-
co. Está sentindo o cheir o dos paes? Dos temper os? Diga... que cheir os são esses?
Ginger inspir ou, o rosto transf igur ado. Sua voz soou dif er ente, anim ada, ale-
gre:
— Castanhas assadas... pic les... pães de mel... café... Choc olate! Sinta esse
cheir o! E bolo de choc olate!
— Ótim o! Agor a você já rec ebeu o troc o...
— Esquec i a carteir a! — interr ompeu-o.
—- Então volte ao balc ão e apanhe a carteir a. Ótim o... Você está andando
para a porta, tentando abrir a bolsa...
— ...guardar a carteir a... Tenho que fazer uma limpeza nessa bolsa...
— O pac ote de compras está no braç o esquerdo... Agor a! Paftl Você esbar-
ra no hom em do chapéu russo. Ele segur a o pac ote e não o deixa cair...
Sobressaltada, Ginger agitou-se na cadeir a.
— Oh! — exc lam ou, levantando a cabeç a de repente.
— Ele lhe pede desc ulpas. Diz que a culpa foi dele.
— Oh, não. Foi minha! — Ela já não falava com Pablo, e sim com o ho-
mem das luvas pretas. — Não vi o senhor entrar... Oh, estou ótim a. Obrigada.
— Ele lhe devolve o pac ote. Você agradec e... — Pablo desc ru-zou as per-
nas e curvou-se para a frente a fim de observá-la de perto. — Então... você vê as
luvas pretas.
A transf orm aç ão foi violenta e instantânea. Ginger saltou na
poltrona, costas retas, tensa, e abriu os olhos como se fosse uma bonec a de
louç a.
— As luvas... Meu Deus! As luvas!
— Fale... Como são essas luvas?
— Brilhantes.
— E o que mais?
— Não!— ele gritou e levantou-se.
— Por favor, sente-se — Pablo pediu-lhe, sem alter ar a voz. Ginger não se
moveu, como que par alisada no meio de um movim ento de fuga. Não corr eu,
mas também não voltou a sentar-se.
—Estou-lhe dizendo para se sentar e acalm ar-se.
Por fim ela sentou-se, mas continuou com as costas muito re-« tas, as mãos
fec hadas com forç a, ainda tensa. Os olhos continua vam arr egalados, fixos no
rosto de Pablo, mas não vendo senão o par de luvas pretas. Par ec ia um anim al
pronto para saltar e fugir à prim eir a amea ç a.
— Está tudo bem... Você está calm a... cada vez mais calm a... mais cal-
ma...
— Sim... estou calm a... — A respir aç ão tornou-se um pouc o mais lenta, os
ombros mover am-se de leve, por ém Ginger continua va tensa.
Pablo sempre conseguir a controlar qualquer pessoa que hipnotizasse. E agor a
depar ava com algum a coisa muito estranha: aquela moça continua va a resistir à
sugestão hipnótic a. A partir de certo ponto, ele dec idiu contra-atac ar:
— Então fale sobre as luvas pretas — disse, atento e ansioso.
— Oh, Deus... — O belo rosto crispou-se de medo.
— Acalm e-se... relaxe... e fale sobre as luvas pretas. Por que tem medo
das luvas pretas?
— Não... não deixe que elas me toquem! Não\
Ginger cruzou os braç os sobre o peito e enc olheu-se na poltrona.
— Agor a esc ute bem..,. — Pablo aproxim ou a poltrona. — O tempo está
suspenso. O relógio não anda mais, nem para a frente nem para trás. As luvas
não podem toc ar em você. Não vou perm itir que cheguem perto de você, fique
tranqüila. Tenho o po-
der de fazer o tempo par ar, e já o par ei. Nada vai lhe acontec er. Você está
segur a... Está me ouvindo?
— S-sim... — Ainda havia medo e inc erteza em sua voz e ela continua va
enc olhida no fundo da poltrona.
Cada vez mais intrigado, Pablo observava-a. Ginger continua va como que
par alisada pelo medo, apesar do transe prof undo e das instruç ões clar as para
acalm ar-se.
— Lembre-se, o tempo par ou — disse ele. — Você está segur a porque não
vou perm itir que as luvas pretas se aproxim em. Pode exam iná-las à vontade... e
diga-me por que a assustam tanto.
Sem responder, ela com eç ou a trem er.
— É muito importante. Olhe bem... — Pablo calou-se um mom ento e dec i-
diu mudar a linha das perguntas. — Tem certeza de que são as luvas que lhe dão
tanto medo? São essas luvas?
— Não... não essas luvas...
— As luvas pretas que você está vendo apenas a fazem lembrar de outras
luvas... é isso? Outras luvas... que você viu em outro lugar... talvez há muito, muito
tempo... E isso?
— Sim! E isso!
— E quando foi que você viu as outras luvas? Quando?
— Não sei.
— Eu sei que você sabe. — Ele se levantou, deu alguns passos pela sala,
sempre de olhos postos na figur inha dour ada, enc olhida em sua poltrona, trem en-
do de medo. — Muito bem, vam os soltar o tempo, mas sem interr omper nossa
via gem para o passado. Vam os para trás... para trás... até o dia em que você viu
as verdadeiras luvas pretas... As prim eir as... As prim eir as que a assustar am. Es-
tam os indo... indo... já quase chegando... Agor a! Você está dia nte das verdadeir as
luvas pretas.
Na poltrona, olhos esbugalhados, Ginger não via nem a sala de estar de Pablo
Jackson, nem a loja de doc es e salgados. Estava no passado, em algum ponto per-
dido no passado.
— Onde você está? — ele perguntou, ansioso, debruç ado sobre a poltrona.
— Prec isa me dizer onde está... Não pode mentir.
— O rosto... — ela gem eu baixinho, a voz tão aterr or izada que
Pablo sentiu um calaf rio perc orr er-lhe as costas. — O rosto... sem rosto...
— Explique melhor. Que rosto é esse? Desc reva o rosto que você está ven-
do.
— As luvas pretas... o rosto de vidro... esc ur o.
— Mas... o que está dizendo?... Um rosto como o do motoc ic lista... O capa-
cete?
— As luvas... o visor... — De repente, um espasm o de medo sac udiu-a.
— Calm a, calm a... Está tudo bem, você está segur a. Eu estou aqui... Agor a,
fale. Ainda está vendo um hom em de capac ete, com o visor sobre o rosto... e
usando luvas pretas?
Vindo de algum lugar indef inível, o som enc heu a sala. Era algum a coisa
como um lam ento, um gem ido, um soluç o, saído não da garganta, mas de dentro
do corpo... Vinha de Ginger. Era um ganido de terr or.
— Acalm e-se... Relaxe... acalm e-se. Ninguém pode feri-la. Você está em
segur anç a... — Cada vez mais assustado, Pablo ajoe lhou-se dia nte da poltrona,
acar ic ia ndo o braç o de Ginger com movim entos sua ves e lentos, tentando evitar
o risc o de prec isar fazê-la despertar do transe antes do mom ento previsto. — Fale
para se livrar disso... Onde você está? Está muito longe? Quando é esse mom ento
em que você está?
O ganido de terr or transf orm ou-se em uivo. Um brado sem tempo ou lugar.
A resposta tortur ada de milênios de medo suf oc ado.
Pablo retesou-se frente à poltrona. Quando falou, já não havia sua vidade em
sua voz, mas um com ando frio e firm e:
— Estou controlando sua mente. Você está dorm indo e eu controlo seu pen-
sam ento. Não pode fazer nada que eu não queir a e deve fazer tudo que eu man-
dar. Eu lhe ordeno que fale.
Ela saltou na poltrona, como se rec ebesse uma desc arga elétric a, mas não
falou.
— Responda. Onde é que você está?
— Em lugar nenhum.
— Onde?
De repente, ela par ou de trem er. Os braç os, que continua vam cruzados sobre
o peito, soltar am-se e caír am ao lado do corpo, inertes. Como por enc anto, o
medo desapar ec eu do rosto, dos olhos, dos gestos. Em voz muito frac a, inexpres-
siva, Ginger, afinal, respondeu:
— Não estou em lugar nenhum. Eu estou morta.
— Não é verdade.
— Eu estou morta — repetiu.
— E importante que você me diga onde estão as luvas que lhe causam tan-
to medo. E importante para você... se cur ar. Se me disser, o pesadelo estar á ter-
minado. Quer o saber onde estão essas luvas que lhe fazem tanto mal. E impor-
tante que você fale.
— Eu estou morta...
Pablo continua va ajoe lhado dia nte da poltrona, os olhos fixos no rosto de Gin-
ger. Por isso, porque estava próxim o e atento, viu que sua respir aç ão tornava-se
irr egular. Toc ou-lhe a mão e sentiu-a inerte, gelada. Rápido, tom ou-lhe o pulso e
com eç ou a contar. A pulsaç ão irr egular... com eç ava a fugir! Em pânic o, loc alizou
a veia do pesc oç o. Quase nada: apenas um latej ar lento, muito frac o.
Ela estava entrando num transe muito mais prof undo que o produzido pela
hipnose! Estava tentando fugir para algum ponto ainda mais distante, para não
ouvir a voz que a guia va e não ser obrigada a responder as perguntas. Mas... ser ia
possível?! Ser ia possível que alguém dec idisse morr er, par ar de respir ar, deter o
cor aç ão... apenas para não ter que responder algum as perguntas?
Ao longo da vida Pablo Jackson enc ontrar a as mais estranhas rea ç ões de blo-
queio a lembranç as traum átic as. A liter atur a psic analíti-ca, entre outras, era pró-
diga em relatos de casos de bloqueios inc onsc ie ntes, de def esas inc onsc ie ntes
face a lembranç as assustador as ou dolor osas. Que exper iê nc ia poder ia ser tão
terr ível a ponto de fazer com que uma mulher jovem, saudável, inteligente, boni-
ta, pref er isse morr er a ter que enf rentar uma simples rec ordaç ão?!
Toc ando-lhe o rosto, aflito, ele resolveu:
— Chega de perguntas. Você pode voltar. Não vou perguntar mais nada.
Não prec isa dizer coisa algum a.
Ginger fez um movim ento com os lábios quase imperc eptível. Par ec ia sus-
pensa entre a vida e a morte, tentando dec idir que cam inho esc olher.
— Acredite... Juro que não vou mais lhe pedir que fale. Juro! — Os dedos
ainda colados a seu pulso, Pablo sentiu que o batim ento, aos pouc os, voltava à
norm alidade. — Acabar am-se as perguntas... Pode voltar... Volte...
Ginger inspir ou prof undam ente uma, duas, três vezes, a cor retornando-lhe
aos lábios. Em pouc os minutos, retornava ao presente, na poltrona da sala de es-
tar, e estava desperta.
— O que houve? — perguntou, olhando ao redor. — Já sei... Você nao con-
seguiu me fazer via j ar muito, não foi?
— Meu Deus... — Pablo desabou sobre sua poltrona. — Se você soubesse...
Via j ou muito, doutor a! E para muito longe...
— Você... está trem endo... Por quê? O que acontec eu?
Foi a vez de Ginger corr er até o bar e voltar com a garr af a para repetir a
dose de conhaque.
Pouc o depois, ao despedir-se de Pablo para entrar no táxi que ele cham ar a
pelo telef one, Ginger ainda dizia:
— Juro que não tenho a mínim a idéia do que acontec eu. Tenho certeza ab-
soluta de que jam ais passei por qualquer exper iê nc ia tão traum átic a a ponto de
me fazer pref er ir a morte à lembranç a. Não faz sentido!
— Faça sentido ou não, há um traum a em seu passado. Um traum a que en-
volve um hom em de luvas pretas, um hom em com um “rosto sem rosto”, como
você disse, “o rosto de vidro esc ur o”. Provavelm ente, um motoc ic lista, como o
que você viu na Rua State e que tanto a assustou. Essa lembranç a está soterr ada
em seu passado, no inc onsc ie nte mais prof undo... e você não par ec e sinc er am en-
te inter essada em fazê-la vir à luz. Meu conselho é que conte a seu psiquia tra o
que acontec eu hoje, e deixe que ele esc olha a melhor ter apia a ser seguida.
— Gudhausen é tradic ional, anda muito devagar. Quer o que você me aju-
de.
— Não posso arr isc ar sua vida. De modo algum conc ordar ei em hipnotizá-
la outra vez.
— A menos que enc ontre algum a ref er ênc ia a qualquer outro caso como o
meu... Você prom eteu pesquisar.
— Não esper e muito de minhas pesquisas — Pablo sorr iu. — Na verdade,
estou pesquisando há mais de cinqüenta anos e nunc a li nada sobre o tipo de rea -
ção que você apresentou.
— Você prom eteu...
— Prom eti pesquisar. E só isso que vou fazer.
— Prom eteu também que, caso enc ontre algum a ter apia razoá vel para tra-
tar um bloqueio como o meu, vai testá-la em mim.
Continua va aturdida, por ém sentia-se inf initam ente mais calm a do que quan-
do chegar a à casa de Pablo Jackson. Pelo menos havia m conseguido enc ontrar
uma hipótese de trabalho, embor a ainda não soubessem exatam ente o que signi-
fic ava ou até onde poder ia levá-los. Tinham uma equaç ão: bastava desc obrir a
fórm ula que a tornar ia compreensível. Havia um nó em algum ponto de seu pas-
sado. Quando o loc alizassem, no espaç o ou no tempo, estar ia aberta a possibilida-
de de cura def initiva. Ser ia o fim das crises e do medo.
— Conte tudo a seu psiquia tra — Pablo insistiu.
— Tenho pouc as fic has e pref ir o apostar todas em você.
— Você é teim osa.
— Não. Sou apenas dec idida e persistente.
— Teim osia.
— Firm eza. Dec isão.
— Acharnemenú
— Chegando ao Mir ante, vou proc ur ar um dic ionár io de franc ês e desc o-
brir se é um insulto. Se for, você vai ouvir pouc as e boas quando eu voltar para a
próxim a sessão. Até quinta!
— Não adia nta vir na quinta-feir a — preveniu Pablo. — Prec iso de algum
tempo para pesquisar. E não vou hipnotizá-la novam ente enquanto não enc ontrar
algum tipo de explic aç ão teór ic a conf iá vel para o que acontec eu hoje, e enquan-
to não souber exatam ente o que fazer em term os de ter apia.
— listá bem. Esper o até sexta ou sábado. Se você não telef onar até lá, pode
se prepar ar porque estar ei sentada aqui na soleir a da porta, ao lado do leite e do
pão, à esper a. — Ginger fitou-o nos olhos, com tristeza. — Você é minha únic a
esper anç a.
— Pobre menina... — ele suspir ou. — Não alim ente grandes esper anç as.
— Nao há per igo, porque só tenho uma... você. — Ginger ergueu-se na
ponta dos pés e beij ou-o no rosto.
— Au ívv oir. Não prec isa de dic ionár io... signif ic a “até breve”.
— Shãlon. Também não prec isa de dic ionár io... quer dizer “fique em paz”.
Na calç ada, dir igindo-se para o táxi que a esper ava, lembrou-se de uma das
frases pref er idas de seu pai. Uma frase sábia e rea lista que, de algum modo, ser-
viu para contrabalanç ar a impressão de que tudo estava com eç ando a melhor ar
apenas porque conseguir a dar um prim eir o passo: “O mom ento mais clar o do dia
é sempre o últim o, antes que desç am as sombras da noite”.
3. CHICAG O, ILLINOIS
Winton Tolk, o patrulheir o alto, preto e sempre sorr idente, saiu da via tur a
para comprar três sanduíc hes e três ref riger antes no bar da esquina, deixando
Paul Arm es ao volante e o padre Brendan Cronin no banc o traseir o. Brendan via
a entrada do bar, mas não o que se passava lá dentro, porque as vitrines brilha-
vam, cobertas de desenhos e cartazes color idos: Papai Noel, renas, festões ver-
des, fitas verm elhas, anj os e estrelas. Nevava novam ente, e o serviç o de meteo-
rologia previa quinze centím etros de neve até a meia-noite, o que gar antia um
belo Natal branc o no dia seguinte.
Quando Winton saiu do carr o, Brendan inc linou-se para Paul Arm es:
— Sem quer er desm er ec er O Bom Pastor, o que você me diz de Natal
Branc o? Que film e!
- Ah, uma beleza... — suspir ou o outro.
Continua r am falando sobre film es de Natal, e Brendan tinha certeza de que
se lembrar a do melhor de todos os tempos.
— Lionel Barry m or e fazia o avar ento. E Glor ia Graham e... que atriz!
— E Thom as Mitc hell?
Winton aproxim ou-se da porta do bar e entrou.
— Que elenc o! — exc lam ou Brendan, saudoso.
— Estam os esquec endo de outro... De Ilusão Também se Vive...
— Grande film e. Mas ainda pref ir o O Bom Pastor... E mais...
Os tir os e o ruído de vidro estilhaç ado ocorr er am no mesm o
instante, sem dif er enç a de fraç ão de segundo. Mesm o no carr o, de janelas
fec hadas, com o zumbido interm itente do rádio e do apar elho de calef aç ão,
Brendan ouviu o bar ulho e calou-se de repente, deixando a frase suspensa no ar.
A explosão acabava com a paz da rua princ ipal e reduzia a cac os o Papai Noel
pintado na vitrine do bar da esquina. Depois dos prim eir os tir os houve uma pausa,
e logo outra raj ada rompeu o silênc io.
— Merda! — Paul Arm es desabotoou o coldre e saiu da via tur a, pistola na
mão; os últim os estilhaç os de vidro ainda retinia m na calç ada. — Fique abaixado!
— gritou para Brendan protegendo-se atrás da porta do carr o.
Aturdido, Brendan olhou para o bar a tempo de ver a porta abrir-se com vio-
lênc ia e dois rapazes apar ec er em, um preto e um branc o. O preto usava boné de
tric ô e jaqueta de mar inheir o, e empunhava uma pistola semi-autom átic a de
cano curto. O outro, de casac o de cour o, tinha um revólver. Corr er am juntos
para fora do bar, meio abaixados, o negro mir ando a via tur a polic ia l. Brendan es-
tava dia nte dele, hipnotizado pelo cano da arma. Viu um brilho amar elado, como
um flash... poder ía jur ar que fora atingido. Mas o vidro traseir o, próxim o de seus
olhos, continua va in-tato. O vidro da frente é que se estilhaç ou sobre o painel e o
banc o. Com o susto, Brendan despertou e jogou-se no chão, à frente do banc o
onde estiver a sentado, o cor aç ão batendo como tambor.
Má sorte: Winton Tolk entrar a no bar exatam ente quando os dois rapazes lim-
pavam a caixa registrador a. Talvez estivesse morto.
Com os braç os por cima da cabeç a, esc ondido sob o assento da via tur a,
Brendan ouviu a voz de Paul Arm es dir igindo-se aos rapazes:
— Larguem as arm as!
Mais dois tir os. De revólver. Mas... do revólver de quem? Do assaltante ou da
políc ia? Mais um tiro... Alguém gritou. Paul ou um dos rapazes?
Sem cor agem para levantar-se, Brendan esper ou. Graç as aos contatos do pa-
dre Wy c azik, fazia cinc o dias que acompanhava Win-ton e Paul no trabalho diá -
rio de patrulham ento das ruas. Vestia-se de terno e gravata, sem batina, e fora
apresentado aos polic ia is como advogado contratado pela Igrej a para avalia r o
alc anc e e a utilidade dos program as de assistênc ia soc ia l. Uma boa histór ia que,
até ali, ninguém havia posto em dúvida. Winton e Paul cobria m a área central,
entre a Avenida Forster ao norte, a Marginal do Lago a leste, a Estrada de Irving
Park ao sul, e a Avenida North Ashland a oeste. Era a regiã o mais miser ável de
Chic ago, detentor a de altos índic es de crim inalidade, habitada por negros, índios
e, princ ipalm ente, porto-riquenhos. Cinc o dias de convivênc ia diá r ia bastar am
para que Brendan aprendesse a gostar e adm ir ar os dois polic ia is. Mais do que
isso, a exper iê nc ia fizer a-o conhec er a vida dif íc il de todas as boas alm as que vi-
via m e trabalhavam naquela regiã o de ruas imundas e prédios dec adentes... mi-
ser áveis presas de que se alim entavam os chac ais da hum anidade. Sentia-se pre-
par ado para qualquer surpresa, e já havia visto muita coisa... até que o inc idente
no bar mostrou-lhe que ainda não conhec ia o pior.
Outro tiro fur ou a latar ia da via tur a, fazendo-a estrem ec er. Enc olhido, Bren-
dan pensou em rezar, mas as palavras não lhe vinham à mem ór ia. Continua va a
ser um hom em sem Deus, o mais solitár io dos hom ens.
Do lado de fora, Paul Arm es gritou:
— Larguem as arm as!
E um dos rapazes respondeu:
— Foda-se!
Depois de uma sem ana no Hospital Inf antil São José, Brendan conversar a
com o padre Wy c azik e fora mandado para outro hospital, enc arr egado da enf er-
mar ia dos doe ntes term inais, lugar triste, povoa do de gem idos, onde não havia
cria nç as. Como já acontec er a no São José, logo entendeu o que o velho pár oc o
quer ia ensinar-lhe: há pessoa s para as quais a morte não é um mal, e sim uma
bênç ão de Deus. Pessoa s que pedem a Deus que as leve, e pessoa s que agrade-
cem a Deus a graç a de fazer cessar o sof rim ento de seus entes quer idos. A morte
de um hom em ou de uma mulher pode dem onstrar que, quase sempre, há algo
de nobre e prof undo no ato de separ ar-se dos vivos. E como se, por alguns instan-
tes, todos pudessem partilhar a dor místic a da morte de Cristo.
Outra magníf ic a liç ão... Brendan, no entanto, ainda não voltar a a crer. Enc o-
lhido dentro da via tur a polic ia l, par alisado entre dois fogos, tentava enc ontrar as
palavras de qualquer oraç ão, entre muitas que conhec ia, mas a mem ór ia não o
ajudava. Não conseguia falar, tinha a boca seca, a língua pesada.
Os gritos continua vam, por ém Brendan não conseguia entender o que estava
acontec endo, em parte porque vár ia s pessoa s gritavam ao mesm o tempo, em
parte porque os tir os o deixar am semi-surdo.
Ainda não tiver a tempo para pensar na liç ão que o padre Wy c azik pretendia
ensinar-lhe, fazendo-o conhec er de perto o bairr o pobre. Havia pobres por toda a
cidade e, fosse qual fosse a liç ão, Brendan já sabia que nenhum a ser ia suf ic ie nte
para convenc ê-lo de que Deus era mais real que uma raj ada de balas. A morte
ser ia sempre feia, malc heir osa, insensata. Dia nte dela, de que valer ia a prom essa
da vida eterna na glór ia de Deus?
Brendan ainda ouvia tir os, o matraquea r da pistola autom átic a e passos de al-
guém que corr ia. Era como se estivesse na frente de batalha. Outra raj ada de ba-
las, e mais vidros estilhaç ar am-se. Outro grito, agor a mais terr ível que o prim ei-
ro. Outro tiro... e o silênc io. Silênc io perf eito e prof undo.
Paul Arm es abriu a porta da via tur a, Brendan espiou para fora e gritou de
susto e horr or.
— Fique abaixado! — gritou o polic ia l, esgueir ando-se para retom ar o as-
sento do motor ista. — Há dois mortos, mas pode haver outros assaltantes arm a-
dos dentro do bar.
— Onde está Winton? — Brendan perguntou.
Paul nao respondeu. Apanhou o mic rof one e cham ou:
— Atenç ão, plantão da central! Atenç ão, plantão da central!
Deu as coordenadas do loc al e o ender eç o do bar, e pediu ref orç os.
De olhos fec hados, ainda enc olhido no fundo do carr o, Brendan podia lem-
brar-se perf eitam ente da fotograf ia que Winton Tolk levava na carteir a e exibia a
todo o mom ento: a esposa, Ray nella, e três filhos.
— Esses filhos da puta... — resm ungou Paul Arm es, a voz trêm ula, rec ar-
regando a arma.
— Você acha que Winton está... fer ido?
— Deve estar.
— E prec isando de soc orr o.
— Já pedi ref orç os.
— Mas talvez prec ise de soc orr o... jál — Brendan quase gritou.
— Não podem os entrar lá. Deve haver outros desses merdas. Dois ou
mais... não podem os adivinhar. Tem os que esper ar os ref orç os.
— Winton pode estar perdendo sangue... Se os ref orç os dem or ar em muito,
ele pode... morr er.
— E você pensa que eu não sei? — Paul estrem ec eu de raiva. Acabou de
rec arr egar a arma e saiu novam ente do carr o para observar a entrada do bar.
Quanto mais Brendan pensava em Winton, mais fur ioso fic ava. Se ainda fos-
se capaz de rezar, talvez conseguisse mastigar e engolir pelo menos um pouc o da
raiva. Sem fé, o ódio cresc eu, cresc eu até tom ar conta dele. Não era justo... Não,
não com Winton! Não estava certo! Ele abriu a porta traseir a da via tur a e
saiu para a calç ada coberta de neve. A sua frente estava o bar.
— Brendan! — Paul Arm es gritou levantando-se de trás da via tur a. — Não
entre! Pelo amor de Deus... volte para o carr o!
Sem dar ouvidos, Brendan continuou a andar, movido pela raiva e pela certe-
za de que Winton Tolk prec isava ser soc orr ido logo, ou estar ia morto quando che-
gassem os ref orç os.
Sobre a calç ada jazia o corpo do assaltante de casac o de cour o; tinha um bu-
rac o no peito e outro junto à garganta. A alguns passos de sua mão aberta, estava
uma pistola, com certeza a mesm a que fer ir a Winton.
— Cronin! — Arm es cham ava. — Volte aqui!
Brendan já estava dentro do bar, mas não via nada. As luzes estavam apaga-
das, talvez tivessem sido destruídas dur ante o tir oteio. A alguns metros da entrada,
entre cac os de vidro, jazia o corpo do negro de boné de tric ô. Brendan passou a
perna por cima do cadáver e continuou andando. A batina talvez servisse, pelo
menos, para protegê-lo dos tir os, se algum daqueles degener ados fosse católic o
pratic ante. Ou não... Se aqueles anim ais eram capazes de atir ar num polic ia l, o
que não far ia m com um padrec o? Brendan estava cego de fúr ia... porque Deus
não existia! Ou porque, caso existisse, pouc o ligava para o destino dos bons e dos
justos!
O balc ão fic ava junto à par ede dos fundos. Por trás do balc ão estava a gre-
lha. A frente, algum as mesas e cadeir as, quase todas de pernas para cima. Pelo
chão espalhavam-se guardanapos, copos, potes de mostarda, velhas notas de pou-
cos dólar es. Um pouc o à esquerda, uma enorm e poça de sangue e, no meio,
Winton Tolk.
Brendan aproxim ou-se do polic ia l, esquec ido da possibilidade de que outro
assaltante estivesse esc ondido atrás das mesas caídas, e ajoe lhou-se no chão em-
papado de sangue. Winton rec eber a dois tir os. Tinha dois horr íveis bur ac os de
bala no peito, nada que pudesse ser tratado com torniquete ou bandagens. O san-
gue brotava das fer idas e esc orr ia, num fio grosso, pelo canto da boca. Estava
imóvel, de olhos fec hados, inc onsc ie nte ou morto.
— Winton? — Brendan cham ou-o.
Nada. Nem resposta, nem o mais leve sinal de movim ento.
Quase sem poder pensar, movido por uma fúr ia tão violenta como a que o fi-
zer a jogar no chão o cálic e da missa, Brendan apalpou o pesc oç o de Winton,
uma mão de cada lado, à proc ur a de qualquer sinal de vida. Não sentiu a pulsa-
ção da aorta e pensou na fotograf ia de Ray nella e das cria nç as de Tolk. Rubro de
raiva, gem ia de horr or pela indif er enç a de Deus e pela misér ia dos hom ens
abandonados à própria desgraç a.
— Não... — rilhou os dentes. — Ele não pode morr er!
As pontas dos dedos ainda toc ando o pesc oç o de Winton, sentiu um leve es-
trem ec im ento. Ainda não era uma veia pulsando... mas era um sinal de vida.
Com as mãos, apalpou o peito, os braç os do polic ia l, à proc ur a de mais um indí-
cio, e enc ontrou-o, muito frac o e irr egular, mas era um sinal!
— Ele está vivo?
Brendan ergueu a cabeç a e viu um hom em de avental branc o, certam ente o
dono do bar levantando-se de trás do balc ão. A seu lado apar ec eu uma mulher,
também de avental. Na rua, soa va a sir ene de uma ambulânc ia que se aproxim a-
va.
Sem tir ar as mãos do pesc oç o de Winton, Brendan sentia que as pulsaç ões
tornavam-se aos pouc os mais fortes e regular es. Não podia ser... Winton perder a
muito sangue, perm anec er a muito tempo sem soc orr o médic o. Dif ic ilm ente so-
breviver ia, ainda que a ambulânc ia chegasse a tempo de levá-lo para o hospital.
A sir ene soa va a dois quarteir ões de distânc ia, pelo menos.
Brendan desviou as mãos para o peito. O sangue brotava entre seus dedos,
como que nasc ido de uma fonte inesgotável. Ele já não conseguia sentir ódio
nem raiva. Estava vazio, esgotado. Baixou a cabeç a e com eç ou a chor ar.
Winton Tolk mexeu-se. Tossiu. Abriu os olhos. Respir ou uma, duas vezes. Ge-
meu. Surpreso, Brendan toc ou-lhe o pulso, voltou a apalpar-lhe o pesc oç o. Estava
batendo! Uma pulsaç ão ainda tênue, mas não tão frac a como da prim eir a vez.
— Winton! — Cham ou-o, elevando a voz para fazer-se ouvir apesar do
som estridente da sir ene que zumbia dia nte do bar. — Está me ouvindo?
O patrulheir o não o rec onhec eu. Tossiu outra vez e estrem ec eu. Brendan er-
gueu-lhe a cabeç a, vir ando-a para o lado, de modo que o sangue não se deposi-
tasse no fundo da garganta. Com isso, Winton respir ou melhor. Estava muito fer i-
do, perder a muito sangue, com certeza estava em choque... mas estava vivo.
VjVo.
Na rua, a sir ene calou-se. Brendan corr eu até o balc ão empurr ando o propri-
etár io e a mulher, que par ec ia m par alisados. Ele próprio estava desesper ado: sa-
bia que não havia um segundo a perder.
— Saía m da frente! — gritou. — Tragam um médic o. Digam a Arm es que
ele está vivo! Vão, depressa!
O proprie tár io do bar corr eu para a porta, e Brendan voltou para junto de
Winton. O patrulheir o já respir ava melhor. Sentindo as mãos úmidas de sangue,
num gesto autom átic o Brendan esf regou-as no paletó. Então perc ebeu que, pela
prim eir a vez em quase duas sem anas, as marc as averm elhadas voltar am a apa-
rec er, uma na palm a de cada mão. Os mesm os anéis de pele verm elha e inc ha-
da.
Polic ia is e enf erm eir os invadir am o bar, passando por cima do cadáver do
assaltante branc o, e Brendan afastou-se para dar-lhes espaç o. Foi até o balc ão e
enc ostou-se um instante para respir ar. De repente, era como se todo o cansaç o do
mundo caísse sobre seus ombros. Não conseguiu dar um passo além do balc ão e
lá fic ou, par ado, olhando para as palm as das mãos.
Dur ante dois ou três dias, logo depois de consultar o dr. Hee-ton, usar a a lo-
ção à base de cortisona que o médic o lhe rec eitar a e, como as marc as sum ir am,
deixar a de aplic ar o rem édio. Nem pensar a mais no assunto. Devia ser uma aler-
gia, um caso estranho e repentino, mas nada além de alergia. Ali, junto ao bal-
cão do bar, olhava para as própria s mãos e não entendia o que estava acontec en-
do. As vozes dos polic ia is e enf erm eir os chegavam-lhe aos ouvidos como se vie s-
sem de muito longe:
— Vej am!... Nunc a vi tanto sangue!
— Dois tir os no peito! Não pode estar vivo...
— Porr a! Saia da frente!
— Prec isam os de plasm a hum ano. Urgente.
— Onde está a identif ic aç ão dele? Se não achar em, testem o sangue. Al-
guém aí sabe o tipo sanguíneo do polic ia l Tolk? Deixem! Fazem os o teste na am-
bulânc ia a cam inho do hospital.
Brendan afinal conseguiu desvia r os olhos das mãos e fitou o grupo que se
agitava em torno de Winton Tolk. Em segundos o patrulheir o estava coloc ado na
maca, envolto em cobertor es, sendo carr egado para fora. Um dos polic ia is arr as-
tou o cadáver do assaltante e abriu passagem para os enf erm eir os que levavam a
maca. Na calç ada, Paul Arm es aproxim ou-se do companheir o fer ido e tentou
sorr ir-lhe.
No chão, fic ou a poça de sangue. Não: o mar de sangue. Novam ente Bren-
dan olhou para as palm as das mãos. As marc as havia m sum ido.
O texano de calç a amar ela jam ais ter ia tentado arr astar Jorj a Mo-natella
para a cama, se soubesse que ela estava fur iosa a ponto de quer er castrar o pri-
meir o que se atravessasse em seu cam inho.
Embor a a tarde do dia 24 de dezembro já estivesse adia ntada, o espír ito do
Natal ainda não dera sinais de sua presenç a. Em ger al calm a e bem-hum or ada,
Jorj a estava num de seus pior es dias, indo e vindo pelo cassino, do bar para as
mesas de jogo, das mesas de jogo para o bar, abastec endo os copos dos jogado-
res.
Havia vár ia s razões para tam anho mau hum or. A prim eir a, era que Jorj a odi-
ava seu trabalho. Se já detestava ser garç onete num bar tranqüilo, que dirá num
cassino do tam anho de um campo de futebol. Era de matar! Uma via gem com-
pleta ao bar, ida e volta, bastava para acabar com seus pés. Duas via gens davam-
lhe bolhas nos calc anhar es. E o hor ár io de trabalho? Como é que uma mulher po-
dia pensar em organizar a vida de uma filha de sete anos, trabalhando nos hor ár i-
os mais impossíveis?
Não bastasse a prim eir a razão, havia ainda o unif orm e: um minúsc ulo maio
verm elho que mais mostrava do que cobria, baixo em cima, alto embaixo, ridí-
culo, horr ível! E usado com uma fai-
xa elástic a para afinar a cintur a, que já era fina, e aum entar o busto, que já
era grande. Jorj a andava pelo salão, sentindo-se um pôster erótic o, do tipo que se
vê em ofic ina mecânic a.
A terc eir a razão do mau hum or eram os hom ens: do dono do cassino aos mi-
ser áveis, desgraç ados, malditos vagabundos que jogavam dia e noite e vivia m
belisc ando-lhe o traseir o. Clar o! Que mulher se subm eter ia a vestir uma roupa
daquelas... a menos que estivesse inter essada em inc ríveis aventur as erótic as?!
E quanto ao nome? Jorj a. Tão bonitinho... Mam ãe devia estar bêbada quando
o inventou. Não era mais simples esc rever Geórgia, como todo mundo? Clar o
que ninguém desc onf ia r ia que era Jorj a se pudesse responder, rápido, quando lhe
perguntassem: Jorja, Jórgia, Geórgia, sons tão par ec idos. Mas o dono do cassino
exigia que as meninas usassem um crac há pendur ado no maio, e lá estava, como
em manc hete de jornal: JORJA. De quinze em quinze minutos, apar ec ia um idio-
ta perguntando se o nome era esse mesm o. Era. Um nome idiota, mal esc rito,
metido a besta. Só podia andar pendur ado numa mulher idiota, mal resolvida,
metida a besta. Em seus pior es mom entos, ela pensava em requer er à Justiç a o
cumprim ento de um simples dir eito à dignidade: que seu nome fosse esc rito cor-
retam ente. Em seus melhor es mom entos, lembrava que qualquer alter aç ão na
graf ia inventada por sua mãe num mom ento de exaltaç ão cria dor a poder ia ofen-
dê-la. De qualquer modo, se os rapazes continua ssem com as pia dinhas, talvez
fosse obrigada a rebatizar-se: madre Ter esa de Calc utá. Havia rem ota possibili-
dade de que bastasse isso para deixá-los impotentes por uns seis meses.
Servir bebida aos figur ões não era o pior. O pior era quando apar ec ia um su-
perf igur ão, de Detroit, ou de Las Vegas, ou de Dal-las, e inventava de se engra-
çar com ela, e pedia que o dono do cassino arr anj asse um enc ontro mais... ínti-
mo. Havia tantas gar otas por ali... Na verdade, nem tantas, mas havia algum as.
Por que logo ela? Jorj a sabia o que ia acontec er desde o mom ento em que via
entrar um dos tais superf igur ões. O patrão cham ava-a, passava-lhe o rec ado, e
ela respondia:
— Vão os dois para o inf erno, você e ele. Sou garç onete. Não sou prostitu-
ta.
Tintim por tintim, o que acabava de acontec er, quinze minutos antes. Um
magnata do petróleo, de cara verr uguenta e olhos de sapo, proc edente de Hous-
ton, metido em fosf or esc entes calç as amar elas, cam isa azul, gravata verm elha.
Um dos maior es clie ntes do hotel. Lá veio ele... o hálito fedendo a alho.
E agor a o patrão estava fur ioso porque ela não aceitar a o convite de um ho-
mem tão importante. Rainy Tarnell, crupiê do per íodo diurno, atrever a-se a co-
mentar:
— Acho que você está se fazendo de antiquada... de moça sér ia... Isso já
passou de moda, quer ida!
Gomo se ir para a cama e abrir as pernas para um desc onhec ido de Houston
fosse apenas uma questão de moda... O mesm o que saber que não se deve usar
sapatos branc os no inverno...
O trabalho era horr ível, mas era um trabalho, e Jorj a não podia dar-se ao
luxo de fic ar desempregada. O salár io era bom para uma mãe divorc ia da de um
pai que se rec usava a pagar pensão à filha. E servia também para ir pagando, aos
pouc os, as dívidas que Alan havia feito em seu nome antes de sum ir de casa. Jor-
ja prec isava desesper adam ente de cada dólar que ganhava. Além do salár io, ha-
via também as gorj etas, às vezes bem gordas. Princ ipalm ente quando um dos
fregueses ganhava no pôquer ou nos dados.
Na vésper a de Natal, como sempre, o cassino estava pouc o movim entado, e
as gorj etas andavam curtas. Do dia de Ação de Graç as até o Natal havia pouc a
gente em Las Vegas. De 26 de dezembro em dia nte, então sim, as coisas com e-
çavam a melhor ar. Os caça-níqueis estavam mudos. Alguns crupiê s dorm itavam,
debruç ados sobre as mesas vazia s.
— Clar o que tenho que estar de mau hum or... — Jorj a suspir ou. — Estou
com dor nos pés, dor nas costas, enf rento um imbec il que pensa que estou à ven-
da como uma garr af a de uísque, brigo com Rainy Tarnell e nem tenho um puto
de um tostão.
As quatro hor as, quando acabava seu turno, corr eu para o vestiá r io, bateu o
ponto, tir ou o maio, vestiu-se e corr eu para o carr o, como se estivesse competin-
do por uma medalha olímpic a. Nem o tempo colabor ava para imbuí-la do espír i-
to natalino. Em Las Vegas havia Natais gelados, com o vento queim ando o rosto
e gelando os ossos, e Natais quentes, com sol, short e cam iseta. Naquele ano o
Natal estava morno, nem quente nem frio.
Seu velho carr o pegou logo à terc eir a tentativa, evento raro que, em outras
circ unstânc ia s, bastar ia para fazê-la melhor ar de hum or. O ruído do motor, no
entanto, lembrou-lhe o autom óvel rec ém-saído da loja que Alan levar a embor a,
quinze meses atrás, quando a abandonar a sem dinheir o, com Mar eie e um monte
de dívidas.
Alan Ry koff. A coisa que mais a irr itava era o trabalho de gar-çonete; em se-
gundo lugar, vinha Alan. Quando o divórc io foi hom ologado ela voltar a a usar seu
nome de solteir a, Monatella, mas não conseguiu apagar, com igual fac ilidade, as
lembranç as do sof rim ento que Alan Ry koff causar a a ela e a Mar eie.
Por mais que se esf orç asse para esquec ê-lo, tinha-o presente a cada instante.
O miser ável já dever ia ter embarc ado para Acapul-co, com aquela imbec il lou-
ra, a tal de “Pim entinha” Carr af ie ld. Nem se lembrou de que era Natal e Mar eie
esper ava um presente. Como é que se explic a a uma menina de sete anos que o
pai se esquec eu de lhe comprar um presente de Natal? E que nem vai apar ec er
para vê-la?
Apesar das dívidas que Alan deixar a, Jorj a dec idir a rec usar a pensão, num
impulso mom entâneo. Quando resolveu pedir-lhe que se responsabilizasse ao
menos pelas despesas de educ aç ão da filha, ouviu-o dec lar ar, com a maior sem-
cer im ônia, que não era pai de Mar eie e, portanto, não lhe cabia pagar nada. Filho
da puta! Jorj a casar a aos dezenove anos; Alan tinha então vinte e quatro, e ela ja-
mais o traír a, nem uma únic a vez... Alan sabia disso, clar o! O que quer ia era
“cortar despesas inúteis” como sempre dizia; não podia gastar com a menina
porque prec isava de muito dinheir o para viver como gostava, com roupas car as,
mulher es car as, carr os car os... coisas mais importantes que esposa e filha. Para
evitar que Mar eie acabasse envolvida naquela imundíc ie, Jorj a acabou por abrir
mão também de sua únic a e últim a exigênc ia.
Então... era como se Alan estivesse morto e enterr ado. Não havia motivo
para continua r a pensar nele, por ém, ainda assim, passando pelo cruzam ento da
Avenida Mary land com a Rua Desert Inn, Jorj a lembrava que, quando se envol-
ver a com ele, era jovem dem ais para casar e ingênua dem ais para perc eber que
aquela pele de cordeir o esc ondia um lobo fam into. Na ingenuidade de seus deze-
nove anos, achava Alan très sof istic ado e charm oso. Aos pouc os, por ém, com e-
çou a desc obrir que se unir a a um suj eito bobo, vaidoso, preguiç oso e desavergo-
nhadam ente mulher engo.
Mesm o insatisf eita, ainda tentar a salvar o casam ento. Planej ar a fér ia s em
fam ília, três sem anas de fér ia s, na ilusão de que todos os problem as se resolver i-
am se Alan passasse algum tempo com Mar eie e a conhec esse melhor. Ele tra-
balhava como crupiê num cassino, e Jorj a era garç onete em outro salão de jo-
gos; como seus hor ár ios eram desenc ontrados, pratic am ente não se viam. Se
os três pudessem fic ar alguns dias juntos, longe dos problem as, só os três, via j an-
do de carr o, talvez ainda pudessem construir um verdadeir o lar.
Inf elizm ente, mas como ser ia fác il de prever, a tentativa frac assar a. Depois
que voltar am a Las Vegas, Alan estava pior do que antes. Simplesm ente não re-
sistia a qualquer rabo-de-saia que lhe apar ec esse pela frente. Foi como se a via -
gem tivesse acabado de enlouquec ê-lo... Era uma mania, uma obsessão, um de-
sesper o. Três meses depois das fér ia s, em outubro daquele ano, ele sum iu
de casa. E da via gem sobrou apenas uma boa lembranç a: o enc ontro com aquela
linda doutor a loir a, que via j ava de Stanf ord para Boston... “Minhas prim eir as fé-
ria s!”, disser a ela. Ginger... Ginger Weiss. Isso mesm o: o nome dela era Ginger
Weiss.
A doutor a Weiss nunc a poder ia imaginar que provoc ar a um terr em oto na
vida de Jorj a. Jovem, bonita, par ec endo tão sozinha no mundo, e, ao mesm o tem-
po, tão segur a, forte e dec idida, serviu-lhe de modelo desde o mom ento em que
se enc ontrar am. Jorj a sempre se sentir a predestinada a morr er de velha como
garç onete, inc apaz de conseguir qualquer coisa melhor para si e para a filha...
Sempre achar a que não servia para nada. Quando Alan
fugiu, foi a lembranç a de Ginger que lhe deu forç as para ir à luta.
Fazia onze meses que estava matric ulada na Universidade de Las Vegas
como aluna atenta dos cursos de adm inistraç ão de empresas. Sua vida era uma
corr er ia eterna, do bar para casa, de casa para a universidade, cuidando de Ma-
reie, das compras, da limpeza, da roupa para lavar... Só quando acabasse de pa-
gar as dívidas que Alan deixar a ter ia condiç ões e dinheir o para abrir seu próprio
negóc io e com eç ar a viver. Uma boutique. O plano estava pronto, polido, livre de
tudo que pudesse par ec er delír io. Um bom plano, simples e rea lista: o futur o de
Mar eie estar ia assegur ado, sua vida melhor ar ia, e nada no mundo a far ia abrir
mão da felic idade.
Pena que Jorj a nunc a mais viu a dra. Weiss para agradec er-lhe... não pelo
que havia feito, porque, na verdade, não fizer a nada, mas por ela ser exatam ente
como era.
Na esquina de Rua Pawnee, Jorj a dobrou à esquerda e par ou dia nte da casa
de Kara Persaghia n. Mar eie corr eu para enc ontrá-la na calç ada e saltou-lhe ao
pesc oç o, gritando:
— Mam ãe chegou!
Pela prim eir a vez naquele dia, Jorj a conseguiu esquec er o unif orm e de gar-
çonete, o texano, a briga com o crupiê, o motor do carr o que vivia ratea ndo. Ma-
reie era a únic a pessoa no mundo capaz de fazê-la rec uper ar a fé e a esper anç a,
princ ipalm ente nos mom entos em que todas as saídas lhe par ec ia m bloquea das.
— Você se divertiu bastante? — a menina perguntou.
— Muito, quer ida. E você está cheir ando a amendoim.
— Kara fez bolinhos. Também me diverti muito... Mam ãe, você sabe por
que os elef antes pref er em viver na Amér ic a? —- Mar eie riu. — Porque aqui tem
um monte de orquestras e eles ador am danç ar! — Mais risadas. — Não é engra-
çado?
Jorj a sabia dos risc os de ser “mae-cor uj a”, mas sabia também que Mar eie
era muito bonita. Mor ena, de cabelos esc ur os, tinha olhos azuis como o céu do
ver ão, como os olhos de Alan. De repente, a menina fitou-a, espantada:
— Ei! Você sabe que dia é hoje?
— Clar o... Já é quase vésper a de Natal.
— Só falta esc ur ec er. Tia Kara disse que eu posso levar uns bolinhos para
com er em casa. Papai Noel saiu do polo norte e está bem pertinho das cham inés
das casas do outro lado do mundo, onde já é noite. Tia Kara disse que eu me
comportei mal dur ante o ano, e por isso vou ganhar só um colar de carvão... Mas
é mentir a dela, não é, mam ãe?
— Brinc adeira dela — Jorj a riu.
— Não, senhor a! Não e não! Não estou brinc ando. — Kara Per-saghia n
aproxim ou-se da porta, muito sér ia, com seu inf alível avental preso à cintur a. —
Você vai ganhar um colar de carvão e, talv ez, um par de brinc os de carvão para
combinar.
Mar eie riu, feliz, sem olhar para a baby-sitter que ador ava desde quando a
conhec er a. Kara aproxim ou-se levando o casac o da menina, um livro de dese-
nhos para color ir e um prato de bolinhos. Jorj a entregou o casac o e o livro à filha
e apanhou o prato com um olhar de gratidão eterna. Ia despedir-se, quando
Kara pediu:
— Será que eu poder ia falar um mom entinho com você? Só nós duas? —
Pisc ou o olho para Mar eie.
— Clar o... — Jorj a acom odou no carr o a gar ota e o prato, e voltou-se. — O
que houve? O que Mar eie andou fazendo?
— Nada de grave. Mas acontec eu uma coisa estranha e acho que você
prec isa saber. Mar eie estava falando sobre os presentes que quer ganhar. E disse
que só quer uma coisa, o tal de “Médic o Inf antil”.
— E a prim eir a vez que ela exige um presente... Não entendo por que in-
ventou essa histór ia de médic o.
— Não passa um dia sem que ela fale do “Médic o Inf antil”. Você já provi-
denc iou?
Jorj a riu, espia ndo pela porta para ter certeza de que Mar eie não podia ouvi-
la:
— Ah, fique sossegada. Papai Noel já anda por aí com um lindo “Médic o
Inf antil” no trenó.
— Ótim o. Ela fic ar ia muito triste se não ganhasse o presente que está espe-
rando. O que acontec eu hoje deve ter algum a coisa a ver com isso. Mar eie já es-
teve doe nte algum a vez? Doe nç a sér ia?
— Sér ia? Não, graç as a Deus! Ela é muito saudável.
— Esteve hospitalizada?
— Nunc a. Por quê?
Kara franziu as sobranc elhas.
— Bem... Hoje estávam os conversando e ela, como sempre, falava do
“Médic o Inf antil”... Disse que quer ia ser médic a, para poder tratar de si mesm a
quando fic asse doe nte. Disse que não quer ia mais que nenhum médic o toc asse
nela, por causa “daqueles médic os”... “Quais?”, perguntei. “Aqueles que me
maltratar am tanto”, respondeu. Então eu perguntei o que exatam ente ela esta-
va quer endo dizer, e Mar eie fec hou a cara. Até pensei que não fosse responder.
Depois de algum tempo, contou, numa voz muito sér ia, quase aflita, que, uma
vez, os médic os a amarr ar am numa cama de hospital e lhe der am inj eç ões, e a
espetar am com agulhas, e jogar am luzes muito fortes em seus olhos, e fizer am
“um monte de maldades” com ela. Disse que eram “uns suj eitos muito maus”, e
que, por isso, ela quer ia cresc er logo para poder ser médic a e cur ar a si mesm a.
— Mas... ela nunc a esteve em hospital nenhum... — Jorj a balanç ou a cabe-
ça sem entender. — Por que ter ia inventado uma histór ia tão... estranha?
— Ainda não é tudo. Quando ela me disse isso, eu fiquei preoc upada. Pen-
sei que talvez tivesse acontec ido algum a coisa par ec ida, que ela podia mesm o ter
estado doe nte. E achei que ser ia bom você me dizer o que houve. Afinal, a meni-
na passa quase todas as tardes com igo e, sei lá... Eu prec iso saber o que fazer no
caso de uma rec aída, ou de um ataque. Você sabe como eu me preoc upo com as
cria nç as...
Kara suspir ou, sempre enc ar ando Jorj a com olhos tensos de preoc upaç ão, e
prosseguiu:
— Então eu com ec ei a fazer perguntas sobre a tal doe nç a. Sem pressionar,
é clar o, com muita calm a, sem deixar que ela perc e-
besse todo o meu inter esse... De repente, a coitadinha explodiu em lágrim as.
Não, não é forç a de expressão: ela explodiu mesm o. Estávam os na cozinha, eu
fazendo os bolinhos, e Mar eie olhando. De repente, ela com eç ou a chor ar e a tre-
mer como vara verde. Tentei acalm á-la, coloquei-a no colo, fiz car inho...
Nada adia ntou. Quanto mais eu me esf orç ava, mais ela chor ava e trem ia. Até
que saltou de meu colo e fugiu... Fui enc ontrá-la na sala, enc olhida num canto,
atrás da cadeir a de balanç o... Par ec ia que quer ia se esc onder de alguém, de al-
gum a coisa per igosa.
— Meu Deus... — Jorj a murm ur ou, perplexa.
— Levei mais de cinc o minutos para convenc ê-la a sair do canto e par ar
de chor ar. Só com eç ou a se acalm ar quando me fez pro-rpeter que, caso “aque-
les médic os” voltassem para busc á-la, eu tranc ar ia a porta e não os deixar ia en-
trar... — Kara suspir ou novam ente. — Foi muito estranho. Ela estava em pânic ol
No carr o, a cam inho de casa, Jorj a disse para a filha:
— Bonita histór ia você inventou hoje... Kara me contou tudo.
— Que histór ia? — Mar eie levantou os olhos, intrigada e sér ia.
— Aquela histór ia sobre os médic os.
— Oh...
— Amarr ada na cama do hospital... Como é que você foi inventar uma
coisa dessas?
— Eu não inventei — protestou a menina. — E verdade.
— Clar o que não é!
— E, mam ãe, é verdade, sim... — A voz mal lhe saía da garganta.
— Até hoje você só esteve num hospital, na maternidade onde nasc eu. E
tenho certeza de que não se lembra de nada — Jorj a suspir ou. — Você se lembra
do que a gente falou sobre isso de inventar histór ia s? O que acontec eu com o Pato
Donald quando ele com eç ou a inventar histór ia s?
— A Fada Boa apar ec eu e disse que ele não podia ir na festa da marm ota.
— Exatam ente.
— E muito feio inventar coisas — Mar eie conc ordou. — Nin-
guém gosta de gente que inventa coisas. Nem os esquilos, nem as marm otas.
— Clar o — Jorj a não pôde deixar de rir. — Ninguém gosta... nem os esqui-
los.
No sinal verm elho, Jorj a par ou o carr o e olhou para a filha, que se mantinha
rígida no assento, fitando o espaç o a sua frente.
— O pior de tudo é inventar coisas só para preoc upar o pai ou a mãe —
disse Mar eie sempre muito sér ia.
— ... ou qualquer outra pessoa que goste de você — completou a mãe. —
Kara, por exemplo, fic ou muito preoc upada com a histór ia que você inventou.
— Mas eu não quer ia que ela fic asse preoc upada!
— Não? Só quer ia se fazer de gente grande? Por que inventou tudo aquilo?
Você nunc a esteve num hospital!
— Estive, sim.
— Ah, é? E quando?
— Não consigo me lembrar.
— Lembrar?!
— As vezes par ec e que vou me lembrar... mas logo esqueç o outra vez.
A teim osia da menina com eç ava rea lm ente a irr itá-la. Jorj a franziu a testa e
insistiu:
— Pois eu quer o saber de tudo, e agor a mesm o. Onde fica esse hospital?
— Não sei... Nunc a me lembro de tudo... Quando par ec e que vou me lem-
brar de tudo... eu fico com medo.
— Como agor a?
— Agora, não. Mas à tarde, quando tia Kara perguntou, eu me lembrei... e
fiquei com medo...
O sinal mudou, e Jorj a calou-se, prec isava enc ontrar um modo de fazer a
menina entender que estava conf undindo rea lidade e fantasia. Ah, pobres das
mães que pensam que sabem tudo sobre os filhos! Não passava uma sem ana
sem Mar eie inventar uma novidade: gestos, atitudes, histór ia s e, princ ipalm ente,
perguntas que a deixavam sem resposta. Par ec ia que todas as cria nç as do mundo
conhec ia m um livro inalc anç ável aos adultos, onde havia milhar es de per-
guntas impossíveis de ser respondidas, uma para cada dia da sem ana. Como se
acabasse de consultar o tal livro e tivesse enc ontrado a pergunta do dia, Mar eie
levantou os olhos para a mãe:
— Por que é que Papai Noel pref er e aqueles “aleij adinhos”?
— Que aleijadinhos}\ — Jorj a arr egalou os olhos.
~ Os anões que andam com ele. Os filhos dele e da Mam ãe Noel... Por que
nasc er am aleij ados?
— Em prim eir o lugar, os anões não são filhos de Papai Noel; apenas traba-
lham para ele.
— Será que ganham bem? E rec ebem gorj etas?
— Não, quer ida. Os anões não rec ebem nem salár io nem gorj etas.
— Mas então... como é que compram com ida?
— Papai Noel dá tudo para eles: casa, com ida, roupa lavada...
Com certeza, no próxim o Natal Mar eie já não acreditar ia em
Papai Noel. Tantas perguntas! Quanto mais ela perguntava, mais Jorj a sentia
que a filha estava cresc endo, e achava isso uma pena. Ela vivia os últim os meses
de fantasia, os últim os meses mágic os da vida.
— Os anõezinhos são como a fam ília de Papai Noel — explic ou. — Traba-
lham porque gostam do que fazem, e ador am andar por aí na époc a do Natal.
— Então... Papai Noel adotou os anões? Será que ele e Mam ãe Noel não
podia m ter filhos? Coitados!
— Não é nada disso... eles não prec isam de filhos, porque já têm os anões
para amar.
Obrigada, meu Deus, por ter me dado Mar eie... Deus, obrigada, obrigada por
ela... Pena que o preç o de tam anha alegria tivesse sido amar aquele caf aj este do
Alan Ry koff. A lei das compensaç ões...
Entrou na esquina do Los Hue vos, o condom ínio onde mor ava, e estac ionou o
carr o na gar agem núm er o quatro. Los Hue vos: os ovos. Cinc o anos depois de ter-
se mudado para aquele prédio, Jorj a ainda não conseguia entender por que al-
guém batizar ia assim um edif íc io.
Mal o carr o estac ionou, Mar eie corr eu para a entrada do prédio, carr egando
o livro de color ir e o prato de bolinhos. Já não par ec ia preoc upada com médic os
nem com anões adotados. Jorj a seguiu-a, pensando se ser ia o caso de voltar ao
assunto do hospital e obrigá-la a falar mais. Dec idiu adia r a conversa; afinal,
era vésper a de Natal, tinham um fer ia do pela frente, e nada justif ic ar ia estragar
a festa da menina.
A prim eir a vista, pelo menos, ela par ec ia ter entendido que a mae não estava
satisf eita com tantas fantasia s... Verdade que ainda não se render a quanto à histó-
ria dos médic os, por ém acabar ia esquec endo tudo aquilo. De que valer ia insistir
para fazê-la esquec er um assunto que, talvez, já estivesse mesm o esquec ido? Bo-
bagem... Mar eie ter ia um bom Natal, e isso era a únic a coisa verdadeir am ente
importante para Jorj a. Os médic os não voltar ia m a perturbar-lhe a paz fam ilia r.
0 céu já nao par ec ia tão amea ç ador como antes de esc ur ec er, mas a luz ain-
da não surgir a. Algum as estrelas, aqui e ali, brilhavam na esc ur idão.
Sentado na neve, no ponto mais alto de uma colina, enc ostado no barr anc o,
meio esc ondido entre os pinheir os, Jack Twist esper ava a passagem de um carr o
blindado. Já estava trabalhando outra vez, menos de três sem anas depois de ter
posto as mãos em mais de três milhões de dólar es pertenc entes à Máf ia. Usava
botas, luvas, jaqueta branc a, gorr o de lã enf ia do até as orelhas e amarr ado sob o
queixo. Pouc o abaixo, a sudoe ste, avistava as luzes de uma construç ão, por ém es-
tava mergulhado na esc ur idão, apenas sentindo as ondas de vapor que lhe saía m
do nar iz. A nordeste, estendia m-se quilôm etros de campos gelados e esc ur os, de-
marc ados apenas por algum as rar as árvor es enegrec idas de frio. Do outro lado
havia algum as fábric as, loj as, bairr os residenc ia is. Jack não podia vê-los, mas
pressentia-os no brilho que divisava ao longe, no hor izonte.
De repente apar ec er am os far óis. Jack apanhou o binóc ulo de lentes sensíveis
a raios inf raverm elhos e foc alizou o veíc ulo que se aproxim ava pela rodovia se-
cundár ia. Apesar do estrabism o no olho esquerdo, tinha exc elente visão; com a
ajuda do binóc ulo, logo constatou que não se tratava do carr o blindado, e, portan-
to, não lhe inter essava. Depositou o binóc ulo no chão coberto de neve e continuou
esper ando. Então voltou-lhe à mente a lembranç a de outra noite de esper a, mais
quente, mais úmida, na selva da Amér ic a Central. De com um entre as duas noi-
tes havia apenas o binóc ulo. Agor a esper ava um carr o blindado que pretendia as-
saltar. No passado esper ava as tropas inim igas, que cada vez mais fec havam o
cerc o a seu regim ento.
Apenas vinte soldados, a elite da tropa espec ia l, compunham o regim ento co-
mandado pelo tenente Rafe Eikhorn; Jack era o subc om andante. Havia m penetra-
do em terr itór io hostil, mas, até aquele mom ento, o inim igo não dera sinais de ter
perc ebido a invasão de suas linhas. Se fossem desc obertos, poder ia m tentar con-
venc er os guerr ilheir os de que estavam em missão de rec onhec im ento e se havi-
am perdido na selva. Dif íc il ser ia explic ar-lhes por que seus unif orm es não exibi-
am as divisas do exérc ito regular e por que não portavam identif ic aç ão ofic ia l.
A missão tinha um únic o obj etivo: destruir o campo de “reeduc aç ão” — que
nome cínic o! — intitulado Instituto da Fraternidade Universal e libertar os índios
miskito que o Exérc ito do Povo mantinha conf inados. Duas sem anas antes, dois
valentes padres católic os havia m conseguido esc apar do país, levando mil e qui-
nhentos índios. Os padres disser am que os índios ser ia m massac rados e enterr a-
dos em vala com um, a menos que fossem resgatados imedia tam ente.
Os miskitos orgulhavam-se de suas raízes tradic ionais e da cultur a de seus an-
tepassados e rec usavam a bar ata filosof ia coletivis-ta dos líder es polític os que
acabavam de assum ir o poder no país. Mais dia menos dia ser ia m mortos, em
nome da lea ldade ao próprio passado. Genoc ídio. Massac re. Os novos governan-
tes não par ec ia m dispostos a esper ar muito. Prec isavam elim inar todos os foc os
de resistênc ia para firm ar-se no poder.
Obvia m ente, o Exérc ito amer ic ano, não designar ia vinte de seus melhor es
soldados apenas para salvar um bando de índios rebeldes. No mundo inteir o havia
ditador es de todos os tipos, uns de dir eita, outros de esquerda, e sempre haver ia
rebeldes, mais ou menos tradic ionalistas, mais ou menos de esquerda ou de dir ei-
ta. Os ditador es vivia m mandando matar gente, e os Estados Unidos não podia m
estar presentes ao mesm o tempo em todos os lugar es lutando para impedir que os
mais frac os fossem assassinados pelos mais fortes.
A verdade era que além dos miskitos, havia naquele Instituto da Fraternidade
Universal onze hom ens que valia a pena salvar. Talvez porque havia m sido valen-
tes até o últim o mom ento, denunc ia ndo as atroc idades do novo regim e... Talvez, é
clar o, porque possuía m inf orm aç ões que o governo amer ic ano consider ava de
grande valia para a deposiç ão do governo inim igo que acabava de impor-se
ao povo. No que dizia respeito a Washington, não par ec ia haver dúvidas de que
aqueles onze hom ens valia m o risc o da vida de seus melhor es soldados. Por isso é
que Jack Twist lá estava.
O regim ento conseguiu chegar até o instituto, um verdadeir o campo de con-
centraç ão, cerc ado de aram e farpado com altas torr es de guarda. Do lado de
fora da cerc a, um prédio de conc reto, com dois andar es, aloj ava a adm inistraç ão
do campo, e algum as velhas barr ac as rem endadas abrigavam as tropas da guar-
da.
Pouc o depois de meia-noite, o regim ento amer ic ano cerc ou prédio e barr a-
cas, e abriu fogo. Após o prim eir o ataque, com eç ar am os combates corpo-a-cor-
po. Meia hora depois do últim o tiro, os índios e os onze hom ens mais felizes que
Jack já vira andavam em fila india na através da selva, em dir eç ão à fronteir a.
Dois soldados morr er am e três estavam fer idos. O com andante Rafe Eikhorn
puxava a longa fila que se arr astava pela selva. Jack e três outros soldados fec ha-
vam o cortej o, cobrindo a retaguarda e levando os arquivos sec retos do instituto
— registros de interr ogatór ios, tortur a e assassinatos de índios e camponeses. So
deixa-
ram o instituto depois do últim o prisioneir o quando a coluna de Rafe Eikhorn
já estava a mais de três quilôm etros de distânc ia.
Jack e os três soldados for am rápidos, mas nem assim conseguir am alc anç ar
a coluna. Estavam ainda a vár ios quilôm etros da fronteir a de Hondur as quando,
antes do amanhec er, for am interc eptados por helic ópter os inim igos, que desc ia m
do céu como um enxam e de vespas negras, deixando cair guerr ilheir os e bom-
bas por todos os lados. Os índios e os soldados que acompanhavam Rafe conse-
guir am esc apar com os outros prisioneir os libertados, por ém Jack e seus três ho-
mens for am captur ados e levados para outro dos muitos institutos de fraternidade
universal que havia no país — na verdade, para o pior de todos que sequer era re-
gis-‘ trado ofic ia lm ente. Ser ia danoso para a imagem do novo governo se, de re-
pente, os povos do mundo tom assem conhec im ento de que o novo par aíso oper á-
rio abrigava uma poc ilga como aquele centro de reeduc aç ão, onde, em nome da
liberdade, pessoa s eram mutiladas, tortur adas e mortas. Na melhor traduç ão da
ficç ão de George Orwell, o campo para o qual Jack fora levado não tinha nome,
e, como não tinha nome, não existia.
Os prisioneir os também não tinham nome, nem as celas tinham núm er o.
Jack e outros três soldados exemplar es do exérc ito amer ic ano sof rer am tortur as
físic as e psic ológic as, for am hum ilhados e degradados, passar am fome e frio, vi-
ram-se obrigados a conviver dia e noite com amea ç as de novas tortur as ou de
exec uç ões sim uladas. Um deles morr eu e outro enlouquec eu; apenas Jack e seu
melhor amigo, Osc ar Weston, conseguir am manter a vida e a sanidade mental
dur ante os onze meses e meio em que perm anec er am presos.
Oito anos depois, sentado na neve, com as costas apoia das num barr anc o em
Connectic ut, à esper a de um carr o blindado, Jack sentia cheir os e ouvia ruídos
que não fazia m parte daquela noite gelada. Passos de botas num corr edor de con-
creto. O fedor dos baldes cheios de fezes e urina. Os uivos de medo dos prisionei-
ros que os tortur ador es iam busc ar para outra sessão de interr ogatór io.
Jack fec hou os olhos e respir ou fundo, enc hendo os pulmões com o ar limpo
e gelado de Connectic ut. Rar am ente pensava naqueles dias de horr or. Para ele, o
pior ocorr er a depois que fugir a de lá, depois que souber a o que havia acontec ido
com sua Jenny. 0 inf erno em que viver a na Amér ic a Central não conseguir a des-
truí-lo, mas o que o mundo fizer a com Jenny deixar a-o arr asado. Outros far óis
surgir am no hor izonte. Jack muniu-se do binóc ulo: era o carr o blindado que se
aproxim ava. O relógio marc ava 9:38. Pontua l, como todas as noites da sem ana.
Apesar do fer ia do do dia seguinte, a melhor companhia de transporte de valo-
res do país jam ais se atrasava...
Jack ajoe lhou-se e abriu a valise de cour o que estava a seu lado no chão.
Continha um rádio, sintonizado na freqüênc ia do apar elho do carr o blindado. O
motor ista com unic ava-se com um dos postos de assistênc ia instalados ao longo do
cam inho:
— Três-zero-um na esc uta — disse alguém.
— Rena — o motor ista respondeu.
— Rodolf o.
— Rede.
0 posto fizer a contato cham ando o núm er o do carr o e o motor ista responder a
com a senha adequada conf irm ando que tudo estava bem com o carr o 301. Uma
senha para cada dia da sem ana.
Jack desligou o rádio, fec hou a valise e voltou-se para ver o carr o blindado
passar a pouc os metros de seu posto de observaç ão. Seu plano estava pronto. O
carr o 301 era pontua líssim o, e ele não prec isar ia voltar àquela colina até a noite
do assalto, marc ado, em princ ípio, para o sábado, dia 11 de janeir o. Faltava-lhe
apenas acertar os últim os detalhes.
Em ger al, Jack gostava tanto de planej ar quanto de agir. Naquela noite, con-
tudo, voltando para o carr o que deixar a estac ionado numa rua tranqüila, onde não
cham ar ia a atenç ão de ninguém, ia cabisbaixo e pensativo. Talvez com eç asse a
perder também a capac idade de se divertir com a esper a da exec uç ão de
um plano crim inoso. Estava muito mudado... e não conseguia entender a razão.
Ao aproxim ar-se do carr o, a noite já não estava tão esc ur a. Ele olhou para
cima e viu a lua brilhante, amar elada, imensa como se tivesse cresc ido muito em
sua via gem pelo espaç o e ainda estivesse cresc endo. Par ou de repente, os olhos
fixos nela, o queixo para cima, sem conseguir mover-se. Sentiu um calaf rio na
espinha, uma espéc ie de arr epio nos ossos...
— A Lua — murm ur ou.
Com o som da própria voz, o arr epio alastrou-se pela pele, por todo o corpo.
Era prec iso fugir dali... rápido, rápido! Antes de ser corr oído pela luz ácida que
par ec ia pingar da Lua. Algum a coisa com eç ava a amolec er dentro dele... Era
prec iso fugir!
O medo passou tão repentinam ente como surgir a. Jack não conseguia enten-
der o que havia acontec ido. O que ter ia a Lua a ver com aquilo? A Lua... a mes-
ma velha Lua de sempre, das canç ões de amor e dos poe tas. Muito estranho.
Continuou a andar na dir eç ão do carr o, mas não esquec ia a Lua e, meio sem
quer er, ainda vir ou-se para olhá-la, testa franzida.
No carr o, dir igindo para New Haven, afinal, conseguiu par ar de pensar na
Lua. Jenny, como sempre, ocupava-o inteir o, cor aç ão e cér ebro... No Natal, en-
tão, era ainda mais triste pensar que ela estava no hospital, em coma irr eversível.
Mais tarde, da janela do apartam ento, olhando a cidade ilum inada, com uma
garr af a de cervej a na mão, Jack conc luía que, da Rua 261 ao Park Row, de Ben-
sonhurst a Little Neck, não existia na cidade alguém mais solitár io do que ele na-
quela vésper a de Natal.
7. DIA DE NATAL
DESCOB ERTA
Coragem é resistênc ia ao medo, controle do medo — não ausênc ia do medo.
Mark Twain
Qual o sentido da vida?
Qual o objetiv o que permanec e oculto atrás de nossa luta?
De onde vie mos, para onde vamos?
Sempre as mesmas eternas perguntas soam e ecoam Atrav és dos dias, ao lon-
go das noites de solidão. Aspiramos à luz, esplêndida luz Que nos trará a rev ela-
ção Do sentido do sonho do homem.
Livro das Lam entaç ões
Um amigo pode ser considerado a obra-prima da Natureza.
Ralph Waldo Emerson
Q UATRO__________________
26 de dezembro — 11 de janeir o
1. BOSTON, MASSACHUSETTS
2. PORTLAND, OREG ON
No dom ingo, dia 5 de janeir o, Dom inick Corvaisis tom ou um aviã o para Por-
tland e instalou-se num hotel bem próxim o da casa onde havia mor ado. Chovia
muito e fazia frio.
Dom passou a tarde no quarto, sentado dia nte da janela, ora contemplando a
paisagem, ora exam inando mapas das estradas que cortavam a regiã o. Por vár i-
as vezes conseguiu rec onstituir as etapas da via gem que fizer a no ver ão retrasado
e que se prepar ava para repetir a partir do dia seguinte.
Como disser a a Parker Faine no dia de Natal, estava convenc i-
do de que, em determ inado ponto daquèla via gem, esbarr ar a em algum a
coisa proibida. Por mais par anóic o que pudesse par ec er, estava convenc ido tam-
bém de que alguém o subm eter a a lavagem cer ebral para fazê-lo esquec er o que
vira. Era a únic a conc lusão possível, depois do que dizia m os bilhetes mister iosos
de seu corr espondente anônim o.
Dois dias antes, rec eber a uma terc eir a mensagem, num envelope postado
em Nova York e que ele agor a esvazia va sobre a mesa. Dessa vez o envelope não
continha nenhum bilhete, apenas duas fotograf ia s.
A prim eir a foto não o impressionou, por ém provoc ou-lhe estranha tensão.
Dom tinha certeza de que não conhec ia aquele hom em, um padre jovem, gordu-
cho, de cabelos ruivos, olhos verdes e nar iz sardento. Sentado junto a uma peque-
na esc rivaninha, com uma mala ao lado da cadeir a, o padre olhava dir etam ente
para a câm ar a; seu rosto redondo era tão inexpressivo quanto o rosto de um ca-
dáver.
A segunda foto causou-lhe surpresa e emoç ão muito maior es, que persistia m
mesm o depois da centésim a vez que a exam inava. Mostrava uma mulher jovem,
que Dom tinha a impressão de conhec er de algum lugar, mas não se lembrava
de onde. Olhando para aquele rosto, sentia o mesm o medo que o atorm entava
ao despertar dos pesadelos ou sair das crises de sonambulism o. A moça devia ter
vinte e seis ou vinte e sete anos. Era loir a, de olhos azuis e exc epc ionalm ente bo-
nita — ou melhor, seria exc epc ionalm ente bonita se não tivesse o rosto tão vazio
e ausente como o do padre. A foto foc alizava-a da cintur a para cima, deitada
numa cama estreita, com o lenç ol puxado até o queixo. Ela estava amarr ada à
cama, e em seu braç o via-se uma ser inga com agulha intra-venosa. Par ec ia pe-
quena, frac a, indef esa e oprim ida.
Desde o prim eir o mom ento, aquela fotograf ia rec ordava-lhe o pesadelo dos
hom ens gritando perto dele e obrigando-o a inc linar-se sobre uma pia. Às vezes,
o pesadelo com eç ava numa cama par ec ida, envolta numa névoa amar elada que
o impedia de ver. Quanto mais olhava para a moça mais Dom se convenc ia de
que, em
algum lugar do planeta, havia uma foto igual àquela, onde ele próprio apar e-
cia amarr ado a uma cama, com uma agulha espetada na veia do braç o, o rosto
vazio como o de um zumbi.
Ao ver as duas fotograf ia s, na sexta-feir a em que Dom as rec eber a, Parker
Faine com entar a:
— Corto o saco se estiver err ado, mas sou capaz de apostar que essa moça
está sob efeito de drogas, sendo subm etida a um proc esso quím ic o de lavagem
cer ebral, provavelm ente como você também foi. Deus do céu... Essa histór ia
está fic ando cada vez mais mister iosa. O tipo da histór ia que ninguém pode con-
tar para a políc ia, porque não se sabe de que lado a políc ia está. E se você tiver
metido as patas em algum proj eto sec reto do governo? Pelo menos resta o conso-
lo de saber que você não foi o únic o a ver o que não devia. O padrec o e a gar ota
também estavam por lá. Quem fez esse trabalho em voc ês estava muito inter es-
sado em esc onder seu segredo. E que segredo, para justif ic ar tanto transtorno!
Sentado dia nte da janela de seu quarto de hotel, Dom segur ava uma foto em
cada mão, lado a lado, exam inando ora uma, ora outra.
— Quem são voc ês? — perguntou em voz alta. — Como se cham am? O
que nos terá acontec ido por essa estrada?
Ao longe, nos lim ites da noite de Portland, brilhou um relâmpago, prenunc i-
ando tempestade. Em minutos a chuva com eç ou a cair, pesada, batendo como
casc os de cavalo nas par edes do hotel, sac udindo as vidraç as.
Hor as mais tarde, Dom amarr ou-se à cama, usando o equipam ento que já
passar a por consider ável melhor ia desde o Natal. Em prim eir o lugar, desc obrir a
que, para evitar esc or ia ç ões nos pulsos, bastava envolvê-los com gaze. Depois
substituir a o barbante por um fio de náilon torc ido, mais fino, por ém muito
mais resistente, do tipo usado pelos alpinistas em grandes esc aladas. Dec idir a
adotar o fio de náilon porque na noite de 28 de dezembro conseguir a soltar-se, ro-
endo o barbante que o prendia à cama. O fio de alpinista era tão resistente quanto
um cabo de aço e muito mais fác il de transportar.
Na prim eir a noite em Portland, Dom acordou três vezes, debatendo-se para
se livrar dos nós, sua ndo, ofegante, com o cor aç ão dispar ado, e gritando:
— A Lua! A Lua!
Um dia depois do Natal, Jorj a Monatella levou Mar eie ao consultór io do dr.
Louis Besanc ourt, onde ocorr eu uma cena terr ível, que os deixou sem fala, um
frente ao outro. Já quando se aproxim ava da sala de esper a, Mar eie com eç ou a
chor ar; logo passou aos gritos mais lanc inantes, esperneou e esbravej ou como
nunc a fizer a:
— Não! Médic o, não! Ele vai me mac huc ar! Naol
Em ger al a menina era tranqüila e muito bem comportada. Em suas rar as
crises de mau hum or ou de desobediê nc ia, bastavam-lhe uma ou duas palm adi-
nhas no traseir o para se acalm ar. Jorj a tentou esse últim o rec urso e arr ependeu-
se: pela prim eir a vez na vida, as palm adas tiver am efeito oposto ao esper ado, e
só fizer am aum entar os berr os, os pontapés e as lágrim as.
Foi prec iso pedir ajuda a uma enf erm eir a para arr astar Mar eie até a sala de
consultas. O próprio dr. Besanc ourt, sempre tão simpátic o e pac ie nte, só conse-
guiu apavor ar ainda mais a gar ota. Quando ele apanhou o oftalm osc ópio para
exam iná-la, Mar eie urinou na calç a, como no dia de Natal. E depois, exatam ente
como naquele dia, o desc ontrole absoluto cedeu lugar à mesm a calm a ausente,
que fizer a Jorj a pensar em autism o. Muito pálida, ainda trêm ula, a menina par ou
de repente, os braç os caídos ao longo do corpo.
Então o dr. Besanc ourt pôde proc eder ao exam e, que não lhe perm itiu dia g-
nostic ar qualquer anorm alidade, embor a não houvesse dúvida de que algum a
coisa não ia bem. O médic o falou sobre a possibilidade de um distúrbio neur oló-
gic o ou cer ebral, aventou a hipótese de problem as psic ológic os, e pediu uma lon-
ga sér ie de exam es, para os quais ser ia nec essár io internar Mar eie no Hospi-
tal Sunr ise por alguns dias.
A cena do consultór io foi apenas uma amostra do que acontec er ia no hospi-
tal. A simples apar iç ão de um médic o ou enf erm eir a bastava para mergulhar a
menina no pânic o mais irr ac ional e absoluto. Do pânic o, ela evoluía para a histe-
ria, até que, fisic am ente exausta, caía naquela espéc ie de transe catatônic o do
qual levava hor as para se rec uper ar.
Jorj a pediu uma sem ana de lic enç a no cassino e pratic am ente mudou para o
hospital dur ante os quatro dias de exam es. Quando podia, dorm ia numa cama
adic ional instalada no quarto, e dorm ia pouc o: mesm o sob o efeito de fortes seda-
tivos a menina passava as noites aos gritos, debatendo-se sem par ar.
— A Lua! — exc lam ava. — A Lua!
No quarto dia, Jorj a estava a ponto de pedir soc orr o ao médic o, quando Ma-
reie simplesm ente voltou ao norm al. Mostrou-se contrar ia da por estar no hospital
e pediu para voltar para casa, mas nao gritou nem agiu como se todos os dem ôni-
os a perseguissem. Continua va pálida, nervosa e tensa, por ém pela prim eir a vez
em dias com eu com grande apetite.
Mais tarde, enquanto Mar eie alm oç ava, depois de passar pelo últim o exam e
previsto, o dr. Besanc ourt cham ou Jorj a para uma conversa partic ular:
— Não enc ontram os nada — inf orm ou, os olhos gentis de sempre brilhan-
do no rosto redondo. — Todos os exam es for am negativos. Mar eie não tem ne-
nhum tum or cer ebral nem qualquer lesão ou disf unç ão do apar elho neur ológic o.
— Graç as a Deus!
— Vou enc am inhá-la para um psic ólogo inf antil, Ted Coverly, que saber á
como ajudá-la. De qualquer modo... tenho um palpite. E engraç ado, mas acho
que já cur am os Mar eie, sem saber.
•— Como?! O que está quer endo dizer? — Jorj a estava perplexa.
— Uma das hipóteses de dia gnóstic o era que ela tivesse desenvolvido um
tipo de fobia. Os sintom as são típic os... medo irr ac ional, crises pânic as... Um dos
métodos utilizados para elim inar
fobia s é o que cham am os de “choque ter apêutic o”. Dur ante algum tempo o
pac ie nte é exposto ao fator que desenc adeia as crises de pânic o até que a fobia se
esgote por si mesm a. É uma ter apia violenta e extrem am ente agressiva, que eu
jam ais rec om endar ia a uma cria nç a. Mas é possível que, sem quer er, a tenha-
mos induzido a um “choque ter apêutic o” pelo simples fato de mantê-la internada
no hospital dur ante quatro dias.
— E por que ela desenvolveu essa fobia? Como é que foi ocorr er uma coi-
sa tão... esquisita? — Jorj a franziu as sobranc elhas. — Mar eie nunc a esteve hos-
pitalizada, nunc a passou por nenhum a exper iê nc ia desagradável com médic os ou
hospitais. Na verdade, ela nunc a fic ou rea lm ente doe nte!
O dr. Besanc ourt balanç ou a cabeç a e afastou-se para dar passagem a uma
maca empurr ada por duas enf erm eir as.
— Sabem os pouc a coisa sobre a origem das fobia s — explic ou. — Sabe-
mos, por exemplo, que não é nec essár io ser sobrevivente de um desastre de avi-
ão para ter medo de voar. As fobia s são... inesper adas. Mesm o que Mar eie estej a
cur ada, sempre poder á restar algum vestígio de medo, com o qual valer á a pena
o psic ólogo trabalhar. Fique traqüila. Ted Coverly saber á o que fazer com sua fi-
lha.
Naquela mesm a tarde, dia 30 de dezembro, segunda-feir a, Mar eie rec ebeu
alta e voltou para casa. Par ec ia totalm ente cur ada, rindo como sempre, alegre e
tagar ela. Mal entrou em casa, corr eu para sua pilha de presentes e brinc ou um
pouc o com o “Médic o Inf antil”, que logo troc ou por uma bonec a.
Pouc o depois os avós for am visitá-la. Enquanto Mar eie estava hospitalizada,
Jorj a conseguir a mantê-los a distânc ia, explic ando que as visitas poder ia m retar-
dar a rec uper aç ão da menina; em casa, por ém, como ela par ec ia muito bem, to-
dos se tranqüilizar am. Dur ante o jantar, sorr idente e tranqüila, Mar eie gar antiu a
estabilidade e a paz dom éstic as.
Jorj a ainda deixou a filha dorm ir em sua cama nas três noites seguintes, te-
mendo que os pesadelos voltassem a atorm entá-la. Contudo, apenas duas vezes
em três noites acordou com o grito
de “A Lua!” — na verdade, mais um gem ido que um grito. Numa dessas
noites, Jorj a resolveu contra-atac ar e, na manhã seguinte, perguntou à filha se so-
nhar a com a Lua.
— Sonho de Lua? — Mar eie sac udiu os cac hos lour os. — Não sonhei com
a Lua... sonhei com cavalos. Será que algum dia você me compra um cavalo de
verdade?
— Pode ser... Quando tiverm os uma casa grande.
— C/aro! — A menina riu alto. — Como é que eu ia ter um cavalo no apar-
tam ento?! Os vizinhos iam rec lam ar...
Na quinta-feir a Mar eie teve a prim eir a consulta com o dr. Co-verly e gostou
dele. Se ainda sentia medo de médic os conseguiu disf arç ar muito bem e rea giu
com total norm alidade. Foi a prim eir a noite, desde a volta do hospital, em que
dorm iu no outro quarto, com a únic a companhia do urso de pelúc ia. Três ve-
zes, ao longo da noite, Jorj a levantou-se para vê-la e apenas uma vez ouviu-a
murm ur ar a ladainha conhec ida: “Lua... Lua... Lua”. Estranha e assustador a la-
dainha, porque Mar eie par ec ia emitir um gem ido, que podia ser tanto de dor
como de prazer.
Na sexta-feir a, com três dias de fér ia s esc olar es pela frente, Jorj a deixou
Mar eie aos cuidados de Kara Persaghia n e foi trabalhar. Sentiu-se quase alivia da
por voltar à bar ulheir a e à fum aç a do cassino. Cigarr os, fedor de cervej a azeda,
mau hálito... qualquer coisa era melhor que cheir o de desinf etante de hospital.
No fim da tarde, quando foi busc ar a filha, Mar eie exibiu-lhe, orgulhosa, a
produç ão de um dia inteir o de desenhos: dezenas de luas, de todos os tam anhos e
cor es imagináveis.
Na manhã de dom ingo, dia 5 de janeir o, quando se dir igia à cozinha para
prepar ar o café, Jorj a enc ontrou Mar eie instalada à mesa da sala. Ainda de pij a-
ma, a menina estava desc olando todas as fotograf ia s de seu álbum de bebê e em-
pilhando-as cuidadosam ente.
— Vou guardar as fotos nessa caixa de sapatos porque prec iso do álbum
para fazer uma coleç ão de luas.
— Por que está tão inter essada na Lua?
— Porque é bonita — Mar eie respondeu, colando a prim eir a da coleç ão.
Colou-a e par ou, olhos muito fixos, fasc inada, como que em transe. O mesm o
olhar com que fitava o “Médic o Inf antil”.
Com um arr epio de medo, Jorj a lembrou que a fobia aos médic os com eç ar a
daquele jeito, em apar ente calm a, quase sem que ela perc ebesse. E se Mar eie ti-
vesse apenas troc ado de fobia? Seu prim eir o impulso foi corr er para o telef one e
ligar para o dr. Co-verly, mesm o sabendo que era dom ingo e dif ic ilm ente o en-
contrar ia. Antes de ligar, por ém, pensou melhor e conc luiu que estava se assus-
tando à-toa. Afinal de contas, Mar eie não par ec ia ter medo da Lua, só estava...
fasc inada. A Lua era outra das suas paixões fulm inantes e passageir as. Qualquer
mãe de uma gar otinha de sete anos conhec e bem esses repentes de entusia sm o,
tão fugazes quanto envolventes.
Pelo sim, pelo não, dec idiu contar tudo ao psic ólogo quando levasse Mar eie
ao consultór io para a segunda sessão, na terç a-feir a seguinte.
Vinte minutos depois da meia-noite de segunda-feir a, Jorj a foi ver se a filha
dorm ia bem e enc ontrou-a acordada, sentada junto à janela, no quarto esc ur o,
olhando para o céu.
— O que acontec eu?
— Nada. Venha ver — respondeu a menina sem vir ar a cabeç a.
Jorj a aproxim ou-se da janela e perguntou:
— O que você está vendo?
— A Lua... — Mar eie nem pisc ava, o rostinho erguido para o céu, onde bri-
lhava o quarto cresc ente. — A Lua...
4. BOSTON, MASSACHUSETTS
5. A CAM INHO
Na manhã de segunda-feir a, dia 6 de janeir o, dir igindo um carr o alugado,
Dom Corvaisis visitava, pela segunda vez, a regiã o onde
mor ava, em Portland, proc ur ava o hom em que havia sido, mais de dezoito
meses atrás, quando partir a para Mountainvie w, Utah. A chuva pesada cessar a
pouc o antes de o dia clar ea r. O céu, ainda coberto de nuvens, era o mais cinzento
que ele já vira, sombrio como o de uma paisagem devastada.
Dir igiu pelo campus da universidade, estac ionando sempre que algum rec an-
to lhe par ec ia fam ilia r, tentando reenc ontrar o estado de espír ito em que deixar a
a cidade. Par ou depois à frente do prédio onde havia mor ado, dem or ou-se bom
tempo olhando para sua antiga janela e convenc eu-se de que jam ais ser ia capaz
de redesc o-brir a tim idez do Dom Corvaisis que se esc ondia na toca do coe lho,
como dizia Parker. Conseguia rever aqueles dias, conseguia pensar em suas rea -
ções, mas as lembranç as não eram vivas. Não se sentia como antes; tinha a im-
pressão de reviver um tempo que não fazia parte de seu passado pessoa l. Talvez
fosse um bom sinal: sinal de que jam ais voltar ia a ser aquele Dom da toca de co-
elho.
Já não duvidava de que algum a coisa se passar a naquele ver ão, o ver ão da
mudanç a. Talvez na estrada, dur ante a via gem. E tampouc o duvidava de que a
lembranç a lhe fora roubada, o que cria va, ao mesm o tempo, um dilem a, uma
contradiç ão e um mistér io. O mistér io consistia em que, fosse qual fosse o acon-
tec im ento fantástic o daquele ver ão, o resultado havia sido positivo. Mas como ex-
plic ar que uma exper iê nc ia de horr or resultasse numa mudanç a para melhor? O
resultado era bom... por ém os retalhos das lembranç as povoa vam seus pesadelos.
Como era possível que aquela louc ur a fosse, ao mesm o tempo, bela e terr ível?
A resposta, se resposta houvesse, não estava em Portland, mas em algum lu-
gar da estrada. Dom ligou o carr o, engrenou a marc ha e partiu rumo ao desc o-
nhec ido.
O cam inho mais curto de Portland a Mountainvie w com eç ava na Rodovia 80
em dir eç ão ao norte. Mas, como fizer a dezoito meses antes, Dom optou por outra
rota e rum ou para o sul, tom ando a Rodovia 5. Planej ar a uma par ada em Reno,
pensando em pesquisar mater ia l para alguns contos sobre jogo e jogador es, e a
Rodovia 5 era o únic o cam inho.
Já repetia todos os passos, dir igindo devagar, como fizer a antes, porque cho-
ver a muito no ano da prim eir a via gem e a estrada tinha trec hos dif íc eis. Como da
prim eir a vez, par ou em Eugene para alm oç ar.
Sempre à proc ur a de qualquer detalhe que o ajudasse a lembrar-se, ia pa-
rando em todas as pequenas cidades pelas quais passava. Não viu nada estranho
ou intrigante, e não acontec eu nada até Grand Pass, aonde chegou pouc o antes
das seis da tarde, rigor osam ente conf orm e o cronogram a.
Hospedou-se no mesm o hotel esc olhido na prim eir a via gem; lembrando-se
até do núm er o do apartam ento que fic ava junto às bar ulhentas máquinas de re-
friger ante. O apartam ento 10 estava vago, e Dom conseguiu que o ger ente o dei-
xasse fic ar lá, explic ando que tinha “motivos sentim entais” para esc olhê-lo.
Jantou no mesm o restaur ante onde jantar a no passado, bem em frente ao ho-
tel, do outro lado da estrada. Andava em busc a de um satori, uma ilum inaç ão
zen, uma revelaç ão de verdades prof undas, e acabava de mãos vazia s, às esc u-
ras, como antes.
Passar a o dia com os olhos pregados ao espelho retrovisor para saber se al-
guém o seguia. Dur ante o jantar, volta e meia espia va por cima do ombro, para
os lados, tentando desc obrir um rosto suspeito. Se rea lm ente havia alguém atrás
dele; era o mestre dos disf arc es. As nove da noite, sem quer er usar o telef one do
quarto, foi até um posto telef ônic o e, usando o cartão de crédito, pediu uma liga-
ção para uma cabine públic a em Laguna Bea c h. Conf orm e o combinado, Parker
estava à esper a, com um relatór io completo sobre a corr epondênc ia que rec olhe-
ra da caixa postal do amigo naquela manhã. Dif ic ilm ente um dos telef ones esta-
ria sendo vigia do, mas, depois de rec eber as fotograf ia s, Dom dec idir a, e Parker
conc ordar a, que ao tratar do assunto dos sonhos cautela e par anóia ser ia m sinôni-
mos.
— Contas — disse Parker. — E propaganda. Nada de bilhetes estranhos ou
fotograf ia s. Como vão as coisas por aí?
— Tudo norm al até agor a. — Dom viu a própria imagem ref letida no vidro
da cabine. — Tive problem as para dorm ir a noite passada.
— Mas você chegou... a sair para uma cam inhada?
— Nem consegui desm anc har os nós. Mas tive pesadelos. A Lua, outra vez.
Tem certeza de que não foi seguido até aí?
— Tenho. Só se eles conhec er em o segredo da invisibilidade — Parker res-
pondeu. — Acho que você pode ligar para cá amanhã à noite. E não prec isa se
preoc upar com o telef one.
— Estam os falando como dois maluc os.
— Para mim é muito divertido — Parker riu. — Par ec e film e de moc inho
e bandido, políc ia e ladrão, espiões... Sempre fui bom nessas coisas. Faça o que
tem que fazer, amigo. E, se prec isar de ajuda, grite que eu vou corr endo.
— Eu sei.
Dom voltou ao hotel, o vento úmido e frio batendo-lhe no rosto. Como em
Portland, acordou três vezes dur ante a noite, sempre saindo de pesadelos que não
conseguia lembrar, sempre gritando de medo, falando sobre a Lua.
Na manhã de terç a-feir a, dia 7 de janeir o, Dom levantou-se cedo e tom ou a
Rodovia 80 para Reno. Chovia muito e fazia frio. Continuou a chover dur ante
quase toda a via gem e, quando ele chegou às Sie rras, com eva a nevar. Par ou
num posto de beir a de estrada, comprou corr entes antiderr apantes para os pneus
e mandou coloc á-las antes de seguir via gem.
No ver ão retrasado, levar a mais de dez hor as para ir de Grant’s Pass a Reno;
ao repetir o itiner ár io, a via gem acabou sendo ainda mais dem or ada. Depois de
preenc her a fic ha de entrada no Hotel Harr ah’s, o mesm o de antes, telef onou
para Parker Faine de uma cabine e entrou num bar para um lanc he rápido. Esta-
va tão cansado que só quer ia folhea r o jornal para distrair-se um pouc o e ir logo
dorm ir. Estava sentado na cama, de cue c as, às oito e meia da noite, jornal aberto,
quando leu a notíc ia sobre Zebedia h Lom ack:
HOMEM DA LUA DE IXA HE RANÇA DE ME IO MIL HÃO DE
DÓLARES
RENO — Zebedia h Har old Lom ack, 50 anos, cujo suic ídio no dia de Natal
levou à desc oberta de uma estranha obsessão pela imagem da Lua, deixou uma
her anç a estim ada em mais de meio milhão de dólar es. Segundo doc um entos
apresentados por Elea nor Wolsey, irmã do morto e sua exec utor a testa-mentár ia,
os bens estão representados por ações de fundos de investim ento e letras do Te-
sour o Nac ional. A casa modesta onde t Lom ack vivia, na Estrada de Wass Valley,
núm er o 1420, foi avalia da em apenas trinta e cinc o mil dólar es.
Jogador prof issional, Lom ack ter ia enr iquec ido nas mesas de pôquer. “Ele
era um dos melhor es jogador es de pôquer que conhec i”, dec lar ou Sidney Gar-
fork, o Sie rra Sid, de Reno, também jogador prof issional e campeã o mundia l de
pôquer, título que conseguiu na competiç ão do Cassino Ferr adur a, em Las Vegas.
“Ele jogava desde cria nç a”, Sie rra Sid continua, “por voc aç ão. Como há cria n-
ças que nasc em para o esporte, a ciê nc ia ou a arte, Lom ack nasc eu para o jogo”.
Ainda nas palavras de Garf ork e de outros amigos de Lom ack, o suic ida ter ia dei-
xado um patrim ônio mais valioso, não fosse sua paixão pelos dados. “Perdeu
muito nas mesas de dados”, dec lar ou um deles, “e boa parte, é clar o, o imposto
de renda levou”.
Conf orm e notic ia m os na noite de Natal, alertados por vizinhos que ouvir am
um tiro, polic ia is de Reno invadir am a casa de Lom ack, enc ontrar am-no morto
na cozinha, cerc ado de lixo. As prim eir as investigaç ões, rea lizadas no loc al, reve-
lar am milhar es de fotos da Lua coladas pelas par edes, pelo teto e até nos móveis.
A notíc ia continua va, dando a impressão de ter sido o princ ipal assunto da ci-
dade nas duas sem anas anter ior es. Dom leu e re-leu a matér ia, cada vez mais
fasc inado e ansioso. Não podia ser... Não era possível que a obsessão do tal Zebe-
dia h Lom ack tivesse
algo a ver com seus pesadelos. Coinc idênc ia... nada mais! Por ém o medo
cresc ia. O mesm o medo que o atorm entava nos pesadelos. Um medo feito de
terr or, que o fazia acordar aos berr os, sua ndo frio. Um medo que o fazia per am-
bular dur ante o sono, arm ando barr ic adas e pregando janelas.
Dom continuou com o jornal dia nte dos olhos até às nove e quinze; e então
resolveu ir até a casa de Lom ack. Vestiu-se, tir ou o carr o do estac ionam ento e in-
form ou-se sobre o melhor cam inho até a Estrada de Wass Valley. Rar am ente ne-
vava em Reno. A noite estava seca e as estradas desimpedidas. No cam inho, pa-
rou num superm erc ado e comprou uma lanterna. Pouc o depois das dez hor as,
chegava ao núm er o 1420 da Estrada de Wass Valley.
A casa era modesta, como dizia o jornal. Pouc o maior que um bangalô, num
terr eno de dois mil metros quadrados. Havia restos de neve acum ulada nas ca-
lhas e nos galhos dos pinheir os mais altos. As janelas estavam esc ur as.
Pelo que dizia o jornal, a irmã de Zebedia h chegar a da Flór ida três dias de-
pois do suic ídio para cuidar do funer al, rea lizado no dia 30, e continua va na cida-
de para resolver os problem as relativos à her anç a. Estava hospedada num hotel,
porque a casa de Zeb par ec ia-lhe “deprim ente dem ais”.
Dom era cidadão respeitador da lei e não lhe agradava a idéia de invadir a
casa de ninguém. Mas não tinha esc olha. O instinto dizia-lhe que Elea nor Wolsey
não o deixar ia entrar lá, ainda que lhe implor asse. Segundo o jornal, ela estava
“cansada da perseguiç ão desses manía c os” e não perm itir ía que a casa de seu ir-
mão fosse invadida “por hordas de cur iosos pervertidos”. Dia nte disso, Dom con-
tornou a construç ão, exper im entando as fec hadur as de portas e janelas até des-
cobrir que a janela da cozinha não estava tranc ada. Empurr ou-a, saltou sobre o
pertor il e pulou para dentro.
Cobrindo a lanterna com a mão para não cham ar a atenç ão de quem passas-
se pela rua, passeou o fac ho de luz pelas par edes e pelo teto: tudo limpo. O jornal
dizia que a irmã de Lom ack estava limpando a casa para vendê-la. Com certeza,
com eç ar a pela co-
zinha: não havia lixo, as prateleir as estavam vazia s, o chão brilhava. O ar
cheir ava a tinta fresc a e desinf etante, e não havia uma únic a Lua à vista.
E se Elea nor tivesse term inado a faxina? E se já não existisse nem rastro das
luas de Zebedia h Lom ack?
Foi apenas um instante de preoc upaç ão, pois, acompanhando a luz da lanter-
na, Dom logo chegou à sala princ ipal, onde viu centenas de imagens coladas pe-
las par edes. Era como entrar numa caverna ou mergulhar no espaç o sider al,
cheio de Luas impossíveis, crater as sobre crater as, umas ao lado e por cima
das outras. Inc apaz de orie ntar-se ali, sem saber onde acabava o chão e com eç a-
vam as par edes, Dom sentiu uma vertigem, a boca seca, e continuou andando
pelo corr edor. Mais Luas por todos os lados: algum as color idas, outras em bran-
co-e-preto; grandes e pequenas; muitas aplic adas sobre fotos mais antigas, prega-
das com cola, com fita adesiva, com etiquetas. A mesm a dec or aç ão enlouquec i-
da continua va pelos quartos, como se a Lua fosse uma espéc ie de fungo em re-
produç ão inc ontrolável, cobrindo tudo.
O jornal dizia que ninguém, além de Lom ack, estiver a naquela casa dur ante
pelo menos um ano antes do suic ídio do proprie tár io. Devia ser verdade... Quem
quer que visse aquilo cham ar ia uma ambulânc ia e far ia internar o hom em! Os
vizinhos com entavam sobre a transf orm aç ão de Lom ack, mais tac iturno a
cada dia, mais tranc ado em casa. Ao que tudo indic ava, a fasc inaç ão pela Lua
com eç ar a no ver ão retrasado... O mesm o ver ão em que a vida de Dom também
mudar a.
A cada segundo que passava, Dom fic ava mais ansioso. Era impossível en-
tender qual forç a estranha far ia um hom em cria r um cenár io assim... Entretanto,
de algum modo assustador, aluc inante, inc ompreensível, conseguia entendê-lo...
entender o que Lom ack fizer a, o que tentar a dizer...
O fac ho de luz continua va a corr er pelas par edes empapeladas, e Dom sentia
as gotas de suor gelado esc orr endo-lhe da nuca e desc endo pelo meio das costas.
As luas de papel não o fasc inavam tanto como certam ente havia m fasc inado Lo-
mack, mas o
instinto dizia-lhe que o impulso que levar a o suic ida a rec ortar e colar luas
pelas par edes da casa era o mesm o que o fazia sonhar com a Lua... e acordar
gritando.
Os dois havia m vivido a mesm a exper iê nc ia, e essa exper iê nc ia tinha algo a
ver com a Lua, personagem ou símbolo. No ver ão do ano retrasado, os dois havi-
am estado no mesm o lugar ao mesm o tempo, talvez juntos. O lugar err ado, na
hora err ada. E Lo-mack enlouquec er a sob o peso das lembranç as proibidas.
E Dom? Também acabar ia louc o? Exam inando as par edes do quarto princ i-
pal, ocorr eu-lhe de repente uma possibilidade nova: e se Lom ack não tivesse se
matado num acesso de depressão ou de desesper o? E se o tivessem impelido a
enf ia r o cano da espingarda na boca e puxar o gatilho... porque, finalm ente, con-
seguir a lembrar-se de tudo? E se a lembranç a fosse ainda mais assustador a do
que o mistér io? E se as crises de sonambulism o e os pesadelos fossem nada...
face à verdade sobre o que acontec er a dur ante a via gem de Portland a Moun-
tainvie w?
As luas par ec ia m ganhar vida própria. Era cada vez mais dif íc il respir ar...
Como se as imagens com eç assem a enc arnar o mal e se aproxim assem cada vez
mais, fec hando o cerc o...
Dom corr eu pelo quarto, aproxim ou-se da porta, tropeç ou numa pilha de li-
vros e caiu ajoe lhado, zonzo, como nos pesadelos. Não conseguia mover-se. Aos
pouc os, acalm ou-se, voltou à norm alidade... e surpreendeu-se, de olhos arr egala-
dos, frente ao nome Dominick, esc rito a caneta sobre uma das inc ontáveis fo-
tos. Não o vira ao entrar, porque não dir igir a a lanterna para aquele lado. Mas
agor a a luz amar elada inc idia dir etam ente sobre o pôster onde Lom ack esc reve-
ra... seu nome! E quem mais poder ia tê-lo esc rito?
Pelo que se lembrava, nunc a enc ontrar a Lom ack em qualquer situa ç ão, e se-
ria perda de tempo tentar convenc er-se de que se tratava de outro Dom inick. Le-
vantou-se, aproxim ou-se do pôster e exam inou-o. Depois corr eu os olhos e o fa-
cho de luz pelas fotos próxim as. Quatro delas tinham nom es esc ritos pela mesm a
mão, com a mesm a caneta: Dom inick, Ginger, Fay e, Ernie. Não eram
apenas dois os inf elizes, Lom ack e ele. Havia pelo menos outras três pessoa s,
que Dom nao imaginava quem fossem.
O tal Ernie ser ia o padre da fotograf ia que rec eber a pelo corr eio? E quem
ser ia a loir a amarr ada à cama? Ginger ou Fay e?
A medida que a luz da lanterna ia de um a outro nome, Dom sentia que aque-
las mem ór ia s soterr adas com eç avam a mover-se... Um movim ento ainda im-
perc eptível, muito frac o, mas um prim eir o sinal de que uma parte de seu passado
não estava morta para sempre. Podia voltar... Talvez ele se lembrasse... Ao pri-
meir o esf orç o para loc alizar a lembranç a, contudo, a onda quase invisível se des-
fez, como o sinal de um monstro mar inho que mergulhasse nas prof undezas.
Desde o mom ento em que entrar a na casa de Lom ack, Dom sabia que se
aproxim ava de algum a coisa importante e assustador a. Sentiu medo, mas vendo
a lembranç a esc apar-lhe como areia por entre os dedos, depois de tê-la sentido
tão perto, fic ou desesper ado.
— Por que não consigo me lembrar?! — gritou para as par edes, embor a co-
nhec esse a resposta. Alguém o induzir a a esquec er. Alguém invadir a o terr itór io
de suas lembranç as e de lá varr er a o que não desej ava ver revelado. Ainda as-
sim ele continua va a gritar. — Por quê}\ Eu quer o, prec iso me lembrar... — Er-
gueu o punho cerr ado para a foto onde Lom ack esc rever a seu nome, os olhos bri-
lhando de fúr ia. — Malditos! Filhos da puta... Malditos! Vou me lembrar, custe o
que custar! Vou me lembrarl Vou arr anc ar isso tudo!
Não toc ar a o pôster, apenas o amea ç ar a de longe com o punho e gritar a. Era
impossível, inim aginável... não podia estar acontec endo... mas foi como se o ges-
to arr anc asse a fota da par ede. As tir as de fita adesiva desprender am-se com o
ruído seco de um zí-per abrindo-se... O cartaz soltou-se da par ede e flutuou em
sua dir eç ão. Dom rec uou, tropeç ou outra vez na pilha de livros e por pouc o não
caiu de costas. Conseguiu erguer a lanterna e viu que o pôster estava par ado no
ar... parado... a um metro de sua cabeç a. Ondulando como uma folha ao vento,
para frente e para atrás, e seu nome, na letra de Lom ack, trem ulando como le-
genda insc rita numa bandeir a desf raldada.
Estou louc o, pensou. Mas sabia que não era verdade. Sabia que o papel esta-
va ali, a pouc os passos, suspenso no ar. Mal conseguia respir ar; sentia o ar denso,
carr egado de milagres.
O pôster aproxim ou-se. O feixe de luz trem eu, ref letido no papel espelhado.
Dur ante segundos, ou hor as, Dom fic ou par ado, de olhos esbugalhados... e viu as
outras fotograf ia s desprender em-se da par ede, gir ar em pela sala... em ordem,
com calm a, como cavalinhos de um carr ossel. Estava cerc ado de luas, umas
cheia s, outras cresc entes, algum as muito amplia das, expondo crater as e planíc i-
es... Perm anec eu imóvel, sentindo-se como o aprendiz de feitic eir o, capaz de dar
vida a uma vassour a, mas não fazê-la retom ar a condiç ão de vassour a.
Osc ilava da surpresa ao medo, do medo ao deslumbram ento. Não se sentia
amea ç ado. Na verdade, consider ava-se testem unha de um espetác ulo únic o, ma-
ravilhoso. Era impossível explic ar o que estava acontec endo, mas ele não tinha
medo, como se o instinto lhe dissesse que não havia o que tem er. O poder que
dava vida a cada pôster era benigno.
Deslumbrado, Dom olhou em volta, viu as fotos em sua danç a calm a, ele-
gante... e riu. Foi um erro. Num segundo, tudo mudou. Os cartazes já não danç a-
vam ser enam ente. Voa vam sobre sua cabeç a, como uma legiã o de morc egos
enlouquec idos. Batia m-lhe no rosto, nos cabelos, no peito, nas costas. Ainda não
eram ser es vivos, mas agia m como inim igos.
Dom tentou proteger-se com a mão, ergueu a lanterna na dir eç ão do teto e
viu as fotos agitando as asas, golpea ndo as par edes, colidindo umas contra as ou-
tras. Cada vez mais assustado, proc ur ou a porta, mas era dif íc il achar a saída na-
quele pandem ônio de folhas de papel voa ndo em todas as dir eç ões. Luas aladas,
em fúr ia. Não havia porta ou janela por onde esc apar.
O zumbido aum entava. No corr edor, nas outras peç as da casa, os cartazes li-
bertavam-se das colas que os prendia m, mergulhavam no ar, arr astados pela
mesm a forç a invenc ível e inc ontrolá-
vel, aproxim avam-se cia sala. A luz ref letia-se no papel brilhante. Os rec or-
tes flutua vam no ar, como folhas arr astadas pelo vento quente de um inc êndio.
As fotos menor es coladas antes e esc ondidas por vár ia s cam adas de novas fotos,
soltavam-se também e voa vam. Uma delas colou-se aos lábios de Dom, que a
cuspiu para longe, apavor ado.
Outra vez, o instinto soprou-lhe uma idéia. Aquele balé enlouquec ido poder ia
ajudá-lo a lembrar-se. Não sabia por quê, não conseguia adivinhar quem estar ia
por trás daquilo, mas era quase como ler nas folhas de papel que o cerc avam.
Bastava deixar-se levar, mergulhar fundo naquele mar de luas para enc ontrar a
resposta que busc ava e redesc obrir o que desc obrir a uma vez, dois ver ões antes,
na Rodovia 80. Era um mergulho arr isc ado, um salto no esc ur o, que o fasc inava
e amendrontava ao mesm o tempo.
— Não! — gritou uma, duas vezes, cobrindo os ouvidos com as mãos, fe-
chando os olhos com forç a. — Par em! Par em... Parem, já! — E gritou mais, até
faltar-lhe a voz.
Como surgiu, a cir anda de fotos par ou de repente, uma últim a nota suspensa
em plena sinf onia. Dom não esper ava ser obedec ido com tanta presteza, porque
ainda levar ia algum tempo, para desc obrir que era ele próprio o mágic o daquele
espetác ulo.
Tir ou as mãos da cabeç a e abriu os olhos. Vac ilante, estendeu o braç o e apa-
nhou um dos cartazes par ados em pleno ar a sua frente. Toc ou os dois lados do
papel. Nada de espec ia l, nem com o papel, nem com a ilustraç ão, e ainda assim
lá estava, suspenso.
— Como?! — perguntou em voz alta, imaginando, talvez, que luas capazes
de flutua r no quarto também pudessem falar. — E por quê?
Como se fossem uma só, as luas despenc ar am e caír am a seus pés. Como se
o enc anto estivesse quebrado. Simples papéis velhos e amontoa dos no chão.
Assustado, à beir a de um colapso, Dom corr eu para a porta. As luas continu-
avam no chão, como folhas sec as no outono. Ele par ou à porta e, com a lanterna,
exam inou o corr edor. Não sobrava uma únic a lua colada. As par edes estavam
completam ente
limpas. Dom voltou ao quarto, ajoe lhou-se entre os rec ortes, curvou-se,
aproxim ou a lanterna e com eç ou a rem exer nos papéis, com mãos trêm ulas, à
proc ur a de qualquer explic aç ão para o episódio.
Não sabia o que pensar nem o que sentir, porque jam ais lhe ocorr er a nada
par ec ido. Quase riu, mas antes do prim eir o esboç o de riso sentiu medo. O mes-
mo medo frio de sempre. Sabia que estiver a dia nte de algo terr ível, dia nte do
mal... o mal além de qualquer palavra. O mal em si. Ao mesm o tempo, sabia
que testem unhar a um milagre que tangenc ia va o bem mais puro. O bem e o mal.
Talvez os dois, ligados na mesm a entidade. Talvez outra coisa, que não era bem
nem mal, apenas... outra coisa, que existia além dos lim ites das palavras.
Outra certeza com eç ava a brotar: o que quer que acontec er a no ver ão retra-
sado, era mil vezes mais inac reditável do que um ser hum ano poder ia imaginar.
Ainda estava mexendo nos rec ortes, quando perc ebeu os sinais nas palm as
das mãos. Dois anéis averm elhados, um em cada palm a. Dois anéis de pele in-
chada. Dois anéis perf eitos, como que risc ados a compasso.
Enquanto Dom olhava, boquia berto, os anéis sum ir am.
Era terç a-feir a, dia 7 de janeir o.
6. CHICAG O, ILLINOIS
CINCO________
12 - 14 de janeir o
1. DOM ING O, 12 DE JANEIRO
3. TERÇA-FEIRA, 14 DE JANEIRO
As sete e meia da manhã de terç a-feir a, atendendo ao pedido que Brendan
Cronin lhe fizer a por telef one na vésper a, tarde da noite, o padre Stef an Wy c azik
prepar ava-se para ir a Evanston, Chic ago. Dever ia proc ur ar Calvin Sharkle, o ca-
minhoneir o que se hospedar a no Motel Tranqüilidade em julho do ano retrasado
e que, fazia sem anas, par ec ia ter-se evapor ado do planeta. Depois do que ocorr e-
ra em Nevada, na noite anter ior, não havia dúvida de que todas as vítim as prec i-
savam ser loc alizadas a qualquer custo. Na cozinha da casa par oquia l, Stef an pu-
nha casac o e chapéu.
Ainda sentado para o café da manha, depois de celebrar a prim eir a missa do
dia, o padre Gerr ano levantou a cabeç a:
— O senhor dever ia me contar o que sabe sobre Brendan. Se acontec er al-
gum a coisa...
— Não vai acontec er nada — Wy c azik respondeu depressa. — Deus não
perder ia cinc o déc adas me ensinando os segredos do mundo, se quisesse que eu
morr esse agor a, justam ente quando estou próxim o de prestar um grande serviç o
à Igrej a.
— Ah... — fez o outro, balanç ando a cabeç a. — O senhor é tão...
— ... segur o de minha fé? — completou o velho cura. — Clar o que sou.
Conf ie em Deus, e Ele não lhe faltar á.
— Na verdade, eu ia dizer — continuou o padre Gerr ano — que o senhor é
tão... teim oso...
— Grande atrevim ento o seu — Stef an enr olou o cac hec ol no pesc oç o. —
Um simples cura! “Perdoa i, Pai... Eles não sabem o que dizem!” O cura perf eito
deve ser hum ilde e trabalhar como uma mula, com energia de um cavalo dopa-
do. Além, é clar o, de ser subm isso e respeitoso para com os super ior es...
— Desde que o super ior imedia to seja um velhinho pie doso, sossegado, de-
dic ado de corpo e alma ao dia-a-dia de seus paro-quia nos — conc luiu o outro.
O telef one toc ou.
— Se for para mim, diga que já saí. — O padre Wy c azik corr eu para a
porta, calç ando as luvas, e par ou, porque Gerr ano, cobrindo o fone, sussurr ou-lhe
que Winton Tolk quer ia falar. E disse que par ec ia histér ic o, aos berr os, à proc ur a
de Brendan.
Stef an voltou, apanhou o telef one e identif ic ou-se.
— Pelo amor de Deus — Tolk mal conseguia falar —, o senhor tem de en-
contrar Brendan Cronin. Não posso esper ar!
— Brendan via j ou. Será que não posso ajudá-lo?
— Via j ou... Oh, não... — Uma pausa, e Tolk continuou, falan-
do aos arr anc os: — Acontec e uma coisa estranha... a coisa mais estranha
que já vi! E tenho certeza de que envolve Brendan.
— Prec isam os conversar. Onde está você?
— Estou de serviç o, no centro da cidade. Houve um tir oteio, agressão a
faca. Foi horr ível. E então... Por favor, o senhor prec isa me ajudar a enc ontrar
Brendan porque ele é a únic a pessoa capaz de explic ar o que houve.
Stef an conseguiu arr anc ar um ender eç o de Winton, saiu corr endo da casa
par oquia l, dir igiu como um louc o até o centro da cidade e menos de meia hora
depois chegava a um quarteir ão de prédios cinzentos, todos de seis andar es, suj os
e velhos. Foi obrigado a estac ionar longe do núm er o que Tolk lhe dera, porque a
rua estava tom ada por via tur as da políc ia, pelo carr o do Instituto Médic o-Legal e
por dezenas de guardas que andavam de um lado para o outro com rádios cola-
dos à orelha. E foi a um deles que Stef an perguntou:
— O que houve?
— Conf usão no terc eir o andar. No apartam ento da fam ília Men-doza —
respondeu-lhe o polic ia l.
O vidro da porta do prédio estava quebrado, colado com fita isolante preta, e
o hall estava muito sujo. A um canto, duas meninas brinc avam de enterr o com
uma bonec a velha e uma caixa de sapatos. Ao entrar no apartam ento dos Men-
doza, o padre Wy ca-zik viu o sofá bege enc harc ado de sangue. Era tanto sangue
que, em alguns pontos, o assento par ec ia pintado de preto. Havia sangue respin-
gado pelas par edes amar elo-clar as, à volta de uma grande manc ha central, mar-
cando o ponto onde alguém fora fuzilado. Quatro tir os, no mínim o, fur ar am o re-
boc o, depois de atravessar o corpo. E havia mais sangue no abaj ur, na mesa do
centro, na estante de livros, no chão. A cena par ec ia mais choc ante por causa do
contraste com o apartam ento pobre, por ém limpo e bem arr um ado, mais do que
se poder ia esper ar num prédio como aquele. Mesm o obrigados a viver num cor-
tiç o, os Mendoza rej eitar am a rendiç ão completa e lutar am para conservar ao
menos os restos da dignidade passada. A suj eir a das ruas e do saguão term i-
nava na porta do apartam ento, como se ali vivesse o últim o desc endente de
uma tribo em extinç ão, gente civilizada e ordeir a. Não fosse o sangue, a sala es-
tar ia brilhando de limpa.
Stef an tir ou o chapéu e entrou na únic a peça do apartam ento, dividida em
três por um biombo de um lado e um pequeno apa-rador de outro: para lá o quar-
to, para cá a cozinha. Havia quase uma dúzia de polic ia is ali: investigador es,
guardas fardados, agentes da políc ia técnic a. Apenas dois ou três par ec ia m traba-
lhar; os outros olhavam em volta, sem quer er sair, apesar de não ter o que fazer,
reunindo-se em grupos e falando em voz baixa, como se estivessem num enterr o.
Um dos rar os detetives atar ef ados estava sentado à mesa, fazendo perguntas
a uma mulher mor ena de rosto com um, com pouc o menos de quar enta anos.
Cham ava-a de sra. Mendoza e anotava cuidadosam ente o que ela dizia. A mulher
par ec ia disposta a ajudá-lo, mas não tir ava os olhos de um hom em, provavel-
mente o mar ido, que andava junto à cama, de um lado para o outro, com
uma cria nç a no colo, um menino de mais ou menos seis anos. O hom em carr e-
gava-o num braç o e com o outro acar ic ia va-lhe os cabelos, toc ava-lhe o rosto,
assegur ando-se de que estava mesm o ali, são e salvo. O sr. Mendoza olhava o fi-
lho com olhos de quem acabava de ver a morte de perto.
Um dos polic ia is aproxim ou-se de Stef an.
— O senhor é o padre Wy c azik? — perguntou. Apesar do tom de voz dis-
creto e calm o, a menç ão do nome fez com que as cabeç as se voltassem na dir e-
ção de Stef an.
Mas... o que terá acontec ido aqui? O velho cura respir ou fundo, também à
esper a.
— Por favor — pediu o polic ia l — Venha por aqui.
O padre Wy c azik tir ou as luvas e segui-o até o pequeno quarto, o únic o do
apartam ento, onde Winton Tolk e outro polic ia l esper avam, sentados na borda da
cama. Tolk estava curvado, o rosto esc ondido nas mãos, e não se moveu quando o
colega que conduzia o sac erdote entrou no quarto.
— Sou Paul Arm es — dec lar ou o polic ia l que estava com Tolk.
— Trabalham os juntos no patrulham ento. Vou sair agor a para voc ês pode-
rem conversar.
Stef an pegou uma cadeir a e aproxim ou-a da cama, onde Tolk continua va
imóvel. O quarto era minúsc ulo, deixava pouc o espaç o entre a cama e a cadeir a;
assim, ao sentar-se, o padre quase toc ava os joe lhos do patrulheir o.
— Muito bem — disse, tir ando o cac hec ol. — O que acontec eu?
Tolk levantou os olhos, e Stef an assustou-se. O rosto do polic ia l exprim ia uma
mistur a de emoç ões quase impossível de desc rever. Estava assustado, sim, mas
não em pânic o. Terr ivelm ente agitado, à beir a de uma explosão — que tanto po-
der ia ser de horr or como de deslumbram ento.
Pelo amor de Deus... — Tolk pediu. — Quem é Brendan Cro-nin? — E logo,
com voz trêm ula: — Ou... o que é ele?!
Stef an vac ilou um instante, mas acabou dec idindo-se pela verdade:
— E um padre.
— Não foi o que nos disser am na delegac ia...
Com um suspir o, o velho pár oc o fez que sim com a cabeç a e contou-lhe a
histór ia da crise de fé de Brendan. Falou-lhe do tratam ento que ele mesm o inven-
tar a para fazê-lo conhec er de perto um pouc o das grandes tragédia s do cotidia no.
Por isso, acabar a na ronda do centro da cidade.
— Achei que ser ia melhor ninguém saber que Brendan é padre, assim to-
dos o tratar ia m como um cidadão qualquer, e ele ser ia poupado de dif ic uldades
ainda maior es.
— Um padre... renegado... — Winton fez uma car eta de desampar o.
— Não. Apenas um padre em crise. Ele acabar á reenc ontrando sua verda-
de.
O pequeno quarto, limpíssim o como todo o apartam ento, estava mergulhado
em penumbra, ilum inado apenas pela pequena lâmpada da mesa-de-cabec eir a.
A luz inc idia de lado no rosto de Tolk, fazendo brilhar em os grandes olhos esc ur os
e lum inosos.
— O senhor sabe como Brendan me salvou? Como ele fez aquele... mila-
gre?
— Por que pensa que foi um milagre?
— Dois tir os à queim a-roupa no tór ax... e três dias depois eu estava em
casa. Três dias... Por mim, ter ia voltado a trabalhar no dia seguinte. O médic o fa-
lava de minhas condiç ões físic as, dizia que a cic atrizaç ao rápida acontec eu por-
que eu estava em form a... Só falava nisso... Então entendi que tentava explic ar a
si mesm o o que me acontec er a... Até aí eu ainda pensava que era sorte... sorte
minha, uma boa estrela, um anjo da guarda. Então, na sem ana passada, quando
voltei a trabalhar... acontec eu isto. — Tolk abriu a cam isa do unif orm e, ergueu a
cam iseta e mostrou o peito. — As cic atrizes sum ir am.
Stef an estrem ec eu. Estava bem próxim o do polic ia l, mas ainda se debruç ou
para ver melhor. Nada, pratic am ente nada, além de duas pequenas marc as, um
pouc o mais clar as que a pele ao redor. Os sinais da sutur a eram menor es que os
de um arr anhão, e só se podia vê-los bem de perto. Dentro de dois ou três dias,
com a pele norm alm ente pigm entada, já não se ver ia nada.
— Vi dezenas de cic atrizes de fer im ento à bala — dec lar ou Tolk, balanç an-
do a cabeç a, indec iso entre o medo e a euf or ia. — E uma coisa bem feia, nunc a
desapar ec e. Ninguém leva dois tir os no peito e fica assim como estou... Cic atrizes
de bala não som em nunc a.
— O que disse o médic o?
Tolk abotoou a cam isa com mãos trêm ulas.
— Estive com o doutor Sonnef ord há uma sem ana, e as cic atrizes ainda es-
tavam aqui. Faz apenas quatro dias que com eç ar am a sum ir. Vejo-as sum indo!
Basta-me fic ar meia hora dia nte do espelho.
O patrulheir o calou-se por um instante e logo rec om eç ou:
— Tenho pensado na visita que o senhor fez ao hospital, no dia de Natal...
Quanto mais penso, mais me convenç o de que o senhor sabia de algum a coisa
que não quis dizer... Perguntou sobre Brendan, lembra-se? Mas há algo que prec i-
so saber... Brendan cur ou mais alguém? Há outros casos?
— Sim, há. Um caso dif er ente do seu, mas... sim, há outro caso. Não posso
dizer-lhe quem é — afirm ou Stef an, respir ando fundo. — De qualquer modo,
você não ligou para a igrej a por causa das cic atrizes. O que acontec eu aqui?
Você estava em pânic o... o apartam ento está cheio de polic ia is... O que aconte-
ceu?
O polic ia l levantou os olhos, sorr iu, baixou a cabeç a, cobriu o rosto com a
mão, tornou a sorr ir, os olhos mar ej ados de lágrim as. Respir ou fundo algum as
vezes e com eç ou a contar:
— Estávam os fazendo a ronda, Paul e eu. Coisa de rotina. Rec ebem os um
cham ado pelo rádio e vie m os para cá. Par ec ia um caso de bebedeir a. Um rapaz
fazendo arr ua ç a. Não era só isso. Q rapaz estava drogado, com droga pesada... O
senhor já viu um desses vic ia dos? Par ec em anim ais. O pó come o cér ebro, eles
enlouquec em. Depois que tudo passou, disser am-me que o desgraç ado se cham a
Ernesto e é filho de uma irmã da senhor a Mendoza. Mudou-se para cá na sem a-
na passada porque a mãe o expulsou de casa. Os Mendoza são boa gente... O se-
nhor viu só como a casa é limpa e arr um ada?
Stef an fez que sim com a cabeç a e esper ou.
— Gente boa — Winton continuou —, do tipo que ajuda os par entes. Quan-
do o sobrinho com eç ou a dar trabalho, ofer ec er am-se para fic ar com ele até que
melhor asse. Mas esses vic ia dos não têm salvaç ão... A gente morr e tentando aju-
dá-los e não consegue nada. Esse tal Ernesto tem fic ha na políc ia desde os sete
anos: agressão, assalto a mão arm ada, roubo... Quando chegam os estava nu, os
olhos saltando do rosto, berr ando como louc o.
Tolk olhou para a par ede, cerr ou as pálpebras quer endo apagar da lembranç a
aquela visão de pesadelo. Mas continuou a falar:
— Ernesto pegou Héctor, o menino que o senhor viu no colo do pai. Jogou-
o no sofá, saltou sobre ele e enc ostou-lhe uma navalha de vinte centím etros no
pesc oç o. A senhor a Mendoza fic ou louc a. Quer ia pular sobre ele e salvar o filho,
mas tinha medo de que Ernesto o fer isse. Ernesto berr ava e babava como um bi-
cho. Entram os no apartam ento de arm as em punho, porque o cara estava louc o...
e é impossível argum entar com gente assim,
mas não podía m os fazer nada por causa da navalha no pesc oç o do gar oto...
O menino chor ava e nem se mexia, coitado, de tanto medo. Com eç am os a falar
com Ernesto, devagar, com calm a, tentando ganhar tempo... E então... Oh!
Deus... — Winton baixou a cabeç a, sac udido por um soluç o. — Então... ele... de-
golou o gar oto. Ele cortou mesm o, de orelha a orelha, um talho só, fundo, horr í-
vel... Quando levantou a navalha para cortar de novo, nós o fuzilam os. Não sei
quantos tir os levou. Grudou na par ede e caiu duro, por cima do menino. Corr e-
mos até o sofá, puxam os o cadáver do cara, e lá estava o menino... com a mão
na garganta, como se quisesse fec har o corte. O sangue borbulhava entre seus
dedos e ele já não via nada, o branc o dos olhos apar ec endo.
O patrulheir o calou-se, outra vez baixou a cabeç a e cobriu o rosto com as
mãos, tentando acalm ar-se para continua r. Levantou-se, foi até a janela, afastou
uma ponta de cortina e espiou para fora, olhando sem ver o dia cinzento e triste
como tantos outros.
O cor aç ão de Stef an batia forte. Não apenas pelo horr or da histór ia que aca-
bava de ouvir, mas também pela mar avilha que com eç ava a adivinhar.
Ainda par ado junto à janela, os olhos perdidos na manhã, Tolk retom ou a
narr ativa:
— Não há o que fazer para estanc ar uma hem orr agia como aquela. Não há
prim eir os soc orr os, nem proc edim ento de emergênc ia, nada que resolva. O pes-
coç o estava cortado... artér ia s, veia s, nervos... O sangue jorr ava como água da
torneir a. No pesc oç o, não é possível fazer torniquete, nem pressionar artér ia s,
porque o sangue corr e com alta pressão. Não havia o que fazer, e o menino esta-
va morr endo. Eu me ajoe lhei ao lado do sofá... Uma cria nç a, tão pequena, tão
bonita... morr endo ali, à minha frente. Eu sabia que não ia adia ntar, mas pus a
mão no pesc oç o dele, como se quisesse estanc ar o sangue, impedir que a vida
continua sse a esc apar, tapar o bur ac o... e fingir que nada acontec er a. Eu estava
louc o de raiva, de dor, de desesper o, porque não é justo que uma cria nç a morr a
daquele jeito, não é justo que uma cria nç a morr a
nunc a, em lugar nenhum... não é justa a morte, nem a vida, nem nada... E
então... então... de repente...
— ... o corte com eç ou a fec har — Stef an completou em voz baixa. Tolk vi-
rou-se para ele, devagar, muito sér io, e par ou, a dois passos da cadeir a, olhos nos
olhos do velho pár oc o. Fez que sim com a cabeç a e prosseguiu:
— Isso mesm o... O menino estava lívido, enc harc ado de sangue, mas o
corte com eç ou a fec har. Nem perc ebi o que acontec ia, até que o gar oto se me-
xeu, abriu os olhos, respir ou fundo, uma, duas vezes... Então vi que o sangue já
não jorr ava entre meus dedos, como antes. Tir ei a mão... e vi que o corte se fe-
chava. O menino cerr ou os olhos, e eu pensei que estava fic ando maluc o, que èle
tinha morr ido mesm o, e eu... Com ec ei a gritar, e toquei-o no pesc oç o, e ele já
não estava tão pálido... Afastei a mão e olhei a fer ida... já não havia fer ida. Ha-
via o sinal do corte, um sinal feio, a carne ainda inc hada... mas não fer ida.
O polic ia l calou-se, imóvel dia nte da cadeir a de Stef an, e deixou as lágrim as
corr er em pelo rosto. Era possível esc onder, e fazia sentido esc onder o medo, o
horr or... mas a alegria era mais forte que ele. Era uma alegria impossível, ina-
creditável. O patru-lheir o Winton Tolk, ainda mais alto na calç a justa do unif or-
me, soluç ou alto, sem forç as nem vontade de ocultar as lágrim as. Stef an esten-
deu-lhe as mãos, que o polic ia l segur ou firm em ente, e continuou a segur á-las en-
quanto dizia:
— Paul Arm es, que estava com igo, viu tudo. E os pais do menino também.
E dois polic ia is que chegar am conosc o. Quando vi que o corte estava cic atrizan-
do, achei que devia continua r com as mãos no pesc oç o de Héctor, para comple-
tar a cic atrizaç ão. E foi o que fiz... conc entrei-me em salvar o menino. Tir ei da
cabeç a tudo que não fosse apenas pensar que ele ia fic ar bom, que o fer im ento
cic atrizar ia. Então me lembrei de Brendan e do que houve com igo no assalto ao
bar, das cic atrizes que sum ia m de meu peito. Tenho certeza de que há uma expli-
caç ão para as duas coisas... para o que Brendan fez com igo e para o que eu fiz
com Héctor. Daí em dia nte foi simples... o menino rec uper ou a cor,
com eç ou a respir ar bem e, de repente abriu os olhos, sorr indo para mim. —
O Polic ia l riu, um riso amplo e clar o. — O senhor prec isava ter visto aquele sor-
riso. Cham ou a mãe.... Então, eu desm aie i. A senhor a Mendoza corr eu para o fi-
lho, levou-o para dentro, deu-lhe um banho, troc ou suas roupas. O apartam ento
fic ou cheio de polic ia is porque a notíc ia se espalhou. Por sorte, a imprensa não ti-
nha chegado.
O padre Wy c azik soltou as mãos de Tolk, rec ostou-se na cadeir a e respir ou
fundo.
— Você tentou ressusc itar Ernesto? — perguntou.
— Tentei. Apesar do que ele havia feito. Depois que me rec uper ei, meu
prim eir o pensam ento foi... que eu devia tentar. Tentei, mas não deu certo. Talvez
porque ele já estivesse morto. Quer o dizer... completam ente morto.
— Por acaso perc ebeu marc as nas palm as de suas mãos? Anéis averm e-
lhados?
— Não havia nada em minhas mãos. Que anéis são esses?
— Não sei. Mas esses anéis apar ec er am nas mãos de Brendan naquele dia,
no bar, quando ele o salvou.
Outra longa pausa, até que Tolk perguntou, em voz baixa:
— Brendan é algum tipo de... santo?
— Não — respondeu Stef an, sorr indo. — Brendan é um bom padre, mas
não é santo.
— Então... como pôde me salvar?
— Ainda não sei. Mas, o que quer que tenha acontec ido, foi obra de Deus.
Não sei como, nem por quê.
— E como ter ia passado para mim... o poder de cur ar?
— Nem mesm o sabem os se foi isso que acontec eu. Talvez você tenha re-
cebido a graç a de Deus, do mesm o modo como Brendan.
Winton baixou a cabeç a, exam inou as palm as das mãos, sem sinais de anéis,
lisas como sempre, e pensou em voz alta:
— O poder de cur ar ainda está em mim... Sinto que está aqui. E nao é só o
poder de cur ar. Há mais.
— O que quer dizer? Como assim... “há mais”?
— Ainda não sei — Tolk balanç ou a cabeç a. — Sinto que posso fazer
mais... Com o tempo, outros poder es vão apar ec er. Ou mesm o esse, de cur ar,
vai-se desenvolver. Oh! — exc lam ou de repente, os olhos brilhando, de medo e
felic idade, esper anç a e horr or — O que Brendan... fez de mim?!
Stef an aprum ou as costas na cadeir a e respondeu rispidam ente:
— Tire da cabeç a a idéia de que pode haver algo de mau no que acontec eu
a voc ês. Seja o que for, é uma forç a de luz, para o bem, não para o mal. Pense
no menino que você salvou. Pense na mãe dele, em sua emoç ão. Pense em
você, na felic idade de servir ao próxim o. Som os peões num jogo... Maior es são
os poder es de Deus. Quando Deus quiser, entender em os esses mistér ios, e muitos
outros... Eu gostar ia de ver o gar oto... — dec lar ou, levantando-se.
— Tudo bem. Desc ulpe não acompanhá-lo. Ainda não tenho cor agem para
sair daqui e enf rentar os rapazes. Sabe-se lá o que estar ão pensando! Vá. Eu fico
aqui. Se puder, por favor, venha me dizer como ele está.
— Não posso voltar, porque tenho comprom issos muito importantes. Mas
fique tranqüilo, pois não vam os nos perder de vista. Se prec isar de algum a coisa,
telef one para a casa par oquia l da Igrej a de Santa Bernardette. Lá saber ão onde
me enc ontrar.
Stef an saiu, atravessou a sala ainda cheia de polic ia is, sentindo os olhar es re-
ver entes que o acompanhavam, e aproxim ou-se da mesa atrás do balc ão da cozi-
nha. Héctor estava no colo da mãe, com endo uma barr a de choc olate.
Era um menino franzino, magro, de traç os finos e delic ados, muito par ec ido
com a mãe. Tinha olhos brilhantes e inteligentes e fac es rosadas, sinal evidente
de que rec uper ar a, também, o sangue perdido — em menos tempo que Winton.
Talvez o poder de Winton fosse maior que o de Brendan.
Stef an ajoe lhou-se para olhá-lo de frente:
— Como se sente? — perguntou.
— Ótim o.
— Lembra-se do que acontec eu?
Héctor passou a língua nos lábios, mais suj ou-se que limpou o choc olate, e
fez que não com a cabeç a.
— E o choc olate? Está bom?
— Quer um pedaç o? Pode com er... Mas não deixe cair no chão, senão ma-
mãe briga.
— Obrigado — respondeu o velho, rindo. — Coma seu choc olate e não
faça suj eir a. — Levantou-se e perguntou à sra. Mendo-za: — Tem certeza de que
ele não se lembra de nada?
— Tenho. Graç as a Deus!
— A senhor a é católic a, não é? Conhec e o padre Nilo, da par óquia de Nos-
sa Senhor a do Soc orr o? — A mulher fez que sim com a cabeç a. — Ótim o. Já te-
lef onou para ele?
— Não... Ainda não consigo pensar dir eito e...
Antes que ela term inasse de falar, o pai de Héctor corr eu para o telef one.
Stef an seguiu-o, dizendo:
— Isso mesm o. Conte o que acontec eu, peça ao padre Nilo que venha visi-
tá-los. Diga que estou aqui, mas não posso esper á-lo; entrar ei em contato com ele
mais tarde. Diga que tenho muito o que conversar, e que ele vai enc ontrar aqui
apenas uma pequena parte de uma longa histór ia.
Enquanto Mendoza telef onava, o velho pár oc o dir igiu-se a um dos polic ia is:
— O fer im ento no pesc oç o do menino foi fotograf ado?
— Sim. Nós o fotograf am os enquanto Tolk... estava com ele. Proc edim ento
de rotina. — De repente o polic ia l riu, nervoso. — Mas que louc ur a! O que estou
dizendo? Como se pode falar em “rotina” num caso como esse?!
— As fotos são importantes para provar o que houve — observou Stef an,
respir ando fundo. — Acho que, muito em breve, não restar á nem sinal da cic a-
triz. — Vir ou-se outra vez para Héctor e sorr iu. — Agor a, seja bonzinho e me
deixe exam inar seu pesc oç o.
O menino largou o choc olate sobre a mesa e levantou o queixo. Com a mão
trêm ula, o padre toc ou o fino traç o rosado que, como Tolk disser a, estendia-se de
uma orelha à outra. Sentiu a pulsaç ão forte da cor ótida e estrem ec eu, com a sen-
saç ão de que toc ava o próprio mistér io da vida. A vida venc endo a morte, a vida
eterna, para sempre, conf orm e a prom essa de Deus. Fez men-são de sair, mas
um dos polic ia is aproxim ou-se e interpelou:
— O que está acontec endo? Ouvi o senhor dizer que vim os apenas uma
parte de uma longa histór ia. Que histór ia é essa?
Stef an par ou e olhou ao redor. Vinte rostos voltavam-se para ele, ansiosos,
aguardando seu relato como se fosse uma revelaç ão. Aqueles hom ens curtidos
pelo contato diá r io com a brutalidade hum ana ainda não havia m perdido a espe-
ranç a de acreditar em algo melhor que eles mesm os, melhor que o mundo.
— Algum a coisa está acontec endo — disse o padre. — Aqui e talvez em
outros lugar es também. Uma coisa grandiosa... Esse menino que foi salvo hoje
faz parte disso. Mas ainda sei pouc o sobre o assunto. Não posso dizer-lhes, com
certeza, que presenc ia r am um milagre. Contudo, olhem para Héctor, no colo da
mãe, e pensem na prom essa de Deus... “Não haver á morte, nem sof rim ento,
nem lágrim as, nem dor; pois o que foi, nunc a mais será.” No fundo do cor aç ão,
acredito que nada, nunc a mais, será como antes... — completou e, após uma
pausa emoc ionada, dec lar ou: — Agor a prec iso ir. Tenho negóc ios urgentes.
Surpreendidos com aquele padre, capaz de citar uma das mais conf ortador as
prom essas da fé cristã e, em seguida, falar de negóc ios urgentes, os hom ens
afastar am-se e deixar am-no passar. Talvez porque havia m presenc ia do um ver-
dadeir o milagre, oper ado bem ali, dia nte de seus olhos, pelas mãos conhec idas do
patru-lheir o Tolk, alguns polic ia is sorr ir am para o velho pár oc o, outros estende-
ram-lhe a mão, quer endo tocá-lo, numa espéc ie de elevada cam ar adagem espi-
ritua l, Stef an também sentiu vontade de abraç á-los, de com em or ar com eles a
exper iê nc ia prof unda que estavam vivendo. Em todos, naquele mom ento, renas-
cia a esper anç a de um futur o lum inoso para a hum anidade.
Em Boston, às dez hor as da manhã, Alexander Chr istophson, ex-senador
amer ic ano, ex-embaixador amer ic ano na Inglaterr a, ex-dir etor da CIA, aposen-
tado há uma déc ada, lia o jornal, quando foi interr ompido pelo telef onem a de seu
irm ão, Philip, antiquá-rio residente em Greenwic h, Connectic ut. Falar am pouc o,
pois mantinham freqüente contato e nunc a fic avam sem notíc ia s um do outro.
Antes de se despedir, Philip observou:
— Oh... ia me esquec endo. Falei com Dia na hoje de manhã. Você se lem-
bra dela?
— Clar o que sim — respondeu Alex. — Como vai ela?
— Como sempre... um dia melhor, outro pior. Mandou-lhe lembranç as.
— Quando a enc ontrar, diga-lhe que agradeç o e retribuo.
Philip falou um pouc o sobre um livro que estava lendo, e minutos depois am-
bos desligar am.
Dia na era o nome de código de Ginger Weiss. Aquela conversa signif ic ava
apenas que ela telef onar a para Philip e prec isava falar com Alex. Um codinom e
bem esc olhido, pensou o ex-senador. Na prim eir a vez que a vira, no funer al de
Pablo Jackson, lembrar a-se de Dia na, a cor aj osa caç ador a e deusa da Lua dos
rom anos antigos.
Alex disse à esposa que ia até a livrar ia ver se enc ontrava o livro de que Phi-
lip lhe falar a. Foi mesm o e comprou o livro, mas, antes de voltar para casa, pa-
rou numa cabine telef ônic a. Ligou novam ente para o irm ão e pediu-lhe o núm e-
ro de contato que Ginger deixar a.
— Ela disse que é o núm er o de uma cabine públic a em Elko, Nevada — in-
form ou o antiquár io.
O telef one toc ou cinc o vezes antes de Alex ouvir a voz de Ginger.
— Desc ulpe — disse ela. — Dem or ei porque estava esper ando no carr o.
Está muito frio para fic ar na cabine.
— O que está fazendo em Nevada?
— Se entendi bem o que você disse no dia do enterr o de Pablo, você não
pode quer er que eu responda essa pergunta.
— Tem razão. Quanto menos eu souber, melhor. O que você quer de mim?
Por que telef onou?
O mais resum idam ente possível, Ginger contou-lhe que enc ontrar a outras
pessoa s que, como ela, tinham sido subm etidas a lavagem cer ebral. Em seguida
perguntou ao únic o espec ia lista em lavagem cer ebral que conhec ia:
— O que é mais fác il: implantar um conj unto de lembranç as falsas ou pe-
quenos fragm entos de mentir a num conj unto de lembranç as autêntic as?
— Quanto mais completa a mentir a, mais fác il o implante. E quase impos-
sível implantar uma pequena mentir a num conj unto de lembranç as autêntic as —
Alex conf irm ou.
— Foi o que pensam os, mas é ótim o ouvir a conf irm aç ão de um espec ia lis-
ta. Há outra coisa... Prec iso de um favor. E muito importante que nos consiga to-
das as inf orm aç ões possíveis sobre um certo cor onel Leland Falkirk, com andante
de um batalhão da DERO. E, também...
—• Calm a! — Alex interr ompeu. — Você sabe perf eitam ente que eu não lhe
prom eti conseguir inf orm aç ões sobre nada e ninguém. Expliquei bem que...
— Clar o, eu sei. Mas pensei que, mesm o não quer endo se envolver com
nossos problem as, talvez você conheç a alguém que...
— Não quer o. E não conheç o ninguém. E não vou me comprom eter com
isso.
— Acha tão comprom etedor assim o fato de conseguir algum as inf orm a-
ções sobre Falkirk? — Ginger continuou, imperturbável. — Prec isam os saber
com quem estam os lidando.
— Doutor a Weiss... sinto muito, mas...
— Prec isam os também de inf orm aç ões sobre Thunder Hill. E uma base
militar, uma espéc ie de depósito de muniç ão... alm oxa-rif ado... sei lá. Fica aqui,
em Elko County.
— Doutor a... Não vou fazer nada disso! Não vou pesquisar nada!
Suas negativas apenas ref orç avam a certeza de Ginger: ele rec lam ar ia mui-
to, mas acabar ia ajudando.
— Não se esqueç a — preveniu-o. — Leland Falkirk e Thunder Hill, em
Elko County, Nevada. Não prec isa se expor. Basta telef onar para um ou dois de
seus ex-colegas de Senado, por exemplo. E, quando tiver algo inter essante, tele-
fone para o doutor George Hannaby, aí em Boston, ou ao padre Stef an Wy c azik,
em
Chic ago. — Deu-lhe os dois núm er os de telef one. — São amigos e estão ins-
truídos para não menc ionar seu nome quando eu ligar.
— Já lhe disse que estou velho e tenho medo de morr er.
— Mas disse também que tem medo de ir para o inf erno por causa das
maldades que fez, no “estrito cumprim ento do dever”. Ajude a gente e... conte
com a absolviç ão eterna. Não se esqueç a!
— E repetiu os núm er os de telef one de George Hannaby e do padre Wy -
cazik.
— Quando você for presa e estiver sendo interr ogada pela KGB, lembre-se
de dizer que minha resposta foi “não”.
— Ser ia mar avilhoso se você nos desse algum a inf orm aç ão nas próxim as
seis ou oito hor as — Ginger continua va, sem se alter ar.
— Estam os inter essados em qualquer tipo de inf orm aç ão. Por favor. Muito
obrigada. — Desligou, sem dar-lhe tempo para repetir o “não” previsto.
Que pena... Uma mulher tão bonita, inteligente, inter essante sob muitos as-
pectos, prej udic ada por aquela certeza inabalável de que sempre conseguir ia o
que desej ava. Alex adm ir ava tam anha autoc onf ia nç a nos hom ens, mas detesta-
va-a nas mulher es, e desligou o telef one com uma car eta de desagrado. Imagi-
ne... Pensar que ele voltar ia a se envolver num assunto explosivo como aquele.
Que esper asse sentada! Pelo sim, pelo não, talvez apenas por forç a do hábito,
anotar a os dois núm er os. Guardou a caneta no bolso interno do paletó e saiu da
cabine dem onstrando contrar ie dade.
Na manhã de terç a-feir a, Dom e Ernie saír am cedo, no jipe de Jack, para
fazer um rec onhec im ento prévio dos arr edor es do depósito de Thunder Hill. Jack
fic ou no motel para dorm ir um pouc o, depois de ter passado a noite rodando por
Elko, com Brendan e Jorj a.
O céu nublado enc obria o topo das montanhas e prom etia neve, a prim eir a
grande nevasc a do ano. Entretanto, nem o céu amea ç ador conseguia tir ar o entu-
sia sm o de Dom e Ernie, porque, pela prim eir a vez, estavam fazendo algum a coi-
sa conc reta. Finalm en-
te entravam em ação, depois de tantos dias de ansie dade e falta de perspecti-
va. Além disso, havia m dorm ido muito bem, sem pesadelos. Dom sonhar a com
uma sala muito clar a, ilum inada por uma luz dour ada e brilhante — com certeza
a mesm a sala que apar ec ia nos sonhos de Brendan. E Ernie dorm ir a como um
justo desde o instante em que se deitar a, sem pensar, nem por um minuto, que a
noite entrar ia pela janela para apanhá-lo.
Os outros também tiver am uma exc elente noite de sono. E, já no café da
manhã, Ginger brindou-os com nova idéia lum inosa, segundo a qual os pesadelos
e as crises de fuga, medo ou sonam-bulism o nada tinham a ver com a verdadeir a
exper iê nc ia pela qual passar am em julho, mas eram simples seqüelas da lava-
gem cer ebral. Como a pressão subc onsc ie nte dim inuir a muito, agor a que podia m
falar livrem ente sobre suas lembranç as, era razoá vel supor que não voltar ia m a
ser atorm entados por pesadelos ou crises.
Quanto a Dom, tinha ainda outra razão para sentir-se tão leve e bem-hum o-
rado: ninguém mais o olhava como se fosse um extraterr estre. A razão par ec ia
simples: como seus poder es te-lec inétic os relac ionavam-se de algum modo com
a exper iê nc ia de julho, qualquer um de seus companheir os poder ia, mais dia,
menos dia, fazer voar saleir os ou cadeir as. Talvez a situa ç ão se complic asse no-
vam ente, caso nenhum dos outros desenvolvesse tais poder es, mas, pelo menos
por ora, Dom sentia-se grato e segur o.
Cantar olando baixinho, Ernie dir igia, rumo ao norte, pela estrada estadua l,
deixando para trás o motel e a rodovia; era o mesm o cam inho que Jack seguir a
na vésper a, ao chegar pelos fundos. A paisagem com eç ava a alter ar-se, cada vez
menos verde e mais roc hosa, exibindo, à flor da terr a, as form aç ões de granito. A
medida que a estrada subia para regiões de temper atur as mais fria s, a vegetaç ão
tornava-se mais esc ur a e cerr ada, como que tentando proteger o solo dos rigor es
do clim a. Pinheir os, cedros, um ou outro raro tufo de gram a erguia m-se pelos
campos.
Havia m perc orr ido pouc o mais de cinc o quilôm etros quando pela prim eir a
vez vir am neve acum ulada no acostam ento. De iní-
cio, apenas uma cam ada fina, que se espessava à medida que avanç avam.
— Pode nevar uma sem ana sem par ar, que essa estrada está sempre de-
simpedida — Ernie explic ou —, pelo menos até Thunder Hill. Depois do depósito,
por ém, o pessoa l já não se preoc upa muito com a limpeza.
Passar am por alguns ranc hos isolados e, a dezesseis quilôm etros do ponto de
partida, chegar am à entrada do depósito, à dir eita da estrada.
— Não passo por aqui há muitos anos — disse Ernie. — Eles andar am re-
forç ando essa estrada. Tenho lembranç a de que era menor, menos... imponente.
A alguns metros da estrada, uma plac a inf orm ava que o loc al constituía
“área de segur anç a”. A partir dali, com eç ava uma alam eda de pinheir os, de um
verde tão esc ur o que par ec ia preto à luz da manhã. Cinc o metros adia nte, nova
plac a alertava que a passagem estava proibida. Ref orç ando o aviso, uma faixa de
aço fixada no asf alto exibia fileir as de pregos altos e pontia gudos, com o clar o
obj etivo de fur ar os pneus de qualquer veíc ulo que se atrevesse a desobedec er as
instruç ões. Depois dos pregos, uma cerc a de tela de aço, pintada de verm elho,
impedia o acesso à enorm e guar ita, fec hada com porta de aço à prova de balas.
Ernie dim inuiu a marc ha e passou frente à entrada do depósito, apontando
para um dos lados da cerc a.
— Veja, ali no chão, antes da-casa da guarda... deve ser uma espéc ie de
sensor eletrônic o... Com certeza, eles têm câm ar as de televisão espalhadas por
todo canto... Só se pode entrar depois que rec olhem a faixa de pregos e abrem o
portão. E mesm o depois de toda essa oper aç ão, pode apostar que há guardas ar-
mados na portar ia.
A construç ão era protegida por uma alta cerc a de aram e farpado, junto à
qual havia uma plac a amar ela.
— “Atenç ão! Cerc a eletrif ic ada” — Dom leu em voz alta, e nenhum dos
dois fez qualquer com entár io.
A cerc a rodea va todo o per ím etro do depósito, até a linha de árvor es no co-
meç o da flor esta, mas não havia vegetaç ão nenhum a na área onde estava insta-
lada; de cada lado do aram e, estendia-se uma espéc ie de terr a de ninguém, com
mais de cinc o metros de largur a.
O bom hum or de Dom apagou-se como vela soprada. Estava certo de en-
contrar pouc a segur anç a à entrada do depósito. Afinal de contas, mesm o depois
de passar pela guar ita, o que se avistava à frente era um vasto gram ado, já que a
verdadeir a entrada para o depósito de Thunder Hill estava protegida pelas desc o-
munais portas de aço, com mais de dois metros de espessur a, na própria enc osta
da montanha. Com a proteç ão das duas portas, par ec ia desnec essár io manter
controle tão rígido sobre quem se aproxim ava. Talvez fosse desnec essár io... mas
era exatam ente o que fora montado ali, junto à estrada. Isso signif ic ava que o se-
gredo esc ondido por trás de todo aquele apar ato era ainda mais importante do
que havia m imaginado'e previsto. Mais importante, mais explosivo, mais amea -
çador do que um ataque nuc lea r capaz de varr er a vida da superf íc ie terr estre.
— A faixa de pregos é novidade — inf orm ou Ernie. — O portão de aço foi
ref orç ado. A cerc a existe há anos, mas não era eletrif ic ada.
— Não há menor chanc e de entrarm os
Embor a nenhum deles conf essasse, os dois tinham esper anç as de aproxim ar-
se, pelo menos das duas portas de aço e, espia r as terr as que acabavam de ser
anexadas à area do depósito, gleba que o ministér io comprar a de Brust e Dirkson.
Com sorte, talvez desc obrissem uma ou outra novidade que os ajudasse a enten-
der tam anho mistér io. Dom não imaginava que pudessem entrar no depósito sub-
terrâneo, o que ser ia pratic am ente impossível sem um salvo-conduto. De qual-
quer modo, olhando para Thunder Hill a partir do ponto de vista segur o de sua
cama no motel, a idéia não lhe par ec er a completam ente desc abida. Ali, frente à
entrada, sim, era louc ur a total.
Dom pensou que seus poder es telec inétic os poder ia m ser úteis
para abrir-lhes cam inho, mas desc artou a idéia tão depressa como a tiver a.
Até que aprendesse a controlar os poder es, não voltar ia a testá-los. Tinha
medo. Pressentia que eram muito fortes, capazes de causar morte e destruiç ão
em larga esc ala, caso não conseguisse detê-los no mom ento certo.
— Ora... — Ernie ergueu as sobranc elhas —, nem você nem eu imagina-
vam os que pudéssem os entrar danç ando pela porta da frente, não é? Vam os
aproveitar e dar uma olhada nessa cerc a. — Pisou no aceler ador e, ao passar os
olhos pelo espelho retrovisor, assobiou baixinho. — Para seu governo... estão nos
seguindo.
Dom saltou no assento e olhou para trás. A menos de cem metros, aproxim a-
va-se um carr o estranho, de rodas muito mais largas que as com uns. Tinha sobre
a cabine uma sér ie completa de far óis de milha, os do centro maior es que os la-
ter ais, naquele mom ento apagados. A frente do motor, uma larga pá limpa-neve,
também desligada, erguia-se um palm o acim a da estrada. Não era impossível
que o carr o pertenc esse a algum fazendeir o da regiã o, mas algum a coisa dizia a
Dom que era um veíc ulo militar. Nao se via o motor ista nem o inter ior da cabine,
protegidos pelos vidros esc ur os.
— Mas, se estão nos seguindo — com entou, voltando-se para Ernie —, por
que fic am tão à vista, aí no meio da estrada?
— Estão atrás de nós desde o mom ento em que saím os do motel — disse
Ernie. — Quando dim inuo a marc ha, eles dim inue m; quando aceler o, eles acele-
ram.
— Será que vão nos fazer par ar?
— Se quer em briga, que venham. Mas acho que só quer em nos assustar.
— Esper o que você não os deixe zangados, só para provar que o pessoa l da
Mar inha é melhor de briga que a turm a do Exérc ito... Eu aposto na Mar inha!
A estrada tornava-se cada vez mais íngrem e, o céu mais cinzento, as árvor es
cada vez mais esc ur as. E o estranho carr o não se afastava deles.
A mãe de Emmy corr eu a abrir a porta ao prim eir o toque de campainha, es-
trem ec endo à golf ada de ar gelado.
— Desc ulpe vir sem telef onar — disse o padre Wy c azik, entrando na sala.
— Mas estão acontec endo coisas muito estranhas, e eu prec isava saber se
Emmy...
Par ou de repente, no meio da frase, porque perc ebeu que a sra. Halbourg ti-
nha os cabelos despentea dos, o rosto aflito, os olhos arr egalados.
— C... como foi que o senhor desc obriu?! — perguntou, a voz trêm ula. —
Não contam os a ninguém... Como foi que o senhor soube?!
— Soube... o quê?
Sem responder, a mulher corr eu para a esc ada, fazendo um sinal para que
Stef an a seguisse:
— Venha... venha depressa!
Depois do que vira e souber a no apartam ento dos Mendoza, o velho cura es-
per ava enc ontrar surpresas na casa de Emmy Halbourg, mas não estava prepa-
rado para o clim a de catástrof e total que imper ava ali. No topo da esc ada, no hall
de distribuiç ão dos quartos, o pai da menina esper ava a mulher, segur ando a
mão de uma das outras filhas. Estavam dia nte de uma porta aberta e, como se
não tivessem cor agem para entrar, olhavam estupef atos para o quarto, tentando
dec idir se o que viam era obra de Deus ou do dem ônio. De dentro do quarto vi-
nha um som cadenc ia do, como o de um obj eto sendo arr astado, par ado, empur-
rado para trás, par ado, arr astado novam ente. E o riso cristalino de Emmy.
O sr. Halbourg voltou-se, o rosto lívido.
— Graç as a Deus que o senhor está aqui! — exc lam ou. — Não sabem os o
que fazer. Não podem os pedir soc orr o, porque de repente isso passa e, quando as
pessoa s chegar em far em os papel de louc os. Agor a que o senhor chegou, estou
mais tranqüilo.
No quarto, Stef an viu o que era norm al em quartos de meninas em transiç ão
para a adolesc ênc ia: meia dúzia de ursinhos de pelúc ia; enorm es fotos autograf a-
das de cantor es dos quais jam ais ouvir a falar; um cabideir o com os mais estra-
nhos tipos de chapéu; um par de patins; um gravador; uma flauta esquec ida no
estoj o aberto. Outra das irm ãs de Emmy estava de pé no meio do quarto, par ali-
sada de susto.
Pulando na cama, ainda de pij am a, Emmy par ec ia plenam ente saudável;
sac udia um travesseir o e ria sem par ar. A sua frente, dois ursinhos de pelúc ia
danç avam, suspensos no ar. Era uma valsa, e eles gir avam, abraç ados, como
gente de carne e osso.
Não eram os únic os bailar inos em ação. Pelo assoa lho, um par de patins
também danç ava, o pé dir eito rodando junto à porta do banheir o, o esquerdo dan-
do voltas ao redor do banquinho da pentea deir a. No cabideir o, os chapéus agita-
vam-se ao ritm o da valsa. Na estante de livros, um ursinho solitár io saltava e ba-
tia palm as.
Stef an entrou e, desvia ndo-se dos danç ar inos, aproxim ou-se da cama.
— Emmy ? — cham ou.
— Oh! — a menina exc lam ou, voltando-se para ele. — E o padre amigo
do “Bolota”! Tudo bem? Isto aqui não está lindo? Não é... uma mar avilha?
— E você que está fazendo isso? — Stef an fez um gesto na dir eç ão dos ur-
sinhos.
— Eu?! — Emmy franziu as sobranc elhas. — Não, clar o que não.
O pár oc o perc ebeu, no entanto, que, quando a gar ota olhou para
ele, os ursinhos desequilibrar am-se no ar e, embor a não caíssem, perder am
o ritm o. Perc ebeu também que o fenôm eno causar a alguns estragos: um abaj ur
quebrado jazia sobre o tapete, uma foto pendur ada junto à cabec eir a da cama
estava rasgada e o espelho da pentea deir a exibia feia rac hadur a. Emmy acom-
panhou-lhe o olhar e explic ou:
— No com eç o eu me assustei, mas agor a está tudo calm o. E engraç ado...
os ursinhos não são engraç ados?!
Enquanto a menina falava, a flauta ergueu-se do estoj o e par ou, flutua ndo à
esquerda do casal de bailar inos. Então com eç ou a toc ar... não notas esparsas ou
desaf inadas, mas uma músic a completa, sua ve e bonita. Emmy pulou de alegria,
exc lam ando:
— Minha músic a! É a músic a que eu toc ava sempre!
— E você está toc ando agor a — Stef an disse.
— Não — replic ou ela, sem tir ar os olhos da flauta —, não toco flauta há
mais de um ano, desde que meus dedos com eç ar am a doer. Já estou boa, mas
ainda não peguei na flauta.
— Você está toc ando sem prec isar das mãos — insistiu o padre. A gar ota
voltou-se devagar, com eç ando a entender.
— Eu...? — murm ur ou.
No instante em que desviou a atenç ão, a flauta desaf inou e os ursinhos par a-
ram de danç ar. Ela tornou a olhá-los, e o baile rec om eç ou.
— Eu? — repetiu. — Eu... eu!
O velho padre respir ou fundo, imaginando o que Emmy sentia; então envol-
veu-o uma emoç ão tão intensa e prof unda que seus olhos se enc her am de lágri-
mas. Havia menos de um mês, aquela menina estava par alític a numa cama, sem
mexer as mãos ou as pernas, sem poder vestir-se ou pentea r-se, sem ter a menor
esper anç a de voltar à vida de antes... sem futur o, às portas da morte. E agor a fa-
zia seus ursinhos danç ar em no ar e toc ava flauta apenas pensando na músic a que
quer ia ouvir.
Stef an teve vontade de contar-lhe que aquele dom era parte da cura rea liza-
da por Brendan, mas, se falasse qualquer coisa, ter ia de explic ar por que o “Bolo-
ta” conseguia oper ar tais prodígios, e não saber ia nem como com eç ar. Além do
mais, não dispunha de tempo para contar-lhe o pouc o que sabia. Já passava das
nove, e dever ia estar em Evanston. A medida que a manhã avanç ava, sentia que
não podia perder um segundo. Naquele passo, acabar ia sendo obrigado a apanhar
um aviã o e voar para Nevada antes de acabar o dia. A julgar pelo que acontec ia
com Tolk e Emmy, o melhor da festa estava mesm o em Elko County... e Stef an
Wy ca-zik quer ia tom ar parte no espetác ulo, ainda que fosse apenas um observa-
dor mudo e assustado.
Lembrou-se das palavras de Tolk, no apartam ento dos Mendo-za: “Há
mais...” O patrulheir o desc obrir a por acaso parte de seus poder es. Também por
acaso Emmy desc obrir a outro aspecto dos
mesm os poder es, o suf ic ie nte para vir ar a casa pelo avesso. Breve, com cer-
teza, haver ia ursinhos danç ando no quarto dos filhos de Winton Tolk.
— O senhor mesm o pode cuidar de tudo? — O pai de Emmy enf iou a ca-
beç a pela porta e fitou-o com olhos ansiosos.
— Por favor — pediu a sra. Halbourg, aproxim ando-se por trás do mar ido.
— Quer em os que seja feito o mais rapidam ente possível.
— Tudo... o quê? — perguntou o padre, intrigado. — O que voc ês quer em
que...
— O exorc ism o, é clar o! — o casal respondeu ao mesm o tempo.
Então fora para isso que a mãe de Emmy o rec eber a com tanta
natur alidade, quase com alívio.
— Nem pensar! — exc lam ou Stef an. — Não há a menor nec essidade de
exorc ism o. Emmy não está possuída pelo dem ônio... Que idéia! Deus do céu...
Nada disso!
Enquanto ele falava, um dos ursinhos que estavam na cadeir a de balanç o sal-
tou para o chão e cam inhou em sua dir eç ão, gingando nas perninhas redondas e
mac ia s.
Winton disser a que prec isava de tempo para aprender a controlar seus pode-
res. Emmy por ém, mostrava-se capaz de fazer o que quizesse, senhor a de suas
novas habilidades. Stef an não pôde deixar de pensar que as cria nç as rea lm ente se
adaptam a quaisquer circ unstânc ia s melhor que os adultos, por estranhas e ina-
creditáveis que sej am as circ unstânc ia s...
Ainda assustados, sem saber o que pensar, os pais da menina entrar am no
quarto e olhar am em volta, tentando dec idir se estavam dia nte de um presente de
Deus ou do dia bo. O pár oc o balanç ou a cabeç a, preoc upado. Era fác il adivinhar
o que estavam sentindo. Emmy par ec ia bem, os ursinhos eram lindos, a flau-
ta soa va como um milagre... e, no entanto, tudo era estranho dem ais, inc om-
preensível, assustador!
Pela prim eir a vez na vida, o otim ism o inabalável do inabalável filho de polo-
neses via-se dia nte de um beco sem saída.
Depois de falar com Alexander Chr istophson, Ginger acompanhou Fay e até
a fazenda de Elr oy e Nancy Jam ison, no vale
Lem oille, a vinte quilôm etros de Elko, os mesm os Jam ison que visitar am os
Block na noite de 6 de julho do ano retrasado. Clar o que também presenc ia r am
os acontec im entos daquela noite e, portanto, não havia dúvida de que for am sub-
metidos à lavagem cer ebral como todos os outros. De tudo que ocorr er a, por ém,
restava-lhes apenas a lembranç a falsa de ter em voltado para casa levando Ernie
e Fay e para alguns dias de fér ia s na fazenda. A mesm a lembranç a que os Block
guardavam... até pouc o tempo antes.
A idéia não era contar aos Jam ison o que desc obrir am, mas tentar saber na
medida do possível se o casal sof ria algum tipo de perturbaç ão psic ológic a. No
caso de conf irm ar-se a hipótese, então sim, pretendia m explic ar-lhes a verdade e
convenc ê-los a mudar-se para o motel. Do contrár io, não lhes dir ia m. Também
para eles, como para Alex Chr istophson, a ignorânc ia dos fatos constituía um se-
gur o de vida.
De acordo com a estratégia que Jack Twist def inir a na noite anter ior, far ia m
uma únic a visita aos Jam ison. Se não houvesse sinal apar ente de que o bloqueio
com eç ava a fraquej ar, deixar ia m os dois de lado, pois não tinham tempo a per-
der. Ainda conf orm e as palavras de Jack, “nem o dem ônio em pessoa” conven-
cer ía alguém de que lhe roubar am três dias do passado. Ele não tinha dúvidas de
que os inim igos ultim avam os prepar ativos de ataque.
A via gem, na cam inhonete do motel, foi tranqüila e agradável. Com pouc o
mais de quinze quilôm etros de comprim ento e cinc o de largur a, o vale avanç ava
até o sopé dos montes Ruby. Apesar da neve, de longe em longe viam-se campos
onde em breve com eç ar ia a sem ea dur a do trigo e da cevada que, quando che-
gasse a prim aver a, cobrir ía m o vale de verde.
As terr as de pastagens e gado conc entravam-se na regiã o mais alta, onde se
originar a a proprie dade dos Jam ison. A princ ípio, o casal dedic ar a-se à cria ç ão
de gado, mas, com a extraordinár ia valor izaç ão das terr as dec idir am vender boa
parte da fazenda. Agor a, já beir ando os sessenta anos, cuidavam de uns vinte
hectar es situa dos na regiã o próxim a ao sopé das montanhas; tinham apenas três
cavalos e algum as galinhas.
Ao sair da estrada que cortava o vale para tom ar o rumo da enc osta, Fay e
com entou:
— Acho que estão nos seguindo.
Ginger olhou pelo espelho retrovisor à sua dir eita e viu um carr o sem plac as,
a alguns metros de distânc ia.
— Será mesm o? — perguntou.
— Só pode ser. Estão atrás de nós desde o posto de gasolina, na cidade.
— Pode ser coinc idênc ia...
Quando se aproxim ar am da entrada da proprie dade dos Jami-son, Fay e pas-
sou para o acostam ento e dim inuiu a marc ha, esper ando a rea ç ão do outro moto-
rista. Se rea lm ente a seguia, ele ter ia que par ar; se não, ultrapassar ia a cam inho-
nete e continua r ia seu cam inho. O carr o par ou.
— Aí está sua coinc idênc ia — Fay e com entou.
— Eles nem se preoc upam em disf arç ar...
— E por que se preoc upar ia m? Se Jack está certo, já sabem tudo que sabe-
mos, pelo menos até agor a. Sabem que estam os juntos, organizando nossas tro-
pas... e não têm motivo para se esc onder. Talvez pensem até que nos intim idam
com essa brinc adeir a de gato e rato.
Ela manobrou, pisou no aceler ador e dobrou na entrada que levava à casa
dos Jam ison. Pelo espelho, Ginger viu o carr o manobrar para segui-las.
— Ou vão nos pegar, ou só quer em saber onde estar em os, caso dec idir em
agarr ar-nos a todos de uma vez só.
Fazia ainda mais frio na estradinha, ladea da de pinheir os antigos e altos, que
mal deixavam passar a luz frac a da manhã.
Sentado ao lado do motor ista, a cam inho da entrada do depósito, olhando sem
ver a gram a crestada de frio e os vestígios de neve sobre a terr a endur ec ida, o
cor onel Falkirk pensava no que poder ia acontec er se vazasse o segredo de Thun-
der Hill.
Do ponto de vista polític o, Thunder Hill far ia o escândalo de Watergate par e-
cer mera bisbilhotic e de repórter es amador es. As
mais conf iá veis e respeitadas instituiç ões polític as do país, das maior es às
menor es, envolvidas num grande circ o de mentir as, falsidades e histór ia s mal-
contadas...
Se o segredo for mantido, pensava, provar em os ao mundo que nossas dif e-
renç as internas... as brigas e o ciúm e entre CIA, FBI, Serviç o Sec reto do Exérc i-
to, Forç a Aér ea... sao superf ic ia is. Mostrar em os que, dia nte de um verdadeir o
per igo, de uma amea ç a real, som os patriotas o bastante para esquec er as dif e-
renç as e unir esf orç os. Mas... se o segredo vazar... não sobrar á pedra sobre pe-
dra! O escândalo será tão grande que o povo amer ic ano perder á a fé nos hom ens
que esc olheu para governá-lo e no sistem a de que tanto nos orgulham os. Verdade
que pouc a gente sabe de tudo... no máxim o meia dúzia dos melhor es agentes do
FBI, dois ou três da CIA. A maior parte dos agentes envolvidos na oper aç ão
não faz idéia do que há em Thunder Hill... Por isso a notíc ia ainda não transpir ou.
Mas os chefões sabem! Os da CIA, do FBI, do Estado-Maior do Exérc ito. Sem
falar no ministro da Guerr a, no presidente e em dois de seus princ ipais assesso-
res, no vice-presidente... Todas essas cabeç as vão rolar quando alguém mais sou-
ber da verdade.
A catástrof e polític a ser ia apenas parte da devastaç ão total. Uma com issão
nom ea da pelo presidente, trabalhando em sigilo, estudava, dur ante anos, as possí-
veis conseqüênc ia s de uma hipotétic a crise sem elhante à que brotar ia em Thun-
der Hill se o segredo fosse divulgado. Eram físic os, biólogos, antropólogos, soc ió-
logos, teólogos, econom istas, educ ador es e centenas de outros espec ia listas em
todas as área s do conhec im ento hum ano; seu prim eir o relatór io, altam ente conf i-
denc ia l, tinha mais de mil páginas. Le-land conhec ia-o de cor, porque trabalhar a
com a equipe, como espec ia lista em estratégia militar, e redigir a algum as con-
clusões. O relatór io era muito clar o: na eventua lidade de uma crise total de valo-
res, o mundo jam ais voltar ia a ser o mesm o. As soc ie dades hum anas e as cultu-
ras conhec idas sof rer ia m mudanç as radic ais e def initivas. Independentem ente da
natur eza da crise, consider ando-se apenas a prof undidade dos valor es afetados,
previa m-se milhões de mortes, em todo o planeta, nos prim eir os dois anos.
Ao aproxim ar-se da gigantesc a porta de aço enc ravada na montanha, o te-
nente Horner dim inuiu a veloc idade, mas não par ou; entrou à dir eita e enc am i-
nhou-se para um pequeno estac ionam ento, onde havia alguns veíc ulos.
Com dez metros de altur a e seis de largur a, cada uma, as portas de aço eram
muito pesadas para abrir-se toda vez que alguém prec isava entrar ou sair. Fazia m
um bar ulho que podia ser ouvido a quilôm etros de distânc ia e provoc ar avam um
desloc am ento de ar visível à volta da montanha. Além disso, dem or avam cinc o
minutos para abrir-se totalm ente. Para evitar esses inc onvenie ntes, havia na en-
costa, à dir eita, uma porta igualm ente invulner ável, por ém de dim ensões reduzi-
das, suf ic ie nte para dar passagem a um hom em de cada vez.
O maior e mais bem protegido cof re do mundo. Não havia lugar melhor do
que Thunder Hill para esc onder o segredo da noite de 6 de julho. Naquela forta-
leza inexpugnável ele estar ia sepultado para sempre.
Leland e o tenente Horner saltar am do carr o e dir igir am-se para a porta me-
nor, quase tão pesada quanto a prim eir a, por ém acionada por um mec anism o
mais simples, embor a totalm ente segur o. Quatro algar ism os, digitados num pai-
nel eletrônic o junto à fec hadur a, abir ar am-na quase sem ruído. Os núm er os
eram troc ados a cada duas sem anas, e os pouc os func ionár ios que tinham acesso
ao código dec or avam-no como parte da rotina de trabalho. Leland adia ntou-se,
digitou o código, e a porta deslizou sobre os trilhos.
Ali com eç ava o prim eir o de vár ios túneis que levavam ao cor aç ão da mon-
tanha: um túnel de quatro metros de comprim ento e três de diâm etro, prof usa-
mente ilum inado. Ao final, uma curva à esquerda e outra porta, idêntic a à pri-
meir a, que não podia ser aberta até que a entrada externa estivesse novam ente
tranc ada. Leland toc ou um term inal de computador sensível à temper atur a da
mão e ouviu o zumbido da prim eir a porta se fec hando a suas costas.
No instante em que a fec hadur a estalou, entrar am em oper aç ão as duas câ-
mar as de vídeo instaladas no teto do túnel, que acompanhar am os dois hom ens na
dir eç ão da segunda porta. Não havia olho hum ano atrás das câm ar as, nem dia nte
dos monitor es dos term inais. O sistem a era oper ado eletronic am ente, através
de um computador program ado para perm itir exc lusivam ente a passagem do
pessoa l autor izado. Uma prec auç ão adic ional, à prova de erro ou de traiç ão, pre-
vendo a hipótese de algum desc uido da guarda, doloso ou não. O sistem a de segu-
ranç a que controlava o acesso a Thunder Hill era independente, sem ligaç ão com
o computador central da base nem com o mundo externo, o que o tornava virtu-
alm ente invulner ável a qualquer equipam ento eletrônic o que fosse usado para
acioná-lo, tanto de dentro quanto de fora.
Quando o carr o de Leland passar a pela guar ita, um dos soldados digitar a um
código sec reto em seu term inal de computador. Com isso, acionar a o sistem a de
segur anç a, que “rec onhec eu” Leland e Horner no instante em que as câm ar as
captar am seus rostos. Enquanto os dois cam inhavam para a segunda porta,
as imagens inic ia is eram compar adas com os registros holográf ic os arm azenados
na mem ór ia do sistem a de segur anç a, consider ando-se, para a compar aç ão, qua-
renta e dois detalhes do queixo à testa de cada um. Não havia disf arc e ou másc a-
ra que passasse inc ólum e pelo exam e das câm ar as. Se um únic o dos quar enta e
dois detalhes registrados não coinc idisse exatam ente com a imagem captada, so-
ar ia um alarm e em toda a área subterrânea da base, o túnel ser ia bloquea do, o
sistem a de ar condic ionado liber ar ia um gás que far ia adorm ec er o pretenso in-
vasor.
A porta interna não tinha fec hadur a, tranc a ou código num ér ic o a ser digita-
do. A esquerda, na par ede do túnel, havia apenas uma plac a de vidro, quadrada,
com doze centím etros de lado; Leland coloc ou a palm a da mão esquerda sobre a
plac a, pressionou-a e esper ou um segundo, talvez menos. A porta com eç ou a
abrir-se devagar, depois que as impressões digitais deixadas no vidro
for am compar adas à imagem das câm ar as e dadas como “verdadeir as e co-
inc identes”.
— Entrada mais dif íc il só a do par aíso — Horner suspir ou.
— Engano seu — disse Leland. — Aqui é mais dif íc il.
Os dois entrar am num túnel natur al, apenas retoc ado por mãos hum anas.
Não se via a abóbada da caverna, muito alta, metros acim a, mergulhada na es-
cur idão, porque as lum inár ia s for am rebaixadas até a altur a norm al, cria ndo a
ilusão de um segundo teto. Com mais de sete metros de largur a, o túnel avanç ava
cerc a de cento e cinqüenta metros. Em alguns pontos, via-se a roc ha natur al, mas
de longe em longe era possível perc eber os pontos em que a passagem fora alar-
gada a golpes de pic ar eta ou explosões de dinam ite. Havia espaç o suf ic ie nte para
carga e desc arga dos cam inhões que deixavam os suprim entos à entrada dos
grandes elevador es enc arr egados de transportá-los para os pisos subterrâneos.
Apenas um guarda vigia va a entrada da sala cuja porta Leland e Horner
abrir am. Consider ando que Thunder Hill estava distante de tudo, protegida pelos
mais sof istic ados equipam entos de segur anç a; consider ando que ninguém entrava
ali sem passar por inspeç ão eletrônic a rigor osa, um únic o guarda era mais que
suf ic ie nte, na opiniã o de Leland. Provavelm ente, o guarda tinha a mesm a opini-
ão, pois, com o revólver no coldre, as pernas cruzadas e uma pastilha na boca, lia
com gosto um rom anc e polic ia l.
Vestia casac o de inverno, pois as área s interm ediá r ia s do depósito não tinham
calef aç ão; apenas os esc ritór ios e as área s de convivênc ia e lazer eram aquec i-
das. Toda a energia consum ida em Thunder Hill vinha de uma pequena usina hi-
drelétric a construída às margens de um rio subterrâneo. A produç ão de energia
era grande, mas não bastava para a calef aç ão das cavernas, onde a temper atur a
jam ais ultrapassava a marc a dos doze graus centígrados, perf eitam ente suportá-
vel para quem se vestisse apropria dam ente
— Bom-dia, cor onel Leland... tenente Horner... — O guarda levantou-se.
— Os senhor es podem entrar para falar com o doutor Bennell. Já sabem onde
enc ontrá-lo.
A esquerda, a três metros de distânc ia, brilhava a superf íc ie polida do revesti-
mento interno das gigantesc as portas de entrada. Leland e Horner der am-lhes as
costas, dobrar am à dir eita e mergulhar am no cor aç ão da montanha, rumo aos
elevador es.
Havia em Thunder Hill asc ensor es hidráulic os de três tam anhos, o maior dos
quais era idêntic o aos modelos utilizados para o transporte de aviões. Além de
equipam ento e provisões equivalentes a mais de dois bilhões de dólar es — com i-
da congelada, rem édios, apar elhagem hospitalar, roupas, barr ac as de campa-
nha, arm am ento leve, fuzis, morteir os, artilhar ia de campo, muniç ão, veíc ulos
militar es e vinte ogivas nuc lea r es —, Thunder Hill ainda contava com equipa-
mento aér eo. Em prim eir o lugar, cinqüenta e oito helic ópter os, trinta dos quais
equipados com arm am ento antitanque, e oito de fabric aç ão anglo-franc esa, des-
tinados a transporte em ger al. Nenhum a aer onave convenc ional, mas vinte jatos
de fabric aç ão inglesa, dotados de propulsor es espec ia is, que lhes perm itia m de-
colar e pousar vertic alm ente, sem nec essidade de pista. No caso de um ataque
nuc lea r lim itado, seguido de invasão de tropas inim igas, tanto helic ópter os de
transporte como os transportador es de jatos podia m ser conduzidos de eleva-
dor até o piso de saída e dec olar em qualquer dir eç ão.
Por ora, entretanto, nada par ec ia exigir o uso do equipam ento aér eo de
Thunder Hill; assim Leland e Horner passar am dir eto pelos asc ensor es hidráuli-
cos e entrar am num dos três elevador es com uns reunidos ao fundo.
No terc eir o piso inf er ior do complexo, o últim o do depósito, eram guardados
equipam entos médic os, alim entos, arm as e muniç ão; as salas calaf etadas tinham
válvulas regulador as de pressão e portas à prova de explosão. No segundo piso,
interm ediá r io, fic avam os veíc ulos, as aer onaves e o pessoa l residente em Thun-
der Hill.
Leland e Horner saír am do elevador no segundo piso, dir etam ente num com-
partim ento de par edes de pedra, muito bem ilum inado em seus quase quar enta
metros de diâm etro. Servia de ante-sala para quatro outras salas esc avadas na ro-
cha e que, por
sua vez, abria m-se para mais uma sér ie de aposentos. Nas malhas maior es
dessa teia mergulhada na montanha guardavam-se, entre outras coisas, o equipa-
mento aér eo, os jipes e os tanques blindados.
Três das quatro salas que davam para a ante-sala dia nte do elevador não ti-
nham portas, pois não havia risc o real de inc êndio ou explosão à altur a daquele
nível subterrâneo. A quarta câm ar a, por ém, estava fec hada, e bem fec hada, por-
que ali se mantinha o segredo da noite de 6 de julho.
A pouc os passos do elevador, Leland par ou e olhou para a porta a sua frente.
Não tiver am tempo de construir uma porta igual às da entrada do depósito, mas
aquela era perf eita, com suas tor as de madeir a e seus oito metros de altur a por
vinte de largur a. Sempre que par ava ali, Leland lembrava-se do gigantesc o portal
construído pelos nativos no prim eir o King Kong. E estrem ec ia, pensando no que
acontec er ia se sua fortaleza fosse violada.
— Ainda se assusta, não é? — perguntou Horner.
— Você não?
— Eu também!
A esquerda, na porç ão inf er ior daquela barr ic ada, havia uma pequena porta,
da altur a de um hom em, que dava acesso à câm ar a; um guarda ali postado exa-
minava as credenc ia is dos visitantes. As atividades da “fortaleza” de Leland nada
tinham a ver com a rotina de Thunder Hill, e a área era proibida a noventa por
cento do pessoa l da base.
Ao redor da ante-sala dos elevador es, nos espaç os de roc ha entre as quatro
abertur as que davam acesso às dem ais câm ar as internas, havia vár ia s divisór ia s
construídas no com eç o dos anos 60. Naquela époc a, usavam-se divisór ia s para
separ ar esc ritór ios, salas de trabalho ou loc ais de reuniã o dos ofic ia is, engenhei-
ros e super intendentes de proj etos do Exérc ito. Com o passar do tempo, as gran-
des câm ar as subterrânea s for am cada vez mais subdivididas, até que uma verda-
deir a cidade enterr ada com eç ou a surgir, com quartos, lanc honetes, salões de jo-
gos, labor atór ios, centros de manutenç ão de equipam entos, salas de computado-
res e muitos outros compartim entos, Pessoa l do Exérc ito ou do Governo,
designado para prestar serviç os junto à base, em per íodos de um ou dois
anos, ocupava as instalaç ões. Nas salas do segundo piso havia calef aç ão, exc e-
lente ilum inaç ão, linhas telef ônic as internas e externas, cozinhas, banheir os mo-
dernos e todos os conf ortos da civilizaç ão. Eram construídas a partir de painéis de
metal revestidos de esm alte azul-clar o, branc o ou bege, com janelas pequenas e
portas estreitas. Apesar de não ter rodas, lembravam tmilers dispostos em círc ulo,
como se uma tribo de modernos ciganos tivesse desc oberto um modo novo de
acampar e resistir às tempestades de neve, esc ondendo-se dentro da terr a, a cem
metros da superf íc ie.
Leland vir ou-se, deu as costas à porta proibida e dir igiu-se a um dos tmilers,
no qual func ionava o esc ritór io do dr. Miles Bennell Horner, como sempre,
acompanhava-o.
Miles Bennell transf er ir a-se para Thunder Hill no ver ão retrasado a fim de
inic ia r a análise metódic a e cie ntíf ic a dos acontec im entos do dia 6 de julho. Des-
de aquela époc a, deixar a a base apenas três vezes, e sempre por pouc os dias. O
que era dever transf orm ar a-se para ele em missão. Par ec ia obc ec ado... ou lou-
co.
Uma dúzia de ofic ia is estava na sala, alguns unif orm izados, outros à paisana;
alguns apenas de passagem, outros conversando em grupos. Leland passou por
eles sem vir ar a cabeç a, imaginando quem ser ia m aqueles hom ens capazes de
trabalhar dur ante sem anas e meses sem ver a luz do sol. Rec ebia m uma ajuda de
custo consider ável, a título de “risc o adic ional”, o que, para Leland, ainda não
constituía compensaç ão suf ic ie nte para tam anho sac rif íc io. Thunder Hill não era
suf oc ante como Shenkf ie ld, mas estava longe de ser conf ortável.
Leland suspeitava que com eç ava a sof rer de claustrof obia, pois passava dias
e dias com a sensaç ão de estar enterr ado vivo. O que poder ia ser estim ulante
para um masoquista assum ido como ele, revelava-se simplesm ente insuportável.
Era um tipo de dor que não causava prazer nenhum.
O dr. Miles Bennell tinha aspecto doe ntio. Como todos em Thunder Hill, per-
der a completam ente o tom rosado da pele, de-
pois de meses longe do sol. Os cabelos esc ur os e enc ar ac olados e a barba
cresc ida tornavam-río ainda mais pálido. A luz esbranquiç ada das lâmpadas fluo-
resc entes, par ec ia um fantasm a. Cumprim entou os rec ém-chegados com um
aceno de cabeç a, mas não se levantou nem estendeu-lhes a mão.
Leland achou melhor assim. Não era amigo de Bennell... ao contrár io, odia -
va-o... Além disso, com eç ava a suspeitar dele. Todos os cie ntistas envolvidos no
proj eto davam-lhe a impressão de não ser em norm ais, nem completam ente hu-
manos. Se seu instinto estivesse certo, quanto menos contato físic o tivesse com
eles, melhor.
Na voz fria que sempre intim idar a os subalternos, reduzindo-os à mais mise-
rável subserviê nc ia, Leland despej ou seu serm ão:
— Das duas uma: ou o senhor foi negligente no controle da segur anç a desta
unidade, o que conf igur a crim e contra a segur anç a nac ional, ou foi cúmplic e de
um crim e. No segundo caso, é o traidor que estam os proc ur ando. Agor a, ouça
com atenç ão... Vou desc obrir quem foi o filho da puta que mandou as fotograf ia s
para as testem unhas. Vou trabalhar com meus hom ens... E tenha certeza de que
os detetor es de mentir as não apar ec er ão quebrados nos mom entos mais impor-
tantes, nem os interr ogatór ios ser ão suspensos de repente, sem maior es explic a-
ções. Quer o saber quem fez Jack Twist voltar para cá... E quando desc obrir, aca-
bo com ele... O inf eliz vai desej ar ter nasc ido mosc a, para passar a vida com en-
do bosta de cavalo...
— Boa frase de efeito... mas inteir am ente desnec essár ia. Também quer o
desc obrir onde está a falha da segur anç a.
Leland teve vontade de quebrar-lhe a cara. Era por isso que odia va Miles
Bennell: o desgraç ado não tinha medo de nada.
Calvin Sharkle mor ava na agradável Rua 0’Bannon, num bairr o de classe
média de Evanston. O padre Wy c azik prec isou par ar duas vezes para inf orm ar-se
sobre a dir eç ão a seguir. Na esquina da Rua 0’Bannon com a Avenida Scott, a dois
quarteir ões da casa de Sharkle, avistou o movim ento: carr os de políc ia, ambulân-
cia s, equipes de televisão corr endo de um lado para o outro com suas câ-
mar as. Apesar do frio e do vento forte, uma multidão de cur iosos espalhava-
se pela calç ada e pelos jardins das casas vizinhas.
O tráf ego estava engarr af ado, e Stef an dec idiu estac ionar na própria aveni-
da, onde não foi fác il enc ontrar uma vaga. Saiu do carr o e, alguns quarteir ões
adia nte, com eç ou a abrir cam inho entre a multidão. A medida que fazia pergun-
tas e ouvia explic aç ões mais ou menos desenc ontradas, perc ebia que todos esta-
vam nervosos e estranham ente assustados. Na verdade, havia no ar uma fasc ina-
ção impie dosa pela tragédia alheia e um medo instintivo de que a mesm a dor
atingisse a todos.
Não havia dúvida de que acontec er a uma tragédia. Um hom em de rosto re-
dondo e bigodes grossos dizia a Stef an:
— Você não viu na televisão?! O tal Sharkle, o “Tubar ão!”, é assim que o
cham am. Hom em per igoso... Está entrinc heir ado em casa desde ontem. Já ma-
tou dois vizinhos e um polic ia l, e está com dois ref éns lá dentro. Se quer saber,
acho que os dois estão fodidos...
Terç a-feir a de manhã, Parker Faine foi de aviã o até San Franc isc o e lá to-
mou uma conexão para Monter ey. Uma hora de vôo até San Franc isc o, uma
hora de esper a no aer oporto, trinta e cinc o minutos de via gem até Monter ey. Ver-
dade que o tempo corr er a, pois uma das passageir as, mulher jovem e bonita, re-
conhec eu-o, disse que ador ava seus quadros e mostrou-se enc antada com seu
charm e.
Em Monter ey, na agênc ia loc ador a de carr os, havia apenas um autom óvel
disponível, um calhambeque verde-vôm ito que constituía verdadeir a ofensa ao
senso estétic o de um pintor. Mas Parker Faine não tinha tempo a perder.
Bom nas retas, o carr o amea ç ava empac ar nas subidas. Devagar, Parker fi-
nalm ente chegou ao ender eç o que Dom lhe dera: a casa de Ger ald Salc oe, o ho-
mem que se hospedar a no Motel Tranqüi-lidade com a mulher e duas filhas na
noite de 6 de julho e que par ec ia ter sum ido da face da terr a. A casa era impo-
nente, em estilo colonia l sulino, mas horr ivelm ente desloc ada na costa da Calif ór-
nia; situa va-se no meio de um enorm e terr eno gram ado, à
sombra de pinheir os frondosos, e era cerc ada de arbustos tão rec ortados que
a fam ília devia pagar salár io integral para meia dúzia de jardineir os; os canteir os
estavam flor idos de verm elho e púrpur a, em pleno mês de janeir o.
Parker manobrou o calhambeque pela entrada maj estosa e estac ionou em
frente aos degraus que levavam à var anda de gradis de ferr o trabalhado. Já era
hora de haver algum a luz acesa, mas a casa estava às esc ur as, com as cortinas
fec hadas. Par ec ia vazia.
Parker saltou do carr o, subiu a esc ada e andou pela var anda, sempre rec la-
mando do frio e do vento. A neblina dissipar a-se na regiã o do aer oporto, mas ali,
na regiã o mais alta da cidade, ainda era suf ic ie nte para impedir que o sol aque-
cesse a terr a. No norte da Calif órnia o inverno era sempre úmido e frio, o que
não acontec ia em Laguna Bea c h. Prevendo o frio, Parker vestir a uma calç a de
veludo grosso, cam isa de flanela xadrez, sué ter de lã azul e ja-pona da Mar inha
com divisa e tudo. Indum entár ia ref inada e original, complem entada por inac re-
ditáveis tênis cor de abóbor a. Ao toc ar a campainha, Parker olhou para os pés e
fez uma car eta: estava fantasia do dem ais. Toc ou seis vezes, esper ando trinta se-
gundos entre um sinal e outro, e ninguém apar ec eu.
Na vésper a, um hom em cham ado Jack Twist lhe telef onar a às onze hor as da
noite, de uma cabine públic a em Elko, para dizer que tinha um rec ado de Dom i-
nick Corvaisis: dentro de vinte minutos, ele devia esper ar uma cham ada em de-
term inada cabine de Laguna Bea c h. Faine trabalhava num quadro fantástic o, ini-
cia do às três da tarde, mas nem o trabalho o impedir a de saber o que Dom que-
ria; ao perc eber do que se tratava, imedia tam ente conc ordar a em ir a Monter ey.
Andava pintando muito, nos últim os dias, só porque era a únic a atividade que o
fazia par ar de pensar em Dom e em seus amigos reunidos num motel no fim do
mundo. Depois, inf orm ado de que Dom fazia flutua r saleir os, a seu bel-prazer,
dec idiu que nem a Terc eir a Guerr a Mundia l o impe-dir ia de ir a Monter ey.
E agor a ali estava, derr otado por uma porta fec hada! Não, não quer ia voltar
de mãos vazia s. Tinha de enc ontrar os Salc oe, nem
que fosse no fim do arco-íris. Para com eç ar, qualquer casa das vizinhanç as
servia.
Os arbustos e o gram ado dif ic ultavam um pouc o a cam inhada até a casa ao
lado, e Faine voltou ao carr o verde-vôm ito. Deu a partida, pôs a mão na alavanc a
do câmbio e mais uma vez olhou para as janelas cada casa... Então viu um leve
movim ento nas cortinas, como se alguém estivesse espia ndo e fugisse para den-
tro ao vê-lo levantar a cabeç a. Sorr indo, soltou o breque e partiu, devagar, em di-
reç ão à saída. Sentia-se renasc er... agor a que, outra vez, brinc ava de espiã o.
Ernj e e Dom estac ionar am o jipe ao fim da estrada vic inal, e o carr o de vi-
dros fosc os par ou em seguida, a duzentos metros de distânc ia. Com os pneus
enorm es e os holof otes de sinalizaç ão por cima da carr oc er ia, par ec ia um inseto
gigante, pronto para enf ia r-se na terr a ao prim eir o sinal de insetic ida. Não se via
sinal de motor ista.
— Você acha que eles quer em briga? — Dom perguntou, saltando do jipe.
— Se quisessem, já ter ia m mostrado a cara. — Ernie soltava baf or adas de
ar no frio da manhã. — Quer em só fic ar de olho. Por mim, que se danem!
Voltar am ao jipe, e apanhar am as arm as: uma espingarda carr egada com
balas espec ia is de calibre 32 e um fuzil Springf ie ld. A idéia era mostrar aos ho-
mens do carr o-inseto que estavam prontos para a briga.
Dali em dia nte, a montanha subia em dir eç ão oeste, e a flor esta com eç ava a
adensar-se. Na dir eç ão leste, contudo, a terr a era plana, seca e nua. Ainda não
com eç ar a a nevar, por ém ventava cada vez mais forte. Dom enc olheu-se no ca-
sac o de inverno que comprar a em Reno, invej ando o abrigo de náilon de Ernie,
fec hado até o pesc oç o, e suas botas forr adas de pele. Felizm ente, todos esses itens
estavam inc luídos na lista de compras que Ginger e Fay e fic ar am enc arr egadas
de fazer em Elko: o mater ia l nec essár io para a oper aç ão daquela noite, inc luindo
roupas de inverno para
Dom e para os que não estivessem prepar ados para enf rentar o frio. Naquele
mom ento, todavia o vento o fazia trem er.
Ambos cam inhar am até o ponto em que a montanha com eç ava a subir, para
continua r a oper aç ão de rec onhec im ento do terr eno à volta de Thunder Hill. A
alta cerc a eletrif ic ada seguia adia nte, penetrando na flor esta; de repente, deixava
de acompanhar a estrada, dobrava para leste e desc ia em dir eç ão ao vale.
Ali havia uma cam ada de neve de trinta centím etros, e as botas de Ernie afunda-
vam quase até o cano. Continua r am andando acompanhando a cerc a até um lo-
cal de onde podia m ver as portas de aço da entrada do depósito.
Não havia guardas nem cães. Do lado oposto da cerc a, a neve brilhava, mui-
to branc a, sem sinais de pegadas, antigas ou rec entes, o que signif ic ava que ali
não havia ronda regular de vigia s.
— Ninguém deixar ia um lugar como esse entregue ao anjo da guarda —
disse Ernie. — O fato de não haver patrulhas de guarda signif ic a que a segur anç a
é eletrônic a. Com certeza há um milhão de apar elhos de vigilânc ia do outro lado
da cerc a.
Dom espiou na dir eç ão do carr o-inseto, preoc upado com o jipe. Viu um ho-
mem de unif orm e esc ur o, a silhue ta rec ortada contra a neve. Não estava perto
do jipe, nem par ec ia inter essado nele. Par ado junto à estrada, observava os mo-
vim entos de Ernie e Dom.
Ao vê-lo, Ernie segur ou a espingarda por baixo do braç o e levou o binóc ulo
aos olhos.
— E do Exérc ito — disse. — Pelo menos, usa um casac o militar. Está de
olho em nós.
— Ali par ado...? Não é estranho?
— E impossível seguir alguém num desc ampado como este sem apar ec er.
E o cara está quer endo ser visto mesm o. Ele e a arma. Para avisar de que não
está preoc upado com nossos fuzis.
— Por quê?
— Porque ele tem uma subm etralhador a belga. Uma arma fantástic a.
Seisc entos tir os por minuto.
Se tivesse assistido ao notic iá r io de televisão, na vésper a, o pa-
dre Wy c azik ter ia ouvido falar muito de Calvin Sharkle, cujo nome estava nas
manc hetes fazia vinte e quatro hor as. Mas ele não via televisão há anos, porque
dec idir a que era perda de tempo. Achava que aquelas versões simplif ic adas de
fatos da vida embotavam, a inteligênc ia. Sentia-se enoj ado com o sexo e a vio-
lênc ia que a pequena tela mostrava. Consider ava tudo aquilo mor alm ente repulsi-
vo. Poder ia também ter lido sobre Calvin nas prim eir as páginas da ediç ão matuti-
na do Tribune ou do Sun-Times, mas saír a tão apressado da casa par oquia l que
nem pensar a em jornais. Sem outras fontes, rec olhia fragm entos da histór ia de
um ou de outro, cerc ado pela multidão que se acotovelava junto ao cordão de
iso-lam em o.
Fazia meses que Cal Sharkle andava agindo de modo estranho. O solteir ão
simpátic o e amistoso, do qual todos os vizinhos gostavam na Rua 0’Bannon, trans-
form ar a-se de repente num hom em preoc upado, sor umbátic o, caladão. Vivia di-
zendo a quem quisesse ouvir que pressentia “que algum a coisa importante e terr í-
vel estava para acontec er”. Lia livros esotér ic os e falava muito em Ar-mage-
dom. Passava noites em clar o, atorm entado por pesadelos.
No dia 2 de dezembro, deixou de dir igir, vendeu o cam inhão e passou a an-
dar pela vizinhanç a anunc ia ndo que “o fim estava próxim o”. Falava em vender a
casa, comprar um terr eno nas montanhas e construir um abrigo antia tôm ic o,
conf orm e uma planta que enc ontrar a numa revista espec ia lizada em sobrevivên-
cia pós-guerr a nuc lea r.
— Mas não vai dar tempo — conf essou à irmã, Nan Gilc hr ist. — Vou ter
que adaptar minha própria casa.
Não sabia o que estava para acontec er, não entendia a origem do medo que
o tortur ava, mas gar antia que não se tratava de guerr a nuc lea r, invasão russa, co-
lapso econôm ic o nem qualquer outra coisa que os grupos alarm istas vatic inavam
pelas praç as.
— Não sei o que é — disse a Nan —, mas sei que é estranho e horr ível... e
que está muito próxim o de acontec er.
A irmã levou-o ao médic o, que, sem enc ontrar nenhum distúrbio orgânic o,
dia gnostic ou “crise aguda de stress”. Depois do Natal,
Calvin já não par ec ia o mesm o. Na prim eir a sem ana de janeir o mandou
desligar o telef one, explic ando apenas que “não se sabe como eles poder ão nos
enc ontrar. Talvez possam entrar pelo telef one...” Mas não sabia o que responder
quando alguém lhe perguntava quem eram “eles”.
Ninguém, na verdade, imaginar a que Cal pudesse representar algum per igo.
Era um hom em calm o e assim fora dur ante toda a vida. Apesar do que andava
dizendo, nada indic ava que se tornar ia violento.
Até que, na manhã do dia anter ior, oito e meia, Carl atravessou a rua e bateu
à porta de Edward Wilkerson, seu vizinho e velho amigo, de quem se afastar a nos
últim os tempos.
— Não posso ser tão agoísta — disse-lhe. — Minha casa está prepar ada
para o ataque, e a de voc ês é vulner ável. Por isso, quando “eles” chegar em, se
voc ês se assustar em e quiser em ir para lá, tudo bem. Poder em os nos def ender
melhor.
Quando Wilkerson perguntou-lhe quem eram “eles”, Cal respondeu:
— Não sei que cara têm, nem que nome usam para identif ic ar sua espéc ie.
Mas vêm para nos agredir. Talvez nos transf orm em em zumbis.
Cal Sharkle gar antiu que tinha em casa muniç ão suf ic ie nte para resistir a um
ataque mac iç o e que havia ref orç ado portas, janelas e par edes.
Assustado com a conversa sobre arm as e muniç ão, Wilkerson esper ou que o
vizinho voltasse para casa e telef onou para Nan Gilc hr ist. Ela chegou meia hora
mais tarde com o mar ido, e disse a Wilkerson que tentar ia convenc er o irm ão a
deixar-se levar até um hospital para exam es. Mas, depois que Nan entrou na casa
de Sharkle, Wilkerson achou que ser ia mais segur o acompanhá-la e convoc ou ou-
tro vizinho, Frank Krelky, para ir com ele. Imaginou que Nan abrir ia a porta, po-
rém o próprio Cal apar ec eu à beir a da hister ia, arm ado com uma pistola semi-
autom átic a de cano longo, acusando os vizinhos de estar em transf orm ados
em zumbis.
— Voc ês já estão transf orm ados — gritou. — Oh! Deus! Eu dever ia ter
visto. Quando foi que acontec eu? Quando foi que voc ês deixar am de ser hum a-
nos? Meu Deus... Agor a voc ês vie r am nos busc ar! — Com um berr o de anim al
assustado, abriu fogo contra os vizinhos. O prim eir o tiro atingiu o pesc oç o de
Krelky, à queim a-roupa. Wilkerson corr eu e, ao ser atingido nas pernas, fingiu-
se de morto, o que lhe salvou a vida.
Krelky foi levado para o Instituto Médic o-Legal e Wilkerson estava no hospi-
tal, fora de per igo, pronto para falar aos repórter es.
Junto ao cordão de isolam ento, à entrada da Rua 0’Bannon, um jovem conta-
va ao padre Wy c azik as últim as notíc ia s da manhã.
— *Meu nome é Roger Hasterwick, sou espec ia lista em mistur as alc oólic as
— dec lar ar a —, mas estou tempor ar ia m ente desempregado.
Poder ia ser, mais prosaic am ente, um barman rec ém-despedido, Stef an tra-
duzir a. Roger tinha olhos brilhantes, de pupilas dilatadas, o que podia indic ar into-
xic aç ão por bebida, drogas, falta de sono ou psic opatia, ou tudo isso junto, mas
sabia das novidades com detalhes.
— Daí — contava —, os polic ia is bloquea r am o quarteir ão, tir ar am as pes-
soa s das casas vizinhas e tentar am entrar em contato com o “Tubar ão”. Mas o te-
lef one estava desligado. A políc ia com eç ou a berr ar no megaf one, e o hom em se
fez de surdo. Par ec e que a irmã dele e o cunhado ainda estavam vivos, como re-
féns, por isso a políc ia não pôde invadir a casa.
— Queir a Deus que estej am vivos — murm ur ou Stef an, unindo as mãos
geladas, mais de medo que de frio.
— Clar o, clar o... — fez Roger, impac ie nte para continua r contando o que
sabia. — Afinal, como já estava esc ur ec endo e logo ser ia noite fec hada, a políc ia
cham ou o pessoa l do esquadrão espec ia l para entrar em ação e salvar os ref éns.
Jogar am bombas de gás lac rim ogênio, mas tiver am problem as. Os polic ia is tro-
peç avam pelo jardim, porque o “Tubar ão” cobriu a gram a com uma rede de
aram e. Um deles caiu, quebrou a cabeç a e teve conc ussão cer ebral. Não mor-
reu, mas ainda está inc onsc ie nte. Cal não foi atingido pelo gás porque estava de
másc ar a, como se já soubesse o que a políc ia far ia, e abriu fogo contra o esqua-
drão espec ia l. Matou um guarda e fer iu outro. Então subiu para o sótão e fec hou
a porta. Ninguém consegue tirá-lo de lá, porque mandou instalar uma porta de
aço lá no sótão. As janelas também são de aço. O “Tubur ão” e a políc ia estão
empatados. Que louc ur a!
Dois mortos e três fer idos, Stef an fez as contas.
Hasterwick continua va:
— Daí os polic ia is for am embor a e resolver am esper ar que esc ur ec esse.
Não acontec eu nada dur ante toda a noite. Hoje de manhã Cal abriu uma fresti-
nha da janela e com eç ou a gritar. Par ec ia louc o... dizia que alguém estava che-
gando... Depois fec hou a janela e não apar ec eu mais. Tom ar a que ele faça algu-
ma coisa logo, porque está muito frio e isto aqui já está fic ando meio chato.
— O que ele gritava? — Stef an perguntou.
Quando?
— Hoje de manhã.
— Ah, deixe ver... — A alguns passos, a multidão movim entou-se, seguindo
uma onda de inf orm aç ões novas que vinha do outro lado da rua. Aflito, sem que-
rer perder qualquer detalhe sórdido, Roger gritou, frenétic o, para um hom em de
rosto verm elho e chapéu de caç ador:
— O que houve? O que foi agor a?
— Um cara aí tem um rádio e sintonizou a faixa do esquadrão espec ia l.
Par ec e que eles vão invadir a casa e mandar o “Tubar ão” para o espaç o. O ho-
mem corr eu em dir eç ão a casa, e Hasterwick seguiu-o.
O padre Wy c azik foi empurr ado de todos os lados, a multidão dispar ando em
dir eç ão à esquina, tentando aproxim ar-se o mais possível da casa. Apenas dez ou
doze pessoa s fic ar am onde estavam, par adas junto ao cordão de isolam ento.
Logo ocorr er ia uma tragédia, haver ia mais mortos, outros fer idos. Stef an sentia a
amea ç a no ar. Tinha que fazer algum a coisa... mas não conseguia pensar. Até
aquele mom ento, o “mistér io” de Brendan par ec er a-lhe uma bênç ão divina, um
dom, um presente... uma prom essa de felic idade eterna, o prim eir o ato de um
grande espetác ulo que Deus prepar ava para seus filhos. Mas ali estava o reverso
da medalha, o lado esc ur o do mistér io, a tragédia!
Afinal, sem saber o que fazer, Stef an resolveu acompanhar a multidão, que
outra vez se reunia, um quarteir ão adia nte, à volta de um cam inhão azul com
uma paisagem da Calif órnia pintada na carr oc er ia. O dono, um grandalhão pelu-
do e barbudo, sentado na cabine, abrir a as portas do cam inhão e mexia nos bo-
tões do rádio. Os polic ia is ultim avam os planos de ataque.
As equipes espec ia is tom avam posiç ão no prim eir o andar da casa de Sharkle.
Usar ia m uma pequena carga de explosivo plástic o para arr ebentar a porta de
aço, o que lhes perm itir ia entrar no sótão, mas não abalar ia os alic erc es da casa.
Enquanto isso, uma segunda equipe far ia explodir a porta da frente, num ata-
que em cunha. A estratégia era terr ivelm ente per igosa, tanto para os ofic ia is
quanto para os ref éns, mas o esquadrão par ec ia convenc ido de que ser ia ainda
mais per igoso continua r esper ando.
Ao ouvir as vozes que o rádio reproduzia, fazendo vibrar o ar frio da manhã
de janeir o, Stef an sentiu de repente que prec isava deter o ataque. Se o plano fos-
se levado adia nte, haver ia uma carnif ic ina. Prec isava passar pelo cordão de iso-
lam ento, ir até a casa... e falar com Cal Sharkle. E tinha que ser logo!
Voltou as costas ao cam inhão e dispar ou a corr er em dir eç ão à casa sitia da,
um quarteir ão adia nte. Ainda não sabia o que dir ia a Sharkle para convenc ê-lo a
entregar-se. Talvez o batido “Calvin, você não está sozinho” servisse. Até enc on-
trá-lo, acabar ia desc obrindo algum a coisa!
Sua partida repentina deu à multidão a impressão de que ele souber a de algu-
ma novidade, e Stef an já estava a meio cam inho quando os prim eir os cur iosos
passar am por ele, corr endo e gritando como louc os, interr ompendo completa-
mente o trânsito da Avenida Scott. Breques chia vam, buzinas gritavam, ouvia-se o
ruído dos carr os batendo uns nos outros, latar ia raspando. O pár oc o acabou atro-
pelado pela multidão, foi empurr ado com violênc ia, tropeç ou e caiu de joe lhos
na calç ada; levantou-se e continuou corr endo. O ar da manhã par ec ia cada vez
mais carr egado de amea ç as, como um anim al enlouquec ido, sedento de sangue,
que se aproxim asse. Stef an olhava ao redor, horr or izado, o cor aç ão batendo dis-
par ado. O inf erno deve ser assim, pensou. Gente tres-louc ada corr endo sem pa-
rar, sem saber para onde, uma multidão a nos empurr ar para a frente, para a
frente...
Quando, afinal, se aproxim ou da casa de Sharkle, os prim eir os cur iosos já re-
troc edia m, empurr ados pelos cavalos e cassetetes da políc ia. Desesper ado, o pa-
dre Wy c azik olhou para um lado e outro, à proc ur a do com andante do pelotão,
porque prec isava falar com alguém. Foi puxado para trás, empurr ado para a
frente, novam ente empurr ado, gritou que era sac erdote e prec isava falar com o
ofic ia l, mas não lhe der am ouvidos. Alguém tir ou-lhe o chapéu, outro empurr ou-
o e, de repente, lá estava ele, em pé na linha de fogo, dois passos à frente da mul-
tidão desaf ia ndo os cavalos.
Os polic ia is gritar am-lhe que saísse dali, amea ç ar am-no com prisão e espan-
cam ento, tir ar am os cassetetes da cintur a e baixar am os esc udos. Mas ele não
par ava de gritar. Um dos guardas se aproxim ou, como se quisesse ouvi-lo melhor.
O que poder ia dizer-lhe? Que era padre, que sabia o que estava acontec endo com
Sharkle, que sabia como fazê-lo render-se? Era mentir a, mas valia a pena tentar.
Só teve tempo para com eç ar: abriu o casac o e mostrou o colar inho branc o ao po-
lic ia l.
— Sou padre...Acho que sei... — Antes que conc luísse a frase, o hom em em-
purr ou-o para trás, aos gritos. No mesm o instante, duas explosões sac udir am o ar,
ao intervalo de pouc os segundos. Alguns, na multidão, sabendo das notíc ia s pelo
rádio do cam inhão azul, bater am palm as. Então uma terc eir a explosão fez o
chão estrem ec er. Stef an levou a mão aos ouvidos para se proteger. A casa de
Sharkle voou pelos ares, pedaç os de madeir a e vidro jogados contra o céu cinzen-
to. Milhar es, milhões de pedaç os, e uma vasta nuvem de poe ir a. Dessa vez a
multidão gritou, a uma só voz, medo e horr or estampados em todos os rostos.
Desc obria m que a morte era mais do que um espetác ulo em tecnic olor, distante
e contido numa tela.
— Ele tinha uma bomba! — gritou um dos polic ia is. — Meu Deus! Ele ex-
plodiu a casa! — Vir ou-se para onde estavam as ambulânc ia s e ordenou: — An-
dem! Vão!
Ainda trem endo, o padre Wy c akik tentou acompanhar os enf erm eir os, mas
um dos guardas segur ou-o pelo braç o.
— Sou padre — disse ele. — Pode haver alguém prec isando de... conf orto
espir itua l. Eu prec iso...
— Podia ser o papa em pessoa — retruc ou o polic ia l. — Ninguém pode se
aproxim ar. Ainda não sabem os se Sharkle morr eu.
— Estão todos mortos — Stef an murm ur ou, baixando a cabeç a. — Todos:
Sharkle, a irmã, o cunhado, os guardas do esquadrão espec ia l... Quantos ser ia m?
Talvez cinc o, seis. Ou dez?!
* Andando sem rumo, acompanhando a multidão que se dispersava, ajeitan-
do o cac hec ol, assustado e tonto, murm ur ando um “Padre Nosso”, Stef an avistou
Roger Hasterwick, o barman desempregado, de pupilas dilatadas. Corr eu até ele,
a garr ou-o pelo braç o e perguntou:
— O que foi que Sharkle disse hoje cedo?
— C-como? — gaguej ou o rapaz.
— Antes de sair corr endo, você disse que Calvin Sharkle abriu uma fresta
na janela e gritou... que algum a coisa ia acontec er. O que ele disse? Quais for am
suas palavras exatas?
— Ah, sim? — Hasterwick sorr iu. — Sim, sim... Uma louc ur a... Não sei se
me lembro... — E repetiu, palavra por palavra, o que Sharkle disser a.
Palavra por palavra, o padre Wy c azik foi desc obrindo que Sharkle não estava
louc o. Conf uso, sim, aturdido e assustado... atorm entado pelo terr ível stress pro-
voc ado pela derr oc ada do bloqueio cer ebral, perdido... mas não louc o. O rapaz e
todos que o ouvir am sabia m apenas que um hom em berr ava palavras sem senti-
do, dentro de uma casa transf orm ada em fortaleza. Mas ele, Stef an, sabia dos
acontec im entos de duas noites atrás, no Motel Tranqüi-lidade, dos saleir os voa do-
res, das cur as milagrosas de Emmy e Tolk. Podia haver algum a verdade nas pa-
lavras desatinadas de Sharkle... Mas... e se houvesse?! O velho pár oc o sentiu a
pele arr epia r-se.
— Ei, o senhor não pode acreditar nessa louc ur a! — Roger exc lam ou. — O
cara era maluc o... Explodiu a própria casa!...
Sem responder, Stef an corr eu para seu carr o. Já antes de chegar a Evanston
para o últim o ato da tragédia de Sharkle, pressentir a que prec isar ia voar para Ne-
vada. Depois de falar com Tolk e ver o que estava acontec endo com Emmy, já
não havia como esper ar.
Agor a que sabia o que Sharkle disser a, a nec essidade de ir era ainda maior e
mais urgente. Já não se tratava de cur iosidade temper ada de mistic ism o... Stef an
tinha de ir para Elko para proteger o grupo dos amigos de Brendan. Depois de
uma vida de lutas para salvar conf rades em dif ic uldades, para não perder uma só
de suas ovelhas, mesm o as mais hum ildes, era chegada a hora de cuidar não
apenas das alm as, mas também dos corpos pousados naquele motel. Calvin anun-
cia va uma catástrof e que amdea ç ava a todos, alm as e cér ebros!
O velho cura deu a partida e afastou-se de Evanston. Não tinha tempo de vol-
tar à casa par oquia l e fazer as malas. Prec isava corr er para o aer oporto, rezando
para enc ontrar lugar no prim eir o aviã o.
Meu Deus do céu, pensava. Que nova provaç ão nos esper a? O que nos envi-
astes, Senhor? Um presente... ou uma nova praga, maior que todas as pragas da
Bíblia?
Pisou fundo no aceler ador e dispar ou como... um morc ego fugindo do inf er-
no!
Ginger e Fay e passar am boa parte da manhã com Elr oy e Nancy Jam ison,
fazendo dezenas de perguntas, a pretexto de que a médic a pudesse inf orm ar-se
sobre as terr as, porque tinha planos de mudar para lá, por motivos de saúde. Os
Jam ison conhec ia m muito bem a histór ia da regiã o e ador avam falar sobre o as-
sunto, princ ipalm ente sobre a beleza do vale Lem oille.
As duas não conseguir am desc obrir a menor falha de mem ór ia em seus an-
fitriões. Elr oy e Nancy par ec ia m felizes, sem problem as psic ológic os. Uma la-
vagem cer ebral perf eita, tão perf eita quanto a de Fay e, com lembranç as falsas
implantadas bem fundo em
seu inc onsc ie nte. Contar-lhes o que se passava no Motel Tranqüi-lidade ser ia
inútil, além do agravante de coloc á-los em risc o de vida.
— São ótim as pessoa s — Ginger com entou ao partir em, ainda acenando
para Nancy Jam ison. — Muito simpátic os.
— São exc elentes amigos — disse Fay e —, gente de conf ia nç a. Ser ia óti-
mo tê-los conosc o. Por outro lado, é bom saber que estão livres desse pesadelo.
Calar am-se, mas as duas sabia m que tinham um únic o assunto na cabeç a: os
ocupantes do carr o que ainda as esper avam na entrada, junto à cerc a. Será que
se lim itar ia m a segui-las de volta para casa? Ernie e Dom saír am arm ados para
fazer o rec onhec im ento do terr eno do depósito. Mas, partindo para uma sim-
ples visita de cortesia, nenhum a das duas imaginar a que ter ia m problem as. Gin-
ger sabia atir ar, porque conhec ia os per igos de ser bonita e viver sozinha numa
cidade grande. E Fay e, boa mulher de mar inheir o, era quase campeã de tiro.
Fantástic as habilidades... para quem deixar a os revólver es em casa!
De repente, Fay e estac ionou na mata de pinheir os.
— Talvez eu seja melodram átic a, e isso não nos ajude — disse, desaboto-
ando o casac o —, se os desgraç ados apontar em uma arma para nossas cabeç as.
— Fez uma car eta e tir ou duas fac as de cozinha de dentro do casac o.
— Como conseguiu essas fac as?! — Ginger arr egalou os olhos.
— Lavando a louç a do alm oç o de Nancy. Não podia pedir que Elr oy me
emprestasse um revólver. As fac as são boas, afia das, de ponta fina. Se form os
presas, e eles nos enf ia r em naquele carr o, deixe sua faca esc ondida, até ter uma
chanc e de metê-las nas costas de um deles. Eu cuido do outro.
— Perf eito. Esper o que, algum dia, você conheç a Rita Hannaby...
— A esposa do médic o que ajudou você em Boston?
— Isso mesm o. Você e Rita são muito par ec idas.
— Eu... e uma dama da alta soc ie dade de Boston?! — Fay e sorr iu. — Mas
que idéia!... Não pode haver a mínim a sem elhanç a...
— São irm ãs de alma. Ambas são segur as, ser enas e jam ais perdem a
elegânc ia, não importa a catástrof e que estej a acontec endo.
Fay e esc ondeu as fac as sob o banc o antes de retruc ar:
— Quando se é mulher de mar inheir o, aprende-se a levar a vida com cal-
ma e jam ais nadar contra a corr ente. Caso contrár io, acaba-se enlouquec endo.
— Você e Rita são bonitas e fem ininas, sua ves e dependentes... do lado de
fora. Mas por dentro, cada uma a seu modo, são duas leoa s.
— E você? Uma gatinha por fora... uma tigresa por dentro!
Fay e deu a partida e em segundos voltavam à estrada, sob o céu
cinzento. A tempestade estava cada vez mais próxim a.
O carr o que as seguir a continua va par ado no acostam ento; os dois hom ens
que as vigia vam não movia m um músc ulo. Ginger acenou para eles, mas não
obteve resposta.
O carr o manobrou e continuou a segui-las.
Miles Bennell levantou-se da poltrona, com ar entedia do, e respondeu às per-
guntas, a voz ora indif er ente, ora divertida e irônic a, porque era hom em que ja-
mais gritava nem se zangava, como os soldados que Falkirk conhec ia bem.
Leland Falkirk odia va-o. Sentado junto a uma velha mesa, a um canto da
sala, exam inava as fic has de arquivo de cada um dos cie ntistas civis que traba-
lhavam na sala tranc ada do segundo pavim ento. A sala do segredo. Uma das pos-
sibilidades de enc ontrar o traidor ser ia desc obrir qual deles ter ia estado em Nova
York na data em que as fotos for am envia das a Dom inick Corvaisis. A segur an-
ça de Thunder Hill trabalhar a dur ante todo o dom ingo... e o relatór io era desen-
cor aj ador. Mas, enquanto o traidor não fosse preso, todos eram suspeitos, mesm o
os agentes da segur anç a interna. Leland não podia mais conf ia r em ninguém.
Nem em Bennell, nem nos outros cie ntistas que trabalhavam com ele. Prec isava
agir sozinho.
Os problem as acum ulavam-se. E como não se acum ular ia m se, nos últim os
meses, qualquer civil idiota era “autor izado” a entrar Thunder Hill?! Agor a já
eram trinta e sete! Trinta e sete cie ntistas das mais diversas espec ia lidades, con-
voc ados por Bennell!
Trinta e oito, inc luindo o próprio Bennell. Era um milagre que, até ali, o as-
sunto ainda não houvesse chegado aos jornais... Um batalhão de imbec is! Indisc i-
plinados, sem exper iê nc ia militar... inc apazes de guardar segredos...
Pior do que isso: apenas Bennell e mais sete cie ntistas perm anec ia m na base
em tempo integral. Os outros trinta tinham fam ília e trabalho em vár ia s universi-
dades do país e só vinham para Thunder Hill quando suas agendas perm itia m, às
vezes para fic ar um ou dois dias, no máxim o algum as sem anas, nunc a mais de
um ou dois meses. Era pratic am ente impossível desc obrir qual deles estiver a em
Nova York, sem uma longa e cansativa investigaç ão.
Para complic ar o problem a, dos oito pesquisador es que vivia m em Thunder
Hill três for am a Nova York em dezembro, inc lusive o próprio Bennell. Leland ti-
nha, pelo menos, trinta e três suspeitos com que se preoc upar.
Nem o pessoa l militar enc arr egado da segur anç a do proj eto inspir ava-lhe
conf ia nç a, embor a o maj or Fugata e o tenente Helms, chef e e subc hef e de segu-
ranç a, estivessem ofic ia lm ente a par do que se passava nos labor atór ios de Ben-
nell. No dom ingo, depois de inic ia r o interr ogatór io dos cie ntistas, Fugata apar e-
cer a com a notíc ia de que o detetor de mentir as estava quebrado e era perda de
tempo trabalhar com os resultados obtidos até ali. Na vésper a, depois que Leland
requisitar a outro detetor em Shenkf ie ld e puser a-o em func ionam ento, Fugata
voltar a com a mesm a histór ia: o apar elho quebrar a dur ante o transporte. Dois de-
tetor es inutilizados em pouc os dias!
Alguém desc obrir a que os bloqueios com eç avam a ceder e resolver a apro-
veitar a oportunidade, envia ndo a algum as testem unhas os bilhetes cif rados e as
fotos roubadas do arquivo. O filho da puta conseguir a o que quer ia, pelo menos
até ali... e sentia-se amea ç ado. Para se livrar, sabotar a os dois detetor es de men-
tir as.
Leland levantou a cabeç a, deixou as fic has sobre a mesa e olhou para Ben-
nell, que continua va impassível dia nte de uma das janelas.
— Quem sabe o senhor poder ia me ajudar — disse.
— Se for possível, será um prazer. — O cie ntista voltou-se para ele.
— Seu pessoa l conhec e as mil e duzentas páginas do relatór io da com issão
interdisc iplinar que trabalhou sobre as conseqüên-cias de uma eventua l crise pla-
netár ia... Todos sabem o que pode acontec er se nosso segredo vazar. Haver ia en-
tre eles alguém tão irr esponsável... a ponto de corr er o risc o de divulgar nosso se-
gredo?
O dr. Bennell estrem ec eu, como se a simples menç ão daquela possibilidade
fosse suf ic ie nte para causar-lhe calaf rios. Leland, por ém, perc ebeu a ironia ocul-
ta, quase invisível, sob toneladas de boas intenç ões apar entes.
— Como em todos os grupos, tem os algum as ovelhas negras em nosso re-
banho — explic ou Bennell. — Muitos cie ntistas, em todo o mundo, disc ordam das
conc lusões daquele relatór io. Para muitos, a divulgaç ão públic a de qualquer
grande amea ç a que pese sobre a espéc ie hum ana ser ia a únic a maneir a de en-
frentá-la com efic ác ia. Dizem que o relatór io é autor itár io e elitista em suas con-
clusões.
— Quanto a mim, tenho certeza de que as conc lusões são corr etas. E você,
Horner? — Leland vir ou-se para o tenente, sentado junto à porta.
— Conc ordo com o senhor, cor onel. O públic o externo deve ser prepar ado
aos pouc os para rec eber uma notíc ia como... esse segredo. Um lento proc esso de
educ aç ão que pode levar anos, talvez mais de dez. E mesm o assim...
Leland conc ordou com a cabeç a e, outra vez, voltou-se para Bennell:
— Não esper o grande coisa de nossa espéc ie, doutor. Uma opiniã o pessi-
mista, talvez, mas bastante rea lista. A hum anidade não está e talvez jam ais estej a
prepar ada para um fato como esse. Haver ia o caos polític o e econôm ic o, surgir i-
am levantes popular es, a massa mais ignor ante despertar ia e talvez fosse dif íc il
controlá-la. Exatam ente como o relatór io prevê.
— O senhor tem o dir eito de pensar o que quiser... — o cie ntista respondeu
com um sorr iso intenc ional, como se ele próprio
completasse o sentido das palavras: “Mesm o que sua opiniã o me par eç a im-
bec il, pretensiosa e autor itár ia”.
— Mas o senhor conc orda com as conc lusões do relatór io? — insistiu o co-
ronel.
— Não se preoc upe com igo. Não fui eu que mandei os bilhetes e as fotos
que tanto o preoc upam.
— Então esper o que não crie problem as com meu pessoa l. Como o senhor
sabe, o pentotal sódic o é mais efic ie nte que qualquer detetor de mentir as. O cha-
mado “soro da verdade”.
— Não vou cria r problem as — gar antiu Bennell, levantando as sobranc e-
lhas. — Mas há gente aqui, em minha equipe, que jam ais se subm eter á a um in-
terr ogatór io desse tipo. São cie ntistas prof issionais. Pessoa s que são o que são e
vivem como vivem, exc lusivam ente pelo que têm na cabeç a. A vida intelectua l
é, para eles, mais importante que a vida mater ia l. Não acredito que um hom em
cujo QI seja duas vezes super ior ao QI médio da populaç ão do país conc orde em
rec eber uma inj eç ão de uma droga que poder á afetar-lhe o cér ebro.
— O senhor sabe que o pentotal sódic o não apresenta efeitos colater ais.
— Na maior ia dos casos, talvez. De qualquer modo, alguns dos cie ntistas
contratados para esse proj eto não conc ordar ão em ser subm etidos a interr ogató-
rios conduzidos com o uso de drogas... qualquer droga. Ainda que estej a em jogo
a segur anç a nac ional.
— Para seu governo, é bom saber que vou solic itar autor izaç ão espec ia l
para interr ogar seu pessoa l. Todos... os que sabem do segredo e os que não sa-
bem. Vou usar o soro da verdade em todos, conc ordem ou não com a idéia. Pedi-
rei ao gener al Alvar ado autor izaç ão espec ia l para inic ia r os interr ogatór ios.
Alvar ado era o com andante de Thunder Hill, um bur oc rata de carr eir a, um
soldado que não gostava de combates. Leland desprezava-o, como desprezava os
cie ntistas.
— Se o gener al conc ordar — continuou —, vou cair em cima de seus cie n-
tistas. Queir am ou não o soro. E isso inc lui o senhor. Entendeu bem?
— Sim, clar o. Entendi perf eitam ente — disse Bennell, sem alter ar a voz.
Leland esm urr ou a mesa e empurr ou para longe as fic has que exam inar a:
— Estam os andando muito devagar! Prec iso enc ontrar o traidor com a
máxim a urgênc ia. Não posso esper ar um mês. Vam os tratar de consertar o mal-
dito detetor e com eç ar logo com os interr ogatór ios. — Levantou-se, andou até a
porta, mas par ou antes de sair, com uma pergunta atravessada na garganta. A
mesm a pergunta que o perseguia desde que rec eber a os últim os relatór ios: —
Doutor, o que pensa sobre o que está acontec endo com o padre e com Corvaisis?
O padre rea liza cur as milagrosas, e o outro faz voar saleir os. Qual é sua opiniã o?
Pela prim eir a vez, a voz de Bennell soou alter ada, tom ada por uma emoç ão
repentina e autêntic a:
— Está com medo, cor onel? — perguntou, apoia ndo os cotovelos sobre a
mesa. — Acredito firm em ente que existe uma explic aç ão rac ional para o que
está acontec endo aos dois. O senhor sempre rea ge com medo... enquanto eu, de
minha parte, sinto-me como um dos rar os eleitos cham ados a assistir ao maior
mom ento da evoluç ão de nossa espéc ie. De qualquer modo, seja qual for a expli-
caç ão para o que está acontec endo, nossa únic a chanc e de desc obrir é falar com
eles. Cham e Corvaisis e Cronin, conte-lhes a verdade e peça-lhes que nos aju-
dem a entender como rec eber am esses poder es extraordinár ios. Não podem os
elim iná-los, pura e simplesm ente, ou obrigá-los a novas sessões de lavagem ce-
rebral... antes de obterm os as respostas do que prec isam os.
— Se fizerm os contato com as “testem unhas” e lhes contarm os o segredo...
mas não conseguirm os fazê-los esquec er o que houve... não haver á como manter
o sigilo. Todos saber ão que mentim os.
— Talvez sim, talvez não — o cie ntista insistiu. — Mais dia menos dia, o pú-
blic o acabar á desc obrindo. Será que o senhor não entende que, no mom ento, não
há nada, nesta base ou no planeta, mais importante do que o que está acontec en-
do a Dom inick
Corvaisis e ao padre Brendan?! Nem a histór ia que o senhor inventou...
Nada?! Prec isam os deles, prec isam os conhec er esse poder... Mais importante do
que isso... prec isam os dar aos dois uma chanc e de desenvolver em os poder es,
para desc obrirm os até onde podem ir. E por falar nisso... quando é que o senhor
vai trazê-los para cá?
— Até o fim da tarde de hoje estar ão aqui.
— Então, à noite já ter em os falado com eles...
— Sim. — O cor onel deu mais dois passos rumo à saída, onde o tenente
Horner o esper ava. Par ou pela segunda vez: — Doutor... o senhor vai exam iná-
los... Será que terá condiç ões de des-CQbrir se sof rer am algum tipo de... meta-
morf ose? Se ainda são... hum anos? E se já estiver em... possuídos... e resistir em
ao detetor de mentir as e a nossas drogas, o que far em os?
— Ainda não sabem os — Miles Bennell levantou-se, meteu as mãos nos
bolsos do avental de trabalho e cam inhou um pouc o pela sala. — Estam os traba-
lhando com todas as hipóteses, desde que rec ebem os os relatór ios, no dom ingo.
Ainda não sabem os que poder es são esses. As pesquisas sempre esbarr am em
mistér ios... Mas tem os razões para crer que não há per igo. Cria m os testes médi-
cos e psic ológic os muito elabor ados... e esper am os ver if ic ar, acim a de qualquer
dúvida, se eles... ainda são hum anos! De iníc io, é verdade, todos nos preoc upa-
mos com a possibilidade de contágio e com a possilidade de que eles, rea lm ente,
tenham sido possuídos. Mas já faz mais de um ano que abandonam os essa linha
de pesquisa. Eu e minha equipe não tem os dúvidas de que eles continua m a ser
hum anos... apesar dos poder es que estão desenvolvendo.
— Mas eu ainda não estou convenc ido. Corvaisis e Cronin são os prim eir os
a dar sinais estranhos... Depois, com certeza, apar ec er ão outros. Não se iluda...
Eles são muito mais fortes que nós, e não ter ão dif ic uldade em enganar o senhor
e seus cie ntistas, apesar de seus milhar es de testes.
— O senhor não sabe que testes...
— E há mais um detalhe que o senhor talvez imagine que a segur anç a es-
quec eu de levar em consider aç ão — dec lar ou Leland,
sorr indo com o canto dos lábios. — Não, eu não me esqueç o de nada. Não
esqueç o, por exemplo, que o senhor também pode estar... contam inado.
— Eu?!
— Por que não? O senhor está aqui, trabalhando no segredo. Passa os dias
nesta sala, há mais de dezoito meses, com apenas três rápidos per íodos de fér ia s.
Se Corvaisis e Cronin for am contam inados após algum as hor as de contato, por
que não o senhor, depois de todo esse tempo?
— Mas... — Bennell estava surpreso dem ais para enc ontrar as palavras
certas — ... é muito dif er ente! Estou trabalhando aposte-riori! O que quer que te-
nha acontec ido com Corvaisis e o padre, acontec eu naquela noite. Sou quase um
faxineir o... um suj eito que chega depois da festa e tem que se contentar com os
restos... A coisa, seja o que for, acontec eu no com eç o, nas prim eir as hor as... não
depois.
— E o que isso prova? Como posso ter certeza de que não houve contam i-
naç ão... depois? — Leland continua va a fitá-lo de frente, os olhos frios como aço.
— Tom am os todas as prec auç ões... trabalham os em perf eitas condiç ões de
segur anç a...
— O que são “perf eitas condiç ões de segur anç a” para trabalhar com o
desc onhec ido? O desc onhec ido é exatam ente isto... o que não se conhec e e não
tem passado... nem se pode prever como evoluir á. E impossível tom ar prec au-
ções com relaç ão a algo que não se conhec e.
— Mas... Não! Não pode ser...
— Uma vez contam inado, o senhor poder ia contam inar a mim também. —
O cor onel olhou em volta. — Talvez pense que exager o apenas para assustá-lo,
não é? Pois não acha intrigante que o tenente Horner tenha fic ado aí, dur ante todo
o tempo de nossa conversa sem fazer nada, quando poder ia estar trabalhando
nos detetor es? Ele, que é espec ia lista em interr ogatór ios e equipam entos milita-
res? Sabe por que ordenei ao tenente que não saísse da sala? Porque nao acho se-
gur o perm anec er em ambie nte fec hado sozi-
nho com o senhor... Def initivam ente, não é segur o.
— Está dizendo que... — Bennell arr egalava os olhos, sem acreditar.
— O senhor entendeu perf eitam ente o que estou dizendo. Estou dizendo
que, na hipótese de ter sido contam inado, o senhor saber ia também o que fazer
para me contam inar... O desc onhec ido de que falavam os há pouc o. E se usasse
qualquer um desses poder es mister iosos para... entrar em meu cér ebro, roubar
meu espír ito hum ano e me transf orm ar em outra... coisa}\ Posso não saber usar o
voc abulár io cie ntíf ic o mais rigor oso, mas o senhor entende perf eitam ente o que
quer o dizer.
*— Chegam os a disc utir se ser ia segur o perm anec erm os aqui apenas nós
dois — dec lar ou Horner, aproxim ando-se. — Não tir ei os olhos do senhor, doutor,
e não sei se perc ebeu que também não tir ei a mão do coldre.
Bennell olhava de um para o outro, aturdido.
— Talvez pense que sou um soldado rápido no gatilho — Le-land continuou
—, um fasc ista xenóf obo e teim oso. Mas fui enc arr egado da segur anç a desse
proj eto, o que inc lui manter o segredo sobre o que se passa no depósito e assegu-
rar a tranqüilidade da populaç ão civil. Parte de minha missão consiste em imagi-
nar o pior e agir como se o pior fosse inevitável.
— Deus do céu... — murm ur ou o cie ntista, arr egalando ainda mais os
olhos. — Voc ês são doidos... Estão completam ente louc os! Os dois!
— Rea ç ão previsível — retruc ou Leland — para um hom em que, com
muita probabilidade, já não é plenam ente hum ano. Venha, Horner, não tem os
mais nada a fazer aqui.
Bennell seguiu-o, rápido:
— Esper e! Por favor!
Leland voltou-se.
— Tudo bem, cor onel. — O cie ntista respir ou fundo. — Entendo que seu
trabalho exige consider ar toda possibilidade, mesm o que par eç a absurda. De
qualquer modo, sua idéia é... louc ur a. Não há o mínim o risc o de que eu, ou qual-
quer membro de mi-
nha equipe, tenha sido... tomado por algum a bactér ia ou entidade estranha.
Não é possível! Mas há uma coisa que prec iso saber... E se fosse verdade? Se eu,
ou algum dos hom ens que trabalham com igo tivesse sido contam inado, o senhor
nos matar ia?
— Sem hesitar — Leland respondeu.
— E se... todos os ofic ia is que trabalham no depósito, mesm o os que não
sabem o que fazem os aqui, também estivessem contam inados? Todos, inc lusive o
gener al Alvar ado...?
— Já pensei nisso.
— O que far ia? Matar ia a todos? Do soldado raso ao gener al?
— Sim.
— Jesus!
— E se, por acaso, está pensando em dar o fora, esqueç a — continuou o
cor onel, impassível. — Há dezoito meses, prevendo que essa idéia poder ia lhe
ocorr er, introduzi um novo program a no computador que controla a entrada e a
saída. A menos que digite outro código, que, evidentem ente, só eu conheç o, todas
as saídas estar ão bloquea das em fraç ões de segundo...
— Estam os presos! — Bennell empalidec eu ainda mais, a pele amar elada
brilhando em contraste com a barba esc ur a. — Não falar ia desse código se já
não o houvesse ativado...
— Acertou em cheio! Ao entrar, expus as impressões digitais de minha
mão esquerda... e não as da dir eita, como sempre fiz. Bastou isso para tranc ar as
saídas e entradas. Só o tenente Horner e eu estam os autor izados a transitar livre-
mente para dentro e para fora do depósito. Até que eu entenda que o per igo pas-
sou.
Leland Falkirk gir ou sobre os calc anhar es e saiu da sala, quase plenam ente
feliz. Pela prim eir a vez, em dezoito meses, conseguir a fazer com que Miles Ben-
nell perdesse a calm a.
Se pudesse, ador ar ia contar-lhe seu plano, pelo simples prazer de ver o orgu-
lhoso cie ntista rastej ar de medo e implor ar pie dade. Mas ainda era cedo. O plano
estava pronto e era perf eito, desde que acionado no mom ento corr eto. Quando
chegasse a hora, saber ía o que fazer para matar todos os residentes de Thunder
Hill... na hipótese de se conf irm ar que estavam contam inados. Não so-
brar ia pedra sobre pedra. O depósito fic ar ia reduzido a um monte de esc om-
bros fum egantes... e o segredo perm anec er ia enterr ado para sempre, até a con-
sum aç ão dos tempos. Um plano simples, que exigia um únic o sac rif íc io: ele pró-
prio ter ia que fic ar enterr ado ali, com os restos da maldita praga. Leland não tre-
mer ia... quando chegasse o mom ento.
Tendo dorm ido apenas cinc o hor as e meia, Jorj a levantou-se, tom ou um ba-
nho, vestiu-se e corr eu ao enc ontro de Mar eie. A menina e Jack Twist esper a-
vam-na, sentados à mesa do café. Jorj a par ou no living, a alguns passos da cozi-
nha, e observou-os de longe, sqm que os dois dessem por sua presenç a.
Quando voltar am de Elko, às quatro e quar enta da manhã, dec idir am que
Jack dorm ir ia na sala, para que Mar eie não fic asse sozinha de manhã, quando
Fay e e Ernie saíssem. Jorj a insistir a em levar a filha para o quarto, mas Jack ju-
rar a que tom ar ia conta da menina até ela acordar.
— A gar ota está dorm indo com os Block. Se a tir arm os da cama agor a —
disser a —, ela vai acordar e passar a noite em clar o. Ninguém aqui está em con-
diç ões de desperdiç ar um mom ento de sono, porque amanhã prec isam os estar
em form a.
— Mas ela dorm iu muito cedo — Jorj a argum entar a. — Vai acordar cedo
e acabar á acordando você também...
— Não faz mal. Estou acostum ado a dorm ir pouc o. Você, sim, prec isa de
uma boa noite de sono.
— Você é... um amigo e tanto... — Jorj a sorr ir a. E depois, sér ia, acresc en-
tar a: — Talvez você seja o melhor amigo que já tive.
— Ah... sou um santo!
Jorj a desc obrir a que Jack era um grande suj eito enquanto rodavam por Elko.
Ele era esperto, atento, gentil, e o melhor ouvinte que já enc ontrar a. A uma e
meia da madrugada, Brendan, cansado, enc olher a-se no banc o traseir o do jipe,
para dorm ir. Jorj a, que desde muito tempo quer ia fic ar a sós com Jack, dera gra-
ças a Deus ao ver o padre ressonar baixinho. Agor a sim, Jack Twist era todo seu.
Sem Brendan, sentir a-se à vontade para relaxar e entregar-se ao fasc ínio que
Jack exerc ia sobre ela. Contar a-lhe mais sobre sua
vida do que jam ais havia contado a ninguém, desde o dia em que sua únic a e
melhor amiga mudar a-se da vizinhanç a, vinte anos antes. Em quase sete anos de
casam ento, nunc a se abrir a com Alan tão sinc er am ente como conversar a com
Jack Twist, um hom em que mal conhec ia.
Ali, par ada junto à porta da cozinha, vendo-o falar com Mar eie, desc obria
nele ainda outras qualidades. Era dos pouc os e rar os hom ens capazes de falar
tranqüilam ente com uma cria nç a, sem ser condesc endente, sem par ec er idiota,
sem dar sinais de impac iê nc ia. Jack ria com Mar eie, interr ogava-a sobre suas
músic as pref er idas, seus pratos favor itos, seus desenhos anim ados prediletos, aju-
dava-a a pintar as luas verm elhas. Mar eie par ec ia ainda mais alheia que na vés-
per a, como se, aos pouc os, mergulhasse num transe cada vez mais prof undo.
Não respondia às perguntas e mantinha os olhos fixos em suas luas. Ainda assim,
ele continua va a falar calm o e norm al. Jorj a lembrou-se do que lhe contar a so-
bre a esposa: sim... passar a oito anos ao lado de Jenny, sem jam ais rec eber res-
posta, sem perc eber um sinal qualquer de que ela o ouvisse. Tão cedo, com cer-
teza, Mar eie não o far ia perder a pac iê nc ia.
Jorj a continuou par ada junto à porta, dividida entre o prazer de ver Jack à
vontade, tranqüilo e desc ontraído, e a agonia de notar que Mar eie distanc ia va-se
cada vez mais, mergulhando aos pouc os num mundo só seu, como as cria nç as
autistas dos livros que havia lido.
— Bom-dia! — exc lam ou ele, erguendo o olhar. — Dorm iu bem? Faz mui-
to tempo que está aí?
— Cheguei agor a. — Jorj a aproxim ou-se.
— Vam os... — Jack vir ou-se para a menina. — Diga bom-dia para sua
mãe.
Mar eie não moveu um músc ulo e continou fitando as luas em seu álbum.
Jack sorr ia.
— Afinal... já é quase hora de boa-tarde...
Tentando sorr ir também, Jorj a aproxim ou-se de Mar eie, acar ic iou-lhe os ca-
belos e toc ou-lhe o queixo para fazê-la vir ar-se.
A menina olhou para o rosto da mãe, apenas por um mom ento, como se não
a visse e, baixando os olhos para o álbum, voltou ás prof undezas de um mundo
que só ela conhec ia. Olhos sem brilho, vazios. Jorj a suspir ou, e Mar eie conc en-
trou-se na Lua que pintava pela centésim a vez, com o últim o toco de lápis ver-
melho.
Jack levantou-se e andou até o ref riger ador.
— Está com fome? — perguntou. — Pois eu estou. Mar eie já tom ou seu
leite, mas eu quis esper á-la para tom arm os café juntos. — Exam inou o que havia
para com er. — Que tal ovos com bac on e torr adas? Ou uma omelete de queij o
com cebola e pim então verde...
— Então, além do mais, você sabe cozinhar!
— Não sou nenhum mestre-cuca, mas sempre se pode engolir o que cozi-
nho e ger alm ente é possível identif ic ar o que se vai com er, antes de provar. Espe-
re só para ver. — Abriu a porta do free-zer. — Tem os wa files congelados. Se qui-
ser, aqueç o alguns para acompanhar a omelete.
— Eu como o que você com er — disse Jorj a, sem despregar os olhos do
rostinho de Mar eie. Cada vez que olhava a filha, sentia o estôm ago contrair-se.
Jack foi até a cozinha carr egando uma caixinha de leite, alguns ovos, um pa-
cote de queij o, pim entões, uma pequena cebola, e deixou tudo ao lado da pia.
Jorj a aproxim ou-se, olhando por sobre seu ombro na dir eç ão de Mar eie e falan-
do em voz baixa:
— É verdade que ela tom ou leite?
— Leite, floc os, uma torr ada com geléia e outra com crem e de amen-
doim. Clar o que eu prec isei ajudar, mas ela está alim entada.
Jorj a fec hou os olhos, lutando para não pensar no que Dom lhe contar a sobre
a morte de Zebedia h Lom ack e no suic ídio de Alan. Se os dois, hom ens adultos,
não enc ontrar am forç as para venc er a obsessão doe ntia com a Lua, surgida a
partir do que vir am na noite de 6 de julho do ano retrasado... o que ocorr er ia com
Mar eie, uma menina?! Se acabar am morr endo, o que acontec er ia a sua filha?!
— Não, não... — Jack vir ou-se para ela e abraç ou-a. — Não chor e.
Mar eie vai fic ar boa. Eu gar anto. Hoje cedo, todos acordar am tran-qüilos e
ninguém teve pesadelos; Dom não andou pela casa, Er-nie quase não sentiu
medo do esc ur o... Sabe por quê? Porque o fato de estarm os juntos, alia dos, como
uma verdadeir a fam ília, aliviou as tensões. Os bloqueios com eç am a ceder...
Sim, sim... E clar o que Mar eie par ec e ainda mais alheia... por ém isso não signif i-
ca que estej a pior. Fique tranqüila... Mar eie vai fic ar boa. Eu sei.
Jorj a nao esper ava o abraç o, mas agradec eu a Deus! Deixou-se abraç ar, e,
para surpresa sua, sentiu-se renasc er entre os braç os fortes de Jack. Eram quase
da mesm a altur a; por um instante, por ém, abraç ada a ele, Jorj a sentiu-se peque-
na e frágil, guardada e protegida como algo muito prec ioso. Lembrou-se do que
pensar a dur ante a via gem até Elko: ninguém nasc e para ser só, para lutar sozinho;
a essênc ia da espéc ie é a nec essidade de dar e rec eber afeto. Ali, naquele mo-
mento, aproxim avam-se duas forç as complem entar es: ela, que tanto prec isava
ser conf ortada, e Jack, que tanto quer ia enc ontrar alguém a quem conf ortar. Da
uniã o dos dois brotava a cor agem de que ambos prec isavam para continua r a
luta.
— Omelete de queij o, com pouc a cebola e pedac inhos de pim então verde
— Jack murm ur ou-lhe ao ouvido, sentindo que ela se rec ompunha — ... Isso é
tudo de que prec isam os, por ora. Você não acha?
— Mar avilha das mar avilhas.
— Minhas omeletes têm um segredo. Sempre uso pedac inhos de casc a de
ovo no temper o.
— Mas é esse o segredo mesm o! Os melhor es restaur antes do mundo pre-
par am omeletes com pedac inhos de casc a, para melhor ar a textur a.
— E mesm o? E bolinhos de bac alhau com pedac inhos de espinha?
— O que diz de stroganoff com lasquinhas de osso?
— E mousse de choc olate com palitos?
— E pregos na torta de maçã?
— E uma solteir ona em cada form a de bolo?
— Detesto bolos.
— Eu também. — Jack riu. — Chega?
— Chega. Vou derr eter o queij o.
Na mesa, Mar eie color ia luas e mais luas. E a cada uma reinic ia va o canto
monótono, monoc órdic o, repetindo sempre a mesm a palavra.
Em Monter ey, Calif órnia, Parker Faine esc apava por pouc o da rede de uma
gigantesc a aranha de cerc a. Deu-se por muito feliz, quando viu que ainda estava
vivo, livre dos terr íveis tentác ulos do monstro. Uma autêntic a aranha de cerc a:
uma mulher cham ada Essie Craw, vizinha dos Scalc oe. As aranhas de cerc a
constróem na gram a ninhos tubular es, subterrâneos, quase invisíveis, cam uf lados
por uma pequena tampa cuidadosam ente tram ada com os longos fios de baba
que produzem. Quando algum inseto desc uidado tropeç a na arm adilha, cai no bu-
rac o do ninho e acaba tragado pela besta peluda que o esper a lá embaixo.
O ninho tubular de Essie Craw era uma linda casa em estilo espanhol, muito
mais bonita e bem integrada ao cenár io que a mansão colonia l dos Scalc oe, com
sac adas de ferr o fundido e flor es color idas brotando de vasos de argila. Bastou
olhar a casa para Faine adivinhar que estava à porta de gente inter essante, boni-
ta e, com um pouc o de sorte, também inteligente. Mas, quando Essie Craw apa-
rec eu, ele logo viu que se enganar a. Quando a aranha de cerc a desc obriu que ele
quer ia saber da vida dos Scalc oe, pratic am ente o arr astou para dentro, fazendo
cair a tampinha do ninho tubular a suas costas. Porque gente que quer saber da
vida alheia deve estar disposta a falar da vida alheia... e Essie Craw era vic ia da
em mexer ic os.
A julgar pela cara, contudo, Essie não era aranha, mas pássar o. Não um uru-
bu magro, de pesc oç o pelado... antes, uma gaivota gorda e bem cevada, que
olhava as pessoa s de lado com olhinhos redondos e arr egalados.
Depois de conduzi-lo até a sala, ofer ec eu-lhe café. Parker agradec eu. Ela in-
sistiu. Ele disse que não quer ia dar trabalho. Ela trouxe o café e ainda foi busc ar
um prato de bolinhos amanteigados, muito
anim ada e falante. Parker desc obriu que passava dias esper ando que alguém
caísse em sua teia.
Essie desapontou-se quando ele lhe disse que não sabia coisa algum a sobre os
Scalc oe e, portanto, não tinha novidades para contar. Mas como não era nem
mesm o amigo da fam ília, ofer ec eu-se para ouvir o que ela quisesse dizer, fos-
sem mentir as, calúnia s e com entár ios mor alistas. E não prec isou perguntar muito
para desc obrir o que quer ia saber.
Donna Scalc oe, esposa de Ger ald, era — nas palavras de Essie — um poço
de fingim ento: loir a oxigenada, sorr idente dem ais para ser honesta e falsa como
uma cobra. Tão magra que talvez fosse talc oólatra... ou anor éxic a. Ger ald era
seu segundo mar ido; embor a já estivessem casados por dezoitos anos, Essie acre-
ditava que a uniã o não ser ia dur adour a. Em sua versão, o comportam ento das
duas filhas do casal, gêm ea s de dezesseis anos, era tão desr egrado, lic enc ioso e
pec am inoso que bandos de rapazes rondavam a mansão, como cães à proc ur a de
cadelas no cio.
Ger ald Scalc oe era proprie tár io de três prósper as loj as de anti-güidades em
Carm el, mas Essie não sabia explic ar como as loj as davam tanto luc ro, sendo ele
um beberr ão libertino e ignor ante, sem o menor tino com erc ia l.
Parker mal roç ou os lábios pela xíc ar a de café e não toc ou nos bolinhos. Es-
sie Craw era tão venenosa que ultrapassava os lim ites da simples maledic ênc ia e
raia va a desum anidade, o que o fazia sentir-se muito mal sob seu teto, com von-
tade de levantar-se, sair e esquec er os Scalc oe para sempre.
De qualquer modo, conseguiu algum as inf orm aç ões importantes. Os Scalc oe
havia m partido de repente, sem maior es explic aç ões, e via j ar am para Napa e
Sonom a, na regiã o dos vinhos. Estavam tão ansiosos pelo desc anso que se esque-
cer am de deixar ender eç o. Nem os sóc ios de Ger ald sabia m onde enc ontrá-lo, o
que levava Essie a supor que os sóc ios eram ladrões e que Ger ald quer ia livrar-se
dos negóc ios.
— Ele me telef onou no dom ingo; disse que iam via j ar e voltar ia m no dia vin-
te — Essie contou. — Pediu-me para dar uma olhada na casa. É muito desagra-
dável ter vizinhos que nos impõem tar ef as desse tipo... como se eu não tivesse
mais nada a fazer senão cuidar da casa dos outros.
— Chegou a falar pessoa lm ente com algum deles?
— Não... Acho que estavam com muita pressa de via j ar.
— Você os viu partir?
— Não... E bem que tentei. Devem ter saído quando eu estava ocupada.
— As gêm ea s via j ar am com eles? Não estão na esc ola?
— Estão... mas é uma dessas esc olas modernas. Modernas dem ais para
meu gosto, aliá s as prof essor as dizem que via j ar é tão importante quanto assistir
às aulas. Já ouviu estupidez maior?
— E Ger ald Scalc oe... quando falou com você ao telef one... par ec ia estra-
nho?
— Estranho? Não. Par ec ia nervoso... como sempre. Devia estar bêbado.
Falava aos tranc os, enr olava a língua... Clar o! Talvez Donna o tenha levado para
interná-lo numa clínic a de desintoxic aç ão! Deve ser isso.
Era dem ais. Parker levantou-se para sair, e Essie plantou-se dia nte da porta,
falando sem par ar. Se não havia gostado do café... talvez chá? Ou croissant de no-
zes? A vontade férr ea e o desej o in-quebrantável que fizer am de Parker Faine um
dos grandes pintor es contemporâneos for am mais fortes, e ele conseguiu esc a-
par, prim eir o até a var anda e logo, corr endo, até a calç ada. Essie seguiu-o até o
carr o verde-vôm ito, que, consider adas as circ unstânc ia s, par ec ia lindo como
uma lim usine, porque perm itia-lhe fugir da rede visguenta daquela mulher. Pi-
sando no aceler ador, Parker esc apou como Coler idge, o grande poe ta inglês:
“Como o homem que, numa estrada deserta, foge com medo e horror e, tendo
uma vez espiado para trás, volta a cabeç a e segue em frente.
Porque sabe que um demônio o persegue, de perto, correndo pela estrada.”
Dir igiu a esmo pela cidade, por mais de uma hora, reunindo
cor agem para fazer o que sabia ser nec essár io. Por fim, voltou à casa dos
Scalc oe, estac ionou junto à alam eda, aproxim ou-se da porta e toc ou a campai-
nha sem par ar, dur ante três minutos. Se houvesse alguém em casa, ainda que não
estivesse disposto a rec eber visitas, acabar ia atendendo à porta, para se livrar do
torm ento da sir ene soprando nos ouvidos. Mas ninguém apar ec eu.
Parker andou pela var anda e espiou pelas janelas da frente, como se fosse
um conhec ido da fam ília, embor a, na verdade, tom asse cuidado para que Essie
Craw não o visse. Na mansão, as cortinas estavam corr idas e não se via sinal de
vida. Parker desc eu pelos fundos da var anda e contornou a casa, mergulhando
nas área s de sombra. Exper im entou o trinc o de algum as janelas — todas bem fe-
chadas. Nos fundos havia canteir os de flor es, um grande pátio de laj otas, um bar
e alguns car os móveis de jardim. Parker aproxim ou-se da porta da cozinha, en-
costou o ombro no vidro e quebrou-o; então, meteu a mão pelo bur ac o, abriu o
trinc o, afastou as cortinas e entrou. Par ou, atento. Nada. A casa continua va mer-
gulhada em silênc io. A cozinha ligava-se à copa ilum inada pela clar idade que vi-
nha do pátio. Parker passou pela lar eir a e pela mesa de bilhar e par ou, petrif ic a-
do, ao ver o alarm e na par ede. Conhec ia o apar elho desde os tempos em que
construír a a casa de Laguna Bea c h e fora obrigado a inf orm ar-se sobre equipa-
mentos de segur anç a. Fez menç ão de gir ar sobre os calc anhar es e fugir, quan-
do se lembrou da pequena lâmpada verm elha que dever ia fic ar acesa se o apa-
relho estivesse ligado. A lâmpada estava apagada: não havia o que tem er. Os
Scalc oe esquec er am-se de ligar o alarm e quando saír am de fér ia s.
A copa era agradável, bem equipada e moderna. Parker atravessou-a e che-
gou à sala de jantar, que estava às esc ur as. Depois de avalia r os risc os, dec idiu
acender as luzes para continua r suas investigaç ões de espiã o amador. Par ou outra
vez, no living, à proc ur a de sinais de vida. Nada. O silênc io o envolvia, prof undo e
pesado como silênc io de cem itér io.
Quando Brendan Cronin chegou à cozinha dos Block, depois de acordar tarde
e tom ar um longo banho de chuveir o, enc on-
trou Mar eie ocupada em color ir luas e murm ur ando indif er ente a tudo e a to-
dos. Chegou a pensar em usar seus poder es para tentar ajudá-la, mas logo afas-
tou a idéia. Enquanto não tivesse certeza de controlar o que fazia com as mãos,
ser ia muito arr isc ado tentar outra cura.
Jack e Jorj a acabavam de com er a omelete com torr adas e rec eber am-no
com car inho. Jorj a ofer ec eu-se para prepar ar-lhe um prato, mas Brendan agra-
dec eu: quer ia apenas café, forte e quente.
Viu as quatro pistolas sobre a mesa, ao lado de Jack. Duas pertenc ia m a Er-
nie. As outras, o próprio Jack trouxer a de Nova York. Ninguém menc ionava as
arm as, pois sabia m que o inim igo estava à esc uta e não era convenie nte revelar o
arsenal de que dispunham. Mas as arm as deixavam Brendan nervoso. Ele pres-
sentia que ser ia m usadas, vár ia s vezes, ainda antes do fim daquele dia.
Já não era o hom em otim ista da chegada, talvez porque, pela prim eir a vez
em sem anas, naquela noite não sonhar a. Dorm ir a sem sonhar... o que apenas o
frustrava. Ao contrár io dos outros, noite após noite tinha sonhos deslumbrantes
que o enc hia m de esper anç as. Sem sonhos, as noites par ec ia m vazia s... e isso o
deixava tenso e preoc upado.
— Acho que vai nevar — com entou sentando-se para tom ar o café.
— E sem dem or a — Jack conc ordou.
O céu par ec ia de pedra, duro e cinzento como granito.
Revezando-se com o prim eir o grupo, Ned e Sandy Sarver for am para Elko,
na vésper a, enc ontrar Jack, Jorj a e Brendan. Das quatro da manhã às sete e
meia, andar am pela cidade cumprindo seu turno e quando voltar am ao motel to-
dos já havia m saído para as tar ef as da manhã. As oito hor as tom ar am um rápido
desj e-jum e for am dorm ir, prepar ando-se para a longa noite que os esper ava.
Ned acordou pouc o depois das duas da tarde, mas não se le-
vantou. Deixou-se fic ar na cama, no quarto em penumbra, vendo Sandy dor-
mir. Amava-a mais que nunc a, com um amor forte e prof undo, que fluía como
rio caudaloso, levando-os para uma vida melhor, além das dor es e das preoc upa-
ções do mundo.
Ned dar ia qualquer coisa para saber falar com a mesm a habilidade com que
consertava obj etos quebrados. As vezes, ocorr ia-lhe a idéia de que nunc a disser a
a Sandy o quanto a amava. Cada vez que tentava, acabava enr olando-se nas fra-
ses, longas dem ais, complic adas dem ais, cheia s de imagens pesadas e idiotas.
Nasc er a mesm o para consertar o que se quebrava, asas, pessoa s... Mas de bom
grado troc ar ia tal habilidade pelo dom da palavra, pela frase perf eita, que ex-
pressasse os sentim entos mais prof undos.
• Olhando para a mulher, perc ebeu que ela também estava desperta.
— Já acordou? — perguntou.
Sandy sorr iu e entrea briu os olhos.
— Fiquei com medo de você. Estava me olhando como se quisesse me co-
mer viva...
— Você está uma delíc ia para ser com ida viva. Lá isso é verdade...
Ela afastou as cobertas e, nua, abriu os braç os para o mar ido.
Os dois mergulhar am então no ritm o conhec ido do amor, em que se torna-
ram mestres depois do desabroc har de Sandy.
Mais tarde, quando desc ansavam lado a lado na cama, de mãos dadas, ela
sorr iu para Ned e dec lar ou:
— Acho que sou a mulher mais feliz do mundo. Você me fez feliz assim
que o vi, no Arizona, há tanto tempo. Desde que com eç ou a cuidar de mim, que
me levou para seu ninho, você sempre me fez feliz. Sinto-me tão feliz, agor a,
que, se Deus me fulm inasse com um raio, neste exato instante, eu não ter ia do
que rec lam ar.
— Não fale assim — pediu Ned. Ergueu-se sobre um cotovelo, vir ou-se
para ela e olhou-a de frente. — Não quer o que fale assim. Não é bom... Pode dar
azar. Estam os metidos numa enr asc ada dos dia bos... e é bem possível que um de
nós morr a. E melhor não desaf ia r o destino. Não quer o que fale em morr er.
— Você nunc a foi superstic ioso...
— Eu sei, mas agor a é dif er ente. Não quer o que você diga que está tão fe-
liz que poder ia morr er sem rec lam ar. Ouviu bem? Não quer o nem que pense nis-
so.
Abraç ou-a, puxando-a para cima de seu corpo, e estreitou-a com forç a, até
sentir o cor aç ão da mulher bater de enc ontro ao seu. De repente, já não ouvia m
as panc adas dos dois cor aç ões pulsando ao mesm o ritm o, mas de um únic o,
imenso, cheio de amor.
Na casa dos Scalc oe, em Monter ey, Parker continua va a proc ur ar respostas
para as perguntas de Dom. Em prim eir o lugar, era prec iso achar algum a prova
de que a fam ília estava mesm o em Napa e Sonom a: um catálogo de hotel, um
núm er o de telef one para onde ligar e perguntar se havia m chegado em segur an-
ça. Ou algum indíc io de que costum avam via j ar para a regiã o dos vinhos... uma
agenda de telef ones, por exemplo. Ou, se fosse impossível provar que simples-
mente saír am de fér ia s, algum sinal de que for am tir ados de casa à forç a: man-
chas de sangue, mobília revir ada, roupas atir adas pelo chão.
Dom pedir a-lhe apenas que fosse a Monter ey e entrasse em contato com a
fam ília; fic ar ia boquia berto se soubesse que ele arr ombar a uma porta e, naquele
mom ento, empenhava-se em plena e crim inosa invasão de dom ic ílio. Mas
Parker Faine não era hom em de fazer as coisas pela metade, e delic ia va-se com
a aventur a, apesar do cor aç ão que batia aceler ado e da garganta seca.
Depois do living, vinha a bibliotec a e, pouc o adia nte, uma sala de músic a,
com pia no, estantes de partitur as, cadeir as, dois estoj os de clar inetas e uma barr a
para exerc íc ios de balé. As gêm ea s “devassas”, com certeza, eram adeptas da
músic a e da danç a clássic a.
Não havia mais o que proc ur ar na parte soc ia l da casa, e Parker, devagar, di-
rigiu-se para os quartos. A luz do piso inf er ior subia pelos degraus carpetados, fa-
zia brilhar o corr im ão de carvalho polido e chegava até o hall do andar super ior.
Depois, esc ur idão. Ele par ou no hall, as mãos úmidas de suor. Nada. Silênc io. Di-
fíc il entender porque pressentia que havia mais alguém em
casa. Talvez fosse instinto. Talvez devesse conc entrar-se e ouvir o que lhe di-
zia m seus sentidos mais prim itivos. Mas... se houvesse rea lm ente alguém esc on-
dido ali, esper ando para atac á-lo, por que o deixar ia subir? Por que não o atac ar a
no living, por exemplo, ou na cozinha?
Continuou pelo corr edor, até que ouviu algum a coisa. Um zumbido, uma
combinaç ão estranha de bip e blip, um som que vinha dos dois quartos no fim do
hall. Prim eir o, Parker pensou que fosse o alarm e contra ladrões. Mas de que ser-
vir ia um alarm e que mal se podia ouvir? O ruído era contínuo, ritm ado: bip-blip...
Estendeu a mão para o interr uptor, acendeu a luz e esper ou. O ruído continu-
ava, vagam ente conhec ido, por ém impossível de identif ic ar.
A velha cur iosidade, já crônic a, e sempre suj eita a crises agudas, empurr ou-
o para a frente. Sem ela Parker não ter ia conseguido ganhar a vida como artista.
Cur iosidade é a alma da cria tividade. Assim, cur ioso como uma cria nç a, seguiu
adia nte, acompanhando o bip-blip. Ao fim do corr edor, já ouvia dois ruídos dif e-
rentes, cada um com seu ritm o próprio e ambos vindo de um dos quartos esc ur os,
cuja porta estava entrea berta.
Parker respir ou fundo, empurr ou a porta e entrou no quarto. Não via nada, e
ninguém o atac ou. O ruído continua va, plenam ente audível, muito próxim o. En-
tão, ele perc ebeu, na esc ur idão completa, uma luzinha verde, muito frac a, def i-
nindo-se à medida que seus olhos se habitua vam à esc ur idão. Acendeu a luz e...
viu as gêm ea s.
Foi a prim eir a imagem que se form ou em suas retinas. Par ec ia m mortas,
deitadas uma ao lado da outra numa cama de casal, o lenç ol puxado até o pesc o-
ço, os olhos abertos. Parker perc ebeu que o bip-blip vinha dos apar elhos de ele-
troe nc ef alogram a e ele-troc ardiogram a, cuj os fios ligavam-se à cabeç a das me-
ninas. Viu as agulhas espetadas em seus braç os. E entendeu que elas não estavam
mortas, mas drogadas, em pleno proc esso de lavagem cer ebral. Aquele talvez
fosse um quarto de hóspedes, elegante e im-
pessoa l. As gêm ea s for am coloc adas ali, na cama grande, porque o arr anj o
tornava mais simples o trabalho médic o.
Mas onde estar ia m... eles? Onde estar ia m os seqüestrador es, os tortur ador es,
os carr asc os? Conf ia r ia m em seus métodos a ponto de deixar a fam ília fec hada
em casa sem guardas e sem assistênc ia?
Parker aproxim ou-se da cama e passou a mão dia nte dos olhos de uma das
gêm ea s. Ela nem pisc ou. Tinha fones nos ouvidos, e, ao lado de sua cabeç a, uma
fita rodava devagar num gravador. Faine debruç ou-se e aproxim ou o ouvido do
fone. Uma voz de mulher falava sua ve, manso: “Na segunda-feir a dorm i até tar-
de. O hotel é ótim o para dorm ir até tarde porque é silenc ioso, as ar-rum adeir as
entram e saem sem fazer bar ulho. E como um clube de campo. Nem par ec e ho-
tel, daqueles que as arr um adeir as batem portas desde a madrugada. A regiã o dos
vinhos é inc rível... Eu ador ar ia viver lá! Quando acordam os, Chr issie e eu fom os
dar um passeio pelo campo, para conhec er algum gatinho... mas não enc ontra-
mos ninguém”.
Um som hipnótic o, que o assustou.
Com certeza os bloqueios de mem ór ia dos Scalc oe com eç avam a ceder. Al-
guém da fam ília, talvez todos, lembrava-se do que vira no Motel Tranqüilidade,
em julho do ano retrasado. Tornou-se nec essár io induzi-los a esquec er tudo outra
vez. Para cobrir o per íodo de tempo da segunda lavagem cer ebral, estavam re-
cebendo outro conj unto de lembranç as falsas, a histór ia que a voz de robô repe-
tia, sem par ar, nos fones de ouvido.
Dom falar a sobre o assunto pelo telef one, no sábado e no dom ingo à noite,
mas Parker ainda não sentir a de perto o horr or e a monstruosidade da conspir a-
ção em que se envolvia. A horr ível voz do gravador revelou-lhe a verdade.
Rodeou a cama e aproxim ou-se da outra gar ota, imóvel, às vezes com os
olhos par ados, às vezes pisc ando muito, como em convulsão. Pensou em rem o-
ver as agulhas, desligar os apar elhos e carr egar as meninas para fora. Não. Era
melhor achar um telef one e cham ar a políc ia para cuidar delas.
Não saber ia dizer por quanto tempo era observado, mas, de re-
pente, sensaç ão fulm inante como um raio, perc ebeu que não estava sozinho
com as gêm ea s. Saltou para a porta antes de pensar, mas não conseguiu fugir. À
saída, esper avam-no dois hom ens de calç a esc ur a, cam isa branc a com mangas
arr egaç adas até o cotovelo e gravata frouxa no colar inho duro. Um terc eir o, de
óculos, terno e gravata no lugar, aguardava no hall.
Agentes feder ais. Quem mais ser ia idiota o bastante para estar na Calif órnia,
fec hado em casa, de terno e gravata, matando duas meninas de dezesseis anos?
— Mas... que dia bos está fazendo aqui?! — perguntou um deles.
Parker não perdeu tempo em explic ar que era pintor, ou em tentar esm urr á-
los como “moc inho” de cinem a, ou em exigir que respeitassem seus dir eitos de ir
e vir gar antidos a todo cidadão cumpridor da lei. Fic ou de bico fec hado e corr eu
para a janela de vidro, oculta atrás das cortinas. Só teve tempo de pensar que a
janela não era muito resistente, que o vidro quebrar ia sob seu peso, que as corti-
nas e a jaqueta de inverno o proteger ia m dos cac os e que ele tinha chanc es de
chegar lá embaixo antes que os feder ais perc ebessem. Se as cortinas fossem
maior es que a janela, ou se não houvesse janela atrás delas, estar ia perdido.
Sem pestanej ar corr eu para o cortinado como uma loc om otiva sem freio.
Ouviu os vidros quebrar em-se, sentiu o impacto das venezia nas de madeir a e de
repente perc ebeu que conseguir a esc apar. Estava na var anda, à luz da manhã.
Dali para o chão, era um pulo. E ele saltou por sobre a balaustrada, pedindo a
Deus que o livrasse da sorte inglór ia de enganc har-se numa árvor e e ser capado
por algum galho seco. Não foi. Caiu ao chão inteir o; arr anhado, assustado, mas
inteir o.
Dispar ou a corr er. Viu folhas voa ndo sobre a cabeç a, viu uma lasc a de árvo-
re arr anc ada, a centím etros de seu ombro, e deu-se conta de que atir avam nele.
Então não par ou de corr er. Via os tir os, mas não ouvia os estampidos. Arm as com
silenc ia dor. Continuou corr endo, chegou até a cerc a nos lim ites do gram ado,
caiu numa touc eir a de azálea s, levantou-se, seguiu adia nte, saltou outra cerc a e
não par ou mais.
Os hom ens tinham mesm o que tentar matá-lo, para evitar que ele abrisse a
boca. Naquele mom ento, com certeza, estavam rem ovendo as meninas... ou ma-
tando-as.
E se achasse um telef one, cham asse a políc ia? O que acontec er ia? De que
lado fic ar ia a políc ia, se os assassinos fossem agentes feder ais? Em quem acredi-
tar ia m? Num grande pintor fantasia do de artista exc êntric o, de cabelo comprido
e barba por fazer, ou nos hom ens do FBI com seus ternos e gravatas e arm as
com silenc ia dor, posando de salvador es da hum anidade?... def endendo os cida-
dãos honestos de assaltos de gente como Parker Faine?
Continuou corr endo. Deixou para trás o calhambeque, esc orr egou por um
gram ado, equilibrou-se no topo estreito de um muro de pedra, andou no meio dos
pinheir os, atravessou o quintal de uma casa e saiu por outro, na rua de trás. Obri-
gou-se a andar por rüas onde havia gente, porque não quer ia cham ar a atenç ão.
Sabia perf eitam ente o que tinha a fazer, agor a que com eç ava a desc obrir a
extensão do calvár io de Dom. Clar o que o amigo estava metido numa conspir a-
ção de proporç ões gigantesc as, clar o que sabia que corr ia per igo... mas uma coi-
sa é saber com a cabeç a, e outra, bem dif er ente, é saber com as tripas. Tinha de
ir para Elko. Dom era seu melhor amigo e prec isava de ajuda. O que mais pode-
ria fazer num mom ento como aquele? Ajudá-lo, só isso...
Clar o que podia fingir para si mesm o que nada acontec er a. Podia voltar para
casa, tranqüilam ente, e continua r a pintar... Se fizesse isso, por ém, jam ais voltar ia
a beber com a consc iê nc ia tranqüila, nem ser ia capaz de gostar de si próprio.
Tragédia s intoler áveis para um beberr ão egoc êntric o, apaixonado pelo próprio
perf il...
Devia ir até o aer oporto de Monter ey e tom ar um aviã o para San Franc isc o.
De lá, dar ia um jeito de chegar a Nevada. Os feder ais não pensar ia m em fec har
o aer oporto, porque não sabia m que ele era um for asteir o. A chave do carr o tinha
uma etiqueta da loc ador a do aer oporto, mas estava bem guardada no fundo
do bolso da jaqueta. Em uma hora ou duas, evidentem ente, acaba-
riam desc obrindo que o carr o fora alugado no aer oporto... e talvez desc obris-
sem quem era ele. Mas até lá Parker já estar ia voa ndo para San Franc isc o.
Continuou andando. Numa rua tranqüila, já distante da casa dos Scalc oe, en-
controu um rapaz, de dezenove ou vinte anos, esc ovando capric hadam ente as
bandas branc as de um velho autom óvel da déc ada de 50, restaur ado e rec ém-re-
pintado de amar e-lo-brilhante.
— Esc ute aqui, amigo — disse Parker, aproxim ando-se do rapaz —, meu
carr o quebrou ali na outra rua, e eu tenho que tom ar um aviã o dentro de meia
hora. Estou morr endo de pressa. Será que você me levar ia ao aer oporto por...
cinqüenta dólar es?
O rapaz conc ordou e, no perc urso, revelou-se exím io motor ista. Não fosse
assim, ter ia m ambos morr ido em qualquer uma das dezenas de curvas que ele
fez, rangendo os pneus e jogando o ponteir o do veloc ím etro na marc a da veloc i-
dade máxim a.
No aer oporto, Parker desc obriu que o próxim o voo para San Franc isc o dec o-
lava em dez minutos. Foi o tempo de comprar a passagem e corr er para o em-
barque, certo de enc ontrar o aviã o já tom ado pelos feder ais, mas não viu ne-
nhum deles na esc ada do apar elho, lá dentro ou na cabine do com andante. Meia
hora depois, sobrevoa ndo a Calif órnia, com eç ou a preoc upar-se com o segundo
problem a que tinha pela frente: como conseguir um voo de San Franc isc o a
Reno, antes que os hom ens desc obrissem sua trilha.
Das janelas do apartam ento dos Block, Jack Twist exam inava a paisagem,
proc ur ando postos de observaç ão da DERO. Havia pelo menos um naquela área,
tinha que haver, e, por mais esc ondido ou invisível que fosse, Jack prec isava loc a-
lizá-lo com prec isão.
Prevendo uma situa ç ão como aquela, levar a consigo outra de suas engenho-
cas: um instrum ento conhec ido pelo serviç o sec reto do Exérc ito como term ode-
tetor. Sem elhante a uma dessas arm as lanç a-raios, que apar ec em em film es de
ficç ão cie ntíf ic a, possuía no lugar do cano um conj unto de lentes sensíveis ao ca-
lor. Bastava segur ar o apar elho sobre a palm a da mão, apontá-lo para a área
a ser observada e espia r pelo visor, como se fosse um telesc ópio. Orie ntando-o
para uma paisagem, por exemplo, o observador ter ia a imagem amplia da do ter-
reno e, sobreposta a ela, a representaç ão crom átic a de todas as fontes emissor as
de calor existentes em seu campo visua l. Plantas, anim ais e roc has aquec idas
pelo sol rec ebem e emitem calor, mas a tecnologia avanç ada do apar elho conse-
guia selec ionar as fontes, detetando apenas as que pesavam mais de trinta quilos
— entre as quais se inc luía m ser es hum anos. Assim, mesm o que os hom ens de
Leland estivessem com traj es de plástic o, que retêm grande parte do calor
do corpo, o apar elho acusar ia sua presenç a num raio de muitos quilôm etros.
Jack vasc ulhou a área dos fundos do motel, ao norte, até ter certeza de que
não havia ninguém por ali. Na dir eç ão oeste também não enc ontrou vestígio de
presenç a hum ana. Então, postou-se à janela do lado sul.
Mar eie acabar a de color ir a últim a Lua do álbum e aproxim ar a-se, calada,
vendo-o trabalhar. Talvez gostasse dele, pois Jack sempre lhe dava muita atenç ão,
mesm o que ela sequer o olhasse. Talvez estivesse com medo e se sentisse mais
segur a sabendo-o por perto, ou qualquer outra razão mais dif íc il de identif ic ar.
Jack sabia que por ora não havia o que fazer por ela, além de continua r falando
com calm a, em voz baixa, e deixar que a menina o seguisse a toda parte.
Jorj a também o acompanhava e, embor a não lhe fizesse perguntas, nem in-
terf er isse em seu campo de visão, perturbava-o muito. Era uma mulher muito
bonita, por ém isso não era o mais importante. Para Jack Twist, o importante é que
gostava dela. Perc ebia que Jorj a sentia-se bem a seu lado, mas não sabia se a
atraía como hom em. Pensando bem, o que haver ia de atrae nte num crim inoso
conf esso, de cara amassada e, ainda por cima, vesgo? De qualquer modo, pode-
ria m ser amigos, o que era melhor que nada.
Finalm ente, espia ndo da janela da sala, Jack enc ontrou o que proc ur ava: on-
das de calor emitidas por ser es hum anos. Duas marc as color idas, muito nítidas no
visor, esc ondidas nas colinas, a quatroc entos metros do motel. Os dados num ér i-
cos indic avam as dim ensões aproxim adas da fonte: tratava-se, sem dúvida, de
dois hom ens. Agor a bastava-lhe exam inar a área com um bom binóc ulo e muita
pac iê nc ia pois, com certeza, os hom ens usavam traj es de cam uf lagem.
— Bingo! — Jack exc lam ou de repente.
Jorj a não disse palavra, porque, como todos, aprender a bem a liç ão da vés-
per a: tudo que dizia m podia estar sendo ouvido de longe.
Ajustando as lentes, Jack continuou a observar. Os hom ens estavam em pé
sobre a neve, e um deles carr egava um possante binóc ulo pendur ado ao pesc oç o.
Jack dir igiu-se para a janela que se abria do lado leste, retom ou o term odetetor e
vasc ulhou toda a área a sua frente: nada. Os hom ens de Leland conc entravam-
se no sul, dia nte da fac hada princ ipal do motel — e da únic a via de entrada e saí-
da.
Falkirk subestim ar a Jack Twist. Conhec ia sua histór ia e sabia que era um su-
jeito esperto, mas ainda não conseguia avalia r o grau de sua esperteza.
Á uma e quar enta, a neve com eç ou a cair em floc os leves e mac ios. Vinte
minutos depois, quando Ernie e Dom voltar am da missão de rec onhec im ento da
área externa de Thunder Hill, Jack cham ou Ernie:
— Daqui a pouc o, quando com eç ar a nevar de verdade, vai apar ec er gente
quer endo se hospedar aqui, pois mesm o sem os lum inosos acesos, há de ver os
carr os no estac ionam ento. Não será fác il explic ar que o motel está aberto para
uns e fec hado para outros. Por isso, levem todos os carr os para os fundos. Não
quer o gente rondando aqui.
Era um truque. Sabendo que os hom ens de Leland o ouvia m, inventar a aque-
la histór ia para justif ic ar os carr os estac ionados nos fundos, fora do alc anc e dos
vigia s. Mais tarde, quando esc ur ec esse, todos eles partir ia m do Motel Tranqüili-
dade, e Jack não quer ia que ninguém seguisse o cam inhão e o jipe lotados.
Ernie pisc ou o olho, fez um sinal de positivo com o polegar e cham ou Dom:
— Venha. Vam os tratar disso agor a, para não ter que sair debaixo da neve,
mais tarde.
Na cozinha, Ned e Sandy ultim avam o prepar o dos sanduíc hes que levar ia m
na via gem. Depois, era só esper ar que Fay e e Gin-ger voltassem.
A nevasc a aum entava de tempos em tempos, transf orm ando o dia em noite.
As duas e quar enta, o vento cessou e a neve passou a cair como um véu branc o,
reduzindo a visibilidade a pouc o mais de dez metros. Nas colinas, os hom ens da
DERO rec olher am o equipam ento de vigilânc ia e tratar am de proc ur ar outro
posto de observaç ão, mais próxim o do motel.
Jack não tir ava os olhos do relógio. Sentia que o tempo se esgotava, mas não
sabia quantas hor as ainda lhes restavam.
Enquanto o tenente Horner consertava o detetor de mentir as, Falkirk esbrave-
java com o maj or Fugata, chef e da segur anç a de Thunder Hill, e seu assistente, o
tenente Helms, afirm ando que ambos enc abeç avam a lista de possíveis traidor es.
Fez dois inim igos de morte, o que absolutam ente não o preoc upava. Não prec isa-
va que os subalternos o amassem: quer ia só que sentissem medo.
Ainda não term inar a o disc urso quando chegou o gener al Al-var ado, um ho-
mem gordo e barr igudo, com dedos grossos como salsic has e vasta papada. O
gener al entrou aos berr os, sem pedir lic enç a:
— E verdade o que o doutor Bennell acaba de me com unic ar, Falkirk? Não
pode ser! Você não se atrever ia a reprogram ar a segur anç a... e nos deixar pre-
sos aqui!
Os olhos fuzilando, mas a voz controlada e respeitosa, Leland lembrou-lhe
que era responsável pela segur anç a do proj eto e, portanto, tinha autor idade suf i-
cie nte para introduzir, quando bem entendesse, o código sec reto nos computado-
res que vigia vam entradas e saídas.
— E quem lhe disse isso? — Al var ado perguntou.
— O gener al Maxwell D. Riddenhour, chef e do Estado-Maior do Exérc ito
dos Estados Unidos, senhor.
— Não acredito. — Não era possível. Não podia ser. O Estado-Maior ja-
mais o desautor izar ia per ante um simples cor onel.
— Por que não liga para o gener al Maxwell, senhor, e pergunta a ele? —
Leland retir ou um cartão do bolso e estendeu-o a Alva-rado. — Aqui está o nú-
mer o.
— Eu sei o núm er o! — gritou Alvar ado, fuzilando-o com o olhar.
— Esse é o telef one partic ular do gener al. Caso ele estej a de folga... o se-
nhor o enc ontrar á em casa. Creio que ele conc ordar á em atendê-lo, já que en-
frentam os uma grave emergênc ia.
Espum ando de raiva, Alvar ado agarr ou o cartão, deu meia-volta e saiu da
sala como um fur ac ão. Voltou quinze minutos depois, pálido como um cadáver:
— Está conf irm ado — disse, sem olhar para ninguém. — A partir deste
mom ento, o senhor é o com andante da base de Thunder Hill.
— Não. O senhor perm anec e no com ando.
— Mas... sou seu prisioneir o...
— O senhor perm anec e no com ando — repetiu o cor onel, impac ie nte —,
no pleno gozo de sua autor idade. E será obedec ido sempre que suas ordens não
entrar em em conf lito com as instruç ões que dar ei ao pessoa l no sentido de impe-
dir que elem entos per igosos... que ponham em risc o a segur anç a da com unida-
de... esc apem desta base.
Alvar ado balanç ou a cabeç a e com entou:
— Pelo que ouvi do doutor Bennell, o senhor par ec e convenc ido de que nos
transf orm am os numa espéc ie de... monstros. Isso é louc ur a total... Monstros...
Ignor ando o com entár io, Falkirk prosseguiu:
— Como o senhor sabe, um ou mais ofic ia is ou cie ntistas residentes nesta
base sabotar am a segur anç a e envia r am mensagens a algum as testem unhas,
com o obj etivo deliber ado de atraí-las para cá. Sem dúvida os crim inosos esper a-
vam fazer com que elas se lembrassem do que vir am. O plano era envolver a
imprensa e a opiniã o públic a, e nos forç ar a revelar ao mundo nosso segredo.
Não desc arto a possibilidade de que esses traidor es tenham sido movidos por
boas intenç ões. Os cie ntistas são ingênuos e inc apazes de avalia r os risc os a que
nos expõem.
— Monstros... — Alvar ado repetiu, ainda balanç ando a cabeç a.
Consertado o detetor, Leland enc arr egou Fugata e Helms de
interr ogar todos os ofic ia is de qualquer patente e os cie ntistas residentes em
Thunder Hill; ordenou-lhes que com eç assem pelos que tinham conhec im ento do
segredo esc ondido na base fazia dezoito meses.
— Se não desc obrir em o traidor eu os mato — disse, na voz fria de sempre.
Não prec isava de emoç ão para saber o que tinha a fazer. Se não enc ontrassem o
traidor, só haver ia uma explic aç ão posSível... o complô assum ir a proporç ões de
motim e envolvia a todos em Thunder Hill; a contam inaç ão alastrar a-se e to-
dos, na base, estavam inf etados. Clar o que ter ia de matá-los.
À uma e quar enta e cinc o, Leland e Horner voltar am a Shenk-fie ld, deixando
o pessoa l do depósito tranc ado em sua gigantesc a tumba subterrânea. Mal chega-
ram rec eber am más notíc ia s, por cortesia de Foster Polnic hev, dir etor do FBI em
Chic ago.
Para com eç ar, Calvin Sharkle estava morto, em Evanston, Illinois. Se isso
fosse tudo, até que não ser ia tão mau, por ém havia mais: além dele havia m mor-
rido a irmã, o cunhado e uma equipe inteir a do esquadrão espec ia l. O assunto era
manc hete dos jornais e das televisões da cidade, evidentem ente por causa da vio-
lênc ia. Os vampir os da imprensa enc ontrar am sangue na Rua 0’Bannon e não de-
soc upar ia m a área enquanto não se sac ia ssem. Pior: as louc ur as que Sharkle gri-
tar a da janela despertar am a cur iosidade de um jovem repórter à caça de maté-
ria s sensac ionalistas. Havia notíc ia s de que estar ia a cam inho de Nevada, com
o ender eç o e telef one do Motel Tranqüilidade na agenda. Era razoá vel imaginar
que poder ia se aproxim ar de Thunder Hill.
Como se ainda não bastasse, Polnic hev falava de “coisas estranhíssim as que
andam acontec endo por aqui”. Por exemplo: um tir oteio entre a políc ia e um
marginal, num dos cortiç os do centro, term inou com um hom em morto e um
menino... ressusc ita-
do. O patrulheir o Winton Tolk, cuja vida o padre Cronin salvar a, rea lizou o
milagre com o filho dos Mendoza. Isso signif ic ava que o padre contagia r a o poli-
cia l... E o que mais lhe transm itir a nesse contágio, além da mister iosa capac idade
de cic atrizar tec idos? Devia ser algo muito terr ível... um monstro per igoso,
que cresc ia dentro de Tolk.
Com eç ava o apoc alipse. Leland sentiu náusea s ao saber das notíc ia s de Chi-
cago.
O FBI inf orm ava que o patrulheir o ainda não falar a à imprensa e estava fe-
chado em casa, sem quer er ver ninguém. No entanto, como centenas de repórte-
res cerc assem a casa, era de se esper ar que a qualquer mom ento um deles aca-
bar ia entrando e falando com o polic ia l. Não havia como impedir que Tolk citasse
o nome de Brendan Cronin. E de Cronin a Emmy Halbourg era apenas um passo.
A menina... O outro pesadelo! Polnic hev contou que, após a inc rível ressur-
reiç ão do filho dos Mendoza, corr er a a visitar os Halbourg, para ver se a gar ota
também andava fazendo milagres, já que fora cur ada por Brendan. O que en-
controu quase o fez desm aia r. Sua prim eir a rea ç ão foi prevenir a fam ília para
que se mantivesse longe da imprensa. Em seguida, por ém, tem endo que
uma simples advertênc ia não fosse suf ic ie nte, resolveu prendê-los. Naquele ins-
tante, os Halbourg estavam num dos ender eç os sec retos que o FBI usava regular-
mente, sob a vigilânc ia constante de seis agentes. Os prim eir os relatór ios eram
desanim ador es. Mais assustados com Emmy do que ela com suas arm as, os
agentes perm anec ia m unidos todo o tempo, ao invés de revezar-se. Tinham intru-
ções clar as para matar a fam ília inteir a ao prim eir o movim ento suspeito ou in-
compreensível de Emmy.
— Não sei de que adia ntar á matá-los — Polnic hev dizia ao telef one. — Já
não há como manter o segredo. Perdem os o controle. A únic a saída que vejo é
abrir o jogo. Ir aos jornais e contar tudo.
— Você está louc o?! — Leland berr ou.
— Não podem os sair por aí matando pessoa s a torto e a dir eito! O que é
que você quer? Que matem os os Halbourg, os Tolk,
os Mendoza, todas as suas testem unhas do motel?! Não há segredo que justi-
fique tam anha carnif ic ina!
— Você nao sabe o que está dizendo! — Falkirk continua va a gritar. — A
questão já não se resum e em divulgar o segredo ou não! O segredo não tem mais
tanta importânc ia. O problem a é outro! E a espéc ie hum ana que está em per igo!
Se divulgarm os o segredo agor a, não poder em os sair por aí combatendo a inf ec-
ção por nossos meios, porque esses polític os malditos cair ão em cima de nós,
com os liber ais e com todos os idiotas do país, e... aí, sim, estar á tudo perdido!
— Pois a julgar pelo que tenho visto aqui, o per igo não é tão sér io quanto
você pensa — Polnic hev argum entou. — Clar o que instruí os agentes que estão
vigia ndo os Halbourg a ter em cuidado, mas não acredito que a menina seja uma
amea ç a... Emmy não é um monstro! E bonita, saudável. Não sei o que Brendan
fez com ela, nem imagino como ela consegue fazer todas aquelas coisas, mas
aposto minha mão dir eita como a gar ota não amea ç ar ia a vida de uma mosc a!
Ah, se o senhor a visse... E... inc rível! Acho que estam os assistindo ao espetác ulo
mais deslumbrante... desde que o mundo é mundo!
— Clar o... — Falkirk tentou controlar-se. — E exatam ente isso que o inim i-
go quer nos fazer pensar. Se vac ilarm os... não saber em os como lutar. E estar e-
mos derr otados antes de a guerr a com eç ar.
— Esc ute... Se Cronin, Corvaisis, Tolk e Emmy estivessem contam inados...
se já não fossem gente como nós, por ém monstros, não estar ia m fazendo mila-
gres! Estar ia m esc ondidos, esper ando o mom ento de atac ar! E tentar ia m conta-
minar o maior núm er o possível de pessoa s.
— Não sabem os o que podem estar planej ando — Leland respondeu, a voz
calm a. — Não sabem os como func iona o agente inf ecc ioso. Talvez o mic róbio
tome conta do cér ebro deles. Talvez os torne esc ravos de sua vontade. E possível
até que o hospedeir o nem saiba que está contam inado. Nem sabem os se o agen-
te é mesmo um mic róbio... De qualquer modo, essa gente já não é hum ana e é
com isso que devem os nos preoc upar. Não pode-
mos conf ia r neles! Trate de prender também os Tolk. Toda a fam ília. Ponha-
os de quar entena. Urgentem ente!
— Já lhe disse que a casa dos Tolk está cerc ada de repórter es. Se form os lá
prendê-los amanhã o senhor verá meu retrato nas prim eir as páginas dos jornais...
E adeus histór ia de vazam ento quím ic o em Shenkf ie ld! Embor a eu já não con-
corde com a idéia de manter as mentir as que inventam os, não quer o ser o pri-
meir o a pagar o pato.
A contragosto, Leland conc ordou. Os argum entos fazia m sentido.
— Estão vigia ndo a casa, pelo menos? — perguntou.
— Dia e noite.
— E quanto aos Mendoza? Se Brendan toc ou em Tolk e o contam inou, e
Tolk toc ou no gar oto...
— Estam os de olho na casa, mas também não podem os nos aproxim ar
muito por causa da imprensa.
O terc eir o pesadelo era o padre Wy c azik. Estiver a com os Mendoza e saír a
de lá dir etam ente para a casa de Emmy, antes de Pol-nic hev saber o que se pas-
sava. Hor as mais tarde, um dos agentes do FBI identif ic ou-o entre a multidão que
se aglom er ava em frente à casa de Sharkle, no mom ento da explosão. E dali em
dia nte, ninguém mais o viu... fazia mais de seis hor as.
— E clar o que ele sabe de muita coisa. Basta som ar dois e dois para desc o-
brir pelo menos boa parte da verdade. Outro bom motivo para abrirm os o jogo e
não serm os apanhados de calç a curta...
Para Leland Falkirk, era como se o mundo desabasse sobre seus ombros. Es-
tavam perdendo o controle... E ele consum ir a anos e anos aprendendo a viver
como se tudo existisse para ser controlado. Não ser ia possível existir vida sem ha-
ver controle. Em prim eir o lugar, autoc ontrole: era prec iso treinar-se até a exaus-
tão, para dom inar os próprios impulsos, venc er o desej o e não acabar derr otado
por víc ios repugnantes como bebida, drogas, sexo — desde menino a fam ília en-
sinava-lhe essa liç ão. Depois, vinha o controle intelectua l: era prec iso acreditar
na lógic a e na razão, pois a natur eza corr ompida do hom em vivia acossada por
baixos ins-
tintos, superstiç ão, irr ac ionalidade. Essa segunda liç ão Leland aprender a ape-
sar da fam ília, quando fugia de casa para assistir aos cultos de uma seita fanátic a,
cuj os adeptos babavam e rolavam pelo chão como anim ais.
Menino, Leland obrigava-se a presenc ia r os ritua is que apavor avam porque
já acreditava firm em ente que devia aprender a controlar o medo... para não en-
louquec er. Aos pouc os, aprender a a controlar o terr or que lhe inspir avam o pai e
a mãe, quando o espanc avam “para seu próprio bem”, dizia m, para “livrá-lo
do dem ônio”. Um bom método de aprendizado era não resistir à dor, mas sub-
meter-se a ela... proc ur á-la, até tornar-se insensível. Porque nada é capaz de
causar medo quando se tem certeza de que e possível suportar a dor. Controle.
Leland era o hom em do controle. Controlava tudo: o corpo, a vida, seus hom ens,
qualquer missão que lhe fosse atribuída.
E agor a, pela prim eir a vez em mais de quar enta anos, sentia que o controle
lhe esc apava. Pela prim eir a vez, desde o tempo dos cultos dos fanátic os, sentia-se
à beir a do pânic o.
— Vou desligar — disse afinal —, mas não saia daí. Mandar ei os rapazes
prepar ar em uma reuniã o por telef one. Falar em os mais tarde... eu, você, seu su-
per ior, Riddenhour em Washington e nosso contato na Casa Branc a. Vam os dec i-
dir a nova linha de ação. Ter em os de ser dur os e prec isos. Não me deixar ei en-
volver pelas fantasia s que você está alim entando. Rea ssum ir em os o controle de
tudo. Vam os acabar com esse pessoa l inf etado, que já com eç a a feder. Vam os
varr ê-los da face da terr a, custe o que custar, mesm o que sej am gar otinhas lin-
das e padrec os bondosos. Prec isam os salvar a própria pele. Pode apostar... eu dou
um jeito nisso tudo!
Os hom ens do carr o seguir am Fay e e Ginger até a saída da Rodovia 80. Gin-
ger com eç ava a pensar que eles ser ia m bem capazes de estac ionar junto à entra-
da do motel, como hóspedes norm ais. Entretanto, o carr o par ou a uns trinta me-
tros de distânc ia e lá fic ou, sob a neve. Eram duas hor as e quar enta e cinc o minu-
tos.
Fay e estac ionou em frente à entrada da rec epç ão, Dom e Ernie
corr er am para ajudá-las a desc arr egar as compras que havia m feito em
Elko: másc ar as e abrigos para enf rentar a neve, botas e luvas térm ic as, dois re-
vólver es semi-autom átic os, muniç ão para essas e as outras arm as, lanternas,
duas bússolas, um pequeno lampiã o de acetileno com dois buj ões de gás e uma
inf inidade de itens menor es.
Ernie abraç ou Fay e, Dom abraç ou Ginger, e os dois hom ens disser am jun-
tos, em coro:
— Eu estava preoc upado com você.
Rindo, as duas responder am igualm ente em coro:
— Eu também estava preoc upada com você.
Depois, Ernie beij ou Fay e, e Dom beij ou Ginger, e ninguém achou nada es-
tranho ou surpreendente. Era norm al. Previsível e esper ado. Dom e Ginger senti-
am-se íntim os e próxim os como se fossem mar ido e mulher desde há três déc a-
das, como Fay e e Ernie. Fora assim já no mom ento em que se abraç ar am na
pista de pouso do term inal aér eo de Elko, dois dias antes.
Depois de empilhar as compras num canto da sala, todos for am busc ar todas
as arm as existentes em casa. Ginger arr um ava as cadeir as ao redor da mesa, a
mesm a onde Dom e Brendan havia m testado seus poder es, na vésper a, Brendan
fitava as arm as com um olhar misto de medo e desgosto, e já não par ec ia tão oti-
mista e entusia sm ado.
— Algum problem a? — Ginger perguntou-lhe.
— Não sonhei ontem — respondeu ele. — Não vi a luz dour ada, não ouvi a
voz que me cham ava. Sabe, desde o com eç o eu repetia para mim mesm o que
não era Deus quem me cham ava para cá. Mas, no fundo do cor aç ão, eu quer ia
exatam ente o contrár io... quer ia ter certeza de que Ele cham ava. O padre Wy c a-
zik estava certo... Não perdi completam ente a fé. Ainda há em mim algum a coi-
sa muito prof unda, que talvez me faça voltar à Igrej a. Tenho pensado muito nis-
so, ultim am ente. Não é apenas a fé, a crenç a sinc er a na existênc ia de Deus... E
mais do que isso... prec iso de Deus! Mas agor a, quando perc ebo tudo, não consi-
go mais sonhar, já não vejo aquela luz dour ada... E como se, de uma vez por to-
das, Deus estivesse se esquec endo de mim.
— Não, não é assim... Ginger sorr iu e tom ou-lhe as mãos, tentando trans-
mitir-lhe cor agem. — Deus jam ais abandona os que cree m nele. Os hom ens, às
vezes, esquec em-se de Deus, mas Ele não se esquec e de seus filhos. Deus é per-
dão e amor... Não é isso que os padres ensinam aos fié is?
— Par ec e que foi você que estudou em Roma...
Ela apertou-lhe as mãos e, olhando-o bem nos olhos, prosseguiu:
— Nenhum de nós tem sonhado, e acho que a razão é a mesm a... Nossos
sonhos são apenas indíc ios de lembranç as que proc ur am vir à tona, talvez em ter-
mos de símbolos, não sei. Mas, seja lá como for, ainda que seu sonho seja a ex-
pressão de um cham am ento de Deus, é bem razoá vel que você já não sonhe...
porque está aqui. Que tal? Deus cham ou, e você atendeu. Pronto. Para que Deus
perder ia tempo e energia cham ando você, se você já chegou? Pode não ser uma
boa explic aç ão teológic a, mas faz sentido.
Brendan riu baixinho, os olhos um pouc o menos tristes.
A volta da mesa, os outros iam tom ando seus lugar es. Preoc upada, Ginger
observou que Mar eie par ec ia cada vez mais alheia. Fic ou sentada onde Jorj a a
coloc ar a, cabisbaixa, o cabelo esc ondendo-lhe o rosto, as mãozinhas cruzadas no
colo, repetindo sempre a mesm a palavra: “A Lua”... Devia ter a sensaç ão de que
estava prestes a lembrar-se de algum a coisa importante, que a qualquer mom en-
to surgir ia nitidam ente em sua mem ór ia. Sem mec anism os psic ológic os muito
sólidos, numa idade em que rea lidade e fantasia são quase a mesm a coisa, deixa-
va-se levar pela intensidade da sensaç ão, mergulhando em si própria, cada vez
mais fundo, à proc ur a da rec ordaç ão.
— Ela vai fic ar boa — Ginger gar antiu a Jorj a, que fitava a menina com
olhos úmidos de lágrim as. — Não sei ainda quando ou como... mas tenho certeza
de que vai fic ar boa.
— E... — Jorj a respir ou fundo e tentou sorr ir, agradec ida. — Ela tem que
fic ar boa!
Jack e Ned term inar am de prender a folha de compensado
dia nte do vidro da porta e também for am para a mesa. Agor a não faltava
mais ninguém.
Em rápidas palavras, Fay e e Ginger fizer am o relatór io da visita aos Jam i-
son. Falar am dos hom ens que as havia m seguido e desc obrir am que Ernie e Dom
também tiver am companhia em seu passeio.
— Se andam por aí, à vista de todos, é porque estão prontos para cair em
cima de nós — com entou Jack.
— Talvez seja bom alguém dar uma espia da para ver se já não estão che-
gando. Eu vou lá. — Ned levantou-se, aproxim ou-se da janela e olhou por uma
fresta, foc alizando o estac ionam ento.
A pedido de Jack, Ernie e Dom contar am sobre a expediç ão de rec onhec i-
mento nos arr edor es de Thunder Hill. Jack ouvia, atento, perguntando sobre deta-
lhes cujo signif ic ado Ginger não conseguia adivinhar. As grades do portão tinham
fios de aram e tranç ado? E a cerc a? Como eram os montantes de cerc a? Por
fim, ele perguntou:
— Havia guardas vigia ndo a cerc a? Cães?
— Não — respondeu Dom. — Não havia pegadas na neve. E provável que
a segur anç a seja toda eletrônic a. Eu tinha esper anç as de entrar lá, mas, depois do
que vim os, acho que é louc ur a.
— Clar o que vam os entrar! — Jack dec lar ou, na voz calm a e segur a de
sempre. — Não vai haver problem a até chegarm os à entrada do depósito, propri-
am ente dito. Quanto a entrar na montanha... ver em os o que é possível fazer,
quando chegarm os lá.
Surpreso, Dom olhou para Ernie, que, por sua vez, franziu a testa. Pela cara
dos dois, Ginger conc luiu que Thunder Hill era totalm ente inexpugnável.
— Você disse... “entrar na montanha”? — Dom perguntou.
— Ninguém entra lá sem ser convidado — disse Ernie, balanç ando a cabe-
ça.
— Se a segur anç a externa é eletrônic a — Jack pensava em voz alta —, é
quase certo que a segur anç a da entrada princ ipal também é. De uns anos para
cá, par ec e febre... Todos conf ia m cegam ente nos equipam entos eletrônic os. Cla-
ro que, pelo sim, pelo
não, deixam um guarda no portão da frente. Mas o guarda também sabe que
a segur anç a é absoluta... ou pensa que é... Acha que está ali só para constar, por-
que nunc a foi assaltado. É capaz até de dorm ir a sono solto... — Anim ado com a
idéia, fitou os companheir os, um a um, e dec lar ou: — Entrar lá vai ser fác il.
Quanto ao resto, ainda não sei. Pode ser que a gente consiga dar uma boa olhada
em tudo sem ninguém nos ver...
— Você fala como se tivesse certeza de que... — Ginger com eç ou, mas
Jack a interr ompeu.
— Passei mais de oito anos de minha vida entrando e saindo de lugar es
onde ninguém entra e de onde ninguém sai. É minha espec ia lidade. O próprio
Exérc ito me treinou para esse trabalho... Conheç o os truques deles. — Riu e pis-
cou o olho vesgo. — Sem falar nos truques que eu mesm o acabei inventando.
Jorj a retesou-se na cadeir a, tensa, e ponder ou:
— Mas... com seus truques ou sem eles... você pode acabar preso lá den-
tro!
— Clar o! E exatam ente o que eu quer o.
— Ora essa. E por quê?! — Ela levantou-se de um salto. — O que vai fazer
lá?!
O plano par ec ia perf eito. No com eç o, Ginger ouviu-o com o cor aç ão aperta-
do de medo, mas quando ele acabou, teve que se controlar para não bater pal-
mas. Jack Twist era um estrategista de gênio!
Como sempre, Jack expôs-lhes o plano com a segur anç a de quem sabia que
ser ia obedec ido e que todos conc ordar ia m em exec utar as tar ef as sem disc uti-las
e sem assustar-se com os risc os. Usou de todos os truques de persua são que co-
nhec ia, falou-lhes com voz firm e como se estivesse falando a soldados prof issio-
nais, antes de mandá-los para uma missão extrem am ente arr isc ada. Entre outras
razões, agia assim porque não tinha tempo a perder com disc ussões. O cér ebro e
os instintos gritavam-lhe uma únic a e repetida mensagem: “Está chegando a
hora! Está chegando a hora!”
O plano era simples.
Dentro de uma hora, com exc eç ão de Dom, Ned e Jack, todos entrar ia m no
jipe e rum ar ia m para Elko por uma estrada vic inal à qual se podia ter acesso pe-
los fundos do motel. Quase com certeza não ser ia m seguidos. Em Elko o grupo se
dividir ia: Ernie, Fay e e Ginger continua r ia m via gem no jipe rumo a Twin Fa-
lis, Idaho, e de lá para Poc atello, onde dar ia m um jeito, qualquer um, de conse-
guir um aviã o que os levasse a Boston. Devia m chegar a Boston na quinta à noite
ou, o mais tardar, na sexta de manhã, e hospedar-se em casa dos Hannaby, aos
quais contar ia m os detalhes do que havia m desc oberto até aquele instante. De-
pois, dur ante uma ou duas hor as, Ginger se ocupar ia exc lusivam ente em telef o-
nar para o maior núm er o possível de médic os, seus conhec idos do hospital, con-
voc ando-os para uma reuniã o. Nesse enc ontro, Fay e, Ginger e Ernie contar ia m a
todos o que acontec er a, conc entrando-se nos detalhes sórdidos da lavagem cer e-
bral pratic ada por agentes do governo em inoc entes cidadãos. Enquanto isso, Ge-
orge e Rita estar ia m contatando seus amigos inf lue ntes e organizando outras reu-
niões, às quais Ginger, Ernie e Fay e com-par ec er ia m para contar a mesm a his-
tór ia, repetindo-a o quanto fosse nec essár io. Só depois de falar a vár ia s pessoa s
importantes os três proc ur ar ia m a imprensa. E só depois de falar à imprensa pro-
cur ar ia m a políc ia para form alizar uma dec lar aç ão ofic ia l, assinada pelos três,
afirm ando que Pablo Jackson não fora assassinado por um ladrão com um, no as-
salto da sem ana anter ior.
— A idéia é inf orm ar o maior núm er o possível de pessoa s sobre o que está
acontec endo aqui. Assim, caso voc ês sof ram um “acidente” antes de poder em
convenc er a imprensa a investir em nossa histór ia, haver á muita gente disposta a
não aceitar a idéia de que o “acidente” tenha sido mesm o... acidental. Aí é que
você entra, Ginger — Jack vir ou-se para ela —, porque é a únic a de nós que tem
contatos inf lue ntes em Boston, uma das cidades mais importantes do país. Se con-
seguir “vender nosso peixe” lá, estar á cria ndo um par edão de segur anç a a nossa
volta. Mas é importante que voc ês se mexam depressa, para não dar tempo aos
feder ais de desc obrir em o que estam os planej ando. Eles os matar ia m antes de
pensar duas vezes.
Lá fora a tempestade de neve assobia va. Ótim o. Quanto mais violenta a ne-
vasc a maior es as chanc es de sair sem ser em seguidos.
— Depois que Ginger, Fay e e Ernie for em para Poc atello — Jack conti-
nuou —, voc ês quatro... Brendan, Sandy, Jorj a e Mar eie... irão até uma loja de
carr os e comprar ão outro veíc ulo de traç ão nas quatro rodas, com o dinheir o que
vou lhes dar. Imedia tam ente depois tom ar ão rumo oposto ao de Ginger... irão
para Salt Lake City, Utah. A via gem vai ser dif íc il e lenta por causa da neve, mas
voc ês têm de chegar lá e conseguir um voo para estar em Chic ago no máxim o
quinta-feir a à noite. — Vir ou-se para Brendan. — Então, você dever á entrar em
contato com seu amigo, o padre Wy c azik, a fim de conseguir uma entrevista com
o... “chef e 5' da arquidioc ese de Chic ago... o mais depressa possível.
— O cardea l — Brendan corr igiu. — Cardea l Ric hard 05Calla-han. Mas
acho que nem o padre Wy c azik pode conseguir uma entrevista com ele no prazo
que você quer...
— Ele prec isa conseguir. Como Ginger, em Boston, você deve agir muito
rápido em Chic ago. Você, Jorj a e Mar eie dever ão falar com o cardea l e contar-
lhe o que está acontec endo conosc o. Se for prec iso, Brendan, faça voar a batina
dele, arr anque imagens dos altar es, grude os banc os no teto. Faça o que for ne-
cessár io, mas convenç a o cardea l de que ele está tendo a chanc e de partic ipar do
mais extraordinár io fenôm eno que a hum anidade já viu, desde os dias em que
Jesus multiplic ava os peixes e ressusc itava os mortos. Não é blasf êm ia... — asse-
gur ou, dia nte dos olhos arr egalados de Brendan. — Estou convenc ido disso.
— Eu... também — Brendan gaguej ou. Apesar do espanto, par ec ia outra
vez entusia sm ado, como que contagia do pela ser ena conf ia nç a de Jack.
O vento soprava cada vez mais forte.
— A julgar pelo vendaval de agor a, ter em os um tuf ão depois que a nevas-
ca passar.
O mau tempo poder ia ajudá-los, mas um tuf ão acabar ia com seus planos. O
inim igo talvez dec idisse antec ipar o assalto ao motel.
— E isso, Brendan — Jack resum iu. — Você tem a missão de convenc er
seu cardea l 0’Callahan a convoc ar reuniões com o pref eito, ver ea dor es, empre-
sár ios, líder es da com unidade... todo mundo. Terá no máxim o vinte e quatro ho-
ras para espalhar as notíc ia s. Quanto mais a cidade falar de você, mas segur o es-
tar á. Depois de se reunir com os “figur ões,,J proc ur e a imprensa. Dê um show na
televisão. Faça voar a saia da repórter, arr anque quadros das par edes, empurr e
mesas, vire cadeir as...
— Depois disso eles não poder ão mais nos perseguir — conc luiu Brendan,
rindo de orelha a orelha.
— E o que esper am os. E torç o para voc ês convenc ê-los de que não são
louc os varr idos nem estão inventando histór ia s. — Jack respir ou fundo. Porque
enquanto estiver em andando por aí, como estrelas de televisão, Dom, Ned e eu
estar em os dentro do depósito de Thunder Hill, provavelm ente presos. A únic a
chanc e de sairm os de lá vivos vai depender da performanc e de voc ês.
— Não gosto disso — dec lar ou Jorj a, balanç ando a cabeç a. — Por que vo-
cês têm de ir para aquela maldita montanha? Já lhe fiz a mesm a pergunta, e você
ainda não respondeu, Jack. Vam os sair por aí, vam os gritar nossa histór ia aos qua-
tro ventos, vam os desm asc ar á-los... Que nec essidade há de voc ês irem se meter
lá dentro? Se o plano func ionar, mais dia menos dia, acabar em os desc obrindo o
que há em Thunder Hill e o que acontec eu no ver ão retrasado.
Jack esper ou um mom ento antes de falar, porque previa que as disc ussões
com eç ar ia m exatam ente àquela altur a do plano.
— Desc ulpe, mas você está sendo ingênua. Podem os gastar a língua de
tanto falar e, ainda assim, o Exérc ito fará o possível e o impossível para ganhar
tempo. Vão inventar outras histór ia s, proc essar os jornais, fazer o dia bo... para ter
tempo de inventar outra mentir a que justif ique tudo. Só tem os uma chanc e de
desc obrir a verdade... e é agir com rapidez. Para apressar os acontec im entos, vo-
cês prec isam ter um argum ento muito forte, que exij a imedia ta ação das autor i-
dades; Dom, Ned e eu, prisioneir os em Thunder Hill, ser em os o grande trunf o de
voc ês. Três cidadãos honestos... ou pelo menos razoa velm ente honestos... seqües-
trados
pelas mais altas autor idades nac ionais. Ser em os as vítim as... enquanto o pre-
sidente, em pessoa, e todos os “figur ões” do país far ão o papel de terr or istas. Não
vam os dar tempo a essa corj a... eles vão ter de explic ar-se em dois dias, no má-
xim o.
A volta da mesa, ninguém achou o que dizer. Fay e olhava para Jack com os
olhos cheios de lágrim as, como se já o visse morto.
— Não é justo — Jorj a murm ur ou — que voc ês se sac rif iquem...
— Ninguém será sac rif ic ado se cada um de voc ês fizer o que deve fazer
— Jack respondeu prontam ente — Voc ês nos tir ar ão de lá, sãos e salvos, com a
agitaç ão nac ional que vão cria r. E por isso que sua missão é tão importante.
— Mas... e se, por acaso, depois que voc ês estiver em lá dentro
— argum entou Jorj a, passando a mão pelo cabelo, aflita —, vir em algum a
coisa que explique tudo... que sirva para nos fazer entender o que acontec eu? Po-
der ão tir ar fotograf ia s, ou roubar algum plano, sei lá... e voltar para casa... não é?
Voc ês vão tentar ou...?
— E clar o que vam os tentar! — Jack rec ostou-se à cadeir a e riu.
— E é bem possível que consigam os esc apar.
Mentir a. Jack Twist sabia que tinham pouc a chanc e de entrar na base e rigo-
rosam ente nenhum a de sair de Thunder Hill. Quanto a enc ontrar algum a coisa
que explic asse os acontec im entos nem em sonho! Pela boa razão de que não ti-
nham a mínim a idéia do que proc ur ar. Poder ia m passar dez vezes ao lado da ex-
plic aç ão de seus torm entos e nem suspeitar ia m. Além do mais, na hipótese de al-
gum exper im ento cie ntíf ic o em andam ento ter esc apado ao controle naquela noi-
te, os relatór ios de pesquisa estar ia m codif ic ados ou mic rof ilm ados, esc ondidos
no cor aç ão da roc ha. Mas Jack não falou sobre isso. Não corr er ia o risc o de per-
der um segundo em disc ussões estér eis sobre possíveis risc os.
Jorj a ainda insistiu:
— Poder ia m os ir a Elko, proc ur ar o redator do jornal da cidade... Brendan
far ia seu show aqui mesm o. Não vejo nec essidade em com eç ar por Chic ago e
Boston...
— Até que a grande imprensa chegasse aqui estar ía m os mortos —■ Jack
dec lar ou, consultando o relógio de pulso; os ponteir os
voa vam. — Brendan ser ia tido por louc o, por um desses que contam que vi-
ram disc os voa dor es. Não. Tem os que ir. E todos prec isam fazer exatam ente o
que eu disse. E nossa únic a chanc e.
Jorj a fec hou os olhos e cruzou os braç os sobre o peito.
— Você vai com igo, Dom? — Jack perguntou.
— Sim... clar o. — A resposta que Jack esper ava. O esc ritor pertenc ia àque-
la categor ia de hom ens nos quais se pode conf ia r cegam ente, porque jam ais se
acovardam em mom entos de nec essidade, mas que ainda não chegar am a co-
nhec er-se bem a si próprios. — Clar o que vou, mas você se importar ia de con-
tar por que esc olheu minha agradável companhia? E uma honr a, por ém...
— E simples. Ernie ainda não está completam ente cur ado do medo do es-
cur o. Vai ser dif íc il para ele enc ar ar a via gem até Poca-tello. Não ser ia segur o,
nem para ele nem para nós, levá-lo a uma missão noturna. Sobravam Ned e
você. Além disso, eu me senti-ria mais segur o sendo seqüestrado com um esc ri-
tor de renom e... A imprensa ador a celebridades!
Ginger, que se mantiver a calada, olhando-o, com entou:
— Você é um gênio, Jack, mas não passa de um autêntic o porc o chauvinis-
ta. Por que não inc luiu mulher es no grupo que vai a Thunder Hill? Acho que os
três que devia m ir som os Dom, você e eu.
— Mas...
— Ainda não acabei... — ela o interr ompeu e, levantando-se, cam inhou
para a outra extrem idade da mesa, consc ie nte de que, assim, desloc ava para si
mesm a o centro das atenç ões. Mobilizava a sala inteir a, com inteligênc ia, intui-
ção e beleza, para enf rentar Jack. Afinal era como ele... sabia conseguir o que
quer ia, do modo como quer ia, no instante em que quer ia. — Meu plano é o se-
guinte... Ned e Sandy vão a Chic ago para dar credibilidade aos prodígios de
Brendan. Jorj a e Mar eie seguem para Boston com Fay e e Ernie, levando uma
carta minha; os Hannaby os rec eber ão como rec eber ia m a mim mesm a. E há
outro detalhe que você, Jack, não poder ia avalia r... Rita e Fay e vão se ador ar no
instante
em que se enc ontrar em... Vão desc obrir que são irm ãs de alma... Não far ei
falta nenhum a lá. Aqui, sim, posso ser muito mais útil. Prim eir o porque sou mé-
dic a. Voc ês dois estar ão sozinhos em terr eno inim igo; se for em fer idos, poder ei
cuidar de voc ês. Segundo, porque, embor a seja inter essante ser seqüestrado junto
com uma celebridade, é muito mais inter essante ser seqüestrado com uma cele-
bridade e... uma mulherl Não seja cabeç a-dura, Jack... E clar o que você tem de
me levar!
Não havia o que disc utir. Ginger estava certa da prim eir a à últim a palavra, e
Jack rendeu-se à evidênc ia.
— Tem razão. Você vem com igo e com Dom. Ned, Sandy e Brendan vão
para Chic ago. Está resolvido.
— Por mim, não haver ia problem a algum em ir com você para Thunder
Hill, se você achasse que era o caso — disse Ned.
— Eu sei. Mas mudam os os planos. Jorj a e Mar eie vão para Boston com
Fay e e Ernie. E agor a... se dem or arm os muito para dar o fora daqui, passar em os
o resto da eternidade disc utindo quem dever ia ter ido com quem para o inf erno!
Porque eles estão chegando. — Jack levantou-se, foi até a porta, rem oveu o com-
pensado e olhou para fora. — Perf eito!
Uma espessa cortina branc a, de vento e neve, cobria a paisagem.
Quando saír am, mal se via a estrada onde estac ionar a o carr o que havia se-
guido Fay e e Ginger. Mas Jack logo perc ebeu que o carr o não estava lá. Pref er i-
ria que os hom ens os acompanhassem de perto... porque assim ele também os vi-
gia r ia.
A reuniã o por telef one não seguia o rumo que Leland desej ava. Quer ia que
os chef es conf irm assem sua dec isão de invadir o motel, prender as “testem u-
nhas” e levá-las para Thunder Hill. Para isso, contava com o gener al Riddenhour
para ajudá-lo a convenc er os outros de que a amea ç a era real e muito grave.
Tão grave que justif ic ar ia a autor izaç ão ofic ia l para elim inar os intrusos do motel
e todo pessoa l de Thunder Hill, assim que tivessem provas de que já não eram
hum anos. E essas provas, sem dúvida, apar e-cer ia m. Por ém, no mom ento em
que apanhou o telef one e ouviu as últim as notíc ia s, Leland perc ebeu que ter ia
problem as.
Emil Foxworth, dir etor do FBI, foi o prim eir o a falar. O grupo enc arr egado
da segunda lavagem cer ebral dos Scalc oe, em Mon-ter ey, Calif órnia, inf orm ava
que a casa fora invadida por um hom em barbudo que conseguir a esc apar. O ca-
sal Scalc oe e as duas gêm ea s for am transf er idos às pressas para um hospital mó-
vel e dali para uma casa que o FBI usava em emergênc ia s; o proc esso de lava-
gem cer ebral prosseguia. Investigaç ões rea lizadas sobre o hom em barbudo, a
partir do carr o abandonado, revelavam que se cham ava Parker Faine e era gran-
de amigo de Corvaisis.
— Conseguim os segui-lo até San Franc isc o, mas o perdem os. Não sabem os
dele desde o mom ento em que o aviã o pousou em San Franc isc o.
Foster Polnic hev, do esc ritór io do FBI em Chic ago, já achava extrem am ente
arr isc ado manter o segredo e acabou de convenc er-se da urgênc ia da divulgaç ão
ao ouvir o relatór io sobre a visita de Faine. Foxworth, também do FBI, e Jam es
Herton, assessor da Presidênc ia para assuntos de segur anç a nac ional, conc orda-
vam com ele.
Polnic hev não se cansava de falar das cur as mar avilhosas que Brendan e
Tolk rea lizar am e insistia em que os resultados dos acontec im entos talvez fossem
benéf ic os para a hum anidade.
— Sem esquec er — dizia — que o doutor Bennell e sua equipe de pesquisa-
dor es acham que não há e jam ais houve per igo. Faz meses que repetem isso... e
têm argum entos bastante convinc entes.
Leland tentou persua di-los de que Bennell poder ia estar contam inado e que
era arr isc ado conf ia r nele. Mas sabia que era apenas um líder militar, inc apaz de
enf rentar dois polític os numa guerr a de palavras. Devia m imaginar que estava
louc o.
Nem o gener al Riddenhour o def endia. Depois de ouvir atentam ente os argu-
mentos de uma e outra parte, assum indo o papel de media dor, ele acabou con-
cordando com Polnic hev.
— Respeito sua posiç ão — dec lar ou a Leland —, mas acho que o assunto
já não é apenas uma questão militar. Clar o que não devem os negligenc ia r quanto
à segur anç a, por ém, talvez seja hora de convoc ar cie ntistas, neur ologistas, biólo-
gos, filósof os... pa-
ra nos ajudar a pensar. Devem os evitar soluç ões prec ipitadas. Clar o também
que, caso o senhor enc ontre provas de que rea lm ente há per igo, estar ei disposto a
rever minhas posiç ões. Quanto às providênc ia s imedia tas, conc ordo em que as
testem unhas sej am levadas para Thunder Hill e que a regiã o seja mantida sob
sever a vigilânc ia... mas aconselho cautela quanto às medidas de médio e longo
prazos. Nenhum de nós dever á desc artar a hipótese de que o segredo do depósito
possa eventua lm ente ser divulgado.
— Com todo o respeito... — replic ou Leland, mal controlando a fúr ia que o
fazia estrem ec er —, eu não tenho dúvidas de que a amea ç a é real e muito grave.
Não tem os tempo a perder com neur ologistas ou filósof os... nem com o falatór io
de um bando de polític os covardes.
Foxworth e Herton vestir am a car apuç a e protestar am, aos gritos. Leland re-
truc ou, também aos berr os, e a reuniã o vir ou bate-boca inter urbano, ninguém en-
tendendo ninguém, até que Rid-denhour exigiu silênc io. Tinha uma proposta de
trégua: Leland nada far ia contra as testem unhas, e não se tom ar ia m providênc ia s
para ref orç ar a versão ofic ia l, mas, em troc a, também não se pensar ia, pelo me-
nos naquele mom ento, em divulgar o segredo.
— Vou pedir uma audiê nc ia de emergênc ia ao presidente — disse Ridde-
nhour. — No máxim o dentro de quar enta e oito hor as, ter em os esboç ado um pla-
no que satisf aç a a todos, do presidente ao doutor Bennell e seus cie ntistas em
Thunder Hill.
Impossível, pensou Leland, verm elho de ira.
Desligou o telef one e perm anec eu sentado por algum tempo, esf orç ando-se
para engolir o frac asso da reuniã o e a certeza de que, mais cedo ou mais tarde,
acabar ia derr otado. Não chegou a cham ar Horner para troc ar idéia s porque Hor-
ner não podia saber que o plano a ser exec utado em pouc os minutos era um ato
de insubordinaç ão e flagrante desobediê nc ia às ordens de com ando.
Não prec isava de conselhos. Leland conhec ia seu dever.
Mandar ia bloquea r a rodovia, sob pretexto de outro vazam ento de gás tóxic o,
e com isso isolar ia o motel. Prender ia as testem unhas e as levar ia dir etam ente
para o depósito de Thunder Hill.
Quando estivessem reunidas com o dr. Bennell e todo o pessoa l da base, pre-
sos por trás das portas de aço da montanha, Leland os far ia voar pelos ares... e
voa r ia com eles, na explosão de uma ou duas das ogivas nuc lea r es de cinc o me-
gatons guardadas no arsenal do piso inf er ior. Uma ou duas explosões, e tudo que
estava contido na montanha se reduzir ia a cinzas. Estar ia elim inada a princ ipal
fonte da contam inaç ão. Sobrar ia m outras, espalhadas pelo mundo: os Tolk, a fa-
mília de Emmy e as testem unhas, cuj os bloqueios ainda não havia m falhado. Le-
land conf ia va, por ém, que, ao ver o valor oso exemplo de seu sac rif íc io, Ridde-
nhour voltar ia à razão e ordenar ia a Soluç ão Final, com a elim inaç ão de todas as
fontes de contam inaç ão restantes.
Falkirk trem ia. Não de medo ou de ansie dade... mas de orgulho! Era o eleito
para lider ar a grande batalha da hum anidade. Para salvar não apenas um país...
mas o planeta inteir o, a espéc ie hum ana. Sentia-se pronto para enf rentar o gran-
de mom ento do sac rif íc io. Nada tem ia. Imaginando o que sentir ia quando as on-
das de calor da explosão o atingissem e o fizessem desapar ec er, um arr epio per-
corr eu-o dos pés à cabeç a. Não, não rec ua r ia dia nte da dor, a mais intensa, a
mais violenta, a mais longa dor... Sa-ber ia como suportá-la. Havia muito tempo
que se prepar ava para aquele mom ento, para a últim a dor de sua vida.
Ao sair do restaur ante, dois passos atrás de Ginger, Dom levantou a cabeç a
para o céu, para as espir ais branc as que o vento cria va na neve. De repente, viu o
que os outros não podia m ver:
A suas costas, ouve-se o ruído dos últimos vidros que se desprendem das jane-
las e se espatifam no chão. A frente, as lâmpadas do estac ionamento acesas, na es-
curidão da noite de verão. E por toda a parte, vindo de todas as direç ões, o ronc o
de trov oada e o som de terremoto. O coraç ão bate-lhe desc ompassado. Não con-
segue respirar, a boca seca, a garganta fec hada. Corre para fora do restaurante,
olha em volta. Então olha para cima...
— O que houve? — Ginger perguntou.
Dom perc ebeu que esc orr egar a na neve e, também, num frag-
mento de lembranç a que aflor ava à consc iê nc ia. Voltou-se para o grupo:
— Vi... como se estivesse acontec endo agor a. Em julho... naquela noite.
Duas noites antes, sem quer er, rec ria r a o som de trovoa da e o trem or de ter-
ra da noite de 6 de julho, mas agor a nada acontec er a, talvez porque a mem ór ia
já estivesse menos reprim ida e enc ontrasse cam inhos desimpedidos para mani-
festar-se.
Dom olhou para cima outra vez, e...
E um ronc o de motor, tâo forte que lhe fere os ouv idos. A terra treme, ele a
sente tremer nos ossos, nos dentes, como vidros e janelas em noites de trov oada.
Corre pelo piso cimentado, olhando para o céu esc uro e... Lá está! Um avião vo-
ando muito baix o, cem, duzentos metros acima do solo, as luzes branc as e verme-
lhas pisc ando na esc uridão, tão baix o que se vê o brilho do vidro da cabine do pi-
loto. Um jato muito veloz, um caça... E lá vem outro! Saindo da noite estrelada.
Mas o ruído que rebentou os vidros do restaurante e fez saltar os saleiros sobre as
mesas continua a cresc er, cada vez mais forte. Os jatos voam longe, porém o ron-
co continua. Dom vira-se para trás, porque o ruído parec e vir de lá... e grita de
susto: outro jato, ainda mais baix o que os dois primeiros, pouc o mais de um metro
acima do telhado do restaurante. Tão baix o que ele se joga ao chão, certo de que
o avião está caindo. Um jato com as cores americ anas.
— Dom!
Estava deitado de bruç os no cim ento do pátio, o rosto esc ondido entre os bra-
ços, quer endo proteger-se do jato... que vira na noite de 6 de julho do ano retra-
sado!
— O que houve? — Sandy perguntava, ajoe lhada a seu lado, toc ando-lhe o
ombro. Ginger estava do outro lado, igualm ente ajoe lhada, segur ando-lhe a mão.
— Você está bem? — perguntou.
Antes que ele respondesse, as duas unir am forç as para ajudá-lo a levantar-
se.
— Estou com eç ando a lembrar... — Dom ergueu os olhos para o céu, à es-
per a de que o fluxo de lembranç as continua sse. — Vi jatos militar es voa ndo bai-
xo... Eram dois, mas depois apar ec eu um terc eir o... Voa vam tão baixo que eu
pensei que fossem cair em cima do restaur ante.
— Jatos! — Mar eie gritou.
Todos vir ar am-se para ela, pois era a prim eir a palavra, além de “Lua”, que
dizia desde a vésper a. A menina estava no colo da mãe, tentando proteger-se do
vento, mas olhava fixam ente para o céu. Como que despertada pelas palavras de
Dom, vasc ulhava o céu à proc ur a dos aviões que, também para ela, par ec ia m ter
acabado de passar.
— Não me lembro de nada... — disse Ernie. — Jatos?
— Jatos! Jatos! — Mar eie repetiu, erguendo a mão para o céu.
Ninguém conseguiu lembrar-se de nada. O que fora um mom ento de espe-
ranç a transf orm ava-se em vazio e desenc anto. Mar eie baixou a cabeç a e meteu
o polegar na boca, mergulhando novam ente em seu alhea m ento.
— Tem os de sair daqui — Jack puxou Jorj a e Dom. — Não podem os espe-
rar mais. Vam os pegar as coisas e cair fora.
Quase que arr astado para dentro, sentindo o perf um e da noite de ver ão de
meses atrás, ouvindo ainda o ronc o dos jatos, Dom o seguiu.
TERCEIRA PARTE
NOITE EM THUNDER HILL
Coragem, amor, amizade, compaix ão e empatia nos elev am acima dos ani-
mais e definem o que é humano.
Livro das Lament aç ões
Tua tumba humilde por mãos estrangeiras adornada; rev erenc iada por estra-
nhos e por estranhos pranteada.
Alexander Pope
SEIS_______________________
Noit e de terç a-feir a, 14 de janeir o
1. LUTA
Mal aterr issou em Salt Lake City, proc edente de Chic ago, o padre Stef an Wy -
cazik embarc ou em outro aviã o, rumo a Elko. Conseguiu pousar, apesar da nevas-
ca, minutos antes de o aer oporto ser fec hado ao tráf ego aér eo, com a visibilidade
reduzida a quase zero. Dir igiu-se então a um telef one públic o, conseguiu desc o-
brir o núm er o do Motel Tranqüilidade e ligou. Não ouviu sinal de cham ada, ape-
nas a linha zumbindo sem par ar. Tentou vár ia s vezes, e repetiu-se o zumbido. Pe-
diu o auxílio da telef onista, que, após duas tentativas, desistiu.
— Desc ulpe, senhor, mas a linha está com def eito — disse ela.
A inf orm aç ão par ec eu-lhe dram átic a, e Stef an gritou:
— Def eito?! Que tipo de def eito?
— Não sei. Algum cabo rompido por causa da tempestade... Está ventando
muito.
A explic aç ão era simples dem ais. Fazia pouc o tempo que estava nevando, e o
vendaval não par ec ia suf ic ie nte para romper cabos telef ônic os. O motel estava
isolado de tudo e de todos, e isso par ec ia obra de mãos hum anas, sem qualquer
relaç ão com nevasc a ou vendaval.
Stef an ligou para Chic ago, à proc ur a do padre Gerr ano, que atendeu logo ao
segundo toque.
— Mic hae l, já estou em Elko, são e salvo. Mas não consigo li-gar para
Brendan. Há algum def eito na linha.
— Eu sei — o padre Gerr ano respondeu.
— Você sabe?! Mas como é que pode saber?!
— E que rec ebi um telef onem a há dois ou três minutos -explic ou-se o ou-
tro. — Um hom em que não quis se identif ic ar, mas disse ser amigo de Ginger
Weiss, uma das pessoa s que está no motel. Contou que Ginger ligou para ele hoje
de manhã, pedindo algum as inf orm aç ões, e que ele já tinha, mas não conseguia
entrar em contato com o Motel Tranqüilidade. Par ec e que Ginger Weiss previa
problem as com o telef one, pois deu ao hom em nosso núm er o e o de um casal de
amigos dela em Boston. Pediu ao tal hom em que ligasse para nós e passasse as
inf orm aç ões ao senhor, pois ela se enc arr egar ia de entrar em contato conosc o.
— O hom em não quis se identif ic ar... — Stef an repetiu, preoc upado. — E
lhe passou as inf orm aç ões?
— Passou. — Mic hae l tentou ser breve. — São dois assuntos. Prim eir o, so-
bre um lugar cham ado Thunder Hill. O hom em diz que, tanto quanto pôde desc o-
brir, o lugar continua sendo o que sempre foi... uma espéc ie de alm oxar if ado gi-
gante, superprotegi-do, à prova de explosões e de invasão... um dos oito alm oxa-
rif a-dos que o Exérc ito mantém por todo o país, e que não é, sequer, o maior de-
les. O segundo assunto era sobre um tal cor onel Le-land Falkirk, do Exérc ito, co-
mandante de uma unidade da DE-RO, um grupo enc arr egado da def esa civil.
Vendo a nevasc a que cresc ia a cada instante, os olhos na janela da cabine te-
lef ônic a, o padre Wy c azik ouviu o colega contar-lhe, quase sem tom ar fôlego, a
biograf ia ofic ia l do cor onel Falkirk.
— ...mas nada disso é importante — Mic hae l conc luiu. — Par ec e que o se-
nhor X desc onf ia de que há apenas um detalhe em toda essa biograf ia que pode
ter algo a ver com os acontec im entos do Motel Tranqüilidade.
— Senhor X...?
— Não sabem os o nome dele, não é? Por que não o cham am os de senhor
X?
— Tudo bem, continue.
— Bem, X acredita que o únic o fato relevante é que o cor onel Falkirk foi o
representante do Exérc ito num grupo de espec ia listas que o governo criou, há
nove anos, para elabor ar um relatór io sobre o que acontec er ia à hum anidade em
caso de catástrof e total de dim ensões planetár ia s. O senhor X diz que andou in-
vestigando e desc obriu duas coinc idênc ia s estranhíssim as... Prim eir a, que vár ia s
pessoa s que trabalhar am nesse grupo estão ou têm estado de fér ia s muito segui-
dam ente, desapar ec em às vezes por mais de um mês, têm folgas fora de hora...
A segunda coinc idênc ia é que o sigilo que cerc a o relatór io foi amplia do... os re-
sultados estão sob segur anç a máxim a desde o dia oito de julho do ano retrasado.
Dois dias depois que Brendan e os outros estiver am no Motel Tranqüilidade, em
Nevada.
— O que poder ia ser essa... “catástrof e total” que o grupo estudou? — Ste-
fan perguntou e ouviu Mic hae l repetir a resposta que o sr. X lhe dera quando ele
fez a mesm a pergunta. — Oh, Deus... bem que eu imaginava!
— Imaginava... — A voz do outro lado do fio par ec ia um eco. — Imagina-
va... que uma coisa assim... estivesse por trás dos problem as de Brendan?! O se-
nhor acredita nisso?
— Não pense que eu tenha chegado a essa espantosa conc lusão usando mi-
nha fantástic a inteligênc ia... Sei apenas que Cal Shark-le gritava algum a coisa pa-
rec ida com isso... minutos antes de explodir a própria casa.
— Deus do céu... — Mic hae l suspir ou.
— Par ec e que estam os nos aproxim ando do lim ia r de um novo mundo.
Você está prepar ado para o futur o?
— Eu sei lá! E o senhor?
— Ah, estou sim, clar o. Mas há muitos per igos no cam inho.
Ginger sabia que Jack Twist corr ia contra o tempo. Trabalhava
numa espéc ie de frenesi, atendia a um e outro, auxilia ndo nas úl-
tim as tar ef as antes da partida, mas não tir ava os olhos da porta e das janelas.
Par ec ia esper ar que, a qualquer mom ento, chegassem os inim igos.
Levar am quase meia hora para se vestir, carr egar as arm as e ajeitar nas
moc hilas a muniç ão extra. Depois, ainda prec isar am arr um ar o equipam ento,
distribuindo-o entre a cam ioneta dos Sarver e o jipe de Jack. Trabalhavam sem
par ar de dizer banalidades, para conf undir os hom ens que os esc utavam de longe.
Por fim, às quatro e dez da tarde, deixando o rádio ligado bem alto para ga-
nhar alguns minutos antes que os observador es dessem pela falta de gente, saí-
ram pela porta dos fundos, sussurr ando despedidas, como “até mais ver”, “cuide-
se bem”, “vou rezar por você”, “vai dar tudo certo” ou “vam os acabar com
aqueles filhos da puta”. Ginger perc ebeu que Jack e Jorj a separ ar am-se com um
longo abraç o e viu que, ao se despedir de Mar eie, Jack beij ou-a como se fosse
sua filha. Era pior que uma despedida de fam ília, porque, por mais que alguns in-
sistissem em rir e pular de entusia sm o, todos sabia m que alguns, talvez muitos,
não voltar ia m a enc ontrar-se.
Reprim indo as lágrim as, Ginger cham ou-os à rea lidade:
— Chega de despedidas! Tem os que cair fora!
Com Ned na dir eç ão, os sete que iam para Chic ago e Boston saír am prim ei-
ro. A neve caía pesada e, pouc os passos adia nte, já esc ondia o jipe. Ned tinha ins-
truç ões para evitar a estrada princ ipal enquanto pudesse, para enganar os vigia s e
manter-se o mais afastado possível do loc al onde Jack avistar a o observador de
binóc ulo. Assim, rum ou para campo aberto, desc endo pelo acostam ento. O vento
que zunia enc obriu o ruído do motor até o jipe desapar ec er completam ente.
Ginger, Dom e Jack embarc ar am na cam ioneta de Ned e seguir am a mes-
ma trilha. Sentada entre os dois, Ginger olhava o jipe a sua frente, pensando se
algum dia voltar ia a ver os amigos que lá estavam. Fazia pouc o tempo que os co-
nhec ia mas amava-os como se fossem gente sua, sua fam ília. E trem ia de medo
por eles.
— “O amor dignif ic a o hom em”, Jac ob, seu pai, sempre dizia.
“Inteligênc ia, cor agem, amor, amizade, compaixão, empatia são as qualida-
des que dif er enc ia m o ser hum ano”, explic ava. “Algum as pessoa s acham que a
inteligênc ia é nossa qualidade mais importante, pois nos perm ite resolver proble-
mas, atingir obj etivos, avalia r os risc os e vantagens... Sim, clar o que isso tudo
também conta! Mas de que servir ia a inteligênc ia, sem cor agem, amor, amizade,
compaixão, empatia? Nós, hom ens e mulher es, amam os nosso próxim o... essa é
nossa grande cruz... e a maior bênç ão de Deus!”
Parker Faine chegou a pensar que o piloto não conseguir ia pousar e desvia r ia
para outro aer oporto, mais ao sul. Enganou-se: o aviã o foi um dos últim os a ater-
rissar em Elko antes que o campo fec hasse para pousos e dec olagens. Parker des-
ceu e atravessou a pista, protegendo com a mão enluvada o rosto que o vento fus-
tigava como agulhas de gelo. A densa barba que cultivar a dur ante anos fazia-lhe
falta...
Logo que chegar a a San Franc isc o, pela manhã, comprou um barbea dor e
uma tesour a, e corr eu para o banheir o do aer oporto. Sem hesitar, pôs-se a raspar
a barba e, ao final da tar ef a, exam inou o próprio rosto sorr indo: estava mais boni-
to do que antes. Rapidam ente tosou a cabeleir a e olhou-se de perf il: mar avilhoso!
— Está fugindo da políc ia? — perguntou um hom em que lavava as mãos
na pia ao lado.
— Não — Parker respondeu, sem tir ar os olhos do espelho, deslumbrado
com a cara nova. — Estou fugindo de minha mulher.
— Então som os dois... — O outro suspir ou, com desalento.
Para evitar ser identif ic ado, guardou os cartões de crédito e comprou a di-
nheir o uma passagem para Reno, aonde, bendizendo a sorte, chegou a tempo de
embarc ar no últim o voo rumo ao term inal de Elko. Pagou a passagem também à
vista e desc obriu, com um suspir o conf orm ado, que lhe sobravam vinte e um dó-
lar es no bolso. Que importava?! Dom, seu melhor amigo, prec isava de ajuda... e
ele prec isava ir em seu soc orr o.
Agor a em Elko, o prim eir o passo era telef onar ao Motel Tran-qüilidade. Cor-
reu a uma das duas cabines existentes no pequeno
term inal, ligou três vezes seguidas e... nada! Parker corr eu até o meio do sa-
guão, olhando em volta, perguntou algum a coisa a um func ionár io unif orm izado
que passava e desc obriu que não poder ía alugar um carr o no aer oporto. Também
não enc ontrar ia táxi, porque, com a tempestade, todos os táxis estavam ocupados
na cidade. Tinha que arr anj ar uma car ona. Vir ou-se para um lado, para o outro,
e acabou colidindo de frente com um hom em de cabelo grisalho, alto e magro.
— Sou padre, meu filho — disse o estranho. — Tenho que ir ao Motel Tran-
qüilidade. Um caso de vida ou morte. Tenho que ir ao motel... o mais rapidam en-
te possível. Pode me dar uma car ona?
Dom ia sentado ao lado de Ginger, colado à porta da cam ioneta de Ned, ten-
so como nunc a em sua vida. A frente, apenas a neve, inf indáveis cortinas branc as
que o carr o rompia uma a uma, desc obrindo que depois da prim eir a havia uma
segunda, e outra, e outra, sem nunc a acabar.
Cansado de contar cortinas de neve, ele conc entrou-se no motivo de sua ten-
são. Conc luiu que estava com medo de, como no caso dos jatos, lembrar-se de
algo mais, talvez de tudo. O que te-ria acontec ido depois da passagem do terc eir o
jato, em voo tão baixo que o fez jogar-se no chão?
A nevasc a tornava a tarde ainda mais esc ur a. Não eram nem cinc o hor as e
já par ec ia noite fec hada. De qualquer modo, Dom sabia que Jack ainda não po-
dia ligar os far óis, princ ipalm ente por causa da neve. Ref letida nos milhões de
pequenos cristais, a luz amar elada ser ia visível a quilôm etros de distânc ia e aca-
bar ia cham ando a atenç ão dos vigia s.
A certa altur a do cam inho, as marc as do jipe sobre a neve funda e mac ia do-
brar am para leste. Jack acompanhou-as com o olhar, pensativo, e seguiu em
frente, rumo ao norte; dali em dia nte, guiou-se pelas indic aç ões que Dom lhe for-
nec ia, lendo a bússola.
Pouc o mais à frente com eç ava a subida da enc osta. Dom chegou a pensar
que Jack ter ia que voltar e seguir a trilha de Ned
para contornar a montanha em lugar de tentar esc alá-la. Jack, por ém, enga-
tou a marc ha, pisou fundo no aceler ador e esper ou que a traç ão nas quatro rodas
conseguisse levá-los para cima. Aos solavanc os, o motor gem endo com o esf or-
ço, o jipe com eç ou a subir.
Entre Jack e Dom, Ginger sac olej ava a cada tranc o dos pneus no terr eno aci-
dentado. Aos olhos de Dom, par ec ia mais bonita do que nunc a, o cabelo brilhan-
do, ouro e prata, mais lum inoso do que a neve.
Avanç ar am vár ios metros, morr o acim a, até atingir um prim eir o platô, liso,
de terr a firm e. De repente, Jack pisou no breque:
— Os jatos! — gritou.
‘ Dom ergueu os olhos para o céu, imaginando tratar-se de visão real. Mas
não: Jack falava dos mesm os jatos que Dom vira ao sair do restaur ante. Aviões
do passado.
— Um... dois... três... quatro jatos! — exc lam ou Jack, de olhos fec hados. —
Voa ndo baixo. Par ec e que vão cair em minha cabeç a!
— Só me lembro de três — observou Dom.
— O outro apar ec eu quando saí do motel. Eu não estava no restaur ante
com voc ês. Corr i para fora de meu quarto e vi... acho que era um caça-bombar-
deir o... surgindo do nada, do meio da esc ur idão. Você tem razão... estava muito
baixo! Uns doze, quinze metros. O quarto aviã o era o que voa va mais baixo... foi
ele que estour ou as vidraç as.
— E depois? — Ginger perguntou, a voz por um fio, com medo de espantar
as lembranç as de Jack.
— O terc eir o e o quarto jatos, que voa vam mais baixo, tom ar am a dir eç ão
da rodovia, quase batendo nos fios elétric os... Dava para ver as turbinas ronc an-
do, cor de fogo. Passar am por cima da estrada e se separ ar am: um foi para leste,
o outro para oeste... For am e voltar am. Eu... corr i na dir eç ão do grupo que saía
do restaur ante. Eram voc ês... Eu não sabia. Quer ia perguntar se tinham idéia do
que estava acontec endo.
A neve batia no pára-brisa.
— É só... —Jack debruç ou-se sobre o volante. — Não consigo me lembrar
de mais nada.
— Fique tranqüilo... você vai se lembrar — Dom gar antiu. — Os bloqueios
já estão cedendo.
Jack engatou a marc ha e seguiu em frente, rumo a Thunder Hill.
O cor onel Leland Falkirk e o tenente Horner, acompanhados por dois sargen-
tos da DERO arm ados até os dentes, tom ar am um carr o e rum ar am para o ponto
em que estava sendo montado o bloqueio da estrada. Dois grandes cam inhões do
Exérc ito, atravessados sobre o asf alto, fec havam a estrada a leste. A oeste, a bar-
reir a situa va-se dez quilôm etros adia nte do Motel Tranqüilidade. Por todos os la-
dos viam-se lanternas de sinalizaç ão montadas sobre cavaletes. Seis soldados da
DERO, com abrigos de inverno, polic ia vam a área. Três deles, naquele mom en-
to, andavam ao longo da fila de veíc ulos que se form ava junto à barr eir a, polida-
mente explic ando a situa ç ão aos motor istas.
Leland desc eu do carr o e dir igiu-se ao sargento Vinc e Bidakia n, enc arr egado
do bloqueio.
— Como estam os indo? — perguntou.
— Até agor a, tudo bem, senhor. Há pouc o movim ento por causa da nevas-
ca. Muita gente par ou em Battle Mountain para não via j ar com esse tempo. Ou-
tros fic ar am em Winnem ucc a. Os cam inhoneir os devem ter pref er ido par ar
onde estavam, quando a nevasc a com eç ou. A fila está pequena. Vai dem or ar
mais de uma hora até term os duzentos veíc ulos por aqui.
A idéia era conseguir que os motor istas esper assem ali, sem lhes suger ir que
voltassem a Battle Mountain. Os hom ens da DERO tinham instruç ões para expli-
car a todos que a estrada perm anec er ía bloquea da por no máxim o uma hora e
que o melhor a fazer era esper ar um pouc o e seguir via gem com segur anç a.
Um bloqueio mais dem or ado signif ic ar ia engarr af am ento, com todos que-
rendo voltar até a cidade mais próxim a, e exigir ía notif ic aç ão das autor idades lo-
cais.
Leland estava disposto a aceler ar a oper aç ão só para não se envolver com a
políc ia, porque era inevitável que esta entrasse em contato com o com ando mili-
tar... e mais cedo ou mais tarde desc obrir ía m que estavam lidando com um re-
belde. Se conseguisse mantê-los a distânc ia por apenas uma hora, ganhando tem-
po para completar a oper aç ão, resolver ia tudo antes que eles apar ec essem. Bas-
tava-lhe uma hora para apanhar as testem unhas e levá-las para Thunder Hill,
onde ninguém, nunc a, poder ia enc ontrá-las.
— Nao se esqueç a de providenc ia r para que os motor istas tenham gasolina
suf ic ie nte para seguir via gem. Foi por isso que trouxem os nossos tanques.
— Já estam os providenc ia ndo, senhor. São as instruç ões que re-cebi. — Bi-
dakia n perf ilou-se.
— A políc ia ainda não apar ec eu para meter o nar iz?
— Ainda não, senhor. — O sargento passou os olhos pela pe-queng fila de
carr os par ados. — Mas logo vai apar ec er.
— Você sabe o que deve dizer a eles?
— Sim, senhor. Um cam inhão que transportava mater ia is para Shenkf ie ld
sof reu um pequeno acidente. O acidente provoc ou um vazam ento de substânc ia
tóxic a, e nós acham os que ser ia prudente...
— Cor onel! — O tenente Horner aproxim ava-se, corr endo pela neve, tão
cheio de casac os e abrigos de frio que par ec ia duas vezes mais gordo que o nor-
mal. — Uma mensagem do sargento Fixx, da esc uta, em Shenkf ie ld. Acontec eu
algum a coisa com as testem unhas. O sargento não ouve vozes há quinze minutos,
só um rádio toc ando muito alto. Ele acha que não há mais ninguém no motel.
— Estão no restaur ante...
— Não, cor onel. Fixx acha que eles... for am embor a...
— “For am embor a”... para onde?! — Leland nem esper ou a resposta, em
parte porque não quer ia ouvir, em parte porque sabia. Corr eu de volta para o car-
ro.
Cham ava-se Talia Erwy, e era igualzinha a Mar ie Dressler, a parc eir a de
Wallac e Beery naqueles divinos film es antigos. Na verdade, par ec ia mais alta e
maior que Dressler, que a seu lado ser ia uma mulher miúda, apesar dos ossos
grandes, do rosto redondo, da boca enorm e e do queixo duro. De qualquer modo,
Talia era a mais fantástic a das mulher es aos olhos de Parker Faine, não só porque
conc ordava em lhes dar uma car ona, como também porque insistia em não re-
ceber um vintém.
— Para mim vai ser ótim o — disse, rindo um pouc o como Ma-rie Dressler.
— Nao tenho nada para fazer. Sabem qual era meu program a? Ir para casa e
prepar ar algum a coisa para com er... sozinha. Sou péssim a cozinheir a... Voc ês
apar ec er am na hora certa. Assim posso adia r por alguns minutos o suplíc io de
com er meu horr ível bolo de carne... Sou eu que agradeç o!
Talia dir igia um carr o velho, com mais de dez anos, por ém bem equipado,
com pneus de neve e corr entes. Fez cara feia quando Parker perguntou se o carr o
andava.
— Meu “Velhão”?! Voc ês nao o conhec em. O “Velhão” chega a qualquer
lugar do mundo, faça chuva, faça sol... ou neve. Entrem aí.
Parker sentou-se ao lado dela, e o padre Wy c azik acom odou-se no banc o de
trás. Não rodar am nem dois quilôm etros quando ouvir am, pelo rádio, a notíc ia do
vazam ento de gás e do bloqueio da rodovia.
— Filhos da mãe, inc ompetentes, burr os... Talia aum entou o volum e do rá-
dio e ergueu a voz, para que os dois ouvissem, ao mesm o tempo, as notíc ia s e sua
opiniã o sobre os militar es. — Uma droga per igosa, e eles aí, nos cam inhões, para
lá e para cá, como maluc os! Em dois anos, é a segunda vez que esses venenos
pingam por aí!
Nem Parker nem Stef an conseguir am responder, sequer com um rápido
olhar de simpatia. Com eç ava o últim o ato da tragédia.
— E agor a? — ela perguntou vir ando-se um para o outro. — O que quer em
que eu faça?
— Há algum lugar onde possam os alugar um veíc ulo com traç ão nas qua-
tro rodas? Um jipe talvez...
— Há uma loja que vende jipes.
— E será que você nos levar ia até lá? — Parker perguntou, sorr indo.
— Eu e o “Velhão” podem os levá-los aonde quiser em, mesm o que caia m
canivetes.
0 vendedor não era color ido e anim ado como Talia; ao contrár io: Felix Schel-
lenhof era cinzento e sor umbátic o da cabeç a aos pés. Roupa cinzenta, voz cinzen-
ta. Disse a Parker que não alugavam carr os por dia. Clar o, tinham vár ios jipes à
venda, mas era impossível conc luir uma venda em vinte minutos. No caso de fi-
nanc ia m ento, prec isar ia m de vinte e quatro hor as para avalia r o crédito do com-
prador. Não aceitavam cheques de outros Estados. Só vendia m à vista e em di-
nheir o.
— Vou pagar com cartão de crédito — anunc iou Parker, enf ia ndo a mão
no bolso.
Impossível. A loja aceitava cartões apenas para a compra de acessór ios.
Nunc a, em tempo algum, apar ec er a alguém quer endo pagar um jipe inteir o com
cartões de crédito. Um carr o... media nte um simples retângulo de plástic o!
— Meu cartão não tem lim ite de compra. Veja... quando estive em Par is,
certa vez, passei por uma galer ia e vi um quadro de Dali exposto. Lindo! Custava
trinta mil dólar es... e a galer ia conc ordou em vendê-lo...
Com gestos de cinzenta polidez, Schellenhof levantou-se para dispensá-los.
— Pelo amor de Deus! Trate de nos vender esse jipe logo! — Stef an le-
vantou-se e esm urr ou a mesa, verm elho da testa ao pesc oç o. — E um caso de
vida ou morte. Pegue esse telef one e ligue para a empresa do cartão de crédito.
— Outro murr o na mesa. — Pergunte se autor izam a venda. Mas seja rápido! —
Deu o terc eir o murr o, def initivo.
A fúr ia divina, ou os músc ulos de Stef an, ou as duas coisas juntas convenc e-
ram o hom em. Sem dizer nada, ele pegou o cartão e corr eu para o telef one.
— Sim, senhor! — Parker exc lam ou, perplexo. — Se o senhor fosse um
desses pregador es que apar ec em na televisão, estar ia milionár io!
— Não estou inter essado em ser milionár io, mas já sac udi pelo
colar inho um ou dois pec ador es até fazê-los desc obrir em a verdade de Deus.
— Não tenho dúvidas...
Schellenhof voltou, menos cinzento do que antes, porque a venda fora apro-
vada e ele antevia a com issão. Trazia uma dúzia de form ulár ios e mostrou a
Parker onde assinar.
— Que sem ana... — quase sorr iu. — Na segunda-feir a me apar ec eu um
maluc o que comprou um jipe e pagou em dinheir o... um saco de notas de vinte
dólar es! Deve ter ganho no cassino. E agor a voc ês... A sem ana mal com eç ou!
— Que emoç ão! — Parker fez uma car eta e pôs-se a assinar os form ulár i-
os.
O padre Wy c azik apanhou o telef one e pediu à telef onista que fizesse uma li-
gaç ão a cobrar para Chic ago, em nome de Mic hae l Gerr ano. Mal o cura o aten-
deu, Stef an contou-lhe sobre Parker e o bloqueio da rodovia. Depois, aproveitan-
do-se do mom ento em que Schellenhof se afastou, disse algo que surpreendeu o
pintor:
— E possível que nos aconteç a algum a coisa ainda hoje. Portanto, no ins-
tante em que eu desligar, telef one para Sim on 2o-derm an, na redaç ão do Tribu-
ne, e conte-lhe tudo. Abra o jogo. Conte a ele as ligaç ões com o caso do polic ia l
Tolk, com Emmy Halbourg, com Cal Sharkle, tudo! Conte a ele o que aconte-
ceu em Nevada há quase dois anos, naquele ver ão. Conte-lhe o que eles vir am.
Se ele não acreditar, diga que falou com igo, que eu mandei você proc ur á-lo e
que eu sei que é tudo verdade. Sim on me conhec e e sabe que sou duro de con-
venc er.
Quando Stef an desligou, Parker arr egalou os olhos.
— O senhor... sabe? Sabe o que acontec eu no motel?
— Acho que sei. Eu explic o pelo cam inho.
Ned dir igia o jipe rumo a leste, com Sandy e Fay e ao lado, olhando para a
vasta imensidão branc a que par ec ia cobrir o mundo.
No banc o de trás, apertado entre Brendan e Jorj a com Mar eie no colo, Ernie
tentava convenc er-se de que não se render ia ao medo no mom ento em que as úl-
tim as frac as luzes do dia desapar ec es-
sem. Conf ia va nas lembranç as de Dom. Se este conseguiu lembrar-se dos
jatos, ele também poder ia e então estar ia livre para sempre.
— Chegam os à estrada munic ipal — Fay e anunc iou. Doze quilôm etros adi-
ante fic ava a entrada de Thunder Hill.
— Depressa, Ned — Sandy toc ou o braç o do mar ido.
Todos pensavam no mesm o problem a: estavam em plena estrada, a pouc os
quilôm etros de Thunder Hill. A qualquer mom ento podia apar ec er um guarda,
até por acaso, e desc obri-los.
Ned pisou no aceler ador, atravessou a estrada e voltou ao terr eno acidentado
do outro lado, fazendo tudo tão rápido que Bren-dan e Jorj a for am jogados sobre
Ernie, enc olhido no banc o. Novaihente esc onder am-se entre cortinas de neve e
rum ar am para a próxim a estrada munic ipal, dois quilôm etros a leste. Ali, afinal,
estar ia m a cam inho da últim a estrada, par alela à rodovia, que os levar ia a Elko.
Ernie espia va pela janela e via a noite chegando.
Não... era bobagem gastar energia numa fobia idiota. Como podia ter medo
do esc ur o quando tantas amea ç as rea is pesavam sobre sua cabeç a, sobre Fay e,
sobre os amigos? Era muito fác il perder-se no meio de uma tempestade, fora da
estrada. Era fác il não ver um bur ac o coberto de neve e cair antes de perc eber
o que se passava. Ned com certeza já adivinhava o per igo, pois agor a dir igia de-
vagar, atento aos acidentes do terr eno.
Vou tem er o que vale a pena tem er, Ernie pensou, franzindo a testa numa ca-
reta zangada. Não tenho medo do esc ur o, droga!
Como se ouvisse seu pensam ento, Fay e vir ou-se para trás e sorr iu para o
mar ido. Ernie fitou-a nos olhos e fez-lhe um sinal de positivo com o polegar, qua-
se sem trem er. Fay e ia dizer algum a coisa, chegou a levantar a mão para devol-
ver-lhe o sinal... e foi então que Mar eie gritou.
Sentado no esc ritór io de Thunder Hill onde trabalhava, nas entranhas da ter-
ra, o dr. Bennell pensava, mergulhado na penun-bra, terr ivelm ente preoc upado. A
únic a luz existente vinha da pequena janela que se abria para o vão central da
grande caverna
do segundo piso e era insuf ic ie nte para ilum inar o salão subterrâneo. Na
mesa, a sua frente, estavam as seis laudas datilograf adas que lera e reler a cente-
nas de vezes e quase conhec ia de cor: o perf il psic ológic o de Leland Falkirk, rou-
bado do computador central que guardava as fic has pessoa is dos soldados da
DERO esc alados para a segur anç a de Thunder Hill.
Doutor em biologia e quím ic a, estudioso de físic a e antropologia, músic o for-
mado em violão e pia no, autor de livros tão dif er entes quanto um tratado de neu-
ro-histologia e uma tese sobre a obra de John D. MacDonald, conhec edor de vi-
nhos finos, apaixonado pelos film es de Clint Eastwood — o que o credenc ia va
como o últim o dos ilum inistas vivos em pleno fim de séc ulo 20 —, Miles Ben-nell
era entre outras coisas uma autor idade mundia l de inf orm átic a. Uma paixão que
lhe vinha dos tempos de estudante.
Dezoito meses antes, quando o trabalho que o retinha ali o obrigou a ter fre-
qüentes contatos com Leland Falkirk, Bennell desc obrir a que o cor onel sof ria de
graves perturbaç ões mentais, que o tornar ia m inapto para o serviç o militar, não
fosse ele uma espéc ie muito rara de louc o. Leland sabia usar a própria louc u-
ra para transf orm ar-se em máquina efic ie nte e produtiva, sem deixar de com-
portar-se como se fosse norm al. A partir daí Miles dec idiu inf orm ar-se sobre ele.
Por que par ec ia sempre tão tenso? Que tipo de estím ulo o far ia desc ontrolar-se?
As respostas estavam nos computador es da unidade sob seu com ando, e Miles
com eç ou a usar seu próprio term inal para ter acesso aos arquivos da base
da DERO e aos dossiê s ultra-sec retos de Washington.
Quando afinal desc obriu o texto que tinha à sua frente, o perf il psic ológic o de
Leland Falkirk, sentiu calaf rios, mas dec idiu não abandonar o proj eto de Thunder
Hill, mesm o com risc o adic ional de ter que conviver com um hom em desequili-
brado e per igoso como o cor onel. Não havia per igo imedia to, desde que tratas-
se Falkirk com o respeito e a solenidade que sua louc ur a par ec ia exigir. Não podia
desc uidar-se; qualquer deslize, e Leland saber ia que havia algum a coisa por trás
da rever ênc ia. Mas não corr er ia tal risc o, desde que o tratasse com polidez e o
mantivesse a distânc ia.
Tudo corr eu razoa velm ente bem até que, de repente, Falkirk tom ou o poder,
assum iu o controle absoluto da oper aç ão. E ali estava Bennell, com o grupo de ci-
entistas reunidos para o proj eto, à merc ê de um louc o varr ido. Enterr ados vivos
em Thunder Hill, à esper a de que Leland dec idisse o que fazer com eles, julgan-
do-os conf orm e um código aluc inado de inoc entes e culpados.
0 psic ólogo militar — mais militar que psic ólogo — enc arr egado de redigir o
perf il do cor onel, esc revia mal e, embor a dec lar asse seu pac ie nte “exc epc ional-
mente apto” para cumprir suas funç ões, nao deixava de observar alguns fatos in-
trigantes. Para Mi-les, exc ej ente psic ólogo e cie ntista habitua do a ler nas entreli-
nhas, o texto era clar o. E terr ivelm ente assustador. Em prim eir o lugar, porque
afirm ava que Leland Falkirk tem ia e ao mesm o tempo desprezava todas as for-
mas de religiã o. Sabendo que, para muitos de seus colegas, o amor a Deus con-
fundia-se com o amor à pátria, o cor onel fizer a o possível e o impossível para
ocultar seus sentim entos anti-religiosos. A explic aç ão par ec ia simples: infânc ia
numa fam ília de fanátic os. Sintom a que, em muitos casos, não ser ia grave, mas
que, dadas as circ unstânc ia s do proj eto em pauta, tornava-se muito sér io. Porque
havia boa dose de mistér io e mistic ism o no segredo de Thunder Hill, o que talvez
dispar asse os mec anism os de rej eiç ão mais aluc inados de Leland Falkirk.
Além disso, Leland era obc ec ado pela nec essidade de controlar tudo e todos.
Sua nec essidade de manter o controle era uma compulsão, muito fac ilm ente ex-
plic ável, pois não passava de um ref lexo de medo de ser derr otado pelos próprios
fantasm as pessoa is. Sem um controle rígido, a louc ur a vir ia à tona, fazendo-o
perder as divisas, o prestígio e o poder.
Miles estrem ec eu, pressentindo a terr ível pressão que o segredo de Thunder
Hill exerc ia sobre aquele cér ebro doe nte. Como ninguém, Falkirk sabia que um
dia tal segredo ser ia desc oberto e divulgado aos quatro ventos, esc apando a seu
controle. A tensão era suf ic ie nte para que, de repente, o cor onel explodisse
por dentro para sempre, ou para fora — e neste caso ele se trans-
form ar ia numa bomba viva, com poder suf ic ie nte para destruir o planeta.
Em terc eir o lugar, Falkirk sof ria de claustrof obia aguda, que se acentua va em
loc ais subterrâneos. Resquíc ios de medo inf antil de “arder para sempre no inf er-
no”, como seus pais não cansavam de repetir. A claustrof obia levava-o a desc on-
fia r de qualquer pessoa que, como ele, vivesse nas prof undezas da terr a.
O pior fora deixado para o fim do relatór io: Leland Falkirk era masoquista
compulsivo. Gostava de sentir dor e medo. Isso poder ía levá-lo, sem pensar mui-
to, a adotar algum tipo de “soluç ão final” para si próprio e para todos os que co-
nhec ia m o segredo. Inventar ia algum a coisa como sac rif ic ar-se pela hum anida-
de, ou entregar-se para salvar o mundo... Só Deus sabe do que ser ia capaz!
Miles cobriu o rosto com as mãos e baixou a cabeç a. Não era o tem or à
morte que o desesper ava. Nem o medo de ver morr er em seus companheir os de
pesquisa. Era mais que isso. Se Falkirk resolvesse matá-los para que não revelas-
sem o segredo, estar ia negando a únic a chanc e de conseguir, depois de milênios,
venc er a fome, a misér ia, a morte e a dor. Estar ia roubando à hum anidade o prê-
mio da transc endênc ia.
Na cozinha dos Block, Leland Falkirk folhea va o álbum de Mar eie: luas e
mais luas, verm elhas, cor de sangue.
Do lado de fora do motel, doze hom ens da DERO vasc ulhavam o chão à pro-
cur a de pistas, passando inf orm aç ões um para outro, aos gritos, por causa do ven-
to que assobia va forte.
Respir ando compassadam ente, contando até três antes de deixar sair o ar dos
pulmões, num exerc íc io que sempre o fazia relaxar, Falkirk vir ava uma a uma as
páginas do álbum de Mar eie: luas verm elhas, centenas delas.
O tenente Horner subiu as esc adas e apar ec eu na porta da cozinha:
— Revistam os os vinte quartos do motel. Estão vazios. Eles esc apar am pelos
fundos. Há marc as de pneus na neve lá trás. Mas são muito frac as. Continua ne-
vando, e a neve está enc obrindo as marc as. De qualquer modo, eles não podem
estar longe.
— Mandou alguém atrás deles? — Falkirk perguntou.
— Ainda não. Mas reuni alguns hom ens, que só esper am suas ordens.
Leland respir ou fundo, um-dois-três, para dentro e para fora, até sentir que a
voz soa r ia calm a, norm al; então ordenou:
— Diga-lhes que saia m já.
— Sim, senhor. Vam os apanhá-los em menos de meia hora.
— Tenho certeza disso. — A voz, rigor osam ente sob controle, conf irm ava o
perf eito chef e militar no com ando de seus hom ens. — Depois de despac har os
soldados, enc ontre-me lá embaixo e leve um mapa de toda a regiã o. Eles estão
tentando chegar a Elko por algum a estrada munic ipal. Vam os desc obrir qual é e
interc eptá-los na metade do cam inho, quando menos esper ar em.
— Sim, senhor.
Horner desc eu, os passos apressados soa ndo pela esc ada. Falkirk voltou a fo-
lhea r o álbum. Já na rua, o tenente gritava instruç ões para os soldados. Outra fo-
lha coberta de luas verm elhas, e outra, e mais outra.
A frente do motel, os carr os acionavam os motor es. Oito hom ens, divididos
em dois grupos de quatro, um em cada carr o, partia m no enc alç o dos fugitivos.
Leland ainda folheou o álbum, toc ando com a ponta da unha os rec ortes co-
lados. De repente, sem mover um músc ulo do rosto, apanhou o álbum e jogou-o
com forç a contra a par ede. Alguns rec ortes soltar am-se e flutua r am no ar, antes
de cair num movim ento sua ve e ondulante. Sobre o apar ador, Falkirk viu
uma jarr a de cerâm ic a: um ursinho risonho com as patas dia nteir as sobre a bar-
riga. Apanhou-a e atir ou-a ao chão, fic ando a ouvir o tilintar dos cac os sobre as
laj otas. Bisc oitos espalhar am-se sobre as folhas arr anc adas do álbum, mistur an-
do-se aos cac os. Depois foi o rádio de pilha que voou na dir eç ão das lâmpadas e
espatif ou-se sobre o piso. O açuc ar eir o bateu na porta, esparr am ando seu conteú-
do para todo lado. A cesta de pão alvej ou a par ede. A caf eteir a autom átic a re-
bentou o vidro do fogão.
Na cozinha em desordem, apenas o ronc o da agitada respir a-
ção de Leland cortava o silênc io. Passada a fúr ia, o cor onel com eç ou a con-
trolar-se, inspir ando... um-dois-três, expir ando... um-dois-três. Calm am ente,
quando a respir aç ão se norm alizou, ele saiu da cozinha, desc eu a esc ada e apro-
xim ou-se da mesa onde Hor-ner o esper ava, sentado à frente do mapa aberto.
Calm am ente, os dois debruç ar am-se sobre a mesa e com eç ar am a planej ar a
oper aç ão de interc eptaç ão.
— A Lua! — Mar eie gritou. — Mam ãe... Olhe! A Lua! Mas, por quê, ma-
mãe?! Olhe só... a Lua!
Esbravej ando, sem par ar de gritar, a menina saltou do colo de Jorj a, que inu-
tilm ente tentou segur á-la. Assustado com os gritos, Ned brec ou o jipe. Mar eie es-
murr ava a janela, ao lado de Ernie, sem saber o que fazer para esc apar da lem-
branç a que com eç ava a voltar. Ernie agarr ou-a com forç a e entregou-a a Bren-
dan. A menina ainda gritava, presa entre os braç os do padre mas, aos pouc os, foi
se acalm ando até que par ou de gritar e rec om eç ou sua cantilena monótona:
— A Lua... A Lua... — Alguns instantes depois, voltou a agitar-se.
— Oh, não deixe que eles me peguem... Não deixe, por favor...
— Assustada, os olhos arr egalados, Mar eie saltou do colo de Brendan e
pendur ou-se ao pesc oç o de Ernie.
— Acalm e-se, quer ida... Está tudo bem. E clar o que não vou deixar que le-
vem você. Está tudo bem... — Ernie abraç ou-a, acar ic ia ndo-lhe a cabeç a.
Ned engrenou a marc ha, e o grupo outra vez mergulhou na esc ur idão da ne-
vasc a.
Depois de meses de terr or, desesper ado cada vez que pressentia a aproxim a-
ção da noite, Ernie pela prim eir a vez sentia-se feliz, em paz, desc obrindo que ha-
via alguém, no mundo, que prec isava muito de sua forç a e de sua cor agem. Es-
treitando a menina contra o peito, Ernie afagava-a e sec ava-lhe as lágrim as, fa-
lava baixinho para consolá-la. E esquec ia-se da noite, já esc ur a, já cobrindo o
mundo, colada aos vidros do jipe.
Jack dir igia a cam ioneta rumo a leste, até que, afinal, chegou
à estrada que Ned dever ia ter atravessado alguns minutos antes. Então do-
brou e rum ou para o depósito de Thunder Hill, seguindo o mesm o cam inho que
Dom e Ernie havia m perc orr ido de manhã.
Quanto mais subia m a montanha, mais forte nevava.
— Aquelas lâmpadas acesas, lá longe, são a entrada do depósito — inf or-
mou Dom, apontando duas lâmpadas de vapor de merc úr io que brilhavam vaga-
mente entre os floc os de neve.
Jack mal conseguia ver o perf il da guar ita, longe, além da cerc a. Desligou os
far óis e dim inuiu a marc ha, dando-se tempo para habitua r-se à falta de luz.
Quanto ao ruído do motor, não havia razão para se preoc upar, pois todos os ruídos
sum ia m, perdidos nos gem idos do vento. Pouc o se via do cam inho à frente, já
que os limpador es de pára-brisa estavam grudados aos vidros, pesados de neve,
com eç ando a congelar.
— Acho que poder ia m os acender os far óis — Ginger suger iu, a voz tensa,
os olhos colados à estrada.
— Nada disso. Tem os que ir no esc ur o até lá.
No motel, Leland Falkirk e o tenente Horner continua vam analisando as pos-
síveis rotas de fuga, quando voltar am os soldados enc arr egados de seguir as teste-
munhas. Não conseguir am acompanhar a trilha, por causa da neve e do vento.
As marc as dos pneus desapar ec ia m a pouc os quilôm etros dali. De qualquer
modo, havia indíc ios de que pelo menos um dos carr os rum ar a para o leste.
Como não havia motivo para supor que as testem unhas pretendessem separ ar-se,
a conc lusão óbvia era que os dois carr os seguia m na mesm a dir eç ão.
— Clar o, estão todos indo para Elko — Leland com entou, sem desvia r os
olhos do mapa. — E a únic a via de acesso para fora do Estado. As duas outras al-
ternativas, Battle Mountain ou Win-nem ucc a, são muito distantes e pequenas de-
mais para que eles possam esc onder-se lá.
O tenente Horner apontou para o mapa com o dedo gordo como um char uto.
— Esta é a estrada que passa por trás do motel e vai até Thun-
der Hill — explic ou. — Já devem ter chegado à estrada e estão seguindo
para o leste.
— Por onde ter ão que passar para chegar a Elko?
— Só há um cam inho... Vista Valley. Sete quilôm etros a leste da estrada
que vai até o depósito. — O tenente Horner levantou a cabeç a e olhou para
Falkirk.
O dr. Miles Bennell ouviu alguém bater à porta e gritou:
— Entre! Está aberta.
— O que está fazendo, sentado no esc ur o? — perguntou o gener al Alvar a-
do. — Se Falkirk o visse aí, mandar ia prendê-lo por “atitude suspeita”.
— Falkirk está louc o e você sabe disso, Bob.
— Desc obri tarde dem ais. Passei meses dizendo e repetindo que ele era
um exc elente ofic ia l, embor a muito preso aos manua is e “esquentado” dem ais.
Hoje à noite, por ém, desc obri que você tem razão. O hom em quer ir contra a
corr ente rem ando com um remo só. Acabo de rec eber um pedido dele. Na ver-
dade, uma ordem. Quer que todo o pessoa l residente em Thunder Hill seja rec o-
lhido aos aloj am entos e perm aneç a conf inado até “ordens poster ior es”. Dentro
de alguns minutos vou transm itir a ordem pelo sistem a de som da base.
— E ele não disse por que quer ia isso?
Alvar ado puxou uma cadeir a para junto da mesa e sentou-se. A luz que vinha
dos fundos da caverna ilum inava-lhe os pés, as pernas e metade do tronc o, mas
deixava o rosto mergulhado em penumbra.
— Está trazendo as testem unhas e não quer que ninguém alheio ao segredo
as veja. Não sei se é verdade, mas foi o que me disse.
Atônito, Bennell debruç ou-se sobre a mesa.
— Mas se ele está pensando numa segunda lavagem cer ebral, o melhor se-
ria manter as testem unhas no motel, como da outra vez — argum entou. — Você
sabe se ele já mandou cham ar os malditos “lavador es”?
— Tanto quanto sei, ninguém está sendo esper ado em Thunder Hill. Falkirk
não cham ou os monstros. Deve estar convenc ido de que não será possível manter
o plano original. Falou que é para você estudar cuidadosam ente dois deles, o pa-
dre Stef an e Dom Corvaisis. Disse que talvez já nao sej am hum anos. Mas disse
também que andou pensando na conversa que teve com você e chegou à conc lu-
são de que talvez você tenha razão e ele estej a sendo rigor oso dem ais... Quer que
você exam ine as testem unhas e faça um relatór io, espec if ic ando os dons que têm
manif estado. Dependendo do resultado, ele poder á poupá-las. Caso seu relatór io
não deixe margem a dúvidas sobre a real situa ç ão dessas pessoa s, Falkirk suspen-
der á a segunda lavagem cer ebral e enc am inhar á sugestões aos super ior es, em
Washington, rec om endando que o segredo seja divulgado.
--- É bom dem ais para ser verdade... Não acredito nele, Bob.
Miles estendeu a mão para acender as luzes, mas o gener al o deteve, pedin-
do:
— Não acenda, por favor. Assim, no esc ur o, é mais fác il falar com fran-
queza. — Cruzou os braç os, silenc iou por alguns instantes e perguntou: — Diga...
foi você quem mandou as fotos para Dom Corvaisis e para Block? — Como não
obtivesse resposta, continuou: — Som os amigos... Pelo menos, tenho tido a im-
pressão de que podem os conf ia r um no outro. Jam ais enc ontrei alguém com
quem pudesse jogar xadrez e pôquer... Você é bom nos dois. Por isso vou lhe con-
tar a verdade. Fui eu que atraí Jack Twist para cá.
— Você... mas como?! Por quê? — Bennell arr egalou os olhos.
— Soube que algum as testem unhas com eç avam a se lembrar e estavam
tendo problem as psic ológic os em funç ão disso. Achei então que só ter ia m chanc e
se vie ssem para cá e cria ssem tanta conf usão que as autor idades acabassem
obrigadas a revelar a verdade.
— Mas por quê?!
— Porque desc obri que é impossível mentir tanto.
— E resolveu sabotar o plano... de Falkirk. Poder ia ter sido mais dir eto. Fa-
lar com o chef e do Estado-Maior, por exemplo.
— Não quis corr er o risc o de desobedec er ordens super ior es. — Alvar ado
respir ou fundo. — Não quis arr isc ar minha aposen-
tador ia, que está próxim a, nem a pensão que sustenta minha fam ília. E tam-
bém... tive medo de que Falkirk mandasse me matar.
Miles vivia pensando na mesm a possibilidade.
— Com ec ei com Twist — prosseguiu o gener al porque é o únic o hom em
do grupo do motel com capac idade e exper iê nc ia de combate suf ic ie ntes para
organizar um exérc ito civil capaz de derr otar Falkirk. Quanto a desc obrir os ban-
cos, identidades e códigos, foi fác il. Bastou dar uma olhada nos arquivos do inter-
rogatór io e das sessões de lavagem cer ebral. Fíá até cópia s das chaves dos co-
fres. Idéia de Falkirk, para o caso de, algum dia, ser nec essár io chantagea r Jack
ou apresentar provas que o mandassem para a prisão. Em dezembro, quando tive
a folga de dez dias, fui para Nova York e enc hi os cof res com cartões-postais que
levei daqui. Foi fác il.
— E muito engenhoso... — Miles sorr iu, deslumbrado, para a sombra do
rosto do amigo. — Jack Twist deve ter enlouquec ido quando enc ontrou os postais.
E Falkirk jam ais desc obrir ia como os cartões entrar am nos cof res. Pelo menos
não poder ía provar nada contra você.
— Esper o que não. Tom ei todos os cuidados possíveis... nunc a toquei nos
cartões sem usar luvas, por exemplo. A idéia inic ia l era dar algum tempo para
Twist reorganizar as idéia s. Depois, bastar ia dar alguns telef onem as anônim os
para as testem unhas, falar-lhes sobre seus problem as psic ológic os, fornec er-lhes
o núm er o do telef one de Twist e suger ir que o proc ur assem. Foi então que soube
das fotos, e meu plano não prec isou seguir adia nte. Como Falkirk, também não te-
nho dúvidas de que o hom em que mandou as fotos continua em Thunder Hill e
conhec e o segredo. Como é? Vai se abrir, ou eu fico falando sozinho, como pec a-
dor em conf essionár io?
Bennell baixou os olhos para a mesa onde deixar a as laudas do perf il psic oló-
gic o de Falkirk. Respir ou fundo, rec ostou-se na cadeir a e dec lar ou:
— Gosto de jogar xadrez com você porque pensa como eu. E
gosto de jogar pôquer porque você é tão doido quanto eu... Dois gênios! E
verdade, amigo... Fui eu que mandei as fotos.
— Ah... — Alvar ado estic ou as pernas grossas e relaxou. — Agor a me sin-
to melhor. Mas... por que Corvaisis? E fác il entender que você quisesse cutuc ar os
Block. Afinal, vivem aqui, e as outras testem unhas acabar ia m chegando a eles.
Mas... Corvaisis?!
— Porque é esc ritor, um hom em de imaginaç ão. Cartas anônim as, falando
das crises de sonambulism o e dos sonhos que só ele conhec ia, e estranhas fotos
de gente desc onhec ida acabar ia m por despertar-lhe a cur iosidade e o far ia m re-
agir antes dos outros. Isso, sem falar que acaba de lanç ar um livro que os jornais
já com entavam antes do lanç am ento. Se Corvaisis prec isasse de espaç o na im-
prensa, ter ia mais fac ilidade em consegui-lo do que qualquer outro.
— Som os dois gênios...
— E... Genia is dem ais... O plano func ionou, mas foi um pouc o lento. Eles
prec isavam ter chegado antes. Ou talvez, se tivéssem os um pouc o de cor agem
para enf rentar Falkirk, não ser ia nec essár io arr isc ar tantas vidas.
— Por que acha que vim proc ur á-lo e contar tudo? — Alvar ado perguntou,
depois de um instante de silênc io.
— Porque prec isava de um alia do. Porque, como eu, você também não
acredita na regener aç ão de Falkirk. Não acredita que, de um instante para outro,
ele tenha-se transf orm ado em hom em sensato. E também não acredita que este-
ja trazendo as testem unhas para cá a fim de ser em exam inadas.
— Ele vai matar as testem unhas, os militar es e os cie ntistas que trabalham
aqui, com eç ando por nós dois. Vai nos matar a todos.
O alto-falante embutido toc ou uma sir ene de alerta, uma pequena luz verm e-
lha acendeu-se na par ede, e logo o subterrâneo foi invadido pela voz do gener al
Alvar ado: o pessoa l de serviç o em Thunder Hill dever ia rec olher-se aos aloj a-
mentos e lá perm anec er até ordens poster ior es. Antes disso, por ém, todos, civis
e militar es, devia m apresentar-se ao alm oxar if ado e identif ic ar-se para rec eber
arm as que levar ia m para os aloj am entos e usar ia m quando e como lhes fosse
oportunam ente indic ado.
Alvar ado levantou-se e aproxim ou-se do amigo.
— Ouviu? Quando estiver em arm ados e rec olhidos, vou reuni-los e com u-
nic ar-lhes que houve um motim lider ado por Falkirk e seus malditos assec las; que
a idéia de mantê-los conf inados foi de Falkirk, mas que a idéia de armá-los foi
minha.
— Quando Leland mandar seus cac horr os para a exec uç ão ger al, quer o
que nossos hom ens tenham uma chanc e de def ender-se. Mas esper o que consi-
gam os detê-lo antes de chegar a esse extrem o.
— Vou rec eber uma arma também? — Bennell ergueu-se.
O gener al dir igiu-se para a porta, mas par ou antes de abri-la.
— Você, antes de qualquer outro — respondeu. — Use um de seus aventais
de labor atór io, bem largos, e leve a pistola esc ondida na cintur a. Vou vestir meu
abrigo de inverno e também estar ei com a pistola esc ondida. Quando desc onf ia r-
mos que Falkirk está pronto para ordenar o massac re, faço-lhe um sinal... Eu
mato Falkirk, e você mata o tenente Horner. Não perc a um segundo, porque Hor-
ner tentar á nos matar tão logo perc eber que quer em os Leland. Quando eu sac ar
a pistola, Horner vai atir ar em mim... e é muito importante que eu sobreviva. —
Alvar ado vir ou-se e sorr iu. — Não só porque quer o gozar minha mer ec ida apo-
sentador ia, mas princ ipalm ente porque sou gener al e, com Falkirk morto, tenho
autor idade para ordenar que os hom ens da DE-RO deponham as arm as. Enten-
deu?
Miles fez que sim com a cabeç a.
— E está prepar ado? — perguntou o outro. — Acha que é capaz de matar
um hom em?
— Fique tranqüilo. Não vou deixar Horner acabar com você. Não só por-
que não quer o perder um grande parc eir o de xadrez e pôquer mas, princ ipal-
mente, porque você é o únic o gener al que conheç o que leu a obra completa de
T.S. Eliot.
— “Acho que chegam os ao fim do cam inho. Onde os mortos deixam os
ossos” — Alvar ado dec lar ou, com um sorr iso. — Veja -que ironia! Quando eu
era menino, há muito tempo meu pai di-
zia que minha “mania de poe sia” ia me tornar efem inado. Hoje, sou gener al
de cinc o estrelas e cito Eliot para agradec er ao hom em que prec isar á matar para
salvar minha vida... Vam os ao al-moxar if ado?
Bennell aproxim ou-se e, antes de sair, perguntou:
— Você está bem consc ie nte de que Falkirk cumpre ordens do com andante
do Estado-Maior do Exérc ito? Quando você o matar, o gener al Riddenhour e, tal-
vez, o próprio presidente vão cair em cima de você.
— Que se dane o com andante! — Alvar ado riu e pousou a mão no ombro
do amigo. — Que se danem os polític os, que quer em transf orm ar o Exérc ito num
clube de com adres fof oqueir as. Mesm o que Falkirk leve para o inf erno o código
de saída, em dois ou três dias estar em os fora daqui, nem que seja prec iso dina-
mitar a porta ou desm ontá-la, par af uso por par af uso. E então... ser em os os dois
hom ens mais importantes deste inf eliz planeta. Talvez duas das personagens mais
importantes de toda a Histór ia, em todos os tempos. Desde Mar ia Madalena, na
manhã da Pásc oa, ninguém teve notíc ia tão importante para contar ao mundo.
O padre Wy c azik enc arr egou-se de dir igir o jipe, uma vez que, desde o Vie t-
nã, tinha certa prátic a com veíc ulos de traç ão nas quatro rodas. Verdade que não
nevava no Vie tnã, mas o jipe é jipe. A pressa e a angústia com o que estar ia
acontec endo a Bren-dan fazia m-no esquec er o per igo e despertavam lembranç as
dos dias terr íveis do passado, quando transportava fer idos ou medic am entos por
estradas impossíveis com balas zunindo sobre a cabeç a. Voltavam-lhe a energia
da juventude, a forç a e a cor agem de seus prim eir os anos de carr eir a. Por isso
Deus o cham ar a para o sac erdóc io: às vezes, em mom entos de desesper o, um
padre prec isa ter músc ulos de aço, cor agem de leão e alma de aventur eir o.
Com a rodovia interditada, só lhes restava a estrada estadua l, que mal se via
debaixo da neve. Apenas os olhos-de-gato amar elos, à margem da estrada, sina-
lizavam o cam inho, e Stef an guiou-
se por eles. Para avanç ar rumo ao Motel Tranqüilidade, felizm ente conta-
vam com a bússola e o mapa da regiã o que havia m comprado.
Dur ante a via gem, o padre falou que sabia a respeito do relatór io menc iona-
do por Mic hae l Gerr ano; por fim, conc luiu:
— Pelo que me disse o tal senhor X, acho que o relatór io é um caso típic o
de malversaç ão dos fundos públic os... Um bando de cie ntistas... alguns razoa vel-
mente sér ios, outros completam ente doidos, reunidos para analisar as conseqüên-
cia s de um evento que, na opiniã o de todos, jam ais acontec er ia... Até que aconte-
ceu.
— Acontec eu... o quê? — Parker tir ou os olhos do mapa e vir ou-se para
Stef an.
— O bando autodenom inou-se Grupo de Estudos sobre Contatos de Terc ei-
ro Grau. O nome diz tudo, não acha?
Parker estava perplexo.
— Então... o que acontec eu... Não! Não pode ser! O senhor está dizendo
que... meu amigo Dom teve contato com... ser es de outro planeta?!
— Exatam ente... Algum a coisa desc eu do céu naquela noite, seis de julho
do ano retrasado.
— Jesus! — Parker coloc ou a mão na boca.
— Desc ulpe, não é nada pessoa l... Disse “Jesus” assim, por dizer... Não é
possível! Deus do céu... Puta que par iu! Perdão, padre, perdão! E que... merda...
é demaisl Nossa Senhor a...
— Acho que, dadas as circ unstânc ia s, Deus não vai se ofender com essa
mistur a de blasf êm ia s que você está vom itando... — ria Stef an. — O que inter es-
sa é que o tal grupo, conhec ido por alguns como GETRAU, passou anos estudan-
do o que acontec er ia à hum anidade se, por acaso, a Terr a fosse invadida ou visi-
tada por ser es de outro planeta.
— Mas que besteir a! Gastar massa cinzenta para desc obrir uma coisa que
qualquer cria nç a acostum ada a ver film es de ficç ão cie ntíf ic a responder ia na
hora! Ser ia fantástic o, mar avilhoso, lindo... desc obrir que não estam os sozinhos
no espaç o! Eu sei, o senhor sabe, qualquer idiota sabe... Desc ulpe mais uma vez...
O senhor não é idiota, só eu.
— Talvez. De qualquer modo, você há de conc ordar que uma coisa é ver se-
res extraterr estres no cinem a, e outra, bem dif er ente, é enc ontrá-los em casa, à
noite. A verdade é que vár ios cie ntistas veem nesses contatos algum as amea ç as
graves. Antropólogos e histor ia dor es observam o seguinte: ao entrar em contato
com cultur as mais evoluídas, as cultur as prim itivas tendem a sof rer um colapso
em suas instituiç ões... Os prim itivos perdem a fé nos valor es de seu mundo, nos
dir igentes, nos próprios deuses. Isso acontec eu com os esquim ós, por exemplo,
quando os branc os invadir am suas terr as. Cresc er am assustador am ente as taxas
de alc oolism o entre a populaç ão, a fam ília desintegrou-se, aum entou o núm e-
ro de suic ídios. E não pense que os branc os quer ia m acabar com os esquim ós.
Clar o que não! Chegar am como amigos... Mas levavam uma cultur a mais sof isti-
cada, mais complexa... O contato foi devastador para os esquim ós. Perder am o
orgulho, a auto-estim a, e jam ais se rec uper ar am. E o GETRAU acha que a mes-
ma coisa poder ia acontec er com todos nós se depar arm os com uma cultur a su-
per ior.
Stef an par ou de falar e, no mesm o instante, brec ou o jipe. A estrada acabava
de repente.
Parker acendeu a luz interna, debruç ou-se sobre o mapa, estudou-o por al-
guns instantes e, apontando para a esquerda, disse:
— Por ali. Vam os rodar quatro quilôm etros para oeste, atravessar a estrada
de Vista Valley, voltar para o chão bruto e seguir adia nte, uns dez quilôm etros, até
chegarm os ao Motel Tranqüili-dade, pelos fundos.
— Fique de olho nesse mapa. Deus só ajuda a quem se ajuda — proc la-
mou Stef an, rec oloc ando o veíc ulo em movim ento.
Após alguns mom entos de silênc io, Parker voltou ao assunto:
— O tal senhor X entrou nesse tipo de detalhe com o padre Gerr ano? Falou
sobre os esquim ós... sobre a posiç ão de GETRAU...?
— Disse algum as coisas...
— ... e outras o senhor mesm o conc luiu...
Stef an sorr iu, calou-se por instantes e dec lar ou:
— O problem a dos contatos entre dif er entes cultur as preoc upa os jesuítas
há vár ios séc ulos. Tem os pensado sobre o assunto, para desc obrir se fizem os mais
bem ou mais mal às cultur as que proc ur am os, ao longo dos séc ulos, na tentativa
de convertê-las à nossa religiã o. Em alguns casos, é dif íc il saber se fizem os o pa-
pel de mensageir os de Deus... ou do dia bo.
— Estam os indo para o norte. Trate de corr igir a rota para a esquerda, o
mais rapidam ente possível — interr ompeu-o Parker.
Stef an obedec eu e, pouc o depois, retom ou o assunto:
— Pense, por exemplo, nos índios amer ic anos. Não foi a aguardente ou as
arm as dos branc os que os destruír am... foi o choque de cultur as. Novos valor es,
novas técnic as de sobrevivênc ia obrigar am os índios a rea valia r seus valor es tra-
dic ionais... e, inf elizm ente, fez com que se sentissem atrasados, pobres, derr ota-
dos. O senhor X disse ao padre Gerr ano que a conc lusão do GETRAU era exata-
mente essa: o contato de nossa cultur a, no atua l estágio de progresso, com outra
cultur a extraordinar ia m ente desenvolvida poder á levar o planeta à autodestrui-
ção, à perda da fé nas instituiç ões.
— Bobagem... — Parker fez uma car eta. — O senhor ter ia sua fé abalada
por um contato com gente de outro planeta, ainda que sej am bilhões de anos
mais avanç ados do que nós?
— Não! — Stef an retesou as costas no banc o e olhou para o céu, o rosto
ilum inado. — Muito pelo contrár io! Talvez minha fé sof resse abalos se, algum
dia, se comprovasse que som os os únic os ser es pensantes nessa vastidão inf inita.
Nossa solidão talvez dem onstrasse que surgim os de um átom o que se juntou a ou-
tro por acaso, que cresc eu por acaso e deu no que deu por acaso. Mas, se desc o-
bríssem os vida em outros planetas, provar ía m os def initivam ente a existênc ia de
Deus, cria ndo vida, sem ea ndo seus filhos em todos os lugar es. Deus existe porque
ama a vida... Ele nao deixar ia o espaç o vazio...
— Muita gente pensar ia como o senhor.
— Ainda que a espéc ie que vie sse nos visitar tivesse uma apar ênc ia muito
dif er ente da nossa, eu não me assustar ia. Deus nos
criou à Sua imagem... não à imagem físic a, mas à espir itua l. Deu-nos capa-
cidade de pensar, compaixão, amor, amizade... por essas qualidades é que som os
como Ele. E isso que prec iso dizer a Bren-dan... — Impac ie nte, o padre esm ur-
rou o volante. — Estou convenc ido de que sua crise de fé tem algum a relaç ão
com isso. Ele teve contato com ser es dif er entes de nós... de cultur a espantosa-
mente super ior à nossa... E conc luiu que não fom os todos cria dos à imagem de
Deus. Sua fé caiu por terr a. Entende agor a por que estou tão ansioso para enc on-
trá-lo? Prec iso dizer-lhe: não importa a apar ênc ia físic a, não importa a super ior i-
dade cultur al. O que importa é saber se os ser es que ele viu têm capac idade de
amar ao próxim o, de inter essar-se sinc er am ente pela sorte dos irm ãos, de usar a
inteligênc ia super ior que Deus lhes deu para enf rentar com cor agem as dif ic ul-
dades da vida.
— Não ter ia m chegado até aqui se não fossem assim... — observou Parker,
respir ando fundo, o rosto sér io.
— Clar o! — Stef an exc lam ou. — Acho que a lavagem cer ebral não per-
mitiu que Brendan ref letisse sobre suas prim eir as emoç ões. Mas, quando ele se
lembrar do que viu e tiver tempo para pensar, chegar á à mesm a conc lusão. E eu
quer o estar com ele, para ajudá-lo.
— O senhor gosta muito de Brendan, não é?
Atento ao terr eno que se estendia a sua frente, branc o e quase impenetrável,
o padre Wy c azik não respondeu. Mom entos depois, desabaf ou, numa voz extre-
mam ente sua ve:
— As vezes me arr ependo de ter me tornado padre. Deus que me perdoe,
mas é verdade... As vezes, penso na fam ília que pode-ria ter construído... uma
esposa que partilhasse com igo as dor es e as alegria s da vida, que me desse filhos,
que os visse cresc er, a meu lado. E a únic a coisa que me fez falta... uma fam ília.
Só isso, nada mais. Brendan, para mim, é o filho que nao tive e nunc a ter ei. Gosto
muito dele... mais do que você pode imaginar.
Parker ouviu em silênc io, os olhos no mapa, pensativo. De repente, sentenc i-
ou:
— Esse GETRAU é uma besteir a. As conc lusões do relatór io são ridíc ulas.
Não há contato de terc eir o grau que possa destruir o planeta.
— Também acho — Stef an conc ordou. — O erro de rac ioc ínio é simpló-
rio... eles pensam que nossa cultur a está para a dos extraterr estres como a dos es-
quim ós para a dos branc os. Os esquim ós eram prim itivos... mas nós não som os!
O contato, em nosso caso, se dar ia entre uma cultur a avanç ada e outra mais
avanç ada. O relatór io afirm a que, na hipótese de ocorr er um contato desse tipo, o
acontec im ento dever ia ser mantido em segredo por dez ou vinte anos. É óbvio
que isso também não está certo. A hum anidade há de suportar o choque, porque
está madur a para o enc ontro. Deus... há quanto tempo esper am os por elesl
— Há séc ulos... — Parker suspir ou.
Dur ante algum tempo, sac olej ando no jipe, tentando evitar os acidentes do
terr eno, os dois fic ar am em silênc io, sem enc ontrar palavras para expressar seu
deslumbram ento ante a fantástic a desc oberta: não estavam sozinhos no universo.
Parker limpou a garganta, ver if ic ou a bússola e inf orm ou:
— Estam os perto. Menos de um quilôm etro à frente devem os enc ontrar a
estrada de Vista Valley. — Calou-se e, um segundo depois, perguntou: — O que
foi que o hom em de Chic ago, o tal Calvin Sharkle, gritou da janela?
— Que viu pousar uma nave extraterr estre tripulada por ser es hostis... que
tinha medo de ser levado para a nave... que todos os vizinhos estavam contam ina-
dos. Gritou também que os ser es estranhos o amarr ar am numa cama e... entra-
ram em seu corpo pelas veia s do braç o. Quando ouvi contar isso, cheguei a pen-
sar que Cal estava certo... os extraterr estres podia m ter chegado como inim igos.
Mas depois com ec ei a pensar. Sharkle estava conf undindo a aterr issagem da nave
e o medo que sentiu com o ataque dos soldados que o prender am à cama e o dro-
gar am para fazer a lavagem cer ebral. As coisas devem ter se passado mais ou
menos assim: a nave pousou, todos se assustar am e logo apar ec er am os soldados
nos traj es de labor atór io, cobertos da cabeç a aos pés, para levá-los presos. Cal
não foi preso pelos alie nígenas, mas pe-
los soldados; na conf usão mental provoc ada pelas drogas, tudo se mistur ou.
— O senhor acha que os soldados usavam equipam ento adequado para evi-
tar uma possível contam inaç ão bacter iológic a?
— Exatam ente. Talvez alguns hóspedes do motel tenham-se aproxim ado da
nave... o que fez os soldados suspeitar em de contam inaç ão. Sei ao certo que al-
guns hóspedes do motel lembram de haver mantido contato com gente vestida de
um modo estranho, com roupas que, depois, a doutor a Ginger Weiss identif i-
cou como traj es “vedados”, do tipo usado em labor atór ios de pesquisas para evi-
tar contam inaç ão por bactér ia s. O pobre Calvin enlouquec eu porque lhe tir ar am
a chanc e de lembrar-se dos fatos como rea lm ente acontec er am.
— Estam os a menos de quinhentos metros da estrada. — Parker acendeu a
lâmpada da cabine.
A neve continua va, implac ável. Por vezes, quando o vento dim inuía ou mu-
dava de dir eç ão, os floc os gir avam de um lado para o outro e acabavam desapa-
rec endo, como fantasm as bailar inos.
— Uma nave desc eu... — murm ur ou Parker, pensativo. — E o governo sa-
bia que algum a coisa estava para acontec er... Tanto sabia que bloqueou a rodovia
minutos antes... Talvez já estivessem perseguindo a nave desde longe... Mas não
consigo entender como acertar am... A tripulaç ão da nave não poder ia ter alter a-
do o curso?
— Não — Stef an respondeu. — O governo tem satélites de observaç ão
muito distantes da Terr a. Só ser ia possível prever o loc al de pouso se a nave esti-
vesse seguindo um curso determ inado, em queda livre, por exemplo... se a tripu-
laç ão estivesse morta.
— Pelo amor de Deus! Não quer o nem pensar que eles via j ar am tanto
para se esbbrr ac har aqui, neste fim de mundo!
— Nem eu...
— Quer o viver para desc obrir que eles chegar am vivos e bem... sej am lá
quem for em!
O jipe derr apou, desc eu alguns metros, mas, outra vez, conseguiu seguir adi-
ante na esc alada.
— Quer o desc obrir — Parker continuou — que Dom e os outros não vir am
uma nave cheia de cadáver es. Mas chegar am a falar com os extraterr estres.
Imagine... Imagine só!
— Acho que naquela noite acontec er am fatos muito estranhos. Mais estra-
nhos, até, do que ver desc er do céu uma nave de outro planeta.
— O senhor acha que... esses fatos explic ar ia m os poder es de Dom e Bren-
dan?
— Talvez. Não tenho dúvidas de que acontec eu algo mais, além de um
simples enc ontro.
Par ar am ao chegar ao topo da colina e olhar am em volta. Apesar da neve,
Stef an viu far óis acesos, pouc os metros abaixo, na estrada de Vista Valley. Quatro
carr os, estac ionados em círc ulo, os feixes amar elados das luzes dos far óis cortan-
do a cortina de neve, desenhando grades na vastidão branc a. O padre engrenou a
marc ha e com eç ou a desc er o acostam ento para atingir a estrada; tinha a nítida
impressão de que não conseguir ia chegar.
— São... metralhador as! — Parker gritou.
Dois hom ens próxim os à luz estavam arm ados, as metralhador as apontadas
para um grupo de seis adultos e uma cria nç a, todos vir ados de frente para um
jipe idêntic o ao que Parker havia comprado, apenas de cor dif er ente. Outros oito
ou dez hom ens fec havam o círc ulo à volta do jipe, todos vestindo o mesm o tipo
de abrigo contra o frio. Eram os soldados que bloquea r am a rodovia hor as antes
— e também na noite de 6 de julho do ano retrasado.
Todos, soldados e prisioneir os, voltar am a cabeç a para a estrada assustados
com a introm issão.
Stef an chegou a pensar em manobrar rapidam ente e pisar fundo para esc a-
par dali. Mas logo conc luiu que não havia fuga possível: os soldados os agarr ar i-
am, ou os matar ia m a tir os.
Foi quando rec onhec eu Brendan.
— E ele! — exc lam ou. — Brendan! Está ali... o últim o da fila!
— Os outros também devem estar saindo do motel. — Parker aproxim ou-
se do vidro para ver melhor. — Mas Dom não está com eles.
agor a que já havia enc ontrado Brendan, o padre Wy c azik não sair ia mais de
perto dele, nem mesm o se Deus lhe abrisse um cam inho dir eto para o Canadá,
como fizer a no mar Verm elho para Moisés. Pena que estava desarm ado. Afi-
nal... era padre e nunc a conf ia r a em arm as de fogo. Nao podia fugir, nem quer ia
atac ar... Na indec isão, deixou o veíc ulo deslizar lentam ente, enc osta abaixo, en-
quanto dava voltas e voltas na cabeç a tentando desc obrir como com eç ar a con-
versa.
— Mas... o que vam os fazer?! — Parker segur ou-se no banc o.
O dilem a dur ou pouc o, para surpresa e desesper o de Stef an. Um
dos soldados arm ados vir ou-se e abriu fogo contra o jipe.
Sem falar, Dom observava Jack Twist, de lanterna na mão, exam inando a
cerc a de aram e farpado que se erguia acim a de suas cabeç as. Estavam na área
em que a cerc a se estendia em terr eno aberto, desc endo para o fundo do vale. A
grossa tram a de aram e farpado estava inc rustada de gelo em vár ios pontos, mas
Jack conc entrava-se nas partes onde a neve não se acum ular a.
— A cerc a não é eletrif ic ada — avisou, elevando a voz acim a do zumbido
do vento. — Não há fios condutor es entretec idos no aram e, que, aliá s, é muito
grosso para servir de condutor; e ainda há pontas soltas. Não há dúvida... a cerc a
não é eletrif ic ada.
— Mas... — Ginger perguntou — e os dizer es na estrada?
— Só estão lá para afugentar amador es. — Jack aproxim ou o feixe de luz e
fez um sinal para que ela olhasse de perto. — Mas também são verdadeir os, por-
que, embor a a cerc a não seja eletrif ic ada, há fios condutor es esc ondidos nos ro-
los de aram e farpado 4ue fic am entre os dois lados da cerc a, ali por cima. Se al-
guém te ntar pular, vai morr er frito. Vam os passar por baixo.
Ginger segur ou a lanterna enquanto Dom tir ava de um dos sac os de lona o
maç ar ic o de acetileno e entregava-o a Jack, que ajei- ava 0s oculos de proteç ão,
na verdade simples óculos de esquia dor ^om o visor pintado. O ruído agudo do
maç ar ic o era audível apesar Ve nto, e a cham a azulada cria va um halo ao redor
do grupo.
Estavam longe da estrada de Thunder Hill, num ponto da cerc a onde dif ic il-
mente ser ia m vistos. Mas, ref letida na neve, a luz do acetileno brilhava mais do
que norm alm ente, e Dom tem ia que, de repente, chegassem os guardas. De
qualquer modo, valia a pena tentar, pois, se Jack estivesse certo e a segur anç a
fosse eletrônic a, nem as câm ar as ser ia m de grande utilidade numa noite de ne-
vasc a, porque as lentes estar ia m cobertas de neve e gelo. Pelo sim, pelo não, se
por acaso fossem apanhados e “convidados” a entrar, nem tudo estar ia perdido...
e eles se enc ontrar ia m dentro de Thunder Hill.
Nem Ginger, nem Dom, nem Jack estavam arm ados. Todo o arsenal de que
dispunham fora entregue ao grupo do jipe, que prec isava esc apar ao cerc o. O
plano de Jack dependia de que os sete companheir os chegassem a Elko e, dali, to-
massem rum os dif er entes, para fazer sua parte do trabalho. Se fossem captur a-
dos, o plano frac assar ia.
Jack continua va curvado junto à cerc a, cortando o aram e com o maç ar ic o, a
luz azulada ref letia nos óculos. Foi a luz que fez Dom mergulhar novam ente no
passado.
O terc eiro jato passa ronc ando sobre o restaurante, voando baix o, muito bai-
xo. Dom está no chão, o rosto esc ondido. Mas o avião não cai. Voa baix o ainda
por alguns metros e, de repente, sobe em direç ão ao céu, deix ando junto ao chão
o cheiro quente de combustív el queimado e o calor das turbinas inc andesc en-
tes. Ainda ganha altura quando aparec e o quarto jato, com luzes vermelhas e
branc as, ronc ando por cima do telhado do motel, abrindo enormes feridas na es-
curidão da noite. Voa para o sul, depois altera o curso e ruma para o leste, por
cima das barric adas que bloqueiam a rodov ia, seguindo a trilha do terc eiro jato.
Os primeiros dois jatos já estão de volta, voando mais baix o do que na primeira in-
cursão, mas não se aprox imam do motel; separam-se a meio caminho, indo cada
um para um lado. A terra ainda estremec e sob a carga do desloc amento de ar e
ainda se ouve o ronc o, às vezes mais perto, às vezes mais longe, como uma bomba
sendo armada para explodir; inc hando, inc hando sempre, sem nunc a rebentar.
Jack acha que outros jatos de aprox imam... Mas ha também o zumbido, agudo, es-
tranho, impossív el de ser loc alizado, pois parec e vir de todos os lados. Não é baru-
lho de motor a jato. Dom lev anta-se e olha em volta. Vê Ginger, Jorja e Mareie.
Jack aprox ima-se, correndo, saindo do motel. Ernie e Faye saem correndo do es-
critório... e os outros! Todos os outros, Ned, Sandy... O zumbido cresc e... lembra o
fragor de cataratas, porém é mais agudo, como um milhão de pífaros soprados em
uníssono; corta o ar como uma serra elétric a. Dom vasc ulha o céu a proc ura
dos jatos, cobre os ouv idos, olha para o alto, aponta e grita:
* — Vejam... A Lua! A Lua\
Todos acompanham seu olhar, Dom rec ua alguns passos, tremendo de horror.
Alguém grita...
— A Lua!
Dom acabou despertando com o som dos próprios gritos.
Estava deitado na neve, derr ubado pelo susto daquele instante de lembranç as.
Ginger sac udia-o pelos ombros, perguntando:
— Você está bem?
— Acho... que me lembrei de algum a coisa. Mas não sei dir eito o que é. Os
jatos, não sei...
Passos adia nte, Jack acabava de abrir cam inho através da cerc a. Desligou o
maç ar ic o, e a noite desc eu outra vez, como um imenso manto pardo.
— Vam os em frente — disse para os outros. — Daqui em dia nte estam os
na toca da onça.
— Dá para andar? — Ginger perguntou a Dom.
— Dá... — respondeu ele, mas o estôm ago dava-lhe voltas e o cor aç ão pa-
rec ia congelado. — De repente, não sei por quê, fiquei com medo.
— Todos nós estam os com medo...
— Não, não estou com medo de ser apanhado aqui. Não... E outra coisa.
Uma coisa da qual estive muito perto, agor a. Quase me lembrei... e estou tre-
mendo como vara verde. Meu Deus!
Brendan mal acreditou quando ouviu o cor onel Falkirk ordenar ao soldado
que abrisse fogo contra o jipe que se aproxim ava pela estrada. Que louc ur a! Ele
nem sabia quem podia estar se aproxim ando. O soldado também não acreditou,
tanto que nem toc ou na arma. Mas Falkirk aproxim ou-se dele, aos berr os:
— Obedeç a, cabo! Este é assunto de segur anç a máxim a! Envolve problem as
de segur anç a nac ional. Seu país em risc o! Quem é que você pensa que pode an-
dar por aí, nessa estrada, com uma noite assim? Boa gente não há de ser. Atir e
para matar!
Então o cabo obedec eu. A raj ada de metralhador a cantou na noite, por um
instante, mais alto que o vento. Os far óis do jipe apagar am-se; desgovernado, o
veíc ulo ganhou veloc idade e desc eu em dir eç ão ao grupo. O vidro do pára-brisa
estilhaç ou-se sob a chuva de balas. O jipe aproxim ava-se, cada vez mais rápido,
até que bateu numa pedra, saltou para frente e par ou a pouc o mais de um metro
de Falkirk. A neve continua va a cair.
Cinc o minutos antes, quando Ned, chegando pela outra pista da estrada, do-
brar a à dir eita para cair dir eto na arm adilha de Falkirk, todos perc eber am que as
arm as que Jack lhe dera de nada valer ia m. Nem a metralhador a, nem as pistolas,
nada... Sabendo que a vida de todos dependia de que chegassem a Elko, ter i-
am tentado enf rentá-los, se não estivessem cerc ados por um verdadeir o exérc ito,
arm ado até os dentes. Não havia resistênc ia possível.
Brendan, angustia do, pensava se não caber ia a ele e a seus poder es telec iné-
tic os a tar ef a de livrá-los da morte. Talvez conseguisse arr anc ar as metralhador as
das mãos dos soldados. Mas, e se não desse certo? Não esquec ia que, na vésper a,
no restaur ante, os poder es havia m esc apado de qualquer controle, e só por sorte
não acontec er a algo de mais grave. Se falhasse, os soldados abrir ia m fogo contra
o grupo, para se def ender. Ou as própria s metralhador as, como os saleir os, voa r i-
am sozinhos, dispar ando a esmo até esgotar-se a muniç ão. E se alguém fosse fe-
rido? E se ele, Brendan, fosse morto e não tivesse tempo de salvar os outros? Dif í-
cil ganhar um dom complic ado, sem instruç ões de uso...
Ao ver o jipe desc endo a estrada como um anim al fer ido, Bren-
dan adivinhou desgraç a. Estava com medo... de Falkirk, do veíc ulo desgover-
nado e de si mesm o. Talvez, para sentir-se melhor, pudesse soc orr er as pessoa s
que via j avam no jipe. Tinha que tentar, custasse o que custasse! Era seu dever,
como padre e como hom em. Também não entendia o mistér io que fazia suas
mãos estanc ar em o sangue, mas a exper iê nc ia par ec ia-lhe menos arr isc ada. En-
tão, aproveitando que os soldados estavam voltados para o jipe metralhado, afas-
tou-se do grupo, contornou o veíc ulo de Jack e dispar ou a corr er pela estrada.
Corr eu, esc orr egou na neve, caiu, levantou-se e seguiu.
Nao ouviu tir os a suas costas, apenas gritos.
O banc o ao lado do motor ista era o mais próxim o. Um hom em corpulento,
com a testa enc ostada na porta entrea berta, tatea va à proc ur a de algum a coisa
onde pudesse apoia r-se para desc er. Não estava morto, mas tinha duas grandes
manc has de sangue no peito. Usava um pesado casac o do unif orm e da Mar inha.
No instante em que Brendan o tir ou do jipe e o deitou na neve, um soldado
aproxim ou-se, com a cor onha da metralhador a erguida para golpeá-lo na cabe-
ça.
— Saia daqui! — Brendan gritou, erguendo-se de um salto, os punhos cer-
rados. — Vou cur ar este hom em. E não tente me impedir. Suma!
Falkirk chegou a tempo de segur ar a cor onha da metralhador a, evitando que
o soldado atingisse Brendan:
— Isso, padre. Vá em frente. Quer o ser testem unha ocular de seu crim e.
— O quê? — Brendan não entendeu.
— Nada. Faça seu “servic inho”.
Nem prec isar ia ordenar. Antes que acabasse de falar, Brendan ajoe lhou-se
ao lado do hom em desm aia do. Abriu-lhe o casac o, ergueu a malha e desabotoou
a cam isa xadrez. Enc ontrou dois fer im entos: um no ombro esquerdo e o outro,
maior, perto da cintur a, à dir eita. Prec isava tratar prim eir o do fer im ento no ab-
dom e.
Mas... como?l Não conseguia lembrar-se do que fizer a para cur ar Emmy ou
Tolk. O que havia acontec ido? Não sabia... não se lembrava de nada, além de que
sentir a impotênc ia, frustraç ão, horr or. A morte quer ia levar uma menina linda,
um hom em justo e trabalhador... Não! Não podia ser... Era horr ível dem ais, terr í-
vel dem ais... Tinha que lutar... Mas era tão frac o, sozinho contra o mundo, contra
a morte! Não! A morte prec isava ser venc ida, pela glór ia da vida, pela glór ia de
Deus!
Sentiu as palm as das mãos aquec er em-se. Os anéis rea par ec er am.
Sem nec essidade de olhar, pousou as mãos sobre a fer ida do hom em. E pe-
diu a Deus, ou quem lhe tivesse dado o poder, que o ajudasse a salvá-lo.
Então sentiu a corr ente que se estabelec ia entre suas mãos e o hom em deita-
do a sua frente, a energia que lhe fluía das veia s e andava pelos dedos até atingir
a pele. A energia em seu corpo tom ava a form a de uma espir al, que gir ava, fa-
zendo surgir um fio que o ligava ao hom em. Ao redor dos dois tec ia-se um manto
protetor contra a dor e a morte. Dessa vez, ao contrár io do que acontec er a com
Emmy e Winton Tolk, Brendan sentia-se plenam ente consc ie nte da forç a que
emanava de suas mãos. Sabia que, agor a, estava rem endando os tec idos dilac e-
rados, rec ompondo músc ulos, rec onstruindo veia s, cria ndo sangue.
A medida que conseguia acompanhar o proc esso de cic atriza-ção desenc a-
dea do por suas mãos, desc obria que era capaz de outras mar avilhas. Com Winton
e Emmy, o proc esso fora mais lento. Por ém o hom em deitado a sua frente, com
o abdom e pratic am ente cic atrizado, abria os olhos, respir ava bem, tentava levan-
tar-se. Dizia algum a coisa que não entendia bem:
— Por favor... o padre... está fer ido. Vá atendê-lo antes. O padre Wy c azik
está no jipe...
— Wy c azik?! — Aproxim ou o ouvido dos lábios do hom em. Não... não era
possível! O que o padre Wy c azik estar ia fazendo em Nevada, num jipe, no meio
da noite?!
— Vá depressa — o hom em repetiu.
Brendan corr eu, empurr ando soldados e metralhador as. A porta do motor ista
estava emperr ada. De um salto, subiu à janela,
segur ou-se como pôde e saltou sobre o capô, de frente para o pára-brisa esti-
lhaç ado. Com o jipe tombado, era impossível alc anç ar o hom em preso ao volan-
te. Então Brendan voltou à porta e forç ou-a. Impossível abri-la; par ec ia soldada à
carr oc er ia. Brendan fec hou os olhos, toc ou o trinc o e, simplesm ente, desejou que
a porta se abrisse... e ela esc anc ar ou-se, com um ruído ásper o de metal amassa-
do.
O corpo deslizou lentam ente para fora e caiu em seus braç os. Brendan dei-
tou-o sobre a neve. De olhos abertos, o padre Wy ca-zik já não olhava para esse
mundo. Contemplava outra dim ensão, nos prim eir os passos da vida eterna.
T - N ÃO... — BRE NDAN GE ME U. — N ÃO...
Tinha um fer im ento na cabeç a, junto à têmpor a dir eita, por onde a bala en-
trar a para sair atrás da orelha. Não era um fer im ento mortal, mas o outro... na
garganta... era. Um bur ac o, pouc o abaixo do pomo-de-adão, mostrando a carne
dilac er ada; o sangue esc ur o com eç ava a coa gular.
Ainda assim, trêm ulo, Brendan pousou as mãos sobre o pesc oç o de Stef an,
sentiu cresc er em as ondas de energia que havia m cur ado Emmy, o patrulheir o
Tolk, o desc onhec ido de instantes atrás. Milhões e milhões de longos fios de luz e
cor corr endo-lhe nas veia s, chegando a suas mãos, outra vez tec endo a vida. Sen-
tiu nos dedos o toque frio da pele de seu únic o grande amigo, seu guia, seu mes-
tre. E logo perc ebeu que não poder ia salvá-lo. O poder dependia da empatia com
a vida que ainda lutava. Sem a partic ipaç ão ativa da outra metade, Brendan era
apenas a fia ndeir a de um cordão que não tinha como ser usado. Os fios continua -
vam, mas o tear deixar a de tec er.
O padre Wy c azik estava morto há alguns minutos, provavelm ente desde que
o jipe se desgovernar a. Brendan desc obria que podia cur ar fer idas, mesm o as
mais terr íveis, apenas enquanto houvesse vida; jam ais conseguir ía fazer o que
Cristo fizer a com Lázar o. Pôs-se a chor ar. Soltou um prim eir o soluç o, tenso, de-
sesper ado, depois outro, um terc eir o, até que se levantou e olhou para o
céu. Murm ur ava palavras que supunha ter esquec ido:
— “Santa Mar ia, mãe de Deus, rogai por nós, pec ador es, agor a e na hora
de nossa morte...”
Estava rezando outra vez, nem inc onsc ie ntem ente, nem por hábito. Rezava,
como tantas vezes na vida, com a convicç ão doce e prof unda de que a Mãe de
Deus ouvir ia seu desesper o surdo e, alia ndo seus poder es aos dele, o ajudar ia a
fazer reviver o padre Wy c azik. Se em algum mom ento perder a a fé, rec onquista-
va-a naquele instante, intata, perf eita. Acreditava e pedia de todo o cor aç ão.
Ajoe lhado na neve, as mãos pousadas sobre a fer ida ainda úmida, mas já
fria, sem par am entos, sem os traj es eclesiá stic os, Bren-dan rezava à Virgem,
Mar ia Imac ulada, Nossa Senhor a, Mãe e Protetor a dos Desampar ados, Rosa
Místic a, Estrela da Manhã, Torr e de Marf im, Saúde dos Doe ntes, Consolo dos
Aflitos.
— “Mãe de miser ic órdia, rogai por nós...”
Dem or ou alguns instantes para compreender que Deus levar a para sempre
seu velho amigo. Continuou rezando baixinho, mas afastou as mãos da monstruo-
sa fer ida no pesc oç o de Stef an, e afagou-lhe o rosto gelado. Uma gigantesc a
onda de dor o suf oc ava, lágrim as ardentes queim avam-lhe as fac es.
— Então, o senhor desc obriu que seus poder es não são ilim itados — Falkirk
com entou, rindo a suas costas. — Ótim o! Muito bom! Mas agor a mexa-se! Junte-
se aos outros.
Brendan voltou-se, fitou-o nos terr íveis olhos gelados que tanto o assustar am
e, sem se mover, dec lar ou:
— Meu amigo morr eu sem tempo de conf essar-se. Sou padre, como ele, e
vou cumprir os ritos religiosos que ele mer ec e e que eu desej o ofer ec er-lhe. Se
quiser me matar, pode mandar seus soldados atir ar em em mim pelas costas.
Caso resolva esper ar, eu me reunir ei aos outros quando acabar.
Deu as costas a Falkirk e desc obriu que, de repente, voltavam-lhe as frases,
em latim, da oraç ão pelos mortos.
Jack abriu uma trilha estreita na cerc a de aram e; como nenhum dos três era
gordo, não tiver am dif ic uldade em chegar ao outro lado, depois de empurr ar os
sac os de lona.
Seguindo rigor osam ente suas intruç ões, Dom e Ginger par ar am
bem junto à cerc a, enquanto Jack exam inava o terr eno ao redor com a ajuda
de seu binóc ulo de visão inf raverm elha. Proc ur ava desc obrir as câm ar as de tele-
visão ou os alarm es com células fo-toe létric as. Apesar do vento e da neve que
tornavam a pesquisa muito mais dif íc il do que se a noite estivesse limpa, conse-
guiu desc obrir duas câm ar as que cobria m a área a partir de dois dif er entes pon-
tos. Era provável que tivessem as lentes cobertas de neve, mas, ainda assim, não
convinha arr isc ar. Em compensaç ão, não havia sinal de células fotoe létric as.
Jack tir ou de um dos bolsos do abrigo um apar elho não maior que uma car-
teir a de dinheir o: um voltím etro extrem am ente sof istic ado, capaz de detectar a
passagem de corr ente elétric a num fio sem prec isar toc ar nele. Vir ou-se de cos-
tas para a cerc a e apontou o voltím etro para o terr eno; ajoe lhou-se, estic ou o bra-
ço e avanç ou alguns metros, devagar. O apar elho era sensível a qualquer sinal de
arm adilha fotoe létric a ou term oe létric a, ainda que enterr adas a meio metro de
prof undidade, mas não registrar ia um emissor enc apsulado. De qualquer modo,
Jack tentava loc alizar uma fonte que dif ic ilm ente estar ia enc apsulada e não ser ia
afetada pelas cam adas de neve, antiga ou mais rec ente. Prec isou avanç ar ajoe -
lhado apenas três metros, e logo o detector soou, fazendo acender uma pequena
lâmpada cor de âmbar. Jack par ou e cham ou Gin-ger e Dom.
— Fiquem perto de mim — disse. — O terr eno está minado. Alarm es sen-
síveis a pressão estão enterr ados à prof undidade de cinc o ou seis centím etros. São
acionados pelo peso de quem pisar no terr eno, a partir de três metros de cerc a,
em toda a volta. E uma teia de fios envolta em plástic o fino, de baixa volta-
gem. O alarm e é acionado sempre que qualquer cria tur a com mais de vinte ou
vinte e cinc o quilos pisa num dos “ninhos” e rompe o contato. O peso da neve não
o aciona, porque a neve está unif orm em ente distribuída por toda a rede. Para
acionar o alarm e, o peso deve loc alizar-se numa pequena área.
— Até eu peso mais que vinte e cinc o quilos — com entou Gin-ger, balan-
çando a cabeç a. — A rede de fios é muito extensa?
— Cobre uma faixa de três metros, no mínim o. — Jack respondeu. — A
idéia é impedir que um espertinho como eu desc ubra as minas e resolva saltar
sobre elas até o outro lado.
— Não sei o que você está pensando, mas gar anto que eu não posso fazê-
los voa r em para lá — disse Dom, tentando sorr ir.
— Não sei... — Jack vir ou-se para ele. — Talvez, se tivéssem os tempo, va-
lesse a pena testar seus poder es. Se você faz cadeir as voa r em para o teto, talvez
possa nos teletransportar por cima das minas. Mas não há tempo para testes... Va-
mos ter que voar a minha moda.
— O que quer dizer... “a minha moda”? Como? Acha que...
— Não, doutor a. — Jack abaixou-se e com eç ou a tir ar coisas da sac ola. —
Não acho nada... sei que vam os voar dentro de dez minutos. — Levantou-se e
deu alguns passos junto à cerc a, ainda distante da área minada. — Vam os enc on-
trar uma árvor e do outro lado, com um galho razoa velm ente grosso que se esten-
de sobre o terr eno. Se possível, uma árvor e que estej a vinte ou trinta metros da-
qui.
— Para quê? — Dom franziu as sobranc elhas.
— Já vai ver.
— E se não enc ontrarm os uma árvor e? — Ginger perguntou.
— Trate de pensar positivam ente. Quando eu disser que prec isam os de
uma árvor e, diga logo que vam os enc ontrar uma flor esta inteir a. Ou fique de
bico fec hado.
A árvor e perf eita estava trinta metros à frente, na colina que desc ia em dir e-
ção ao vale: um pinheir o alto e sólido, com os galhos bem separ ados, exatam ente
como Jack quer ia, maj estoso e coberto de neve. Com o binóc ulo, Jack vasc ulhou
cada centím etro de pinheir o, até enc ontrar um galho que servisse para o que pla-
nej ava: grosso e resistente, passando a pouc os metros de altur a da cerc a, depois
da área minada. Perf eito para atua r como pilar de uma ponte de corda. Jack dei-
xou de lado o binóc ulo; apanhou o ganc ho que tir ar a do saco de lona e levava
preso ao cinto, e o grosso fio de náilon, com um centím etro de diâm etro, que en-
rolar a no braç o — itens que, entre outros, Fay e e Ginger havia m
comprado em Elko pela manhã. Prendeu o fio no ganc ho, com um nó firm e,
e testou o arr anj o. Perf eito. Usado por alpinistas prof issionais, o fio de náilon era
capaz de suportar o peso dos três juntos. Voltou a testar o nó. Fixou uma das pon-
tas do fio sob a bota, para evitar que lhe esc apasse, e prepar ou um laço com a
extrem idade onde atar a o ganc ho.
— Afastem-se um pouc o — pediu.
Movendo o braç o devagar, acim a da cabeç a, fez gir ar o laço com o ganc ho
em movim entos cada vez mais amplos e mais rápidos até soltá-lo na dir eç ão do
galho que esc olher a. O fio voou sobre a área das minas com um zumbido que
cortava a neve e enganc hou-se no alvo com prec isão, Jack enr olou a ponta que
perm anec ia presa sob a bota num dos montantes da cerc a de aram e, depois de
exam iná-lo detidam ente e ter certeza de que não tinha sensor es ou câm ar as. Deu
duas voltas em torno do montante e, usando todo o peso do corpo, puxou o fio de
náilon até deixa-lo bem estic ado e reto. Pediu a Ginger e Dom que o ajudassem
a puxar e, então sim, amarr ou-o à volta do montante.
Estava pronta uma razoá vel ponte de corda, que os far ia “voar” sobre a área
das minas. Jack tinha que ser o prim eir o a passar, para exam inar o terr eno e pla-
nej ar a etapa seguinte. De um salto, ergueu os braç os, pendur ou-se e balanç ou-se
para a frente e para trás, até ganhar impulso para alc anç ar o fio com os pés e
cruzar os calc anhar es sobre ele. De branc o, no abrigo de frio, mãos en-luvadas,
par ec ia um grande urso polar brinc ando na neve, o rosto vir ado para o céu, as
costas par alelas ao chão. Andando cadenc ia-dam ente, mãos e pés, como uma
minhoc a gigante, fez uma prim eir a dem onstraç ão, foi até a metade do cam inho
e voltou.
— E isso — disse. — Eu vou na frente com as duas sac olas maior es. Dom
vai por últim o, e você, Ginger, é a segunda. Cada um leva uma das sac olas me-
nor es, presa às costas, como moc hila.
— Vai ser fác il. — Ginger prec isou de ajuda para alc anç ar o fio, mas, de-
pois de pendur ada pelas mãos, logo conseguiu prender-se pelos tornozelos e riu.
— Clar o que vam os conseguir! São só nove ou dez metros!
— Você está em exc elente form a, doutor a. — Jack ergueu os olhos para ela.
— Quando chegar aos três metros vai sentir que seus braç os estão sendo arr anc a-
dos do corpo. Ao dez, será capaz de jur ar que já for am arr anc ados.
Algum a coisa na atitude de Brendan em relaç ão à morte do velho amigo
choc ou o cor onel Leland Falkirk. Havia tal indignaç ão em seus olhos, tanta dor
em sua voz calm a e contida que era quase impossível duvidar de que ele ainda
fosse hum ano.
O medo do contágio devor ava-o. Leland tinha visto muitas coisas estranhas
naquela nave, e os cie ntistas desc obrir am outras mais. As preoc upaç ões eram
mais do que justif ic adas... embor a não o fosse a louc ur a. De qualquer modo, era
dif íc il acreditar que Brendan estivesse fingindo. Logo ele, o dos poder es mais es-
quisitos, um dos princ ipais suspeitos de estar possuído! Como entender o poder de
cur ar, senão como a possessão de um corpo hum ano por uma mente dia bólic a?
Conf uso e aturdido, o cor onel andou alguns passos, par ou ao lado do padre
ajoe lhado junto ao cadáver do amigo, ouviu a prec e em latim, balanç ou a cabe-
ça e tentou organizar os pensam entos. Viu as outras seis testem unhas ao lado do
jipe de Jack Twist. Viu seus soldados, aparvalhados, sem saber o que fazer, dividi-
dos entre o dever de obediê nc ia e o sentim ento de solidar ie dade para com o pa-
dre. Viu o desc onhec ido que chegar a com o velho pár oc o andando de um lado
para o outro, angustia do, mas vivo, inteir o. Um autêntic o milagre, digno de ser
festej ado. Por que tem er um prodígio como aquele?!
Leland sabia o que estava esc ondido em Thunder Hill. E o fato de conhec er o
segredo obrigava-o a ver os fatos com olhos dif er entes. A cura era uma arm adi-
lha, uma farsa para conf undi-lo, para levá-lo a pensar como ser ia vantaj oso co-
labor ar com o inim igo, para induzi-lo à não-resistênc ia e à rendiç ão inc ondic io-
nal. Ofer ec ia m ao mundo o fim da dor, a vitór ia sobre a morte em quase noven-
ta por cento dos casos de acidentes e fer im entos graves. Mas... como entender a
vida sem dor? Como deixar o hom em sonhar com o fim
do sof rim ento? Todos os sonhos acabavam em ruína, e só o sof rim ento e inf i-
nito, inexor ável. E não há dor maior do que ver ruir um sonho. Melhor não aca-
lentar ilusões, não alim entar esper anç as. O hom em nasc e e morr e com dor... Por
isso tem que viver também com ela, porque a dor é a essênc ia da hum anidade. A
sanidade e a sobrevivênc ia dependem de aprender a conviver com o sof rim ento.
De que adia nta resistir à fatalidade ou sonhar com o impossível? E prec iso venc er
o medo, venc er a dor... e fugir dos falsos Messia s que apar ec em, aqui e ali, pro-
metendo um mundo melhor, transc endente, mais feliz. Desc onf ia r, desc onf ia r
muito.
Mais calm o, Leland voltava a ser o hom em de sempre.
No grande cam inhão de transporte de tropas do Exérc ito, Jorj a pensava e ob-
servava. O cam inhão tinha dois longos banc os de metal, um dia nte do outro, e um
terc eir o, mais curto, enc ostado à divisão da cabine do motor ista. De longe em
longe, pendur adas no teto, havia alç as de cour o onde os passageir os podia m segu-
rar-se. No banc o menor, jazia o corpo do padre Wy c azik, amarr ado com cordas
presas na carr oc er ia e nos ganc hos do teto. Nos outros dois banc os, sentavam-se
Jorj a, Mar eie, Brendan, Ernie, Fa-y e, Sandy, Ned e o únic o rec ém-chegado so-
brevivente, Parker Faine. Em circ unstânc ia s norm ais, a porta do cam inhão fe-
chava-se por dentro, com uma tranc a de ferr o, para perm itir que, em caso de
acidente, os soldados pudessem sair. Mas o cor onel Fal-kirk mandar a tranc ar a
porta por fora, com cadea do, e guardar a a chave. Jorj a sentia-se como numa
cela de prisão... e, na esc ur idão, com eç ava a desesper ar-se.
Todos imaginar am que Ernie fosse desm aia r ou enlouquec er, obrigado a via -
jar à noite, dentro de uma cabine esc ur a. Mas ele par ec ia bem, de mãos dadas
com Fay e, a respir aç ão quase norm al. Apenas uma vez deu mostras de perder o
controle, mas a crise lim itou-se a ligeir a falta de ar rapidam ente super ada.
— Estou com eç ando a me lembrar dos jatos de que Dom falou — disse ele,
pouc o depois que o cam inhão com eç ou a movim entar-se. — Eram quatro, pelo
menos, voa ndo muito baixo... Então, acon-
tec eu algum a coisa que não consigo lembrar... Depois, corr i para o estac io-
nam ento, entrei na cam ionete e dispar ei para a rodovia, rumo ao lugar onde esti-
vem os... o lugar tão espec ia l para Sandy e para mim... É tudo, por enquanto. Mas
já perc ebi que, quanto mais lembro, menos medo do esc ur o sinto...
Leland não deixar a guardas no cam inhão, talvez porque achasse arr isc ado
dem ais deixar um ou dois hom ens fortem ente arm ados na companhia daqueles...
monstros! Depois de fazê-los entrar no cam inhão, estiver a a ponto de ordenar a
exec uç ão de todos, e Jorj a sentir a o estôm ago contrair-se de ansie dade. Mas pa-
rec eu acalm ar-se de repente e mandou o veíc ulo andar. Jorj a, por ém, estava
certa de que ele os matar ia no instante em que chegassem ao fim da via gem, que
ninguém imaginava onde acabar ia.
Aos berr os, Falkirk perguntar a por Dom, Ginger e Jack. Ninguém respondeu.
Como louc o, ele se aproxim ou de Mar eie, segur ou-a pelos cabelos e disse que, se
não falassem, tortur ar ia a menina até a morte. Ernie saltou do banc o, voc if er ou,
disse que Falkirk envergonhava sua farda e, cabisbaixo, acabou dizendo que Jack,
Dom e Ginger saír am do Motel Tranqüilidade com destino a Battle Mountain, na
esper anç a de chegar a Reno.
— Fic am os com medo de que seus soldados já estivessem bloquea ndo as es-
tradas — Ernie continuou, sempre cabisbaixo — e pref er im os não arr isc ar tudo
numa jogada só...
Não era verdade. Por um instante, Jorj a pensou em saltar sobre o pesc oç o de
Ernie e gritar-lhe que não arr isc asse a vida de Mar eie com mentir as idiotas...
mas perc ebeu que Falkirk acreditava. Ernie inventou tantos detalhes que Leland
acabou mandando os soldados saír em para investigar.
No cam inhão, aos solavanc os, Jorj a agarr ava-se a uma das alç as de cour o e
segur ava Mar eie junto ao corpo. Aos pouc os, a menina par ec ia despertar da le-
targia dos últim os dias, dava sinais de quer er atenç ão e car inho, abraç ava-se com
forç a à mãe. Ainda estava longe da alegria e da vitalidade de antes, mas com e-
çava a restaur ar os laç os com a rea lidade, esc apando do abism o negro em que
mergulhar a.
Jorj a ser ia capaz de jur ar que nada, ou ninguém, conseguir ia fazê-la par ar
de pensar nos problem as de Mar eie, até que Parker com eç ou a explic ar como e
por que ele e o padre Wy c azik havia m chegado até ali. Falou-lhes de Calvin
Sharkle, de como Bren-dan transm itir a os poder es de cura e telec inese para Win-
ton Tolk e Emmy Halbourg...
— ... e agor a, talvez, também para mim... — conc luiu baixinho, com tal
deslumbram ento na voz, que Jorj a se esquec eu da filha, do mundo, de tudo.
Depois, Parker falou-lhes do GETRAU. Disse que, quase com certeza, uma
nave espac ia l pousar a no terr eno em frente ao Motel Tranquilidade. Uma nave,
ou algum a outra coisa, desc er a do céu... e o mundo nunc a mais voltar ia a ser o
mesm o.
— Uma nave do céu... — Fay e murm ur ou, pensativa, mas logo gritou: —
Você está louc o! Não é possível!
Quando Fay e se acalm ou, Sandy bateu palm as e riu alto, feliz.
— Estou me lembrando — disse, ainda rindo. — Os jatos passar am, o últi-
mo voa va muito baixo... Nós tínham os corr ido para o pátio, e o chão continua va a
trem er, como se fosse um terr em oto. O ar vibrava... — Sua voz também trem ia,
num misto de deslumbram ento e terr or, ao mesm o tempo euf ór ic a e assustada.
— De repente, Dom olhou para cima, para o lado do restaur ante, e gritou... “A
Lua, a Lua!” Todos nos vir am os e vim os a Lua, mais brilhante do que nunc a,
branc a de doer os olhos. Par ec ia que estava caindo sobre nós. Oh, Deus... Voc ês
não se lembram?! Não se lembram do que foi olhar para o céu e ver a Lua se
aproxim ando?!
— Eu me lembro... — Ernie murm ur ou, rever ente. — E clar o que me
lembro...
— E eu também... — A voz de Brendan.
Jorj a teve um flash de lembranç a: uma Lua enorm e, muito brilhante, aproxi-
mando-se do telhado do motel.
— Alguém gritou — Sandy rec om eç ou. — Alguns corr er am. A Terr a tre-
mia cada vez mais, o ronc o era cada vez mais forte. Sentía m os a vibraç ão nos
ossos. Um ruído como o de uma cha-
leir a fervendo, mistur ado com o bar ulho de centenas de metralhador as, e o
zumbido de um vento fortíssim o... Mas não estava ventando. Sempre um zumbido
e um trovão, aproxim ando-se... De repente, a Lua fic ou ainda mais brilhante, o
estac ionam ento par ec ia ilum inado por um milhão de lâmpadas. E, de repente,
a Lua mudou de cor! Fic ou verm elha, cor de sangue, verm elha... Foi quando per-
cebem os que não era a Lua... era outra coisa...
Jorj a viu, como num film e, a Lua mudando de cor, do branc o mais brilhante
para um rubro denso e lum inoso. Foi a prim eir a barr eir a que ruiu. As dem ais fo-
ram caindo, uma após outra. Inac reditável que houvesse visto as luas verm elhas
de Mar eie e não se lembrasse de nada. As lembranç as, agor a, fluía m como um
rio. Jorj a trem ia de medo do que ainda estava por vir, mas sentia o cor aç ão bater
aceler ado, exultante.
— Então ela surgiu por trás do restaur ante — Sandy prosseguiu, como num
transe. — Voa ndo muito baixo, como os jatos. Mas lenta, muito lenta, como um
zepelim que vi uma vez na televisão. Era impossível entender... Qualquer um via
que era pesada, mil vezes mais pesada que um zepelim. Mas ela vinha, bela e
lenta... Adivinham os que era... que tinha que ser... que não era deste mundo.
Jorj a fec hou os olhos e apertou Mar eie contra o peito, lembrando-se de
como a abraç ar a naquela noite, os olhos erguidos para o céu. Uma luz verm e-
lha... mas ser ena, inac reditavelm ente bela. O chão trem ia, Sandy estava certa:
quando vir am que a Lua não se aproxim ava da Terr a, adivinhar am a verdade. A
nave não era como os disc os-voa dor es do cinem a e da televisão... não tinha nada
de espantoso... além do fato de existir. Nada de plac as color idas, nada de calotas
de luz ou feixes de vapor, nada de arm as como nos film es de ficç ão cie ntíf ic a. A
luz verm elha envolvia-a toda, como um campo de forç a que a fazia flutua r.
Não fosse isso, a nave par ec er ía simples, antiquada, apenas um grande cilindro
com quinze ou vinte metros de comprim ento por quatro ou cinc o de diâm etro, as
bordas arr edondadas como dois batons usados unidos pelas bases. Espantosam en-
te simples, gasta pelo
tempo e pelas dif ic uldades da via gem. Jorj a via-a desc er, como no ver ão re-
trasado, por cima do restaur ante, na dir eç ão da rodovia; os jatos zunia m ao redor,
metros acim a, voa ndo de um lado para outro. Como naquela noite de 6 de julho,
sentia o cor aç ão dispar ar, no lim ia r de uma porta que revelar ia o sentido da
vida... com os dedos na chave.
— Ela desc eu do outro lado da rodovia — continuou Sandy, respir ando fun-
do. — Bem no loc al que visitam os... o lugar espec ia l para Ernie e para mim. Os
jatos voa vam como mosc as tontas. Tínham os que ir até lá! Oh, Deus! Nada ou
ninguém, deste mundo ou de outro, nos impedir ía de ir até lá! Corr em os para o
estac ionam ento e fom os...
— Eu e Fay e fom os no cam inhão do motel — Ernie disse, a voz solta, a
respir aç ão norm al. — Dom e Ginger estavam conosc o... e também o jogador de
pôquer, Lom ack, de Reno. Por isso ele esc reveu nossos nom es nos pôster es...
Como Dom contou. A lembranç a da corr ida de cam inhão até a nave deve ter-lhe
derr ubado o bloqueio.
— Jorj a, o mar ido, Mar eie e alguns outros hóspedes for am conosc o, na tra-
seir a da cam ionete — Sandy contou. — Brendan, Jack e mais alguns hóspedes
for am de carr o. Pessoa s que nem se conhec ia m cham avam-se umas às outras,
ofer ec endo car ona... E que já não éram os estranhos, eu acho. Par am os no acos-
tam ento. Carr os que vinham de Elko também par ar am. Gente corr ia pela estra-
da. Estac ionam os numa curva, subim os na grade de proteç ão e olham os. A nave
não brilhava como antes, estava se apagando. Alguns arbustos fum egavam, o ca-
pim estava todo queim ado, mas até nos aproxim arm os o fogo há havia desapar e-
cido. Era estranho... ninguém falava, nem gritava, nem olhava para os lados. Es-
távam os em silênc io, como que esper ando... à beir a de um prec ipíc io, quer endo
saltar, e sabendo que saltar não nos far ia cair. Prontos para voar, eu acho... Não
sei... Voc ês sabem o que quer o dizer!
Jorj a sabia: a sensaç ão quase insuportável de deslumbram ento e exaltaç ão.
Como se a hum anidade, presa havia séc ulos numa
jaula esc ur a, de repente visse abrir em-se as portas da eternidade, desc obrin-
do que, no futur o, as noites não ser ia m tão esc ur as nem tão apavor antes.
— Fiquei par ada — Sandy voltou a falar —, vendo aquela nave de luz, tão
linda, tão... impossível... na planíc ie. E entendi que as desgraç as de minha infân-
cia... a dor, o desesper o, a vergonha... não tinham mais importânc ia. Meu pai já
não me dava medo. — A voz vac ilou, emoc ionada. — Não vejo meu pai desde
meus catorze anos... Mas tinha pesadelos e vivia com medo de que, de repente,
ele apar ec esse... e me arr astasse para a cama... como antes. Sei que par ec e as-
neir a, mas às vezes nem conseguia dorm ir com medo de sonhar com ele... Na
rodovia, olhando para a na-‘ve, naquele silênc io, os jatos voa ndo alto, como pás-
sar os distantes... desc obri que, se meu pai apar ec esse um dia, eu não ia tre-
mer porque já sabia como ele é: um pobre hom em doe nte, um grão de areia
numa praia enorm e.
A libertaç ão, Jorj a pensou, os olhos mar ej ados. A libertaç ão dos horr or es do
passado, dos medos, do desesper o. Ainda que os tripulantes da nave não trouxes-
sem resposta para nenhum a das questões que atorm entam a hum anidade, sua
simples presenç a, ser ena e bela, era já a resposta que todos esper avam.
Chor ando de alegria, a voz de Sandy vibrava na esc ur idão:
— A imagem da nave me fez desc obrir que eu também era alguém, apesar
de suja, coberta de pec ados e vergonha. Entendi que todos som os pouc a coisa,
que ninguém é muito mais importante que os outros... e, ainda assim, som os uma
raça espec ia l, uma raça que, algum dia, poder á voar pelo espaç o e chegar até o
lugar de onde aquela nave partiu. Grãos de areia, sim, todos nós, mas com um
grande destino... Será que voc ês entendem o que quer o dizer? — Calou-se por um
mom ento, suf oc ada pelos soluç os. — Foi isso que pensei, que a vida é feita de es-
per anç a num mundo melhor — conc luiu baixinho, a voz frac a. — E então com e-
cei a chor ar e rir, como louc a...
— Também me lembro de tudo — dec lar ou Ned, voltando-se para a mu-
lher: — Estávam os par ados na curva da estrada. Você
me abraç ou... e disse que me amava! Foi a prim eir a vez, desde que nos co-
nhec em os! Eu sabia que você me amava... mas você nunc a disse antes! Foi bem
ali, dia nte de uma nave que acabava de desc er do céu! E sabe o que é mais es-
tranho? Com você abraç ada a mim, dizendo que me amava... eu já nem ligava
para a nave! A únic a coisa importante que acontec eu naquela noite foi você... —
Respir ou fundo, proc ur ando controlar a emoç ão — dizendo que me amava de-
pois de tantos anos.
Na esc ur idão, Ned abraç ava a mulher, e ambos chor avam juntos. Após al-
guns mom entos, ele voltou a falar alto, tenso:
— E os desgraç ados me roubar am esse mom ento! O melhor mom ento de
minha vida! Você, dizendo que me ama... Ah! Mas consegui rec uper á-lo... As
lembranç as agor a estão com igo. Ninguém, nunc a mais, vai tirá-las de mim.
— E eu que ainda não consigo me lembrar de nada! — Fay e exc lam ou,
fur iosa. — Tenho que lembrar! Sou parte disso, como voc ês!
Ninguém retruc ou. No silênc io da noite, o cam inhão avanç ava.
Jorj a, outra vez, fec hou o olhos e deixou o pensam ento voar. A simples des-
coberta de que havia uma inteligênc ia super ior obrigava a ver de uma perspecti-
va nova a luta da hum anidade: a violênc ia da dom inaç ão, a esc ravidão dos mais
pobres ou mais frac os, a suposta super ior idade de determ inada raça, os banhos
de sangue para impor certas idéia s... tudo par ec ia inf initam ente pequeno e inú-
til. As religiões que pregavam a igualdade de todos per ante Deus sobre-viver ia m,
mas as que pregavam a urgênc ia de todos se prostrar em dia nte de falsos ídolos,
essas estavam condenadas. Sem poder explic ar, mas sentindo em cada fibra do
corpo, Jorj a intuía que a visita dos extraterr estres far ia a hum anidade se unir,
como uma grande fam ília. Os hum ildes ser ia m respeitados, os doe ntes tratados,
os inf elizes consolados, como irm ãos. Sem rei, sem governo.
Uma nave desc er a do céu. E com eç ava a asc ensão da hum anidade.
— A Lua... — Mar eie murm ur ou baixinho, o rosto esc ondido no peito da
mãe.
Era o mom ento de consolá-la, abraç á-la e dizer-lhe que as coisas com eç a-
vam a melhor ar, que logo ela também se lembrar ia de tudo e estar ia livre dos
pesadelos e dos farr apos de lembranç as que a atorm entavam. Mas era cedo para
cria r falsas esper anç as: enquanto estivessem à merc ê de Falkirk, não podia m pre-
ver o amanhã.
— Lembro-me de mais algum a coisa — disse Brendan. — Sei que desc i o
acostam ento da rodovia, cam inhando para a nave. Ela ainda brilhava um pouc o,
como âmbar. Havia mais gente com igo... Fay e, Ernie, Ginger e Dom. Mas só
Ginger e Dom se aproxim ar am da nave, com igo. Quando chegam os bem perto...
vim os uma porta... em arco... aberta...
Jorj a lembrava que também quis ir, mas teve medo de levar Mar eie e não
podia deixá-la para trás. Sentiu vontade de gritar que tom assem cuidado, e ao
mesm o tempo, que não se acovardassem, não tivessem medo, seguissem adia n-
te. Não deu um passo, vendo-os aproxim ar em-se do portal dour ado.
— Par am os dia nte da porta — Brendan continuou —, esper ando que al-
guém saísse, mas ninguém apar ec eu. A luz, a mar avilhosa luz dour ada que eu via
em sonhos, lá estava, nos cham ando. Tínham os muito medo. Então ouvim os os
motor es dos helic ópter os que se aproxim avam, como aves agour entas. Sentim os
que havia pouc o tempo, que o Exérc ito invadir ia a nave tão logo os helic ópter os
pousassem. A luz nos cham ava...
— Voc ês entrar am na nave! — Jorj a lembrou-se.
— Entram os. Nós três.
Um mom ento impossível, inac reditável. O mom ento que marc ava outro re-
com eç o: antes e depois da histór ia da hum anidade. Com eç ava a ruir o últim o blo-
queio que ainda ocultava a verdade. Fez-se completo silênc io no cam inhão que
seguia adia nte, para um destino que ninguém conseguia sequer imaginar.
Oito pessoa s, cruzando a noite gelada, sentadas sem poder ver nem mesm o o
rosto do companheir o ao lado e, no entanto, mais próxim as umas das outras do
que qualquer ser hum ano, em qualquer tempo.
— E o que acontec eu, padre? O que acontec eu quando voc ês três entrar am
na nave? — Parker quis saber.
Com o auxílio da ponte de corda, valendo-se vár ia s vezes dos instrum entos
que Jack tir ava de seu saco de surpresas, os três chegar am, por fim, à entrada
princ ipal de Thunder Hill. Ginger arr egalou os olhos dia nte das desc om unais por-
tas de aço. O vento, soprando sobre o gelo, desenhar a estranhos arabesc os na su-
perf íc ie polida do metal, como ideogram as de signif ic ado indec if rável. A frente
das portas, com eç ava uma espéc ie de cam inho rec oberto de asf alto, com certeza
equipado com aquec edor es, pois não se via o menor vestígio de neve, e uma fu-
maç a clar a, puro vapor, subia do chão. O cam inho desc ia em dir eç ão a oeste,
cruzando a planíc ie rumo à flor esta, onde se viam as luzes do portão junto à gua-
rita.
Se apar ec esse alguém para entrar ou sair nos próxim os minutos, ou se hou-
vesse uma troc a de guardas, todo o trabalho de chegar até ali estar ia perdido. Os
três, é clar o, poder ia m esc onder-se, acobertados pela noite. Não havia sinais de
pegadas na área próxim a à entrada, o que signif ic ava que alguém estiver a ali nas
últim as hor as. Mas as marc as de seus pés, brilhando na neve solta, falavam mais
que quinze alarm es dispar ando ao mesm o tempo. Era prec iso entrar logo, sem
perda de tempo, ou jam ais entrar ia m.
A pequena porta de acesso do pessoa l par ec ia tão impenetrável como a ou-
tra. Jack nem pisc ou. Tir ou da sac ola maior o computador portátil que o ajudar a
tantas vezes, pediu a Ginger que não tir asse os olhos da entrada princ ipal, sem
deixar de prestar atenç ão a qualquer luz ou ruído suspeito que apar ec esse dos la-
dos do platô, entregou uma lanterna a Dom, e com eç ou a trabalhar.
Ajoe lhada na neve, olhos e ouvidos atentos ao menor ruído, Ginger sentia-se
à merc ê do destino, a quase quatro mil quilôm etros de seu apartam ento em Bos-
ton. O vento batia-lhe forte no rosto. A neve grudava-se a suas sobranc elhas e, ao
derr eter, pingava-lhe nos olhos. Que situa ç ão estúpida! Meshugge. Que dir eito ti-
nha alguém de destroç ar a vida de tantas pessoa s?! Quem o mal-
dito Ktlkirk pensava que era? Quem ser ia o louc o que lhe dava ordens? Maus
amer ic anos. Momzers, todos momzers. Lembrou-se do rosto de Falkirk, que vira
no jornal: treifniak, como adivinhar a desde o prim eir o instante, um hom em em
que não se podia conf ia r, nem por um mom ento, nunc a. Sempre que Ginger re-
chea va os pensam entos de tantas palavras em ídic he, das duas uma: tinha sér ios
problem as na vida... ou estava morta de medo.
Menos de quatro minutos depois que Jack acionar a seu apar elho, ouviu-se o
ruído da porta deslizando para dentro da pedra. Dom saltou de susto e Jack caiu
sentado na neve. Quando se aproxim ou para ajudá-lo, Ginger viu que a porta se
abrir a tão repen-* tinam ente e com tanta forç a que ele não tiver a tempo de desli-
gar os fios do miniterm inal, que assim for am arr anc ados e puxados para dentro
do nic ho em que a porta se enc aixava.
De qualquer modo, a entrada estava franquea da, e não soou nenhum alarm e.
A sua frente, estendia-se o túnel de conc reto, com três metros e pouc o de com-
prim ento por dois de diâm etro, ilum inado por lâmpadas fluor esc entes. Dobrava à
esquerda e acabava em outra porta de metal.
— Esper em aqui — Jack corr eu para dentro do túnel e olhou em volta. Gin-
ger plantou-se ao lado de Dom, certa de que, embor a o plano fosse deixar-se
prender em Thunder Hill, não resis-tir ia à tentaç ão de dispar ar a corr er pela
neve, ao prim eir o sinal de que algo não ia bem. Talvez adivinhando-lhe os pensa-
mentos, Dom enlaç ou-a pelos ombros e estreitou-a junto a si, não apenas para
impedi-la de fugir, como também para lembrá-la de que não estava sozinha.
Pouc o depois, certo de que nenhum sinal dispar ar ia à entrada do túnel, Jack
voltou para juntar-se aos dois.
— Há duas câm ar as de circ uito fec hado no teto do túnel.
— Você foi visto? — Dom perguntou.
— Acho que não, porque as câm ar as não se mover am para me acompa-
nhar. Acho que é prec iso fec har a entrada princ ipal para abrir a segunda porta.
No instante em que a prim eir a porta é fec hada, as câm ar as com eç am a func io-
nar. Há pontos de gás junto
às lum inár ia s. Estão esc ondidos, mas eu os vi. O sistem a completo func iona
mais ou menos assim... você fec ha a porta externa e aciona as câm ar as antes de
abrir a segunda porta. Caso as câm ar as não gostem de sua cara, é acionado o
gás. Seja para fazer você dorm ir, seja para matá-lo... dependendo apenas do gás
que usem.
— Vie m os até aqui para ser presos, não para morr er numa câm ar a de gás
— protestou Dom.
— Basta deixarm os aberta a porta externa até abrirm os a segunda... —
Jack sorr iu.
— Mas você acabou de dizer que isso é impossível!
— Talvez seja fac ílim o...
O próxim o passo foi esc onder as sac olas na neve; Jack par ec ia ter certeza de
que não prec isar ia m daquele equipam ento e ser ia perda de energia carr egá-lo.
Depois, instruída por ele, Ginger enc arr egou-se de cortar os fios das câm ar as
com um canivete de esc oteir o. Em seguida, Jack corr eu para a segunda porta:
— Não tem segredo exposto. Portanto, não faz dif er enç a que o computador
estej a fora de combate.
— Será que não há esc uta? — Ginger sussurr ou.
— Deve haver. Mas só é acionada quando a porta externa se fec ha. Aí o
computador, as câm ar as e os mic rof ones com eç am a func ionar. Caso haja um
guarda do lado de lá, não nos ouvir ia através dessa porta nem se gritássem os. —
Jack explic ou em voz baixa, junto ao ouvido de Ginger. Apontou o painel de vidro
à dir eita da segunda porta. — Eis o “abre-te, Sésam o”. O Exérc ito com eç ava a
usar esse tipo de fec hadur a eletrônic a há oito anos, quando deixei o serviç o. Basta
pressionar a palm a da mão contra o vidro e “mostrar” suas impressões digitais ao
computador. Ele as analisa e compar a com as impressões do pessoa l autor izado
a entrar. Então as portas se abrem.
— E se as impressões não conf er em? — Dom perguntou, também em voz
baixa.
— O gás é liber ado.
— Mas então, como vam os entrar? — Ginger arr egalou os olhos.
— Dom vai abrir a porta e nos convidar para a festa.
Boquia berto, Dom vir ou-se para ele.
— Você está doido?! Como é que vou fazer minhas impressões digitais con-
fer ir em com...
— Esqueç a as impressões. Use as mãos como usou em Reno... para arr an-
car os pôster es da par ede do inf eliz Lom ack. Ou como usou para fazer desc er em
as cadeir as voa dor as, lá no restaur ante. Vire-se para a porta e lhe ordene que de-
sapar eç a da frente. Deve ser simples.
— Não posso... Não sei como...
— Finj a que a porta está coberta de saleir os e vidros de molho. Faça de
conta que não é porta, mas cadeir a. Sei lá! Invente um jeito... e seja rápido, por
favor.
— Não dá. Você mesm o viu, no restaur ante, que não sei con-.trolar os po-
der es. Alguém poder ia ter-se fer ido. E se, sem perc eber, eu dispar ar o gás?
Jack baixou a cabeç a e calou-se por um mom ento. Quando tornou a falar, a
voz soou dura e fria como aço:
— Vou pedir-lhe mais uma vez... Por fav or, Dom Corvaisis, abra essa por-
ta.
— Não. É minha últim a palavra. Não insista.
Jack vir ou-se e rum ou para a porta princ ipal. Certa de que ele estava saindo,
Ginger ainda deu dois passos para tentar convenc ê-lo a voltar, mas viu-o par ar
antes da saída, a mão sobre um botão na par ede.
— Um term inal term ossensível — disse para Dom. — Se você não tentar
abrir essa porta, enc osto a mão aqui, a porta externa se fec ha, as câm ar as nos
enc ontram, não nos identif ic am como “qualif ic ados”, e o gás é liber ado. Vêm os
guardas e...
— Acho que vie m os exatam ente para ser apanhados — Dom continua va a
negar com a cabeç a.
— Vie m os para desc obrir o que está acontec endo aqui... e depois ser pre-
sos.
— Tem os que nos contentar só em ser presos. — Dom continua va intransi-
gente.
Aberta para a noite gelada, a porta, externa fazia esc apar o calor
do túnel, e o vapor branc o aum entava a impressão de que os dois hom ens
travavam uma batalha de vida e morte.
Entre os dois, Ginger adivinhava quem ser ia o venc edor. Gostava de Dom e
adm ir ava-o a ponto de não pensar duas vezes antes de lhe conf ia r a própria vida.
Na verdade, já lhe entregar a a vida. Mas não havia dúvida de que Jack o derr ota-
ria, porque estava habitua do a venc er, e Dom, como ele próprio dizia, acaba-
va de sair de uma toca de coe lho, onde sempre se esc onder a.
— Se nos vir em, morr er em os. Duvido que perc am tempo em nos fazer
dorm ir. Nada disso! Vão usar cia nur eto ou algum outro gás venenoso que, sem
dúvida, atravessar á nossas roupas, porque não são idiotas a ponto de pensar que
não trouxem os másc ar as — Jack falava calm am ente, com segur anç a, a mão a
centím etros do botão na par ede.
— Você está blef ando!
— Será? — Jack sorr iu com o canto dos lábios.
— Você não tem cor agem de nos matar.
— Sou um crim inoso prof issional, já esquec eu?
— Você foi... não é mais.
— Uma vez bandido, sempre bandido.
Seus olhos agor a brilhavam de um modo estranho. No sorr iso envie sado, ha-
via algo de sádic o, que fez Ginger estrem ec er: com eç ava a acreditar que ele
cumprir ia a amea ç a, se as coisas não corr essem como quer ia.
— Você não planej ou nossa morte, não é? E se der err ado? — Dom ainda
balanç ava a cabeç a.
— Não, mas também não previ que você se rec usar ia a colabor ar. Abra
logo a merda dessa porta!
Dom vir ou-se para Ginger, respir ou fundo e pediu:
— Afaste-se daqui.
Ela obedec eu de imedia to e Jack gritou:
— Quando abrir a porta, entre logo. Deve haver um guarda do outro lado,
mas ele vai levar um grande susto, porque nenhum alarm e o preveniu. Se você
conseguir derr ubá-lo, eu estar ei a seu lado para conc luir o serviç o. Tem os uma
boa chanc e de desc obrir o que existe aí antes que apar eç am outros guardas.
Dom conc ordou. Vir ou-se para a porta, toc ou-a de leve, como um exper ie nte
arr ombador, tentando “sentir” a fec hadur a. Junto à saída, Jack afastou a mão do
botão que fec har ia a porta princ ipal, voltou-se para Ginger e murm ur ou para que
Dom não o ouvisse:
— Estou pressentindo que, a qualquer mom ento, o gigante vai desc er pelo
pé de feij ão e acabar com a brinc adeir a.
Ginger desc obriu que ele jam ais os condenar ia à morte. Se Dom não con-
cordasse em tentar abrir a porta, provavelm ente, Jack inventar ia um modo de ser
apanhado, talvez retornando à guar ita.
De repente, como um sopro de vento, a porta do fim do túnel abriu-se. Foi
um movim ento tão repentino que Dom caiu de costas, esquec ido das instruç ões.
Num instante, por ém, levantou-se e corr eu para dentro. Jack, que acionar a o me-
canism o da porta externa antes que o outro se levantasse, corr eu para a segunda
porta, com Ginger nos calc anhar es.
Estavam no grande túnel de pedra, esc avado na roc ha. Ginger par ou, à espe-
ra dos prim eir os tir os, mas não ouviu um únic o ruído. Acim a de sua cabeç a, des-
cendo de um teto que não se via, perdido na esc ur idão, apar ec ia m as lâmpadas
que ilum inavam a passagem: uns vinte metros de largur a por quase cem de com-
prim ento, da porta ao hall onde dever ia m estar os elevador es; a três metros da
entrada, uma mesa cim entada ao piso, e sobre a qual se espalhavam exemplar es
de revistas da sem ana, um term inal de computador e... nenhum guarda. O túnel
estava silenc ioso e deserto como um mausoléu. Estranho... um depósito que cus-
tou milhar es de milhões de dólar es, proj etado para enf rentar a Terc eir a Guerr a
Mundia l, assim, entregue aos ratos...
— Não é possível! — Jack olhava em volta. — Onde estão os guardas?!
— E agor a? — perguntou Dom, ainda assustado com a faç anha da porta,
tao simples e perf eita, depois do frac asso no restaur ante.
— Há algum a coisa err ada... — Jack franzia as sobranc elhas. —
Não sei o que e, mas sinto na pele. — Tir ou o capuz e corr eu o zíper do abri-
go. Dom e Ginger repetir am seus gestos. — Esta é a área de carga e desc arga de
cam inhões. As instalaç ões princ ipais devem estar no piso inf er ior. Não estou gos-
tando do silênc io, mas acho que devem os desc er.
— Tem os é que par ar de espec ular e agir rápido — Ginger cam inhou para o
fim do túnel, ouvindo o zumbido da porta que Jack fec hava.
Mergulhar am no cor aç ão de Thunder Hill.
2. MEDO
Andavam em silênc io como ratos esc ondendo-se de um gato fam into, e ain-
da assim seus passos ecoa vam pelas par edes de pedra. Passar am pelos elevado-
res maior es, abertos, plataf orm as movidas por dois pilar es hidráulic os sinc roniza-
dos, um de cada lado, grandes o suf ic ie nte para o transporte de aviões. Deixar am
para trás os asc ensor es médios, também de carga, e, por fim, chegar am a
um elevador de tam anho norm al.
Entrar am, e no instante em que Jack apertou o botão, Dom lembrou-se de
outros detalhes da noite de 6 de julho do ano retrasado. Lembrou-se da Lua mu-
dando de cor... e do pouso da nave. Um cilindro liso, apar entem ente simples, qua-
se com um, e que, sem dúvida, vinha de outro planeta. Quando conseguiu acal-
mar-se, Dom perc ebeu que estava com a testa colada à par ede fria do elevador,
os braç os cruzados sobre o peito, trem endo como cria nç a assustada. Vir ou-se, viu
os companheir os fitando-o de olhos arr egalados, à esper a.
— O que acontec eu? — Ginger perguntou.
— Lembrei-me de mais uma coisa...
Dom contou-lhes o que acabava de “ver”. Não prec isou falar muito para que
os dois também se lembrassem. Os olhos de Ginger brilhavam, Jack baixou a ca-
beç a para esc onder as lágrim as... de medo, alegria, espanto e esper anç a.
— Nós entram os — Ginger murm ur ou.
— Sim... você, Dom e Brendan — completou Jack, a voz grave e emoc io-
nada.
— Nao consigo lembrar o que acontec eu dentro da nave...
— Nem eu — Dom suspir ou. — Pelo menos até agor a. Lembro-me de
tudo, até o mom ento em que atravessam os o portal da nave e vim os a luz dour a-
da.
Ginger estava pálida. Dom adivinhou que também ela desc obrir a a explic a-
ção para a poder osa empatia que os jogar a nos braç os um do outro quando se en-
contrar am no aer oporto, no dom ingo anter ior. Havia m entrado juntos na nave e
lá vir am algum a coisa que os ligou para sempre.
— A nave deve estar esc ondida aqui em Thunder Hill — disse ela. Tem que
estar!
— Por isso, o governo tom ou a terr a dos fazendeir os — Dom acresc entou.
— Aum entar am a área de segur anç a para impedir que alguém se aproxim asse o
suf ic ie nte para suspeitar do que existe aqui.
— Deve ter sido dif íc il transportar a nave — Jack pensou em voz alta.
— Existem aquelas enorm es jam antas que transportam mísseis.
— Sim, eu sei. Mas por que eles ter ia m mantido a histór ia sob sigilo absolu-
to?
— Não faço idéia... — O elevador par ou e Dom vir ou-se para sair. —
Quem sabe não desc obrim os tudo em menos de um minuto?
Estavam no segundo piso subterrâneo. A julgar pela dem or a da desc ida, ha-
via vár ios metros de roc ha sólida entre um patam ar e outro. A frente, uma enor-
me caverna, com quase noventa metros de diâm etro. Ao redor, vár ios comparti-
mentos de par edes de metal, dipostos como trailers num acampam ento. Dois
dos trailers estavam ilum inados; os outros, às esc ur as, par ec ia m desertos. Dom
pensou nos acampam entos em loc aç ões de film agem, os vagões-cam ar im dis-
postos em círc ulo. Na outra par ede, abria m-se quatro grandes grutas, uma delas
fec hada com uma cur iosa pilha
de tor as de madeir a, prim itiva, rústic a, desloc ada no ambie nte de alta tecno-
logia do lugar.
Mais espantoso, por ém, era o silênc io. Aquela caverna dever ia estar pululan-
do de gente, mas apar ec ia deserta, como que abandonada. Não havia um únic o
guarda na entrada, não se via vival-ma no segundo piso, não se esc utava nem ba-
rulho de máquinas, vozes, passos!
Verdade que fazia frio e, àquela hora, o pessoa l da base devia estar rec olhido
nos aloj am entos vendo televisão, ouvindo músic a. Mas, e o silênc io?!
— Será... que estão mortos? — Ginger perguntou com um fio voz.
— Sinto que algum a coisa está err ada... — Jack olhou em volta. Sem tir ar
os olhos da barr ic ada de tor as, Dom deu dois passos
em sua dir eç ão. Jack e Ginger seguir am-no de perto, aproxim ando-se de um
postigo estreito, rec ortado na madeir a, sob o qual passava um fio de luz amar ela-
da, dif er ente da luz dif usa que ilum inava a grande antecâm ar a de pedra. Dom
chegou a estender a mão para empurr ar a porta... e ouviu vozes. Dois hom ens fa-
lando baixo, quase sussurr ando. Pensou em dar meia-volta e fugir, mas pa-
rou, perc ebendo que ali estava a melhor chanc e de ver o que continha a caver-
na... e ser apanhado conf orm e o plano.
Aproxim ou-se mais, fez um sinal para Jack e Ginger e empurr ou a porta.
Deu dois passos...
A nave estava ali, bem a sua frente.
Ginger par ou, as mão apertando o peito sobre o cor aç ão, que batia aluc inado.
A gruta era imensa, com quase cem metros de prof undidade por vinte ou
trinta de largur a, e um teto alto, abaulado. O chão de pedra, nivelado, cria va uma
plataf orm a lisa, de par ede a par ede: estava manc hado de óleo, como se ali func i-
onasse uma ofic ina mecânic a.
À dir eita da entrada, ao longo da par ede, havia outros trailers idêntic os aos do
hall, com pequenas janelas e portas metálic as, alinhados até o fundo. Em cada
porta uma plac a: Laboratório de
Químic a, Bibliotec a de Químic a, Patologia, Laboratório de Biologia, Bibliote-
ca de Biologia, Físic a I, Físic a II, Antropologia, e outros que não podia m ler, pois
estavam distantes. Além dos trai-lers, mesas de trabalho e apar elhos cie ntíf ic os;
exc eto um espec-trógraf o e um apar elho de raios X convenc ional, idêntic o ao
do Boston Mem or ia l, os instrum entos eram moderníssim os, extrem am ente sof is-
tic ados.
A nave estava à esquerda da entrada. Era exatam ente como Gin-ger lembra-
ra quando os últim os bloqueios com eç ar am a ruir: um cilindro de quinze ou de-
zoito metros de comprim ento por quase cinc o de diâm etro, com bordas arr edon-
dadas. Estava apoia da em alguns cavaletes de um metro e meio de altur a, como
um subm ar ino rec olhido para repar os. Em relaç ão à antiga imagem, faltava-lhe
apenas o brilho que a fizer a mudar de cor, do branc o ao esc arlate e ao âmbar.
Não se viam motor es nem turbinas. A fuselagem era como Ginger rec ordar a:
uma fileir a de três metros de depressões arr edondadas à frente, cada uma do ta-
manho de um punho, sem funç ão apar ente. Do outro lado, quatro cúpulas, como
metades de uma conc ha, também sem funç ão identif ic ável. Espalhadas pela fu-
selagem, meia dúzia de elevaç ões no metal, algum as do tam anho de uma tampa
de lata de lixo, outras pequenas como fec ho de vidro de maionese, nenhum a com
mais de dez centím etros de altur a, estranhas e mister iosas. Não fossem algum as
marc as de arr anhões, a nave estar ia perf eita, lisa e brilhante. Não era espetac u-
lar, nem se par ec ia com as de film es ou revistas, mas era a visão mais deslum-
brante que Ginger algum dia tiver a dia nte dos olhos. Assustava-a e mar avilhava-
a, dando medo e alegria ao mesm o tempo.
Dois hom ens estavam sentados à mesa, ao lado da aer onave. Um deles, alto,
magro e barbudo, vestia calç a esc ur a, malha preta e um amplo avental de labo-
ratór io. O outro usava unif orm e do Exérc ito, com a túnic a desabotoa da; par ec ia
uns dez anos mais velho que o barbudo. Nenhum dos dois corr eu para acionar o
alarm e, nem gritou cham ando os guardas. Apenas levantar am-se e par ar am, ca-
lados, olhando os rec ém-chegados.
Estavam nos esper ando, Ginger pensou.
Era estranho, talvez fosse mau sinal, mas ela não se inter essava com nada
além da nave. Tendo Dom de um lado e Jack do outro, todos muito juntos, andou
na dir eç ão do engenho e par ou a um passo de distânc ia, o cor aç ão batendo como
louc o, mar avilhada, deslumbrada, sentindo-se como que em estado de graç a.
Um dos lados de fuselagem estava raspado, resultado de algum choque com
aster óides ou com naves inim igas, dur ante a via gem. Pequenas marc as, causadas
não por ventos ou tempestades terr estres, mas por algum tipo de ataque de estra-
nhos elem entos de estranhas par agens.
Talvez por intuiç ão, talvez por já saber, Ginger “sentia” que a nave era muito
antiga... podia ter milênios de idade. Corr endo os dedos de leve pelo metal frio,
entendeu que, na verdade, a nave era como uma relíquia, um monum ento ao
passado. Vie r a de longe, no tempo e no espaç o; cumprir a uma jornada quase
eterna.
Dom também aproxim ou-se ainda mais e toc ou o metal.
— Ah! — exc lam ou, inc apaz de expressar o que sentia.
— Deus... — Ginger murm ur ou, fec hando os olhos —, quer ia que meu pai
estivesse aqui! Como ele gostar ia de ver isto! — Ja-cob, o sonhador, que sempre
amar a os contos fantástic os de via gens no tempo, para o passado ou para o futu-
ro...
— Se Jenny tivesse vivido um pouc o mais... Só um pouc o mais... — disse
Jack, pensando que, na verdade, não quer ia apenas que ela estivesse ali, parti-
lhando aquele mom ento; quer ia que tivesse resistido apenas mais um mês ou
dois... para ser salva! Então, com um simples toque de mão, Dom ou Brendan
poder ia m devolvê-la a seus braç os, viva e feliz.
— Deus... — Ginger repetiu, num fio de voz, as mãos trêm ulas sobre o me-
tal. Sabia que mal com eç avam a entender o signif ic ado daquele estranho enc on-
tro, as implic aç ões que ter ia para o futur o, as reperc ussões sobre o passado... Es-
tranho enc ontro, à noite num ver ão perdido, no deserto de Nevada.
— Uma liga desc onhec ida. — O hom em barbudo aproxim ou-
se dos três e toc ou a nave. — Mais resistente que aço, mais dura que dia m an-
te, e inac reditavelm ente leve e flexível. Você é Dom Corvaisis?
— Sou... — Dom estendeu a mão. Como Ginger, também pressentia que os
dois hom ens eram alia dos.
— Meu nome é Miles Bennell, sou chef e da equipe enc arr egada de estudar
o... mar avilhoso acontec im ento. Este é o gener al Alvar ado, com andante de
Thunder Hill. Não podem avalia r como lastim am os o que fizer am com voc ês. O
que voc ês vir am jam ais poder ia ter-lhes sido roubado. Prec isava ser contado
ao mundo... Se existisse algum modo de rem edia r os err os, voc ês divulgar ia m a
verdade amanhã mesm o! Mas Falkirk chegou prim eir o, enc ontrou voc ês e...
— Falkirk?! — Jack interr ompeu-o. — Está pensando que foi Falkirk quem
nos trouxe aqui? Clar o que não! — Riu. — Nós vie m os por nossa conta.
Ginger perc ebeu que o gener al dava um passo atrás, colhido pelo impacto de
surpresa. Viu-o olhar para Bennell e, aos pouc os, uma pequena luz de esper anç a
renasc endo no rosto de ambos.
— Quer dizer que... entrar am em Thunder Hill... sozinhos?!
— Alvar ado arr egalou os olhos. — Mas isso é impossível!
— A idéia de atrair Jack Twist foi sua, não foi? — Bennell sorr iu para o
amigo. — Conhec e a fic ha dele. Lembre-se de que foi soldado de elite e tem alto
treinam ento para... invadir área s proibidas.
— Sem Dom, não ter ía m os conseguido entrar — gar antiu Jack.
— Eu os trouxe até a segunda porta do túnel. Mas foi ele quem a abriu.
Bennell vir ou-se para Dom, perplexo, as sobranc elhas franzidas.
— Mas... o que você entende de sistem as de segur anç a? A menos que...
Clar o! Você tem poder es espec ia is! Depois de arr anc ar os pôster es da casa de
Lom ack, e de fazer aquela luz surgir quando viu Brendan, você deve ter perc ebi-
do que era capaz de fazer qualquer... milagre! E acabou desc obrindo a verdade...
o poder está em você.
prova de que ouvia m mesm o todas as nossas conversas no motel, Ginger
pensou. Mas prova, também, de que Jack conseguir a manter em segredo os pla-
nos de fuga. Se não tivesse arr anc ado os telef ones e mantido vedadas as janelas,
Bennell saber ía também dos saleir os voa dor es.
— E verdade. Brendan e eu sabem os que tem os poder es telec i-nétic os... e
outros, talvez. Mas de onde vem esse poder? Sabem os que devem ter algo a ver
com a nave, mas não conseguim os lembrar o que acontec eu depois que entra-
mos. O senhor sabe?
— Não... — Bennell balanç ou a cabeç a. — Sabem os que voc ês três entra-
ram, e isso é tudo. Não tem os idéia do que acontec eu dentro da nave! Quando
chegar am os helic ópter os com os hom ens da DE-RO e os prim eir os cie ntistas,
voc ês saír am, em estado de choque. Não fic ar am lá dentro mais que alguns mi-
nutos. Quando for am presos, disser am que não tinham visto nada de espec ia l, só
der am uma espia da. Para impedir que voc ês resistissem à prisão, o pessoa l sedou
os três e levou-os de volta ao Motel Tranqüilidade. Assim, se, depois de passado o
choque, voc ês mudassem de idéia e resolvessem contar o que vir am, não ter ia m
tempo.
Assustado ou angustia do, Miles passou as mãos pelos cabelos.
— Mais tarde, quando dec idir am que voc ês ser ia m subm etidos a lavagem
cer ebral, não houve tempo sequer para interr ogá-los. Sem esper ar que voc ês sa-
íssem da sedaç ão, eles apenas mudar am as drogas e der am iníc io ao trabalho.
Essa foi uma das razões pelas quais sempre disc ordei da idéia da lavagem cer e-
bral. Fazer voc ês esquec er em antes de lhes dar a chanc e de contar o que ha-
via acontec ido era, além de crue l e inj usto, uma terr ível asneir a, porque nos dei-
xava completam ente no esc ur o.
Ginger olhou para a porta da nave e murm ur ou:
— Se entrarm os outra vez, é possível que nos lembrem os de tudo...
— Sim... — Bennell seguiu-lhe o olhar. — E possível.
Também fit ando a nave, Jack pergunt ou:
— Como é que voc ês souber am que... ela est ava se aproximando e que
pousar ia junt o à rodovia?
— E por que dec idir am esc onder a nave e as testem unhas? — Dom quis
saber.
— Havia... tripulantes? — Jack estava ansioso.
— Calm a — pediu Alvar ado, dando um passo à frente. — Voc ês vão rec e-
ber todas as respostas, porque têm dir eito a elas. Mas, antes, há problem as muito
urgentes para resolver. — Vir ou-se para Dom. — Se você conseguiu entrar aqui,
com certeza também saber á abrir as portas para o pessoa l sair, não é? Poder á
mantê-las abertas para que a base seja evac ua da?
Ginger olhou para Dom, depois para Jack, e os viu alertas.
— Bem... — Dom murm ur ou. — Não sei, talvez...
— Bob... — disse Bennell, muito sér io, voltando-se para o amigo. — Se o
cor onel perc eber que a base foi evac ua da ou que alguém entrou aqui, sem ser
apanhado pela segur anç a que só ele controla, será como acender o pavio. Vai
pensar que... fom os contam inados.
— Contam inados...? — Ginger perguntou.
— Leland está louc o. Acredita que todos, nesta base, fom os “possuídos”
pelos ser es que chegar am com a nave. Acha que eles nos roubar am a alma e nos
transf orm ar am em zumbis, esc ravos de uma vontade super ior.
— Esse cara prec isa ser internado no hospíc io — opinou Jack.
— Doutor — com eç ou Ginger, esc olhendo bem as palavras —, é clar o que
não som os zumbis. Mas... há algum a razão objetiv a para Falkirk suspeitar de con-
tam inaç ão?
— Em tese, sim — Miles respondeu com um esgar. — Mas só em tese. Na
verdade, todos dem or am os um pouc o para entender o que rea lm ente acontec eu.
Mais tarde, com calm a, eu lhe explic ar ei tudo.
— Por favor, rec onhec em os que voc ês têm pleno dir eito de saber da ver-
dade, mas não podem os perder um minuto — disse Alvar ado, já aflito. —-
Falkirk pode chegar a qualquer mom ento, trazendo as outras testem unhas do mo-
tel.
— Não vai achar ninguém no motel. Eles saír am antes de nós — Dom in-
form ou.
— Jam ais subestim e aquele hom em. Prec isam os impedir que ele entre,
montar um plano de divulgaç ão para a histór ia de voc ês e, se possível, evac ua r a
base. Caso Falkirk consiga entrar aqui, haver á um massac re. Talvez haja um
massac re de qualquer modo, afinal...
Ouvir am passos no hall. Ginger levou as mãos à boca para não gritar. Ma-
reie, Jorj a, Brendan e os outros entrar am.
— Tarde dem ais... — Bennell suspir ou.
À entrada de Thunder Hill, Parker Faine e todo o grupo for am empurr ados
em dir eç ão à porta menor, sob a mira da metralhador a do tenente Horner. Le-
land ordenar a aos soldados da DERO que levassem o corpo do padre Wy c azik
para Shenkf ie ld, enterr assem-no sem identif ic aç ão e fic assem por lá à esper a de
novas ordens. Não via nec essidade de sac rif ic ar a tropa toda, quando apenas ele
e Plorner, seu braç o dir eito, poder ia m controlar os prisioneir os e destruir o depó-
sito. Pobre Horner... não ter ia a chanc e de rec eber nem mesm o uma medalha de
Honr a ao Mér ito...
No túnel de entrada, Leland sentiu um calaf rio ao perc eber que as câm ar as
de televisão não estavam oper ando. Mas logo sossegou, lembrando que o código
sec reto não exigia observaç ão visua l, pois fora program ado para só abrir a porta
interna ao rec eber a impressão da palm a de sua mão esquerda. No instante em
que toc ou a chapa de vidro, a porta abriu-se.
Sempre sob a mira da metralhador a de Horner, os oito prisioneir os for am
conduzidos para o elevador, que desc eu para o segundo piso, e agor a entravam
na caverna.
Espia ndo por sobre as cabeç as do grupo, Leland viu Ginger, Dom Corvaisis e
Twist. Não podia imaginar quem os fizer a entrar, mas não importava. O que valia
era que ele tinha todos em seu poder, bem ali, exatam ente como quer ia.
Deixou Horner com os prisioneir os na sala de Bennell e corr eu para o eleva-
dor, que o transportou para o terc eir o piso inf er ior. Era uma pena não poder mais
contar com Horner: ele fic ar ia muito tempo exposto aos agentes da contam ina-
ção.
Leland levava a metralhador a ao ombro, disposto a dispar ar no
prim eir o que tentasse barr ar-lhe o cam inho. Se apar ec essem muitos, atir ar ia
em si mesm o: pref er ia morr er a deixar-se contagia r. Não podia mudar, transf or-
mar-se em algo que não entendia bem, se desde a infânc ia resistir a ao pai e à
mãe, e também a efes, aos verm es que o perseguia m dur ante anos, sob um ou
outro disf arc e, quer endo roubar-lhe a dignidade e a própria identidade.
No terc eir o piso subterrâneo guardavam-se as arm as, a muniç ão, todo o
equipam ento bélic o. Ali sempre havia alguns oper ár ios enc arr egados da manu-
tenç ão e os guardas de segur anç a. Naquele instante, por ém, o loc al estava deser-
to. Sinal de que Al-var ado não se atrever a a desobedec er suas ordens: o pessoa l
estava conf inado nos aloj am entos.
Talvez passasse pela cabeç a do gener al que, agindo assim, con-seguir ia con-
venc ê-lo de que ainda era hum ano. Idiota! Seus pais também agia m, falavam e
pensavam como gente... Ah! Sim... beij os, car inhos, hor as e hor as de converva
fia da... e quando com eç ava a conf ia r neles, a acreditar nas mentir as que dizia m,
mostravam a verdadeir a face, a horr ível cara de mosntro que sempre esc ondi-
am. Apanhavam a corr eia de cour o ou a palm atór ia e o espanc avam, dizendo
que o castigavam “para seu próprio bem!” Nenhum zumbi conseguir ia enganá-
lo, logo a ele, Leland Falkirk, que desde menino aprender a a identif ic ar o lobo es-
condido sob a pele do cordeir o.
Chegou ao loc al do arm am ento nuc lea r, sob segur anç a máxim a. Apenas oito
dos ofic ia is super ior es, em Thunder Hill, tinham autor izaç ão para entrar ali, mas
apenas quando se apresentassem juntos ou no mínim o em grupo de três. O com-
putador estava program ado para só liber ar a entrada depois que seis palm as
de mão, em ordem predeterm inada, fossem apresentadas à plac a de vidro. Mas,
isso, antes de Leland alter ar os códigos de acesso ao sistem a de segur anç a. Ago-
ra, frente à pesada porta de metal, bastou-lhe toc ar a plac a com a palm a da mão
esquerda para abrir cam inho.
A dir eita da entrada, as ogivas nuc lea r es, sem im ontadas, mas sem detonador
nem explosivo: os detonador es estavam guarda-
dos nas gavetas ao longo da par ede, e as cargas de explosivo enc ontravam-se
em cabines pressur izadas, de umidade e temper atur a controladas, na par ede
oposta.
O treinam ento militar de Leland previa a eventua lidade de enf rentar amea -
ças de terr or istas arm ados com bombas atôm ic as. Por isso ele sabia perf eita-
mente como montar, arm ar e desarm ar todo tipo de bomba. Em oito minutos,
sem deixar de vigia r a porta, a metralhador a sempre ao alc anc e da mão, arm ou
os detonador es e implantou as cargas de explosivo de duas bombas. Depois de
conectá-las a dois tim ers, respir ou um pouc o mais alivia do. Acertou os ponteir os
dos mec anism os de tempo para explodir em quinze minutos e ligou os detonado-
res.
Levantou-se, pendur ou a metralhador a num ombro e no outro prendeu as al-
ças das bombas. Cada bomba pesava mais de trinta quilos, e ele gem eu ao erguê-
las da mesa, arquea do sob o peso do apoc alipse.
Qualquer outro hom em par ar ia no meio do cam inho para coloc ar o peso no
chão e alivia r a dor dos músc ulos. Leland Fal-kirk, não. O peso curvava-lhe as
costas, fazia arder em-lhe os nervos do braç o, mas ele avanç ava sempre, feliz
com a dor quase insuportável para qualquer outro mortal.
Na caverna de onde partia m os elevador es, ainda no terc eir o piso, deixou
uma das bombas, bem no meio do chão. Ergueu os olhos para o teto de pedra, e
com um sorr iso de satisf aç ão exam inou as par edes sólidas. Quando chegasse o
mom ento da detonaç ão, a menor rac hadur a existente na roc ha far ia explodir a
caverna, e os andar es super ior es desabar ia m... Leland sabia que não havia no
planeta roc ha sem fissur a. Ainda que as par edes resistissem, ninguém sobrevive-
ria naquele piso, nem ser es hum anos, nem qualquer outra form a de vida —
monstros, verm es, bactér ia s... tudo ser ia reduzido a pó. O calor do inf erno se ins-
talar ia na base... e também a dor.
Ele não sobreviver ia à dor, mas não tem er ia enf rentá-la, ser ia uma agonia
intensa, indesc ritível, mas breve. Dur ar ia muito menos que as interm ináveis sur-
ras com a corr eia de cour o ou as pan-
cadas de palm atór ia pelo rosto e pelas costas... ate a pele rasgar-se e o san-
gue jorr ar como água da torneir a aberta.
Com a segunda bomba ainda pendur ada ao braç o, sorr iu para o pequeno re-
lógio onde os ponteir os voa vam. A maior das mar avilhas, o que fazia as bombas
atôm ic as tão fasc inantes, era exatam ente aquele pequeno detalhe: depois de ar-
madas, com o timer acionado, nada nem ninguém conseguir ia impedir a explo-
são, fatal e inexor ável como o destino.
Foi até o elevador e subiu para o segundo piso.
Com Mar eie no colo, Jorj a corr eu para o lado de Jack e par ou, rígida, pálida,
os olhos na nave. Embor a de certo modo já estivesse prepar ada para a cena, a
presenç a da nave, real, palpável, a dois passos de distânc ia, devolvia-a ao estado
de exaltaç ão e emoç ão do instante em que, ainda no cam inhão de Falkirk, com e-
çar a a lembrar-se.
Mar eie debatia-se para soltar-se, e Jorj a coloc ou-a no chão. A menina deu
dois ou três passos vac ilantes em dir eç ão à nave e estendeu a mão para toc ar o
bojo de metal.
— A Lua... — murm ur ou.
— Não, quer ida. Não é a Lua. É um tipo de aviã o, dif er ente dos que conhe-
cem os. Foi essa... nave que desc eu do céu, naquela noite. Não foi a Lua, que pa-
rec ia cair sobre nossas cabeç as. Você se lembra...? Era branc a, depois fic ou ver-
melha...
— Não foi a Lua... — Mar eie repetiu, baixinho, as sobranc elhas franzidas,
no esf orç o de conseguir separ ar, na lembranç a, o que era pesadelo e o que era
rea lidade.
— Não... Foi essa nave espac ia l.
A menina vir ou-se para Jorj a e, pela prim eir a vez em sem anas, rec onhec eu
o rosto da mãe. E sorr iu.
— Uma nave... como a do capitão Kirk?
— Acho que sim... — Jorj a riu.
— Como a de Luke Sky walker, de Guerra nas Estrelas — Jack ajudou.
— Luke?! E Han Solo?!
Essa mesm a. —Jack sorr iu, mas vendo que Mar eie outra vez
se alhea va e voltava a olhar para a nave como se não a visse, fic ou sér io e
pousou a mão no ombro de Jorj a. — Não se preoc upe. Ela prec isa de algum
tempo para se adaptar às novidades. Mas logo, logo, estar á bem, rindo e brinc an-
do como antes.
Jorj a fec hou os olhos, em parte para agradec er a Deus por ter conhec ido
aquele hom em, em parte para usuf ruir mais intensam ente a segur anç a que a
presenç a de Jack lhe transm itia. Mas logo rec uper ou a consc iê nc ia de sua situa -
ção e disse:
— Talvez... Se conseguirm os esc apar daqui.
— Clar o que vam os esc apar. Ainda não sei como, mas vam os sair mais
cedo do que você pensa.
Dom corr eu para abraç ar Parker, com um sorr iso nos lábios e lágrim as nos
olhos.
— Como foi que você chegou aqui?!
— Depois eu conto tudo — o outro respondeu, a voz e o rosto sombrios di-
zendo clar am ente que nem tudo fora um mar de rosas.
— Eu não tinha o dir eito de envolvê-lo nessa conf usão.
— Você não tinha o dir eito é de me deixar de fora... — Parker olhou para a
nave e esquec eu-se do resto, deslumbrado.
— O que acontec eu com sua barba? Você cortou o cabelo!
— Não lhe disse que só raspar ia a barba quando acontec esse algum a coisa
que mer ec esse mesmo ser com em or ada? Não acha que isso — apontou para a
nave — vale mais que uma barba velha?
Ernie contornava a nave, toc ava-a com a ponta dos dedos, exam inava os mí-
nim os detalhes. Ao lado de Brendan, Fay e esper ava, tão preoc upada com ele
quanto com o mar ido. Fazia meses que perder a a fé, ou achava que a perder a, o
que dava na mesm a; agor a acabava de ver seu melhor amigo morto. Estava páli-
do, com olheir as, por ém mesm o assim conseguiu sorr ir, ao com entar:
— Ela é linda, não é?
— Linda... como o futur o — Fay e respondeu. — E eu que nunc a acreditei
em histór ia s de disc os voa dor es!
— Mas isso não é Deus... — Brendan baixou a cabeç a. — No fundo do co-
raç ão, eu esper ava outro tipo de milagre.
— Lembra-se do que Parker contou no cam inhão? Sobre o que
o padre Wy c azik disse a ele? Seu pár oc o sabia que algum a coisa tinha desc i-
do à Terr a, uma nave interplanetár ia. Sabia que não era Deus... e, ainda assim,
sentia com mais intensidade o mistér io da fé.
— Você não o conhec eu — atalhou Brendan. — Para ele, qualquer coisa
servia para ref orç ar a fé.
— Pois você é como ele. Só prec isa de algum tempo para se adaptar. Na
verdade, você é igualzinho a seu quer ido padre Wy c azik.
— Mas você nem o conhec eu! — Brendan olhou-a, surpreso.
— Nem prec isar ia conhec ê-lo. O que você nos contou sobre ele foi suf ic i-
ente para ver o quanto você o amava. Adm ir ou-o como padre e como ser hum a-
no. Mas você ainda é muito jovem. Com o tempo, à medida que for amadur e-
cendo e aprendendo mais sobre a vida e os hom ens, também será como ele... um
grande padre e um grande hom em. E fará de cada dia da sua vida uma hom ena-
gem a ele.
Brendan com eç ava a vislumbrar algum a esper anç a de reenc ontrar a paz.
Com os olhos úmidos, fitou Fay e e tornou a baixar a cabeç a.
— Acha que eu posso... sonhar com isso? — murm ur ou.
— Tenho certeza. — Ela o abraç ou como mãe conf ortando o filho.
De mãos dadas, Sandy e Ned contemplavam a nave de longe. Quase não ti-
nham mais o que dizer, porque tudo que importava já fora dito. Pelo menos, era
o que Ned pensava, o cor aç ão explodindo de alegria.
Foi quando Sandy enc ontrou um assunto. Algum a coisa muito importante, so-
bre a qual nenhum dos dois jam ais falar a:
— Se esc aparm os dessa, quer o ter um filho. Vou proc ur ar um médic o, des-
cobrir por que nunc a engravidei. Talvez haja um meio...
— Mas você... você nunc a...
— Nunc a me preoc upei porque achava que o mundo não mer ec ia, que eu
não mer ec ia, que o bebê não mer ec ia viver só para sof rer — ela respondeu. —
Mas agor a é dif er ente! Quer o um filho, para estar vivo quando nós dois não exis-
tirm os... para poder gostar de viver nesse mundo novo que vem aí, para via j ar
pelo espaç o, para ir ao enc ontro dessas cria tur as que nos trouxer am a felic idade.
Prom eto que vou ser a melhor mãe deste mundo... e, quem sabe, de outros tam-
bém!
— Eu sei. — Ned abraç ou-a, como sempre sem enc ontrar as palavras cer-
tas.
Quando Miles Bennell viu chegar em as últim as testem unhas, compreendeu
que de nada adia ntar ia m os poder es de Dom para manter Falkirk a distânc ia. O
únic o poder que o far ia par ar era a arma que trazia esc ondida na cintur a. Imagi-
nava que Falkirk fosse apar ec er com um verdadeir o exérc ito da DERO, e sur-
preendeu-se ao ver Horner entrar sozinho, de metralhador a apontada para a ca-
beç a de Mar eie.
— Gener al Alvar ado, doutor Bennell — disse o tenente —, o cor onel Falkirk
chegar á num instante.
— Como se atreve a apar ec er arm ado em frente de seu com andante, te-
nente?! — O gener al Alvar ado avanç ou para a metralhador a. — Não perc ebe
que estam os numa caverna? Não entende que, se esc orr egar esse dedo no gati-
lho, a arma dispar a, as balas ric oc he-teia m nas par edes e todos podem os fic ar
fer idos, inc lusive você?
— Meu dedo jam ais esc orr ega no gatilho, senhor. — Havia tam anha ironia
em sua voz que era quase um desaf io.
— Onde está Falkirk? — O gener al resistiu à provoc aç ão.
— Está ocupado, senhor, em tar ef as urgentes. Pede que o desc ulpem pela
dem or a... Mas logo estar á aqui.
— Que tar ef as?
— Não estou inf orm ado, senhor.
Ao lado, Miles imaginava o que Falkirk estar ia fazendo e chegava a tem er
que já houvesse ordenado a exec uç ão dos soldados conf inados nos aloj am entos.
Não se ouvia m tir os... o que, afinal de contas, pouc o signif ic ava entre aquelas pa-
redes de pedra. Estava a ponto de saltar sobre Horner, desarm á-lo e com eç ar a
limpeza, mandando-o para o inf erno com metralhador a e tudo.
Para controlar os impulsos assassinos, dec idiu que a únic a coisa a fazer era
aproveitar o tempo para contar às testem unhas o que sabia e desc obrir o que pu-
desse. Já de iníc io, desc obriu que conhec ia m o relatór io do GETRAU. Em rápi-
das palavras, resum iu-o para os outros, respondendo, para com eç ar, às perguntas
que Dom e Jack havia m feito. O segredo fora idéia de Falkirk, basea do nas con-
clusões do relatór io sobre a destruiç ão da vida no planeta, a catástrof e total e ou-
tras previsões fatalistas.
Quanto à nave, fora detectada pelos satélites avanç ados, posic ionados a trinta
e cinc o mil quilôm etros da Terr a, que a vir am passar pela Lua. Os sovié tic os,
cujo equipam ento de vigilânc ia não era tão acur ado, só muito mais tarde desc o-
brir am a aproxim aç ão da nave e nunc a chegar am a identif ic á-la com prec isão.
De iníc io, os observador es imaginar am que se tratasse de um grande meteo-
rito ou um pequeno aster óide em rota de colisão com a Terr a. Se fosse constituído
de mater ia l por oso, talvez se inc endia sse ao entrar na atm osf er a. Caso contrár io,
havia ainda a possibilidade de que se fragm entasse em meteor itos menor es, qua-
se inof ensivos. Mas a Terr a estava sem sorte. As prim eir as pesquisas, desc obriu-
se que o “meteor ito” continha alta taxa de ferr o e níquel, o que form ava uma liga
resistente, elim inando a possibilidade de fragm entaç ão extensa e cria ndo terr ível
amea ç a potenc ia l. Natur alm ente, podia-se contar com a alta probabilidade de
que caísse no mar, que cobre setenta por cento do planeta. Se a queda acontec es-
se muito junto à costa, contudo, ter ia o impacto de um mar em oto, ger ar ia uma
onda gigante — a tsunami dos japoneses — que devastar ia grande extensão do li-
tor al. Na pior das hipóteses, corr ia-se o risc o de que o “meteor ito” caísse
em área densam ente povoa da. Aventou-se, então, a possibilidade de destruí-lo
antes que chegasse à Terr a ou alter ar-lhe a traj etór ia.
— Imaginem o que acontec er ia se uma peça de ferr o e níquel, grande como
um ônibus, desabasse sobre o centro de Manhattan, à veloc idade de quase três
mil quilôm etros por hora — Ben-nell exemplif ic ou.
Seis meses antes, as órbitas dos satélites de def esa espac ia l dos
Estados Unidos havia m sido sec retam ente alter ados. Espertos e previdentes,
os proj etistas os equipar am com arm as poder osas e altam ente manobráveis, ca-
pazes de destruir qualquer amea ç a à segur anç a nac ional oriunda desse ou daque-
le planeta. Não dispunham de ogivas nuc lea r es, mas o arm am ento acoplado aos
satélites par ec ia plenam ente satisf atór io para dar combate ao “pedac inho’’ de lixo
espac ia l que amea ç ava o país.
— Então — Miles continua va —, pouc as hor as antes do mom ento previsto
para o ataque ao “meteor ito”, com eç am os a rec eber fotograf ia s espantosas. Não
podia ser um meteor ito, porque as fotos mostravam um obj eto de sim etria bilate-
ral perf eita. Os dados dos computador es instalados nos satélites conf irm ar am
nossas suspeitas. As fotos chegavam de dez em dez minutos. Ao fim de uma
hora, nenhum de nós tinha dúvidas de que se tratava de uma nave espac ia l. A
idéia de destruí-la foi imedia tam ente desc artada. Os sovié tic os não sabia m de
nada, porque não estavam rastrea ndo o obj eto. Quando tivem os certeza de que
ele entrar ia no campo de observaç ão dos sovié tic os, com eç am os a emitir sinais
de interf er ênc ia; assim, não poder ia m saber da “visita” que estávam os esper an-
do. De iníc io, pensam os que a nave não conseguir ia esc apar à atraç ão gravitac io-
nal da Terr a e ser ia apanhada em órbita fixa, antes de colidir com nosso planeta.
Pouc o depois, quando já não havia o que fazer, vim os que a nave se aproxim ava
da Terr a seguindo a traj etór ia de um autêntic o meteor ito; só que, para nossa sur-
presa, a queda par ec ia controlada. Trinta e oito minutos antes do pouso, tínham os
dados suf ic ie ntes para calc ular e prever o ponto de impacto: Elko, Nevada.
— Tiver am tempo para ordenar o bloqueio da rodovia e convoc ar Falkirk e
os hom ens da DERO, que, com certeza, andavam aqui por perto... — completou
Ernie Block.
— Estavam em manobras em Idaho — Miles conc ordou. — Felizm ente,
estavam próxim os. Ou inf elizm ente, conf orm e o ponto de vista.
— Quanto a seu ponto de vista, doutor Bennell, é desnec essár io insistir. Já o
conheç o. — Leland Falkirk sorr ia, enc ostado à porta.
Na cintur a de Miles, a arma pesava como um canhão e par ec ia como um
estilingue.
Ao ver Falkirk, Ginger desc obriu que as fotos do Sentinela não lhe fazia m jus-
tiç a. Era mais atrae nte e mais imponente do que o jornal mostrava. A metralha-
dor a, que carr egava despreoc upa-dam ente pendur ada no ombro, par ec ia cem
vezes mais amea ç ador a que a de Horner, apontada para o cor aç ão do dr. Ben-
nell. Ginger teve a impressão de que aquela postur a, tão desc ontraída, era quase
um convite para que alguém se atrevesse a atac á-lo. Ao vê-lo entrar, pressentiu
ou adivinhou a aura de louc ur a e terr or que o acompanhava.
— Onde estão seus soldados, cor onel? — Bennell perguntou.
— Estam os aqui... o tenente Horner... e eu. Não achei nec essár io mobilizar
mais gente para disc utir um assunto tão simples com pessoa s tão sensatas.
Bennell fungou, conf uso e assustado. Ginger sentiu um arr epio.
— Por favor — Falkirk continuou, sorr indo ligeir am ente —, não interr om-
pam o que estavam fazendo. O doutor Bennell terá todo o prazer em responder às
perguntas que desej em fazer.
— Tenho uma pergunta — dec lar ou Sandy. — Onde estão os... tripulantes
dessa nave?
— Estão mortos. Eram oito... e morr er am antes de pousar.
Para Ginger, foi como saber da morte de uma fam ília amiga.
— Morr er am... como? — Ned quis saber. — Algum a doe nç a?
Sem tir ar os olhos de Falkirk, Bennell respir ou fundo e explic ou:
— Para compreender, voc ês prec isam saber, pelo menos, o que desc obri-
mos sobre eles e sobre as razões que os fizer am vir até nós. Enc ontram os, no
computador da nave, uma espéc ie de enc ic lopédia de sua cultur a, da histór ia de
sua espéc ie. Dem or am os duas sem anas para desc obrir a fita de vídeo e mais de
um mês para entender como oper ar o apar elho onde estava. Desc obrim os que o
apar elho estava em bom estado de conservaç ão, func ionando perf eitam ente, o
que é espantoso, consider ando que... Bem, vam os por partes. Inter essa, por ora,
que vim os a fita, e entende-
mos perf eitam ente a mensagem que nos trazia m, porque usar am uma lin-
guagem visua l de fantástic a clar eza, que pratic am ente elim inava a barr eir a da
língua. Alguns cie ntistas chegar am a se emoc ionar, chor ando como cria nç as, ao
perc eber que se sentia m como irm ãos de nossos... convidados.
— Irm ãos... — Falkirk repetiu, com um riso irônic o e maldoso. Bennell fez
como se não tivesse ouvido e continuou:
— Ser ia m nec essár ia s muitas sem anas para que eu pudesse lhes contar
tudo o que sabem os sobre eles. Por enquanto, para que entendam o que aconte-
ceu, basta saber que a espéc ie deles é muito ijia is antiga que a nossa. Quando
partir am para essa via gem, havia m loc alizado já cinc o outros planetas habitados
por ser es inteligentes.
— Cinc o! — Ginger exc lam ou, deslumbrada. — Mas... é fabuloso! Ainda
que todas as galáxia s estivessem cheia s de ser es inteligentes, é quase impossível
acreditar que tenham conseguido loc alizar cinc o, quando nós, por exemplo, em
milhões de anos, não loc alizam os um únic o planeta habitado!
— Creio que, quando afinal dom inar am a tecnologia das via gens interga-
láctic as — Bennell prosseguiu —, a questão de enc ontrar e visitar seus planetas
irm ãos tornou-se para eles uma espéc ie de religiã o, um dever místic o. É dif íc il
entenderm os bem esse aspecto de sua cultur a. A verdade é que a fita que trouxe-
ram fala mais de aspectos do dia-a-dia que de altas indagaç ões filosóf ic as. Mas
vár ios pesquisador es, além de mim, acham que as via gens eram, para eles, uma
espéc ie de serviç o religioso, como se, na busc a de outros tipos de vida, tentassem
provar que todos nós estam os ligados a um únic o Cria dor.
— Deus?! — perguntou Brendan, lívido. — Acha que eles te-riam vindo
como mensageir os de... Deus?
— Talvez. Não como “mensageir os”, no sentido em que entendem os os an-
jos, por exemplo. Não trazia m nenhum a mensagem de car áter religioso. Tenho a
impressão de que a grande missão desses via j antes era ajudar a estabelec er con-
tato entre as vár ia s es-
tihi
péc ie s que habitam o espaç o. Fazer com que se enc ontrassem e cria ssem la-
ços entre si.
— Laç os... — Falkirk fez uma car eta e olhou o relógio. Lentam ente, mo-
vendo-se com calm a, o gener al aproxim ava-se
de Leland sem que o outro o visse. Perc ebendo a manobra, e cada vez mais
angustia da com o clim a de cresc ente hostilidade entre Bennell, Falkirk e Alvar ado
— hostilidade que não conseguia ^ntender —, Ginger acerc ou-se de Dom e enla-
çou-o pela cintur a.
— Eles nos trouxer am um presente — disse Bennell, chegando /mais perto
de Falkirk. — Pertenc em a uma espéc ie antiqíiíssim a,
que viveu milênios para aprender a usar esses poder es que, para nós, ainda
par ec em par anorm ais, como a capac idade de cic atrizar tec idos ou mover obj e-
tos. Nossos “amigos” não apenas tiver am tempo para desenvolver tais poder es,
como também esc obrir am um modo de transf er i-los a espéc ie s que ainda não jps
conhec em.
— “Transf er i-los”? — Dom repetiu. — Como? rp- — Ainda não desc obri-
mos. Mas não há dúvida de que eles sabem passar adia nte suas habilidades. O
que acontec eu com voc ês, por exemplo, comprova isso.
— O quê?! — Jack arr egalou os olhos. — Está dizendo que Dom e Brendan
também podem passar para nós... ou para qualquer outra pessoa... os poder es que
têm?!
— Já acontec eu — Brendan respondeu por Miles. — As duas pessoa s que
consegui salvar em Chic ago, um polic ia l e uma garo-tinha, já são capazes de fa-
zer o que eu faço.
— Mais dois foc os de contágio — Falkirk resm ungou.
— Três, cor onel. — Parker sorr iu. — Eu também fui salvo por Brendan. Se
o senhor prec isar, me telef one. Será um prazer salvá-lo.
Falkirk fulm inou-o com um olhar, e Brendan continuou:
— Não acredito que Dom e eu sej am os capazes de transm itir só um de
nossos poder es. Acho que, quando salvo alguém, transm ito-lhe todos que rec ebi,
mesm o aqueles que ainda não desc obri.
A cabeç a de Ginger dava voltas, como um torvelinho.
— Deus... Doutor Bennell, o senhor está dizendo que eles vie r am para ace-
ler ar nosso proc esso de evoluç ão... Para nos fazer queim ar etapas, de modo que
nos transf orm ar em os logo numa espéc ie super ior... E isso?!
— Par ec e que sim.
— Ora, ora... — Falkirk olhou para o relógio. — Chega de palhaç ada!
— Mas que palhaç ada, cor onel? — Fay e vir ou-se para ele. — Será que já
não basta a louc ur a de imaginar que não som os hum anos?
— Por favor, não com eta o erro de pensar que me engana. Voc ês estão to-
dos possuídos por esses dem ônios. Bobagem tentar me enganar.
— O que signif ic a isso? — Ginger perguntou a Bennell, vendo-o aproxi-
mar-se de Falkirk pela esquerda, com a clar a intenç ão de cham ar sua atenç ão
para o lado oposto ao do gener al Alvar ado.
— Um erro — Bennell respondeu. — Ou, talvez, apenas outra amostra da
pobreza de espír ito de nossa inf eliz espéc ie, sempre desc onf ia da e assustada fren-
te a tudo que é dif er ente. Até eu e alguns de nossos cie ntistas mais conf iá veis
chegam os a tem er que os extraterr estres tentassem controlar nossas mentes. Mas
logo compreendem os a verdade, à medida que tivem os acesso às fitas de vídeo
de sua enc ic lopédia.
— Eu não acredito na “verdade” dessas fitas — gritou Leland. — Pura pro-
paganda. Mentir as e mais mentir as. Voc ês for am contam inados.
— Não acredito que eles fossem capazes de mentir — rebateu Miles. —
No entanto, supondo que quisessem nos enganar, por que trar ia m as fitas? Por
que se preoc upar ia m em explic ar o que estavam nos dando de presente, sem pe-
dir nada em troc a?
— Sei que nem todos aqui são religiosos — disse Brendan —, mas eu os
vejo como verdadeir os mensageir os de Deus. Como anj os...
— E dem ais! — Falkirk soltou uma gargalhada. — Você pensa que conse-
gue me fazer engolir essa baboseir a de anj os e mensageir os de Deus... como
meu pai, aquele desgraç ado, fazia? Esque-
ça! Nao acredito em anj os... Acho que nem voc ês acreditar ia m que eles são
anj os, se os vissem... São monstros... Não têm cabeç a... par ec em verm es... no-
jentos, visguentos... São monstros!
— Verm es? — Brendan vir ou-se para Miles. — O que ele quer dizer com
isso?
— Nossos visitantes, na verdade, não se par ec em conosc o — explic ou o
doutor. São bípedes, como nós, e têm dois braç os e duas mãos, mas cada uma
com seis dedos. Na verdade, de iníc io, também me par ec er am repulsivos. De-
pois, aos pouc os, fui desc obrindo que, lá a seu modo, eram muito bonitos.
— Só podem par ec er bonitos aos olhos de seus sem elhantes! — O cor onel
espum ava de fúr ia. — Voc ês são todos iguais! Ben-nell acaba de provar que te-
nho razão... voc ês estão podres, contam inados, são monstros como eles, verm es...
Esquec endo o medo e a metralhador a, Ginger saltou à frente de Falkirk.
— Seu idiota! — gritou. — Que importânc ia tem se eles não são iguais a
você e a mim?! O que importa é apenas o que são por dentro, na alma, no cor a-
ção, seja lá onde for! E eles vie r am com o únic o obj etivo de nos ajudar. Os ser es
hum anos de bom cor aç ão têm mais coisas em com um com eles do que dif er en-
ças. Meu pai dizia que inteligênc ia, cor agem, amor, amizade, compaixão e em-
patia são as grandes qualidades que dif er enc ia m o ser hum ano. Mas só a inteli-
gênc ia não basta para nos distinguir de um mac ac o... ou de um verm e! Um ver-
me não ter ia cor agem para se aventur ar pelo espaç o, rumo ao desc onhec ido,
como eles fizer am. Que verm e arr isc ar ia a própria vida para nos ajudar a
ser mais felizes?
Cada vez mais exaltada, sentiu que não falava apenas aquele cor onel ridíc u-
lo, cheio de orgulho e vaidade, mas à própria hum anidade, inc apaz de ver o futu-
ro, de sonhar, de crer e lutar por dias melhor es. A hum anidade está conf orm ada
com a própria misér ia, porque é uma misér ia conhec ida, que já não assusta
nem indigna, que faz parte da essênc ia do dia-a-dia.
•— Olhe para mim, cor onel! Está vendo? Sou judia. Há muita
gente, por aí, capaz de achar que eu também não sou humana, que minha
raça gera monstros, que matam os e com em os cria nc inhas! Que dif er enç a existe
entre o anti-sem itism o par anóic o de tantos e sua louc ur a, cor onel? Por favor,
pense um pouc o... Deixe-nos sair em paz, sem tir os, sem mortes... Podem os aju-
dá-lo a reenc ontrar a paz... Basta que nos deixe ajudá-lo. Por favor!
— Magníf ic o disc urso, doutor a... — Falkirk bateu palm as que ecoa r am,
agour entas, entre as par edes de pedra. Sem par ar de falar ou de olhar para Gin-
ger, apontou a metralhador a para o peito de Alvar ado.
— Pára onde está, gener al. Não toque na arma. Não tenho planos de mor-
rer com um tiro... Vou esper ar pelo grande fogo...
— Grande fogo? — Bennell vir ou-se para ele.
— O grande fogo que vai acabar conosc o e livrar o mundo da desgraç a
que o senhor esc onde aqui.
— Bob! — Bennell aproxim ou-se de Alvar ado. — Esse maluc o deve ter
ativado as bombas...
— Duas bombas... — Falkirk riu. — Uma está aqui no hall. A outra está no
andar de baixo. Ativadas e ligadas ao timer. — Consultou o relógio. — Faltam três
minutos... Não há tempo nem para voc ês tentar em me passar seus mic róbios!
Quanto tempo dem or a para ocorr er contágio?
Ginger olhava para Fíorner, tentando desc obrir o que fazer, quando viu a me-
tralhador a voar de suas mãos... livre, leve... par ar no ar por um instante e acom o-
dar-se, tranqüila, nas mãos de Jack. Ao lado, a metralhador a de Falkirk saltava
para a mão de Ernie, que a rec ebeu em pleno voo.
— Foi você, Dom? — Ginger perguntou-lhe.
— Acho que sim... — Ele sorr iu, ainda assustado. — Mas nem sabia que
podia fazer isso, mais ou menos como Brendan, quando rea liza suas cur as.
— Mas de que adia nta isso? — Bennell aproxim ou-se. — Falkirk disse que
as bombas estão acionadas para explodir em três minutos.
Dom corr eu para a porta de madeir a, gritando:
— Brendan! Cuide da bomba que está aqui. Eu me enc arr ego da que está
no andar de baixo.
— É inútil... — Alvar ado suspir ou.
Brendan ajoe lhou-se ao lado da bomba e estrem ec eu ao ver o pequeno cro-
nôm etro: faltavam noventa e três segundos para a explosão.
Não sabia o que fazer. Cur ar a três pessoa s, é verdade; fizer a voa r em saleir os
e vidros de molho; até cria r a luz com o poder de suas mãos. Mas os saleir os e vi-
dros de molho esc apar am-lhe ao controle e, de um mom ento para o outro, passa-
ram a amea ç ar todo mundo no restaur ante. Sabia que, se fizesse um movim en-
to em falso com o detonador da bomba, de nada valer ia m seus pobres de super-
hom em.
Oitenta e seis segundos.
Todos os outros deixar am a caverna e reunir am-se na antecâ-mara. Falkirk e
Horner continua vam sob a mira das metralhador as — o que, para os dois, não fa-
zia a menor dif er enç a, pois conf ia vam plenam ente na efic ác ia da bomba.
Setenta e um segundos.
— O que acontec er á se eu fizer explodir o detonador? — Brendan pergun-
tou para Alvar ado.
— Nem tente. A bomba é program ada para explodir autom atic am ente as-
sim que alguém toc ar no detonador.
Sessenta e três segundos.
Fay e ajoe lhou-se ao lado de Brendan e suger iu:
— Faça o detonador separ ar-se da bomba. Como Dom fez para desarm ar
os dois soldados.
Brendan fixou os olhos no pequeno relógio que não par ava de gir ar e tentou
imaginar que o detonador pulava para longe da bomba. Nada!
Quar enta e quatro segundos.
Esm urr ando as par edes do elevador para que andasse mais rápido, Dom cor-
reu para o hall do terc eir o piso tão logo a porta se abriu o suf ic ie nte para lhe dar
passagem. Ginger seguiu-o.
Ele ajoe lhou-se ao lado da bomba, o cor aç ão pulando na garganta.
— Jesus! — exc lam ou.
Quar enta e dois segundos.
— Você vai conseguir. — Ginger nao tir ava os olhos dos ponteir os. — Você
tem uma tar ef a grandiosa.
— Lá vai...
— Eu te amo.
— Eu também te amo.
Sempre sem tir ar os olhos do detonador, Dom ergueu as mãos e viu os anéis
apar ec er em, um em cada palm a. Brendan sua va frio. Trinta e nove segundos.
Já sentia os anéis nas palm as da mão, sabia que o poder despertava em seu
corpo, mas não conc entrava-se na urgênc ia da tar ef a. Quanto mais pensava, me-
nos conseguia controlar a energia que acordava.
Trinta e quatro segundos.
— Assim não dá... — Parker aproxim ou-se. — Você está tentando uma via
rac ional, talvez porque é jesuíta, e os jesuítas são vic ia dos em pensar. Deixe-me
tentar por outro cam inho, mais emoc ional. Eu sou artista... Deixe-me tratar disso
a meu modo. — Apontou um longo dedo irado para o detonador e berr ou: —
Seu filho de uma puta, desgraç ado, vea do de merda... Caia fora daí.../a!
Com um estalido de fios rebentados, o detonador simplesm ente saltou da
bomba e aninhou-se nos braç os de Parker.
— Os ponteir os ainda estão corr endo! — Brendan exc lam ou, perplexo.
— Mas o detonador está aqui... — Parker riu.
— Há uma carga de explosivo convenc ional no próprio detonador. — Alva-
rado estendeu a mão, esper ando que o pintor o jogasse para ele.
O outro detonador pulou nas mãos de Dom. Os olhos fixos nos ponteir os, que
continua vam a corr er, perc ebeu que, de algum modo, era prec iso fazê-los par ar.
Então, sem pensar mais, simplesm ente desejou que par assem. Os ponteir os fic a-
ram como que con-
gelados, e no visor digital os algar ism os imobilizar am-se de repente: três se-
gundos!
Ainda mal acostum ado ao papel de mágic o, Parker assustou-se com a inf or-
maç ão de Alvar ado. Mas, coe r ente com o papel de her ói em mom entos de crise
quase inc ontornável, gritou que todos se deitassem e protegessem a cabeç a. En-
tão jogou o detona-dor para longe e atir ou-se de cara no chão. O apar elho rolou
como uma granada e par ou a centím etros da par ede do fundo.
Dom estava beij ando Ginger quando ambos ouvir am a explosão no andar de
cima. Estrem ec er am. Prec isar am de um segundo para perc eber que, se fosse a
bomba, o teto já ter ia desabado, e eles estar ia m caindo ainda mais fundo, junto
com toneladas de roc ha.
— Foi o detonador — Ginger disse.
— Vam os ver se há alguém fer ido.
O elevador arr astava-se para cima. Na antecâm ar a, for am rec ebidos por
um verdadeir o exérc ito de soldados arm ados até os dentes, prontos para entrar
em combate. Dom pegou a mão de Ginger e, sem ver nem pensar, corr eu para a
sala da nave. Prim eir o viu Fay e. Depois Sandy e Ned. Brendan, vivo, inteir o, Jor-
ja, Mar eie, Jack.
Parker corr eu para os dois e envolveu-os num enorm e abraç o!
— Você perdeu meu show, amigo! Fui fantástic o! Se tivessem me convo-
cado, junto com Audie Murphy, ter ía m os acabado com a Segunda Guerr a em
menos de seis meses!
— Acho que estou com eç ando a desc obrir por que Dom gosta tanto de
você... — Ginger riu.
— Porque convive com igo há muito tempo... “Conhec er Parker é amá-lo”!
De repente, um grito assustado cham ou-lhes a atenç ão. Aproveitando-se do
mom ento em que a euf or ia os tornar a desc uidados, Falkirk fugiu do alc anc e das
arm as de Jack e Ernie, e tir ou uma pistola de um dos soldados.
— Pelo amor de Deus, hom em... — Jack gritou. — Está tudo acabado. Já
não há per igo, droga. Esqueç a essas louc ur as de monstros e...
— Sei, sei... — Falkirk sorr iu irônic o. Não perder ia sua miser ável guerr a par-
tic ular no instante em que chegar a tão perto de uma vitór ia consagrador a. — Está
tudo acabado... mas voc ês não vão me apanhar em suas arm adilhas. Não vão me
pegar!
Antes que alguém pudesse pensar em tir ar-lhe a arma das mãos, meteu o
cano da pistola na boca e pressionou o gatilho.
Com um grito de horr or, Ginger vir ou-se para não ver, Dom fec hou os olhos.
Não era apenas a soluç ão violenta que os horr or izava. Muito mais do que isso, as-
sustava-os a estupidez de uma morte, mais uma, no mom ento em que a hum ani-
dade estava tão próxim a de ganhar, para sempre, a transc endênc ia.
3. TRANSCENDÊNCIA
Enquanto os soldados de Thunder Hill deslumbravam-se com a nave, que
muitos deles jam ais havia m visto, Ginger, Dom e os outros, acompanhados por
Miles Bennell, subir am a rampa de acesso.
O inter ior da nave era simples como a fuselagem, e conf orm e Miles expli-
cou, a espéc ie a que pertenc ia m os visitantes havia m super ado a conc epç ão de
equipam entos cie ntíf ic os tal como nós os conhec em os. Com certeza, ter ia m su-
per ado até a própria físic a que estudam os.
Logo à entrada vir am uma grande sala, quase completam ente cinzenta, sem
nada de espec ia l. Não enc ontrar am vestígio da luz dour ada que brilhava ali na
noite de 6 de julho e que Brendan voltar a a ver em sonhos. Apenas um fio esten-
dia-se de par ede a par ede, com lâmpadas com uns, instalado pelos cie ntistas para
poder em trabalhar.
Ainda assim, a nave era quente, hospitaleir a e mágic a. Ginger lembrou-se do
esc ritór io do pai, nos fundos da prim eir a joa lhe-ria que comprar a no Brookly n,
onde instalou seu quartel-gener al dur ante anos. O santuá r io tinha dec or aç ão co-
mum, quase vul-
gar. Mas Ginger achava aquela sala a mais fantástic a e mágic a que podia ha-
ver, porque era onde seu pai trabalhava, lia, sentava-se para pensar a contar-lhe
histór ia s: aventur as de mistér io, contos de fada, com bruxas e gnom os. Ao ouvi-
lo, Ginger esquec ia as par edes nuas e os móveis velhos e soltava a fantasia; às
vezes ia para Londres, ajudar Sherlock Holm es em suas investigaç ões; às vezes ia
para muito mais longe, guia da pelas mãos de Ray Brad-bury. O esc ritór io do pai
era como uma gruta enc antada. A nave, embor a muito dif er ente, tinha a mesm a
aura de deslumbram ento. Pelas par edes nuas, aqui como lá, corr ia m inf indáveis
rios de mar avilhas e mistér ios.
Junto às par edes, enf ileir avam-se quatro urnas branc o-azuladas, grandes o
bastante para acom odar ser es adultos, fabric adas com mater ia l desc onhec ido,
transpar ente como acrílic o. Havia m ser-
ido para manter os via j antes em estado de sem ic ongelam ento du-nte a via -
gem, de modo que envelhec ia m apenas um ano terr estre a cada cinqüenta anos,
conf orm e Bennell explic ava. Provavelm ente, via j ar am sem acordar, entregando
a dir eç ão da nave a apar elhos capazes de indic ar a existênc ia de vida inteligente
nos planetas pelos quais passavam. Atravessar am centenas de milhar es de siste-
mas solar es tão grandes quanto o nosso.
A tampa de cada urna apresentava uma marc a circ ular, idêntic a, em form a
e tam anho, aos anéis que apar ec ia m nas palm as das mãos de Dom e Brendan.
— O senhor disse que eles já chegar am mortos — Ned lembrou —, mas
não contou como morr er am.
— Morr er am de velhos. — Bennell balanç ou a cabeç a. — A nave continou
a func ionar guia da apenas por apar elhos, até alguns minutos depois de pousar na
rodovia. Os tripulantes já devia m estar mortos há muito tempo.
— Envelhec endo um ano a cada cinqüenta?! — Fay e adm ir ou-se.
— A espéc ie é dif er ente da nossa. Pelo que conseguim os deduzir, vivia m,
em média, cerc a de quinhentos anos.
Com Mar eie no colo, Jack aproxim ou-se de Bennell para com entar:
— Deus... Se um ano na Terr a equivale a cinqüenta anos, eles estavam via -
jando há pelo menos vinte e cinc o milênios, para morr er de velhos!
— Muito mais — corr igiu Bennell. — Apesar de todo o avanç o tecnológic o,
as inf orm aç ões que trouxer am provam que nunc a conseguir am super ar a veloc i-
dade da luz, cerc a de trezentos mil quilôm etros por segundo. Na verdade, a nave
via j ava a uma veloc idade ligeir am ente inf er ior, até pequena em relaç ão a dis-
tânc ia que tinha a perc orr er. Nossa galáxia, que é vizinha à deles, tem oitenta mil
anos-luz de diâm etro, o equivalente e trezentos e oitenta e quatro trilhões de quilô-
metros. O audiovisua l que trazia m indic ava a loc alizaç ão exata do planeta de ori-
gem: trinta e um mil anos-luz do lim ite da sua galáxia. Via j ando a uma veloc ida-
de bem próxim a à da luz, é fác il calc ular e desc obrir que saír am de casa há pou-
co menos de trinta e dois milênios. Mesm o com envelhec im ento muito lento, por
causa da hibernaç ão controlada, devem ter morr ido há, no mínim o, dez milênios.
Ginger trem ia dos pés à cabeç a. Com a mão trêm ula, toc ou a urna mais pró-
xim a, sentindo que estava dia nte de um monum ento à compaixão, ao amor, à
empatia; um monum ento que ultrapassava o entendim ento hum ano e provava
uma capac idade de sac rif íc io ao mesm o tempo com ovente e assustador a. Havi-
am saído de casa certos de que jam ais voltar ia m, anim ados apenas pela esper an-
ça de ajudar outra espéc ie muito distante.
— Morr er am a vinte e cinc o mil anos-luz de distânc ia de seu planeta — Ben-
nell continua va, em voz baixa e rever ente, como se estivesse rezando ou falando
numa igrej a. — Já estavam a cam inho e mortos quando a hum anidade ainda vi-
via em cavernas e com eç ava a aprender a cultivar a terr a. Quando morr er am,
havia apenas cinc o milhões de habitantes em nosso planeta... menos que a meta-
de da atua l populaç ão de Manhattan. Dur ante o últim o milênio, desde que o ho-
mem ainda espantava lobos nas estepes até construir suas horr íveis bombas capa-
zes de acabar com a vida da face do globo, esses oito aventur eir os invenc íveis
corr ia m para nós, cortando a vastidão do espaç o deserto.
Brendan toc ava outra urna e chor ava. Pensava em tudo que deixar a de lado
para dedic ar-se ao sac erdóc io: fam ília, filhos, prazer es mundanos. E, de repente,
desc obria que seu sac rif íc io era nada, compar ado ao que Deus exigir a daqueles
ser es.
— Mas para enc ontrar outros cinc o planetas habitados, a distânc ia s tão...
inac reditáveis — disse Parker, proc ur ando as palavras —, com possibilidades tão
rem otas de chegar em a seu destino, eles ter ia m que lanç ar ao espaç o muitas na-
ves iguais a essa...
— Imaginam os que lanç avam centenas por ano, talvez milhar es — Bennell
explic ou. — E isso mais de cem milênios antes que esta nave partisse. Como eu
lhes disse, as via gens têm um alto signif ic ado para eles, tanto cultur al quanto... re-
ligioso. As outras cinc o raç as ou espéc ie s que loc alizar am estavam num raio de
quinze mil anos-luz do mundo deles. E não podem os esquec er que, depois de lo-
calizar um planeta habitado, a notíc ia ainda dem or a quinze milênios para retornar
ao planeta deles. Acho que agor a voc ês com eç am a entender o sentido e a pro-
fundidade do comprom isso, não é?
— Algum as naves talvez nem voltem... nem cheguem a lugar nenhum —
Ernie pensou em voz alta. — Fic am aí pelo espaç o, para sempre, mesm o depois
que a tripulaç ão está morta há milênios.
— Certo... — Bennell conc ordou.
— Mas mesm o assim eles continua m... — disse Dom.
— Mesm o assim, eles continua m.
— Nunc a chegar em os a tanto! — Ned baixou a cabeç a e abraç ou Sandy.
— Talvez cheguem os — Bennell sorr iu. — Clar o que prec isar em os de tem-
po para amadur ec er... mil anos, um pouc o mais, talvez. Depois, outros cem anos
para desenvolver, em term os de tecnologia, as inf orm aç ões que nos trouxer am.
Então poder em os construir e lanç ar uma nave com tripulaç ão hum ana, em esta-
do de hibernaç ão. Talvez até lá tenham os desenvolvido algum proc esso de blo-
quea r o envelhec im ento. Nós já não estar em os aqui para ver, nem nossos netos,
mas os tatar anetos dos tatar anetos dos
tatar anetos de nossos tatar anetos talvez estej am: trinta e dois milênios depois
da partida, nossos desc endentes distantes retribuir ão essa visita, respondendo ao
convite que nossos “amigos” conseguir am nos entregar, em mãos, mesm o depois
de mortos.
Todos fic ar am em silênc io, tentando visua lizar a imensidade do futur o que
Bennell desc rever a.
— Par ec e que estam os pensando como Deus... Pensando e sonhando como
se fôssem os Deus, e não hom ens — Brendan murm ur ou.
— E, dia nte disso, quem liga para a dec isão do campeonato, no jogo de do-
mingo? — Parker riu.
Dom toc ava as urnas com a ponta dos dedos, andando à volta da cabine.
— Só seis tripulantes estavam mortos quando chegar am — disse. — Lem-
bro que duas dessas urnas par ec ia m nos cham ar. Eram aquelas... — Apontou. —
Continham ser es vivos; muito frac os, é verdade, mas vivos.
— Sim... — Brendan conc ordou, as lágrim as corr endo-lhe pelo rosto. —
Havia luz nestas duas urnas, uma luz que par ec ia nos hipnotizar. Fui conduzido até
aqui e como que obrigado a coloc ar as mãos sobre este anel, prim eir o a dir eita,
depois a esquerda. Quando obedec i... senti que havia vida na urna, um fio de
vida, lutando para não se perder antes de nos passar os... poder es. Do lado de
dentro da urna, ele também toc ou o anel, prim eir o com uma mão, depois com a
outra... e então, afinal, cumpriu a missão que o trouxer a. Morr eu instantes depois.
Não entendi o que estava acontec endo, nem o que sentia... ignor ava os poder es...
Pouc o depois apar ec er am os guardas e nos levar am.
— Vivos! — Bennell mal conseguia respir ar. — Sim... é possível! Dois cor-
pos estavam reduzidos a pó... outros dois em adia ntado estado de dec omposiç ão,
talvez porque as câm ar as de hibernaç ão desligar am-se autom atic am ente no ins-
tante em que morr er am... Dois estavam ra, 'cim ente conservados, e dois... esta-
vam perf eitos. Par ec ia que simplesm ente dorm ia m. Mas não imaginam os que...
— Lembro-me de tudo — afirm ou Dom. — Sem dúvida, o meu também es-
tava vivo e, quase morr endo, me passou os poder es. Clar o que eu esper ava ser
interr ogado, ter tempo para pensar sobre o que acontec er a e para pôr as idéia s
em ordem. Mas o Governo estava tão aflito, tentando proteger a populaç ão do
“contato com uma cultur a mais adia ntada”, como dizia o tal relatór io... Talvez, na
verdade, tivesse apenas medo do desc onhec ido... Nunc a tive a oportunidade de
contar isso a ninguém.
Ginger olhou, um por um, os rostos dos amigos do Motel Tran-qüilidade, ven-
do em cada olhar a prom essa que se cumprir ia: nasc ia m os novos tempos. O gru-
po ali presente ter ia um papel importante na construç ão do futur o, estar ia m uni-
dos para sempre... Todo hom em rea prender ía a amar ao próxim o como a
si mesm o. Ninguém mais se sentir ia estrangeir o em nenhum canto do planeta. Já
não haver ia desc onhec idos onde existissem pelo menos dois hom ens, um hom em
e uma mulher, duas mulher es, duas cria nç as. Ginger olhou para as própria s
mãos, pequenas e hábeis mãos de cir urgiã. Talvez estivessem perdidos os anos e
anos de estudo e prátic a.
Que importava? O mundo já não prec isar ia de médic os, hospitais, cir urgia s.
Logo, quando Dom lhe transm itisse os poder es, cur ar ia com um simples toque, e,
ao cur ar, passar ia adia nte os mesm os dons. A estim ativa de vida da espéc ie cres-
cer ia muito... haver ia gente com duzentos, trezentos, quinhentos anos de ida-
de. Pratic am ente já não haver ia morte, exc eto talvez nos casos de acidentes. Ne-
nhum Jac ob e nenhum a Anna ser ia m arr anc ados de perto dos filhos que ama-
vam. As Jenny ter ia m vida longa, para partilhar a velhic e saudável e útil dos ma-
ridos. Baruc h-ha-Shem... nunc a mais!