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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando


por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
Tradução de

MARIA CL ÁUDIA FIT T IPAL DI


A Bob Tanner, cujo entusiasmo, numa fase
decisiva, foi mais importante do que ele supõe.
PRIMEIRA PARTE

TEMPOS DIFÍCEIS

Um amigo fiel é um escudo poderoso.


Um amigo fiel é o bálsamo da vida.

Textos Apócrifos

Uma escuridão terrível abateu-se sobre nós, mas não


podemos nos render.

Épreciso erguer bem alto as lâmpadas de nossa coragem


e encontrar o caminho que nos conduzirá pela noite em
direção à manhã.

Membro anônimo da
Resistência francesa,
1943
UM_______________________

7 de no​vem​bro - 2 de de​zem​bro

1. LA​G U​NA BE​A​CH, CA​LI​FÓR​NIA


Do​m i​nick Cor​vai​sis dei​tou-se para dor​m ir, pu​xan​do para o quei​xo o co​ber​tor
leve e o len​ç ol ima​c u​la​da​m en​te bran​c o. Es​ta​va so​zi​nho, con​f or​ta​vel​m en​te aco​-
mo​da​do, mas des​per​tou em ou​tro lu​gar, no can​to mais es​c u​r o do gran​de ar​m á​r io
do sa​guão, en​c o​lhi​do como um feto atrás dos ca​sa​c os e pa​le​tós pen​den​tes dos ca​-
bi​des. Ti​nha os pu​nhos cer​r a​dos com for​ç a; os mús​c u​los do pes​c o​ç o e das cos​tas
do​í​a m-lhe, ten​sos, como se ain​da vi​ves​se um pe​sa​de​lo para ele in​c om​preen​sí​vel.
Nao se lem​bra​va de ter sa​í​do da cama, mas a des​c o​ber​ta de que an​da​r a du​-
ran​te o sono não o sur​preen​dia: em pou​c as se​m a​nas era já a ter​c ei​r a cri​se. O so​-
nam​bu​lis​m o, fe​nô​m e​no co​nhe​c i​do tam​bém como noc​tam​bu​lis​m o e con​si​de​r a​do
pe​r i​go​so em po​ten​c i​a l, sem​pre fas​c i​nou a hu​m a​ni​da​de ao lon​go da His​tó​r ia. Para
Dom, tor​nou-se par​ti​c u​lar​m en​te fas​c i​nan​te a par​tir do mo​m en​to em que per​c e​-
beu que ele pró​prio era mais uma ví​ti​m a con​f u​sa des​se es​tra​nho mal. Co​m e​ç ou a
pes​qui​sar e des​c o​briu que des​de o ano 1000 a.C. já apa​r e​c i​a m na li​te​r a​tu​r a re​f e​-
rên​c i​a s a pes​so​a s que an​da​vam en​quan​to dor​m i​a m. Para os an​ti​gos per​sas, o so​-
nâm​bu​lo va​ga​va à pro​c u​r a da alma que lhe es​c a​pa​r a do cor​po du​r an​te a noi​-
te. Para os eu​r o​peus, prin​c i​pal​m en​te du​r an​te a Ida​de Mé​dia, tudo se
ex​pli​c a​va a par​tir de pos​ses​são de​m o​ní​a ​c a, em​bo​r a exis​tis​se tam​bém quem
pre​f e​r is​se fa​lar em li​c an​tro​pia.
Os no​vos e es​tra​nhos há​bi​tos no​tur​nos de Dom não o as​sus​ta​vam, em​bo​r a o
in​tri​gas​sem e, por al​gu​m a ra​zao di​f í​c il de en​ten​der, o fi​zes​sem sen​tir-se mui​to
em​ba​r a​ç a​do. Como es​c ri​tor, via na​que​las pe​r am​bu​la​ç ões no​tur​nas a pos​si​bi​li​da​-
de de ex​pe​r i​ê n​c i​a s no​vas que, even​tu​a l​m en​te, ser​vi​r i​a m de as​sun​to para um ro​-
man​c e. Ain​da as​sim, em​bo​r a o so​nam​bu​lis​m o pu​des​se trans​f or​m ar-se em pura
arte, a qual, por sua vez, se con​ver​te​r ia em dó​la​r es para en​gor​dar sua con​ta ban​-
cá​r ia, Dom não con​se​guia ti​r ar da ca​be​ç a a idéia de que, afi​nal, tra​ta​va-se de
uma do​e n​ç a.
Com di​f i​c ul​da​de, ar​r as​tou-se para fora do ar​m á​r io, sem con​se​guir fir​m ar-se
nas per​nas en​tor​pe​c i​das. A dor do pes​c o​ç o co​m e​ç a​va a es​pa​lhar-se pela ca​be​ç a
e pe​los om​bros.
Como das ou​tras ve​zes, sen​tia-se mui​to en​ver​go​nha​do. Por mais que os li​vros
afir​m as​sem que a ocor​r ên​c ia de cri​ses de so​nam​bu​lis​m o em adul​tos era bas​tan​te
co​m um, Dom es​ta​va con​ven​c i​do de que aqui​lo era coi​sa de cri​a n​ç a... Como uri​-
nar na cama.
Quan​do con​se​guiu afi​nal le​van​tar-se, an​dou às apal​pa​de​las pela sala, até o
pe​que​no cor​r e​dor que le​va​va ao quar​to e dali che​gou ao ba​nhei​r o, ain​da ves​ti​do
como quan​do se dei​ta​r a, com a cal​ç a do pi​j a​m a azul, sem ca​m i​sa e sem chi​ne​-
los. O es​pe​lho mos​trou-lhe o ros​to, qua​se ir​r e​c o​nhe​c í​vel, de um li​ber​ti​no, um de​-
vas​so que vol​ta​va para casa após de​di​c ar dias in​tei​r os a uma lon​ga e de​sa​ver​go​-
nha​da se​qüên​c ia de pe​c a​dos.
Na ver​da​de, Dom era ho​m em de ví​c i​os bem mo​de​r a​dos: não fu​m a​va, não
co​m ia de​m ais, não usa​va dro​gas e be​bia pou​c o. Gos​ta​va de mu​lhe​r es, mas não
era pro​m ís​c uo e acre​di​ta​va na im​por​tân​c ia da fi​de​li​da​de para aju​dar a man​ter
um re​la​c i​o​na​m en​to so​li​do. Na ver​da​de, não se dei​ta​va com uma mu​lher fa​zia
qua​tro me​ses.
Mas era sem​pre a mes​m a coi​sa: cada vez que vol​ta​va de suas ex​c ursões no​-
tur​nas pe​los can​tos es​c u​r os da casa, acor​da​va exaus​to, com o ros​to can​sa​do. Em​-
bo​r a con​ti​nu​a s​se dor​m in​do, não ti​nha um mi​nu​to de sos​se​go du​r an​te as noi​tes em
que an​da​va.
Dom sen​tou-se ao lado da ba​nhei​r a e cru​zou as per​nas para exa​m i​nar as so​-
las dos pés. Pri​m ei​r o o pé di​r ei​to: es​ta​va per​f ei​to, sem cor​tes, sem fe​r i​m en​tos,
pelo me​nos tão lim​po quan​to no mo​m en​to em que se dei​ta​r a. Como o pé es​quer​-
do tam​bém se en​c on​tra​va em boas con​di​ç ões, con​c luiu que não ti​nha sa​í​do de
casa. Já por duas ve​zes acor​da​r a den​tro dos ar​m á​r i​os: uma na se​m a​na an​te​r i​or e
ou​tra doze dias an​tes da pri​m ei​r a. Nas duas oca​si​ões ha​via exa​m i​na​do os pés e
cons​ta​ta​r a que re​a l​m en​te não sa​í​r a, em​bo​r a sen​tis​se um can​sa​ç o tão gran​de
como se ti​ves​se an​da​do lé​guas. Tal​vez fos​sem re​a l​m en​te mui​tas e mui​tas lé​-
guas... per​c or​r i​das em in​c on​tá​veis idas e vin​das até os ar​m á​r i​os.
Um lon​go ba​nho de chu​vei​r o aju​dou-o a eli​m i​nar boa par-‘te da ten​são mus​-
cu​lar. Era um ho​m em ma​gro, de boa con​di​ç ão fí​si​c a, que aos trin​ta e cin​c o anos
ain​da con​se​guia re​c u​pe​r ar-se bem de quais​quer ex​c es​sos que co​m e​tes​se, acor​-
da​do ou dor​m in​do. De​pois do ba​nho e de um café, vol​tou a sen​tir-se qua​se hu​m a​-
no.
Ain​da com a xí​c a​r a na mão, an​dou até a va​r an​da e per​c or​r eu com o olhar a
cur​va ele​gan​te da baía de La​gu​na Be​a ​c h, com suas co​li​nas que pa​r e​c i​a m que​r er
abra​ç ar o mar. De​pois en​trou e di​r i​giu-se para o es​c ri​tó​r io; a cada mi​nu​to que
pas​sa​va, con​ven​c ia-se mais de que as cri​ses de so​nam​bu​lis​m o es​ta​vam re​la​c i​o​-
na​das com o tra​ba​lho. Tal​vez não com o tra​ba​lho em si, mas sem dú​vi​da com o
des​c on​c er​tan​te su​c es​so de seu pri​m ei​r o li​vro, Cre​pús​c u​lo na Ba​bi​lô​nia, con​c lu​í​do
em fe​ve​r ei​r o.
O pri​m ei​r o agen​te a quem Dom mos​tra​r a os ori​gi​nais acei​tou-o como cli​e n​-
te. Os di​r ei​tos au​to​r ais fo​r am lei​lo​a ​dos en​tre vá​r i​a s edi​to​r as in​te​r es​sa​das e, para
gran​de sur​pre​sa do au​tor, aca​ba​r am nas mãos da Ran​dom Hou​se, que lhe pa​gou
um adi​a n​ta​m en​to mais do que ra​zo​á ​vel para um li​vro de es​tréia. Em pou​c o
mais de um mês, tam​bém es​ta​vam ven​di​dos os di​r ei​tos de fil​m a​gem — que per​-
mi​ti​r am a Dom pa​gar a pri​m ei​r a par​c e​la da casa onde mo​r a​va — e o Cre​pús​c u​-
lo era in​di​c a​do pelo Li​te​rary Guild . A ela​bo​r a​ç ão do li​vro cus​tou-lhe sete me​ses
de tra​ba​lho, se​m a​nas de ses​sen​ta, se​ten​ta, às ve​zes oi​ten​ta e qua​tro ho​r as de con​-
cen​tra​ç ão; sem fa​lar nos dez anos de luta con​si​go mes​m o até sen​tir-se pre​pa​r a​do
para co​m e​ç ar a es​c re​ver.
Ain​da as​sim, o su​c es​so con​ti​nu​a ​va a pa​r e​c er-lhe sur​preen​den​te​m en​te rá​pi​do.
Nem mes​m o ti​ve​r a tem​po para adap​tar-se às mu​dan​ç as: pra​ti​c a​m en​te do dia
para a noi​te, dei​xa​r a de ser um es​c ri​tor pau​pér​r i​m o, em​bo​r a dig​no, e trans​f or​-
ma​r a-se em au​tor de re​no​m e.
Não ra​r as ve​zes, o ex-po​bre Do​m i​nick Cor​vai​sis olha​va-se no es​pe​lho ou via-
se re​f le​ti​do nas vi​dra​ç as en​so​la​r a​das da nova casa de rico e es​pan​ta​va-se, per​-
gun​tan​do a si pró​prio se re​a l​m en​te me​r e​c ia tudo aqui​lo. Ou​tras ve​zes ti​nha a im​-
pres​são de es​tar se apro​xi​m an​do de um abis​m o. O triun​f o as​sus​ta​va-o, e, com o
medo, cres​c ia a ten​são.
» O que acon​te​c e​r ia quan​do o Cre​pús​c u​lo fos​se pu​bli​c a​do, em fe​ve​r ei​r o do
ano se​guin​te? Como o re​c e​be​r i​a m os crí​ti​c os? Jus​ti​f i​c a​r ia o in​ves​ti​m en​to da Ran​-
dom Hou​se ou ser​vi​r ia ape​nas para tor​nar pú​bli​c o o mai​or erro edi​to​r i​a l da dé​c a​-
da? E quan​to a ele mes​m o? Se​r ia ca​paz de pro​du​zir ou​tro ro​m an​c e ou o Cre​pús​-
cu​lo es​ta​r ia con​de​na​do a ser o pri​m ei​r o e úl​ti​m o fru​to de uma ex-pro​m is​so​r a
car​r ei​r a?
As mes​m as ques​tões que cir​c u​la​vam ob​ses​si​va​m en​te em sua ca​be​ç a du​r an​te
o dia com cer​te​za ocu​pa​vam-na tam​bém à noi​te, en​quan​to dor​m ia... e por isso
pas​sa​va ho​r as an​dan​do à vol​ta da sala como um zum​bi! Por​que in​c ons​c i​e n​te​-
men​te que​r ia fu​gir dos pro​ble​m as e es​c on​der-se num lu​gar onde pu​des​se ter cer​-
te​za de que as dú​vi​das ja​m ais o en​c on​tra​r i​a m.
No es​c ri​tó​r io, sen​ta​do em fren​te ao com​pu​ta​dor, di​gi​tou o có​di​go cor​r es​pon​-
den​te ao dé​c i​m o oi​ta​vo ca​pí​tu​lo de seu novo li​vro, ain​da sem tí​tu​lo. Na vés​pe​r a,
tra​ba​lha​r a até a me​ta​de da sex​ta pá​gi​na do dé​c i​m o oi​ta​vo ca​pí​tu​lo, mas, ao con​-
cen​trar-se no ví​deo para ver em que pon​to pa​r a​r a, des​c o​briu que a sex​ta pá​gi​-
na já es​ta​va com​ple​ta. Na tela ver​de à sua fren​te bri​lha​vam li​nhas in​tei​r as, que
ele ti​nha cer​te​za de ja​m ais ha​ver es​c ri​to.
De iní​c io, ape​nas ar​r e​ga​lou os olhos. Logo, po​r ém, co​m e​ç ou a ba​lan​ç ar a
ca​be​ç a de um lado para ou​tro, sem que​r er acre​di​tar no que via. Um fio de suor
ge​la​do for​m ou-se por bai​xo da gola
e es​c or​r eu-lhe len​ta​m en​te pe​las cos​tas. De​pois da pá​gi​na seis, o ví​deo mos​-
trou uma pá​gi​na sete e de​pois uma oito, to​das com​ple​tas, da pri​m ei​r a à úl​ti​m a li​-
nha, com uma úni​c a fra​se:
“Es​tou com medo. Es​tou com medo. Es​tou com medo. Es​tou com medo”.
Em es​pa​ç o du​plo, qua​tro fra​ses por li​nha, tre​ze li​nhas na pá​gi​na seis, vin​te e
sete na pá​gi​na sete, ou​tras vin​te e sete na pá​gi​na oito... Era a mes​m a fra​se re​pe​ti​-
da du​zen​tas e ses​sen​ta e oito ve​zes. A má​qui​na ja​m ais te​r ia in​ven​ta​do a fra​se,
pois ape​nas fa​zia o que es​ta​va pro​gra​m a​do. E se​r ia ab​sur​do ima​gi​nar que al​-
guém ti​ves​se en​tra​do em casa du​r an​te a noi​te para brin​c ar com o tex​to ou com o
com​pu​ta​dor. Não ha​via si​nal de ar​r om​ba​m en​to nem texis​ti​r ia al​guém ca​paz de
in​ven​tar uma brin​c a​dei​r a como aque​la. Era mais do que cla​r o que ele tra​ba​lha​r a
mes​m o du​r an​te a cri​se de so​nam​bu​lis​m o, re​pe​tin​do du​zen​tas e ses​sen​ta e oito ve​-
zes: “Es​tou com medo”.
Medo de quê? Do so​nam​bu​lis​m o? Im​pos​sí​vel. A ex​pe​r i​ê n​c ia era mui​to de​sa​-
gra​dá​vel, so​bre​tu​do no mo​m en​to de acor​dar, mas não era su​plí​c i​to nem tor​tu​r a
ca​paz de cau​sar ter​r or!
Tal​vez es​ti​ves​se com medo de que o Cre​pús​c u​lo fra​c as​sas​se.
Ou​tra idéia, en​tre​tan​to, co​m e​ç a​va a to​m ar for​m a, mais den​sa e pe​sa​da que
to​das: a fra​se nada ti​nha a ver com sua car​r ei​r a ou com seu fu​tu​r o pro​f is​si​o​nal. O
que o as​sus​ta​va era ou​tra coi​sa, uma ame​a ​ç a di​f e​r en​te, algo mui​to es​tra​nho que
seu in​c ons​c i​e n​te já pres​sen​ti​r a, ain​da que não lhe fos​se aces​sí​vel aos sen​ti​dos.
E ele ten​ta​va rom​per a bar​r ei​r a a se​pa​r ar suas duas me​ta​des, cons​c i​e n​te e in​-
cons​c i​e n​te, para man​dar a si pró​prio um avi​so: “Es​tou com medo”.
Não e não! Bo​ba​gem... Ex​c es​so de ima​gi​na​ç ão! Pre​c i​sa​va tra​ba​lhar e aca​-
bar logo com aqui​lo. Sim! O me​lhor re​m é​dio era tra​ba​lhar, tra​ba​lhar mui​to.
Além do mais, to​dos os li​vros so​bre so​nam​bu​lis​m o co​in​c i​di​a m num pon​to: as
cri​ses eram pas​sa​gei​r as, em ge​r al con​c en​tra​das em de​ter​m i​na​do es​pa​ç o de tem​-
po bem li​m i​ta​do. Pou​c as pes​so​a s re​la​ta​vam a ocor​r ên​c ia de mais que meia dú​zia
de an​dan​ç as du​r an​te
o sono, to​das pró​xi​m as uma da ou​tra, em da​tas que co​bri​a m, no má​xi​m o, um
pe​r í​o​do de seis me​ses. Com cer​te​za não vol​ta​r ia a pe​r am​bu​lar pela casa, nem
vol​ta​r ia a acor​dar en​c o​lhi​do den​tro dos ar​m á​r i​os. De​c i​di​do, Dom ope​r ou o com​-
pu​ta​dor até as​se​gu​r ar-se de que não so​bra​r a na me​m ó​r ia um úni​c o “Es​tou com
medo”, e re​to​m ou o fio da his​tó​r ia em que es​ta​va tra​ba​lhan​do.
Quan​do olhou o re​ló​gio de novo, sur​preen​deu-se ao ver que já pas​sa​va da
hora do al​m o​ç o. Como o dia es​ta​va ex​c ep​c i​o​nal​m en​te quen​te para o mês de no​-
vem​bro, mes​m o na Ca​li​f ór​nia, re​sol​veu al​m o​ç ar na va​r an​da. As pal​m ei​r as ba​-
lan​ç a​vam as fo​lhas ao ven​to su​a ​ve, o ar tra​zia-lhe o per​f u​m e das flo​r es de ou​to​no
e, ao lon​ge, La​gu​na de​bru​ç a​va-se so​bre as águas en​so​la​r a​das do Pa​c í​f i​c o.
Ao to​m ar o úl​ti​m o gole de re​f ri​ge​r an​te, Dom le​van​tou a ca​be​ç a e riu, olhan​-
do para cima.
— Aí está — pen​sou em voz alta. — Não há co​f res cain​do, nem pi​a ​nos des​-
pen​c an​do... E não pai​r a so​bre mi​nha ca​be​ç a a es​pa​da de Dâ​m o​c les...
Era o dia 7 de no​vem​bro.

2. BOS​TON, MAS​SA​CHU​SETTS

Tudo co​m e​ç ou na Casa Berns​tein — Do​c es e Sal​ga​dos, lo​c al que a dra. Gin​-
ger Ma​r ie Weiss con​si​de​r a​va im​pró​prio para qual​quer tipo de com​pli​c a​ç ão. E co​-
me​ç ou com o in​c i​den​te das lu​vas pre​tas.
De modo ge​r al po​dia-se afir​m ar que, até aque​le dia, Gin​ger nun​c a en​c on​tra​-
ra um úni​c o pro​ble​m a que não pu​des​se re​sol​ver. Es​ta​va ha​bi​tu​a ​da a en​f ren​tar os
de​sa​f i​os que a vida lhe pro​pu​nha e, ha​bi​tu​a ​da aos gran​des, não ha​via por que tre​-
mer di​a n​te de sim​ples pro​ble​m as do dia-a-dia. Com toda a cer​te​za mor​r e​r ia de
té​dio se, de re​pen​te, sua vida se trans​f or​m as​se num mar de ro​sas. Em mo​m en​to
al​gum ocor​r eu-lhe a pos​si​bi​li​da​de de en​c on​trar-se face a face com uma ques​tão
in​so​lú​vel ou in​su​pe​r á​vel para seu ní​vel de in​te​li​gên​c ia ou ca​pa​c i​da​de. Po​r ém, sa​-
bia que, as​sim como é cheia de de​sa​f i​os, a vida é pró​di​ga em li​ç ões, al​gu​m as
mais
fá​c eis de en​go​lir que ou​tras. Al​gu​m as sim​ples, ou​tras di​f i​c í​li​m as. Al​gu​m as
até mui​to in​di​ges​tas, ou​tras ab​so​lu​ta​m en​te ar​r a​sa​do​r as.
Gin​ger era in​te​li​gen​te, bo​ni​ta, am​bi​c i​o​sa, tra​ba​lha​do​r a e ex​c e​len​te co​zi​nhei​-
ra. Sua gran​de van​ta​gem, no en​tan​to, era que nin​guém a le​va​va a sé​r io no pri​-
mei​r o en​c on​tro. Ma​gra, de pe​que​na es​ta​tu​r a, cin​tu​r a fina, pa​r e​c ia tão in​sig​ni​f i​-
can​te quan​to bo​ni​ta. Mui​ta gen​te su​bes​ti​m a​va-a no pri​m ei​r o en​c on​tro e con​ti​nu​a ​-
vam a su​bes​ti​m á-la du​r an​te se​m a​nas ou me​ses, até des​c o​bri​r em aos pou​c os que
Gin​ger po​dia ser gran​de ami​ga, ex​c e​len​te co​le​ga ou im​pla​c á​vel ini​m i​ga.
A his​tó​r ia da noi​te em que foi as​sal​ta​da cor​r eu de boca em boca pe​las en​f er​-
ma​r i​a s do Hos​pi​tal Pres​bi​te​r i​a ​no de Co​lúm​bia, em Nova York, onde ela fi​ze​r a sua
pri​m ei​r a re​si​dên​c ia mé​di​c a, qua​tro anos an​tes do in​c i​den​te das lu​vas pre​tas na
Casa Berns​tein.
Como to​dos os mé​di​c os re​si​den​tes, Gin​ger às ve​zes cum​pria plan​tões de mais
de de​zes​seis ho​r as; nes​ses dias, ao sair do hos​pi​tal, mal ti​nha for​ç as para man​ter
os olhos aber​tos até en​trar em casa. Numa noi​te de sá​ba​do quen​te e úmi​da, saiu
do hos​pi​tal pou​c o de​pois das dez ho​r as, ao tér​m i​no de um plan​tão ex​c ep​c i​o​nal​-
men​te atri​bu​la​do, e foi as​sal​ta​da por um des​c en​den​te di​r e​to do ho​m em de Ne​a n​-
der​thal, um su​j ei​to sem pes​c o​ç o nem tes​ta e com mãos tão gran​des como pás de
es​c a​va​dei​r a.
— Se você gri​tar — dis​se o mons​tro —, ar​r e​ben​to-lhe a cara. — Sal​tou à
fren​te dela como um bo​ne​c o de mola e in​sis​tiu: — Está en​ten​den​do bem, sua pu​-
ti​nha?
A rua de​ser​ta e, a vá​r i​os quar​tei​r ões, os car​r os mais pró​xi​m os aguar​da​vam a
mu​dan​ç a do si​nal no cru​za​m en​to. Não ha​via nin​guém que a so​c or​r es​se.
O as​sal​tan​te em​pur​r ou-a para um beco es​trei​to e es​c u​r o en​tre dois edi​f í​c i​os.
Aos tro​pe​ç ões, ela es​bar​r ou numa lata de lixo, ar​r a​nhou o tor​no​ze​lo, qua​se caiu,
mas con​se​guiu equi​li​brar-se e con​ti​nuou an​dan​do rumo ao fun​do do beco.
De iní​c io, su​pon​do que o ho​m em es​ti​ves​se ar​m a​do, Gin​ger in​ves​tiu suas es​-
pe​r an​ç as em sú​pli​c as, sus​pi​r os e ge​m i​dos. Tudo que con​se​guiu foi que o as​sal​tan​-
te se sen​tis​se mais se​gu​r o e re​la​xas​se
a guar​da. Não re​sis​ta pen​sou a dou​to​r a. Se ele es​ti​ver ar​m a​do, re​sis​tir é mor​-
te cer​ta.
— Vá an​dan​do!
Com o bra​ç o tor​c i​do para trás, sem po​der se mo​ver, Gin​ger obe​de​c eu. A
meio ca​m i​nho en​tre a en​tra​da e a sa​í​da do beco, lon​ge da úni​c a lâm​pa​da ace​sa
que ha​via por ali, o ho​m em em​pur​r ou-a para um can​to e pas​sou a des​c re​ver,
com por​m e​no​r es e em voz rou​c a, o que pla​ne​j a​va fa​zer com ela de​pois de ti​r ar-
lhe todo o di​nhei​r o. O dis​c ur​so deu a Gin​ger o tem​po de que pre​c i​sa​va para cer​ti​-
fi​c ar-se de que o as​sal​tan​te não ti​nha arma. En​tão nem tudo es​ta​va per​di​do. O
ho​m em vo​m i​ta​va obs​c e​ni​da​des, mas seu re​per​tó​r io de vi​o​lên​c i​a s se​xu​a is era tão
li​m i​ta​do que, em ou​tras cir​c uns​tân​c i​a s, se​r ia cô​m i​c o. Gin​ger logo o clas​si​f i​c ou
como um po​bre di​a ​bo que con​f ia ce​ga​m en​te no po​der da for​ç a bru​ta. Ho​m ens
as​sim em ge​r al não an​dam ar​m a​dos, por​que sua mas​sa mus​c u​lar lhes dá a fal​sa
im​pres​são de que são in​vul​ne​r á​veis. Se​guin​do esse ra​c i​o​c í​nio, Gin​ger con​c luiu
que o as​sal​tan​te não de​via ser mui​to há​bil para lu​tar.
En​quan​to o ho​m em se cur​va​va para es​va​zi​a r a bol​sa que ela lhe en​tre​ga​r a
sem va​c i​lar, Gin​ger en​c heu-se de co​r a​gem e apli​c ou-lhe nos tes​tí​c u​los um pon​ta​-
pé vi​o​len​to e di​r e​to. O mons​tro do​brou-se ao meio, ur​r an​do de dor. Sem per​der
tem​po ela se​gu​r ou-lhe uma das mãos e em​pur​r ou o dedo in​di​c a​dor para trás,
com toda a for​ç a, até ter cer​te​za de que a dor da mão o fa​zia es​que​c er o gol​pe
nos tes​tí​c u​los.
O ges​to de for​ç ar o in​di​c a​dor para trás pode imo​bi​li​zar qual​quer ho​m em, por
mais for​te que seja. Ao pres​si​o​nar o ner​vo di​gi​tal da par​te an​te​r i​or da mão, for​-
çan​do ao mes​m o tem​po os ner​vos ra​di​a is e mé​di​os da par​te pos​te​r i​or, Gin​ger
pro​vo​c a​va no as​sal​tan​te uma dor in​ten​sa que na​que​le mo​m en​to já de​via atin​gir
as ter​m i​na​ç ões ner​vo​sas do om​bro e do pes​c o​ç o.
O ho​m em agar​r ou-a pe​los ca​be​los e sa​c u​diu-a da ca​be​ç a aos pés para que o
sol​tas​se. Foi um con​tra​gol​pe vi​o​len​to, que a fez gri​tar de dor e suar frio; mes​m o
as​sim, de den​tes cer​r a​dos e o ros​to ba​nha​do de lá​gri​m as, ela re​sis​tiu e for​ç ou o
dedo ain​da mais para
trás. A pres​são cons​tan​te, apli​c a​da no pon​to ana​tô​m i​c o cor​r e​to, em pou​c o
tem​po obri​gou o as​sal​tan​te a sol​tá-la. Ele caiu de jo​e ​lhos, ge​m en​do e xin​gan​do:
— Ai! Me sol​ta! Lar​ga meu dedo, sua puta!
Em lu​gar de obe​de​c er, Gin​ger agar​r ou o in​di​c a​dor com as duas mãos e, fin​-
can​do o pé no chão, em​pur​r ou-o duas ve​zes para trás. Ago​r a o gi​gan​te po​dia ser
ma​no​bra​do à sua von​ta​de. Gin​ger o fez gi​r ar so​bre os jo​e ​lhos, vi​r ar-se para a sa​í​-
da do beco e se​gui-la, sem​pre ge​m en​do, tro​tan​do so​bre três pa​tas como uma
mula man​c a. Com os olhos in​j e​ta​dos de rai​va e medo, de dor e ver​go​nha, ele a
fi​ta​va, ba​ban​do seus in​sul​tos. Seis ou sete pas​sos adi​a n​te, ven​c i​do pela frus​tra​ç ão
ou pela dor, o ho​m em pa​r ou, aco​m o​dou-se nas pa​tas tra​sei​r as e vo​m i​tou o jan​tar.
Ain​da que qui​ses​se, Gin​ger não po​dia sol​tá-lo: ele es​ta​va en​lou​que​c i​do de
rai​va. Sol​tá-lo ali, sem sa​ber se al​guém o agar​r a​r ia no​va​m en​te, se​r ia como as​si​-
nar a pró​pria sen​ten​ç a de mor​te. Sem es​c o​lha, ar​r as​tou-o para o meio da cal​ç a​da
e obri​gou-o a es​pe​r ar, ajo​e ​lha​do a seu lado, até que apa​r e​c es​se um guar​da.
Quan​do afi​nal vi​r am apro​xi​m ar-se um po​li​c i​a l far​da​do, o as​sal​tan​te e a ví​ti​m a
sor​r i​r am ali​vi​a ​dos.
As pes​so​a s su​bes​ti​m a​vam Gin​ger em boa par​te por cau​sa de seu pe​que​no
por​te: ela me​dia pou​c o mais de um me​tro e meio e pe​sa​va me​nos de cin​qüen​ta
qui​los. Não pa​r e​c ia mui​to for​te nem ca​paz de as​sus​tar nin​guém. Bem fei​ta de
cor​po, não ti​nha as cur​vas de uma loi​r a de capa de re​vis​ta, mas, de qual​quer
modo, era loi​r ís​si​m a e sem​pre atra​ía os olha​r es mas​c u​li​nos no pri​m ei​r o mo​m en​-
to do pri​m ei​r o en​c on​tro. Gin​ger era a ima​gem viva da fra​gi​li​da​de: dos ca​be​los
dou​r a​dos ao pes​c o​ç o de Au​drey Hep​burn, dos om​bros ma​gros à cin​tu​r a fina, da
pele ave​lu​da​da aos lu​m i​no​sos olhos azuis, tudo nela su​ge​r ia su​a ​vi​da​de e do​ç u​r a.
Além dis​so, era na​tu​r al​m en​te cal​m a e ca​la​da, do tipo que pre​f e​r e ou​vir a fa​-
lar — qua​li​da​des que qua​se sem​pre os me​nos avi​sa​dos ten​dem a con​f un​dir com
ti​m i​dez. Sua voz so​a ​va como har​pa, tão doce que nin​guém a ima​gi​na​r ia ex​pres​-
san​do a fir​m e von​ta​de de uma mu​lher de aço.
Gin​ger her​dou os ca​be​los dou​r a​dos, os olhos azuis, a be​le​za e a for​ç a da mãe,
uma su​e ​c a cha​m a​da Anna, que ti​nha mais de um me​tro e oi​ten​ta de al​tu​r a.
— Você é mi​nha me​ni​ni​nha de ouro — dis​se-lhe Anna, quan​do Gin​ger
com​ple​ta​r a a sex​ta sé​r ie dois anos an​tes da ida​de pre​vis​ta.
Na fes​ta de for​m a​tu​r a, além de re​c e​ber a me​da​lha de me​lhor alu​na da es​c o​-
la in​tei​r a, Gin​ger brin​da​r a os pre​sen​tes com uma bri​lhan​te per​for​man​c e ao pi​a ​no:
Mo​zart para os mais cal​m os e um fre​né​ti​c o reg​gae para os mais ani​m a​dos.
— Me​ni​na de ouro... — Anna abra​ç ou-a, já no ca​m i​nho de vol​ta para casa.
O pai, ao vo​lan​te, cho​r a​va de or​gu​lho. Ja​c ob era mui​to emo​ti-,vo, mas sem​-
pre ale​ga​va uma aler​gia, ja​m ais de​f i​ni​da, para jus​ti​f i​c ar as lá​gri​m as que lhe en​-
chi​a m os olhos a pro​pó​si​to de qual​quer coi​sa. No dia da for​m a​tu​r a, acu​sa​va o pó​-
len.
— Há mui​to pó​len no ar — res​m un​ga​va. — De​tes​to pó​len.
— Você é a per​f ei​ç ão, bu​be​leh — Anna sor​r iu para a fi​lha. — Jun​tou o que
há de bom em mim e o que há de bom em seu pai... Você vai lon​ge... Es​pe​r e só
para ver! Vai para o gi​ná​sio, de​pois para o pre​pa​r a​tó​r io, de​pois... para a fa​c ul​da​-
de que es​c o​lher. Você é ca​paz de fa​zer o que qui​ser... você é ca​paz!
As duas úni​c as pes​so​a s que ja​m ais a su​bes​ti​m a​r am fo​r am seus pais. Ao pa​-
rar em fren​te à ga​r a​gem de casa, Ja​c ob ar​r e​ga​lou os olhos.
— Mas... o que é que es​ta​m os fa​zen​do aqui? — per​gun​tou. — Nos​sa úni​c a
fi​lha, nos​sa fi​lha, que, como é ca​paz de qual​quer coi​sa, com cer​te​za ain​da será
pe​di​da em ca​sa​m en​to pelo rei do Siao e pi​lo​ta​r á uma nave es​pa​c i​a l rumo à Lua...
nos​sa fi​lha re​c e​be seu pri​m ei​r o di​plo​m a e não va​m os co​m e​m o​r ar?! Esta noi​te
me​r e​c e uma fes​ta em Ma​nhat​tan, cham​pa​nhe no Pla​za, jan​tar no Wal-dorf...
Não, não... Te​nho uma idéia me​lhor... Va​m os to​m ar sor​ve​te no Wal​green!
— Óti​m o! — Gin​ger apro​vou.
Na​que​la noi​te, o Wal​green re​c e​beu a mais es​tra​nha fa​m í​lia das re​don​de​zas:
o pai ju​deu, pe​que​no como um jó​quei, de so​bre​no-
me ale​m ão e na​r iz adun​c o; a mãe su​e ​c a, loi​r a, lin​da, glo​r i​o​sa​m en​te fe​m i​ni​-
na, trin​ta cen​tí​m e​tros mais alta que o ma​r i​do; e a fi​lha, uma fada, uma nin​f a, pe​-
que​ni​na e frá​gil, tão loi​r a quan​to o pai era mo​r e​no, e bo​ni​ta como a mãe, po​r ém
de uma be​le​za di​f e​r en​te, mais su​til, me​nos pal​pá​vel. Des​de mui​to pe​que​na, Gin​-
ger en​ten​dia per​f ei​ta​m en​te que, ven​do-a an​dar de mãos da​das com o pai e a
mãe, as pes​so​a s pen​sas​sem que eles a ha​vi​a m ado​ta​do.
Gin​ger ama​va-os tan​to que, quan​do me​ni​na, ja​m ais en​c on​trou pa​la​vras su​f i​-
ci​e n​tes para fa​lar so​bre o as​sun​to. De​pois de adul​ta, con​ti​nu​a ​va pro​c u​r an​do as
pa​la​vras cer​tas, mes​m o tan​tos anos de​pois da mor​te pre​m a​tu​r a dos pais.
Anna mor​r eu num aci​den​te de trân​si​to, pou​c o de​pois da fes​ta do dé​c i​m o se​-
gun​do ani​ver​sá​r io de Gin​ger; a fa​m í​lia Weiss ima​gi​nou que Ja​c ob e a fi​lha es​ta​r i​-
am per​di​dos sem aque​la su​e ​c a loi​r a que, aos pou​c os, se fi​ze​r a res​pei​tar e amar.
Nin​guém ig​no​r a​va que os três eram uni​dos e fe​li​zes, que se ama​vam mui​to. Por
ou​tro lado, nin​guém pa​r e​c ia ter dú​vi​das de que o se​gre​do do su​c es​so do trio fora
en​ter​r a​do com Anna. Ela dera um novo rumo à vida do mais obs​c u​r o dos ir​m ãos
Weiss — Ja​c ob, o gen​til so​nha​dor, sem​pre com o na​r iz me​ti​do em ro​m an​c es po​li​-
ci​a is ou de fic​ç ão ci​e n​tí​f i​c a. Quan​do co​nhe​c eu Anna, tra​ba​lha​va como bal​c o​nis​-
ta numa jo​a ​lhe​r ia; quan​do ela mor​r eu já era pro​pri​e ​tá​r io de duas jo​a ​lhe​r i​a s.
De​pois do fu​ne​r al, a fa​m í​lia reu​niu-se em casa de tia Ra​c hel, no Bro​okly n.
Es​c on​di​da num can​to da copa, en​j o​a ​da com o chei​r o de tem​pe​r os, re​zan​do a
Deus para que lhe de​vol​ves​se a mãe, Gin​ger ou​viu uma con​ver​sa en​tre tia Fran​-
ci​ne e tia Ra​c hel. Tia Fran-cine pa​r e​c ia mui​to pre​o​c u​pa​da com o fu​tu​r o do vi​ú​vo
e da órfã jo​ga​dos ao mun​do sem a pro​te​ç ão de Anna.
— Os ne​gó​c i​os vão co​m e​ç ar a dar pre​j u​í​zo... Você sabe que ele não é ca​paz,
não vai con​se​guir, nem de​pois do luto... o po​bre luft-mens​c hl Anna era a úni​c a
pes​soa sen​sa​ta na​que​la casa! Sem ela, es​ta​r ão ar​r ui​na​dos em cin​c o anos... — di​-
zia, su​bes​ti​m an​do a so​bri​nha.
A bem da ver​da​de, Gin​ger ti​nha ape​nas doze anos e, em​bo​r a
já cur​sas​se o gi​ná​sio, ain​da pa​r e​c ia uma cri​a n​c i​nha. Em sã cons​c i​ê n​c ia, nin​-
guém po​de​r ia pre​ver que, em pou​c o tem​po, es​ta​r ia pron​ta para as​su​m ir o pa​pel
de Anna. Co​m e​ç a​r a a apren​der a co​zi​nhar com a mãe e, como a mãe, ado​r a​va a
cu​li​ná​r ia. Pou​c os dias de​pois do fu​ne​r al, le​vou para o quar​to to​dos os li​vros de re​-
cei​tas e, com a per​se​ve​r an​ç a e de​ter​m i​na​ç ão que tam​bém her​da​r a da mãe e que
já eram sua mar​c a re​gis​tra​da, apren​deu tudo o que ain​da não sa​bia. Quan​do os
pa​r en​tes de seu pai che​ga​r am para o pri​m ei​r o jan​tar em fa​m í​lia de​pois da mor​te
de Anna, Gin​ger ofe​r e​c eu-lhes um ban​que​te: bo​li​nhos de ba​ta​ta com quei​j o; cre​-
me de le​gu​m es com al​m ôn​de​gas; fa​ti​a s de sal​m ão de​f u​m a​do; vi​te​la com pá-pri​-
ca e mo​lho de amei​xas se​c as. Para a so​bre​m e​sa po​di​a m es​c o​lher » en​tre pu​dim
de pês​se​go e tor​ta de maçã. Fran​c i​ne e Ra​c hel qui​se​r am sa​ber onde Ja​c ob des​c o​-
bri​r a co​zi​nhei​r a tão fan​tás​ti​c a e ele apon​tou para a fi​lha. Nin​guém acre​di​tou.
Para Gin​ger, nada ha​via de ex​c ep​c i​o​nal: al​guém ti​nha que se en​c ar​r e​gar do jan​-
tar e, na au​sên​c ia de Anna, a ta​r e​f a ca​bia a ela; as​sim, fora para a co​zi​nha e fi​ze​-
ra o pos​sí​vel.
O jan​tar foi ape​nas o iní​c io. Era pre​c i​so tam​bém to​m ar con​ta de Ja​c ob e ad​-
mi​nis​trar a casa. Gin​ger pôs mãos à obra com de​di​c a​ç ão, en​tu​si​a s​m o e se​r i​e ​da​-
de, como sem​pre. Mó​veis, rou​pas, piso e ta​pe​tes bri​lha​vam de lim​pos e re​sis​ti​a m
bra​va​m en​te às ins​pe​ç ões de tia Fran​c i​ne. Com pou​c o mais de doze anos, Gin​ger
apren​deu a pla​ne​j ar o or​ç a​m en​to e, aos tre​ze, as​su​m iu o con​tro​le de to​das as des​-
pe​sas da casa.
Aos qua​tor​ze foi es​c o​lhi​da como ora​do​r a da tur​m a, em​bo​r a ti​ves​se três anos
me​nos que o mais jo​vem de seus co​le​gas. De​pois foi acei​ta por to​das as uni​ver​si​-
da​des às quais se can​di​da​ta​r a e es​c o​lheu o Co​lé​gio Pre​pa​r a​tó​r io de Bar​nard.
Ami​gos e pa​r en​tes re​c o​m e​ç a​r am a dar si​nais de pre​o​c u​pa​ç ão: Gin​ger, de uma
vez por to​das, es​ta​va dan​do um pas​so mui​to mai​or que suas pe​que​nas per​nas.
Os cur​sos em Bar​nard eram re​a l​m en​te mais di​f í​c eis de acom​pa​nhar do que
no gi​ná​sio. Gin​ger já não con​se​guia apren​der em seis me​ses o que os co​le​gas
apren​di​a m em doze, po​r ém apren​dia exa​ta​m en​te o mes​m o que os me​lho​r es alu​-
nos, em tem​po ri​go​r o​sa​m en​te igual. Suas no​tas os​c i​la​vam en​tre nove e dez, e a
mar​c a mí​ni​m a só ocor​r eu uma vez, jus​ta​m en​te quan​do co​m e​ç ou a fre-qüen​tar o
Bar​nard. Nes​sa épo​c a Ja​c ob so​f reu a pri​m ei​r a cri​se de pan​c re​a ​ti​te; ela pas​sa​va
noi​tes em cla​r o no hos​pi​tal e de ma​nhã saía cor​r en​do para não per​der um mi​nu​to
da aula.
Ja​c ob ain​da ti​nha ra​zo​á ​veis con​di​ç ões fí​si​c as quan​do Gin​ger com​ple​tou o
pre​pa​r a​tó​r io; es​ta​va fra​c o e mui​to ma​gro na for​m a​tu​r a da fa​c ul​da​de; e não so​-
bre​vi​veu até o fim da pri​m ei​r a re​si​dên​c ia mé​di​c a. As cri​ses de pan​c re​a ​ti​te evo​-
lu​í​r am para cân​c er do pân​c re​a s, e ele mor​r eu sem sa​ber que a fi​lha op​ta​r ia por
uma se​gun​da re​si​dên​c ia, des​sa vez em ci​r ur​gia, no Hos​pi​tal Bos​ton Me-‘ mo​r i​a l,
abrin​do mão, as​sim, de suas gran​des pos​si​bi​li​da​des como ci​e n​tis​ta e pes​qui​sa​do​-
ra.
Gin​ger vi​ve​r a mui​to mais tem​po com Ja​c ob do que com An-na, ra​zão pela
qual a dor de per​dê-lo foi imen​sa​m en​te mai​or do que o so​f ri​m en​to cau​sa​do pela
mor​te da mãe. Po​r ém en​f ren​tou e ven​c eu a dor, do mes​m o modo como su​pe​r a​-
va to​dos os obs​tá​c u​los que en​c on​tra​va pela fren​te, e con​c luiu a pri​m ei​r a re​si​dên​-
cia com no​tas ex​c ep​c i​o​nais e as me​lho​r es car​tas de re​c o​m en​da​ç ão com que
Anna te​r ia so​nha​do.
A se​gun​da re​si​dên​c ia foi adi​a ​da por dois anos, du​r an​te os quais ela vi​veu na
Ca​li​f ór​nia, em Stan​f ord, de​di​c a​da de cor​po e alma a um cur​so de pós-gra​du​a ​ç ão
em pa​to​lo​gia car​di​o​vas​c u​lar. De​pois de um mês de fé​r i​a s — as mais lon​gas de
sua vida —, vol​tou a Bos​ton. O dr. Ge​or​ge Han​naby, di​r e​tor do De​par​ta​m en​to de
Ci​r ur​gia do Bos​ton Me​m o​r i​a l e mun​di​a l​m en​te co​nhe​c i​do por suas li​ç ões pi​o​nei​r as
so​bre ci​r ur​gia car​di​o​vas​c u​lar, acei​tou-a como in​ter​na, e Gin​ger afi​nal pôde de​di​-
car-se in​te​gral​m en​te às ta​r e​f as da se​gun​da re​si​dên​c ia.
Pas​sa​r am-se oito me​ses, até que, em no​vem​bro, numa ter​ç a-fei​r a de ma​-
nhã, ela en​trou na Casa Berns​tein para fa​zer com​pras, e sua vida mu​dou. O ho​-
mem das lu​vas pre​tas: foi en​tão que tudo co​m e​ç ou.
Gin​ger não tra​ba​lha​va às ter​ç as-fei​r as e, a me​nos que al​gum de seus pa​c i​e n​-
tes es​ti​ves​se em ris​c o de vida, nin​guém a es​pe​r a​va no hos​pi​tal. Nos pri​m ei​r os
me​ses, logo de​pois da che​ga​da a Bos​ton, era co​m um vê-la tra​ba​lhan​do nos fe​r i​a ​-
dos ou nos dias de fol​ga, sem​pre mo​vi​da por ener​gia e en​tu​si​a s​m o ines​go​tá​veis.
Na ver​da​de, Gin​ger não ti​nha para onde ir, se​não para o hos​pi​tal. Ge​or​ge Han​-
naby obri​ga​r a-a a des​c an​sar nos dias em que não es​ta​va es​c a​la​da para os plan​-
tões, e en​c er​r a​r a a dis​c us​são afir​m an​do que os mé​di​c os tra​ba​lham sob gran​de
pres​são emo​c i​o​nal e, mais do que nin​guém, pre​c i​sam de tem​po para se re​c u​pe​-
rar.
— Se você se es​go​ta, se tra​ba​lha de​m ais, sem des​c an​sar nun​c a — dis​se —,
está pre​j u​di​c an​do não só você mes​m a, como os pa​c i​e n​tes tam​bém.
As​sim, às ter​ç as-fei​r as, Gin​ger pas​sou a acor​dar uma hora mais tar​de: to​m a​-
va um rá​pi​do ba​nho de chu​vei​r o e de​pois be​be​r i​c a​va duas xí​c a​r as de café en​-
quan​to lia o jor​nal in​tei​r o à mesa da co​zi​nha, di​a n​te da ja​ne​la que se abria para a
Rua Mount Ver​non. As dez ho​r as ves​tia-se para ir até a Casa Berns​tein, na Rua
Char​les, e ali com​pra​va car​ne en​la​ta​da, pãe​zi​nhos de tri​go in​te​gral, sa​la​da de ba​-
ta​ta, car​nes fa​ti​a ​das, sal​m ão de​f u​m a​do, quei​j o. De​pois vol​ta​va para casa e pas​-
sa​va o res​to do dia co​m en​do de​sa​ver​go​nha​da​m en​te, en​quan​to lia ro​m an​c es po​li​-
ci​a is e aven​tu​r as de mis​té​r io. Nos pri​m ei​r os tem​pos, ain​da ig​no​r an​te na arte e no
pra​zer de não fa​zer nada, acha​va os dias de fol​ga ter​r i​vel​m en​te lon​gos. Aos pou​-
cos, po​r ém, co​m e​ç ou a aguar​dar com ale​gria a apro​xi​m a​ç ão da​que​les “do​m in​-
gos” des​lo​c a​dos, pas​san​do a en​c a​r ar as ter​ç as-fei​r as como um dos prin​c i​pais
atra​ti​vos da se​m a​na.
A ter​ç a-fei​r a ne​gra de no​vem​bro co​m e​ç ou bem, com ven​to e céu cin​zen​to,
fria na me​di​da exa​ta para fazê-la sen​tir-se ani​m a​da e cheia de ener​gia. As dez e
vin​te e um Gin​ger en​tra​va na Casa Berns​tein, que, como sem​pre, es​ta​va cheia de
gen​te. Tam​bém como sem​pre, ela per​c or​r eu len​ta​m en​te o lon​go bal​c ão fri​go​r í​f i​-
co, olhan​do os pra​tos sal​ga​dos ex​pos​tos um ao lado do ou​tro. Dali pas​sou à se​ç ão
de mas​sas e con​f ei​ta​r ia, con​ti​nu​a n​do o ri​tu​a l de ima​gi​nar cada gos​to, cada chei​r o
e cada tex​tu​r a de mas​sa an​tes de com​prar al​gu​m a coi​sa. A loja era uma ba​bel de
chei​r os e vo​zes ale​gres: pão as​sa​do, ca​ne​la e ri​sa​das; alho, ce​bo​la, chei​r o-ver​de
e con​ver​sas rá​pi​das, em in​glês tem​pe​r a​do com os mais di​f e​r en​tes so​ta​ques, do
ídi​c he ao ver​ná​c u​lo de Bos​ton, pas​san​do pela gí​r ia da ju​ven​tu​de; cas​ta​nhas as​sa​-
das, re​po​lho, pi​c les e café; tudo isso acom​pa​nha​do pelo ti​lin​tar de lou​ç a, ta​lhe​r es
e cai​xa re​gis​tra​do​r a. De​pois de es​c o​lher, com​prar e pa​gar, Gin​ger cal​ç ou no​va​-
men​te as lu​vas de tri​c ô azul-ma​r i​nho, ajei​tou o pa​c o​te no bra​ç o e a bol​sa no om​-
bro, e di​r i​giu-se para a sa​í​da.
O pa​c o​te já es​ta​va aco​m o​da​do no bra​ç o es​quer​do, quan​do ela per​c e​beu que
dei​xa​r a a car​tei​r a so​bre o bal​c ão. Vol​tou, apa​nhou-a, guar​dou-a e, ain​da de ca​be​-
ça bai​xa, lu​tan​do para fe​c har o zí​per * da bol​sa, ru​m ou para a por​ta. Na​que​le
exa​to mo​m en​to, en​tra​va na loja um ho​m em igual​m en​te dis​tra​í​do, ves​ti​do num
ca​sa​c o de tweed e usan​do um cha​péu pre​to de es​ti​lo rus​so. Os dois não se vi​r am e
co​li​di​r am de fren​te. Gin​ger foi em​pur​r a​da para trás. Ágil, o ho​m em apa​nhou o
pa​c o​te de com​pras an​tes que ca​ís​se ao chão e, com a mão li​vre, aju​dou-a a re​-
cu​pe​r ar o equi​lí​brio.
— Des​c ul​pe — dis​se. — A cul​pa foi mi​nha.
— Oh, não! Foi mi​nha!
— Isso acon​te​c e.
— Não vi o se​nhor en​trar.
— Você está bem?
— Es​tou óti​m a. Obri​ga​da.
O ho​m em de​vol​veu-lhe o pa​c o​te. Gin​ger agra​de​c eu e es​ta​va ou​tra vez aco​-
mo​dan​do o pa​c o​te no bra​ç o, quan​do viu as lu​vas pre​tas que ele usa​va. Eram lu​-
vas ca​r as, de fino cou​r o, tão bem fei​tas que mal se viam as cos​tu​r as. Nada ti​-
nham de ex​c ep​c i​o​nal, mas Gin​ger ge​lou de medo. Se​r ia, en​tão, por cau​sa do ho​-
mem? Não, tra​ta​va-se de um su​j ei​to como qual​quer ou​tro, um pou​c o pá​li​do, de
fei​ç ões co​m uns e gros​sos ócu​los de tar​ta​r u​ga. Era ina​c re​di​tá​vel, inex​pli​c á​vel e ir​-
ra​c i​o​nal, mas o pro​ble​m a eram as lu​vas. De um mo​m en​to para ou​tro, a par​tir do
ins​tan​te em que pou​sou os olhos ne​las, Gin​ger sen​tiu o co​r a​ç ão dis​pa​r ar.
For​m as e chei​r os dis​sol​ve​r am-se a sua vol​ta, como par​te de um so​nho que se
es​vai no mo​m en​to de des​per​tar: os fre​gue​ses que to​m a​vam café às me​si​nhas, as
pra​te​lei​r as chei​a s de la​tas co​lo​r i​das, os car​ta​zes, o re​ló​gio de pa​r e​de com o lo​go​-
ti​po de uma fá​bri​c a de con​ser​vas, a pi​lha de vi​dros de con​f ei​tos, o bal​c ão en​vi​-
dra​ç a​do. Tudo de​sa​pa​r e​c ia como que en​c o​ber​to por uma né​voa vin​da das en​tra​-
nhas da ter​r a. Só as lu​vas per​sis​ti​a m, mais bri​lhan​tes a cada se​gun​do, mais ne​-
gras, mais re​a is, num mun​do onde tudo pa​r e​c ia per​der a iden​ti​da​de.
— Se​nho​r i​ta...
Gin​ger ou​viu a voz do ho​m em como se es​ti​ves​sem se​pa​r a​dos por uma bar​-
rei​r a in​trans​po​ní​vel, ou como se ela es​ti​ves​se pa​r a​da à en​tra​da e ele à sa​í​da de
um lon​go tú​nel. A me​di​da que as for- 1 mas su​m i​a m, os sons cres​c i​a m até se
trans​f or​m ar numa gi​gan​tes​c a onda de vi​bra​ç ões que lhe mar​te​la​va os tím​pa​nos e
en​c o​bria até as ba​ti​das do pró​prio co​r a​ç ão. Gin​ger não con​se​guia des​pre-gar os
olhos das lu​vas.
— Você está bem? — o ho​m em per​gun​tou, es​ten​den​do-lhe a mão num
ges​to tal​vez de so​li​da​r i​e ​da​de, tal​vez de des​c ul​pa, no​va​m en​te.
O cou​r o ne​gro, co​la​do à pele, bri​lha​va com po​r os qua​se in​vi​sí​veis. Ao lon​go
dos de​dos, os pe​que​nos pon​tos, se​m e​lhan​tes a ci​c a​tri​zes. As jun​tas dos de​dos não
pas​sa​vam de os​sos ar​r e​don​da​dos sob o cou​r o...
Era pre​c i​so fu​gir. De re​pen​te, Gin​ger sa​bia que ti​nha que sair dali, fos​se
como fos​se, para qual​quer lu​gar. Ti​nha que sal​var-se. A cada se​gun​do o medo fi​-
ca​va mais den​so e pe​sa​do. Não ha​via ex​pli​c a​ç ão pos​sí​vel, nem tem​po a per​der.
Não sa​bia de onde vi​nha o pe​r i​go, po​r ém sa​bia que se apro​xi​m a​va cada vez
mais. No pei​to, o co​r a​ç ão pa​r e​c ia a pon​to de ex​plo​dir. Ela ge​m eu bai​xi​nho, o som
es​c a​pan​do en​tre os den​tes cer​r a​dos, e lan​ç ou-se para fren​te, em di​r e​ç ão à sa​í​-
da. Não en​ten​dia a ra​zão de sua ati​tu​de, nem a re​la​ç ão que po​de​r ia ter com as lu​-
vas pre​tas. Na cor​r i​da, qua​se der​r u​bou o ho​m em do ca​sa​c o de tweed, mas nem
se​quer o viu. Era pos​sí​vel até que ele não es​ti​ves​se mais ali, que as lu​vas pre​tas ti​-
ves​sem se apar​ta​do dele e pai​r as​sem vi​vas e sol​tas pelo es​pa​ç o ar​m an​do o bote.
Gin​ger não po​de​r ia sair sem em​pur​r ar a por​ta, e tal​vez a ti​ves​se mes​m o em​-
pur​r a​do, po​r ém não ti​nha cer​te​za de nada. Sa​bia ape​nas que sa​í​r a da loja, es​ta​va
na rua, lu​tan​do para res​pi​r ar o ar frio, e pre​c i​sa​va cor​r er para sal​var a pró​pria
vida. A di​r ei​ta ar​r as​ta​va-se o trá​f e​go pe​sa​do da Rua Char​les — bu​zi​nas, ron​c o de
mo​to​r es, pneus chi​a n​do. A es​quer​da, a vi​tri​ne da Casa Berns​tein re​lu​ziu por um
mo​m en​to e de​sa​pa​r e​c eu. En​tão Gin​ger dis​pa​r ou pela rua a fora. Já não pen​sa​va
em nada. Era como se a né​voa que bro​ta​r a do piso da loja co​bris​se, na​que​le ins​-
tan​te, a cal​ç a​da, a rua, o mun​do. Uma som​bra cin​zen​ta, que não pa​r a​va de cres​-
cer, pa​r e​c ia en​go​lir a pró​pria Gin​ger, de​vo​r an​do-a len​ta​m en​te. Se ao me​nos ti​-
ves​se cer​te​za de que aqui​lo era um pe​sa​de​lo... Mas, e se fos​se? O medo que „
sen​tia, o ter​r í​vel medo que vem com os pe​sa​de​los, não se​r ia me​nos real. Tal​vez
hou​ves​se gen​te nas cal​ç a​das... Gin​ger não sa​bia, não via, não ou​via. Pre​c i​sa​va
ape​nas fu​gir, o mais de​pres​sa pos​sí​vel, para o can​to mais dis​tan​te que pu​des​se
en​c on​trar, de​pres​sa, de​pres​sa. Sen​tia os lá​bi​os se​c os e ar​r e​ga​nha​dos so​bre as
gen​gi​vas, os ten​dões do pes​c o​ç o a pon​to de re​ben​tar, o ros​to con​tor​c i​do de pa​vor.
E cor​r ia como se ti​ves​se nos cal​c a​nha​r es uma ma​ti​lha de cães da​na​dos. Cega,
sur​da, muda. Per​di​da.
Mi​nu​tos de​pois a né​voa de​sa​pa​r e​c eu. Gin​ger es​ta​va a meio ca​m i​nho da la​-
dei​r a da Rua Mount Ver​non, pa​r a​da jun​to à gra​de de fer​r o de uma abas​ta​da casa
de ti​j o​los ver​m e​lhos. Agar​r ou-se a dois mon​tan​tes da gra​de com tan​ta for​ç a que
os de​dos do​e ​r am e en​c os​tou a tes​ta su​a ​da no fer​r o frio. Pa​r e​c ia uma pri​si​o​nei​r a
ten​tan​do de​ses​pe​r a​da​m en​te abrir a cela. E, no en​tan​to, já co​m e​ç a​va a con​f or​-
mar-se com o ine​vi​tá​vel. Ti​nha os pulmões ar​den​do, o pei​to do​lo​r i​do pelo es​f or​ç o
da cor​r i​da e pela fal​ta de ar. Tudo a sua vol​ta pa​r e​c ia es​tra​nho. O que es​ta​va fa​-
zen​do ali? Por que... como ha​via che​ga​do até aque​la gra​de?
Al​gu​m a coi​sa a as​sus​ta​r a, mas ela ain​da não con​se​guia lem​brar-se do que
po​de​r ia ter sido. A me​di​da que con​se​guia res​pi​r ar com mais cal​m a, à me​di​da
que o co​r a​ç ão re​to​m a​va o rit​m o nor​m al, o medo co​m e​ç a​va a re​f luir pou​c o a
pou​c o como a maré va​zan​te.
Gin​ger le​van​tou a ca​be​ç a e olhou ao re​dor. Viu os ga​lhos se​c os
de uma tí​lia er​guen​do-se como os​sos de es​que​le​to con​tra o céu par​da​c en​to.
Era no​vem​bro, uma fria ma​nhã de no​vem​bro, ain​da tao es​c u​r a que as lâm​pa​das
da rua con​ti​nu​a ​vam ace​sas. Pou​c o adi​a n​te, no topo da la​dei​r a, es​ta​va o Pa​lá​c io
do Go​ver​no. Abai​xo, as lu​zes do cru​za​m en​to da Mount Ver​non com a Char​les.
Casa Berns​tein... Cla​r o! Era ter​ç a-fei​r a, ela es​ta​va com​pran​do co​m i​da quan​-
do... quan​do al​gu​m a coi​sa acon​te​c eu. Sim, mas o quê? E onde es​ta​r ia o pa​c o​te
que car​r e​ga​va?
Sol​tou as gra​des de fer​r o e olhou para suas lu​vas de tri​c ô. Lu​vas! As lu​vas
pre​tas... O ho​m em das lu​vas pre​tas a as​sus​ta​r a. Não! As lu​vas pre​tas do ho​m em
do cha​péu rus​so a as​sus​ta​r am. O ho​m em de ócu​los e olhar mí​o​pe... e lu​vas de
cou​r o pre​to. Por que a as​sus​ta​r am tan​to? O que po​de​r ia ha​ver de tão ater​r o​r i​zan​te
num par de lu​vas de cou​r o pre​to?
Da ou​tra cal​ç a​da, um ca​sal de ve​lhos olha​va para ela e Gin​ger ten​tou ima​gi​-
nar o que es​ta​r i​a m pen​san​do. Será que fi​ze​r a al​gu​m a coi​sa ter​r í​vel en​quan​to fu​-
gia? Não ti​nha a me​nor idéia. Bran​c o to​tal. Não con​se​guia lem​brar-se de nada a
par​tir do ins​tan​te em que vira as lu​vas pre​tas. Três mi​nu​tos? Tal​vez mais... Um
tem​po de oco ab​so​lu​to, de me​m ó​r ia va​zia.
En​ver​go​nha​da, sem sa​ber o que te​r ia fei​to ou o que es​ta​r i​a m pen​san​do os
dois ve​lhos, co​m e​ç ou a des​c er a la​dei​r a, de vol​ta ao pon​to onde aque​la lou​c u​r a
ha​via co​m e​ç a​do. Jun​to a uma es​qui​na, en​c on​trou seu pa​c o​te de com​pras so​bre a
cal​ç a​da. Pa​r ou um mo​m en​to an​tes de apa​nhá-lo, pro​c u​r an​do lem​brar-se do mo​-
men​to em que o dei​xa​r a cair. Nada. Não con​se​guia lem​brar-se de nada.
— Mas... o que é que está acon​te​c en​do co​m i​go?! — mur​m u​r ou. As la​tas de
car​ne e a ban​de​j a de sal​m ão ha​vi​a m ca​í​do do em​bru​lho, po​r ém não fal​ta​va
nada; Gin​ger re​c o​lheu as la​tas e a ban​de​j a e re​c o​lo​c ou-as den​tro do saco de pa​-
pel. Ain​da sem en​ten​der o que acon​te​c e​r a, pôs-se a ca​m i​nho de casa. De re​pen​-
te, po​r ém, pa​r ou, he​si​tou um mo​m en​to, e mar​c hou de​c i​di​da para a Casa Berns​-
tein. Não pre​c i​sou es​pe​r ar mui​to, por​que, um ou dois mi​nu​tos de​pois, o ho​m em
de ócu​los de tar​ta​r u​ga, cha​péu rus​so e ca​sa​c o de tweed apa​r e​c eu a por​ta da loja.
Ao vê-la, mos​trou-se sur​pre​so.
— Oh! — ex​c la​m ou. — Por fa​vor, per​doe-me. Acho que nem tive tem​po
de pe​dir des​c ul​pas. Foi tudo tão re​pen​ti​no... você saiu cor​r en​do...
Gin​ger con​c en​trou-se ape​nas nas lu​vas pre​tas. Uma de​las, na mão di​r ei​ta,
se​gu​r a​va com fir​m e​za um pa​c o​te de pa​pel par​do idên​ti​c o ao seu. A ou​tra fa​zia
ges​tos no ar, acen​tu​a n​do as pa​la​vras que ele ten​ta​va ar​ti​c u​lar. Uma luva de cou​r o
ne​gro ris​c an​do ara-bes​c os no ar frio de uma cin​zen​ta ma​nhã de um no​vem​bro
cin​zen​to: nada mais, nada me​nos. Tudo nor​m al. Lu​vas ri​go​r o​sa​m en​te co​m uns.
Sem o me​nor si​nal de ame​a ​ç a ou pe​r i​go.
— Não se pre​o​c u​pe — Gin​ger le​van​tou os olhos fi​tou-o no ros​to. — Tam​-
bém fi​quei pre​o​c u​pa​da com o que o se​nhor es​ti​ves​se pen​san​do e vol​tei para pe​-
dir-lhe des​c ul​pas. Pas​se bem. — Ten​tou sor​r ir, já co​m e​ç an​do a afas​tar-se. — O
dia hoje está mes​m o um pou​c o... es​tra​nho. Pas​se bem.
Para che​gar ao apar​ta​m en​to, pre​c i​sa​va an​dar ape​nas al​guns quar​tei​r ões, ca​-
mi​nha​da agra​dá​vel em ou​tras cir​c uns​tân​c i​a s. Na​que​la ma​nhã en​tre​tan​to, Gin​ger
sen​tia-se como um au​tên​ti​c o Ulis​ses do as​f al​to, obri​ga​da a en​f ren​tar mil pe​r i​gos
an​tes de atin​gir a se​gu​r an​ç a de sua Ita​c a de con​c re​to.
Mo​r a​va em Be​a ​c on Hill no se​gun​do an​dar de um pré​dio pe​que​no e an​ti​go
que um ban​quei​r o do sé​c u​lo 19 man​da​r a cons​truir para re​si​dên​c ia da fa​m í​lia. Ao
ver o apar​ta​m en​to pela pri​m ei​r a vez, Gin​ger fi​c a​r a se​du​zi​da pela elegân​c ia e
pelo re​quin​te dos de​ta​lhes: for​r os de ges​so tra​ba​lha​do, me​da​lhões so​bre o ba​ten​te
das pe​sa​das por​tas de ma​dei​r a, va​r an​das em to​dos os apo​sen​tos, gra-dis de fer​r o
na fa​c ha​da, e duas lin​das la​r ei​r as de már​m o​r e — uma na sala e ou​tra no quar​to
de dor​m ir. Era um lu​gar que su​ge​r ia per​m a​nên​c ia, con​ti​nui​da​de, e não ha​via
nada que ela pre​zas​se tan​to como uma vida es​tá​vel; tal​vez fos​se sua re​a ​ç ão in​-
cons​c i​e n​te à mor​te pre​m a​tu​r a da mãe.
Ao en​trar em casa, ain​da tre​m ia de frio, em​bo​r a o ca​lor da sala aque​c i​da se
es​pa​lhas​se até a co​zi​nha, Gin​ger guar​dou par​te das com​pras na des​pen​sa, par​te
na ge​la​dei​r a, e foi di​r e​to para o ba​nhei​r o. Pa​r ou em fren​te ao es​pe​lho e ven​do-se
pá​li​da, de olhos ver​m e​lhos, ain​da as​sus​ta​da, in​ter​r o​gou-se:
— O que hou​ve, shno​ok? Des​c ul​pe, mas você agiu como uma com​ple​ta
meshug​ge​ne. Com​ple​ta​m en​te far​fufket. E por quê? Você é a su​per​dou​to​r a Weiss,
lem​bra-se? Por quê, dou​to​r a?
As pa​la​vras eco​a ​r am sem res​pos​ta pelo am​plo ba​nhei​r o de pa​r e​des al​tas, e
Gin​ger sen​tiu um ca​la​f rio. Al​gu​m a coi​sa mui​to sé​r ia ha​via acon​te​c i​do, po​r em
mais gra​ve ain​da era aque​le eco di​zen​do-lhe o que ela te​m ia des​c o​brir: não sei...
não sei...
Ja​c ob Weiss era ju​deu ape​nas por uma cir​c uns​tân​c ia ge​né​ti​c a. Em​bo​r a se
or​gu​lhas​se mui​to dos sé​c u​los de he​r an​ç a cul​tu​r al que re​c e​be​r a jun​to com os ge​-
nes, não era um he​breu pra​ti​c an​te. Ra​r a​m en​te ia à si​na​go​ga e res​pei​ta​va ape​nas
os prin​c i​pais fe​r i​a ​dos re​li​gi​o​sos — tal​vez com o mes​m o es​pí​r i​to ale​gre​m en​te he​-
ré​ti​c o de cer​tos cris​tãos que se re​ú​nem para de​vo​r ar uma fes​ti​va ba​c a​lhoa-da na
Sex​ta-fei​r a da Pai​xão. Gin​ger fora ain​da mais lon​ge que o pai e já se ha​bi​tu​a ​r a à
idéia de ser ag​nós​ti​c a. Pe​sa​va-lhe o fato de ser cin​qüen​ta por cen​to ju​dia. Se pre​-
ci​sas​se de​f i​nir-se, di​r ia: “mu​lher, mé​di​c a, tra​ba​lha​do​r a com​pul​si​va, po​li​ti​c a​m en​-
te omis​sa” e mais meia dú​zia de atri​bu​tos, an​tes de pen​sar na pro​f is​são de fé re​li​-
gi​o​sa.
Ha​via mo​m en​tos, po​r ém, que só o ídi​c he pa​r e​c ia ofe​r e​c er-lhe as pa​la​vras de
que ne​c es​si​ta​va: quan​do es​ta​va mui​to pre​o​c u​pa​da ou mui​to as​sus​ta​da. Era como
se, em al​gum ní​vel obs​c u​r o de sua per​so​na​li​da​de, ela re​c o​nhe​c es​se um cer​to po​-
der má​gi​c o na lín​gua pa​ter​na, como se aque​las pa​la​vras pu​des​sem exor​c i​zar o
mal, o azar ou qual​quer ca​tás​tro​f e imi​nen​te.
— Sair cor​r en​do pela rua, dei​xar cair o pa​c o​te, es​que​c er tudo, até mes​m o
seu nome, o lu​gar onde es​ta​va, o que es​ta​va fa​zen​do... tre​m er de medo sem sa​-
ber de que... Você agiu como umahr​mish-tehl — Gin​ger ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, as
so​bran​c e​lhas fran​zidàs. —
E se um de seus cli​e n​tes a vis​se, dou​to​r a Weiss? Quem é que con​f ia num mé​-
di​c o lou​c o?!
Como de ou​tras ve​zes, as pa​la​vras em ídi​c he con​se​gui​r am acal​m a-la, se​não
com​ple​ta​m en​te, pelo me​nos o bas​tan​te para ar​r an​c á-la do es​ta​do de pâ​ni​c o la​-
ten​te e de​vol​ver-lhe o usu​a l tom ro​sa​do do ros​to e o bri​lho dos olhos. Per​c e​beu
que já não es​ta​va tre​m en​do, em​bo​r a ain​da sen​tis​se as mãos ge​la​das.
Gin​ger cur​vou-se so​bre a pia e la​vou o ros​to; de​pois apa​nhou uma es​c o​va e
pen​te​ou os ca​be​los. Des​piu-se, en​f i​ou o pi​j a​m a e o rou​pão — uni​f or​m e ha​bi​tu​a l
dos dias de fol​ga — e foi para o quar​to ao lado do seu, trans​f or​m a​do numa es​pé​-
cie de sala de es​tu​dos. Com um rá​pi​do olhar lo​c a​li​zou na es​tan​te um li​vro gros​so,
com si​nais vi​sí​veis de uso in​ten​so: o Di​c i​o​ná​rio Mé​di​c o-En​c i​c lo​pé​di​c o Ta​ber. Co​-
lo​c ou-o so​bre a mesa e pro​c u​r ou o ver​be​te “Fuga”.
Co​nhe​c ia per​f ei​ta​m en​te o sig​ni​f i​c a​do da pa​la​vra e não con​se-gui​r ia ex​pli​c ar
por que es​ta​va con​sul​tan​do um di​c i​o​ná​r io que ha​via qua​se de​c o​r a​do. Tal​vez ti​ves​-
se a es​pe​r an​ç a de que o di​c i​o​ná​r io tam​bém ser​vis​se de ta​lis​m ã, como as pa​la​vras
em ídi​c he. Tal​vez acre​di​tas​se que, ven​do as pa​la​vras im​pres​sas na pá​gi​na, con​se​-
guis​se mi​r a​c u​lo​sa​m en​te exor​c i​zar o mal. Cla​r o. Uma es​pé​c ie de vodu para mé​-
di​c as ci​vi​li​za​das. Lá es​ta​va:
“Fuga (do lat. fuga), s.í. Se​ve​r a dis​so​c i​a ​ç ão de per​so​na​li​da​de. Sair de casa ou
de qual​quer re​c in​to, sob a ação de im​pul​so in​c on-tro​lá​vel. Pas​sa​da a cri​se, pode-
se ve​r i​f i​c ar per​da to​tal ou par​c i​a l da me​m ó​r ia, em es​pe​c i​a l dos atos pra​ti​c a​dos
du​r an​te o pe​r í​o​do de au​sên​c ia”.
Gin​ger fe​c hou o di​c i​o​ná​r io e de​vol​veu-o à es​tan​te. Ti​nha vá​r i​os ou​tros vo​lu​-
mes que po​de​r i​a m for​ne​c er no​vas in​f or​m a​ç ões so​bre fuga, suas cau​sas, sig​ni​f i​-
ca​do ou con​se​qüên​c i​a s pos​sí​veis, mas re​sol​veu dei​xá-los na pra​te​lei​r a. Era im​-
pos​sí​vel con​ti​nu​a r agin​do como se aqui​lo fos​se um sin​to​m a de do​e n​ç a gra​ve. Po​-
dia ser stress, con​se​qüên​c ia pre​vi​sí​vel de ex​c es​so de tra​ba​lho. Um sim​ples in​c i​-
den​te iso​la​do, sem im​por​tân​c ia. Uma rá​pi​da cri​se de fuga, mais nada, uma au​-
sên​c ia de dois ou três mi​nu​tos. Com cer​te​za, si​nal de que es​ta​va mes​m o pre​c i​san​-
do des​c an​sar. A pro​va de​f i​ni​ti​va de que as ter​ç as-fei​r as eram ne​c es​sá​r i​a s e tal​vez
não su​f i​c i​e n​tes. Nes​se caso, bas​ta​r ia re​f a​zer a agen​da de modo a po​der sair do
hos​pi​tal um pou​c o mais cedo — uma hora por dia, por
exem​plo —, e pron​to, adeus stress, fu​gas e per​da de me​m ó​r ia!
Para che​gar onde es​ta​va, Gin​ger tra​ba​lha​r a mui​to mais do que sua mae te​r ia
ima​gi​na​do, e tudo que fi​ze​r a nas​c e​r a sem​pre de uma úni​c a idéia: se era mes​m o
uma pes​soa es​pe​c i​a l, ti​nha res​pon​sa​bi​li​da​des es​pe​c i​a is. Anna sa​bia que ela não
fu​gi​r ia de ne​nhu​m a di​f i​c ul​da​de, Ja​c ob con​f i​a ​r a nela até o úl​ti​m o mo​m en​to de
vida, Gin​ger não os de​c ep​c i​o​na​r ia. Que fal​ta lhe fa​zia a mãe na​que​le ins​tan​te!
Anna a fa​r ia pen​sar nos sa​c ri​f í​c i​os que lhe cus​ta​r a che​gar até ali, nos fins de se​-
ma​na de plan​tão, nos anos e anos sem fé​r i​a s... e em to​dos os ou​tros pra​ze​r es que
dei​xa​r a de lado. Fal​ta​vam ape​nas seis me​ses para o fim da se​gun​da re​si​dên​c ia.
De​pois po​de​r ia mon​tar o pró​prio con​sul​tó​r io e nada, ab​so​lu​ta​m en​te nada, a im​pe​-
di​r ia de re​a ​li​zar esse so​nho — ou mais ain​da: esse pla​no cui​da​do​sa​m en​te ela​bo​-
ra​do e per​f ei​ta​m en​te exe​c u​ta​do. Nin​guém, nada lhe rou​ba​r ia o pra​zer de ter fei​to
o que de​c i​di​r a fa​zer de si mes​m a.
Era o dia 12 de no​vem​bro.

3. ELKO COUNTY, NE​VA​DA

Er​nie Block ti​nha medo do es​c u​r o. Den​tro de casa o medo ain​da era su​por​tá​-
vel, mas na rua, na vas​ta es​c u​r i​dão das noi​tes do nor​te de Ne​va​da, Er​nie en​tra​va
em pâ​ni​c o. Du​r an​te o dia pre​f e​r ia as sa​las de ja​ne​las gran​des. A noi​te, po​r ém,
tudo mu​da​va, e ele pro​c u​r a​va as sa​las de pe​que​nas ja​ne​las es​trei​tas ou mes​m o
sem ja​ne​la al​gu​m a, por​que ti​nha a ní​ti​da im​pres​são de que a es​c u​r i​dão for​ç a​va
os vi​dros e sa​c u​dia as per​si​a ​nas como um ser vivo, que​r en​do en​trar a qual​quer
cus​to para de​vo​r á-lo. De nada adi​a n​ta​va cor​r er as cor​ti​nas, por​que con​ti​nu​a ​va a
sen​tir a pre​sen​ç a da noi​te, além dos vi​dros, além das pa​r e​des, à es​pe​r a do mo​-
men​to opor​tu​no para dar o bote.
Era um hor​r or e uma ver​go​nha. De re​pen​te, sem mais nem me​nos, o medo
do es​c u​r o pas​sou a fa​zer par​te dele. Não sa​bia a ra​zão; sa​bia ape​nas que ti​nha
medo. Medo. Um medo co​m um em mi​lhões de cri​a n​ç as, cla​r o. Mas Er​nie ti​nha
cin​qüen​ta e dois anos.
Na sex​ta-fei​r a se​guin​te ao dia de Ação de Gra​ç as, es​ta​va so​zi​nho, tra​ba​lhan​-
do no es​c ri​tó​r io do mo​tel; Fay e de​c i​di​r a apro​vei​tar o fe​r i​a ​do para ir ao Wis​c on​sin
vi​si​tar Lucy, Frank e as cri​a n​ç as, e só vol​ta​r ia na ter​ç a se​guin​te. Para o Na​tal os
dois ti​nham pla​nos de fe​c har o mo​tel e ir para Milwaukee pas​sar as fes​tas com a
fi​lha, o gen​r o e os ne​tos, mas des​sa vez Fay e vi​a ​j a​r a so​zi​nha.
Er​nie ja​m ais se acos​tu​m a​r ia a vi​ver sem ela, mes​m o por al​guns dias. Sen​tia
uma fal​ta ter​r í​vel da mu​lher que era não ape​nas sua es​po​sa fa​zia mais de trin​ta e
um anos, mas tam​bém sua me​lhor ami​ga. Ama​va-a ago​r a mui​to mais do que
quan​do se ca​sa​r am. E, sem ela, acha​va as noi​tes mais lon​gas, mais ter​r í​veis,
mais es​c u​r as do que nun​c a.
* Às duas ho​r as da tar​de de sex​ta-fei​r a, Er​nie já ha​via tro​c a​do os len​ç óis de
to​dos os quar​tos, var​r i​do e lim​pa​do os ba​nhei​r os; o Mo​tel Tran​qüi​li​da​de es​ta​va
pron​to para re​c e​ber os hós​pe​des de fim de se​m a​na. Úni​c o ho​tel em qua​se vin​te
qui​lô​m e​tros de es​tra​da, bem pró​xi​m o do aces​so à ro​do​via prin​c i​pal, era um lo​c al
tran-qüi​lo, uma pe​que​na ilha ver​de cer​c a​da de pla​ní​c i​e s pe​dre​go​sas, ve​ge​ta​ç ão
ras​tei​r a e ga​lhos se​c os. Qua​r en​ta e oito qui​lô​m e​tros a les​te es​ta​va Elko, e na di​r a​-
ção opos​ta, a ses​sen​ta qui​lô​m e​tros, Bat​tle Moun​tain. Car​lin, que po​de​r ia ser con​si​-
de​r a​da uma bela ci​da​de, e a vila de Be​owawe tam​bém não eram mui​to dis​tan​tes,
mas no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de não se via si​nal de vida pe​las re​don​de​zas. Che​gan​do
ao es​ta​c i​o​na​m en​to, por exem​plo, o novo hós​pe​de ti​nha a ní​ti​da sen​sa​ç ão de que
afi​nal en​c on​tra​r a o úni​c o lu​gar do pla​ne​ta que lhe for​ne​c e​r ia abri​go e co​m i​da a
meio ca​m i​nho de uma lon​ga vi​a ​gem.
Er​nie es​ta​va no es​c ri​tó​r io, lim​pan​do o bal​c ão, de​bru​ç a​do à pro​c u​r a de ar​r a​-
nhões e mar​c as dei​xa​das so​bre o tam​po de car​va​lho. Em ri​gor, era um tra​ba​lho
des​ne​c es​sá​r io, por​que nin​guém se de​m o​r a​va fren​te ao bal​c ão o tem​po su​f i​c i​e n​te
para ar​r a​nhá-lo, mas ser​via para fazê-lo es​que​c er de que as ho​r as cor​r i​a m e logo
che​ga​r ia a noi​te. Se, por aca​so, não apa​r e​c es​se nin​guém para pas​sar a noi​te no
Mo​tel, ele iria dor​m ir com a cer​te​za de que es​ta​va com​ple​ta​m en​te so​zi​nho. Se
não se man​ti​ves​se ocu​pa​do, vol​ta​r ia a pen​sar que es​ta​va em no​vem​bro e que em
no​vem​bro anoi​te​c e mui​to cedo, as​sim, quan​do a noi​te afi​nal che​gas​se, es​ta​r ia
ten​so como uma cor​da de vi​o​li​no, pres​tes a re​ben​tar de an​gús​tia ao me​nor ru​í​do.
O es​c ri​tó​r io es​ta​va pro​f u​sa​m en​te ilu​m i​na​do des​de as pri​m ei​r as ho​r as da ma​-
nha. So​bre o bal​c ão, uma lâm​pa​da fluo​r es​c en​te pro​j e​ta​va um re​tân​gu​lo de luz no
fel​tro ver​de do tam​po. Jun​to ao ar​qui​vo onde guar​da​va as fi​c has dos hós​pe​des,
re​lu​zia um aba​j ur de has​te lon​ga. Do ou​tro lado do bal​c ão, à di​r ei​ta de onde fi​c a​-
vam os as​pi​r an​tes a hós​pe​des, ha​via um dis​play com car​tões pos​tais, ou​tro com
li​vros à ven​da e uma pe​que​na es​tan​te com gui​a s de vi​a ​gem e ma​pas. Ao lado da
por​ta, dis​pu​nham-se um sofá bege e duas me​si​nhas la​te​r ais, cada qual os​ten​tan​do
um aba​j ur de três lâm​pa​das po​de​r o​sas, to​das ace​sas. No teto, uma lu​m i​ná​r ia
de vi​dro fos​c o di​f un​dia a cla​r i​da​de de duas lâm​pa​das. E a am​pla ja​ne​la en​vi​dra​-
ça​da dei​xa​va en​trar, em toda a ple​ni​tu​de, os rai​os do sol, que in​c i​di​a m so​bre o es​-
to​f a​m en​to do sofá e tin​gi​a m de ouro e mel o teto bran​c o da en​tra​da. So​bre as
me​sas la​te​r ais, o bron​ze po​li​do de dois cin​zei​r os cin​ti​la​va.
Quan​do Fay e es​ta​va em casa, Er​nie con​se​guia ven​c er o medo e des​li​ga​va
al​gu​m as lâm​pa​das, cer​to de que ela pro​tes​ta​r ia con​tra “ta​m a​nho des​per​dí​c io de
ener​gia’ ’. De qual​quer modo, a sim​ples vi​são de uma lâm​pa​da apa​ga​da fa​zia-o
es​tre​m e​c er; se não fos​se tão im​por​tan​te guar​dar se​gre​do so​bre o que es​ta​va
acon​te​c en​do, Er​nie ti​nha cer​te​za de que não re​sis​ti​r ia à ten​ta​ç ão de, ou​tra
vez, acen​dê-las to​das, as​sim que Fay e as des​li​gas​se.
Tan​to quan​to Er​nie po​dia per​c e​ber, Fay e ain​da não des​c on​f i​a ​va de nada,
em​bo​r a o medo do es​c u​r o já fos​se um tor​m en​to para ele ha​via qua​se qua​tro me​-
ses. Me​lhor as​sim. Pre​f e​r ia que Fay e não des​c o​bris​se; em pri​m ei​r o lu​gar, en​ver​-
go​nha​va-se de tre​m er de medo como uma cri​a n​ç a e, em se​gun​do lu​gar, não
que​r ia vê-la pre​o​c u​pa​da. Não te​r ia o que di​zer, não sa​be​r ia ex​pli​c ar o que es​ta​va
acon​te​c en​do. Além dis​so, não per​de​r a a es​pe​r an​ç a de su​pe​r ar o que lhe pa​r e​c ia
ser uma do​e n​ç a. Mais cedo ou mais tar​de es​ta​r ia cu​r a​do e, as​sim, não ha​via ra​-
zão para con​tar tudo à mu​lher e cau​sar-lhe pre​o​c u​pa​ç ão.
Não po​dia ser tão sé​r io. Em cin​qüen​ta e dois anos de vida, Er-nie pou​c as ve​-
zes fi​c a​r a do​e n​te, e nun​c a com gra​vi​da​de. Só es​ti​ve​r a hos​pi​ta​li​za​do uma vez, du​-
ran​te a guer​r a do Vi​e t​nã, para tra​tar de dois fe​r i​m en​tos a bala. Não ha​via re​gis​tro
de do​e n​ç as men​tais em sua fa​m í​lia e não se​r ia ele, Er​nest Eu​ge​ne Block, que iria
inau​gu​r ar o ramo ge​ne​a ​ló​gi​c o dos Block abo​ba​lha​dos e de​se​qui​li​bra​dos, con​tan​do
mi​sé​r i​a s ín​ti​m as em di​vãs de psi​qui​a ​tras. Ah! Mas não, mes​mol Cla​r o que ia ven​-
cer... aqui​lo. Por ter​r í​vel que fos​se, por es​tra​nho, des​c on​c er​tan​te, hor​r í​vel e as​sus​-
ta​dor que fos​se!
Os pri​m ei​r os sin​to​m as sur​gi​r am em se​tem​bro: um li​gei​r o mal-es​tar que au​-
men​ta​va à me​di​da que ia es​c u​r e​c en​do e per​sis​tia até o dia cla​r e​a r. No iní​c io, não
era mui​to acen​tu​a ​do, nem acon​te​c ia sem​pre, mas de​pois co​m e​ç ou a pi​o​r ar. Em
me​a ​dos de ou​tu​bro, o cre​pús​c u​lo já lhe dava ca​la​f ri​os. Em no​vem​bro, o mal-es​-
tar trans​f or​m a​r a-se em medo e, nas duas úl​ti​m as se​m a​nas, além do medo, ha​via
uma an​si​e ​da​de qua​se in​c on​tro​lá​vel, que cres​c ia com a apro​xi​m a​ç ão da noi​te.
Nos úl​ti​m os dez dias Er​nie já não ti​nha co​r a​gem de sair de casa à noi​te. Fay e
ain​da não des​c on​f i​a ​va de nada, mas era ape​nas uma ques​tão de tem​po; em bre​-
ve ele te​r ia que achar al​gu​m a ex​pli​c a​ç ão, al​gu​m a coi​sa que ser​vis​se para di​zer à
mu​lher e que o im​pe​dis​se de en​lou​que​c er de medo.
Er​nie era um ho​m em tão gran​de e for​te que pa​r e​c ia imu​ne a qual​quer tipo
de medo. Mus​c u​lo​so, com qua​se dois me​tros de al​tu​r a, ti​nha om​bros lar​gos e bí​-
ceps po​de​r o​sos. Os ca​be​los loi​r o-acin​zen​ta​dos, cor​ta​dos ren​te à ca​be​ç a, dei​xa​-
vam en​tre​ver as for​m as re​gu​la​r es do osso cra​ni​a ​no; o ros​to sim​pá​ti​c o pa​r e​c ia re​-
al​m en​te ta​lha​do em pe​dra. Na es​c o​la, quan​do era um as​tro do fu​te​bol, os co​le​gas
o cha​m a​vam de “Tou​r o” — ape​li​do que so​bre​vi​veu du​r an​te mui​to tem​po. Na
Ma​r i​nha, em seus vin​te e oito anos de ser​vi​ç o, mui​tas ve​zes era cha​m a​do de “se​-
nhor” por ofi​c i​a is de pa​ten​te su​pe​r i​or à sua, ta​m a​nha a au​to​r i​da​de que ema​na​va
dele. Qual​quer um da​que​les ofi​c i​a is fi​c a​r ia mui​to sur​pre​so se sou​bes​se que, ul​ti​-
ma​m en​te, Er​nie su​a ​va frio, tre​m ia dos pés à ca​be​ç a e cer​r a​va os den​tes, cada
vez que pen​sa​va na che​ga​da da noi​te.
O bal​c ão bri​lha​va como um es​pe​lho, mas Er​nie ain​da não se dava por sa​tis​-
fei​to e con​ti​nu​a ​va a es​f re​gá-lo com for​ç a, a imen​sa mão aber​ta so​bre a fla​ne​la
ama​r e​la​da; que​r ia man​ter-se ocu​pa​do para não pen​sar. As quin​ze e qua​r en​ta e
cin​c o, afi​nal, le​van​tou a ca​be​ç a. O sol ha​via mu​da​do de lu​gar e já não pa​r e​c ia
dou​r a​do; di​r i​gin​do-se ra​pi​da​m en​te para o ho​r i​zon​te, tor​na​va-se cada vez
mais aver​m e​lha​do.
As qua​tro ho​r as che​ga​r am os pri​m ei​r os hós​pe​des, o sr. e a sra. Gil​ney ; ti​-
nham qua​se a ida​de de Er​nie e vol​ta​vam para casa, em Salt Lake City, de​pois de
uma se​m a​na de fé​r i​a s, com o fi​lho, em Reno. Er​nie en​c om​pri​dou a con​ver​sa
com eles o mais que pôde, po​r ém a vi​a ​gem fora lon​ga e os dois pa​r e​c i​a m ter
pres​sa de ir des​c an​sar. Lá fora, o sol aver​m e​lha​va ò ho​r i​zon​te. Ha​via pou​c as nu​-
vens, den​sas e pe​sa​das como ga​le​ões in​c en​di​a ​dos, car​r e​ga​dos de ca​dá​ve​r es, ar​-
ras​ta​dos sem rumo por um mar de san​gue.
Dez mi​nu​tos de​pois, apa​r e​c eu um ho​m em alto, pá​li​do e ma​gro; era um fun​-
ci​o​ná​r io do Mi​nis​té​r io da Agri​c ul​tu​r a, en​c ar​r e​ga​do de me​dir umas ter​r as por ali,
e pe​diu um quar​to para duas noi​tes.
Ou​tra vez so​zi​nho, Er​nie lu​ta​va para não con​sul​tar o re​ló​gio e não olhar pela
ja​ne​la. Bas​ta​va-lhe o re​f le​xo do sol na pa​r e​de a sua fren​te para sa​ber que o san​-
gue co​bria o ho​r i​zon​te e con​ti​nu​a ​va a bro​tar por to​dos os la​dos.
— Nada de pâ​ni​c o — dis​se para si mes​m o. — Você es​te​ve no Vi​e t​nã, já viu
tudo o que pode ha​ver de mais ter​r í​vel. Mer​da! Você so​bre​vi​veu! Não é pos​sí​vel
que vá tre​m er ago​r a, jus​ta​m en​te ago​r a... só por​que está es​c u​r e​c en​do!
As de​zes​seis e qua​r en​ta e cin​c o o san​gue co​bria o mun​do. 0 co​r a​ç ão de Er​nie
dis​pa​r ou. Por um mo​m en​to teve a im​pres​são de que suas cos​te​las co​m e​ç a​vam a
fe​c har-se, como uma enor​m e man​dí​bu​la, tri​tu​r an​do-lhe a alma. Apro​xi​m ou-se
da mesa, sen​tou-se na ca​dei​r a de Fay e, fe​c hou os olhos e res​pi​r ou fun​do, uma,
duas, três ve​zes, ten​tan​do acal​m ar-se. Li​gou o rá​dio. As ve​zes, a mú​si​c a ser​via-
lhe de se​da​ti​vo. Kenny Ro​gers can​ta​va, tris​te, fa​lan​do de so​li​dão.
O sol, afi​nal, al​c an​ç ou o ho​r i​zon​te e, len​ta​m en​te, mer​gu​lhou na ter​r a. A luz
aver​m e​lha​da da tar​de tor​nou-se azul-es​c u​r a, como nos fins de tar​de em Sin​ga​pu​-
ra, quan​do Er​nie tra​ba​lha​va como guar​da na em​bai​xa​da, era mui​to jo​vem e não
ti​nha medo de nada.
O cre​pús​c u​lo che​gou. E logo veio o pior: a noi​te. Na fa​c ha​da do mo​tel, as le​-
tras azuis e ver​des do neon acen​de​r am-se au​to​m a​ti​c a​m en​te, aci​o​na​das pelo me​-
ca​nis​m o fo​tos​sen​sí​vel, mas Er​nie se​quer per​c e​beu. Con​ti​nu​a ​va sen​ta​do na ca​dei​-
ra de Fay e, os olhos fe​c ha​dos, a tes​ta co​ber​ta de suor frio.
As seis em pon​to, Sandy Sar​ver saiu cor​r en​do do Res​tau​r an​te Tran​qüi​li​da​de,
bem ao lado do mo​tel. Na ver​da​de, era ape​nas uma lan​c ho​ne​te, com car​dá​pio
sim​ples e li​m i​ta​do, que ser​via lan​c hes aos hós​pe​des e aos ca​m i​nho​nei​r os even​tu​-
al​m en​te atra​í​dos pelo lu​m i​no​so. Caso al​gum hós​pe​de de​se​j as​se, ha​via a op​ç ão de
“per​noi​te com café da ma​nhã no quar​to”, des​de que en​c o​m en​da​do de vés​pe​r a.
Sandy di​r i​gia o res​tau​r an​te jun​to com o ma​r i​do, Ned; ela aten​dia os fre​gue​ses e
Ned en​c ar​r e​ga​va-se da co​zi​nha. Mo​r a​vam num trai​ler es​ta​c i​o​na​do per​to de Be​-
owawe e, to​das as ma​nhãs, di​r i​gi​a m-se ao tra​ba​lho numa ve​lha ca​m i​o​ne​ta.
Quan​do Sandy abriu a por​ta, Er​nie sal​tou da ca​dei​r a, lí​vi​do, cer​to de que,
atrás dela, en​tra​r ia a noi​te, es​guei​r an​do-se por en​tre suas per​nas como uma pan​-
te​r a.
— Vim tra​zer o jan​tar. — Sandy sa​c u​diu os ca​be​los, como se qui​ses​se jo​-
gar para lon​ge a umi​da​de da noi​te, e co​lo​c ou so​bre a mesa uma em​ba​la​gem de
pa​pe​lão bran​c o con​ten​do um chee​se-bur​ger, ba​ta​tas fri​tas, sa​la​da de re​po​lho e
uma lata de cer​ve​j a. — Achei que uma cer​ve​j a o aju​da​r ia a en​go​lir todo esse
co​les​te​r ol.
— Obri​ga​do.
Sandy dava a im​pres​são de não se pre​o​c u​par com a apa​r ên​c ia. Ex​c es​si​va​-
men​te ma​gra, ti​nha ca​be​los opa​c os e sem​pre des​pen​tea-dos, unhas ro​í​das, de​dos
ama​r e​la​dos pela ni​c o​ti​na. Ves​tia-se mal, an​da​va ca​bis​bai​xa e ra​r a​m en​te mos​tra​-
va o ros​to, sem​pre la​va​do. No en​tan​to, con​se​gui​r ia ser uma bela mu​lher se ga​-
nhas​se al​guns qui​los, sa​bi​a ​m en​te dis​tri​bu​í​dos do pes​c o​ç o à vi​r i​lha, e se​guis​se cer​-
tos con​se​lhos de be​le​za ele​m en​ta​r es for​ne​c i​dos pe​las re​vis​tas
fe​m i​ni​nas. Era, con​tu​do, uma boa alma. Er​nie e Fay e vi​vi​a m ima​gi​nan​do
como ela se​r ia se de​c i​dis​se cui​dar me​lhor de si mes​m a e vi​ver com mais ale​gria.
As ve​zes, Er​nie sur​preen​dia-se pre​o​c u​pa​do com Sandy do mes​m o jei​to
como se pre​o​c u​pa​va com Lucy, sua fi​lha, an​tes de Frank apa​r e​c er e Lucy de​sa​-
bro​c har em ple​na fe​li​c i​da​de. Ti​nha a sen​sa​ç ão de que al​gu​m a coi​sa mui​to gra​ve
acon​te​c e​r a na vida de Sandy, um gol​pe duro, de​f i​ni​ti​vo, ter​r í​vel; um gol​pe que, se
não con​se​guiu des​truí-la, obri​gou-a a bai​xar para sem​pre a ca​be​ç a, na ten​ta​ti​va
de pro​te​ger-se de no​vas es​pe​r an​ç as, no​vas frus​tra​ç ões, no​vas do​r es, no​vos en​-
con​tros com a mal​da​de hu​m a​na.
Er​nie exa​m i​nou a co​m i​da e abriu a lata de cer​ve​j a.
— Pa​r e​c e óti​m o — co​m en​tou. — Ned faz os me​lho​r es chee​se-bur​gers do
mun​do.
— E uma sor​te ter um ho​m em que sabe co​zi​nhar. — Sandy es​bo​ç ou seu
pe​que​no sor​r i​so en​ver​go​nha​do. — Prin​c i​pal​m en​te no meu caso... sou uma ne​ga​-
ção com​ple​ta na co​zi​nha.
— Ora... apos​to que, se você qui​ses​se, se​r ia uma ex​c e​len​te co​zi​nhei​r a.
— Nada dis​so. Não sei co​zi​nhar, nun​c a sou​be e nun​c a vou apren​der.
Er​nie cor​r eu os olhos pe​los bra​ç os sar​den​tos de Sandy, emer​gin​do das man​-
gas lar​gas do uni​f or​m e.
— A noi​te está mui​to fria para an​dar por aí com essa rou​pa — dis​se. —
Você vai aca​bar se res​f ri​a n​do.
— Oh, não... — Ela sa​c u​diu a ca​be​ç a. — Eu não... Faz mui​to tem​po que
apren​di a nao sen​tir frio.
A es​tra​nha fra​se soou ain​da mais es​tra​nha na​que​le tom de voz. An​tes, po​r ém,
que Er​nie con​se​guis​se abrir a boca para pe​dir-lhe uma ex​pli​c a​ç ão, Sandy deu-
lhe as cos​tas mur​m u​r an​do:
— Vol​to mais tar​de para apa​nhar a ban​de​j a.
— Você... O res​tau​r an​te está cheio?
— Não mui​to. Mas está na hora de apa​r e​c e​r em os ca​m i​nho​nei​r os. —
Sandy pa​r ou a meia dis​tân​c ia en​tre a mesa e a por​ta. — Para quê tan​tas lâm​pa​-
das ace​sas? — Como se a per​gun​ta não me-
re​c es​se res​pos​ta, con​ti​nuou a an​dar e te​r ia sa​í​do se a tos​se en​gas​ga​da de Er​-
nie não a fi​zes​se pa​r ar, a mão na ma​ç a​ne​ta da por​ta en​tre​a ​ber​ta.
— E que... — A noi​te es​ta​va ali, a um pas​so da por​ta, vi​sí​vel, pal​pá​vel, e
Er​nie mal pôde en​go​lir a ba​ta​ta que mas​ti​ga​va. — E que... bem... isto é um mo​-
tel... os mo​to​r is​tas que pas​sam na es​tra​da pre​c i​sam ver a gen​te, não é?
— Sim, mas não aqui no es​c ri​tó​r io. — Sandy re​pli​c ou, olhan​do em tor​no.
— Você está que​r en​do se bron​ze​a r?
— Não... Você sabe... um mo​tel mal ilu​m i​na​do dá pés​si​m a im​pres​são... Os
cli​e n​tes gos​tam de luz, de cla​r i​da​de...
— E ver​da​de. Acho que eu nun​c a pen​sa​r ia nis​so... — Ela cur​vou ain​da
mais os om​bros, bai​xou ain​da mais a ca​be​ç a. — Deve ser por isso que você é o
che​f e. Nun​c a pen​so em coi​sas im​por​tan​tes, só em bo​ba​gens...
Er​nie sus​pen​deu a res​pi​r a​ç ão; sen​tia o co​r a​ç ão ba​ter como um tam​bor e as
vei​a s do pes​c o​ç o la​te​j a​r em. Por fim, a por​ta fe​c hou-se com um es​ta​li​do, e ele
res​pi​r ou. Viu o vul​to ma​gro da moça pas​sar pela ja​ne​la e de​sa​pa​r e​c er. Sandy ja​-
mais se van​glo​r i​a ​r a de coi​sa al​gu​m a; ao con​trá​r io, sem​pre se de​c la​r a​r a in​c om​-
pe​ten​te. Di​zia que não sa​bia co​zi​nhar, nun​c a sou​be, ja​m ais sa​be​r ia. Que não pen​-
sa​va em coi​sas im​por​tan​tes... De​f ei​tos, fa​lhas, ne​nhu​m a qua​li​da​de, ne​nhu​m a vai​-
da​de, ne​nhum or​gu​lho. Não era boa com​pa​nhia, mas, na​que​la noi​te, qual​quer
cri​a ​tu​r a ra​c i​o​nal se​r ia in​te​r es​san​te e pre​c i​o​sa para Er​nie.
De​bru​ç a​do so​bre a ban​de​j a, ele ten​tou con​c en​trar-se na re​f ei​ç ão, es​f or​ç an​-
do-se para não le​van​tar a ca​be​ç a até aca​bar de co​m er. Era o úni​c o modo de es​-
que​c er a noi​te, o medo, o suor frio que co​m e​ç a​va a es​c or​r er-lhe pe​las axi​las,
pela tes​ta, pe​las cos​tas.
As seis e cin​qüen​ta, oito dos vin​te apar​ta​m en​tos do mo​tel es​ta​vam ocu​pa​dos.
Era a se​gun​da noi​te de um fim de se​m a​na pro​lon​ga​do e ha​via mui​ta gen​te na es​-
tra​da; an​tes das nove ho​r as, com cer​te​za, a me​ta​de dos apo​sen​tos es​ta​r ia to​m a​da,
e mais tar​de ain​da apa​r e​c e​r i​a m ou​tros hós​pe​des. Con​tu​do... como con​se​gui​-
ria man​ter o mo​tel aber​to até mais tar​de?!
Er​nie era ho​m em da Ma​r i​nha. Fa​zia seis anos que es​ta​va na re​ser​va, po​r ém
ain​da era ho​m em da Ma​r i​nha, da​que​les para os quais o de​ver e a co​r a​gem eram
sa​gra​dos, da​que​les que ja​m ais fu​gi​r am da luta, que nun​c a tre​m e​r am fren​te ao
ini​m i​go, nem mes​m o no Vi​e t​nã, com ba​las vo​a n​do so​bre a ca​be​ç a, com fogo por
to​dos os la​dos, com a re​ti​r a​da cor​ta​da, ven​do mor​r e​r em os com​pa​nhei​r os. Na​-
que​le mo​m en​to, con​tu​do, tre​m ia de medo, sen​tia-se in​c a​paz de per​m a​ne​c er no
es​c ri​tó​r io, por​que não ha​via cor​ti​nas nas ja​ne​las e ape​nas um vi​dro fino o pro​te​-
gia da es​c u​r i​dão, da noi​te, do caos. Cada vez que al​guém abria a por​ta, seu es​tô​-
ma​go dava vol​tas e uma náu​sea pe​sa​da e do​lo​r i​da su​bia-lhe pela gar​gan​ta; aber​ta
a por​ta, já não ha​via bar​r ei​r a que o pro​te​ges​se da noi​te.
Sem que​r er, no​tou que suas mãos tre​m i​a m, úmi​das. Es​ta​va tão ten​so que não
con​se​guia mais per​m a​ne​c er sen​ta​do; an​da​va de um lado para ou​tro, con​c en​tra​do
em não se apro​xi​m ar mui​to das ja​ne​las.
As sete e quin​ze já não ti​nha for​ç as para re​sis​tir e, en​ver​go​nha​do, ren​deu-se
ao pâ​ni​c o. Com um ges​to rá​pi​do, in​c on​tro​lá​vel, aci​o​nou o pe​que​no in​ter​r up​tor sob
o bal​c ão e acen​deu o lu​m i​no​so da por​ta de en​tra​da: “Não há va​gas”. De​pois tran​-
cou a por​ta, apa​gou as lu​zes e afas​tou-se para o in​te​r i​or da casa, à me​di​da que
as som​bras cres​c i​a m a sua vol​ta como se fe​c has​sem o cer​c o. Su​biu a es​c a​da ilu​-
mi​na​da, na fuga para o quar​to, re​pe​tin​do para si mes​m o, a cada de​grau, que não
ha​via ra​zão para cor​r er, que não ha​via nada a te​m er, que tudo es​ta​va como sem​-
pre, que Fay e logo vol​ta​r ia. E prin​c i​pal​m en​te di​zia-se que ele era um ho​m em,
não um me​ni​no; que não ha​via nin​guém es​c on​di​do no es​c u​r o para pre​gar-lhe um
sus​to. Era in​ú​til, por​que não ti​nha medo de que al​guém lhe fi​zes​se mal... ti​nha
medo da pró​pria noi​te, e o medo cres​c ia sem​pre.
De re​pen​te, dis​pa​r ou pela es​c a​da aci​m a, tro​pe​ç an​do, agar​r an​do-se ao cor​r i​-
mão, sem ver nem ou​vir, do​m i​na​do pelo pâ​ni​c o. No quar​to, sem co​r a​gem de
abrir os olhos e en​c a​r ar a es​c u​r i​dão, ta​te​ou a pa​r e​de à pro​c u​r a do in​ter​r up​tor, ba​-
teu a por​ta, en​c os​tou-se à ma​dei​r a lisa e, mui​to len​ta​m en​te, er​gueu as pál​pe​bras.
O quar​to
bri​lhou a sua fren​te, inun​da​do pela luz su​a ​ve dos aba​j u​r es ao lado da cama.
Er​nie, po​r ém, con​ti​nu​a ​va a tre​m er, mal con​se​guin​do res​pi​r ar, o cor​po ba​nha​do
de um suor fé​ti​do, o suor do medo. Ha​via mais lâm​pa​das no quar​to e nas ou​tras
de​pen​dên​c i​a s que Fay e trans​f or​m a​r a em ver​da​dei​r o lar no an​dar su​pe​r i​or do
mo​tel; Er​nie cor​r eu de sala em sala, acen​den​do as lu​zes, uma a uma, por to​dos os
can​tos. As cor​ti​nas ain​da es​ta​vam fe​c ha​das, exa​ta​m en​te como as dei​xa​r a na noi​-
te an​te​r i​or, e to​das as lâm​pa​das ace​sas. E ele co​m e​ç ou a sen​tir-se ra​zo​a ​vel​m en​te
se​gu​r o.
Al​guns mi​nu​tos de​pois, mais cal​m o, te​le​f o​nou para o res​tau​r an​te e dis​se a
Sandy que fe​c ha​r a mais cedo por​que não es​ta​va pas​san​do bem; pe​diu-lhe que
não o per​tur​bas​se e dei​xas​se as con​tas para o dia se​guin​te. En​tão foi para o ba​-
nhei​r o. Que​r ia li​vrar-se da​que​le chei​r o de suor, que lhe pa​r e​c ia cada vez mais
for​te, en​tra​nha​do na pele como um es​tig​m a. Abriu o chu​vei​r o e es​f re​gou-se com
for​ç a, du​r an​te mui​to tem​po. Por fim, en​xu​gou-se, ves​tiu cu​e ​c as lim​pas e um
con​f or​tá​vel rou​pão de lã, e cal​ç ou os chi​ne​los.
Ape​sar da an​si​e ​da​de e do mal-es​tar, an​tes da vi​a ​gem de Fay e con​se​gui​r a
dor​m ir no es​c u​r o, em​bo​r a com a even​tu​a l aju​da de uma ou duas cer​ve​j as. De​-
pois que ela par​ti​r a, no en​tan​to, qua​se não dor​m ia. As duas noi​tes que pas​sa​r a so​-
zi​nho fo​r am um lon​go tor​m en​to que pa​r e​c ia in​f in​dá​vel, en​tre​c or​ta​do por mo​-
men​tos de tor​por, so​no​lên​c ia e exaus​tão. Os olhos ar​di​a m sob a luz for​te da lâm​-
pa​da cen​tral, que, não obs​tan​te, pa​r e​c ia-lhe mais in​dis​pen​sá​vel que na vés​pe​r a.
O que fa​r ia quan​do Fay e vol​tas​se? Se​r ia ca​paz de fi​c ar na cama, imó​vel, fin​-
gin​do que dor​m ia no quar​to com​ple​ta​m en​te es​c u​r o? E se co​m e​ç as​se a suar frio,
ou a tre​m er, ou a ber​r ar de medo no mo​m en​to em que ela des​li​gas​se a lâm​pa​da
de ca​be​c ei​r a? O pen​sa​m en​to o fez sal​tar da pol​tro​na onde aca​ba​va de sen​tar-se.
De pu​nhos e den​tes cer​r a​dos, qua​se sem per​c e​ber, Er​nie apro​xi​m ou-se da ja​ne​la
e to​c ou a cor​ti​na com as pon​tas dos de​dos, cui​da​do​so, he​si​tan​te. No pei​to, o co​r a​-
ção no​va​m en​te dis​pa​r ou.
Fay e con​f i​a ​va nele como um pes​c a​dor con​f ia no por​to se​gu​r o. Era o ho​m em
que ela ama​va, o ho​m em for​te, in​des​tru​tí​vel, eter-
no, que es​ta​r ia sem​pre a seu lado para aju​da-la, am​pa​r a-la, dar-lhe o apoio
ne​c es​sá​r io. O ho​m em só​li​do como um ro​c he​do, como os ho​m ens de​vem ser. O
que Fay e pen​sa​r ia se, de re​pen​te, ele lhe fal​tas​se? Não! Não po​dia de​c ep​c i​o​ná-
la, não po​dia fra​c as​sar. Aque​le ri​dí​c u​lo e in​c om​preen​sí​vel medo do es​c u​r o pre​c i​-
sa​va de​sa​pa​r e​c er até ter​ç a-fei​r a, an​tes que Fay e vol​tas​se do Wis​c on​sin.
Era fá​c il fa​lar... Bas​tou pen​sar na es​c u​r i​dão que es​ta​va ali, a ape​nas al​guns
pas​sos, atrás das cor​ti​nas, para que ou​tra vez sen​tis​se a pele ge​lar-se de pa​vor.
Até que, de re​pen​te, per​c e​beu que só lhe res​ta​va uma sa​í​da: en​c a​r ar o ini​m i​go,
par​tir para a ofen​si​va. A eter​na li​ç ão da guer​r a en​si​na​r a-o a ser for​te, a er​guer-se
di​a n​te do fogo ini​m i​go, a acei​tar o de​sa​f io. Sem​pre fora ho​m em de luta... Ha​-
via de dar cer​to!
Es​ta​va pa​r a​do fren​te à ja​ne​la do quar​to, nos fun​dos do mo​tel. Por trás das
cor​ti​nas, dos vi​dros e das per​si​a ​nas, abria-se a pai​sa​gem de​ser​ta e res​se​qui​da de
tan​tos e tan​tos anos. Nada além de chão e céu até o ho​r i​zon​te; ne​nhu​m a luz além
do bri​lho dis​tan​te das es​tre​las. Pre​c i​sa​va abrir as cor​ti​nas, es​c an​c a​r ar a ja​ne​la,
en​c a​r ar a imen​si​dão que pa​r e​c ia es​prei​tá-lo. Pre​c i​sa​va lu​tar... pelo me​nos ten​-
tar... Se ven​c es​se, es​ta​r ia li​vre para sem​pre! E, quan​do Fay e vol​tas​se, tudo es​ta​r ia
bem, como an​tes.
Com dois mo​vi​m en​tos rá​pi​dos e de​c i​di​dos, abriu a ja​ne​la e de​bru​ç ou-se li​-
gei​r a​m en​te para fora. En​c on​trou ape​nas a noi​te de sem​pre, fria, si​len​c i​o​sa e
eter​na. Mais nada. Ne​nhu​m a ame​a ​ç a, ne​nhum fan​tas​m a.
Foi o tem​po de um pen​sa​m en​to. Ine​xo​r á​vel como um pe​sa​de​lo, pas​sos len​tos
mas fir​m es, a noi​te co​m e​ç ou a apro​xi​m ar-se, a ga​nhar cor​po. Não era vi​sí​vel
nem ti​nha li​m i​tes, mas era den​sa, pul​sa​va, cres​c ia. A noi​te e sua le​gi​ã o de hor​r o​-
res: fan​tas​m as, mu​ti​la​dos, ca​dá​ve​r es, pe​sa​de​lo, pu​tre​f a​ç ão, mor​te... E cada vez
mais pró​xi​m os.
Quan​do Er​nie fi​nal​m en​te con​se​guiu res​pi​r ar, a ja​ne​la es​ta​va fe​c ha​da e sua
tes​ta su​a ​da apoi​a ​va-se no vi​dro frio. Ago​r a, pelo me​nos, ha​via o vi​dro. O de​ser​to
de Ne​va​da con​ti​nu​a ​va cres​c en​do lá fora, che​ga​va até as mon​ta​nhas in​vi​sí​veis, ao
lon​ge. Mas as mon-
ta​nhas mo​vi​a m-se... afas​ta​vam-se... fu​gi​a m! Ape​nas a es​c u​r i​dão es​té​r il da
pla​ní​c ie per​m a​ne​c ia, ro​lan​do em to​das as di​r e​ç ões, avo​lu​m an​do-se, ocu​pan​do a
ter​r a e o céu. A vas​ta noi​te en​c o​bria o mun​do, tur​va​va a ra​zão, cau​sa​va ver​ti​gens.
Er​nie sen​tia a gar​gan​ta con​trair-se, os pulmões fe​c ha​r em-se como balões va​zi​os.
— Ar! — ge​m eu. — Ar...
O som da pró​pria voz ar​r an​c ou-o do tran​se. Ele caiu de jo​e ​lhos jun​to à pa​r e​-
de, pu​xan​do as cor​ti​nas num úl​ti​m o e de​ses​pe​r a​do ges​to de de​f e​sa. Es​ta​va sal​vo.
No quar​to inun​da​do de luz ne​nhu​m a es​c u​r i​dão po​de​r ia atin​gi-lo. Ain​da cur​va​do,
ar​r as​tou-se até a cama, en​r o​lou-se na col​c ha e fi​c ou qui​e ​to du​r an​te mui​to tem​po,
es​pe​r an​do que os den​tes pa​r as​sem de ba​ter e o co​r a​ç ão vol​tas​se ao rit​m o nor​m al.
A ex​pe​r i​ê n​c ia não dera cer​to. Ar​r is​c a​r a-se a en​f ren​tar a noi​te, e a noi​te qua​-
se o ma​ta​r a. Ti​nha cer​te​za de que, a par​tir da​que​le ins​tan​te, nun​c a mais se​r ia ca​-
paz de so​bre​vi​ver a um úni​c o mo​m en​to de es​c u​r i​dão.
— Deus... — dis​se bai​xi​nho, olhos no teto. — O que é que está acon​te​c en​do
co​m i​go? Deus... Oh! Meu Deus...
Era o dia 22 de no​vem​bro.

4. LA​G U​NA BE​A​CH, CA​LI​FÓR​NIA

No sá​ba​do, de​pois de nova cri​se de so​nam​bu​lis​m o, Dom re​sol​veu que che​ga​-


ra a hora de de​di​c ar-se me​to​di​c a​m en​te à cura. O pri​m ei​r o pas​so era can​sar-se
até a exaus​tão. As​sim, quan​do se dei​tas​se à noi​te, não te​r ia ener​gia su​f i​c i​e n​te
para an​dar pela casa e con​se​gui​r ía dor​m ir na cama, como qual​quer mor​tal.
— O pro​gra​m a co​m e​ç ou às sete da ma​nhã, com uma hora e meia de cor​r i​-
da pe​las la​dei​r as de La​gu​na Be​a ​c h, para cima e para bai​xo, res​pi​r an​do o ar sau​-
dá​vel ain​da car​r e​ga​do de or​va​lho. De​pois, já aque​c i​do, fez gi​nás​ti​c a no pá​tio de
casa, me​tros aci​m a do mar, até fi​c ar com a rou​pa en​c har​c a​da de suor. Pas​sou
mais cin​c o ho​r as de​di​c a​do ao jar​dim, tra​ba​lho pe​sa​do e can​sa​ti​vo, pois já fa-
zia mui​to ca​lor. Na eta​pa se​guin​te do pro​gra​m a, foi até a praia, to​m ou um
pou​c o de sol e na​dou mui​to. Jan​tou no Pi​c as​so, an​dou mais de uma hora pe​las
cal​ç a​das da ci​da​de, pra​ti​c a​m en​te de​ser​tas na​que​le pe​r í​o​do de en​tres​sa​f ra de tu​-
ris​tas e, tar​de da noi​te, vol​tou para casa.
Des​piu-se no quar​to, sen​tin​do no cor​po os pri​m ei​r os efei​tos do es​f or​ç o fí​si​c o,
uma es​pé​c ie de for​m i​ga​m en​to, uma de​li​c i​o​sa sen​sa​ç ão de can​sa​ç o. Como me​di​-
da ex​tra de pre​c au​ç ão, ain​da pre​pa​r ou uma dose ge​ne​r o​sa de Remy Mar​tin, seu
co​nha​que pre​f e​r i​do, e be​beu-a de um só gole. Na cama, teve a im​pres​são de que
ador​m e​c ia no exa​to mo​m en​to em que apa​gou a lâm​pa​da da ca​be​c ei​r a.
Pra​ti​c a​m en​te já não ha​via noi​te em que não pe​r am​bu​las​se pela casa, e o
pro​ble​m a pas​sa​r a a ser sua prin​c i​pal pre​o​c u​pa​ç ão. Qua​se não con​se​guia tra​ba​-
lhar. O novo li​vro, que pa​r e​c ia evo​luir tão bem e pro​m e​tia ser ain​da me​lhor que o
pri​m ei​r o, es​ta​va pa​r a​do. Ao lon​go das duas úl​ti​m as se​m a​nas acor​da​r a nove ve​zes
no fun​do do ar​m á​r io, qua​tro ve​zes em qua​tro noi​tes con​se​c u​ti​vas. Já não via nada
de di​ver​ti​do ou in​te​r es​san​te na lou​c u​r a em que sua vida se trans​f or​m a​r a. Ti​nha
medo de se dei​tar para dor​m ir por​que sa​bia que, ador​m e​c i​do, não era ca​paz de
con​tro​lar seus ges​tos, atos ou mo​vi​m en​tos.
Na sex​ta-fei​r a, por fim, re​sol​ve​r a pro​c u​r ar um mé​di​c o, o dr. Paul Co​bletz, de
New​port Be​a ​c h. Con​se​gui​r a fa​lar-lhe so​bre as cri​ses de so​nam​bu​lis​m o, mas sa​í​r a
do con​sul​tó​r io com a sen​sa​ç ão de que não ha​via sido com​ple​ta​m en​te fran​c o, pois
não con​ta​r a ao mé​di​c o que co​m e​ç a​va a pre​o​c u​par-se se​r i​a ​m en​te com tudo aqui​-
lo. Não dis​se​r a ao dr. Co​bletz que co​m e​ç a​va a en​trar em pâ​ni​c o.
Dom era mui​to ci​o​so de sua pri​va​c i​da​de, tal​vez em con​se​qüên-cia da infân​-
cia que ti​ve​r a, das de​ze​nas de pais e mães ado​ti​vos que co​nhe​c e​r a, dos ra​r os pa​-
ren​tes que de​m ons​tra​vam al​gum in​te​r es​se em sa​ber se es​ta​va vivo ou mor​to.
Mães e pais fal​sos, pa​r en​tes au​sen​tes ou pre​sen​tes, al​guns mui​to hos​tis, for​m a​-
vam uma es​pé​c ie de ne​bu​lo​sa em sua me​m ó​r ia, sem ros​tos de​f i​ni​dos, com um
ou ou​tro sor​r i​so, vá​r i​a s car​r an​c as, ne​nhum afe​to. Tal​vez por isso, tal-
vez por ou​tros mo​ti​vos, tam​bém, Dom não era ca​paz de par​ti​lhar com nin​-
guém suas ex​pe​r i​ê n​c i​a s pes​so​a is mais pro​f un​das. Na mai​o​r ia das ve​zes, e em re​-
la​ç ão a mui​tos as​sun​tos, só as per​so​na​gens de seus li​vros fa​la​vam por ele.
Os sin​to​m as des​c ri​tos por Dom não pro​vo​c a​r am no dr. Co​bletz nem gran​de
pre​o​c u​pa​ç ão, nem es​pan​to. De​pois de sub​m e​tê-lo a de​m o​r a​do exa​m e clí​ni​c o, o
mé​di​c o con​c luiu que seu pa​c i​e n​te go​za​va de ex​c e​len​te saú​de, e atri​buiu as cri​ses
de so​nam​bu​lis​m o a um mo​m en​to de stress re​la​c i​o​na​do, tal​vez, com a pu​bli​c a​ç ão
do pri​m ei​r o li​vro.
— Não se​r ia o caso de fa​zer ou​tro tipo de exa​m es? — Dom per​gun​tou.
» — Vo​c ês, es​c ri​to​r es, têm ima​gi​na​ç ão fér​til. Sou ca​paz de apos
tar que está com medo de ter um tu​m or no cé​r e​bro. Acer​tei?
— E... acho que sim.
— Sen​te do​r es de ca​be​ç a? Ton​tu​r as? Per​da de vi​são?
— Não.
— Exa​m i​nei suas re​ti​nas e não há si​nal de al​te​r a​ç ão. Pres​são in​tra​c ra​ni​a ​na
nor​m al, por​tan​to. — O dr. Co​bletz exa​m i​nou as ano​ta​ç ões. — Tem tido náu​se​a s?
Vô​m i​tos?
— Não. Nada dis​so.
— Al​te​r a​ç ões ou pro​ble​m as de fala? Sú​bi​tas mu​dan​ç as de hu​m or? Pe​r í​o​dos
de de​pres​são se​gui​dos de pe​r í​o​dos de eu​f o​r ia sem ra​zão apa​r en​te? Qual​quer
anor​m a​li​da​de de com​por​ta​m en​to ou de há​bi​tos?
— Não.
— En​tão não há mo​ti​vo para ou​tro tipo de exa​m es.
— Tal​vez... psi​c o​te​r a​pia? — Dom cru​zou os bra​ç os, aten​to.
— Pelo amor de Deus! Cla​r o que não! Es​sas cri​ses vão de​sa​pa​r e​c er logo,
de re​pen​te, as​sim como sur​gi​r am. Fi​que tran​qüi​lo.
Dom ves​tiu a ca​m i​sa, abo​to​ou-a, en​quan​to o mé​di​c o guar​da​va sua fi​c ha no
ar​qui​vo.
— Nem... al​gum so​ní​f e​r o? — per​gun​tou.
— Não, não. — O mé​di​c o ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. — Ain​da não. Só re​c ei​to so​-
ní​f e​r os e cal​m an​tes quan​do é ab​so​lu​ta​m en​te ne​c es-
sá​r io para o pa​c i​e n​te se re​c u​pe​r ar da ten​são. Mas não é seu caso, Dom. Va​-
mos ten​tar ou​tro ca​m i​nho. Su​gi​r o que pare de es​c re​ver por al​gu​m as se​m a​nas.
Dei​xe a mas​sa en​c e​f á​li​c a em paz e tra​te de dar tra​ba​lho ao cor​po. Faça gi​nás​ti​-
ca, cor​r a, ande, res​pi​r e. En​f im, faça o pos​sí​vel para se can​sar fi​si​c a​m en​te e vá
para a cama tão exaus​to que não con​si​ga pen​sar em nada. Te​nho cer​te​za de que
em duas ou três se​m a​nas você es​ta​r á cu​r a​do.
As​sim, no sá​ba​do, Dom ini​c i​ou seu pro​gra​m a de exer​c í​c i​os le​van​do-o mui​to
mais a sé​r io do que o dr. Co​bletz po​de​r ia ima​gi​nar, e, pelo me​nos no pri​m ei​r o dia,
tudo deu cer​to. Ao des​per​tar na ma​nhã se​guin​te, po​r ém, Dom não es​ta​va nem no
ar​m á​r io, nem na cama, e, sim, na ga​r a​gem.
Foi acor​dan​do de​va​gar, ain​da su​f o​c a​do pelo medo, o co​r a​ç ão aos pu​los, a
gar​gan​ta seca, os pu​nhos cer​r a​dos. To​dos os mús​c u​los do cor​po do​í​a m, em par​te
por cau​sa dos exer​c í​c i​os da vés​pe​r a, em par​te por cau​sa da po​si​ç ão em que es​ta​-
va.
A noi​te, apa​nha​r a dois pe​da​ç os de lona que fi​c a​vam guar​da​dos sob a mesa
da ga​r a​gem e co​lo​c a​r a-os atrás da cal​dei​r a que com​pu​nha o sis​te​m a de aque​c i​-
men​to da casa. Era ali que es​ta​va, es​c on​di​do en​tre os dois pe​da​ç os de lona. Mas
por que ra​zão se es​c on​de​r a?
Já acor​da​do, afas​tan​do a lona para po​der ver onde es​ta​va, ar​r e​ga​lan​do os
olhos aver​m e​lha​dos, ain​da sen​tia o pul​so ace​le​r a​do. Ain​da es​ta​va as​sus​ta​do. Por
quê?
Um pe​sa​de​lo... Cla​r o! Ti​ve​r a um pe​sa​de​lo, um so​nho onde apa​r e​c ia al​gu​m a
coi​sa que o ha​via as​sus​ta​do mui​to. En​tão sa​í​r a da cama para pro​c u​r ar um lu​gar
onde pu​des​se es​c on​der-se... e en​f i​a ​r a-se no fun​do da ga​r a​gem, atrás da cal​dei​r a,
en​tre os pe​da​ç os de lona.
À fren​te, pou​c os pas​sos adi​a n​te, seu mo​der​no car​r o bran​c o pa​r e​c ia um fan​-
tas​m a, meio ocul​to nas som​bras. A úni​c a ilu​m i​na​ç ão da ga​r a​gem vi​nha de uma
pe​que​na ja​ne​la pou​c o aci​m a da mesa. Dom sen​tia-se como se fos​se, ao mes​m o
tem​po, au​tor e per​so​na​gem de uma cena de ter​r or. O dia co​m e​ç a​va a cla​r e​a r.
Ele vol​tou para den​tro de casa, en​trou no es​c ri​tó​r io e sen​tou-se di​a n​te do com​pu​-
ta​dor. Di​gi​tou o có​di​go e es​pe​r ou que o mo​ni​tor mos​tras
se o úl​ti​m o tex​to que ha​via no dis​que​te. Tudo bem: o tex​to era exa​ta​m en​te o
mes​m o que dei​xa​r a gra​va​do na quin​ta-fei​r a.
Era um alí​vio, mas tam​bém uma de​c ep​ç ão. Dom per​c e​beu que se apro​xi​-
ma​r a do mo​ni​tor na es​pe​r an​ç a de en​c on​trar al​gu​m a coi​sa — uma men​sa​gem,
um avi​so, qual​quer si​nal que o aju​das​se a en​ten​der o que es​ta​va acon​te​c en​do.
Ha​via uma par​te dele, de seu cé​r e​bro, de seu in​c ons​c i​e n​te, que guar​da​va to​das as
res​pos​tas, mas era como um ar​qui​vo se​c re​to e ina​c es​sí​vel. Só quan​do dor​m ia
é que o in​c ons​c i​e n​te en​c on​tra​va es​pa​ç o para ma​ni​f es​tar-se ple​na​m en​te, e Dom
ti​nha a es​pe​r an​ç a de que o com​pu​ta​dor pu​des​se aju​dá-lo.
Des​li​gou o apa​r e​lho e per​m a​ne​c eu onde es​ta​va, pen​sa​ti​vo, os olhos per​di​dos
na pai​sa​gem que co​m e​ç a​va a re​ve​lar-se à luz trans​pa​r en​te da ma​nhã. De​pois de
al​gum tem​po, le​van​tou-se para ir ao ba​nhei​r o, mas pa​r ou de re​pen​te, jun​to à por​-
ta do quar​to. Al​gu​m a coi​sa no car​pe​te fe​r iu-lhe o pé des​c al​ç o... um pre​go. Ha​-
via de​ze​nas de pre​gos, to​dos iguais, sem ca​be​ç a, com pou​c o mais de três cen​tí​-
me​tros, es​pa​lha​dos pelo car​pe​te des​de a en​tra​da do quar​to até a ja​ne​la.
Dom se​guiu com o olhar o es​tra​nho ras​tro de seu pe​sa​de​lo e en​c on​trou a cai​-
xa de pre​gos, qua​se va​zia, ten​do ao lado um mar​te​lo. Abai​xou-se, apa​nhou o
mar​te​lo, exa​m i​nou-o, fran​ziu as so​bran​c e​lhas. Len​ta​m en​te exa​m i​nou a pa​r e​de e
o ba​ten​te da ja​ne​la. E en​tão viu um pre​go meio en​f i​a ​do na ma​dei​r a da ve​ne​zi​a ​-
na. Ali co​m e​ç a​va o ras​tro que se es​pa​lha​r a pelo quar​to. Deus do céu! Algo acon​-
te​c e​r a... e dei​xa​r a-o tão as​sus​ta​do que ele ha​via ten​ta​do pre​gar a ja​ne​la! Ten​ta​r a
im​pe​dir que al​guém en​tras​se... e en​tão, de re​pen​te, as​sus​ta​r a-se ain​da mais e fu​-
gi​r a. Cor​r e​r a para a ga​r a​gem, es​pa​lhan​do os pre​gos pelo chão, e fora es​c on​der-
se em​bai​xo da lona, atrás da cal​dei​r a.
Dom dei​xou o mar​te​lo cair e olhou para fora. As ro​sei​r as co​m e​ç a​vam a flo​-
rir, a gra​m a bri​lha​va na umi​da​de da ma​nhã e as pe​dras de már​m o​r e na en​tra​da
da casa vi​zi​nha pa​r e​c i​a m re​c ém-la​va​das. Uma lin​da vis​ta, dig​na de car​tão-pos​-
tal, o que de tão
ter​r í​vel po​de​r ia ter acon​te​c i​do na​que​le lu​gar tran​qüi​lo? Quem se apro​xi​m a​r a
de sua ja​ne​la para as​sus​tá-lo?
Aos pou​c os, à me​di​da que o dia se es​pa​lha​va so​bre o mar, Dom viu che​ga​-
rem as pri​m ei​r as abe​lhas, atra​í​das pe​las ro​sas. En​tão cur​vou-se e co​m e​ç ou a
guar​dar os pre​gos.
Era o dia 24 de no​vem​bro.

5. BOS​TON, MAS​SA​CHU​SETTS

De​pois do in​c i​den​te das lu​vas pre​tas, pas​sa​r am-se duas se​m a​nas sem no​vi​da​-
des. Nos pri​m ei​r os dias, logo após a cena na Casa Berns-tein, Gin​ger an​dou ten​sa,
sem​pre à es​pe​r a de que so​bre​vi​e s​se ou​tra cri​se. Mais do que nun​c a, man​ti​nha-se
em per​m a​nen​te es​ta​do de aler​ta, aten​ta a qual​quer pos​sí​vel al​te​r a​ç ão de suas
fun​ç ões fi​si​o​ló​gi​c as ou psi​c o​ló​gi​c as. Como não no​tas​se nada de es​tra​nho, co​m e​-
çou a tran​qüi​li​zar-se. Não ha​via sin​to​m as de ce​f a​léia, nem náu​se​a s, nem dor nos
mús​c u​los ou nas ar​ti​c u​la​ç ões. Aos pou​c os foi se re​c u​pe​r an​do do sus​to e logo vol​-
tou a ser a cal​m a e se​gu​r a dra. Weiss que to​dos co​nhe​c i​a m, prin​c i​pal​m en​te ela
mes​m a. Tra​ta​va-se de um sim​ples caso de fuga as​so​c i​a ​da a stress, uma ex​pe​r i​-
ên​c ia de​sa​gra​dá​vel que po​de​r ia evi​tar fa​c il​m en​te com pro​vi​dên​c i​a s sim​ples
como des​c an​so, boa ali​m en​ta​ç ão e mui​ta paz.
Quan​do es​ta​va no hos​pi​tal, po​r ém, des​c an​so era a úl​ti​m a coi​sa em que po​de​-
ria pen​sar. Ape​sar do jei​to len​to de fa​lar e da apa​r ên​c ia pre​gui​ç o​sa, o dr. Ge​or​ge
Han​naby, che​f e da equi​pe de ci​r ur​gi​ões, man​ti​nha os su​bor​di​na​dos num rit​m o
ma​ç an​te de tra​ba​lho e exi​gia de to​dos pon​tu​a ​li​da​de, dis​c i​pli​na, or​dem. Gin​ger
não era a úni​c a re​si​den​te que o as​sis​tia nas ci​r ur​gi​a s, mas era a úni​c a que tra​ba​-
lha​va ex​c lu​si​va​m en​te com ele, uma es​pé​c ie de “elei​ta”. O gran​de che​f e sem​pre
a cha​m a​va para qual​quer tipo de in​ter​ven​ç ão, des​de os mais va​r i​a ​dos im​plan​tes
— de pon​te car​dí​a ​c a ou aór​ti​c a, de veia sa​f e​na ou ar​té​r ia ma​m á​r ia, de vál​vu​las
in-tra​c ar​dí​a ​c as ou mar​c a​pas​sos — até em​bo​lec​to​m i​a s, ci​ne​a n​gio-co​r o​na​r i​o​gra​f i​-
as e ar​te​r i​o​gra​f i​a s.
Ge​or​ge man​ti​nha es​tri​ta e cons​tan​te vi​gi​lân​c ia so​bre sua bri​lhan​te dis​c í​pu​la e
ja​m ais per​dia uma opor​tu​ni​da​de de co​m en​tar os mais in​sig​ni​f i​c an​tes de​ta​lhes de
pro​c e​di​m en​to ci​r úr​gi​c o er​r a​do que ob​ser​vas​se. Com seu ar bo​na​c hão e des​c on​-
tra​í​do, o mes​tre já en​ga​na​r a mui​tos re​si​den​tes in​gê​nuos, os quais, para seu pró​-
prio uso e ar​qui​vo, cos​tu​m a​va clas​si​f i​c ar em dois gru​pos: os que apren​dem com
o pri​m ei​r o erro e os que ja​m ais apren​de​r ão. Mui​tos jo​vens mé​di​c os do ser​vi​ç o
de ci​r ur​gia fu​gi​a m dele como o di​a ​bo da cruz. Era irô​ni​c o, cáus​ti​c o, de​m o​li​dor.
Ape​sar de tudo, tra​ba​lhan​do ao lado de Ge​or​ge na sala de ci​r ur​gia, Gin​ger
sen​tia-se em casa. Era como co​zi​nhar ao lado de Anna ou fa​zer as pro​vas fi​nais
da es​c o​la sa​ben​do que os pais dor​m i​a m tran​qüi​los, cer​tos de seu su​c es​so. Cla​r o
que no hos​pi​tal os pa​drões eram in​f i​ni​ta​m en​te mais ri​go​r o​sos, pois não se tra​ta​-
va de fa​zer um sa​bo​r o​so su​f lê ou ti​r ar boas no​tas, e sim de sal​var a vida de um
pa​c i​e n​te. Quan​do Ge​or​ge Han​naby dis​se-lhe que ela era uma bri​lhan​te ci​r ur​gia,
a mais bri​lhan​te que já vira em ação, Gin​ger sen​tiu-se como se Deus, em pes​soa,
a aben​ç o​a s​se.
Na úl​ti​m a se​gun​da-fei​r a de no​vem​bro, tre​ze dias de​pois do in​c i​den​te na Casa
Berns​tein, ela as​sis​tia o mes​tre num im​plan​te de tri​pla pon​te de sa​f e​na. O pa​c i​e n​-
te era Johnny 0’Day, de cin​qüen​ta e dois anos, ofi​c i​a l de po​lí​c ia em Bos​ton, pre​-
ma​tu​r a​m en​te apo​sen​ta​do em fun​ç ão de seus pro​ble​m as car​dí​a ​c os. Mus​c u​lo​so,
de fa​c es aver​m e​lha​das, ca​be​lo cor​ta​do ren​te e do​c es olhos azuis, Johnny es​ta​va
sem​pre dis​pos​to a fa​zer pi​a ​das e rir de suas ar​té​r i​a s en​tu​pi​das. Gin​ger sim​pa​ti​zou
com ele por​que lhe lem​bra​va Ja​c ob, em​bo​r a os dois não pu​des​sem ser me​nos
pa​r e​c i​dos.
Johnny era pa​c i​e n​te de alto ris​c o, mas isso não a fa​r ia sen​tir-se me​nos cul​pa​-
da se ele não so​bre​vi​ves​se ao ter​r í​vel pós-ope​r a​tó​r io que o es​pe​r a​va. De qual​quer
modo, con​si​de​r a​das as cir​c uns​tân​c i​a s, Johnny ti​nha gran​des chan​c es de so​bre​vi​-
da. Sau​dá​vel e mais jo​vem que a mé​dia dos pa​c i​e n​tes de im​plan​te de pon​tes car​-
dí​a ​c as, não so​f ria de hi​per​ten​são nem apre​sen​ta​va his​tó​r i​c o de fle​bi​te. Fei​tas as
con​tas, ti​nha um bom prog​nós​ti​c o.
O ver​da​dei​r o pro​ble​m a não era o pa​c i​e n​te, mas a mé​di​c a as​sis-
ten​te. A todo mo​m en​to vol​ta​va-lhe à lem​bran​ç a o in​c i​den​te das lu​vas pre​tas.
Na tar​de de se​gun​da-fei​r a, Gin​ger fi​c a​va mais ten​sa à me​di​da que se apro​xi​m a​-
va a hora da ci​r ur​gia. Sen​tia a boca amar​ga; doía-lhe o es​tô​m a​go. Des​de a noi​te
que pas​sa​r a à ca​be​c ei​r a de Ja​c ob, no hos​pi​tal, sa​ben​do que ele po​de​r ia mor​r er a
qual​quer mo​m en​to, ja​m ais se sen​ti​r a tão de​sam​pa​r a​da, tão cheia de dú​vi​das e de
medo. Tal​vez a sen​sa​ç ão fos​se agra​va​da pela iden​ti​f i​c a​ç ão que es​ta​be​le​c e​r a en​-
tre Johnny e o pai. Tal​vez te​m es​se fa​lhar com seu pa​c i​e n​te e sen​tir-se, ou​tra vez,
como se es​ti​ves​se fa​lhan​do com Ja​c ob. Ou, tal​vez, nada dis​so ser​vis​se para ex​pli​-
car coi​sa al​gu​m a. Es​ta​va ten​sa, pron​to. Quan​do Johnny en​tras​se em fase de re​-
cu​pe​r a​ç ão, tudo aqui​lo te​r ia pas​sa​do e to​dos ri​r i​a m de suas apreensões. De qual​-
quer modo, ao en​trar no cen​tro ci​r úr​gi​c o, ao lado de Ge​or​ge, Gin​ger bai​xou os
olhos para as pró​pri​a s mãos, com medo de vê-las tre​m er. Mãos de ci​r ur​gi​ã o não
po​dem tre​m er. Nun​c a.
A sala de ci​r ur​gia ti​nha pa​r e​des bran​c as, e por to​dos os la​dos viam-se os ins​-
tru​m en​tos e equi​pa​m en​tos de aço ino​xi​dá​vel, vi​dro e bor​r a​c ha. No cen​tro, como
numa are​na li​m i​ta​da pe​las lâm​pa​das que pen​di​a m do teto, er​guia-se a mesa onde
o pa​c i​e n​te es​ta​va sen​do pre​pa​r a​do pe​las en​f er​m ei​r as e as​sis​ten​tes.
Johnny 0’Day es​pe​r a​va na mesa em for​m a de cruz com os dois bra​ç os aber​-
tos apoi​a ​dos so​bre ban​de​j as de me​tal, as pal​m as das mãos para cima, os pul​sos e
an​te​bra​ç os cui​da​do​sa​m en​te de​pi​la-dos para re​c e​be​r em as agu​lhas in​tra​ve​no​sas.
A en​f er​m ei​r a Aga​tha Tandy, téc​ni​c a em ci​r ur​gia con​tra​ta​da mais para ser​vir
ao dr. Han​naby que ao hos​pi​tal, apro​xi​m ou-se dos mé​di​c os. Le​va​va dois pa​r es de
lu​vas de bor​r a​c ha, que cal​ç ou pri​m ei​r o em Ge​or​ge, de​pois em Gin​ger.
O anes​te​sis​ta fez um si​nal para Ge​or​ge in​di​c an​do que o pa​c i​e n​te es​ta​va pre​-
pa​r a​do para en​trar em ci​r ur​gia. Johnny já ha​via pas​sa​do pela tri​c o​to​m ia e seu
tron​c o bri​lha​va, de​pi​la​do e pin​ta​do de iodo do pes​c o​ç o à cin​tu​r a. Os di​f e​r en​tes
cam​pos ope​r a​tó​r i​os já es​ta​vam de​f i​ni​dos, e vá​r i​os len​ç óis ver​de-cla​r os fo​r am
dis​pos​tos de modo a dei​xar ex​pos​ta ape​nas a área na qual o ci​r ur​gi​ã o tra​ba​lha​r ia.
O anes​te​sis​ta en​c ar​r e​ga​r a-se de pas​sar uma lar​ga tira de es​pa​r a​dra​po so​bre as
pál​pe​bras do pa​c i​e n​te para man​tê-las fe​c ha​das e, as​sim, im​pe​dir que os olhos
res​se​c as​sem, e Johnny 0’Day res​pi​r a​va bem, len​ta mas re​gu​lar​m en​te.
No can​to opos​to da sala, jun​to à pa​r e​de, uma me​si​nha bai​xa sus​ten​ta​va um
gra​va​dor por​tá​til. Ge​or​ge gos​ta​va de tra​ba​lhar ao rit​m o de Bach, e a mú​si​c a, em
vo​lu​m e bai​xo po​r ém per​f ei​ta​m en-te au​dí​vel, en​c hia a sala. Em ge​r al, Gin​ger
tam​bém gos​ta​va de ter o gra​va​dor por per​to e acre​di​ta​va que o efei​to re​la​xan​te
do som era be​né​f i​c o para toda a equi​pe mé​di​c a; na​que​le dia, en​tre​tan​to, nem
Bach con​se​gui​r ia o mi​la​gre de acal​m á-la. Sen​tia o es​tô​m a​go con​tra​í​do, pe​sa​do,
frio.
Ge​or​ge to​m ou po​si​ç ão ao lado da mesa ci​r úr​gi​c a. A sua di​r ei​ta, Aga​tha pa​r e​-
cia mon​tar guar​da fren​te à ban​de​j a de ins​tru​m en​tos. Jun​to aos pés do pa​c i​e n​te,
pos​ta​va-se ou​tra en​f er​m ei​r a, pron​ta para re​sol​ver qual​quer pro​ble​m a que sur​gis​-
se no de​c or​r er da ci​r ur​gia, quan​do ne​nhum dos ou​tros mem​bros da equi​pe po​de​-
ria afas​tar-se da mesa. Uma ter​c ei​r a en​f er​m ei​r a, com gran​des olhos cin​zen​tos
apa​r e​c en​do por cima da más​c a​r a ver​de-cla​r a, ajei​tou uma im​per​c ep​tí​vel pre​ga
num dos cam​pos ci​r úr​gi​c os e pren​deu uma pon​ta de len​ç ol sob a coxa de Johnny.
O anes​te​sis​ta sen​tou-se num ban​c o alto, ao lado de seu as​sis​ten​te e jun​to à ca​be​-
cei​r a da mesa ci​r úr​gi​c a, aco​m o​dan​do-se para mo​ni​to​r ar os apa​r e​lhos que in​di​c a​-
ri​a m a evo​lu​ç ão dos si​nais vi​tais do pa​c i​e n​te.
Gin​ger deu um pas​so à fren​te, as​su​m iu seu pos​to e res​pi​r ou fun​do. Ia co​m e​-
çar o jogo, e suas mãos não tre​m i​a m. O es​tô​m a​go, po​r ém, con​ti​nu​a ​va cada vez
mais pe​sa​do e frio. Seus som​bri​os pres​sen​ti​m en​tos mos​tra​r am-se in​f un​da​dos, e a
ci​r ur​gia cor​r eu sem anor​m a​li​da​des. Ge​or​ge, como sem​pre, tra​ba​lhou com ra​pi​-
dez, se​gu​r an​ç a e ha​bi​li​da​de, qua​li​da​des que já eram sua mar​c a re​gis​tra​da. Du​-
ran​te a ci​r ur​gia, em duas oca​si​ões di​f e​r en​tes, afas​tou-se da mesa e or​de​nou a
Gin​ger que des​se se​qüên​c ia ao pro​c e​di​m en​to, o que ela fez com a cal​m a e a fir​-
me​za ha​bi​tu​a is. Nin​guém per​c e​beu, mas um fio de suor ge​la​do es​c or​r eu-lhe de​-
va​gar en​tre as cos​te​las quan​do as​su​m iu o co​m an​do da ci​r ur​gia. Ou​tras go​tas de
suor
acu​m u​la​r am-se jun​to ao gor​r o que es​c on​dia seus ca​be​los — pro​ble​m a sim​-
ples que a en​f er​m ei​r a re​sol​veu num se​gun​do, to​c an​do-lhe a tes​ta com uma gaze
seca.
Ter​m i​na​da a ope​r a​ç ão, Ge​or​ge sus​pi​r ou sa​tis​f ei​to en​quan​to ti​r a​vam as lu​vas
e la​va​vam as mãos na pia:
— Per​f ei​to. A equi​pe fun​c i​o​nou como um re​ló​gio.
Gin​ger dei​xou a água mor​na es​c or​r er-lhe en​tre os de​dos.
— Você pa​r e​c e tão cal​m o — dis​se. — Está sem​pre re​la​xa​do, como se es​ti​-
ves​se cor​tan​do um bife...
— Sei que pa​r e​ç o cal​m o. Mas fico ten​so quan​do ope​r o. E por isso que gos​to
de ou​vir Bach. — Ele fe​c hou a tor​nei​r a. — Você tam​bém es​ta​va ten​sa.

- É...

— Mais ten​sa do que de cos​tu​m e. Sei como é. — As ve​zes, Ge​or​ge era ca​-
paz de fa​lar com mui​ta do​ç u​r a, cri​a n​do cu​r i​o​so con​tras​te com a aura de au​to​r i​-
da​de que o cer​c a​va. — O que im​por​ta é que você tra​ba​lhou mui​to bem. Não po​-
de​m os obri​gar o cor​po a des​c on​trair, mas tam​bém não po​de​m os per​m i​tir que a
ten​são nos faça er​r ar. Você es​te​ve per​f ei​ta. O se​gre​do é sa​ber usar a ten​são... Ela
pode aju​dar mui​to, obri​ga-nos a ser mais aten​tos, a con​c en​trar-nos mais.
— Acho que es​tou co​m e​ç an​do a apren​der.
Ge​or​ge sor​r iu e le​van​tou as so​bran​c e​lhas:
— Está sen​do mui​to se​ve​r a con​si​go mes​m a. Ali​á s, como sem​pre. Es​tou
mui​to or​gu​lho​so de você, me​ni​na. Quan​do a vi pela pri​m ei​r a vez, achei que você
ja​m ais da​r ia cer​to como ci​r ur​gia. Che​guei a pen​sar em acon​se​lhá-la a ten​tar ga​-
nhar a vida como açou​guei​r a num su​per​m er​c a​do. Mas eu me en​ga​nei... você vai
ser um su​c es​so!
Gin​ger for​ç ou um sor​r i​so. Ge​or​ge ha​via per​c e​bi​do ape​nas uma par​te do pro​-
ble​m a. Ha​via mais do que ten​são no suor ge​la​do que lhe co​bri​r a a tes​ta, as
mãos... Ela es​ta​va mor​ta de medo! Não era um medo sau​dá​vel, do tipo que po​-
de​r ia tor​ná-la mais aten​ta ou au​m en​tar sua con​c en​tra​ç ão. Era um medo novo,
des​c o​nhe​c i​do. Um medo que ela ja​m ais sen​ti​r a na vida e que Ge​or​ge, com cer-
teza, nun​c a sen​ti​r ía fren​te à mesa ci​r úr​gi​c a. E se aque​le medo vol​tas​se? E se
apa​r e​c es​se sem​pre que seus de​dos to​c as​sem o bis​tu​r i? O que po​de​r ia acon​te​c er?
O que se​r ia de sua car​r ei​r a?!
As dez e meia da mes​m a noi​te, Gin​ger es​ta​va dei​ta​da, len​do, quan​do o te​le​-
fo​ne to​c ou. Era Ge​or​ge Han​naby. Se ti​ves​se li​ga​do mais cedo, Gin​ger pen​sa​r ia
logo que as no​tí​c i​a s não eram boas, que Johnny 0’Day ti​ve​r a al​gu​m a com​pli​c a​-
ção pós-ope​r a​tó​r ia, ou qual​quer ou​tro de​sas​tre. Mas àque​la hora já se acal​m a​r a e
riu, ten​tan​do fa​lar com a voz em​pos​ta​da:
— A dou​to​r a Weiss não está. Vi​a ​j ou e só vol​ta no mês que vem.
— Hor​r í​vel! Como atriz você se​r ia um fra​c as​so. O pú​bli​c o agra​de​c e, prin​-
ci​pal​m en​te os in​ter​nos do pa​vi​lhão de co​r o​ná​r i​a s.
— Pois você da​r ia um óti​m o crí​ti​c o de te​a ​tro... re​c la​m a de tudo!
— Você está sen​do in​j us​ta. Sou sen​sí​vel, in​te​li​gen​te, lú​c i​do e cul​to. Eu da​r ia
um crí​ti​c o fan​tás​ti​c o. Mas, por fa​vor, cale-se e es​c u​te. Te​nho boas no​tí​c i​a s... che​-
guei à con​c lu​são de que você está pron​ta.
—- Cla​r o que es​tou. Mas pron​ta para quê?
— Para en​trar em cena. Te​m os um im​plan​te de aor​ta. — Ge​or​ge não era
ho​m em de ro​dei​os.
— Você... quer di​zer que... eu é que vou ope​r ar? Fa​zer tudo so​zi​nha?!
— Ci​r ur​giã-che​f e, dou​to​r a. Res​pon​sá​vel pelo pa​c i​e n​te até o úl​ti​m o pon​to de
su​tu​r a.
— Im​plan​te de aor​ta?
— Por que não? Será que você se es​pe​c i​a ​li​zou em ci​r ur​gia car-di​o​vas​c u​lar
para pas​sar o res​to da vida re​m o​ven​do apên​di​c es su-pu​r a​dos?
Gin​ger sen​ta​r a-se na cama, as cos​tas re​tas, o te​le​f o​ne tre​m en​do jun​to ao ou​-
vi​do. O co​r a​ç ão ba​tia-lhe for​te, os olhos bri​lha​vam de ex​c i​ta​ç ão.
— Já está mar​c a​da? — per​gun​tou.
— Deve ser na pró​xi​m a se​m a​na. A pa​c i​e n​te vai se in​ter​nar na quin​ta ou na
sex​ta-fei​r a. Cha​m a-se Flet​c her, Vi​o​la Flet​c her. Na
quar​ta po​de​m os ana​li​sar os exa​m es e o his​tó​r i​c o do caso. Se não hou​ver ne​-
nhum ou​tro pro​ble​m a, acho que ela po​de​r á en​trar em ci​r ur​gia na se​gun​da-fei​r a
de ma​nhã. Cla​r o que você es​ta​r á li​vre para pe​dir qual​quer ou​tro exa​m e que
achar ne​c es​sá​r io. E ca​be​r á a você mar​c ar data e hora para a ci​r ur​gia.
— Meu Deus...
— Deus pode aju​dar, mas é você quem ope​r a, não es​que​ç a. Você vai sen​-
tir-se como se fos​se mãe dela... Dona Vi​o​la, vai re​nas​c er!
— Pro​m e​ta que você será meu as​sis​ten​te.
— Isso é pra​xe, você sabe — Ge​or​ge riu. — Cla​r o que es​ta​r ei lá, para o
caso de você pre​c i​sar de mim. Mas não te​nho dú​vi​das de que vou usar as mãos
só para ba​ter pal​m as.
— Se eu me as​sus​tar e tre​m er, você as​su​m e?
— Não seja boba. E cla​r o que você não vai tre​m er.
Gin​ger fe​c hou os olhos, res​pi​r ou fun​do e mur​m u​r ou:
— Não sou boba. Não vou tre​m er.
— As​sim é que se fala, dou​to​r a. Você é ca​paz de fa​zer o que qui​ser. Você ê
ca​paz!
— Pos​so pi​lo​tar uma nave até a Lua e ca​sar com o rei do Sião.
— O quê?
— Nada. Uma pi​a ​di​nha fa​m i​li​a r.
— Ago​r a, ou​tro as​sun​to — Ge​or​ge con​ti​nuou. — Hoje, na ci​r ur​gia de
OT)ay, vi que você es​ta​va à bei​r a do pâ​ni​c o. Não sei se já con​ver​sa​m os so​bre
isso, mas acho im​por​tan​te você sa​ber que essa re​a ​ç ão é ab​so​lu​ta​m en​te nor​m al
em to​dos os re​si​den​tes de ci​r ur​gia. Em ge​r al ocor​r e na pri​m ei​r a in​ter​ven​ç ão em
que um jo​vem mé​di​c o tra​ba​lha como as​sis​ten​te. Os re​si​den​tes pen​sam que não
sei, mas cos​tu​m am di​zer que se sen​ti​r am “aper​ta​dos”. To​dos eles fa​lam no
“aper​to da pri​m ei​r a ci​r ur​gia”. Com você foi di​f e​r en​te por​que não acon​te​c eu na
pri​m ei​r a ci​r ur​gia, nem na se​gun​da, nem na ter​c ei​r a... Che​guei a pen​sar que você
se​r ia mi​nha pri​m ei​r a re​si​den​te que nun​c a se “aper​ta​va” — Ge​or​ge riu. —
Acho que você tam​bém pen​sou que não acon​te​c e​r ia com você... e acho que
deve es​tar mui​to pre​o​c u​pa​da. Por isso re​sol​vi te​le​f o​nar es​pe​c i​a l​m en​te para di​zer-
lhe que o “aper​to” é par​te im​por​tan​te do
trei​na​m en​to. É uma ex​pe​r i​ê n​c ia de... di​ga​m os... ama​du​r e​c i​m en​to. O que im​-
por​ta é que você con​se​guiu su​pe​r ar sua cri​se de medo e foi bri​lhan​te.
— Não sei como você se sai​r ia como crí​ti​c o de te​a ​tro — re​pli​c ou Gin​ger —,
mas não há dú​vi​da de que se​r ia um óti​m o trei​na​dor de fu​te​bol. Mui​to obri​ga​da.
Pou​c o de​pois, ao des​li​gar o te​le​f o​ne, sen​tia-se tão fe​liz que ria so​zi​nha, abra​-
ça​da ao tra​ves​sei​r o. De re​pen​te, ar​r an​c ou as co​ber​tas de um sal​to e cor​r eu até o
ar​m á​r io onde guar​da​va seus ve​lhos ál​buns de fo​to​gra​f i​a s. Pro​c u​r ou um de​les e
le​vou-o para a cama, já aber​to nas úl​ti​m as pá​gi​nas, onde co​la​r a as fo​tos de Anna
e Ja-cob que mais gos​ta​va. Já que não po​dia tê-los a seu lado na​que​le mo​m en​to
de ab​so​lu​ta ale​gria, ten​ta​va revê-los, como es​ta​vam, vi​vos e tão pró​xi​m os, em
seu co​r a​ç ão.
Bem mais tar​de, a lâm​pa​da de ca​be​c ei​r a des​li​ga​da, Gin​ger co​m e​ç a​va a
mer​gu​lhar no es​ta​do de se​m i​c ons​c i​ê n​c ia que pre​c e​de o sono, em​ba​lan​do-se da
ale​gria que Ge​or​ge lhe dera, quan​do su​bi​ta​m en​te en​ten​deu. Não ha​via so​f ri​do
ne​nhum “aper​to” e mes​m o que o ti​ves​se ex​pe​r i​m en​ta​do, isso não a im​pe​di​r ia
de con​tro​lar-se e cum​prir seu pa​pel com per​f ei​ç ão. Al​gu​m a ou​tra coi​sa dei​xa​r a-
a ten​sa, e só ago​r a per​c e​bia o que era: medo.
Medo de fu​gir como ha​via fu​gi​do da Casa Berns​tein e das lu​vas pre​tas. E se
acon​te​c es​se em ple​na ci​r ur​gia? E se acon​te​c es​se no mo​m en​to de to​c ar com a
pin​ç a um aneu​r is​m a de aor​ta ou de su​tu​r ar um im​plan​te ar​ti​f i​c i​a l?
O sus​to a fez sal​tar na cama. O sono fu​giu como um la​drão sur​preen​di​do em
ple​no rou​bo. Gin​ger con​ti​nuou sen​ta​da na cama, olhos mui​to aber​tos, acom​pa​-
nhan​do o su​a ​ve ba​lan​ç o das cor​ti​nas so​pra​das pelo ven​to, ob​ser​van​do o re​f le​xo
do luar na pa​r e​de do quar​to.
Como po​de​r ia acei​tar a res​pon​sa​bi​li​da​de de fa​zer um im​plan​te de aor​ta?
Ora... como sem​pre acei​ta​r a as res​pon​sa​bi​li​da​des que lhe ca​í​a m so​bre os om​-
bros: com se​r i​e ​da​de e bom sen​so. Quais eram os fa​tos? Um in​c i​den​te de fuga
cau​sa​da por stress, es​ta​va sob con​tro​le, ela sen​tia-se em per​f ei​tas con​di​ç ões de
sau​de, e, evi-
den​te​m en​te, o epi​só​dio de fuga não vol​ta​r ia a acon​te​c er. Cla​r o que não.
Mas... e se acon​te​c es​se?!
Aos pou​c os, o can​sa​ç o ven​c eu as pre​o​c u​pa​ç ões e Gin​ger aca​bou mer​gu​lhan​-
do num sono agi​ta​do, cheio de so​bres​sal​tos. Pou​c o de​pois, o dia co​m e​ç ou a cla​r e​-
ar.
Na ter​ç a-fei​r a, de​pois de uma pro​vei​to​sa in​c ur​são à Casa Berns-tein, com a
des​pen​sa e o free​zer far​ta​m en​te abas​te​c i​dos, Gin​ger mer​gu​lhou na lei​tu​r a de um
óti​m o li​vro po​li​c i​a l. Vol​ta​va a sen​tir-se ca​paz de fa​zer o que qui​ses​se. Ple​na e ab​-
so​lu​ta​m en​te ca​paz. As​sim, a ci​r ur​gia da sra. Flet​c her re​to​m a​va a pers​pec​ti​va
nor​m al: era um de​sa​f io, im​por​tan​te e sé​r io como qual​quer bom de​sa​f io,
que exi​gia aten​ç ão, con​c en​tra​ç ão e cui​da​do, mas em​pre​ga​dos con​f or​m e a
bula, ou seja, sem exa​ge​r os.
Na quar​ta, Johnny 0’Day pa​r e​c ia ou​tro ho​m em, ani​m a​do, ale​gre. Era a pro​-
va viva de que os lon​gos anos de es​tu​do e tra​ba​lho ha​vi​a m va​li​do a pena. Gin​ger
sen​tia-se como uma das mais pre​c i​o​sas e im​por​tan​tes en​gre​na​gens de uma en​-
gre​na​gem má​gi​c a, ca​paz de sal​var vi​das, ali​vi​a r do​r es e de​vol​ver a es​pe​r an​ç a
aos de​ses​pe​r a​dos.
Tra​ba​lhou como as​sis​ten​te num im​plan​te de mar​c a pas​so, ci​r ur​gia de ro​ti​na
sem pro​ble​m a al​gum, e de​pois fez uma aor​to​gra-fia, tam​bém ro​ti​nei​r a. Pas​sou
boa par​te da tar​de no con​sul​tó​r io de Ge​or​ge, aju​dan​do-o no tra​ba​lho clí​ni​c o, e
exa​m i​nou vá​r i​os pa​c i​e n​tes no​vos, qua​se to​dos in​di​c a​dos por ou​tros mé​di​c os, em
bus​c a de di​a g​nós​ti​c o es​pe​c i​a ​li​za​do.
Quan​do a en​f er​m ei​r a in​f or​m ou que já não ha​via pa​c i​e n​tes na sala de es​pe​r a,
Gin​ger su​ge​r iu a Ge​or​ge que ana​li​sas​sem os exa​m es de Vi​o​la Flet​c her, cin​qüen​ta
e oito anos, can​di​da​ta ao im​plan​te de aor​ta. Os exa​m es não acu​sa​vam ne​nhu​m a
anor​m a​li​da​de ines​pe​r a​da, e ela não he​si​tou em con​f ir​m ar o di​a g​nós​ti​c o de Ge​or​-
ge. Con​c or​dou pron​ta​m en​te com a ne​c es​si​da​de do im​plan​te e pon​de​r ou que de​-
via re​a ​li​zar-se o mais bre​ve​m en​te pos​sí​vel, de modo a apro​vei​tar o mo​m en​to em
que os si​nais clí​ni​c os pa​r e​c i​a m es​ta​bi​li​za​dos.
— Se​gun​da de ma​nha? — Ge​or​ge per​gun​tou.
— Per​f ei​to. — Gin​ger as​si​nou as re​qui​si​ç ões e en​tre​gou-as à en​f er​m ei​r a
en​c ar​r e​ga​da de mo​bi​li​zar o cen​tro ci​r úr​gi​c o, a equi​pe e todo o ar​se​nal ne​c es​sá​-
rio.
Às de​zoi​to e trin​ta, Gin​ger com​ple​ta​va doze ho​r as de um dia de tra​ba​lho ex​-
cep​c i​o​nal​m en​te es​ti​m u​lan​te e não sen​tia nem si​nal de can​sa​ç o. Ge​or​ge fora para
casa, e ela não ti​nha mais nada para fa​zer no hos​pi​tal; mes​m o as​sim, con​ti​nuou
vi​si​tan​do os pa​c i​e n​tes e exa​m i​nan​do pa​pe​le​tas de acom​pa​nha​m en​to, sem a me​-
nor dis​po​si​ç ão de sair. Por fim, re​sol​veu ir até o con​sul​tó​r io de Ge​or​ge para dar
mais uma olha​da no dos​siê de Vi​o​la Flet​c her.
De​ser​tos àque​la hora, os con​sul​tó​r i​os par​ti​c u​la​r es ocu​pa​vam toda a ala pos​te​-
ri​or do pré​dio, se​pa​r a​da do con​j un​to onde fun​c i​o​na​va o hos​pi​tal pro​pri​a ​m en​te
dito. Gin​ger se​guiu adi​a n​te, ou​vin​do seus sa​pa​tos de so​la​do de bor​r a​c ha pi​sa​r em o
li​nó​leo po​li​do, sen​tin​do no ar o chei​r o pe​sa​do de de​sin​f e​tan​te.
A sala de es​pe​r a, os ga​bi​ne​tes de exa​m e e o cu​bí​c u​lo onde Ge​or​ge guar​da​va
os ar​qui​vos es​ta​vam às es​c u​r as, mas Gin​ger só se deu ao tra​ba​lho de acen​der as
lu​zes quan​do se apro​xi​m ou da mesa onde en​c on​tra​r ia o dos​siê que es​ta​va pro​c u​-
ran​do. Abriu uma das ga​ve​tas cuja cha​ve Ge​or​ge lhe dera fa​zia me​ses, apa​nhou
uma das pas​tas ar​qui​va​das e sen​tou-se na con​f or​tá​vel ca​dei​r a de cou​r o atrás da
mesa. A lu​m i​ná​r ia a sua es​quer​da de​se​nha​va uma pe​que​na ilha de luz so​bre a
ma​dei​r a po​li​da.
Gin​ger abriu a pas​ta, aco​m o​dou-se para ler e nes​se ins​tan​te viu um ob​j e​to
que a fez sal​tar na ca​dei​r a, gri​tan​do de sus​to: o of​tal-mos​c ó​pio por​tá​til que Ge​or​-
ge usa​va para exa​m es de fun​do de olho. Um of​tal​m os​c ó​pio co​m um, nor​m al, que
ela pró​pria uti​li​za​r a vá​r i​a s ve​zes. Ain​da as​sim, o ino​f en​si​vo ins​tru​m en​to ti​r a​va-lhe
o fô​le​go, fa​zia-a sen​tir-se como se, de re​pen​te, al​gu​m a ter​r í​vel ame​a ​ç a pe​sas​se
so​bre sua ca​be​ç a. Gin​ger ti​nha a tes​ta co​ber​ta de suor frio, o co​r a​ç ão dis​pa​r a​do,
o cor​po re​te​sa​do para fu​gir. O of​tal​m os​c ó​pio fas​c i​na​va-a como uma ser​pen​te ve​-
ne​no​sa.
Tal qual ocor​r e​r a na Casa Berns​tein, duas se​m a​nas an​tes, to​dos os ou​tros ob​-
je​tos pou​c o a pou​c o de​sa​pa​r e​c e​r am de seu cam​po de
vi​são, es​f u​m a​ç a​r am-se, di​lu​í​r am-se em né​voa, até res​tar ape​nas o of​tal​m os​-
có​pio, que pa​r e​c ia bri​lhar com luz pró​pria. Gin​ger per​c e​bia-o nos mí​ni​m os de​ta​-
lhes, via cada ar​r a​nhão, cada mi​n​ús​c u​la mar​c a que o uso pro​du​zi​r a no cabo plás​-
ti​c o. Os pa​r a​f u​sos, mui​to pe​que​nos, nor​m al​m en​te qua​se in​vi​sí​veis, ga​nha​vam
pro​por​ç ões ir​r e​c o​nhe​c í​veis, como se o ins​tru​m en​to, de uso ba​nal para qual​quer
clí​ni​c o, cres​c es​se em di​m ensões e em sig​ni​f i​c a​dos... até trans​f or​m ar-se no tri​-
den​te do de​m ô​nio, no ins​tru​m en​to do mal, na arma ca​paz de des​truí-la...
Ou​tra vez o medo des​c ia com um man​to hor​r en​do e co​bria tudo. Gin​ger le​-
van​tou-se de um sal​to. A sua fren​te, o of​tal​m os​c ó​pio bri​lha​va fri​a ​m en​te, as len​tes
vol​ta​das para ela... O olho do mal.
— Fuja da​qui... — dis​se para si mes​m a. — Fuja! — gri​tou e o
eco de sua voz ar​r e​pi​ou-lhe os ca​be​los, so​a n​do como um de​ses​pe​r a​do pe​di​do
de so​c or​r o, como o ge​m i​do tor​tu​r a​do de uma cri​a n​ç a per​di​da.
Vol​tou-se, der​r u​bou a ca​dei​r a onde es​ti​ve​r a sen​ta​da, qua​se caiu por cima de
ou​tra, e cor​r eu para fora da sala, mal con​se​guin​do res​pi​r ar. Pre​c i​sa​va mui​to en​-
con​trar aju​da, um ami​go que a pro​te​ges​se, mas não ha​via nin​guém. Ti​nha cer​te​-
za de que al​gu​m a coi​sa a per​se​guia, apro​xi​m an​do-se cada vez mais.
Os con​sul​tó​r i​os es​ta​vam de​ser​tos, o of​tal​m os​c ó​pio ga​nha​r a vida, sa​í​r a da sala
e cor​r ia à sua pro​c u​r a, ca​ç an​do-a pelo cor​r e​dor. Ela pre​c i​sa​va fu​gir.
Pela se​gun​da vez, o man​to de né​voa ne​gra en​vol​veu tudo.
Pou​c o mais tar​de, ao des​per​tar do tran​se, Gin​ger en​c on​trou-se num dos pa​ta​-
ma​r es da es​c a​da de emer​gên​c ia, no fun​do da ala dos con​sul​tó​r i​os. Sen​ta​da no
chão frio, de cos​tas co​la​das ao con​c re​to da pa​r e​de, não con​se​guia lem​brar se ha​-
via su​bi​do ou des​c i​do quan​do sa​í​r a cor​r en​do do con​sul​tó​r io de Ge​or​ge. Uma úni​-
ca lâm​pa​da ama​r e​la​da bri​lha​va so​bre sua ca​be​ç a. Ao re​dor tudo era si​lên​c io, so​-
li​dão ab​so​lu​ta, ain​da mais ter​r í​vel por​que de​sa​ba​va so​bre ela no mo​m en​to em
que sua vida se par​tia como um copo de vi​dro, em mil pe​da​ç os, para sem​pre.
Pre​c i​sa​va de gen​te, e não en​c on​tra​va nin​guém. Que​r ia ou​vir uma pa​la​vra
ami​ga, e o eco dos cor​r e​do​r es só lhe de​vol​via o ru​í​do de​ses​pe​r a​do da pró​pria res​-
pi​r a​ç ão ofe​gan​te. Sua vida es​ta​va re​du​zi​da àque​la ima​gem: um frio beco de​ser​to,
si​len​c i​o​so e sem sa​í​da. O fato de ain​da es​tar ali, so​zi​nha, era pro​va de que nin​-
guém a vira fu​gir. Mas isso não lhe ser​via de con​so​lo, por​que Gin​ger sa​bia que
não po​de​r ia con​ti​nu​a r fu​gin​do para sem​pre. Sa​bia de tudo...
A rou​pa en​c har​c a​da de suor a fez es​tre​m e​c er de frio. Já não es​ta​va as​sus​ta​-
da; pa​r e​c ia-lhe que a cri​se de medo fora ape​nas a re​c a​í​da de uma do​e n​ç a an​ti​ga
e co​nhe​c i​da. Le​van​tou-se, pas​sou a mão pe​los ca​be​los e pela tes​ta, e exa​m i​nou a
es​c a​da, sem sa​ber se su​bia ou des​c ia. Re​sol​veu su​bir.
— Meshug​ge — res​m un​gou bai​xi​nho, ou​vin​do o eco de seus pas​sos no cor​r e​-
dor de​ser​to.
Era o dia 27 de no​vem​bro.
6. CHI​CA​G O, IL​LI​NOIS
Fa​zia frio na ma​nhã do pri​m ei​r o do​m in​go de de​zem​bro, o céu de nu​vens bai​-
xas e cin​zen​tas pro​m e​ten​do neve. À tar​de, com cer​te​za, ia ne​var e o per​f il som​-
brio da ci​da​de se ocul​ta​r ia sob um ma​c io man​to bran​c o. A noi​te to​das as fa​m í​li​a s
da ci​da​de co​m en​ta​r i​a m a ne​vas​c a — to​das me​nos as fa​m í​li​a s ca​tó​li​c as da pa​r ó​-
quia de San​ta Ber​na​det​te, que só fa​la​r i​a m do pa​dre Bren​dan Cro​nin e de sua mis​-
sa ma​ti​nal.
O pa​dre Cro​nin le​van​tou-se às cin​c o e meia da ma​nhã e, de​pois de di​zer suas
ora​ç ões, en​trou no ba​nho. Em se​gui​da, fez a bar​ba, ves​tiu-se, apa​nhou o bre​vi​á ​r io
e saiu da casa pa​r o​qui​a l sem le​var o ca​sa​c o. Ao abrir a por​ta, de​te​ve-se um ins​-
tan​te e, sa​tis​f ei​to, as​pi​r ou o ar ge​la​do da ma​nhã.
Ti​nha trin​ta anos, mas apa​r en​ta​va bem me​nos, tal​vez por cau​sa do ca​be​lo
rui​vo e cres​po ou do ros​to co​ber​to de sar​das. Era gor​do, de uma gor​du​r a ma​c i​ç a
e re​gu​lar da ca​be​ç a aos pés. Do
jar​dim da infân​c ia ao se​gun​do ano do se​m i​ná​r io, sem​pre fora cha​m a​do pelo
me​r e​c i​do ape​li​do de “Bo​lo​ta”, po​r ém nun​c a se dei​xa​r a aba​lar. Sem​pre bem-hu​-
mo​r a​do, ti​nha um ar de que​r u​bim e pa​r e​c ia in​c a​paz de fi​c ar zan​ga​do ou tris​te.
Na​que​la ma​nha, como sem​pre, o pa​dre Cro​nin dava a im​pres​são de es​tar
em paz com o mun​do, mas, na ver​da​de, es​ta​va ter​r i​vel​m en​te pre​o​c u​pa​do. Atra​-
ves​sou o pá​tio em di​r e​ç ão à sa​c ris​tia, abriu a por​ta dos fun​dos e en​trou. A sa​c ris​-
tia chei​r a​va a in​c en​so e mir​r a, e ao odor fa​m i​li​a r mis​tu​r a​va-se o chei​r o do óleo
de po​lir ma​dei​r a usa​do nos lam​bris e nos ban​c os. Sem dar aten​ç ão a nada, o pa​-
dre con​ti​nuou an​dan​do e apro​xi​m ou-se da en​tra​da da igre​j a. Pa​r ou um ins​tan​te,
mas logo se​guiu até o al​tar, ajo​e ​lhou-se e bai​xou a ca​be​ç a para pe​dir a Deus que
o aju​das​se a car​r e​gar a cruz que lhe pe​sa​va nos om​bros.
Em ge​r al cos​tu​m a​va apro​vei​tar aque​le mo​m en​to de so​li​dão, an​tes da che​ga​-
da dos fi​é is e dos co​r o​i​nhas que o au​xi​li​a ​vam no ser​vi​ç o re​li​gi​o​so, para me​di​tar
so​bre o mis​té​r io in​son​dá​vel da mis​sa, o mi​la​gre da fé, a ale​gria de ser um dos
con​vi​da​dos â ceia do Se​nhor. Mas fa​zia qua​tro me​ses que nada dis​so acon​te​c ia.
Aque​le ins​tan​te de re​c o​lhi​m en​to trans​f or​m a​r a-se num mo​m en​to de cul​pa e afli​-
ção, por​que não con​se​guia sen​tir mais nada. Nada! Ti​nha o co​r a​ç ão va​zio... Já
não acre​di​ta​va. De​ses​pe​r a​do, cer​r a​va os pu​nhos, ri​lha​va os den​tes, lu​ta​va para
re​a ​c en​der a fé em seu co​r a​ç ão. Re​za​va e pe​dia e su​pli​c a​va a Deus que o am​pa​-
ras​se, mas era como se Deus o ti​ves​se aban​do​na​do para sem​pre.
Como em to​das as ma​nhãs dos úl​ti​m os me​ses, le​van​tou-se, mur​m u​r ou um
Da Do​mi​ne au​to​m á​ti​c o e frio e an​dou até a sa​le​ta onde eram guar​da​dos os pa​r a​-
men​tos sa​c er​do​tais. Em ou​tros tem​pos, no mo​m en​to de ves​tir-se para a mis​sa,
sen​tia-se num es​ta​do de exal​ta​ç ão e be​a ​ti​tu​de como se pre​pa​r as​se o cor​po para
tes​te​m u​nhar um belo mi​la​gre, um ri​tu​a l sa​gra​do que, de al​gum modo, per​m i​ti​r ia
aos ho​m ens par​ti​lhar a gra​ç a di​vi​na. Quan​do co​lo​c a​va o amic​to de li​nho e a alva
que lhe caía até aos pés, pa​r e​c ia-lhe que as ves​tes apro​xi​m a​vam-no um pou​c o
mais de Deus e, de ple​no di​r ei​to, tor​na​vam-no seu mi​nis​tro en​tre os ho​m ens.
Isso, po​r ém, fora em ou​tros tem​pos; ul​ti​m a​m en​te não fa​zia se​não tro​c ar de uni​-
for​m e. Nada o emo​c i​o​na​va. Nem o san​to ma​ni​pu​lo que co​lo​c ou no bra​ç o es​-
quer​do, de​pois de bei​j ar ra​pi​da​m en​te a pe​que​na cruz bor​da​da. O co​r a​ç ão pe​sa​-
va-lhe como um far​do. Sen​tia frio, dor, medo, onde an​tes abri​ga​r a a ale​gria e o
con​f or​to da fé.
Tudo co​m e​ç a​r a em agos​to, nos pri​m ei​r os dias do mês. A dú​vi​da ins​ta​la​r a-se
aos pou​c os e, aos pou​c os, aca​ba​r a des​tru​in​do as mais pro​f un​das cren​ç as que da​-
vam âni​m o ao pa​dre Cro​nin.
Per​der a fé é uma tra​gé​dia para qual​quer sa​c er​do​te. No caso do pa​dre Cro​-
nin, po​r ém, era mais do que uma tra​gé​dia. Ele não con​se​guia se​quer ima​gi​nar o
que se​r ia sua vida sem a Igre​j a. Fi​lho de ca​tó​li​c os fer​vo​r o​sos, des​de me​ni​no
apren​de​r a a ide​a ​li​zar o fu​tu​r o como se hou​ves​se ape​nas um ca​m i​nho à fren​te:
ser pa​dre. Para isso es​tu​dou e lu​tou, não para agra​dar aos pais, e sim im​pe​li​do
por au​tên​ti​c a e pre​c o​c e vo​c a​ç ão re​li​gi​o​sa. Sen​ti​r a-a bro​tar ain​da na ida​de em
que seus co​le​gas de es​c o​la es​f or​ç a​vam-se para pa​r e​c er ma​te​r i​a ​lis​tas, ag​nós​ti​c os,
ci​e n​ti​f i​c is​tas, mo​der​nos.
E ago​r a, de re​pen​te, a fé aban​do​na​va-o. A mis​sa, que in​sis​tia em ce​le​brar to​-
das as ma​nhãs, era a úni​c a coi​sa que lhe res​ta​va, a úl​ti​m a li​ga​ç ão real com o
pas​sa​do, com o que sem​pre fora sua vida. Sa​bia, no en​tan​to, que não po​de​r ia fin​-
gir por mui​to tem​po. Não po​de​r ia men​tir in​de​f i​ni​da​m en​te para os afli​tos e de​ses​-
pe​r a​dos que pro​c u​r a​vam sua igre​j a em bus​c a de con​so​lo e alí​vio, pois ele pró​prio
já não acre​di​ta​va. A san​ta mis​sa dei​xa​r a de ser um ins​tan​te de co​m u​nhão com
Deus e trans​f or​m a​r a-se em gro​tes​c a co​m é​dia.
No mo​m en​to em que o pa​dre Cro​nin co​lo​c a​va a es​to​la so​bre os om​bros, um
me​ni​no en​trou cor​r en​do na sa​c ris​tia e acen​deu as lu​zes.
— Bom dia! — ex​c la​m ou.
— Bom dia, Kerry. Você vai bem?
Kerry Mc​De​vit era ain​da mais rui​vo e sar​den​to que o pa​dre Cro​nin, e ti​nha
olhos igual​m en​te mui​to ver​des.
— Tudo bem — dis​se ele. — Mas está um frio do cão!
— E mes​m o?! Frio... do quê?
— Frio ora, mui​to frio...
Em ou​tras cir​c uns​tân​c i​a s o pa​dre Cro​nin acha​r ia en​gra​ç a​da a ir​r e​ve​r ên​c ia
do me​ni​no. Na​que​la ma​nha, con​tu​do, o cão pa​r e​c ia es​tar mes​m o à es​prei​ta, e
Kerry fu​giu para a sa​c ris​tia, as​sus​ta​do com o olhar ful​m i​nan​te que re​c e​beu. So​zi​-
nho, o pa​dre Cro​nin ves​tiu a ca​su​la, pas​sou as ti​r as pe​las cos​tas e amar​r ou-as à
cin​tu​r a, com a dis​pli​c ên​c ia de um ope​r á​r io atan​do o aven​tal para co​m e​ç ar a tra​-
ba​lhar. Na sa​c ris​tia, Kerry apa​nhou o tu​r í​bu​lo.
Até agos​to, aque​les ges​tos eram san​tos para o pa​dre Cro​nin. Toda a sua vida,
cada hora dos seus dias era san​ti​f i​c a​da, por​que es​c o​lhe​r a de​di​c ar-se ao ser​vi​ç o
de Deus. E de​di​c a​r a-se com tal afin​c o que fora en​vi​a ​do a Roma para com​ple​tar
seus es​tu​dos te​o​ló​gi​c os. Apai​xo​nou-se pela Ci​da​de San​ta — pela ar​qui​te​tu​r a, pela
His​tó​r ia, pelo povo. An​tes de fa​zer os vo​tos de sa​c er​do​te je​su​í​ta, pas​sa​r a dois
anos no Va​ti​c a​no, tra​ba​lhan​do como as​sis​ten​te do mon​se​nhor Giu​sep​pe Or​bel​la,
con​se​lhei​r o do papa para as​sun​tos de dou​tri​na. O es​tá​gio deu-lhe o di​r ei​to de as​pi​-
rar a al​gum pos​to na ar​qui​di​o​c e​se de Chi​c a​go, jun​to ao car​de​a l, mas o pa​-
dre Cro​nin hu​m il​de​m en​te pe​diu que lhe per​m i​tis​sem ser o cura de al​gu​m a pa​r ó​-
quia pe​que​na. Foi as​sim que che​gou à Igre​j a de San​ta Ber​na​det​te, de​pois de vi​si​-
tar o bis​po San​te​f i​o​r e em San Fran​c is​c o e con​su​m ir al​guns dias de fé​r i​a s na vi​a ​-
gem de car​r o para Chi​c a​go. Era um sim​ples cura de pa​r ó​quia, mas vi​via fe​liz,
sem um ins​tan​te de ar​r e​pen​di​m en​to ou dú​vi​da.
Na​que​le mo​m en​to, po​r ém, ven​do Kerry pa​r a​m en​ta​do a sua fren​te, per​gun​-
ta​va-se, pela cen​té​si​m a vez, o que te​r ia acon​te​c i​do com ele. Por que sua fé o
aban​do​na​r a? Se​r ia como uma do​e n​ç a in​c u​r á​vel que aca​ba​r ia por matá-lo... ou
não pas​sa​r ia de um mal tran​si​tó​r io?
Como to​das as ma​nhãs, Kerry abriu a por​ta que dava para o al​tar e ca​m i​-
nhou al​guns pas​sos. De re​pen​te, per​c e​ben​do que o pa​dre Cro​nin não o se​guia, pa​-
rou e vi​r ou-se para trás, de olhos ar​r e​ga​la​dos.
O sa​c er​do​te va​c i​la​va. De lon​ge, à luz su​a ​ve do al​tar, a ima​gem do Cris​to cru​-
ci​f i​c a​do es​ta​va de olhos pos​tos nos fi​é is, mas pare-
cia nao vê-lo. Para ele, ago​r a, o al​tar era ape​nas um pal​c o, como mi​lha​r es
de ou​tros, à es​pe​r a dos ato​r es. Não era mais o lu​gar sa​gra​do ao qual, du​r an​te
anos, su​bi​r a com o co​r a​ç ão vi​bran​te de amor. Não po​dia ce​le​brar a mis​sa! Não
po​dia en​ga​nar aque​las pes​so​a s... Nao po​dia en​ga​nar a si pró​prio! Aqui​lo tudo era
uma gi​gan​tes​c a frau​de!
Kerry Mc​De​vit fran​ziu as so​bran​c e​lhas, mais pre​o​c u​pa​do que sur​pre​so.
Olhou para os ban​c os da igre​j a, vol​tou a olhar para o cura, sem en​ten​der o que se
pas​sa​va.
— Como pos​so ce​le​brar a mis​sa?! Eu já nao acre​di​to... — mur​m u​r ou o pa​-
dre Cro​nin, numa voz inau​dí​vel.
Era tar​de de​m ais. Com o cá​li​c e na mão es​quer​da, a di​r ei​ta pou​sa​da so​bre o
véu, se​guiu adi​a n​te, sen​tin​do so​bre si os olhos acu​sa​do​r es do Cris​to cru​c i​f i​c a​do.
Ha​via pou​c o mais que cem pes​so​a s na igre​j a. Era cedo, e os ros​tos dos fi​é is
pa​r e​c i​a m bri​lhar mais do que o nor​m al, qua​se inu​m a​nos, como se Deus, em sua
in​f i​ni​ta sa​be​do​r ia, ti​ves​se en​vi​a ​do uma le​gi​ã o de an​j os ca​pa​zes de de​nun​c i​a r o
pe​c a​do mas​c a​r a​do de fé e tes​te​m u​nhar con​tra a he​r e​sia e o sa​c ri​lé​gio.
A me​di​da que a mis​sa avan​ç a​va o de​ses​pe​r o do pa​dre Cro​nin cres​c ia. Quan​-
do pro​nun​c i​ou o In​troi​bo âd al​tâ​re Dei, foi como se a mi​sé​r ia de to​dos os pe​c a​do​-
res de​sa​bas​se so​bre seus om​bros. A al​tu​r a do Evan​ge​lho, ou​viu sua pró​pria voz,
fria e oca, re​pe​tin​do um dis​c ur​so que co​nhe​c ia de cor e que nao lhe di​zia
nada. Sen​tia os bra​ç os pe​sa​dos, cada vez mais pe​sa​dos. Os ros​tos dos fi​é is di​lu​í​-
am-se numa né​voa cada vez mais den​sa. O pa​dre Cro​nin sen​tia o olhar ater​r a​do
de Kerry e per​c e​bia o mo​vi​m en​to que cor​r ia pe​los ban​c os. A rou​pa gru​da​va-se a
suas cos​tas, o suor pin​ga​va-lhe da tes​ta so​bre a Bí​blia aber​ta a sua fren​te. A né​-
voa co​m e​ç ou a en​vol​ver tudo, a mas​sa di​f u​sa dos fi​é is, o olhar de Kerry, a cruz...
O pa​dre Cro​nin teve a sen​sa​ç ão de que es​ta​va cain​do, gi​r an​do, sen​do car​r e​ga​do,
sem sa​ber como, para o vér​ti​c e de um tur​bi​lhão onde só ha​via tre​vas e va​zio. E
en​tão che​gou o mo​m en​to da ele​va​ç ão da hós​tia.
— Men​ti​r a! Não pos​so fa​zer isso... Não sou sa​c er​do​te, não te​nho fé! Não
sou... nada\ Deus me es​que​c eu! En​tre​gou-me ao pe​c a​do, rou​bou mi​nha fé... Mal​-
di​to Deus! Mil ve​zes mal​di​to!
O pa​dre Cro​nin ou​viu-se ber​r ar de fú​r ia, de ódio. Um gri​to sel​va​gem, ina​c re​-
di​tá​vel. E viu-se... Viu a pró​pria mão, ar​r as​ta​da por uma for​ç a des​c o​nhe​c i​da e ir​-
re​sis​tí​vel, jo​gar lon​ge o cá​li​c e sa​gra​do. O vi​nho man​c hou a pa​r e​de do al​tar, res​-
pin​gou o man​to da ima​gem da Vir​gem Ma​r ia, e o cá​li​c e con​ti​nuou ro​lan​do
pelo al​tar até pa​r ar jun​to ao púl​pi​to, onde, ins​tan​tes an​tes, ele ha​via lido o Evan​-
ge​lho.
Kerry Mc​De​vit deu um pas​so atrás e ge​m eu bai​xi​nho, com medo do que via.
Os fi​é is le​van​ta​r am-se, to​dos, num só mo​vi​m en​to, mas nada pa​r e​c ia ca​paz de
de​ter a fú​r ia de Bren​dan Cro​nin. Com um rá​pi​do mo​vi​m en​to, ele es​ten​deu o bra​-
ço, apa​nhou a ban​de​j a das hós​ti​a s da co​m u​nhão e jo​gou-a no chão. Gri​tan​do de
de​ses​pe​r o, ar​r an​c ou a es​to​la e lan​ç ou-a lon​ge. En​tão vi​r ou-se e cor​r eu para a sa​-
cris​tia.
Em ins​tan​tes, tudo vol​tou ao nor​m al. O pa​dre Cro​nin pas​sou a mão pela tes​ta,
viu os pa​r a​m en​tos ar​r an​c a​dos e fe​c hou os olhos, com medo de adi​vi​nhar o que
po​de​r ia ter acon​te​c i​do.
Era o dia 1? de de​zem​bro.

7. LA​G U​NA BE​A​CH, CA​LI​FÓR​NIA

No pri​m ei​r o do​m in​go de de​zem​bro Dom Cor​vai​sis al​m o​ç a​va com Parker
Fai​ne no ter​r a​ç o do res​tau​r an​te Las Bri​sas, abri​ga​dos à som​bra de um guar​da-sol,
ven​do o mar bri​lhar ao lon​ge. Na​que​le ano o in​ver​no tei​m a​va em não che​gar. Ao
som dos gri​tos das gai​vo​tas, sen​tin​do no ros​to e nos ca​be​los a bri​sa do mar, as​pi​-
ran​do o per​f u​m e dos jas​m i​nei​r os flo​r i​dos que su​bia do jar​dim, Dom con​tou a
Parker to​dos os de​ta​lhes, até os mais em​ba​r a​ç o​sos, de sua ter​r í​vel ba​ta​lha con​tra
o so​nam​bu​lis​m o.
Parker Fai​ne era seu me​lhor ami​go, tal​vez o úni​c o a quem Dom po​dia con​tar
tudo, em​bo​r a, à pri​m ei​r a vis​ta, fos​sem dois ho​m ens
mui​to di​f e​r en​tes. Dom era alto e es​guio; Parker, bai​xo e gor​do. Dom fa​zia a
bar​ba di​a ​r i​a ​m en​te e cor​ta​va o ca​be​lo a cada três se​m a​nas; bar​bu​do e des​gre​nha​-
do, Parker mais pa​r e​c ia fru​to do cru​za​m en​to de um gla​di​a ​dor ro​m a​no com uma
in​te​lec​tu​a l beât​nik dos anos 50. Dom era qua​se abs​tê​m io, en​quan​to Parker tor​na​-
ra-se fa​m o​so pela sede de ál​c o​ol, pra​ti​c a​m en​te in​sa​c i​á ​vel, e pela ex​c ep​c i​o​nal
ca​pa​c i​da​de de be​ber e ja​m ais dar a im​pres​são de ter per​di​do o ju​í​zo. Dom gos​ta​-
va de vi​ver so​zi​nho e ti​nha pou​c os ami​gos; Parker con​se​guia tor​nar-se ín​ti​m o de
qual​quer pes​soa com quem to​m as​se um drin​que ou tro​c as​se meia dú​zia de pa​la​-
vras. Parker já ti​nha cin​qüen​ta anos, quin​ze mais que Dom; rico e fa​m o​so por
mais de um quar​to de sé​c u​lo, não en​ten​dia como al​guém po​dia sen​tir-se in​se​gu​r o
jus​ta​m en​te quan​do co​m e​ç a​va a ga​nhar di​nhei​r o e tor​na​va-se um as​tro do mun​do
li​te​r á​r io. Con​ve​ni​e n​te​m en​te ves​ti​do para um al​m o​ç o ao ar li​vre, Dom usa​va cal​-
ça de li​nho mar​r om-es​c u​r o e ca​m i​sa bege de man​gas cur​tas e co​la​r i​nho aber​to.
Parker tra​j a​va seu uni​f or​m e ha​bi​tu​a l: tê​nis azuis des​bo​ta​dos, cal​ç a qua​se bran​c a,
ve​lha e amar​r o​ta​da, e ca​m i​sa es​tam​pa​da, aber​ta no pei​to e sain​do do cós. Pa​r e​-
cia que cada um de​les se pre​pa​r a​r a para um tipo di​f e​r en​te de en​c on​tro e es​ta​-
vam sen​ta​dos jun​tos por mero aca​so.
Em​bo​r a gran​des, as di​f e​r en​ç as eram pou​c o im​por​tan​tes. Dom e Parker ti​-
nham enor​m es afi​ni​da​des em vá​r i​os as​pec​tos es​sen​c i​a is. Am​bos eram ar​tis​tas,
não por es​c o​lha ou ten​dên​c ia, mas por com​pul​são. Parker pin​ta​va com pin​c éis e
tin​tas, e Dom pin​ta​va com pa​la​vras. Am​bos eram óti​m os no que fa​zi​a m, sé​r i​os,
apli​c a​dos e mui​to exi​gen​tes. E am​bos pre​za​vam mui​to a ami​za​de que os unia.
Co​nhe​c i​a m-se ha​via seis anos, des​de que Parker che​ga​r a ao Ore-gon para fi​-
car ape​nas al​guns me​ses, en​quan​to pre​pa​r a​va uma sé​r ie de pai​sa​gens no es​ti​lo
in​c on​f un​dí​vel que ali​a ​va, à per​f ei​ç ão, o su​pra-re​a ​lis​m o da téc​ni​c a com o sur​r e​a ​-
lis​m o da ima​gi​na​ç ão. Pou​c o de​pois de che​gar, fora con​tra​ta​do para al​gu​m as
con​f e​r ên​c i​a s na Uni​ver​si​da​de de Por​tland, onde Dom tra​ba​lha​va como pro​f es​sor
do De​par​ta​m en​to de In​glês.
À mesa, Dom be​be​r i​c a​va sua cer​ve​j a pre​ta, e Parker lam​bu​za​va
os de​dos nos sal​ga​di​nhos de quei​j o, aten​to às pa​la​vras do Dom fa​la​va em voz
bai​xa — cui​da​do des​ne​c es​sá​r io, já que iu\ mcs,ls pró​xi​m as nin​guém pa​r e​c ia pre​-
o​c u​pa​do em ou​vir o que di/wm. Na​que​la ma​nha, pela quar​ta vez, acor​da​r a na
ga​r a​gem, poi n.ís da cal​dei​r a, tao apa​vo​r a​do como an​tes. E, a cada dia que pas​-
sa​va, a si​tu​a ​ç ão pa​r e​c ia-lhe mais de​ses​pe​r a​do​r a.
Quan​do aca​bou de fa​lar, ha​via to​m a​do ape​nas meia gar​r a​la dr cer​ve​j a, sem
sen​tir gos​to al​gum; a be​bi​da es​c u​r a e en​c or​pa​da des​c ia lhe pela gar​gan​ta como
se fos​se água — ou, pior ain​da, cola. Ibr ker já con​su​m i​r a três drin​ques du​plos e
pe​di​r a um quar​to ao gar​ç om, po​r ém con​ti​nu​a ​va in​tei​r o, como cos​tu​m a​va di​zer.
— Mas... Deus do céu! Por que não me con​tou isso an​tes? per​gun​tou, sé​r io.
— Há se​m a​nas?!
— Achei que nao era im​por​tan​te.
— Você é um idi​o​ta. Mas... que mer​da! — Parker ten​tou man​ter a voz bai​-
xa e ges​ti​c u​lou, ir​r i​ta​do.
O gar​ç om apro​xi​m ou-se, tra​zen​do o quar​to drin​que, e in​c li​nou-se para per​-
gun​tar se gos​ta​r i​a m de al​m o​ç ar.
— Cla​r o que não — re​tru​c ou o pin​tor ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a. — Do​m in​go é
dia de be​ber, não de co​m er. O al​m o​ç o nao pas​sa de um pre​tex​to para o uís​que, e
eu es​tou ape​nas co​m e​ç an​do. Para al​m o​ç ar, te​m os que pa​r ar de be​ber, e o que é
que va​m os fa​zer no res​to da tar​de? Se eu sair an​dan​do por aí, sem ter nada
para fa​zer, vou aca​bar dan​do tra​ba​lho à po​lí​c ia e atra​pa​lhan​do a ses​ta dos ci​da​-
dãos pa​c a​tos... Nao, nao, nada dis​so. Que​r o al​m o​ç ar lá pe​las três. E, para nao
per​der​m os tem​po, pre​pa​r e ou​tro drin​que e tra​ga mais uma por​ç ão de sal​ga​di​-
nhos, por fa​vor. Que​r o tam​bém mais mo​lho e pi​m en​ta e um pra​ti​nho com ce​bo​-
las. Apro​vei​te a vi​a ​gem e tra​ga ou​tra cer​ve​j a para o meu ami​go. Ele bem que
está pre​c i​san​do!
— Nao — Dom pro​tes​tou. — Ain​da nao aca​bei esta.
— Por isso mes​m o é que você está pre​c i​san​do de ou​tra, in​te​lec​tu​a l pu​r i​ta​no
e re​pri​m i​do. Está aí, todo con​f u​so, por​que in​sis​te em be​ber cer​ve​j a mor​na.
Fos​sem ou​tras as cir​c uns​tân​c i​a s. Dom em​bar​c a​r ia com pra​zer
na vi​a ​gem ani​m a​da, des​c on​tra​í​da e cheia de ale​gria que o ami​go lhe pro​pu​-
nha. Na​que​le do​m in​go, po​r ém, sen​tia-se an​gus​ti​a ​do de​m ais para rir.
O gar​ç om afas​tou-se, e uma nu​vem en​c o​briu o sol. Parker aco​m o​dou-se na
ca​dei​r a, res​pi​r ou fun​do e olhou para Dom:
— Tudo bem... Va​m os pen​sar jun​tos. Deve ha​ver al​gu​m a ex​pli​c a​ç ão ra​zo​-
á​vel para isso. Você já pen​sou em stressy já pen​sou em an​si​e ​da​de por cau​sa da
pu​bli​c a​ç ão do Cre​pús​c u​lo... E daí?
— No co​m e​ç o pen​sei que fos​se por cau​sa da an​si​e ​da​de, mas... acho que
não pode ser só isso. O caso é que as coi​sas fo​r am se com​pli​c an​do cada vez
mais. Por​r a... Eu sei que es​tou an​si​o​so, mas não tão an​si​o​so! E tam​bém nao es​tou
mor​r en​do de medo... Mi​nhas cri​ses de so​nam​bu​lis​m o são com​ple​ta​m en​te... lou​-
cas! De al-
‘ guns dias para cá te​nho pas​sa​do to​das as noi​tes an​dan​do. E o pro​ble​m a não
é só esse. Há mi​lha​r es de so​nâm​bu​los pelo mun​do... mas du​vi​do que um de​les
en​tre num tran​se tão pro​f un​do como eu, ou faça as coi​sas que eu faço. Já con​-
tei... eu es​ta​va ten​tan​do pre​gar as ve​ne​zi​a ​nas! Pre​gar... — Dom fez um ges​to,
mar​te​lan​do o ar. — Com mar​te​lo e tudo! Você não vai con​se​guir me con​ven​c er
de que um su​j ei​to en​tra em tran​se, se mune de pre​gos e mar​te​lo e sai pre​gan​do
as ja​ne​las da casa só por​que es​pe​r a, an​si​o​so, a opi​ni​ã o de uns crí​ti​c os idi​o​tas so​-
bre seu li​vro!
— Pode ha​ver al​gum blo​queio in​c ons​c i​e n​te. Quem sabe você está mais an​-
si​o​so do que ima​gi​na... A pu​bli​c a​ç ão do Cre​pús​c u​lo tal​vez es​te​j a to​c an​do al​gum
pon​to mui​to sen​sí​vel, al​gum trau​m a.
— Bo​ba​gem. Isso não faz sen​ti​do. Na ver​da​de, quan​do co​m e​c ei a tra​ba​lhar
no se​gun​do li​vro, o Cre​pús​c u​lo vi​r ou pas​sa​do. Já nem pen​so nele. Não, Parker...
— Dom ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, sé​r io. — Você tam​bém não pode es​tar ima​gi​nan​do
que um su​j ei​to faça as lou​c u​r as que te​nho fei​to ape​nas por​que está an​si​o​so por
cau​sa de uma bes​tei​r a...
— Tem ra​zão... Não acre​di​to nes​sas coi​sas.
— Eu en​tro nos ar​m á​r i​os para me es​c on​der. Eu sei, sin​to... Quan​do acor​do
ain​da es​tou tre​m en​do de medo, su​a n​do frio, com a ní​ti​da sen​sa​ç ão de que al​gu​-
ma coi​sa me per​se​gue... al​gu​m a coi-
sa que quer me pe​gar... e que tal​vez me mate se me en​c on​trar. As ve​zes
acor​do com von​ta​de de gri​tar, a gar​gan​ta do​e n​do, e o gri​to nao sai. On​tem, afi​-
nal, con​se​gui ber​r ar... “Fi​que lon​ge de mim! Fi​que aí, nao se apro​xi​m e!” E hoje
foi a faca...
— Que faca? Você nao me fa​lou nis​so.
Dom re​c os​tou-se na ca​dei​r a, os olhos fi​xos no copo de cer​ve​j a.
— Acor​dei na ga​r a​gem, atrás da cal​dei​r a. E ti​nha uma faca na mão... a
faca de car​ne da co​zi​nha... Acho que a pe​guei e le​vei co​m i​go.
— Para se de​f en​der? Con​tra quem?
— Cla​r o... para me de​f en​der... da coi​sa que me per​se​gue.
— Mas que coi​sa ê essa?!
Dom sa​c u​diu os om​bros, bai​xou a ca​be​ç a e ape​nas mur​m u​r ou:
— Sei lá...
— Não es​tou gos​tan​do nada dis​so. Você po​dia ter-se ma​c hu​c a​do.
— Nao é isso que me pre​o​c u​pa.
— E o que é, en​tão?
An​tes de res​pon​der, Dom cor​r eu os olhos em vol​ta. Tudo pa​r e​c ia bem, os
ou​tros cli​e n​tes con​c en​tra​vam-se no al​m o​ç o e nos drin​ques, alhei​os à con​ver​sa
em re​dor.
— Va​m os, diga! — Parker in​sis​tiu. — O que é que o pre​o​c u​pa?
— Te​nho medo de fe​r ir al​guém.
Parker ar​r e​ga​lou os olhos.
— Não é pos​sí​vel! Está que​r en​do di​zer que se​r ia ca​paz de pe​gar uma faca
de co​zi​nha e sair por aí... ma​tan​do gen​te?! Você está doi​do! — Ba​lan​ç ou a ca​be​-
ça, sor​r iu, le​vou o copo aos lá​bi​os, be​beu um gole e dei​xou que o lí​qui​do es​c or​-
res​se, su​a ​ve, pela lín​gua e pela gar​gan​ta. — Não... Você está de​li​r an​do! Acho
que co​m e​ç ou a con​f un​dir vida real e fic​ç ão. Es​que​ç a! Você não faz o gê​ne​r o ho​-
mi​c i​da com​pul​si​vo.
— Há al​guns me​ses eu tam​bém não fa​zia o gê​ne​r o de so​nâm​bu​lo...
— Mas, que mer​da! Você nun​c a foi lou​c o, não está lou​c o, nem per​to de
en​lou​que​c er. Só está pen​san​do que en​lou​que​c eu... e isto é óti​m o si​nal, por​que os
lou​c os de ver​da​de têm cer​te​za de que são nor​m ais.
— Acho que vou pro​c u​r ar um psi​qui​a ​tra. Já fui ao mé​di​c o, fiz al​guns exa​-
mes...
— Mé​di​c o, sim, mas... psi​qui​a ​tra... nem pen​sar. Se​r ia per​da de tem​po e de
di​nhei​r o. Eu lhe ga​r an​to que você nao é neu​r ó​ti​c o, nem psi​c ó​ti​c o. Dou mi​nha pa​-
la​vra!
Com um sor​r i​so no can​to dos lá​bi​os, o pin​tor afas​tou o copo va​zio, apa​nhou o
ou​tro drin​que que o gar​ç om aca​ba​va de dei​xar so​bre a mesa e, por al​guns se​gun​-
dos, con​c en​trou-se em mon​tar um pe​que​no san​du​í​c he de ba​ta​ta fri​ta com mo​lho
de pi​m en​ta, mai​o​ne​se e ce​bo​la. Co​lo​c ou-o na boca e fe​c hou os olhos para me​-
lhor sa​bo​r e​a r o pro​dí​gio que cons​tru​í​r a.
— Tal​vez haja ou​tra ex​li​c a​ç ao — dis​se, ain​da sor​r in​do, de​pois dç en​go​lir.
— Tal​vez você ain​da nao es​te​j a bem adap​ta​do às gran​des mu​dan​ç as que acon​te​-
ce​r am em sua vida.
— Que mu​dan​ç as? — Dom fran​ziu as so​bran​c e​lhas.
— Você sabe per​f ei​ta​m en​te a que mu​dan​ç as me re​f i​r o. Lem​bra-se de
quan​do nos co​nhe​c e​m os, há seis anos? Você pa​r e​c ia uma les​m a... bran​c o, mole...
— Uma... les​m a?!
— Uma mer​da de les​m a. E você sabe que é ver​da​de. Ti​nha ta​len​to, mas
vi​via como uma les​m i​nha... — Parker fez uma ca​r e​ta e jun​tou os de​dos so​bre a
mesa, ten​tan​do imi​tar o mo​vi​m en​to da les​m a. — De​va​gar, mole... Sabe por quê?
Por​que mor​r ia de medo de mos​trar seu ta​len​to ao mun​do... mor​r ia de medo de
lu​tar pelo su​c es​so... mor​r ia de medo de ten​tar... e nào con​se​guir. Mor​r ia de medo
da vida! Nao que​r ia que olhas​sem para você, que o vis​sem, que per​c e​bes​sem sua
exis​tên​c ia. Você se ves​tia como um joao-nin​guém e fa​la​va tao bai​xo que as pes​-
so​a s mal o es​c u​ta​vam. Re​sol​veu dar au​las de li​te​r a​tu​r a por​que a uni​ver​si​da​de é
um mun​do à par​te, apa​r en​te​m en​te mais ci​vi​li​za​do, me​nos com​pe​ti​ti​vo. A ver​da​-
de é que você vi​via como um co​e ​lho as​sus​ta​do, es​c on​di​do na toca.
— Ah, sim, cla​r o... — Dom for​ç ou uma ri​sa​da. — E por que você re​sol​veu
se apro​xi​m ar de mim?
— Por​que você nun​c a me en​ga​nou. En​ga​na​va bem os dou​to-
res otá​r i​os que tra​ba​lha​vam com você, mas eu fi​quei cu​r i​o​so por​que des​c on​-
fi​e i que ha​via al​gu​m a coi​sa atrás de sua más​c a​r a de les​m a. Eu vi sua ver​da​dei​r a
face, ami​go... E sem​pre as​sim... vejo coi​sas que os ou​tros nao veem, por​que sou
ar​tis​ta. Nós, ar​tis​tas, so​m os di​f e​r en​tes do res​to da hu​m a​ni​da​de jus​ta​m en​te por​que
ve​m os mais do que os ou​tros. Onde os ou​tros veem só uma les​m i​nha, nós ve​m os
um ho​m em.
— Mas eu tam​bém sou ar​tis​ta.
— Ago​r a. Mas nao era quan​do nos co​nhe​c e​m os. Lem​bra que de​m o​r ou três
me​ses para cri​a r co​r a​gem de me di​zer que “es​c re​via umas coi​si​nhas”?
, — Era isso mes​m o que eu fa​zia na​que​la épo​c a.
— Você ti​nha ga​ve​tas chei​a s de con​tos! Mais de cem con​tos con​c lu​í​dos! E
ain​da nao ti​nha cri​a ​do co​r a​gem para man​dar um úni​c o de​les a al​gu​m a edi​to​r a.
Sabe por quê, nao sabe? Por​que ti​nha medo de ser re​j ei​ta​do, cla​r o, mas não era
só isso. Você tam​bém mor​r ia de medo de ser acei​to. Mor​r ia de medo de que
uma gran​de edi​to​r a lhe es​c re​ves​se uma car​ta di​zen​do que você era um gê​nio...
— Riu alto. — Lem​bra o quan​to a gen​te con​ver​sou an​tes de você re​sol​ver man​-
dar dois ou três con​tos para a edi​to​r a?
— Nao.
— Pois eu lem​bro. Fo​r am seis me​ses de con​ver​sa! Eu já es​ta​va qua​se de​-
sis​tin​do de pe​dir, pelo amor de Deus, que você man​das​se os con​tos, quan​do, de
re​pen​te, você se ren​deu e... zás! O co​e ​lho cri​ou co​r a​gem para dar uma es​pi​a ​di​-
nha no mun​do.
Cada vez mais en​tu​si​a s​m a​do, Parker en​f i​ou na boca uma co​lhe​r a​da de mo​-
lho de pi​m en​ta e mai​o​ne​se, en​go​liu a me​ta​de do drin​que e con​ti​nuou;
— Mas foi só uma es​pi​a ​di​nha, por​que, quan​do os con​tos co​m e​ç a​r am a ser
pu​bli​c a​dos, você se as​sus​tou ou​tra vez e re​sol​veu pa​r ar de es​c re​ver. Eu pre​c i​sa​va
ir lá vi​si​tá-lo to​dos os dias para fis​c a​li​zar... para obri​gá-lo a con​ti​nu​a r tra​ba​lhan​do.
Quan​do saí do Ore​gon e você fi​c ou so​zi​nho, tra​tou logo de pa​r ar de es​c re​ver... e
cor​r eu de vol​ta para a toca. Foi a res​sur​r ei​ç ão do co​e ​lho as​sus​ta​do.
Dom sor​r iu com o can​to dos lá​bi​os, mas não pro​tes​tou. Era a pura ver​da​de.
Quan​do Parker vol​ta​r a para La​gu​na Be​a ​c h, onde vi​via, Dom pas​sa​r a a re​c e​ber
car​tas e car​tas dele, sem​pre no mes​m o tom, es​ti​m u​lan​do-o a es​c re​ver. Na épo​c a,
pre​c i​sa​va de in​c en​ti​vo mai​or do que sim​ples car​tas, que sem​pre po​di​a m ser dei​-
xa​das de lado. Es​ta​va con​ven​c i​do de que não era um bom es​c ri​tor, em​bo​r a al​gu​-
mas edi​to​r as co​m e​ç as​sem a se in​te​r es​sar por seu tra​ba​lho, e logo pa​r ou de ofe​r e​-
cer-lhes con​tos. Em pou​c o tem​po vol​tou para a toca e es​c on​deu-se como um au​-
tên​ti​c o co​e ​lho as​sus​ta​do. Nao pa​r ou de es​c re​ver, mas os con​tos ja​zi​a m na úl​ti​m a
ga​ve​ta da mesa de tra​ba​lho, como an​tes.
^ Numa de suas car​tas, Parker su​ge​r i​r a-lhe que es​c re​ves​se um ro​m an​c e.
Idéia es​tú​pi​da... Dom acha​va-se in​c a​paz, des​pro​vi​do de ta​len​to e dis​c i​pli​na para
tan​to. Um ro​m an​c e era mui​to mais do que um con​to. Mai​or, mais di​f í​c il, mais
com​ple​xo... Nun​c a na vida con​se​gui​r ía es​c re​ver um ro​m an​c e! No​va​m en​te Dom
bai​xa​r a a ca​be​ç a, cur​va​r a os om​bros, vol​ta​r a a fa​lar bai​xo e a an​dar de​va​gar,
pe​din​do a Deus que a hu​m a​ni​da​de o es​que​c es​se para sem​pre.
— Há dois ve​r ões tudo mu​dou — Parker res​pi​r ou fun​do. — De re​pen​te
você de​sis​tiu de dar au​las, cri​ou co​r a​gem e as​su​m iu seu des​ti​no. Re​sol​veu ser es​-
cri​tor. Do dia para a noi​te! Nun​c a con​ver​sa​m os mui​to so​bre isso. O que foi que
hou​ve?
Do​m i​nick fran​ziu as so​bran​c e​lhas, pen​sou um pou​c o e des​c o​briu que ele pró​-
prio tam​bém ja​m ais pen​sa​r a so​bre o as​sun​to.
— Nao sei. Nao te​nho a mí​ni​m a idéia — res​pon​deu.
Na uni​ver​si​da​de, che​ga​r a a épo​c a de can​di​da​tar-se à efe​ti​va​ç ão como pro​-
fes​sor. De re​pen​te, mas sem sur​pre​sa, Dom per​c e​be​r a que a di​r e​ç ão não es​ta​va
in​te​r es​sa​da em man​tê-lo no cor​po do​c en​te, em​bo​r a nao ti​ves​se ne​nhum mo​ti​vo
para afas​tá-lo. Na ver​da​de, ele se es​f or​ç a​r a tan​to para pas​sar des​per​c e​bi​do que
os di​r e​to​r es sim​ples​m en​te aca​ba​r am por es​que​c ê-lo, por dei​xá-lo de lado, como
um do​c u​m en​to de ar​qui​vo mor​to.
Quan​to aos co​le​gas, an​tes de qual​quer ou​tra coi​sa per​gun​ta​vam-se se ele
que​r ia ser efe​ti​va​do; de​pois, se es​ta​va mes​m o in​te​r es​sa​do na vida aca​dê​m i​c a e,
por fim, se me​r e​c ia a efe​ti​va​ç ão. Dom per​c e​be​r a logo que, se fos​se dis​pen​sa​do
da Uni​ver​si​da​de de Por​tland, ja​m ais con​se​gui​r ía em​pre​go em ou​tra es​c o​la, e as​-
sim, de​c i​di​r a par​tir an​tes que o de​m i​tis​sem. Num úni​c o mo​m en​to de co​r a​gem
em anos de re​c o​lhi​m en​to hu​m il​de e as​sus​ta​do, en​vi​a ​r a cur​r í​c u​los a vá​r i​a s fa​c ul​-
da​des e aca​ba​r a con​vi​da​do para uma en​tre​vis​ta no Moun​tain​vi​e w Col​le​ge, em
Utah. A en​tre​vis​ta cus​ta​r a-lhe mui​to es​f or​ç o, mas os di​r e​to​r es da es​c o​la pa​r e​c e​-
ram bem im​pres​si​o​na​dos pela ex​ten​sa lis​ta de con​tos pu​bli​c a​dos que Dom lhes
apre​sen​ta​r a. De​pois de al​guns mo​m en​tos de con​ver​sa, con​vi​da​r am-no para as​su​-
mir a cá​te​dra de Re​da​ç ão e Lín​gua In​gle​sa, como pro​f es​sor efe​ti​vo — pro​pos​ta
que Dom acei​tou com alí​vio.
— Saí de Por​tland em ju​nho — dis​se, pen​sa​ti​vo, ser​vin​do-se de ‘ ou​tro gole
de cer​ve​j a. — Ti​nha meu trai​ler pron​to, car​r e​ga​do de
li​vros e rou​pas. Par​ti sa​tis​f ei​to, não me sen​tia der​r o​ta​do... Nao foi uma sa​í​da
for​ç a​da, como se ti​ves​sem me des​pe​di​do. Para mim, foi como se... eu qui​ses​se
re​c o​m e​ç ar a vida. Eu que​r ia mo​r ar em Moun​tain​vi​e w. Para di​zer a ver​da​de, o
mo​m en​to em que me vi na es​tra​da foi um dos mais fe​li​zes de mi​nha vida.
O ou​tro ba​lan​ç ou a ca​be​ç a e con​c or​dou, irô​ni​c o:
— Cla​r o que você de​via es​tar fe​liz... Afi​nal, tro​c ou uma gran​de uni​ver​si​da​-
de por uma es​c o​li​nha de al​deia, com pou​c os alu​nos, onde seu medo de vi​ver pas​-
sa​r ia des​per​c e​bi​do. Ou en​tão, me​lhor ain​da, se​r ia vis​to como ma​nia de gê​nio
tem​pe​r a​m en​tal.
— Uma per​f ei​ta toca de co​e ​lho...
— Cla​r o... E por​que você de​sis​tiu das au​las an​tes mes​m o de as​su​m ir?
— Já lhe co​m ei. Quan​do che​guei à ci​da​de, na se​gun​da se​m a​na de ju​lho,
des​c o​bri que nao su​por​ta​r ia re​c o​m e​ç ar tudo ou​tra vez, como em Por​tland. Es​ta​va
far​to de vi​ver como um co​e ​lho as​sus​ta​do.
— Sim, isso é fá​c il de en​ten​der. Mas... Por quê?
— Não era mui​to gra​ti​f i​c an​te.
— Nun​c a foi gra​ti​f i​c an​te. — Parker abriu os bra​ç os. — O que eu que​r o sa​-
ber é por que, de re​pen​te, você se sen​tiu “far​to de vi​ver como um co​e ​lho as​sus​ta​-
do”.
— Nao sei.
— Mas você pre​c i​sa sa​ber! Deve ter pen​sa​do mui​to nis​so. Dom sus​pi​r ou,
os olhos dis​tan​tes, acom​pa​nhan​do o mo​vi​m en​to de um ve​lei​r o que des​li​za​va so​-
bre as on​das em di​r e​ç ão ao ho​r i​zon​te.
— Pois é... não pen​sei... Ago​r a per​c e​bo que sim​ples​m en​te não pen​sei... Es​-
tra​nho, não? Sou sem​pre tão cui​da​do​so nas de​c isões que tomo... Ana​li​so tan​to
cada ges​to, cada pas​so... E fiz tudo isso sem pen​sar mui​to.
— Aí está! — O ou​tro ex​c la​m ou. — Eu sa​bia que ha​via al​gu​m a coi​sa por
aí. Essa sú​bi​ta mu​dan​ç a de com​por​ta​m en​to tem a ver com os pro​ble​m as que
você está en​f ren​tan​do ago​ra. Va​m os con​ti​nu​a r. Você che​gou a Moun​tain​vi​e w e
dis​se aos ca​r as que não que​r ia o em​pre​go...
— Dis​se... E eles não gos​ta​r am de ou​vir.
— E de​pois você alu​gou um apar​ta​m en​to na ci​da​de.
— Um apar​ta​m en​to bem pe​que​no, quar​to e sala, mal dava para an​dar. Mas
de lá eu via as mon​ta​nhas. Era lin​do.
— De​c i​diu vi​ver das eco​no​m i​a s e es​c re​ver o ro​m an​c e.
— Não era mui​to di​nhei​r o, mas eu es​ta​va ha​bi​tu​a ​do a gas​tar pou​c o.
— Foi um im​pul​so re​pen​ti​no. Um tre​m en​do ris​c o. Você não era ho​m em de
cor​r er ris​c os. — Parker in​sis​tiu. — Por que agiu as​sim? O que o fez mu​dar tan​to?
— Acho que a idéia de mu​dar de vida já es​ta​va em mi​nha ca​be​ç a des​de
al​gum tem​po. Quan​do che​guei a Moun​tain​vi​e w, eu me sen​tia tão pro​f un​da​m en​te
in​sa​tis​f ei​to que pre​c i​sa​va to​m ar uma ati​tu​de.
O pin​tor res​pi​r ou fun​do, ba​lan​ç ou a ca​be​ç a e de​c la​r ou:
— Não, meu ve​lho... Deve ha​ver ou​tro mo​ti​vo. Va​m os re​c a​pi-tu​lar. Con​-
for​m e suas pró​pri​a s pa​la​vras, você es​ta​va fe​liz como um par​dal na areia quan​do
saiu de Por​tland a bor​do do trai​ler. Ti​nha con​se​gui​do um em​pre​go, bom sa​lá​r io e
efe​ti​va​ç ão numa es​c o​li​nha de bair​r o onde po​de​r ia se es​c on​der à von​ta​de, até en​-
cher o saco. Tudo que pre​c i​sa​va fa​zer era se aco​m o​dar por lá e de​sa​pa​r e​c er do
mun​do dos vi​vos. Mas, quan​do che​gou
a Moun​tain​vi​e w, você já era ou​tro ho​m em... es​ta​va de​c i​di​do a jo​gar tudo
para o alto, alu​gar um cu​bí​c u​lo, ar​r is​c ar-se a mor​r er de fome e frio... em nome
da arte. — Sa​c u​diu a ca​be​ç a, sem se con​ven​c er. — Que di​a ​bo acon​te​c eu com
você du​r an​te essa vi​a ​gem? Deve ter sido um ter​r e​m o​to... um aba​lo sís​m i​c o, al​gu​-
ma coi​sa in​c rí​vel, que o fez cri​a r co​r a​gem para sair da toca de co​e ​lho, fe​c har a
por​ta e jo​gar fora a cha​ve.
— Não acon​te​c eu nada. Foi uma vi​a ​gem lon​ga e cha​ta.
— Não para sua ca​be​ç a. Você vi​a ​j ou lé​guas com a ca​be​ç a.
Er​guen​do os om​bros, Dom li​m i​tou-se a di​zer:
— Tan​to quan​to pos​so lem​brar, eu es​ta​va re​la​xa​do, cur​tin​do o pas​seio, a pai​-
sa​gem... tudo na san​ta paz...
— Gar​ç om! — Parker gri​tou. — Mais um drin​que e uma cer​ve​j a.
— Não, não... — Dom co​m e​ç ou. — Eu...
—Eu sei que você ain​da não aca​bou — in​ter​r om​peu-o —, mas vou obri​gá-lo
a ter​m i​nar logo com essa dro​ga mor​na. Você tem que es​va​zi​a r mais uma gar​r a​f a
e co​m e​ç ar a re​la​xar. Eu li​qui​do o es​to​que de uís​que da ci​da​de, mas des​c u​bro o
que exis​te por trás des​sas cri​ses de so​nam​bu​lis​m o. Te​nho cer​te​za de que há al​gu​-
ma re​la​ç ão en​tre essa re​vo​lu​ç ão que hou​ve em sua vida quan​do dei​xou Por​tland
e o que está acon​te​c en​do ago​r a. Quer sa​ber por que es​tou tão cer​to dis​so? Por​que
nin​guém pas​sa por duas cri​ses de per​so​na​li​da​de, em dois anos, sem que exis​ta al​-
gu​m a re​la​ç ão en​tre elas. Pre​c i​sa​m os des​c o​brir o que há de co​m um en​tre as
duas.
Dom fez uma ca​r e​ta e sus​pi​r ou:
— Não es​tou pas​san​do por ne​nhu​m a cri​se de per​so​na​li​da​de.
— Não mes​m o? — Parker de​bru​ç ou-se so​bre a mesa e, com olhos mui​to
sé​r i​os e bri​lhan​tes, fi​tou de per​to o ros​to do ami​go. — Tem cer​te​za de que não
está em cri​se?
— Oh, Deus... Você tem ra​zão. E... é bem pos​sí​vel... e que cri​se!
A tar​de já ia avan​ç a​da quan​do, afi​nal, sa​í​r am do res​tau​r an​te
Las Bri​sas, ain​da sem ter en​c on​tra​do res​pos​ta. A noi​te, Dom pre​pa​r ou-se
para dor​m ir com a sen​sa​ç ão de que par​tia para o ca​da​f al​so, com medo do que o
es​pe​r a​va nas ho​r as se​guin​tes, an​tes do nas​c er do sol.
Pela ma​nha, foi ar​r an​c a​do do sono, aos ber​r os. Ha​via al​guém, al​gu​m a coi​sa
fria, pe​ga​j o​sa, vis​guen​ta... uma coi​sa viva... agar​r a​da a ele. Lu​tou como um de​-
ses​pe​r a​do, cego de hor​r or, sal​tou, deu pon​ta​pés para con​se​guir li​vrar-se, e es​c a​-
pou, an​dan​do de qua​tro pelo es​c u​r o até ba​ter a ca​be​ç a na pa​r e​de.
A es​c u​r i​dão pa​r e​c ia po​vo​a ​da de ru​í​dos que ele não con​se​guia iden​ti​f i​c ar. Os
sons vi​nham do chão, das pa​r e​des, de to​dos os la​dos. Tudo pa​r e​c ia vi​brar. Dom
con​ti​nuou ta​te​a n​do até en​c on​trar um pon​to onde duas pa​r e​des se uni​a m e sen​tou-
se ali, as cos​tas con​tra a su​per​f í​c ie ge​la​da, à es​pe​r a. A coi​sa es​ta​va cada vez
mais pró​xi​m a... ia che​gar... a qual​quer mo​m en​to po​de​r ia tocá-lo, en​vol​vê-lo em
seus bra​ç os de vis​go.
— O que é isso que está aqui co​m i​go? — mur​m u​r ou.
O ba​r u​lho au​m en​ta​va sem​pre: gri​tos, mar​te​la​das, pas​sos. O medo dis​tor​c en​-
do as sen​sa​ç ões, a adre​na​li​na des​per​tan​do os sen​ti​dos, a pele ar​r e​pi​a n​do-se de
hor​r or, Dom sen​tiu que ha​via per​di​do a guer​r a. A coi​sa es​ta​va ali, con​f un​di​da
com a es​c u​r i​dão, a dois pas​sos dele. Ha​via lu​ta​do en​quan​to pu​de​r a, es​c on​de​r a-se
nos ar​m á​r i​os da casa e na ga​r a​gem, ten​ta​r a pre​gar as ja​ne​las, ar​m a​r a-se de
faca... mas ago​r a es​ta​va per​di​do. Não ha​via para onde fu​gir, nem onde es​c on​-
der-se. Era o fim.
De al​gum lu​gar che​gou-lhe um som des​c o​nhe​c i​do. Seu nome... Al​guém o
cha​m a​va!
— Dom... Dom, res​pon​da!
Per​c e​beu que es​ta​va ou​vin​do aque​le som ha​via vá​r i​os mi​nu​tos, tal​vez ho​r as.
— Do​m i​nick, res​pon​da!
A por​ta! Al​guém ten​ta​va ar​r om​bar a por​ta, mar​te​lan​do fu​r i​o​sa​m en​te a fe​-
cha​du​r a.
Por fim, Dom des​per​tou. Es​ta​va so​zi​nho. A coi​sa vol​ta​va, afi​nal, para as tre​-
vas da noi​te, para o fun​do dos pe​sa​de​los; não exis​tia, nao era real. Do ou​tro lado
da por​ta es​ta​va Parker Fai​ne, seu ami​go, cha​m an​do-o. De re​pen​te, foi como se o
pe​sa​de​lo re​c o​m e​ç as​se. As pa​r e​des es​tre​m e​c e​r am, a por​ta es​c an​c a​r ou-se a sua
fren​te, e um fei​xe de luz bri​lhan​te ce​gou-o. Quan​do con​se​guiu abrir
os olhos no​va​m en​te, pro​te​gen​do-os com a mão, viu a ca​be​ç a de Parker,
como a de um gi​gan​te, de​li​ne​a ​da con​tra o re​tân​gu​lo ama​r e​la​do.
— Pelo amor de Deus! Você está bem?
Di​a n​te da por​ta ha​via uma ver​da​dei​r a bar​r i​c a​da: um ar​m á​r io, duas me​si​-
nhas-de-ca​be​c ei​r a, a pen​te​a ​dei​r a, e, por cima de tudo, a pol​tro​na de lei​tu​r a. Du​-
ran​te o sono Dom pre​pa​r a​r a-se para re​sis​tir a uma in​va​são; tran​c a​r a a por​ta a
cha​ve, e em​pi​lha​r a di​a n​te dela to​dos os mó​veis do quar​to. Parker afas​tou a bar​-
rei​r a e en​trou.
— Você gri​ta​va tan​to que eu o ouvi lá da rua, quan​do che​guei
— dis​se. — O que hou​ve?
— Um pe​sa​de​lo. Não me lem​bro de nada. — O ou​tro con​ti-. nu​a ​va en​c o​-
lhi​do no can​to, exaus​to, tre​m en​do, sem for​ç as para se
le​van​tar. — Fran​ziu as so​bran​c e​lhas. — O que é que você está fa​zen​do aqui?
— Não se lem​bra? — per​gun​tou Parker, a voz bai​xa e ten​sa.
— Você me te​le​f o​nou há me​nos de dez mi​nu​tos. Gri​ta​va mui​to, pe​dia so​-
cor​r o. Dis​se que eles es​ta​vam che​gan​do e iam pegá-lo.
— Oh, Deus... — Dom ge​m eu, o co​r a​ç ão aos sal​tos, o ros​to ru​bro de ver​-
go​nha.
— Você deve ter te​le​f o​na​do sem sa​ber... Pen​sei em cha​m ar a po​lí​c ia, mas
aca​bei re​sol​ven​do vir ver o que era. Ima​gi​nei que, se fos​se ou​tra cri​se de so​nam​-
bu​lis​m o, você não gos​ta​r ia de acor​dar com a casa cheia de “ti​r as”.
Dom abra​ç ou os jo​e ​lhos e es​c on​deu o ros​to. — O que está acon​te​c en​do co​-
mi​go? — mur​m u​r ou, afli​to. — Es​tou com​ple​ta​m en​te des​c on​tro​la​do... Não sei
mais o que faço, o que digo... Há al​gu​m a coi​sa me ro​e n​do por den​tro!
— Che​ga. — Parker apro​xi​m ou-se. — Nem mais uma pa​la​vra so​bre isso.
Lu​tan​do con​tra as lá​gri​m as que lhe su​bi​a m pela gar​gan​ta, Dom fe​c hou os
olhos. Sen​tia-se fra​c o e in​de​f e​so como uma cri​a n​ç a.
— Que ho​r as são? — per​gun​tou.
— Pas​sa um pou​c o das qua​tro. Mas ain​da está es​c u​r o. — Parker foi até a
ja​ne​la, afas​tou as cor​ti​nas e olhou para fora. O quar​to es​ta​va pra​ti​c a​m en​te des​-
mon​ta​do. Vol​ta​va para jun​to do ami​go quan​do de re​pen​te pa​r ou, os olhos mui​to
aber​tos, fi​xos na cama. — Essa brin​c a​dei​r a está co​m e​ç an​do a fi​c ar pe​r i​go​sa —
dis​se, sem se mo​ver.
O ou​tro le​van​tou-se de​va​gar até po​der ver o que ha​via so​bre a cama. Era um
ver​da​dei​r o ar​se​nal: ali es​ta​vam a pis​to​la ca​li​bre 22, que du​r an​te me​ses fi​c a​r a es​-
que​c i​da numa das ga​ve​tas da sala; a faca de co​zi​nha, a mes​m a que ele le​va​r a
para a ga​r a​gem; o cu​te​lo, ra​r a​m en​te usa​do; um mar​te​lo; o fer​r o pon​ti​a ​gu​do que
de​ve​r ia fi​c ar jun​to à la​r ei​r a mas que, ha​via tem​pos, es​ta​va guar​da​do na ga​r a​-
gem.
— Es​ta​va es​pe​r an​do o exér​c i​to rus​so? — per​gun​tou Parker, mui​to sé​r io. —
Uma in​va​são de ex​tra​ter​r es​tres? O que o as​sus​ta tan​to?
— Não sei. Meus pe​sa​de​los.
— O que é que você vê nes​ses pe​sa​de​los?
— Não sei.
— Não se lem​bra de nada?
— Não! Não! Não me lem​bro de nada, não sei de nada! — Dom gri​tou, mas
logo, como an​tes, en​c o​lheu-se no​va​m en​te, bai​xou a ca​be​ç a, cru​zou os bra​ç os so​-
bre o pei​to.
Parker apro​xi​m ou-se no​va​m en​te, co​lo​c ou a mão em seu om​bro e ten​tou sor​-
rir:
— Tra​te de se acal​m ar, ami​go. Vá to​m ar um ba​nho, vis​ta-se. Vou cui​dar
do café. De​pois, quan​do cla​r e​a r, va​m os fa​zer ou​tra vi​si​ta a esse seu mé​di​c o.
Acho que está na hora de pe​dir​m os que ele dê mais uma olha​da em você.
Sem co​r a​gem de fa​lar, Do​m i​nick con​c or​dou com a ca​be​ç a, vi​r ou-se e foi
para o ba​nhei​r o.
Era o dia 2 de de​zem​bro.

DOIS___________

2 - 16 de de​zem​bro

1. BOS​TON, MAS​SA​CHU​SETTS
Vi​o​la Flet​c her, cin​qüen​ta e oito anos, pro​f es​so​r a pri​m á​r ia, mãe de duas me​-
ni​nas, es​po​sa de​vo​ta​da, mu​lher feia de ar ma​trei​r o e riso tor​to, ja​zia em si​lên​c io
so​bre a mesa ci​r úr​gi​c a, em anes​te​sia pro​f un​da, a vida en​tre​gue às mãos da dra.
Gin​ger Weiss.
Du​r an​te toda a sua exis​tên​c ia Gin​ger pre​pa​r a​r a-se para um mo​m en​to como
aque​le, o mo​m en​to de as​su​m ir o co​m an​do de uma ci​r ur​gia de alto ris​c o que en​-
vol​via com​ple​xo pro​c e​di​m en​to. Anos de es​tu​dos, in​f i​ni​tos sa​c ri​f í​c i​os, enor​m es di​-
fi​c ul​da​des... ela ven​c e​r a to​dos os obs​tá​c u​los e ali es​ta​va, hu​m il​de e, ao mes​m o
tem​po, or​gu​lho​sa de si mes​m a. E à bei​r a do pâ​ni​c o.
A sra. Flet​c her es​ta​va anes​te​si​a ​da e pre​pa​r a​da para a ci​r ur​gia, o cor​po en​vol​-
to nos len​ç óis ver​de-cla​r os cui​da​do​sa​m en​te es​te​r i​li​za​dos. Ape​nas uma par​te de
seu tor​so con​ti​nu​a ​va à mos​tra, exa​ta​m en​te a área onde o ci​r ur​gi​ã o tra​ba​lha​r ia:
um qua​dra​do de pele pin​ta​da de iodo. Jun​to ao pes​c o​ç o da pa​c i​e n​te er​guia-se a
ten​da ci​r úr​gi​c a, uma ar​m a​ç ão de me​tal mon​ta​da so​bre a mesa, de onde pen​dia
um len​ç ol. Do pon​to de vis​ta ci​r úr​gi​c o, a ten​da era usa​da como pre​c au​ç ão ex​tra
con​tra a pos​si​bi​li​da​de de con​ta​m i​na​ç ão da área a ser ope​r a​da. Mas ser​via tam​-
bém para des​per​so-na​li​zar o pa​c i​e n​te, e tal​vez fos​se essa sua gran​de ser​ven​tia, já
que
pou​pa​va o ci​r ur​gi​ã o de ver de per​to a más​c a​r a hu​m a​na da ago​nia e da mor​-
te, se, por des​gra​ç a, sua mão tre​m es​se ou a con​f i​a n​ç a fa​lhas​se.
A di​r ei​ta de Gin​ger, Aga​tha Tandy es​ta​va a pos​tos, fren​te à ban​de​j a onde,
em per​f ei​ta or​dem, ali​nha​vam-se afas​ta​do​r es, pin​ç as he-mos​tá​ti​c as, es​c al​pe​los,
bis​tu​r is e vá​r i​os ou​tros ins​tru​m en​tos. À es​quer​da, ou​tras três en​f er​m ei​r as aguar​-
da​vam o gon​go ini​c i​a l. Pou​c o adi​a n​te, jun​to à ten​da ci​r úr​gi​c a, o anes​te​sis​ta e seu
as​sis​ten​te man​ti​nham os olhos fi​xos nos mo​ni​to​r es.
Ge​or​ge Han​naby per​f i​la​va-se do ou​tro lado da mesa de ci​r ur​gia; man​ti​nha
uma pos​tu​r a me​nos de pro​f es​sor que de ex​pe​r i​e n​te téc​ni​c o de fu​te​bol ven​do o fi​-
lho cal​ç ar as chu​tei​r as para o prij​nei​r o gran​de jogo de sua vida. Com ele, a aura
de for​ç a, cal​m a e com​pe​tên​c ia que ja​m ais o aban​do​na​va.
Gin​ger es​ten​deu a mão di​r ei​ta, e Aga​tha en​tre​gou-lhe um bis-turi. A lâ​m i​na
afi​a ​dís​si​m a bri​lhou por um ins​tan​te sob a luz bran​c a. Gin​ger to​c ou de leve o tra​ç o
que mar​c a​va o lo​c al da in​c i​são no tor​so da pa​c i​e n​te, es​tre​m e​c eu e res​pi​r ou fun​-
do. Por um mo​m en​to, como que evo​c a​das pe​los acor​des de Bach que ema​na​-
vam do pe​que​no gra​va​dor ao fun​do da sala, sur​gi​r am-lhe di​a n​te dos olhos as
ima​gens do of​tal​m os​c ó​pio e das lu​vas pre​tas. Bo​ba​gem... Aqui​lo era coi​sa do
pas​sa​do... in​c i​den​tes es​que​c i​dos. Ela es​ta​va em ex​c e​len​tes con​di​ç ões fí​si​c as, sen​-
tia-se bem, tran​qüi​la, aler​ta, em to​tal con​c en​tra​ç ão para co​m e​ç ar a tra​ba​lhar. Es​-
for​ç ou-se uma se​gun​da vez, ago​r a vo​lun​ta​r i​a ​m en​te, e pen​sou nas lu​vas. Era o úl​-
ti​m o tes​te: se pres​sen​tis​se qual​quer anor​m a​li​da​de, se afas​ta​r ia da mesa e sus​pen​-
de​r ía a ci​r ur​gia. Não hou​ve nada. E por que ha​ve​r ía? Por que Deus a fa​r ia tro​c ar
anos e anos de tra​ba​lho e de​di​c a​ç ão por al​guns ins​tan​tes de des​c on​tro​le emo​c i​o​-
nal, his​te​r ia pas​sa​gei​r a, stress re​la​c i​o​na​do ao ex​c es​so de tra​ba​lho? Nun​c a! Es​ta​va
tudo bem. A ci​r ur​gia se​r ia um su​c es​so. Ti​nha que dar tudo cer​to!
O re​ló​gio na pa​r e​de mar​c a​va sete ho​r as e qua​r en​ta e dois mi​nu​tos. Era o
mo​m en​to de co​m e​ç ar. Gin​ger fez a pri​m ei​r a in​c i​são. Apli​c ou as pin​ç as he​m os​tá​-
ti​c as e con​ti​nuou a cor​tar, ma​r a​vi​lhan​do-se, como acon​te​c ia sem​pre, com a ha​-
bi​li​da​de e a se​gu​r an​ç a das pró​pri​a s mãos. Atin​giu a pri​m ei​r a ca​m a​da de te​c i​do
adi-poso, pas​sou pe​las ca​m a​das mus​c u​la​r es e che​gou ao cen​tro do tó​r ax da pa​c i​-
en​te. Ra​pi​da​m en​te am​pli​ou a in​c i​são o bas​tan​te para con​ter suas mãos e tam​bém
as mãos de Ge​or​ge Han​naby, caso fos​se ne​c es​sá​r ia a in​ter​ven​ç ão do ci​r ur​gi​ã o-
as​sis​ten​te. Duas en​f er​m ei​r as apro​xi​m a​r am-se com os afas​ta​do​r es, apli​c a​r am as
pás do ins​tru​m en​to às pa​r e​des da in​c i​são e, len​ta​m en​te, fi​ze​r am gi​r ar a ros​c a que
as se​pa​r a​va. Aga​tha Tandy to​c ou a tes​ta de Gin​ger com um len​ç o de pa​pel, aten​-
ta às len​tes adap​ta​das aos ócu​los de ci​r ur​gia. Em ge​r al o suor da tes​ta do ci​r ur​gi​-
ão em​ba​ç a​va as len​tes, blo​que​a n​do-lhe mo​m en​ta​ne​a ​m en​te a vi​são mi​c ros​c ó​pi​-
ca. A sua fren​te, t Ge​or​ge sor​r iu. Não es​ta​va su​a n​do. Ra​r a​m en​te su​a ​va du​r an​te
as ci​r ur​gi​a s.
Com ges​tos se​gu​r os e rit​m a​dos, Gin​ger pro​c e​deu à li​ga​du​r a dos va​sos, re​m o​-
veu as pin​ç as e en​tre​gou-as à en​f er​m ei​r a. Na sala si​len​c i​o​sa, a fita de Bach che​-
gou ao fim, en​quan​to uma en​f er​m ei​r a cui​da​va de virá-la, ou​viu-se ape​nas o si​bi​-
lo ca​den​c i​a ​do do pul​m ão ar​ti​f i​c i​a l. Vi​o​la Flet​c her es​ta​va sus​pen​sa en​tre a vida e a
mor​te, li​ga​da à má​qui​na que res​pi​r a​va por ela, sob o efei​to de um po​de​r o​so re​la​-
xan​te mus​c u​lar, de​r i​va​do far​m a​c o​ló​gi​c o do cu​r a​r e, seus pulmões man​ti​nham-se
vi​vos ex​c lu​si​va​m en​te gra​ç as ao so​c or​r o mecâ​ni​c o dos res​pi​r a​do​r es.
Quan​do Ge​or​ge ope​r a​va, a equi​pe cos​tu​m a​va con​ver​sar mui​to. Ele pró​prio
es​ti​m u​la​va a tro​c a de im​pressões, e até, às ve​zes, uma ou ou​tra pi​a ​da, por​que
acha​va im​por​tan​te tra​ba​lhar em cli​m a des​c on​tra​í​do. Gin​ger, no en​tan​to, pre​f e​r ia
o si​lên​c io. Aque​les mo​m en​tos má​gi​c os, qua​se sa​gra​dos, ela que​r ia usu​f ruí-los in​-
ten​sa​m en​te, con​c en​tra​da no mo​vi​m en​to das pró​pri​a s mãos.
Atra​vés da in​c i​são do tó​r ax ao ab​do​m e, exa​m i​nou o có​lon e cons​ta​tou que
es​ta​va bem, sem anor​m a​li​da​de apa​r en​te. To​m ou as ga​zes úmi​das que Aga​tha lhe
es​ten​deu, to​c ou os in​tes​ti​nos e ins​ta​lou as pás dos afas​ta​do​r es jun​to à pa​r e​de da
in​c i​são, de​pois vi​r ou os dois se​gu​r a​do​r es na di​r e​ç ão das en​f er​m ei​r as in​c um​bi​-
das de man​ter os in​tes​ti​nos na​que​la po​si​ç ão, afas​ta​dos do cam​po ope-nuo​r io. Por
bai​xo, ago​r a ex​pos​ta, es​ta​va a aor​ta, ar​té​r ia cen​tral do cor​po hu​m a​no.
A aor​ta des​c e pelo tron​c o e che​ga ao ab​do​m e de​pois de pas​sar pelo di​a ​f rag​-
ma, cor​r en​do pa​r a​le​la às vér​te​bras dor​sais. Na par​te in​te​r i​or do ab​do​m e, pou​c o
aci​m a da vi​r i​lha, a aor​ta di​vi​de-se em dois ra​m os se​c un​dá​r i​os: as ar​té​r i​a s ilí​a ​c as,
que ir​r i​gam a ba​c ia e trans​f or​m am-se em ar​té​r i​a s fe​m o​r ais ao atin​gir a por​ç ão
su​pe​r i​or das co​xas.
— Aí está — dis​se Gin​ger. — E um aneu​r is​m a. Exa​ta​m en​te como os rai​os X
in​di​c a​vam. — Le​van​tou a ca​be​ç a para o ne​ga​tos​c ó-pio mon​ta​do a sua fren​te,
pró​xi​m o à pa​r e​de. — Está lo​c a​li​za​do jun​to à sela aór​ti​c a.
Àga​tha se​c ou-lhe o suor da tes​ta.
Um aneu​r is​m a é como uma bo​lha de san​gue. Ocor​r e quan​do, por qual​quer
ra​zão ana​tô​m i​c a, uma pe​que​na por​ç ão da pa​r e​de de um vaso se di​la​ta, ul​tra​pas​-
san​do o diâ​m e​tro nor​m al do vaso. 0 aneu​r is​m a pul​sa como um pe​que​no co​r a​ç ão.
No caso da ar​té​r ia aor​ta, a di​la​ta​ç ão da pa​r e​de do vaso pode ocor​r er em qual​-
quer lu​gar, do pes​c o​ç o à vi​r i​lha. Quan​do acon​te​c e jun​to à gar​gan​ta pode cau​sar
di​f i​c ul​da​des para de​glu​tir ali​m en​tos, tos​se se​ve​r a e re​bel​de a qual​quer te​r a​pia,
do​r es no pei​to, trans​tor​nos de res​pi​r a​ç ão ou de fala. No caso de Vi​o​la Flet​c her, a
di​la​ta​ç ão pro​vo​c a​va for​tes do​r es ab​do​m i​nais. Sen​do uma es​pé​c ie de bo​lha, o
aneu​r is​m a é um pon​to frá​gil na es​tru​tu​r a do vaso e, sen​do frá​gil, pode re​ben​tar a
qual​quer mo​m en​to. E en​tão a mor​te é vir​tu​a l​m en​te ine​vi​tá​vel. Gin​ger no​va​m en​te
bai​xou os olhos para o pe​que​no bul​bo aver​m e​lha​do, cheio de san​gue, ba​ten​do
len​to e vivo. Ali pa​r e​c ia re​si​dir o úl​ti​m o re​du​to do mis​té​r io da vida, um re​du​to se​-
cre​to que ja​m ais vira a luz do dia, o se​gre​do dos se​gre​dos. Na​que​le mo​m en​to o
mé​di​c o era qua​se Deus: cri​a ​r ia vida onde ha​via mor​te, de​vol​ve​r ia a saú​de a al​-
guém que so​f ria, re​c ons​ti​tui​r ia a or​dem onde a na​tu​r e​za im​plan​ta​r a o caos. Era
um mo​m en​to de ex​pec​ta​ti​va, aci​m a do tem​po. Vi​o​la não es​ta​va nem mor​ta nem
viva: es​ta​va en​tre​gue a suas mãos, a sua pe​r í​c ia, à ci​ê n​c ia que Gin​ger do​m i​na​va
a ser​vi​ç o dos ho​m ens. A mor​te era a de​sa​f i​a n​te. No can​to opos​to do rin​gue, Gin​-
ger pre​pa​r a​va-se para en​f ren​tá-la.
Aga​tha Tandy apa​nhou um pe​que​no saco plás​ti​c o, fe​c ha​do a vá​c uo, e abriu-
o. Ali es​ta​va a por​ç ão de aor​ta ar​ti​f i​c i​a l que subs​ti-tui​r ia a se​ç ão com​pro​m e​ti​da
da ar​té​r ia de Vi​o​la Flet​c her. Era um tubo tra​que​a ​do, de pa​r e​des de fi​bra sin​té​ti​c a
po​r o​sa, que se bi​f ur​c a​va em “Y” in​ver​ti​do — per​f ei​ta re​pro​du​ç ão da di​vi​são da
aor​ta nas duas ar​té​r i​a s ilí​a ​c as.
Gin​ger pe​gou o tubo, co​lo​c ou-o so​bre a re​gi​ã o do aneu​r is​m a, me​diu-o e cor​-
tou-o com a pe​que​na te​sou​r a que re​c e​be​r a da as​sis​ten​te. En​tão de​vol​veu-o a
Aga​tha, que, por sua vez, mer​gu​lhou-o numa pe​que​na ban​de​j a cheia de san​gue
de Vi​o​la Flet​c her e agi​tou o re​c i​pi​e n​te para fren​te e para trás até en​c har​c ar o
tubo. De​pois de im​plan​ta​da na pa​c i​e n​te, a ar​té​r ia sin​té​ti​c a ain​da pre​c i​sa​r ia re​c e​-
ber mais san​gue. Gin​ger des​li​ga​r ia os va​sos, fa​r ia o san​gue preen​c her com​ple​ta​-
men​te a área im​plan​ta​da, tor​na​r ia a dre​ná-lo e só de​pois pas​sa​r ia à su​tu​r a de​f i​ni​-
ti​va. Com esse pro​c e​di​m en​to, es​ti​m u​la​va a cri​a ​ç ão de uma fina ca​m a​da de san​-
gue no in​te​r i​or do tubo — ele​m en​to im​por​tan​te para pre​ve​nir even​tu​a is va​za​m en​-
tos nos pon​tos de su​tu​r a. Com o tem​po, o con​tí​nuo flu​xo san​guí​neo aca​ba​r ia por
for​m ar ou​tra mem​bra​na, essa de​f i​ni​ti​va, re​pro​du​zin​do a es​tru​tu​r a ori​gi​nal do
vaso. En​tão nin​guém con-se​gui​r ia dis​tin​guir a nova mem​bra​na, ín​te​gra e per​f ei​ta,
da mem​bra​na na​tu​r al. Uma nova ar​té​r ia es​ta​r ia cri​a ​da, mas uma ar​té​r ia me​lhor
que a na​tu​r al, mais só​li​da, mais re​sis​ten​te, pra​ti​c a​m en​te in​des​tru​tí​vel. Qui​nhen​tos
anos de​pois, quan​do Vi​o​la Flet​c her já es​ti​ves​se re​du​zi​da a pó, quan​do sua me​m ó​-
ria fos​se nada so​bre o pla​ne​ta, ain​da exis​ti​r ia o im​plan​te sin​té​ti​c o, tão in​ta​to, fle​xí​-
vel e per​f ei​to como na​que​le ins​tan​te.
Aga​tha se​c ou o suor da tes​ta de Gin​ger.
— Está can​sa​da? — Ge​or​ge per​gun​tou.
— Es​tou óti​m a.
— Ten​sa?
— Nem um pou​c o.
Era men​ti​r a. Ge​or​ge per​c e​beu e sor​r iu por trás da pe​que​na más​c a​r a que lhe
co​bria os lá​bi​os:
— É um pra​zer vê-la tra​ba​lhar, dou​to​r a.
— Tam​bém acho.
Uma das as​sis​ten​tes con​c or​dou, rá​pi​da, sem le​van​tar os olhos do que fa​zia.
— E eu tam​bém. — Da ca​be​c ei​r a da mesa, o anes​te​sis​ta sor​r iu.
— Ora... obri​ga​da! — dis​se Gin​ger.
— Você tem gra​ç a, dou​to​r a — Ge​or​ge con​ti​nuou. — Tem mãos le​ves, sen​-
sí​veis. Tudo olha e tudo vê. E uma pena, mas es​sas qua​li​da​des sao mui​to ra​r as
em nos​sa pro​f is​são.
Gin​ger sa​bia que Ge​or​ge não elo​gi​a ​va nin​guém, a me​nos que es​ti​ves​se ab​so​-
lu​ta​m en​te con​ven​c i​do do que di​zia. Sa​bia que era ho​m em de co​brar de​ve​r es, ta​-
re​f as, pon​tu​a ​li​da​de, per​f ei​ç ão, e ra​r a​m en​te se dava por sa​tis​f ei​to. Deus do céu!
Ge​or​ge Han​naby or​gu​lha​va-se dela! Se não es​ti​ves​se à mesa ci​r úr​gi​c a, Gin​ger
com cer​te​za te​r ia cho​r a​do de emo​ç ão. Com a ale​gria, per​c e​beu que Ge​or​ge
subs​ti​tui​r a Ja​c ob em seu co​r a​ç ão. Ou​vir seus elo​gi​os era como ver o ri​so​nho ros​to
de Ja​c ob.
A par​tir des​se pon​to a ope​r a​ç ão pros​se​guiu nor​m al​m en​te. Gin​ger sen​tia-se
mui​to fe​liz. Es​que​c eu as pre​o​c u​pa​ç ões, es​que​c eu o medo de ter ou​tra cri​se e,
mais se​gu​r a, tra​ba​lhou com re​do​bra​da efi​c i​ê n​c ia. Pro​c e​deu ao con​tro​le ri​go​r o​so
do flu​xo sangüí​neo atra​vés da aor​ta, al​te​r ou cui​da​do​sa e me​to​di​c a​m en​te o flu​xo e
a dre​na​gem dos va​sos, li​gou as pe​que​nas vei​a s se​c un​dá​r i​a s com nós de fio plás​ti​-
co, apli​c ou as pin​ç as ade​qua​das nas ar​té​r i​a s, in​c lu​si​ve nas ilí​a ​c as e na pró​pria
aor​ta. Em me​nos de uma hora con​se​guiu in​ter​r om​per o flu​xo de san​gue para as
per​nas da pa​c i​e n​te, e o aneu-ris​m a, es​va​zi​a ​do, pa​r ou de pul​sar. Com um pe​que​no
es​c al​pe​lo, fu​r ou o te​c i​do e, logo, com uma te​sou​r a, abriu a pa​r e​de an​te​r i​or do
vaso.
Na​que​le mo​m en​to, Vi​o​la Flet​c her não ti​nha ar​té​r ia aor​ta; es​ta​va à mer​c ê da
ci​r ur​giã-che​f e, mais de​pen​den​te e im​po​ten​te do que nun​c a an​tes — e, pro​va​vel​-
men​te, nun​c a de​pois — em sua vida. Já não ha​via vol​ta. Da​que​le ins​tan​te em di​-
an​te era pre​c i​so tra​ba​lhar bem, sem er​r ar e, prin​c i​pal​m en​te, sem per​der um se​-
gun​do de tem​po.
Ao re​dor da mesa, a equi​pe pa​r e​c ia hip​no​ti​za​da. Nin​guém con​ver​sa​va nem
fa​zia mo​vi​m en​tos in​ú​teis ou des​ne​c es​sá​r i​os. No gra​va​dor, a fita che​gou no​va​-
men​te ao fi​nal, mas nin​guém se pre​o​c u​pou em virá-la. O tem​po pa​r e​c ia voar,
me​di​do ape​nas pelo sil​vo mo​nó​to​no do pul​m ão ar​ti​f i​c i​a l e pelo bip-bip do ele​tro​-
en-ce​f a​ló​gra​f o.
Gin​ger ti​r ou da ban​de​j a a aor​ta ar​ti​f i​c i​a l, co​lo​c ou-a na aber​tu​r a su​pe​r i​or da
ar​té​r ia se​c i​o​na​da, pin​ç ou as duas ex​tre​m i​da​des in​f e​r i​o​r es e con​c en​trou-se na su​-
tu​r a su​pe​r i​or. En​tão, no​va​m en​te, con​c lu​í​da a su​tu​r a, re​m o​veu duas pin​ç as e fez o
san​gue en​c her o tubo plás​ti​c o que es​ta​va im​plan​tan​do. Até en​tão, sen​tia a tes​-
ta seca, sem ves​tí​gio de suor. Ti​nha cer​te​za de que Ge​or​ge per​c e​be​r a. Pas​sa​do o
pri​m ei​r o mo​m en​to crí​ti​c o, sem que nin​guém pre​c i​sas​se pe​dir-lhe, uma das en​-
fer​m ei​r as-as​sis​ten​tes apro​xi​m ou-se do gra​va​dor e, ou​tra vez, tor​nou a ligá-lo.
Em​bo​r a ain​da ti​ves​se ho​r as de tra​ba​lho pela fren​te, Gin​ger sen​tia-se re​la​xa​-
da e cal​m a. Des​lo​c ou-se ao lado da mesa, na di​r e​ç ão dos pés da pa​c i​e n​te, e afas​-
tou os len​ç óis. Aga​tha apro​xi​m ou-se com ou​tra ban​de​j a de ins​tru​m en​tos con​ten​-
do todo o ma​te​r i​a l ne​c es​sá​r io para duas gran​des in​c isões, uma em cada coxa,
pou​c o abai​xo da pre​ga in​gui​nal, no pon​to de in​ser​ç ão das per​nas no tron​c o. Pas​so
a pas​so, pin​ç an​do vei​a s e ar​té​r i​a s, abrin​do ca​m i​nho en​tre ca​m a​das mus​c u​la​r es,
Gin​ger atin​giu as duas ar​té​r i​a s fe​m o​r ais. Re​pe​tiu o mes​m o pro​c e​di​m en​to ado​ta​do
na por​ç ão su​pe​r i​or da aor​ta, abriu as duas ar​té​r i​a s fe​m o​r ais, uma de cada vez, e
in​se​r iu nas aber​tu​r as as ex​tre​m i​da​des do tubo sin​té​ti​c o.
Em cer​to mo​m en​to, sur​preen​deu-se can​ta​r o​lan​do bai​xi​nho, acom​pa​nhan​do
os acor​des que vi​nham do gra​va​dor. Sen​tia-se o pró​prio Hi​pó​c ra​tes reen​c ar​na​do,
o mé​di​c o dos mé​di​c os, ope​r an​do ha​via mi​lê​ni​os, des​de o co​m e​ç o dos tem​pos.
Pa​r e​c ia que nas​c e​r a para fa​zer exa​ta​m en​te o que es​ta​va fa​zen​do.
Se não es​ti​vés​se tão con​c en​tra​da na su​tu​r a do vaso de Vi​o​la Flet-cher, te​r ia
pen​sa​do em Ja​c ob. E, pen​san​do no pai, te​r ia lem​bra​do
al​gu​m as das fra​ses que ele cos​tu​m a​va di​zer quan​do se via di​a n​te de algo ine​-
vi​tá​vel, da dor ou do fra​c as​so. “O tem​po não es​pe​r a”. “Aju​da-te e Deus te aju​-
da​r á”. “Tos​tão eco​no​m i​za​do é tos​tão me​r e​c i​do”. “A vin​gan​ç a a Deus per​ten​c e”.
“Não jul​gues, para não se​r es jul​ga​do”. “Quem com fer​r o fere...” Ja​c ob ti​nha um
re​per​tó​r io in​f i​ni​to de fra​ses. Mas ha​via uma, em es​pe​c i​a l, que pro​nun​c i​a ​va sem​-
pre: “An​tes da que​da, vem o or​gu​lho”. Gin​ger po​de​r ia ter pen​sa​do nes​sas hu​m il​-
des pa​la​vras, chei​a s de sa​be​do​r ia. Mas es​ta​va tão fe​liz, tão sa​tis​f ei​ta con​si​go mes​-
ma, tão or​gu​lho​sa de sua es​tréia como ci​r ur​giã-che​f e, que se es​que​c eu da pos​si​-
bi​li​da​de da que​da.
Con​ti​nu​a ​va aten​ta às pró​pri​a s mãos. Vol​tou ao ab​do​m e, re​ti​r ou as pin​ç as dos
bra​ç os in​f e​r i​o​r es do im​plan​te e dre​nou-os; de​pois, cui​da​do​sa​m en​te, co​lo​c ou-os
nas aber​tu​r as das ar​té​r i​a s fe​m o​r ais e su​tu​r ou as in​ser​ç ões. Por fim, re​ti​r ou as úl​ti​-
mas pin​ç as e viu o san​gue fluir na​tu​r al​m en​te, de​vol​vi​do ao tri​lho ha​bi​tu​a l. Ain​da
de​di​c ou vin​te mi​nu​tos à su​tu​r a dos úl​ti​m os va​sos e ree​xa​m i​nou to​dos os pon​tos à
pro​c u​r a de al​gum va​za​m en​to: não en​c on​trou ne​nhum. Mãos apoi​a ​das na mesa,
dei​xou-se fi​c ar, por cin​c o mi​nu​tos, ob​ser​van​do a pul​sa​ç ão do im​plan​te, per​c or​-
ren​do cada cen​tí​m e​tro da ar​té​r ia ex​pos​ta. Es​ta​va per​f ei​to.
— Po​de​m os fe​c har — dis​se, afi​nal, le​van​tan​do a ca​be​ç a.
— Mag​ní​f i​c o! — aplau​diu Ge​or​ge.
Gin​ger co​m e​ç ou pe​las in​c isões das co​xas. Vol​tou ao ab​do​m e, re​ti​r ou os afas​-
ta​do​r es dos in​tes​ti​nos e re​c o​lo​c ou-os na ca​vi​da​de ab​do​m i​nal. O res​to foi fá​c il: re​-
por e re​c ons​ti​tuir as ca​m a​das de gor​du​r a, as ca​m a​das mus​c u​la​r es até a pele, cos​-
tu​r a​da com um gros​so fio ne​gro.
Na ca​be​c ei​r a, o anes​te​sis​ta re​ti​r ou a ven​da plás​ti​c a, que man​ti​nha fe​c ha​dos
os olhos de Vi​o​la, e des​li​gou o res​pi​r a​dor. Uma das en​f er​m ei​r as des​li​gou o gra​va​-
dor bem no meio de um mo​vi​m en​to. Gin​ger apro​xi​m ou-se da ca​be​c ei​r a da mesa
e olhou para a pa​c i​e n​te, que, em​bo​r a já res​pi​r as​se es​pon​ta​ne​a ​m en​te, con​ser​va​va
a má​qui​na de oxi​gê​nio pre​sa à ca​be​ç a. A ou​tra en​f er​m ei​r a des​piu as lu​vas de
bor​r a​c ha.
Sem abrir os olhos, Vi​o​la ge​m eu bai​xi​nho.
— Se​nho​r a Flet​c her — pe​gun​tou o anes​te​sis​ta está me ou​vin​do?
A pa​c i​e n​te não res​pon​deu.
— Vi​o​la? Você está bem? Já acor​dou? — Gin​ger in​sis​tiu.
Os olhos da sra. Flet​c her per​m a​ne​c e​r am fe​c ha​dos, mas ela mo​veu le​ve​m en​-
te a ca​be​ç a e en​tre​a ​briu os lá​bi​os.
— Es​tou bem... dou​to​r a.
Uma das en​f er​m ei​r as sus​pi​r ou, ali​vi​a ​da. A equi​pe reu​niu-se em tor​no de
Gin​ger para os úl​ti​m os cum​pri​m en​tos, que ela acei​tou e agra​de​c eu en​quan​to dei​-
xa​va a sala, ao lado de Ge​or​ge, ti​r an​do as lu​vas, o gor​r o e a más​c a​r a. Sen​tia-se
pres​tes a ex​plo​dir de sa​tis- t fa​ç ão. Um se​gun​do de​pois, apro​xi​m an​do-se da pia
para la​var as mãos, co​m e​ç ou a car​r e​gar o peso da ten​são. Os om​bros e o pes-
p coço do​í​a m, as per​nas so​f ri​a m cãi​bra, os pés ar​di​a m.
— Deus do céu... — sus​pi​r ou. — Es​tou exaus​ta!
— Eu sei — Ge​or​ge sor​r iu. — Você está tra​ba​lhan​do há mais de cin​c o ho​-
ras. Já pas​sa da hora do al​m o​ç o. Im​plan​te de aor​ta é uma ver​da​dei​r a ma​r a​to​na.
— Você tam​bém fica exaus​to quan​do faz um im​plan​te des​ses?
Cla​r o que fico.
— E es​tra​nho... Quan​do saí da sala eu es​ta​va óti​m a. Foi de re​pen​te. Lá den​-
tro, era como se eu es​ti​ves​se co​m e​ç an​do a tra​ba​lhar.
— Lá den​tro você se sen​tia como se fos​se um deus — Ge​or​ge riu, ca​r i​nho​-
so. — En​f ren​tou a mor​te, lu​tou e ven​c eu. Os deu​ses não sen​tem can​sa​ç o, não
têm cãi​bra nem tor​c i​c o​lo. O tra​ba​lho de​les é di​ver​ti​do de​m ais para que pen​sem
no can​sa​ç o que vem de​pois.
Jun​to às duas pias, ain​da ao lado de Ge​or​ge, Gin​ger ti​r ou o aven​tal, apa​nhou
uma das pe​que​nas em​ba​la​gens de sa​bo​ne​te, abriu-a e co​m e​ç ou a la​var as mãos.
Aos pou​c os, qua​se sem sen​tir, de​bru​ç ou-se e fi​tou o fun​do da cuba ova​la​da. Co​-
ber​ta de pe​que​nas bo​lhas de sa​bão, a água gi​r a​va um mo​m en​to so​bre si pró​-
pria, gi​r a​va... e su​m ia pelo ralo. Mais água acu​m u​la​va-se, gi​r a​va e de​sa​pa​r e​c ia,
tra​ga​da pelo tor​ve​li​nho. Gi​r a​va cada vez mais de​pres​sa, mais de​pres​sa, mais de​-
pres​sa, e su​m ia...
A ter​c ei​r a cri​se foi a pior de to​das. Pior que o caso das lu​vas pre​tas, pior que
o of​tal​m os​c ó​pio no con​sul​tó​r io de Ge​or​ge. De re​pen​te, com um gri​to de pa​vor,
Gin​ger jo​gou lon​ge o sa​bo​ne​te e ar​r e​ga​lou os olhos, o ros​to pá​li​do como a mor​te.
O tur​bi​lhão cres​c ia, a água gi​r a​va cada vez mais, co​m e​ç a​va a sair da pia, ia apa​-
nhá-la... Ela pre​c i​sa​va fu​gir! Na cor​r i​da, teve a vaga im​pres​são de li​vrar-se de
Aga​tha, que ten​ta​va se​gu​r á-la, de ou​vir a voz de Ge​or​ge cha​m an​do seu nome.
Mas foi ape​nas um ins​tan​te, e tudo mer​gu​lhou na né​voa. O ce​ná​r io, as per​so​na​-
gens, Aga​tha, Ge​or​ge, a ante-sala do cen​tro ci​r úr​gi​c o... não ha​via mais nada ou
nin​guém. Tudo su​m ia, e ape​nas a pia bri​lha​va com uma luz ma​lig​na, ame​a ​ç a​do​-
ra. Es​ta​va en​lou​que​c en​do. Era uma pia! A pia de sem​pre, a pia do cen​tro ci​r úr​gi​-
co... Não po​dia dei​xar-se le​var pelo medo. Não que​r ia fu​gir, não, não...
Mas fu​giu. Cor​r eu para fora da sala. A né​voa den​sa di​lu​ía as ima​gens a sua
vol​ta, até en​vol​ver tudo. En​tão as tre​vas se fe​c ha​r am.
A pri​m ei​r a sen​sa​ç ão de Gin​ger foi de frio. Ha​via ne​va​do, ain​da ne​va​va... os
flo​c os de al​go​dão ca​í​a m de​va​gar, pas​san​do adi​a n​te de seus olhos como pe​que​nas
plu​m as. Não ha​via ven​to. Gin​ger le​van​tou a ca​be​ç a e olhou o muro de ti​j o​los que
se er​guia a sua fren​te, de um lado e ou​tro. Me​tros aci​m a, apa​r e​c ia um pe​que​-
no re​tân​gu​lo de céu cor de chum​bo. A neve vi​nha de lá e, em ape​nas al​guns se​-
gun​dos, acu​m u​la​va-se so​bre seus ca​be​los... ne​va​va e ela es​ta​va sen​ta​da no chão,
cho​r an​do e tre​m en​do de frio.
A pele de seu ros​to ar​dia, os os​sos da mão co​m e​ç a​vam a doer, os den​tes ba​ti​-
am. Ves​tia o ca​m i​so​lão ver​de-cla​r o que usa​va sob o aven​tal de ci​r ur​gia. Ti​nha o
cor​po úmi​do e sen​tia o con​ta​to ge​la​do dos ti​j o​los em que suas cos​tas se apoi​a ​-
vam. En​c o​lhi​da a um can​to, abra​ç an​do os jo​e ​lhos con​tra o pei​to, ten​ta​va de​f en​-
der-se de al​gu​m a coi​sa. A tem​pe​r a​tu​r a de sua pele co​m e​ç a​va a bai​xar, mas ela
não ti​nha for​ç as para le​van​tar-se e en​trar. Lem​brou-se da pia, do ralo en​go​lin​do a
água e, afi​nal, lem​brou-se de tudo.
Ou​tra cri​se! Ti​ve​r a ou​tra cri​se, fu​gi​r a de​ses​pe​r a​da, atro​pe​lan​do Aga​tha. Ge​-
or​ge ten​ta​r a cha​m á-la, po​r ém ela mal o ou​vi​r a. Geor-
ge! Ní​ti​da, como numa cena de fil​m e an​ti​go, lem​brou-se da ex​pres​são de
sur​pre​sa que apa​r e​c e​r a no ros​to do mé​di​c o ao vê-la fu​gir. Nao con​se​guia lem​-
brar-se de mais nada; en​tre​tan​to, po​dia adi​vi​nhar: sa​í​r a do cen​tro ci​r úr​gi​c o gri​-
tan​do, com​ple​ta​m en​te en​lou​que​c i​da, fora de si... As​sus​ta​r a a equi​pe, e as​sus​ta​r a
o pró​prio Ge​or​ge, e, afi​nal, des​trui​r a sua pro​m is​so​r a car​r ei​r a.
De olhos fe​c ha​dos, co​lou as cos​tas à pa​r e​de ge​la​da. Mais frio... quan​to mais
frio, me​lhor! Um vi​o​len​to cho​que tér​m i​c o, a mor​te rá​pi​da e in​do​lor. Es​ta​va sen​-
ta​da num dos cor​r e​do​r es ex​ter​nos do hos​pi​tal, uma es​pé​c ie de en​tra​da de ser​vi​ç o
que le​va​va ao pré​dio prin​c i​pal. A es​quer​da, uma pe​sa​da por​ta de fer​r o dava pas​-
sa​gem à cal​dei​r a que ali​m en​ta​va os aque​c e​do​r es, jun​to às sa​í​das de emer​gên​c ia
da​que​la ala.
Gin​ger lem​brou-se da noi​te em que fora as​sal​ta​da, quan​do ain​da tra​ba​lha​va
no Hos​pi​tal Pres​bi​te​r i​a ​no de Co​lúm​bia. O as​sal​tan​te le​va​r a-a para um beco pa​r e​-
ci​do com aque​le, mas en​tão ela ain​da não ha​via co​m e​ç a​do a en​lou​que​c er. Era
uma mu​lher equi​li​bra​da, se​gu​r a, de​ter​m i​na​da a não se dei​xar ven​c er. E ago​r a...
per​de​r a tudo, sen​tia-se fra​c a, qua​se mor​ta de frio e de medo. Ter​r í​vel iro​nia:
mor​r er so​zi​nha e de​sam​pa​r a​da num beco ge​la​do.
Toda a sua vida re​du​zi​da a tão pou​c o. Os anos de es​c o​la, a fa​c ul​da​de, as lon​-
gas noi​tes de plan​tão no hos​pi​tal, o tra​ba​lho, o sa​c ri​f í​c io para que ser​vi​r am? Para
ela aca​bar como um cão va​dio, sem rumo e sem dono. Ha​via fra​c as​sa​do. De​-
cep​c i​o​na​r a Ge​or​ge, Anna, Ja​c ob... De​c ep​c i​o​na​r a a si pró​pria. Era in​ú​til fin​gir
que não sa​bia o que se pas​sa​va. Não sa​bia exa​ta​m en​te o que era, mas es​ta​va
cons​c i​e n​te de que se tra​ta​va de al​gu​m a coi​sa mui​to gra​ve, gra​ve o bas​tan​te para
aca​bar com seus so​nhos de tra​ba​lhar como ci​r ur​giã. O que po​dia ser? Cri​se psi​-
có​ti​c a? Tu​m or ce​r e​bral? Aneu-ris​m a in​tra​c ra​ni​a ​no?
De re​pen​te, a por​ta de fer​r o abriu-se, e Ge​or​ge Han​naby apa​r e​c eu, o aven​-
tal en​r o​lan​do-se às per​nas, a res​pi​r a​ç ão en​tre​c or​ta​da. De​te​ve-se pro​c u​r an​do algo
em seu re​dor, e de​pa​r ou com ela, en​c o​lhi​da na neve. Gin​ger viu-o ar​r e​ga​lar os
olhos e fran​zir as so​bran​c e​lhas in​c ré​du​lo, e ima​gi​nou que es​ti​ves​se fa​zen​do as
con​tas
das ho​r as, dias e me​ses que ha​via per​di​do com ela. Sua me​lhor alu​na, sua as​-
sis​ten​te ex​c lu​si​va, a gran​de pro​m es​sa da ci​r ur​gia car-di​o​vas​c u​lar do Me​m o​r i​a l...
Gin​ger fe​c hou os olhos, en​c o​lheu-se ain​da mais jun​to à pa​r e​de e re​c o​m e​ç ou a
cho​r ar.
— Mas... o que acon​te​c eu? — Ge​or​ge apro​xi​m ou-se, ain​da in​c ré​du​lo.
Ela res​pon​deu com um so​lu​ç o, o ros​to es​c on​di​do nas mãos. Ge​or​ge que a es​-
que​c es​se, que de​sa​pa​r e​c es​se dali, que a dei​xas​se so​zi​nha com a mi​sé​r ia, a ver​go​-
nha, a hu​m i​lha​ç ão. Por que pre​c i​sa​va pas​sar por mais aque​la pro​va​ç ão? O que
ele que​r ia?
— Por fa​vor, diga o que acon​te​c eu. O que... quer que eu faça? ^ Por en​tre
os de​dos, Gin​ger viu que ou​tras pes​so​a s tam​bém che​ga​vam à por​ta de fer​r o. As
lá​gri​m as não a dei​xa​vam ver bem, nem ela pre​c i​sa​va sa​ber quem eram: bas​ta​-
va-lhe sa​ber que Ge​or​ge es​ta​va ali, a sua fren​te, per​gun​tan​do-lhe o que acon​te​-
ce​r a.
— Não sei... — res​pon​deu bai​xi​nho, sem co​r a​gem de le​van​tar os olhos. —
Al​gu​m a coi​sa... está acon​te​c en​do co​m i​go...
— O que é?
— Não sei.
A úni​c a Gin​ger Weiss que co​nhe​c ia nun​c a pre​c i​sa​r a pe​dir aju​da a nin​guém,
bas​ta​va-se a si mes​m a. E ago​r a mal sa​bia di​zer o que es​ta​va acon​te​c en​do! —
Seja lá o que for, va​m os dar um jei​to — pro​m e​teu Ge​or​ge, in​c li​nan​do-se em sua
di​r e​ç ão. — Sei que você não é de se en​tre​gar. Está ou​vin​do? As ve​zes fico sem
sa​ber o que fa​zer com você por​que sei que não gos​ta de re​c e​ber aju​da. Sem​pre
quer fa​zer tudo so​zi​nha. Mas ago​r a é di​f e​r en​te, não é? Você está meio... per​di​da...
— Ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. — Des​ta vez vou aju​dá-la, você quei​r a ou não. Ou​viu
bem?
— Es​tra​guei tudo. De​c ep​c i​o​nei você...
Ge​or​ge sor​r iu.
— Não, ain​da não — mur​m u​r ou. — Sabe... Rita e eu não ti​ve​m os fi​lhas. Só
os ra​pa​zes... Mas, se ti​vés​se​m os tido uma me​ni​na, gos​ta​r í​a ​m os que fos​se igual​zi​-
nha a você. Dou​to​r a Weiss, você é uma mu​lher ma​r a​vi​lho​sa... fan​tás​ti​c a... es​pe​-
ci​a l. Ja​m ais me de​c ep​c i​o​na​r ia. Para mim, se​r ia uma hon​r a se, pelo me​nos uma
vez na
vida, você acei​tas​se meu om​bro, se en​c os​tas​se nele e me dei​xas​se aju​dá-la.
Como se eu fos​se seu pai.
Gin​ger le​van​tou os olhos, viu a mão de Ge​or​ge es​ten​di​da para ela e aper​tou-
a com for​ç a.
Era se​gun​da-fei​r a, dia 2 de de​zem​bro.
Ain​da se pas​sa​r i​a m mui​tas se​m a​nas até Gin​ger des​c o​brir que ou​tras pes​so​a s,
em ou​tros lu​ga​r es — gen​te que não se co​nhe​c ia —, vi​vi​a m a mes​m a ex​pe​r i​ê n​-
cia, si​nis​tras va​r i​a ​ç ões de um pe​sa​de​lo se​m e​lhan​te ao seu.
2. TREN​TON, NEW JER​SEY
Pou​c o an​tes da meia-noi​te, Jack Twist abriu a por​ta, saiu do ar​m a​zém e res​-
pi​r ou fun​do o ar ge​la​do e úmi​do. No mes​m o ins​tan​te, um ho​m em des​c ia de um
ca​m i​nhão cin​zen​to, jun​to a uma das ram​pas de des​c ar​ga. Jack não ou​vi​r a ru​í​do
al​gum por​que, com cer​te​za, o ca​m i​nhão es​ta​c i​o​na​r a en​quan​to o trem pas​sa​va.
O pá​tio ao re​dor es​ta​va às es​c u​r as, ape​sar das qua​tro pe​que​nas lâm​pa​das
ama​r e​la​das que, por me​di​da de se​gu​r an​ç a, per​m a​ne​c i​a m sem​pre ace​sas ba​lan​-
çan​do ao ven​to como ara​nhas en​gai​o​la​das. Por azar, uma des​sas lâm​pa​das ilu​m i​-
na​va exa​ta​m en​te a por​ta por onde Jack aca​ba​va de sair e o lado di​r ei​to do ca​m i​-
nhão onde se en​c on​tra​va o vi​si​tan​te ines​pe​r a​do.
O ho​m em ti​nha cara de pron​tu​á ​r io po​li​c i​a l: quei​xo qua​dra​do, lá​bi​os fi​nos e
re​tos, na​r iz tor​to e que​bra​do mais de meia dú​zia de ve​zes, olhos pe​que​nos e bem
se​pa​r a​dos. Era um dos sá​di​c os obe​di​e n​tes que a gang em​pre​ga​va quan​do pre​c i​-
sa​va de mão-de-obra ex​tra. Em ou​tras en​c ar​na​ç ões po​de​r ia ter ga​nho a vida
como es​pe​c i​a ​lis​ta em es​tu​pro e sa​que nas hor​das de Gen​gis Khan, ou car​r as​c o
na​zis​ta, ou tor​tu​r a​dor-che​f e em qual​quer pri​são sta-li​nis​ta. No fu​tu​r o, po​de​r ia
bem ser um Mor​lock, como H.G. Wells ima​gi​nou em A má​qui​na do tem​po. Para
Jack, no pre​sen​te, o ho​m em era pro​ble​m a da ca​be​ç a aos pés.
Fi​c a​r am os dois pa​r a​dos, um na fren​te do ou​tro, mas Jack
não le​van​tou o re​vól​ver nem lhe deu um tiro, como de​ve​r ia fa​zer.
— O que está fa​zen​do aí? — per​gun​tou Mor​lock, rís​pi​do. Con​tu​do, ao ver a
sa​c o​la de lona que o ou​tro ar​r as​ta​va com a mão es​quer​da e a pis​to​la na di​r ei​ta,
apon​ta​da para o chão, ar​r e​ga​lou os olhos e ex​c la​m ou: — Max!
Max de​via ser o mo​to​r is​ta do ca​m i​nhão, e Jack não es​pe​r ou que apa​r e​c es​se
al​guém para apre​sen​tá-los. Vol​tou-se, cor​r eu para den​tro do ar​m a​zém, fe​c hou a
por​ta e en​c os​tou-se à pa​r e​de, pen​san​do na hi​pó​te​se de o Mor​lock de​c i​dir tes​tar a
pon​ta​r ia.
A úni​c a ilu​m i​na​ç ão que ha​via no ar​m a​zém pro​vi​nha de um con​j un​to de lâm​-
pa​das fra​c as que tam​bém per​m a​ne​c i​a m ace​sas du​r an​te toda a noi​te no es​c ri​tó​r io
mais ao fun​do. Era pou​c a luz, mas bas​ta​va para que Jack vis​se os ros​tos de seus
dois com​pa​nhei​r os, Mort Gersh e Tommy Sung, pa​r a​dos a pou​c os pas​sos da sa​í​-
da. Não pa​r e​c i​a m sa​tis​f ei​tos.
Mi​nu​tos an​tes ia tudo tão bem! Ha​vi​a m des​c o​ber​to um dos mai​o​r es ar​m a​-
zéns da Má​f ia, um dos “ni​nhos de de​so​va” do di​nhei​r o do trá​f i​c o de dro​gas ar​r e​-
ca​da​do em me​ta​de do Es​ta​do de New Jer​sey. O di​nhei​r o vi​nha em ma​las, sa​c o​-
las, cai​xas de pa​pe​lão ou de plás​ti​c o e, de​pois de pas​sar de mão em mão, ao lon​-
go de uma ca​deia de “pom​bos-cor​r eio” que o re​c e​bia dos tra​f i​c an​tes, era dei​xa​-
do no ar​m a​zém. As mai​o​r es re​m es​sas che​ga​vam aos do​m in​gos e às se​gun​das.
As ter​ç as-fei​r as, apa​r e​c i​a m os bem ves​ti​dos con​ta​do​r es para acer​tar “a con​ta​bi​-
li​da​de da di​vi​são de pro​du​tos quí​m i​c os” da or​ga​ni​za​ç ão. As quar​tas, o di​nhei​r o, já
con​ta​do e acon​di​c i​o​na​do em ma​le​tas, par​tia para Mi​a ​m i, Las Ve​gas, Los An​ge​-
les, Nova York ou qual​quer ou​tro gran​de cen​tro onde, afi​nal, os con​se​lhei​r os fi​-
nan​c ei​r os, ba​c ha​r éis em Har​vard ou Co​lúm-bia, pro​c u​r a​do​r es da Má​f ia ou de al​-
gu​m as “fa​m í​li​a s”, de​di​c a​vam-se a “es​quen​tá-lo”, ou seja, tor​ná-lo le​gal e ren​do​-
so.
Jack, Mort e Tommy es​ta​vam ape​nas in​ter​r om​pen​do um dos elos des​sa ca​-
deia, exa​ta​m en​te o que li​ga​va os con​ta​do​r es bem ves​ti​dos e os dou​to​r es de Har​-
vard. Os três apo​de​r a​r am-se de qua-
tro pe​sa​dos sa​c os de lona chei​os de di​nhei​r o e de​c i​di mm ga\i.n aque​la for​tu​-
na como bem qui​ses​sem.
— Qual é o pro​ble​m a? — per​gun​ta​r a Jack, So​m os ape​nas um elo novo na
mes​m a cor​r en​te. E como se fôs​se​m os in​ter​m e​di​á ​r i​os free-lan​c ers. — Os três ri​-
ram mui​to,
Mas na​que​le mo​m en​to Mort es​ta​va ou​tra ve/, mui​to se​r io. Ti nha cin​qüen​ta
anos, ven​tre sa​li​e n​te, om​bros ca​í​dos, e co​m e​ç a​va a per​der os úl​ti​m os fios de ca​-
be​los. Como sem​pre, usa​va ter​no es​c u​r o e cha​péu de fel​tro, po​r ém acres​c en​ta​r a
um so​bre​tu​do cin zen​to ao uni​f or​m e ha​bi​tu​a l. Jack não se lem​bra​va de ja​m ais
tê*Io vis​to com ou​tra rou​pa. O cha​péu per​de​r a o vin​c o — o que ali​á s o pró​prio
Mort tam​bém pa​r e​c ia ter per​di​do há mui​to tem​po e o ter​no es​ta​va amar​r o​ta​do,
mas o con​j un​to dava-lhe todo o ar de um ali​nha​do fi​gu​r an​te num fil​m e de gangs​-
ter.
— Quem está lá fora? — per​gun​tou, a voz can​sa​da e aze​da de sem​pre.
— Vi dois ca​r as num ca​m i​nhão.
— Gen​te da tur​m a?
— Não sei. Bom, para di​zer a ver​da​de, só vi mes​m o um — Jack cor​r i​giu-se
—, mas vale por dois... Até pa​r e​c e o Frankens​tein.
— Não há por que se pre​o​c u​par. As por​tas es​tão tran​c a​das.
— Eles po​dem ter as cha​ves.
A ob​ser​va​ç ão fez os três cor​r e​r em para as som​bras do fun​do do ar​m a​zém e
es​c on​de​r em-se en​tre as pi​lhas de en​gra​da​dos e cai​xo​tes aco​m o​da​dos nas em​pi​-
lha​dei​r as. No imen​so ar​m a​zém, as mer​c a​do​r i​a s en​c hi​a m pra​te​lei​r as que su​bi​a m
até o teto. Te​le​vi​so​r es, for​nos de mi​c ro​on​das, li​qüi​di​f i​c a​do​r es, tor​r a​dei​r as, pe​ç as
para car​r os e tra​to​r es, e mais cen​te​nas de itens. As pra​te​lei​r as pa​r e​c i​a m or​de​na​-
das e lim​pas, mas o ar​m a​zém, como qual​quer gran​de ofi​c i​na de​ser​ta, ti​nha um
ar si​nis​tro e ame​a ​ç a​dor, como se os cor​r e​do​r es es​c u​r os ain​da abri​gas​sem as vo​-
zes e os ha​bi​tan​tes do dia.
Co​m e​ç a​r a a cho​ver for​te, e as pe​sa​das go​tas de água ba​ten​do na laje de con​-
cre​to eco​a ​vam como pas​sos por en​tre as pra​te​lei​r as.
— Bem que eu avi​sei — res​m un​gou Tommy. — Eu dis​se que era pe​r i​go​so
me​xer com essa gen​te.
Des​c en​den​te de chi​ne​ses, Tommy aca​ba​va de com​ple​tar trin​ta anos, sete
me​nos que Jack. — Ca​sas de jói​a s — con​ti​nuou —, car​r os blin​da​dos, até ban​c os...
vá lá que seja... Mas a Má​f ia! É lou​c u​r a que​r er rou​bar es​ses ca​r as! E como en​-
trar num bar de fu​zi​lei​r os na​vais e cus​pir na ban​dei​r a.
— Mas você veio, não veio?
— Eu sei, Jack... As ve​zes faço bo​ba​gem.
No tom de​sa​len​ta​do de sem​pre, Mort in​ter​r om​peu-o:
— Só há uma ex​pli​c a​ç ão para esse ca​m i​nhão apa​r e​c er aqui. Eles de​vem
es​tar tra​zen​do di​nhei​r o de apos​tas, ca​va​los, “pó”, qual​quer mer​da des​sas, e com
cer​te​za é mais gen​te do que os dois que você viu. De​vem ter ho​m ens ar​m a​dos na
car​r o​c e​r ia guar​dan​do a
gra​na .
— E por que eles não ati​r am? — Tommy per​gun​tou.
— Por​que pen​sam que so​m os um exér​c i​to ar​m a​do até os den​tes. Es​tão
com medo de nós — ar​r is​c ou Jack.
— Pro​va​vel​m en​te eles têm trans​m is​so​r es de rá​dio e já pe​di​r am re​f or​ç os.
— Mort ajei​tou o cha​péu, pen​sa​ti​vo.
— Você acha que essa por​r a de Má​f ia tem uma fro​ta de ca​m i​nhões equi​-
pa​dos com rá​dio, como a Com​pa​nhia Te​le​f ô​ni​c a? — Tommy vi​r ou-se para ele.
— A Má​f ia é um ne​gó​c io como qual​quer ou​tro. Os ca​r as são or​ga​ni​za​dos.
Os três ca​la​r am-se, ten​tan​do ou​vir ru​í​dos que in​di​c as​sem mo​vi​m en​to no pá​-
tio. Nada. Só a chu​va tam​bo​r i​la​va na laje. Cada um exa​m i​nou a pró​pria arma,
so​f is​ti​c a​da, mo​der​na e... in​su​f i​c i​e n​te para en​f ren​tar a Má​f ia.
De re​pen​te, Jack lem​brou-se de um fil​m e an​ti​go vis​to na te​le​vi​são: mu​ni​dos
ape​nas de pe​dras e por​r e​tes, pa​tri​o​tas hún​ga​r os ten​ta​vam de​ter o avan​ç o dos tan​-
ques rus​sos. Como sem​pre as coi​sas se com​pli​c a​vam, e ele dra​m a​ti​za​va, es​c o​-
lhen​do in​va​r i​a ​vel​m en​te o pa​pel de ví​ti​m a, de po​bre coi​ta​do per​se​gui​do pe​las for​-
ças do mal. Gos​ta​va de ser as​sim. Via a ten​dên​c ia a dra​m a​ti​zar como uma de
suas mais al​tas qua​li​da​des mo​r ais. Ver​da​de que, en​c ur​r a​la​do
no ar​m a​zém, a re​a ​li​da​de su​pe​r a​va qual​quer ten​ta​ti​va de fic​ç ão: não ha​via o
que dra​m a​ti​zar.
Mort aca​bou che​gan​do a al​gu​m a con​c lu​são pa​r e​c i​da e dis​se:
— Não vai adi​a n​tar nada ten​tar sair pe​los fun​dos. Eles já de​vem ter to​m a​-
do po​si​ç ão, com pelo me​nos dois na fren​te e dois atrás.
As duas úni​c as sa​í​das pos​sí​veis eram as por​tas de aço das ram​pas de des​c ar​-
ga. Não ha​via ja​ne​las, aber​tu​r as de ven​ti​la​ç ão, cha​m i​né, nada. Nem sa​í​da de
emer​gên​c ia nem es​c a​da para su​bir ao te​lha​do — na ver​da​de, nem exis​tia te​lha​-
do. Ao pla​ne​j ar o rou​bo, os três ha​vi​a m es​tu​da​do de​ti​da​m en​te as plan​tas do ar​-
ma​zém, e co​nhe​c i​a m, pal​m o a pal​m o, a ar​m a​di​lha em que ha​vi​a m ca​í​do.
— En​tão... o que va​m os fa​zer?
A per​gun​ta de Tommy era di​r i​gi​da não a Mort, mas a Jack, que fa​zia ques​tão
de or​ga​ni​zar pes​so​a l​m en​te to​dos os “ser​vi​ç os” dos quais par​ti​c i​pa​va. As​sim,
Tommy es​pe​r a​va que ele se en​c ar​r e​gas​se tam​bém de im​pro​vi​sar so​lu​ç ões quan​-
do pa​r e​c ia não ha​ver a mí​ni​m a es​pe​r an​ç a. Jack era o ho​m em das idéi​a s bri​lhan​-
tes.
De re​pen​te, po​r ém, o pró​prio Tommy ba​teu na tes​ta:
— Ora! Por que não sa​í​m os do mes​m o jei​to que en​tra​m os?
Ha​vi​a m en​tra​do no ar​m a​zém como al​guns guer​r ei​r os gre​gos
en​tra​r am em ter​r i​tó​r io ini​m i​go, numa li​gei​r a adap​ta​ç ão da idéia do ca​va​lo de
Tróia. Era a úni​c a ma​nei​r a de bur​lar o ela​bo​r a​do sis​te​m a de se​gu​r an​ç a que, à
noi​te, tor​na​va o ar​m a​zém pra​ti​c a​m en​te inex​pug​ná​vel. Du​r an​te o dia a se​gu​r an​ç a
cor​r ia por con​ta da ho​nes​ta fa​c ha​da de um de​pó​si​to que, como tan​tos ou​tros, ar​-
ma​ze​na​va ob​j e​tos, mó​veis e mer​c a​do​r i​a s de todo tipo per​m i​ti​do pela lei. Com
um ter​m i​nal de com​pu​ta​dor do​m és​ti​c o e al​guns có​di​gos, Jack con​se​gui​r a en​trar
no sis​te​m a do ar​m a​zém e, ao mes​m o tem​po, no de um de seus gran​des e ilus​tres
cli​e n​tes, en​tão si​m u​la​r a os re​gis​tros ele​trô​ni​c os de uma en​tre​ga a ser fei​ta num
enor​m e en​gra​da​do la​c ra​do. O pla​no es​ta​va dan​do cer​to: o en​gra​da​do fora en​tre​-
gue na​que​la ma​nhã e guar​da​do exa​ta​m en​te nas con​di​ç ões re​que​r i​das pe​los do​c u​-
men​tos que o acom​pa​nha​vam. Den​tro es​ta​vam Jack, Mort e Tommy. Ti​nham
cin​c o op​ç ões de sa​í​da, uma
de cada lado, o que lhes per​m i​ti​r ía abrir o re​c i​pi​e n​te ain​da que ele fos​se aco​-
mo​da​do en​tre ou​tros qua​tro. Pou​c o de​pois das onze da noi​te, sa​í​r am e sur​preen​-
de​r am os ra​pa​zes do es​c ri​tó​r io, que ja​m ais es​pe​r a​vam ver al​guém bur​lar o sis​te​-
ma de se​gu​r an​ç a.
— Po​de​m os vol​tar para o en​gra​da​do — Tommy con​ti​nuou. — Quan​do eles
en​tra​r em e não en​c on​tra​r em a gen​te, vão pen​sar que ti​ve​r am uma vi​são. Ama​-
nhã à noi​te já te​r ão es​que​c i​do tudo. En​tão sa​í​m os e aca​ba​m os o ser​vi​ç o, con​f or​-
me o pla​ne​j a​do.
— Não dá cer​to. Es​ses ca​r as não cos​tu​m am ter visões. Vão des​m on​tar o
ar​m a​zém até nos en​c on​tra​r em — de​c la​r ou Mort, ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a.
— E isso mes​m o — Jack con​c or​dou. — Já sei o que va​m os fa​zer. Em voz
bai​xa, dis​tri​buiu ra​pi​da​m en​te as ta​r e​f as. Tommy cor​r eu até o pai​nel para des​li​gar
as lu​zes do ar​m a​zém. Jack e Mort apa​nha​r am os qua​tro sa​c os de di​nhei​r o e fo​-
ram ar​r as​tan​do-os para o se​tor onde vá​r i​os ca​m i​nhões aguar​da​vam as car​gas da
ma​nhã se​guin​te. Es​ta​vam ain​da a mais de um quar​tei​r ão de dis​tân​c ia do ob​j e​ti​vo,
quan​do Tommy apa​gou as pou​c as lu​zes. Os dois pa​r a​r am, Jack acen​deu a lan​ter​-
na que sem​pre le​va​va pre​sa ao cin​to, e con​ti​nu​a ​r am an​dan​do. A lona ar​r as​ta​da
so​bre o piso pro​du​zia um ru​í​do sur​do, que eco​a ​va de modo si​nis​tro no ar​m a​zém
de​ser​to.
Com sua pró​pria lan​ter​na tam​bém ace​sa, Tommy reu​niu-se aos com​pa​nhei​-
ros; apa​nhou um dos sa​c os que Mort car​r e​ga​va e um dos de Jack. A chu​va co​m e​-
ça​va a di​m i​nuir e, por en​tre o ba​r u​lho da ven​ta​nia, Jack teve a im​pres​são de ou​vir
um car​r o fre​a r. Se​r i​a m os re​f or​ç os?
No fun​do do ar​m a​zém es​ta​vam es​ta​c i​o​na​dos qua​tro enor​m es ca​m i​nhões, de
cin​c o ei​xos e de​zoi​to pneus, cada qual vi​r a​do para uma das ram​pas de car​ga.
Jack apro​xi​m ou-se do ca​m i​nhão mais pró​xi​m o, su​biu e exa​m i​nou o pai​nel. Exa​-
ta​m en​te como pre​vi​r a. To​dos ali pa​r e​c i​a m con​f i​a r ce​ga​m en​te na se​gu​r an​ç a ele​-
trô​ni​c a, como se nin​guém, em tem​po al​gum, fos​se pen​sar em rou​bar um dos ca​-
mi​nhões. A cha​ve es​ta​va no con​ta​to, bri​lhan​do à luz da lan​ter​na.
Em se​gui​da, Jack e Mort exa​m i​na​r am os ou​tros três ve​í​c u​los,
onde en​c on​tra​r am tam​bém as res​pec​ti​vas cha​ves. Li​ga​r am os mo​to​r es e vol​-
ta​r am ao pri​m ei​r o ca​m i​nhão. Atrás do ban​c o ha​via uma rede com al​m o​f a​das,
onde os mo​to​r is​tas, re​ve​zan​do-se à di​r e​ç ão, po​di​a m dor​m ir nas vi​a ​gens mais lon​-
gas. Tommy Sand guar​da​va os sa​c os de di​nhei​r o nes​sa rede quan​do Jack e Mort
se apro​xi​m a​r am. Jack es​pe​r ou que Tommy sa​ís​se, sen​tou-se ao vo​lan​te, des​li​gou
a lan​ter​na e deu a par​ti​da. Mort aco​m o​dou-se a seu lado. Os qua​tro ca​m i​nhões
ago​r a ron​c a​vam alto, com os fa​r óis apa​ga​dos.
De lan​ter​na na mão, Tommy cor​r eu para o pai​nel que con​tro​la​va o me​c a​nis​-
mo da pri​m ei​r a por​ta. Es​c o​lheu uma das cha​ves e li​gou-a. De​pois, sem​pre gui​a ​-
do pelo fei​xe de luz, di​r i​giu-se para a se​gun​da por​ta e aci​o​nou o res​pec​ti​vo me​c a​-
nis​m o. Re​pe​tiu a ope​r a​ç ão com a ter​c ei​r a e a quar​ta por​tas, des​li​gou a lan​ter​na e
cor​r eu para o ca​m i​nhão onde Jack e Mort o es​pe​r a​vam. Len​ta​m en​te, as en​gre​na​-
gens chi​a n​do, as pe​sa​das por​tas de aço co​m e​ç a​r am a su​bir.
Lá fora, os Mor​lock ve​r i​a m as por​tas su​bi​r em, ou​vi​r i​a m o ron​c o dos mo​to​r es,
mas cada um es​ta​r ia olhan​do para, no má​xi​m o, dois bu​r a​c os ne​gros e não po​de​-
ria sa​ber por qual de​les sai​r ia o pri​m ei​r o ca​m i​nhão. Na dú​vi​da po​de​r i​a m des​c ar​-
re​gar as me​tra​lha​do​r as so​bre as qua​tro sa​í​das. Jack, no en​tan​to, es​ta​va cer​to
de que re​f le​ti​r í​a m du​r an​te al​guns se​gun​dos an​tes de op​ta​r em por uma res​pos​ta
tão vi​o​len​ta e ta​m a​nho des​per​dí​c io de mu​ni​ç ão.
Tommy su​biu no ca​m i​nhão e tran​c ou a por​ta, aper​tan​do Mort en​tre ele e
Jack.
— Como es​sas por​tas são ler​das — Mort res​m un​gou, no mo​m en​to em que
as por​tas che​ga​vam a meio ca​m i​nho do teto, mos​tran​do-lhes uma fa​tia re​tan​gu​-
lar de noi​te chu​vo​sa, es​c u​r a e fria.
— Pas​se por cima dos fi​lhos da puta. — Era ape​nas uma su​ges​tão. Tommy
ja​m ais da​r ia or​dens Jack.
Afi​ve​lan​do o cin​to de se​gu​r an​ç a, Jack re​pli​c ou:
— E me​lhor a gen​te não se ar​r is​c ar. O ca​m i​nhão pode fi​c ar pre​so no car​r o.
A por​ta con​ti​nu​a ​va su​bin​do. Mãos fir​m es no vo​lan​te, Jack per​c e​beu mo​vi​-
men​to no pá​tio. Dois ho​m ens ar​m a​dos pas​sa​r am adi​a n-
te de​les, meio cur​va​dos, des​li​zan​do no piso mo​lha​do. Pelo vis​to, ain​da não
ha​vi​a m de​c i​di​do des​per​di​ç ar a mu​ni​ç ão da “fa​m í​lia”.
A pri​m ei​r a por​ta, exa​ta​m en​te a que fi​c a​va na fren​te de Jack, já es​ta​va qua​se
aber​ta. E en​tão, de re​pen​te, sur​giu o car​r o cin​zen​to, os pneus can​tan​do no chão
es​c or​r e​ga​dio. Numa rá​pi​da ma​no​bra, o mo​to​r is​ta gi​r ou o vo​lan​te, e o car​r o blo​-
que​ou duas das ram​pas de des​c ar​ga. De seu pon​to de ob​ser​va​ç ão, Jack viu os
pneus da fren​te su​bi​r em al​guns cen​tí​m e​tros de ram​pa e a luz dos fa​r óis, jo​ga​da
para cima, ilu​m i​nar a ca​bi​ne do ca​m i​nhão que ali ron​c a​va. Até um cego ve​r ia
que o ca​m i​nhão es​ta​va sem mo​to​r is​ta. A pri​m ei​r a por​ta con​ti​nu​a ​va su​bin​do.
— Abai​xem-se! — Jack gri​tou.
Mort e Tommy obe​de​c e​r am como pu​de​r am, e Jack sol​tou o freio de mão.
Com um pou​c o de sor​te con​se​gui​r i​a m pas​sar... Fo​r am três rá​pi​dos ges​tos: en​gre​-
nar a pri​m ei​r a mar​c ha, sol​tar a em-bre​a ​gem e pi​sar fun​do no ace​le​r a​dor.
No mo​m en​to em que só um dos ca​m i​nhões se mo​vi​m en​tou, os Mor​lock en​-
ten​de​r am que ti​nham uma úni​c a sa​í​da com a qual se pre​o​c u​par, e so​bre ela con​-
cen​tra​r am o fogo. A noi​te en​c heu-se do seco ru​í​do si​nis​tro de uma sa​r ai​va​da de
ba​las. Jack sen​tiu uma de​las pas​sar zu​nin​do jun​to ao vi​dro de sua ja​ne​la, en​c o​-
lheu-se sem que​r er, po​r ém man​te​ve o pé fir​m e no ace​le​r a​dor. Pas​sou pela por​-
ta, des​c eu a ram​pa. Lá em​bai​xo, ou​tro car​r o es​ta​va es​ta​c i​o​na​do, blo​que​a n​do a
pas​sa​gem. Os re​f or​ç os ha​vi​a m che​ga​do.
Jack op​tou pelo ace​le​r a​dor em vez do freio e sor​r iu, sa​tis​f ei​to, ven​do o hor​r or
es​tam​par-se no ros​to dos ocu​pan​tes do au​to​m ó​vel quan​do per​c e​be​r am que o ca​-
mi​nhão avan​ç a​va. A gra​de do ca​m i​nhão acer​tou a la​te​r al do car​r o, vi​r ou-o de
lado e ain​da o ar​r as​tou por mais de dez me​tros. O cho​que fez Jack sal​tar do ban​-
co, mas o cin​to de​vol​veu-o em se​gu​r an​ç a ao as​sen​to. Por bai​xo do pai​nel, Mort e
Tommy gri​ta​vam de dor, jo​ga​dos de um lado para ou​tro como la​tas ve​lhas.
Para li​vrar-se do au​to​m ó​vel, Jack des​c e​r a a ram​pa em alta ve​lo​c i​da​de. Ago​-
ra pre​c i​sa​va de toda a for​ç a que sa​bia ter — e de mui​ta da que se​quer des​c on​f i​a ​-
va ter — para con​tro​lar o ca​m i​nhão,
im​pe​din​do-o de gui​nar para a di​r ei​ta e co​li​dir de fren​te com a pa​r e​de do ar​-
ma​zém. E con​se​guiu. En​tre sua ca​bi​ne e o ca​m i​nho que le​va​va à sa​í​da do pá​tio
res​ta​va ape​nas um car​r o azul-es​c u​r o ocu​pa​do por três ho​m ens. Dois de​les abri​-
ram fogo.
Um fez mira abai​xo da li​nha in​di​c a​da pe​los ma​nu​a is e acer​tou a gra​de, es​pa​-
lhan​do fa​ís​c as para to​dos os la​dos. O ou​tro er​r ou por ex​c es​so, mi​r an​do alto de​-
mais: acer​tou a bu​zi​na mon​ta​da aci​m a da ca​bi​ne e si​len​c i​ou-a. Jack viu-a pen​der
ao lado da ja​ne​la e fi​c ar ba​lan​ç an​do, pre​sa nos fios.
O ca​m i​nhão já es​ta​va mui​to pró​xi​m o do car​r o. Os fi​é is ser​vi​do​r es da “fa​m í​-
lia” adi​vi​nha​r am o pe​r i​go e fu​gi​r am como co​e ​lhos as​sus​ta​dos, um para cada
lado. Jack pas​sou por cima do úl​ti​m o obs​tá​c u​lo, re​du​zin​do-o a um mon​te de fer​-
ra​gens im​pres​tá​veis. Se​guiu em fren​te, pas​sou pelo lado do ar​m a​zém, pelo ar​m a​-
zém se​guin​te, por ou​tro ar​m a​zém, sem​pre ace​le​r an​do.
Mort e Tommy sa​í​r am do es​c on​de​r i​j o e sen​ta​r am-se, ge​m en​do e pra​gue​j an​-
do. Os dois es​ta​vam ma​c hu​c a​dos. Mort ti​nha san​gue no na​r iz e Tommy ha​via
cor​ta​do o su​per​c í​lio di​r ei​to. Nada que pa​r e​c es​se gra​ve.
— Por que será que tudo sem​pre aca​ba dan​do er​r a​do? — Mort sus​pi​r ou, a
voz ain​da mais ca​ver​no​sa por cau​sa do na​r iz ma​c hu​c a​do.
— Nada deu er​r a​do — Jack li​gou os lim​pa​do​r es de pára-bri​sa. — O que
acon​te​c eu foi que ga​nha​m os uma dose ex​tra de emo​ç ão.
— Odeio emo​ç ão. — Mort le​vou um len​ç o ao fe​r i​m en​to.
Pelo re​tro​vi​sor, Jack viu que o car​r o cin​zen​to se pre​pa​r a​va para
se​gui-los. Os ou​tros dois au​to​m ó​veis es​ta​vam fora de com​ba​te, mas aque​le
ain​da po​dia cri​a r-lhe sé​r i​os pro​ble​m as. O ca​m i​nhão era len​to de​m ais para uma
pis​ta pla​na. Além dis​so, a chu​va dei​xa​r a a es​tra​da mui​to es​c or​r e​ga​dia, e ele não
ti​nha ex​pe​r i​ê n​c ia su​f i​c i​e n​te para di​r i​gir um mons​tro como aque​le, à noi​te, em
alta ve​lo​c i​da​de. Ha​via tam​bém um ru​í​do es​tra​nho no mo​tor, al​gu​m a coi​sa que se
sol​ta​r a den​tro do capô de​pois da co​li​são com o car​r o azul-es​c u​r o. Se o ca​m i​nhão
pa​r as​se de re​pen​te, em ple​na es​tra​da, os três es​ta​r i​a m mor​tos e os Mor​lock re​c u​-
pe​r a​r i​a m o di​nhei​r o.
Tal​vez fos​sem pro​m o​vi​dos.
Por ali ha​via vá​r i​a s fá​bri​c as, ar​m a​zéns, gran​des ofi​c i​nas, mas a pri​m ei​r a ci​-
da​de fi​c a​va a qua​se dois qui​lô​m e​tros de dis​tân​c ia. Mui​tas fá​bri​c as es​ta​vam fe​-
cha​das àque​la hora, em to​tal es​c u​r i​dão, po​r ém al​gu​m as tra​ba​lha​vam inin​ter​r up​-
ta​m en​te, dia e noi​te. Pelo es​pe​lho re​tro​vi​sor, cada vez mais per​to, vi​nha o car​r o
cin​zen​to. Jack es​c o​lheu uma pe​que​na en​tra​da à es​quer​da, onde viu uma pla​c a ilu​-
mi​na​da: Fá​bri​c a Hardw​r ight — Em​ba​la​gens de es​pu​m a.
— Mer​da! Para onde você está indo? — Tommy gri​tou.
— Não te​m os mo​tor para es​c a​par de​les.
— Mas não po​de​m os pa​r ar para ne​go​c i​a r a re​ti​r a​da, por​r a! Eles têm me​-
tra​lha​do​r as, já es​que​c eu? — Mort ge​m eu por trás do len​ç o en​sangüen​ta​do.
— Dei​xe co​m i​go. — Jack era o ho​m em das idéi​a s.
A fá​bri​c a Hardw​r ight não es​ta​va tra​ba​lhan​do. Mas, atrás do gran​de pré​dio às
es​c u​r as, numa ver​da​dei​r a cla​r ei​r a ilu​m i​na​da por lâm​pa​das de va​por de mer​c ú​-
rio, viam-se de​ze​nas de ca​m i​nhões es​ta​c i​o​na​dos. Jack pas​sou pelo edi​f í​c io cen​tral
da fá​bri​c a, con​tor​nou o es​ta​c i​o​na​m en​to e pre​pa​r ou-se para uma ma​no​bra brus​-
ca.
— Se​gu​r em-se! — gri​tou.
Mort e Tommy fir​m a​r am os pés no chão, co​la​r am as cos​tas ao ban​c o e es​-
pe​r a​r am o cho​que.
O gi​gan​tes​c o ca​m i​nhão ge​m eu em seus cin​c o ei​xos e de​zoi​to pneus, com​ple​-
tou uma cur​va mui​to fe​c ha​da por trás da fá​bri​c a e pa​r ou brus​c a​m en​te, a al​guns
pas​sos do por​tão de sa​í​da do es​ta​c i​o​na​m en​to. De lon​ge, po​di​a m ver a es​tra​da por
onde ha​vi​a m che​ga​do. Em se​gun​dos, apa​r e​c e​r am os fa​r óis do car​r o cin​zen​to, pe​-
que​nas ro​de​las ama​r e​la​das que ra​pi​da​m en​te cres​c e​r am na es​c u​r i​dão até trans​-
for​m a​r em-se em po​de​r o​sos fei​xes de luz.
Adi​a n​te do ca​m i​nhão, acha​va-se o por​tão do es​ta​c i​o​na​m en​to, que, com cer​-
te​za, ja​m ais era fe​c ha​do. Jack co​m e​ç ou a con​ta​gem re​gres​si​va. De re​pen​te, a
mar​c ha en​gre​na​da, pi​sou fun​do no ace​le​r a​dor. O ca​m i​nhão sal​tou para a fren​te.
Era, po​r ém, um ve​í​c u​lo pe​sa​do, de par​ti​da mais len​ta do que Jack cal​c u​la​r a;
além dis​so, o car​r o cin​zen​to cor​r ia mais do que ele su​pu​nha. De qual​quer
modo, em​bo​r a não con​se​guis​se apa​nhá-lo à al​tu​r a do trin​c o da por​ta di​r ei​ta,
atin​giu-o em ple​na car​r o​c e​r ia. Foi o su​f i​c i​e n​te para fazê-lo gi​r ar em es​pi​r al,
com​ple​tan​do uma vol​ta e meia an​tes de es​pa​ti​f ar-se, de fren​te, con​tra o muro do
es​ta​c i​o​na​m en​to. Como não era o caso de ve​r i​f i​c ar se al​gum de seus ocu​pan​tes
pre​c i​sa​va de so​c or​r os mé​di​c os, Jack ma​no​brou o ca​m i​nhão e re​to​m ou a es​tra​da.
Pou​c o adi​a n​te avis​ta​r am as lu​zes da ci​da​de.
Po​di​a m, en​f im, re​to​m ar o pla​no ini​c i​a l. A pri​m ei​r a pa​r a​da pre​vis​ta, de​pois
de sair do ar​m a​zém, era um pos​to de ga​so​li​na aban​do​na​do que os três já ha​vi​a m
exa​m i​na​do. Jack dei​xou para trás as bom​bas de ga​so​li​na e es​ta​c i​o​nou ao lado das
ru​í​nas do que po-de​r ia ter sido um res​tau​r an​te. No ins​tan​te em que pu​xou o
freio 4e mão, Tommy sal​tou da ca​bi​ne e mer​gu​lhou na es​c u​r i​dão.
Es​ta​vam num bair​r o de clas​se mé​dia bai​xa, de ruas es​trei​tas e ca​sas es​c u​r as.
Na se​gun​da-fei​r a an​te​r i​or ha​vi​a m dei​xa​do por ali um pe​que​no car​r o de la​ta​r ia
mal​tra​ta​da e mo​tor per​f ei​to. Era o trans​por​te que os le​va​r ia de vol​ta a Ma​nhat​tan,
onde po​de​r i​a m fa​c il​m en​te es​que​c ê-lo para sem​pre em qual​quer es​qui​na. A pou​-
cos me​tros do ar​m a​zém da Má​f ia, es​pe​r a​va-os um car​r o mai​or, sem cha​pa e
sem nú​m e​r o de mo​tor ou chas​si. Se os Mor​lock não ti​ves​sem apa​r e​c i​do, os três
te​r i​a m an​da​do até o au​to​m ó​vel, que os le​va​r ia ao pos​to de ga​so​li​na, onde o tro​c a​-
ri​a m pelo car​r o me​nor.
Jack e Mort des​c ar​r e​ga​r am os sa​c os de di​nhei​r o, en​c os​tan​do-os à pa​r e​de do
pos​to. Mort vol​tou à ca​bi​ne do ca​m i​nhão e lim​pou cui​da​do​sa​m en​te o vo​lan​te e to​-
das as par​tes onde pu​des​sem ter dei​xa​do im​pressões di​gi​tais. Jack per​m a​ne​c eu ao
lado dos sa​c os, vi​gi​lan​te. Nin​guém es​tra​nha​r ia a pre​sen​ç a de um ca​m i​nhão aban​-
do​na​do num ve​lho pos​to de ga​so​li​na. Era tar​de e não ha​via car​r os pe​las ruas,
mas se a po​lí​c ia pas​sas​se por ali em sua ron​da ha​bi​tu​a l...
Tommy logo apa​r e​c eu com o car​r o que ma​no​brou e es​ta​c i​o​nou en​tre as
duas bom​bas. Mort fe​c hou o ca​m i​nhão, apa​nhou dois sa​c os e foi ar​r as​tan​do-os
pelo chão. Jack se​guia-o de per​to, mas, quan​do ter​m i​nou de co​lo​c ar os sa​c os no
ban​c o de trás, Mort já es​ta​va aco​m o​da​do, lim​pan​do o na​r iz. Jack sen​tou-se ao
lado de Tommy sor​r in​do para si mes​m o.
— Pelo amor de Deus, di​r i​j a com cui​da​do — dis​se.
— Va​m os ser con​de​c o​r a​dos pela po​lí​c ia ro​do​vi​á ​r ia — pro​m e​teu Tommy.
Os pneus der​r a​pa​r am ao sa​í​r em da lama que cer​c a​va as bom​bas e derr​r a​pa​-
ram no​va​m en​te ao to​c ar o as​f al​to da rua, mas Tommy con​se​guiu con​tro​lar o
car​r o.
— Por que é que tudo, sem​pre, aca​ba dan​do er​r a​do? — Mort sus​pi​r ou.
— Nada deu er​r a​do — dis​se Jack.
O car​r o des​li​zou no as​f al​to e qua​se se cho​c ou com um dos ve​í​c u​los es​ta​c i​o​-
na​dos jun​to ao meio-fio. Foi o úl​ti​m o in​c i​den​te. Pou​c o adi​a n​te che​ga​r am ao en​-
tron​c a​m en​to de onde to​m a​r am a ro​do​via rumo à ci​da​de de Nova York.
— Por que é que esse car​r o der​r a​pa tan​to? — Mort per​gun​tou de re​pen​te.
— Vá mais de​va​gar.
— Era por cau​sa da lama — ex​pli​c ou Tommy. — Mas não se pre​o​c u​pe.
Da​qui para fren​te é só as​f al​to.
— Es​pe​r o que não acon​te​ç a mais nada. Que mer​da de noi​te!
— Mer​da de noi​te?! — Jack riu. — Mort! Você ja​m ais será ad​m i​ti​do no
Clu​be dos Oti​m is​tas Anô​ni​m os... Lin​da noi​te! A me​lhor noi​te de nos​sas vi​das! Es​-
ta​m os ri​c os, ra​pa​zes, ri​c os! Es​ta​m os sen​ta​dos em cima de uma mon​ta​nha de di​-
nhei​r o!
Mort ar​que​ou as so​bran​c e​lhas por bai​xo do cha​péu de fel​tro que ain​da pin​ga​-
va água. Pa​r e​c ia sur​pre​so:
— Bem... Olhan​do por esse lado... Até que me​lho​r a um pou​c o.
Tommy Sung deu uma gar​ga​lha​da. Jack tam​bém riu alto. Mort
ape​nas sor​r iu, co​m en​tan​do:
— E tudo li​vre de im​pos​tos.
De re​pen​te, o mun​do pa​r e​c ia fan​tás​ti​c o, ma​r a​vi​lho​so, en​gra​ç a-dís​si​m o.
Tommy di​m i​nuiu a ve​lo​c i​da​de, pos​tou-se atrás de uma am​bu​lân​c ia fee​r i​c a​m en​te
ilu​m i​na​da e pas​sou em ab​so​lu​ta se​gu​r an​ç a pelo pos​to de po​lí​c ia. A fuga do ar​m a​-
zém já fa​zia par​te do fol​c lo​r e de acon​te​c i​m en​tos en​gra​ç a​dos que lhes en​c hi​a m a
vida.
Mais tar​de, quan​do as ri​sa​das ce​de​r am lu​gar a olha​r es cal​m os e sor​r i​sos de
fran​c a ad​m i​r a​ç ão, Tommy de​c la​r ou:
— Eu que​r ia di​zer que... você foi óti​m o, Jack. A idéia de usar o com​pu​ta​dor
para fa​zer aque​las no​tas de en​tre​ga... o en-gra​da​do... Puxa! E aque​le apa​r e​lho
que você in​ven​tou para abrir o co​f re sem pre​c i​sar ex​plo​dir... Que belo tra​ba​lho!
Você é dos bons!
— E ex​c e​len​te na or​ga​ni​za​ç ão — acres​c en​tou Mort. — Mas é ain​da me​-
lhor para en​f ren​tar cri​ses. Você pen​sa rá​pi​do. Vou lhe di​zer uma coi​sa... se você
usas​se tudo que sabe para ser um ho​m em de bem, para vi​ver do lado cer​to da
vida, só Deus sabe o que po​de​r ia con​se​guir!
— O lado cer​to da vida?! Exis​te lado mais cer​to do que o lado que tra​ba​lha
para fi​c ar rico? — Jack vi​r ou-se para trás.
— Você sabe do que es​tou fa​lan​do.
— Não sou he​r ói nem es​tou in​te​r es​sa​do em vi​ver “do lado cer​to”, en​tre os
“ho​m ens ho​nes​tos”. São to​dos hi​pó​c ri​tas. Fa​lam em ho​nes​ti​da​de, ver​da​de, jus​ti​-
ça, cons​c i​ê n​c ia so​c i​a l, mas vi​vem como se ti​ves​sem a alma em lei​lão. Não ad​-
mi​tem isso, mas são as​sim mes​m o, e é por isso que que​r o dis​tân​c ia de​les. Eu as​-
su​m o... para mim, só o di​nhei​r o con​ta. Que​r o ter di​nhei​r o, mui​to di​nhei​r o, e os
ho​nes​tos que se fo​dam. — A me​di​da que fa​la​va, Jack per​c e​bia que sua voz mu​-
da​va, per​dia a ale​gria, tor​na​va-se cada vez mais fria e cheia de res​sen​ti​m en​tos.
— O “lado cer​to”, “as boas cau​sas”... — Olhou atra​vés da chu​va, ven​do os lim​-
pa​do​r es ba​te​r em ca​den​c i​a ​dos, de um lado para o ou​tro. — Você pas​sa a vida lu​-
tan​do pe​las “boas cau​sas”, e vem um des​ses otá​r i​os ho​nes​tos e aca​ba com você.
Eles que se fo​dam!
— Fa​lei por fa​lar — Mort ar​r e​ga​lou os olhos, sur​pre​so.
Jack mer​gu​lhou nas lem​bran​ç as do pas​sa​do. Amar​gas lem​bran​ç as. Dois ou
três qui​lô​m e​tros adi​a n​te, dis​se, a voz ten​sa e bai​xa:
— Não sou he​r ói, dro​ga!
Em dias que ain​da es​ta​vam por vir, te​r ia opor​tu​ni​da​de de lem​brar es​sas pa​la​-
vras. E se sur​preen​de​r ia mui​to ao des​c o​brir o quan​to es​ta​va er​r a​do.
Era o dia 4 de De​zem​bro, quar​ta-fei​r a, à uma e doze da ma​dru​ga​da.

3. CHI​CA​G O, IL​LI​NOIS

Às oito e vin​te da ma​nhã de quin​ta-fei​r a, cin​c o de de​zem​bro, o pa​dre Ste​f an


Wy ​c a​zik já ce​le​bra​r a mis​sa, to​m a​r a o des​j e​j um e es​ta​va sen​ta​do em seu es​c ri​tó​-
rio com uma úl​ti​m a xí​c a​r a de café. Dan​do as cos​tas para a mesa, olhou pela
gran​de ja​ne​la fran​c e​sa que se abria para o pá​tio onde al​gu​m as ár​vo​r es er​gui​a m
para o céu os ga​lhos es​que​lé​ti​c os, ene​gre​c i​dos pelo frio. Num ce​ná​r io as​sim era
im​pos​sí​vel es​que​c er os pro​ble​m as da pa​r ó​quia.
O pa​dre Wy ​c a​zik cos​tu​m a​va re​ser​var aque​le mo​m en​to da ma​nha para si
pró​prio; há​bi​to de anos, que pre​za​va mui​to. En​tre​tan​to, por mais que se es​f or​ç as​-
se, não con​se​guia ti​r ar o pa​dre ' Bren​dan Cro​nin da ca​be​ç a. O fal​so cura. O pro​-
fa​na​dor do cá​li​c e sa​gra​do. A de​lí​c ia das me​xe​r i​quei​r as da pa​r ó​quia. O ba​ta​lha​-
dor in​c an​sá​vel. O de​f en​sor dos po​bres, dos de​ses​pe​r a​dos e dos des​va-li​dos. Não
era pos​sí​vel... Não fa​zia sen​ti​do!
Pá​r o​c o da Igre​j a de San​ta Ber​na​det​te fa​zia de​zoi​to anos, o pa​dre Wy ​c a​zik
em mo​m en​to al​gum de sua vida pas​sa​r a pelo in​f er​no da dú​vi​da. Ago​r a, à sim​ples
idéia de du​vi​dar, es​ta​va per​ple​xo. Pou​c o de​pois de or​de​na​do, trin​ta e dois anos
an​tes, fora en​vi​a ​do para uma pe​que​na pa​r ó​quia na área ru​r al do Es​ta​do de Il​li​-
nois, com a mis​são de au​xi​li​a r o ve​lho pa​dre Dan Tu​leen.
Com mais de se​ten​ta anos, o pa​dre Tu​leen era o ho​m em mais doce, sen​ti​-
men​tal e en​c an​ta​dor que Ste​f an Wy ​c a​zik ja​m ais co​nhe​c e​r a. So​f ren​do de ar​tri​te e
en​xer​gan​do jnal, cer​ta​m en​te se​r ia obri​ga​do a apo​sen​tar-se, não fos​se ain​da o
ver​da​dei​r o pas​tor de seu re​ba​nho. Para não afas​tá-lo da pa​r ó​quia de São To​m ás,
onde se en​c on​tra​va por qua​tro dé​c a​das, o car​de​a l de​c i​diu pro​c u​r ar um sa​c er​do​te
jo​vem que se en​c ar​r e​gas​se das ta​r e​f as mais can​sa​ti​vas, e sua es​c o​lha re​c aiu so​-
bre Ste​f an Wy ​c a​zik. Vin​te e qua​tro ho​r as de​pois de che​gar a São To​m ás, Ste​f an
deu-se con​ta da gi​gan​tes​c a mis​são que o es​pe​r a​va, mas não se in​ti​m i​dou. Pou​c os
ou​tros te​r i​a m con​se​gui​do sair-se bem de em​prei​ta​da tão sé​r ia, mas ele ja​-
mais du​vi​dou, nem por um ins​tan​te, de que con​se​gui​r ia ar​c ar com a res​pon​sa​bi​li​-
da​de que lhe jo​ga​vam so​bre os om​bros.
Quan​do o pa​dre Tu​leen mor​r eu em paz, três anos de​pois, a cú​r ia man​dou ou​-
tro sa​c er​do​te para São To​m ás e de​sig​nou a Ste​f an Wy ​c a​zik para uma pa​r ó​quia
nos su​búr​bi​os de Chi​c a​go. O vi​gá​r io des​sa pa​r ó​quia, pa​dre Or​gill, co​m e​ç a​va a ter
pro​ble​m as de al​c o​o​lis​m o, po​r ém, sen​do um ho​m em for​te e bom, me​r e​c ia re​c e​-
ber aju​da para en​c on​trar a sal​va​ç ão. A in​c um​bên​c ia do pa​dre Wy ​c a​zik era exa​-
ta​m en​te essa: aju​da o co​le​ga, am​pa​r á-lo, ofe​r e​c er-lhe um om​bro ami​go, guiá-lo
até que se re​c on​c i​li​a s​se con​si​go mes​m o. Sem nun​c a du​vi​dar de nada, Ste​f an fez
exa​ta​m en​te o que lhe exi​gi​a m.
Nos três anos se​guin​tes ser​viu em duas ou​tras pa​r ó​qui​a s, sem​pre en​c ar​r e​ga​-
do de en​c a​m i​nhar so​lu​ç ões e re​sol​ver pro​ble​m as que pa​r e​c e​r í​a m in​so​lú​veis ao
co​m um dos mor​tais. A alta hi​e ​r ar​quia da Igre​j a co​m e​ç a​va a men​c i​o​ná-lo “o in​-
fa​lí​vel bra​ç o di​r ei​to do car​de​a l”.
Numa de suas missões im​pos​sí​veis, foi man​da​do para o Vi​e t​nã, a fim de tra​-
ba​lhar por seis lon​gos e ter​r í​veis anos ao lado do pa​dre Bill Na​der no Or​f a​na​to
Nos​sa Se​nho​r a das Gra​ç as, em Sai-gon. O or​f a​na​to fora cri​a ​do pela Ar​qui​di​o​c e​-
se de Chi​c a​go e era um dos pro​j e​tos mais im​por​tan​tes que o car​de​a l co​or​de​na​va.
Bill Na​der ti​nha ci​c a​tri​zes de ti​r os, uma no om​bro es​quer​do, ou​tra no cal​c a​nhar
di​r ei​to. Três con​f ra​des seus — dois vi​e t​na​m i​tas e um ame​r i​c a​no — ha​vi​a m su​-
cum​bi​do em ata​ques dos vi​e t​c ongs.
Nem em meio ao hor​r or da guer​r a, em mo​m en​to al​gum o pa​dre Wy ​c a​zik
du​vi​dou de que so​bre​vi​ve​r ia para con​ti​nu​a r a cum​prir a mis​são que Deus lhe re​-
ser​va​r a. Quan​do as for​ç as ini​m i​gas to​m a​r am Sai​gon, Bill, Ste​f an e tre​ze frei​r as
con​se​gui​r am es​c a​par do país le​van​do con​si​go cen​to e vin​te e seis cri​a n​ç as. Nos
me​ses se​guin​tes, mor​r e​r am cen​te​nas de mi​lha​r es de pes​so​a s; ain​da as​sim, Ste​f an
Wy ​c a​zik nun​c a du​vi​dou da im​por​tân​c ia de seu ges​to. Ha​via des​c o​ber​to que o de​-
ses​pe​r o, às ve​zes, pode ser o ver​da​dei​r o ali​m en​to da fé.
De vol​ta aos Es​ta​dos Uni​dos, ofe​r e​c e​r am-lhe uma pro​m o​ç ão a mon​se​nhor
como prê​m io pe​los ser​vi​ç os pres​ta​dos à Igre​j a.
Ele agra​de​c eu hu​m il​de​m en​te e re​c u​sou a re​c om​pen​sa: que​r ia ape​nas uma
pa​r ó​quia que fos​se só sua. E lá es​ta​va.
Quan​do re​c e​beu a pa​r ó​quia de San​ta Ber​na​det​te, des​c o​briu que pre​c i​sa​r ia
sal​dar uma dí​vi​da de mais de cem mil dó​la​r es, re​f or​m ar a igre​j a, cujo te​lha​do
ame​a ​ç a​va ruir, cons​truir uma es​c o​la e atrair mai​or nú​m e​r o de fi​é is. Um de​sa​f io
ta​lha​do para seu tem​pe​r a​m en​to. Em qua​tro anos de tra​ba​lho in​c an​sá​vel, fez a as​-
sis​tên​c ia às mis​sas cres​c er em mais de qua​r en​ta por cen​to. Em cin​c o, re​c ons​truiu
a casa pa​r o​qui​a l e re​f or​m ou a igre​j a. Em sete, com​prou o ter​r e​no para a es​c o​la
pa​r o​qui​a l e deu iní​c io às obras.
Uma se​m a​na an​tes de mor​r er, o car​de​a l re​c om​pen​sou-o pe​los re​le​van​tes
ser​vi​ç os pres​ta​dos à San​ta Ma​dre Igre​j a, con​f e​r in​do-lhe o tí​tu​lo de pá​r o​c o per​pé​-
tuo da igre​j a de San​ta Ber​nar​det​te.
O pa​dre Wy ​c a​zik era, pois, um ho​m em de fé mo​no​lí​ti​c a, da​que​les que, em
mo​m en​to al​gum, du​vi​dam de que a fé re​m o​ve mon​ta​nhas. Por isso não con​se​-
guia en​ten​der como, de re​pen​te, em ple​na mis​sa de do​m in​go, seu con​f ra​de Bren​-
dan Cro​nin per​de​r a a fé, e per​de​r a-a tão com​ple​ta​m en​te que, num ata​que de de​-
ses​pe​r o e fú​r ia, che​ga​r a a jo​gar no chão o cá​li​c e sa​gra​do. Na fren​te dos fi​é is. Fe​-
liz​m en​te ha​via pou​c os fi​é is. Se aque​le aces​so ti​ves​se ocor​r i​do na mis​sa das onze,
o escân​da​lo te​r ia sido mil ve​zes mai​or.
Quan​do o pa​dre Bren​dan Cro​nin che​ga​r a à pa​r ó​quia, fa​zia mais de um ano e
meio, Ste​f an es​ta​va de​c i​di​do a não gos​tar dele. Em pri​m ei​r o lu​gar por​que ele es​-
tu​da​r a em Roma, na mais fa​m o​sa ins​ti​tui​ç ão de en​si​no re​li​gi​o​so do mun​do cris​-
tão. Cla​r o que era uma hon​r a ser con​vi​da​do para es​tu​dar com mes​tres da Igre​j a,
cla​r o que era de lá que saía a nata dos sa​c er​do​tes, os mais cul​tos, os mais ilus​tra​-
dos... En​tre​tan​to, na es​pan​to​sa mai​o​r ia dos ca​sos, os sa​c er​do​tes mais cul​tos e ilus​-
tra​dos não pas​sa​vam de afe​ta​dos mo​le​c o-tes de na​r iz em​pi​na​do, eram mui​to me​-
nos sá​bi​os do que se ima​gi​na​vam, e tre​m i​a m de hor​r or di​a n​te da pos​si​bi​li​da​de de
su​j ar as san​tas mãos com o bar​r o mal​c hei​r o​so de que é fei​ta a hu​m a​ni​da​de. A
idéia de en​si​nar o ca​te​c is​m o às cri​a n​ç as, por exem​plo, pa​r e​c ia-lhes in​dig​na de
sua alta sa​pi​ê n​c ia. Quan​to a vi​si​tar prisões ou hos​pi​tais, nem fa​lar!
Além de ter es​tu​da​do em Roma, o pa​dre Cro​nin era gor​do, ti​nha a cara mui​-
to re​don​da e os olhos ver​des su​a ​ves de​m ais. Tudo nele pa​r e​c ia de​nun​c i​a r uma
alma pe​gui​ç o​sa e cor​r up​ta.
O pa​dre Wy ​c a​zik vi​nha de uma fa​m í​lia de po​lo​ne​ses al​tos e os​su​dos na qual
ja​m ais nas​c e​r a ou nas​c e​r ia ne​nhum gor​do. Des​c en​den​tes de mi​nei​r os que emi​-
gra​r am para a Amé​r i​c a na pas​sa​gem do sé​c u​lo, ha​bi​tu​a ​dos ao frio e ao es​f or​ç o
fí​si​c o, seus an​c es​trais ti​ve​r am fi​lhos al​tos e ma​gros, que ali​m en​ta​r am com tra​ba​-
lho ho​nes​to e pe​sa​do, sem lhes dar tem​po para en​gor​dar. Des​de me​ni​no, o pa​dre
Wy ​c a​zik acre​di​ta​va que todo ho​m em ho​nes​to e con​f i​á ​vel era ne​c es​sa​r i​a ​m en​te
alto, for​te, ma​gro, do​ta​do de os​sos lon​gos e re​sis​ten​tes.
Para sua gran​de sur​pre​sa, po​r ém Bren​dan Cro​nin re​ve​lou-se um tra​ba​lha​dor
in​f a​ti​gá​vel e de​di​c a​do. Não ti​nha o na​r iz em​pi​na​do, nem se pa​vo​ne​a ​va dos co​-
nhe​c i​m en​tos de dou​tri​na ad​qui​r i​dos em Roma. Era agra​dá​vel, di​ver​ti​do, con​ta​va
pi​a ​das, ria com os pre​sos que vi​si​ta​va e ti​nha in​f i​ni​ta pa​c i​ê n​c ia com os pe​que​ni​-
nos, que as mães ar​r as​ta​vam para as au​las de ca​te​c is​m o. Em de​zoi​to anos, o pa​-
dre Wy ​c a​zik ja​m ais ti​ve​r a a seu lado um cura como ele.
Por tudo isso, pa​r e​c ia-lhe im​pos​sí​vel en​ten​der a cri​se na mis​sa de do​m in​go.
Con​tu​do, mes​m o sem en​ten​der, co​m e​ç a​va a pres​sen​tir que ali es​ta​va ou​tro dos
gran​des de​sa​f i​os que Deus lhe man​da​va re​gu​lar​m en​te: re​c on​du​zir Bren​dan Cro​-
nin ao re​ba​nho. No iní​c io de sua vida ecle​si​á s​ti​c a fora in​c um​bi​do de aju​dar um
cura al​c o​ó​la​tra e ven​c e​r a o de​m ô​nio. Ago​r a, tan​tos anos de​pois, o des​ti​no en​tre​-
ga​va-lhe ou​tra ove​lha des​gar​r a​da, que lhe re​c or​da​va os dias da ju​ven​tu​de, aque​-
cia-lhe o san​gue nas vei​a s, en​c hia-o de en​tu​si​a s​m o e re​no​va​va-lhe a fé.
Al​guém ba​teu à por​ta. O pa​dre Wy ​c a​zik le​van​tou os olhos para o belo re​ló​gio
dou​r a​do, pre​sen​te de um pa​r o​qui​a ​no, úni​c o ob​j e​to re​quin​ta​do que ad​m i​tia na so​-
bri​e ​da​de de seu es​c ri​tó​r io. Eram exa​ta​m en​te oito e meia da ma​nhã.
— En​tre — dis​se, vi​r an​do a ca​dei​r a de fren​te para a mesa.
O pa​dre Bren​dan Cro​nin ain​da es​ta​va pá​li​do, com olhei​r as, como Ste​f an o
vira no do​m in​go, na se​gun​da-fei​r a, na ter​ç a e na quar​ta,
quan​do o en​c on​tra​r a vá​r i​a s ve​zes para dis​c u​tir as pos​sí​veis cau​sas de tão re​-
pen​ti​na cri​se de fé e ten​tar en​c on​trar um modo de re​c on​c i​liá-lo com Deus. Es​ta​-
va tão pá​li​do que as sar​das pa​r e​c i​a m bri​lhar em seu ros​to,
— Sen​te-se. Acei​ta um café?
— Não, obri​ga​do. — Bren​dan pas​sou pelo sofá, ig​no​r ou a pol​tro​na e foi en​-
cos​tar-se ao ba​ten​te da ja​ne​la.
O ve​lho pá​r o​c o pen​sou em per​gun​tar-lhe se co​m e​r a bem ou se, como an​tes,
li​m i​ta​r a-se a en​go​lir, meio à for​ç a, um pe​da​ç o de tor​r a​da e uma xí​c a​r a de café
amar​go. De​c i​diu-se, no en​tan​to, por ou​tro tipo de abor​da​gem:
— Você leu os tex​tos que su​ge​r i?
--- Li.
O pa​dre Wy ​c a​zik dis​pen​sa​r a-o das ta​r e​f as ha​bi​tu​a is e su​ge​r i​r a que se de​di​-
cas​se à lei​tu​r a de al​guns li​vros e en​sai​os que a par​tir de um pon​to de vis​ta in​te​lec​-
tu​a l, dis​c u​ti​a m a exis​tên​c ia de Deus e abor​da​vam a lou​c u​r a do ate​ís​m o.
— E cer​ta​m en​te re​f le​tiu so​bre o que leu — co​m en​tou, re​c os​tan​do-se na
ca​dei​r a gi​r a​tó​r ia. — En​c on​trou al​gu​m a coi​sa que o... aju​das​se? — Com um sus​-
pi​r o, Bren​dan ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. Nada en​c on​tra​r a.
— Tem re​za​do pe​din​do que Deus o ilu​m i​ne.
— Sem​pre. Mas con​ti​nuo no es​c u​r o.
— E con​ti​nua a bus​c ar as ra​í​zes des​sa dú​vi​da.
— Não pa​r e​c e ha​ver raiz.
Era qua​se in​su​por​tá​vel a ex​pres​são de de​sâ​ni​m o es​tam​pa​da no ros​to de
Bren​dan. Ha​bi​tu​a l​m en​te ale​gre e des​c on​tra​í​do, des​de a mis​sa de do​m in​go o jo​-
vem cura mos​tra​va-se cada vez mais ca​la​do, mer​gu​lha​do em si mes​m o, alhei​r o
e dis​tan​te. Fa​la​va pou​c o, de​va​gar, usan​do fra​ses cur​tas e se​c as.
— Cla​r o que há ra​í​zes na dú​vi​da que o ator​m en​ta — in​sis​tiu o pa​dre Wy ​c a​-
zik. — Deve ha​ver al​gu​m a coi​sa, uma se​m en​te, um co​m e​ç o.
— E só a dú​vi​da — Bren​dan res​pon​deu em voz qua​se inau​dí​vel. — Está
aqui. Pa​r e​c e que sem​pre es​te​ve aqui.
— Mas você sabe que a dú​vi​da não es​ta​va a/. Você ti​nha fé! En​tão isso tem
um co​m e​ç o. Você dis​se que co​m e​ç ou em agos​to. Como foi? Quan​do? Deve ter
acon​te​c i​do al​gu​m a coi​sa... al​gum in​c i​den​te, ou um con​j un​to de in​c i​den​tes... que o
le​vou a re​ver sua fi​lo​so​f ia de vida.
— Não. — A pa​la​vra soou como um ge​m i​do de dor
O ve​lho cura teve von​ta​de de le​van​tar-se, an​dar até ele e sa​c u​di-lo pe​los om​-
bros. To​da​via, mu​nin​do-se de pa​c i​ê n​c ia, con​ti​nuou:
— Há mui​tos bons sa​c er​do​tes que, em al​gum mo​m en​to da vida, pas​sam
por cri​ses de fé como a sua. Há até al​guns san​tos que de​sa​f i​a ​r am os an​j os. Mas
em to​dos es​ses ca​sos ocor​r eu a mes​m a coi​sa... o pro​c es​so foi len​to e gra​du​a l, ar​-
ras​tou-se por anos an​tes de eclo​dir numa ver​da​dei​r a cri​se de fé. Além do mais
em to​dos es​ses ca​sos sem​pre foi pos​sí​vel iden​ti​f i​c ar um mo​m en​to, um in​c i​den​te
es​pe​c í​f i​c o, que deu lu​gar à dú​vi​da. A mor​te de uma cri​a n​ç a, por exem​plo. A do​-
en​ç a in​c u​r á​vel de um ente que​r i​do. As​sas​si​na​tos, es​tu​pros. A eter​na ques​tão de
des​c o​brir por que Deus per​m i​te que es​ses cri​m es ocor​r am. Por que exis​te a
guer​r a, por que exis​te a dor... A dou​tri​na tem res​pos​ta para to​das es​sas per​gun​tas,
mas em al​guns ca​sos uma res​pos​ta in​te​lec​tu​a l não bas​ta. Uma coi​sa é cer​ta... a
dú​vi​da quan​to à exis​tên​c ia de Deus sem​pre nas​c e de al​gu​m a con​tra​di​ç ão es​pe​c í​-
fi​c a en​tre nos​sa idéia do que seja a gra​ç a di​vi​na e a re​a ​li​da​de hu​m a​na cheia de
dor e so​f ri​m en​to.
— Não em meu caso.
Sem dar aten​ç ão às pa​la​vras do ou​tro, o pa​dre Wy ​c a​zik res​pi​r ou fun​do e
pros​se​guiu:
— E a úni​c a ma​nei​r a de ven​c er a dú​vi​da e reen​c on​trar o abri​go da fé é
dis​c u​tir a con​tra​di​ç ão es​pe​c í​f i​c a, de onde tudo sur​giu. Para isso exis​tem con​f es​-
so​r es e gui​a s es​pi​r i​tu​a is.
— Não há o que dis​c u​tir. Mi​nha fé sim​ples​m en​te... des​m o​r o​nou, e me dei​-
xou no ar. Como um piso que pa​r e​c ia só​li​do e de re​pen​te de​sa​ba, por​que sem​pre
es​te​ve mi​na​do.
— En​tão não foi um pro​c es​so. Não hou​ve nada, ne​nhum acon​te​c i​m en​to,
ne​nhu​m a mor​te in​j us​ta, ne​nhu​m a do​e n​ç a, nem a guer​r a, nada? A fé de​sa​bou,
como o piso, de re​pen​te, sem mais nem me​nos?
— É.
— Mas que mer​da! — O pa​dre Wy ​c a​zik sal​tou da ca​dei​r a. As​sus​ta​do, o ou​-
tro ar​r e​ga​lou os olhos.
— É isso mes​m o... que mer​da! — re​pe​tiu o ve​lho cura, dan​do-lhe as cos​-
tas. Em par​te, que​r ia mes​m o sa​c u​dir o ma​r as​m o de Cro-nin, em par​te co​m e​ç a​va
a ir​r i​tar-se com aque​la his​tó​r ia. Vi​r ou-se de fren​te para a ja​ne​la e re​c o​m e​ç ou: —
Você não pode ter-se trans​f or​m a​do tan​to. Nao pode ter sido um bom sa​c er​do​te
em agos​to e vi​r a​do ateu e ico​no​c las​ta em de​zem​bro. Não é pos​sí​vel. Prin​c i​pal​-
men​te por​que você afir​m a que não acon​te​c eu nada, ne​nhum fato es​pe​c i​a l​m en​te
do​lo​r o​so ou di​f í​c il de en​ten​der. O que pode es​tar ha​ven​do é uma es​pé​c ie de blo​-
queio. O fato ocor​r eu, mas você não con​se​gue iden​ti​f i​c á-lo por​que blo​que​ou sua
per​c ep​ç ão. En​quan​to não de​c i​dir en​f ren​tar suas ver​da​des in​te​r i​o​r es, não terá
como sair des​se es​ta​do... las​ti​m á​vel.
O si​lên​c io pe​sou, den​so e do​lo​r o​so, so​bre a sala. O re​ló​gio dou​r a​do ba​teu um
quar​to de hora. O pa​dre Cro​nin le​van​tou a ca​be​ç a:
— Não se zan​gue, por fa​vor. Sua ami​za​de é uma das coi​sas que mais pre​zo
no mun​do... Eu não su​por​ta​r ia... além de tudo o que já está acon​te​c en​do co​m i​-
go...
Tal​vez fos​se uma pri​m ei​r a bre​c ha na con​c ha em que se es​c on​de​r a. O pa​dre
Wy ​c a​zik apro​xi​m ou-se, sen​tou e obri​gou-o a sen​tar-se tam​bém.
— Não es​tou zan​ga​do com você — de​c la​r ou. — Es​tou pre​o​c u​pa​do, in​tri​ga​-
do e, prin​c i​pal​m en​te, mui​to frus​tra​do por​que você não quer dei​xar que eu o aju​-
de. Mas não es​tou zan​ga​do.
— Acre​di​te, eu que​r o que o se​nhor me aju​de. Mas pre​c i​so ser sin​c e​r o...
Não te​nho a me​nor idéia de qual​quer coi​sa, qual​quer fato, que pos​sa ex​pli​c ar o
que está acon​te​c en​do. E es​tra​nho... E um mis​té​r io.
O ve​lho pá​r o​c o to​c ou-lhe o om​bro, le​van​tou-se, vol​tou à ca​dei​r a atrás da
mesa e sen​tou-se, pen​sa​ti​vo.
— Está bem — dis​se afi​nal. — Es​tou con​ven​c i​do de que seu pro​ble​m a não
é in​te​lec​tu​a l. Isto sig​ni​f i​c a que as lei​tu​r as que lhe indi-
quei não te​r ão ne​nhu​m a uti​li​da​de. Seu pro​ble​m a deve ter al​gu​m a raiz psi​c o​-
ló​gi​c a, in​c ons​c i​e n​te.
Ain​da sen​ta​do, Bren​dan es​c u​ta​va-o, aten​to e in​tri​ga​do. A pos​si​bi​li​da​de de que
es​ti​ves​se so​f ren​do de al​gum mal psí​qui​c o pa​r e​c ia dar-lhe no​vas es​pe​r an​ç as. En​-
tão o caso era mais sim​ples e Deus não o aban​do​na​r a! O pa​dre Wy ​c a​zik tam​bém
pa​r e​c ia ali​vi​a ​do:
— Como você deve sa​ber, nos​so pro​vin​c i​a l é o pa​dre Lee Kel-log. O que
você tal​vez não sai​ba é que ele di​r i​ge uma pe​que​na equi​pe de dois psi​qui​a ​tras,
tam​bém je​su​í​tas, en​c ar​r e​ga​da de tra​tar dos pro​ble​m as emo​c i​o​nais ou psi​c o​ló​gi​-
cos de nos​sos sa​c er​do​tes. Pos​so con​se​guir um ho​r á​r io para você.
— Acha que sim?
— Sem dú​vi​da. Só que, no mo​m en​to, acho pre​c i​pi​ta​do. Se você co​m e​ç ar a
fa​zer aná​li​se ago​r a, o pro​vin​c i​a l será obri​ga​do a in​f or​m ar o pa​dre-pre​f ei​to, en​-
car​r e​ga​do da dis​c i​pli​na, que, por sua vez, terá que abrir um in​qué​r i​to e vas​c u​lhar
os dois úl​ti​m os anos de sua vida na pa​r ó​quia, à pro​c u​r a de qual​quer fa​lha, de
qual​quer vi​o​la​ç ão dos vo​tos.
— Mas eu nun​c a...
— Eu sei — Ste​f an sor​r iu. — Mas o pa​dre-pre​f ei​to tem o de​ver de ser mui​-
to ri​go​r o​so. Ain​da que você re​c e​ba tra​ta​m en​to e fi​que per​f ei​ta​m en​te cu​r a​do, o
in​qué​r i​to não será en​c er​r a​do. A or​dem tem o di​r ei​to de evi​tar que qual​quer sa​-
cer​do​te... di​ga​m os... va​c i​lan​te... te​nha aces​so aos mais al​tos pos​tos da hi​e ​r ar​quia.
Seu fu​tu​r o es​ta​r ia blo​que​a ​do para sem​pre. Pa​r e​c e um pre​ç o ex​c es​si​vo a pa​gar.
Sem​pre tive a im​pres​são de que você te​r ia con​di​ç ões de as​pi​r ar ao pos​to de mon​-
se​nhor, tal​vez mais.
O jo​vem cura bai​xou a ca​be​ç a e mur​m u​r ou:
— Sou um pa​dre sem am​bi​ç ões.
— Mas cheio de qua​li​da​des, en​quan​to con​se​guir fi​c ar lon​ge da lis​ta ne​gra
do pa​dre-pre​f ei​to. Se en​trar nes​sa lis​ta, seu fu​tu​r o se li​m i​ta​r á a um ho​r i​zon​te pa​-
re​c i​do com o meu, e você mor​r e​r á de ve​lho como sim​ples pá​r o​c o.
A som​bra de um sor​r i​so flu​tuou nos olhos do pa​dre Cro​nin:
— Pa​r e​c e-me um fu​tu​r o ma​r a​vi​lho​so — re​pli​c ou em voz bai​xa.
— Cabe à Igre​j a de​c i​dir o ser​vi​ç o que você pode pres​tar-lhe. O me​lhor
que pos​so fa​zer é to​m ar al​gu​m as pre​c au​ç ões para ten​tar im​pe​dir que se co​m e​ta
um erro ir​r e​pa​r á​vel. Pre​c i​so de sua aju​da. Que​r o que me dê al​gum tem​po, até o
Na​tal, por exem​plo. Che​ga de ler en​sai​os de te​o​lo​gia, che​ga de con​ver​sar so​bre
cri​ses de fé. Va​m os tra​ba​lhar jun​tos. Pre​ten​do usá-lo como co​baia de al​gu​m as
te​o​r i​a s que te​nho de​sen​vol​vi​do. Você será tra​ta​do por um ama​dor, mas ga​nha​r á
tem​po para en​f ren​tar o pa​dre-pre​f ei​to. Até o Na​tal. Se até lá não ti​ver​m os con​se​-
gui​do nada, mar​c a​r ei hora para você com nos​so psi​qui​a ​tra. Está cer​to?
— Sim. Está cer​to.
Sa​tis​f ei​to com a res​pos​ta, o pa​dre Wy ​c a​zik aco​m o​dou-se na ca​dei​r a, apoi​ou
os co​to​ve​los so​bre a mesa e es​f re​gou as mãos.
— Óti​m o! — ex​c la​m ou. — Te​m os mais de três se​m a​nas. Na pri​m ei​r a se​-
ma​na que​r o que você vol​te a usar rou​pa co​m um. Es​que​ç a a ba​ti​na e pro​c u​r e o
dou​tor Ja​m es Mc​Mur​try no Hos​pi​tal In​f an​til São José. Ele vai lhe dar um em​pre​-
go.
— Como ca​pe​lão?
— Como fa​xi​nei​r o. Você vai la​var pri​va​das, tro​c ar ca​m as, qual​quer coi​sa
que man​da​r em fa​zer. Nin​guém mais, além do dou​tor Mc​Mur​try, sa​be​r á que você
é pa​dre.
Bren​dan fran​ziu as so​bran​c e​lhas, sem en​ten​der:
— Mas... para que tudo isso?
— Te​nho es​pe​r an​ç as de que, den​tro de uma se​m a​na, você mes​m o res​pon​-
de​r á essa per​gun​ta. E quan​do ti​ver en​ten​di​do por que o es​tou man​dan​do para um
hos​pi​tal, terá en​c on​tra​do uma das cha​ves para abrir seus ca​m i​nhos psi​c o​ló​gi​c os.
Po​de​r á ler den​tro de si mes​m o e des​c o​bri​r á por que sua fé va​c i​lou. En​tão se re​-
con​c i​li​a ​r á com Deus.
Bren​dan ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, sem mui​ta con​vic​ç ão.
— Você me deu três se​m a​nas — o pa​dre Wy ​c a​zik lem​brou-o.
— Eu sei. Está bem. — Num ges​to in​c ons​c i​e n​te, Bren​dan pas​sou os de​dos
pelo duro co​la​r i​nho en​go​m a​do da ba​ti​na. Se​r ia di​f í​c il vi​ver sem ele, e isso era
bom si​nal.
— Até o Na​tal você vai mo​r ar lon​ge da casa pa​r o​qui​a l. Eu lhe
da​r ei di​nhei​r o su​f i​c i​e n​te para alu​gar um quar​to com re​f ei​ç ões num ho​tel ba​-
ra​to. Que​r o que se mis​tu​r e ao povo, que saia, por al​gum tem​po, do abri​go da vida
ecle​si​á s​ti​c a. Ar​r u​m e a mala e, quan​do es​ti​ver pron​to para sair, pas​se por aqui.
Vou te​le​f o​nar ao dou​tor Mc​Mur​try e acer​tar os de​ta​lhes de seu novo em​pre​go.
O pa​dre Cro​nin le​van​tou-se, com um sus​pi​r o, e ca​m i​nhou até a por​ta. De re​-
pen​te pa​r ou e vol​tou-se:
— Há um de​ta​lhe que tal​vez re​f or​c e a idéia de que es​tou com al​gum pro​-
ble​m a psi​c o​ló​gi​c o. Te​nho tido uns so​nhos es​tra​nhos. Para di​zer a ver​da​de, é sem​-
pre o mes​m o so​nho...
— So​nhos re​c or​r en​tes... Isso é tema freu​di​a ​no.
— ... um so​nho que se re​pe​te se​gui​da​m en​te, des​de agos​to — con​ti​nuou
Bren​dan, ig​no​r an​do o co​m en​tá​r io do ou​tro. — Na se​m a​na pas​sa​da re​pe​tiu-se to​-
das as noi​tes. Não é um so​nho agra​dá​vel. E bem cur​to... e te​nho a im​pres​são de
que se re​pe​te vá​r i​a s ve​zes du​r an​te a noi​te. E rá​pi​do... mas mui​to in​ten​so. Vejo lu​-
vas pre​tas...
— Lu​vas pre​tas?
— E... E sem​pre es​tou num lu​gar es​tra​nho, dei​ta​do, e pa​r e​c e que amar​r a​do
na cama, com os bra​ç os para bai​xo, as per​nas pre​sas... Que​r o me le​van​tar, cor​-
rer, fu​gir dali, mas não con​si​go. Está es​c u​r o e qua​se não vejo nada a meu re​dor.
En​tão apa​r e​c em aque​las mãos.
— De lu​vas pre​tas?
— Sim. As lu​vas são lus​tro​sas, de plás​ti​c o ou de bor​r a​c ha, e bem jus​tas, co​-
la​das às mãos. Não são lu​vas co​m uns. — Bren​dan deu al​guns pas​sos em di​r e​ç ão
ao cen​tro da sala e co​briu os olhos com as mãos, na ten​ta​ti​va de lem​brar to​dos os
de​ta​lhes do so​nho. — Não sei quem é, não con​si​go ver di​r ei​to. Só vejo as lu​vas...
até o pu​nho. E só o que vejo... o res​to da cena pa​r e​c e en​vol​to em né​voa.
Quan​do co​m e​ç ou a fa​lar, era evi​den​te que a lem​bran​ç a aca​ba​va de ocor​r er-
lhe, mas não ima​gi​na​va que pu​des​se ter al​gu​m a re​la​ç ão im​por​tan​te com seu pro​-
ble​m a. Ao ca​lar-se, con​tu​do, es​ta​va pá​li​do como um len​ç ol e sua voz tre​m ia. Pa​-
re​c ia as​sus​ta​do.
O ven​to em​pur​r ou a ja​ne​la, que ba​teu rui​do​sa​m en​te. Ab​sor​to nas pa​la​vras do
jo​vem sa​c er​do​te, o pa​dre Wy ​c a​zik se​quer ou​viu o ba​r u​lho.
— O ho​m em das lu​vas pre​tas diz al​gu​m a coi​sa? — per​gun​tou.
— Não. Ele nun​c a fala nada. — Bren​dan afas​tou as mãos dos olhos e, es​-
tre​m e​c en​do, bai​xou a ca​be​ç a. — Mas as mãos... me to​c am. São fri​a s... pe​ga​j o​-
sas.
Cada vez mais in​te​r es​sa​do, o ve​lho pá​r o​c o apru​m ou as cos​tas na ca​dei​r a e
apoi​ou os co​to​ve​los so​bre a mesa:
— E como é que elas to​c am em você? Onde?
— No ros​to... No pes​c o​ç o, no pei​to... fri​a s... An​dam pelo cor​po...
— E ma​c hu​c am você?
— Não.
— Mes​m o as​sim, você tem medo. Tem medo do ho​m em que usa as lu​-
vas... ou das pró​pri​a s lu​vas?
— Não sei... Só sei que te​nho medo, mui​to medo...
— E um so​nho ti​pi​c a​m en​te freu​di​a ​no. Não há como fu​gir dis​so.
— Acho que o se​nhor tem ra​zão — sus​pi​r ou o pa​dre Cro​nin.
— O so​nho é um dos vá​r i​os me​c a​nis​m os que o in​c ons​c i​e n​te uti​li​za para
man​dar men​sa​gens ao cons​c i​e n​te. Em seu caso, não é di​f í​c il iden​ti​f i​c ar al​guns
sím​bo​los freu​di​a ​nos nes​sas lu​vas pre​tas. Elas po​dem ser as mãos do de​m ô​nio, a
ten​ta​ç ão que pro​c u​r a afas​tá-lo da gra​ç a di​vi​na. Ou as gar​r as de suas pró​pri​a s dú​-
vi​das, de seu sen​ti​m en​to de cul​pa por es​tar per​den​do a fé. Ou as mãos do pe​c a​-
do... como ser​pen​tes em seu cor​po.
— E ra​zo​á ​vel — pon​de​r ou o jo​vem cura, es​bo​ç an​do um sor​r i​so tris​te. —
As mãos to​c am em mim. — Deu de om​bros e vol​tou para a por​ta mas pa​r ou no​-
va​m en​te. — Tal​vez o se​nhor ache es​tra​nho o que vou di​zer... acho que não há
nada de sim​bó​li​c o nes​sas lu​vas. Te​nho cer​te​za de que... elas exis​tem! São ape​nas
umas lu​vas pre​tas e, em al​gum lu​gar, em al​gum tem​po, são re​a is. Ou fo​ram re​-
ais.
— Está que​r en​do di​zer que al​gu​m a vez em sua vida pas​sou por uma ex​pe​-
ri​ê n​c ia como a que apa​r e​c e em seu so​nho?
O pa​dre Cro​nin bai​xou a ca​be​ç a e fi​xou os olhos no ta​pa​te:
— Não sei. E pos​sí​vel que te​nha acon​te​c i​do al​gu​m a coi​sa pa​r e​c i​da, tal​vez
na infân​c ia. Acho que esse so​nho não tem li​ga​ç ão al​gu​m a com mi​nha cri​se de
fé.
— Não, não... — pro​tes​tou o ou​tro com vee​m ên​c ia. — Não é pos​sí​vel ima​-
gi​nar que duas ex​pe​r i​ê n​c i​a s es​tra​nhas e afli​ti​vas como o so​nho re​c or​r en​te e a cri​-
se de fé sur​j am ao mes​m o tem​po por pura e sim​ples co​in​c i​dên​c ia. Isso ja​m ais
acon​te​c e. Deve ha​ver al​gu​m a re​la​ç ão en​tre elas... Diga-me, em que cir​c uns​tân​-
ci​a s, em sua infân​c ia, po​de​r ia ter acon​te​c i​do al​gu​m a coi​sa se​m e​lhan​te ao que lhe
apa​r e​c e em so​nho? Qual​quer fato que te​nha en​vol​vi​do lu​vas, por exem​plo.
— Não sei, mas pas​sei por duas ou três do​e n​ç as gra​ves quan​do
era me​ni​no. Tal​vez um mé​di​c o que ti​ves​se me exa​m i​na​do, usan​do lu​vas...
não sei. Tal​vez te​nha sido uma ex​pe​r i​ê n​c ia tão de​sa​gra​dá​vel que in​c ons​c i​e n​te​-
men​te re​pri​m i to​das as lem​bran​ç as, que ago​r a vol​tam...
— Nun​c a vi um mé​di​c o exa​m i​nar uma cri​a n​ç a... com lu​vas pre​tas.
Bren​dan res​pi​r ou fun​do an​tes de re​pli​c ar:
— E... o se​nhor tem ra​zão. De qual​quer modo, não con​si​go ti​r ar da ca​be​ç a
a idéia de que não há nada de sim​bó​li​c o nes​sas lu​vas. Para mim são tão re​a is
quan​to esta mesa... ou os li​vros em suas es​tan​tes.
O re​ló​gio mar​c ou ou​tro quar​to de hora. O ven​to so​pra​va cada vez mais for​te.
— E de ar​r e​pi​a r — co​m en​tou o pa​dre Wy ​c a​zik, sem re​f e​r ir-se nem ao
tem​po, nem à ven​ta​nia. — Mas ga​r an​to-lhe que há al​gu​m a sim​bo​lo​gia nes​se so​-
nho, e te​nho cer​te​za de que exis​te al​gu​m a re​la​ç ão en​tre o so​nho e seus pro​ble​m as
de fé. Tal​vez seu in​c ons​c i​e n​te es​te​j a que​r en​do avi​sar que você en​f ren​ta​r á uma
gran​de ba​ta​lha. Não sei, mas seja como for, você não es​ta​r á so​zi​nho. Pode con​-
tar co​m i​go.
— Obri​ga​do.
— Agra​de​ç a a Deus. Ele tam​bém está a seu lado.
O jo​vem cura li​m i​tou-se a bai​xar a ca​be​ç a e cur​var os om​bros, de​ses​pe​r an​-
ça​do.
— E ago​r a tra​te de fa​zer a mala — or​de​nou Ste​f an.
— O se​nhor vai fi​c ar sem nin​guém para aju​dá-lo.
— Te​nho o pa​dre Ger​r a​no e as ir​m ãs que cui​dam da es​c o​la. Você deve ir
tra​tar de seus pró​pri​os pro​ble​m as.
De​pois da sa​í​da de Bren​dan, o pá​r o​c o vol​tou à mesa.
Lu​vas pre​tas. Era ape​nas um so​nho e, em es​sên​c ia, bem sim​ples, em​bo​r a
de​sa​gra​dá​vel. No en​tan​to, a ex​pres​são no ros​to de Bren​dan Cro​nin não lhe saía da
lem​bran​ç a. Es​ta​va ater​r o​r i​za​do... por​que via duas mãos en​lu​va​das e sen​tia-as an​-
dan​do por seu cor​po, to​c an​do-o, gru​dan​do-se nele... fri​a s, pe​ga​j o​sas. Lu​vas pre​-
tas. O pa​dre Wy ​c a​zik cru​zou os bra​ç os e olhou pela ja​ne​la. Tal​vez adi​vi​nhas​se
que aque​le se​r ia o mai​or de to​dos os de​sa​f i​os que ja en​f ren​ta​r a ao lon​go da vida.
Lá fora, co​m e​ç a​va a ne​var.
Era quin​ta-fei​r a, dia 5 de de​zem​bro
4. BOS​TON, MAS​SA​CHU​SETTS
Na sex​ta-fei​r a, qua​tro dias de​pois da ca​tás​tro​f e da pia e do im​plan​te de aor​ta
em Vi​o​la Flet​c her, Gin​ger Weiss con​ti​nu​a ​va in​ter​na​da no Me​m o​r i​a l, des​sa vez
como pa​c i​e n​te le​va​da pelo dr. Ge​or​ge Han​naby.
Du​r an​te três dias, fora sub​m e​ti​da a to​dos os tes​tes dis​po​ní​veis no hos​pi​tal, o
que che​ga​va bem pró​xi​m o de to​dos os tes​tes dis​po​ní​veis na ci​ê n​c ia con​tem​porâ​-
nea. Ha​vi​a m fei​to vá​r i​a s tomo-gra​f i​a s de crâ​nio, cha​pas ra​di​o​grá​f i​c as, ul​tra-so​-
no​gra​f i​a s, pneu-mo​ven​tri​c u​lo​gra​f i​a s, pun​ç ão lom​bar, an​gi​o​gra​m a e vá​r i​os ou​-
tros exa​m es para po​der cru​zar os re​sul​ta​dos. Sua mas​sa en​c e​f á​li​c a foi vas​c u​lha​-
da cen​tí​m e​tro a cen​tí​m e​tro para ve​r i​f i​c ar al​gu​m a for​m a​ç ão ne​o​plá​si​c a, even​tu​-
ais mas​sas cís​ti​c as, tu​m o​r es, co​á ​gu​los, aneu-ris​m as.
Pas​so a pas​so, os mé​di​c os con​c lu​í​r am pela pos​si​bi​li​da​de de al​gu​m a for​m a​-
ção tu​m o​r al no pe​r i​neu​r o e re​f i​ze​r am vá​r i​os tes​tes,
ao fi​nal dos quais le​van​ta​r am a hi​pó​te​se de hi​per​ten​são in​tra​c ra​ni​a ​na crô​ni​-
ca. Tes​ta​r am o lí​qui​do ra​qui​di​a ​no à pro​c u​r a de al​gu​m a evi​dên​c ia de con​c en​tra​-
ções anor​m ais de pro​te​í​na, san​gra​m en​tos in​tra​c ra​ni​a ​nos, bai​xas ta​xas de gli​c o​se,
qual​quer si​nal de in​f ec​ç ão bac​te​r i​a ​na ou de con​ta​m i​na​ç ão por fun​gos. Eram mé​-
di​c os tra​tan​do de uma co​le​ga e, mais do que em qual​quer ou​tro caso, fo​r am me​-
ti​c u​lo​sos, cui​da​do​sos e per​sis​ten​tes na bus​c a dos ele​m en​tos que lhes per​m i​tis​sem
de​f i​nir um di​a g​nós​ti​c o cor​r e​to.
As duas da tar​de da sex​ta-fei​r a, Ge​or​ge Han​naby en​trou no quar​to de Gin​ger
com os re​sul​ta​dos fi​nais da gi​gan​tes​c a ba​te​r ia de exa​m es e com os pa​r e​c e​r es da
jun​ta mé​di​c a que se reu​ni​r a es​pe​c i​a l​m en​te para ana​li​sá-los. O fato de o pró​prio
Ge​or​ge apa​r e​c er para in​f or​m ar o di​a g​nós​ti​c o era mau si​nal. Gin​ger fi​c a​r ia
mais ali​vi​a ​da se qual​quer ou​tro es​pe​c i​a ​lis​ta fos​se dar-lhe a no​tí​c ia de que es​ta​va
com cân​c er no cé​r e​bro.
Sen​ta​da na cama, Gin​ger usa​va o pi​j a​m a azul que Rita Han​naby, mu​lher de
Ge​or​ge, fi​ze​r a a gen​ti​le​za de bus​c ar em seu apar​ta​m en​to, jun​to com ou​tras mil
pe​que​nas coi​sas que lhe des​sem con​f or​to. Ti​nha um li​vro po​li​c i​a l aber​to so​bre os
jo​e ​lhos e lu​ta​va para con​ven​c er-se de que, em​bo​r a seu mal fos​se gra​ve, não
era tão gra​ve que a me​di​c i​na não pu​des​se curá-lo. Na ver​da​de, po​r ém, es​ta​va
mor​r en​do de medo.
O que Ge​or​ge ti​nha para di​zer era ain​da pior do que a pior no​tí​c ia que ela po​-
de​r ia re​c e​ber. Os mé​di​c os não ha​vi​a m en​c on​tra​do ne​nhu​m a anor​m a​li​da​de em
ne​nhum dos exa​m es. Gin​ger não es​ta​va do​e n​te. Não ti​nha qual​quer mal​f or​m a​-
ção con​gê​ni​ta. Nem tu​m or ce​r e​bral. Nem aneu​r is​m a. Nada.
Quan​do Ge​or​ge aca​bou de di​zer-lhe exa​ta​m en​te isso, Gin​ger sen​tiu-se de​sa​-
bar como um cas​te​lo de car​tas. De​pois de qua​tro dias, des​de que fora en​c on​tra​da
na neve, era o pri​m ei​r o mo​m en​to em que se per​m i​tia re​la​xar. E cho​r ou, bai​xi​-
nho, qua​se sem ru​í​do, as lá​gri​m as da ter​r í​vel an​gús​tia que lhe cres​c ia no pei​to.
Um tu​m or, um co​á ​gu​lo, qual​quer coi​sa fí​si​c a que pu​des​se ser ope​r a​da, cor​r i​-
gi​da, ex​tir​pa​da! Qual​quer coi​sa que lhe per​m i​tis​se, al​gum dia, re​to​m ar a car​r ei​r a
mé​di​c a. Mas não. Seu pro​ble​m a não
era fí​si​c o: era men​tal,^um mal psi​c o​ló​gi​c o que a me​di​c i​na não en​ten​dia bem
e que não sa​be​r ia cor​r i​gir com bis​tu​r i e an​ti​bi​ó​ti​c os. Um caso de evi​den​te in​di​c a​-
ção de psi​c o​te​r a​pia... sur​tos de fuga ou au​sên​c ia sem cau​sa fi​si​o​ló​gi​c a apa​r en​te.
Nem os psi​c o​te-ra​peu​tas po​di​a m ga​r an​tir a cura. E o tra​ta​m en​to tal​vez de​m o​r as​-
se me​ses, anos. Ha​via na li​te​r a​tu​r a mé​di​c a re​f e​r ên​c i​a s fre​qüen​tes a pa​c i​e n​tes
que, a par​tir de sur​tos de au​sên​c ia, aca​ba​vam por de​sen​vol​ver sin​to​m as de es​qui​-
zo​f re​nia. Suas chan​c es de vol​tar a vi​ver como uma pes​soa nor​m al eram pou​c as,
e não ha​via ab​so​lu​ta​m en​te ne​nhu​m a de re​to​m ar o co​m an​do de uma equi​pe
de ci​r ur​gia.
Era o fim do so​nho de toda uma vida... o so​nho rom​pia-se, es​ti​lha​ç a​va-se
como um glo​bo de cris​tal atin​gi​do por um tiro. A psi​c o​te​r a​pia po​de​r ia man​tê-la à
tona, de​vol​vê-la à vida an​te​r i​or aos sur​tos, po​r ém ja​m ais lhe de​vol​ve​r ia a li​c en​ç a
para ope​r ar.
Ge​or​ge apa​nhou um maço de len​ç os de pa​pel na pe​que​na cai​xa so​bre a
mesa-de-ca​be​c ei​r a e ofe​r e​c eu-os a Gin​ger. De​pois ser​viu-lhe um copo de água e
um cal​m an​te. Ela re​sis​tiu, mas aca​bou en​go​lin​do o com​pri​m i​do. Ge​or​ge aca​r i​c i​-
ou-lhe a mão e co​m e​ç ou a fa​lar em voz cal​m a.
— Mas nada dis​so acon​te​c eu co​m i​go! — Gin​ger con​se​guiu, afi​nal, in​ter​-
rom​pê-lo. — Tive um lar or​ga​ni​za​do e só​li​do, uma casa que nem o psi​qui​a ​tra
mais lou​c o clas​si​f i​c a​r ia de “at​m os​f e​r a psi​c o​lo​gi​c a​m en​te des​tru​ti​va’’! Tive uma
infân​c ia fe​liz, a mais fe​liz que uma cri​a n​ç a po​de​r ia de​se​j ar. — Com um mo​vi​-
men​to brus​c o, ar​r an​c ou da cai​xa ou​tro pu​nha​do de len​ç os. — Por que ti​nha que
acon​te​c er co​m i​go?! Por que eu, eu, jus​ta​m en​te eu, ti​nha que vi​r ar psi​c ó​ti​c a?!
Tive uma mãe ma​r a​vi​lho​sa, um pai ma​r a​vi​lho​so, uma casa lin​da! Não... Não
pos​so acre​di​tar!
— Acal​m e-se, dou​to​r a... — Ge​or​ge sen​tou-se na bor​da da cama. — An​tes
de mais nada, uma res​pei​tá​vel cor​r en​te mé​di​c a de​f en​de uma te​o​r ia se​gun​do a
qual as do​e n​ç as men​tais se​r i​a m re​sul​ta​do de de​ter​m i​na​das al​te​r a​ç ões bi​o​quí​m i​-
cas que nos​sa ci​ê n​c ia ain​da nao con​se​gue de​ter​m i​nar ou pre​ver. Isso quer di​zer
que tal​vez os pro​ble​m as psi​c o​ló​gi​c os te​nham me​nos a ver com as ori-
gens fa​m i​li​a ​r es do que se pen​sa. Não acho ne​c es​sá​r io você re​ver as ama​das
fi​gu​r as de seus pais para ten​tar en​ten​der o que está acon​te​c en​do. E tam​bém não
es​tou con​ven​c i​do... re​pi​to... não es​tou con​ven​c i​do de que você te​nha qual​quer ou​-
tra coi​sa além de um sim​ples pro​ble​m a de stress.
— Você está ten​tan​do me en​ga​nar! Por fa​vor!
— Eu?! En​ga​nar um pa​c i​e n​te? — Ge​or​ge ar​r e​ga​lou os olhos.
— Não, nada dis​so. Es​tou re​a l​m en​te con​ven​c i​do de que há al​gu​m a cau​sa
fí​si​c a ou fi​si​o​ló​gi​c a para suas cri​ses. E pos​sí​vel que você te​nha al​gu​m a mal​f or​-
ma​ç ão ou ne​o​f or​m a​ç ão ain​da mui​to pe​que​na e im​pos​sí​vel de des​c o​brir atra​vés
dos exa​m es que co​nhe​c e​m os. Será pre​c i​so dar tem​po ao tem​po, ob​ser​var seu
com​por​ta​m en​to e es​pe​r ar que acon​te​ç a ou​tro sur​to ou apa​r e​ç a ou​tra sin​to​m a​to​lo​-
gia. Den​tro de al​gu​m as se​m a​nas ou me​ses re​pe​ti​r e​m os os exa​m es e, mais dia
me​nos dia, aca​ba​r e​m os des​c o​brin​do o pro​ble​m a.
Gin​ger ati​r ou ao lixo uma bo​lo​ta de len​ç os de pa​pel amar​r o​ta​dos e apa​nhou
ou​tro maço da cai​xi​nha.
— Você acha? — per​gun​tou fran​zin​do as so​bran​c e​lhas, com medo de ali​-
men​tar es​pe​r an​ç as. — Acre​di​ta mes​m o que tal​vez seja um tu​m or ou uma ne​o​-
pla​sia tão pe​que​na que ain​da não po​de​m os ver?
— En​tre ou​tras coi​sas tam​bém pe​que​nas, sim, acho. Para mim, pelo me​-
nos, essa hi​pó​te​se pa​r e​c e mais con​f i​á ​vel do que a pos​si​bi​li​da​de de dis​túr​bi​os psi​-
co​ló​gi​c os. Não, você não tem ne​nhum pro​ble​m a men​tal. E es​tá​vel e equi​li​bra​da.
Não con​si​go acre​di​tar que pos​sa so​f rer de qual​quer dis​f un​ç ão men​tal, e, en​tre
duas cri​ses, agir de modo tão es​tá​vel. Isso não faz sen​ti​do!
Uma luz de es​pe​r an​ç a! Gin​ger nun​c a pen​sa​r a em suas cri​ses a par​tir da​que​le
pon​to de vis​ta. De qual​quer modo, era um tris​te fu​tu​r o pas​sar a vida à es​pe​r a de
qual​quer sin​to​m a que in​di​c as​se um tu​m or no cé​r e​bro. Tris​te, po​r ém mais es​ti​m u​-
lan​te que um fu​tu​r o de lou​c u​r a. Não ha​via mé​di​c o ca​paz de ex​tir​par a lou​c u​-
ra com bis​tu​r is e es​c al​pe​los.
— Os pró​xi​m os me​ses vão ser di​f í​c eis — Ge​or​ge con​ti​nuou. — Pre​c i​sa​-
mos es​pe​r ar.
— Su​po​nho que já es​tou proi​bi​da de tra​ba​lhar, não é?
— No cen​tro ci​r úr​gi​c o, sim, cla​r o. No en​tan​to, se nada mais acon​te​c er, não
vejo mo​ti​vo que a im​pe​ç a de con​ti​nu​a r a tra​ba​lhar co​m i​go no con​sul​tó​r io.
— Mas... e se eu ti​ver... ou​tra cri​se?
— Es​ta​r ei a seu lado para im​pe​dir que se ma​c hu​que ou fira al​guém.
— E o que pen​sa​r ão seus pa​c i​e n​tes? Não acha que po​dem se as​sus​tar co​-
mi​go lá? Ima​gi​ne! Uma as​sis​ten​te que, sem mais nem me​nos, vira uma meshu​-
ge​ne e sai do con​sul​tó​r io...
— Por que não dei​xa que eu me en​c ar​r e​gue do que meus pa​c i​e n​tes pos​-
sam pen​sar? De qual​quer modo, isso não é para ja. Você pre​c i​sa des​c an​sar por
uma ou duas se​m a​nas. Nada de tra​ba​lho. Des​c an​se, re​la​xe. Es​ses úl​ti​m os dias fo​-
ram mui​to des​gas​tan​tes para você, tan​to fí​si​c a quan​to emo​c i​o​nal​m en​te.
— Es​tou imó​vel há dias! Não faço ou​tra coi​sa se​não des​c an​sar! Não sa​c u​-
da o bule!
— O quê? — Ge​or​ge fran​ziu a tes​ta sem en​ten​der.
Sur​pre​sa por ter usa​do aque​la ex​pres​são, Gin​ger sor​r iu.
— E uma coi​sa que meu pai vi​via di​zen​do — ex​pli​c ou. — E uma ex​pres​são
em ídi​c he, hok nit kayn tshay​nik. Sig​ni​f i​c a exa​ta​m en​te o que eu dis​se... não sa​c u​-
da o bule, ou seja, não diga bo​ba​gens. Mas não me per​gun​te por que sig​ni​f i​c a
isso... Não te​nho a mí​ni​m a idéia. E ape​nas uma ex​pres​são que meu pai usou du​-
ran​te a vida in​tei​r a.
— Bem, não es​tou sa​c u​din​do o bule. O que que​r o di​zer é que você deve
con​ti​nu​a r em ab​so​lu​to re​pou​so. E que vai des​c an​sar em mi​nha casa, com Rita to​-
man​do con​ta de você, pelo me​nos por duas ou três se​m a​nas.
— Não pos​so! Não pos​so lhes dar mais tra​ba​lho...
— Não será tra​ba​lho, nem para mim nem para Rita. Te​m os uma ex​c e​len​te
em​pre​ga​da. Você não pre​c i​sa se pre​o​c u​par com nada, nem mes​m o com a ar​r u​-
ma​ç ão da cama. O quar​to de hós​pe​des tem uma lin​da vis​ta para a baía. Não há
nada mais re​pou​san​te que ver o mar. Na ver​da​de, foi exa​ta​m en​te isso o que seu
mé​di​c o re​c ei​tou.
— Obri​ga​da, mui​to obri​ga​da, mas não é pre​c i​so.
Ge​or​ge cru​zou os bra​ç os e lan​ç ou-lhe um olhar se​ve​r o.
— Acho que você não en​ten​deu — dis​se. — Não es​tou con​vi​dan​do uma
sim​pá​ti​c a mo​c i​nha para pas​sar fé​r i​a s em mi​nha casa. Es​tou fa​lan​do como seu
mé​di​c o e como seu che​f e... es​tou lhe dan​do ins​tru​ç ões de con​du​ta para as pró​xi​-
mas se​m a​nas. Não dis​c u​ta, dou​to​r a.
— Mas pos​so mui​to bem fi​c ar em mi​nha casa...
— Não pode fi​c ar so​zi​nha — in​sis​tiu ele, ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a. — E se ti​-
ver ou​tra cri​se? Se es​ti​ver co​zi​nhan​do, por exem​plo, e de re​pen​te pro​vo​c ar um
in​c ên​dio? Só irá per​c e​ber de​pois que re​c u​pe​r ar a cons​c i​ê n​c ia, e en​tão po​de​r á ser
tar​de de​m ais... E mui​to ar​r is​c a​do, tan​to para você como para ou​tras pes​so​a s.
‘Não, não dou​to​r a... Não vou per​m i​tir que fi​que so​zi​nha. Se não qui​ser fi​c ar
co​nos​c o, vá pas​sar al​gum tem​po com seus pa​r en​tes. Há al​guém de sua fa​m í​lia
que te​nha con​di​ç ões de hos​pe​dá-la?
— Em Bos​ton, não. Te​nho tios e tias em Nova York...
Na ver​da​de não po​dia se​quer pen​sar em hos​pe​dar-se em casa de ne​nhum
de​les, em​bo​r a tia Ra​c hel e tia Fran​c i​ne sem​pre a re​c e​bes​sem de bra​ç os aber​tos.
Ja​m ais te​r ia co​r a​gem de apa​r e​c er por lá nas con​di​ç ões em que es​ta​va... E se ti​-
ves​se uma cri​se? As tias não sa​be​r i​a m o que fa​zer, mas cer​ta​m en​te jo​ga​r i​a m
toda a cul​pa em Anna e Ja​c ob. “Não sou​be​r am cri​a r a po​bre me​ni​na”, di​r ia Ra​-
chel, en​tre lá​gri​m as e sus​pi​r os. “Fo​r am exi​gen​tes de​m ais com a coi​ta​di​nha”,
com​ple​ta​r ia Fran​c i​ne. Não... Am​bas eram mui​to boas, ten​ta​r i​a m aju​dá-la, mas
Gin​ger não po​dia per​m i​tir que seus pais aca​bas​sem trans​f or​m a​dos em bode ex​pi​-
a​tó​r io. Eles não ti​nham cul​pa de nada.
— Fico com o quar​to de hós​pe​des com vis​ta para o mar — de​c la​r ou com
um sor​r i​so.
— Óti​m o!
— Con​ti​nuo achan​do que vou dar tra​ba​lho e acho bom pre​ve​nir des​de já...
se eu gos​tar, fico lá para sem​pre. Um dia, quan​do você vol​tar para casa, tal​vez
en​c on​tre a mo​bí​lia tro​c a​da, um novo pa​pel de pa​r e​de e seu quar​to de dor​m ir
trans​f or​m a​do em meu con​sul​tó​r io.
— Quan​do isso acon​te​c er, dou-lhe um pon​ta​pé no tra​sei​r o e po​nho você na
rua. — Ge​or​ge le​van​tou-se e bei​j ou-lhe a tes​ta. — Vou tra​tar de sua alta. En​-
quan​to isso, ar​r u​m e as ma​las. Vou te​le​f o​nar para Rita e pe​dir que ve​nha bus​c á-la.
— Ele se apro​xi​m ou da por​ta e vol​tou-se, ou​tra vez sé​r io. — Sei que não será fá​-
cil, mas você não pode de​sa​ni​m ar.
Gin​ger ou​viu seus pas​sos afas​tan​do-se pelo cor​r e​dor em di​r e​ç ão ao sa​guão, e
dei​xou-se cair so​bre os tra​ves​sei​r os, os olhos fi​xos na pa​r e​de ama​r e​la​da a sua
fren​te. E en​tão, num ges​to sú​bi​to, jo​gou as co​ber​tas, sal​tou da cama e en​tou no
ba​nhei​r o; abriu as tor​nei​r as da pia e de​bru​ç ou-se, fi​tan​do o ralo. A pia logo se en​-
cheu de água, e a água co​m e​ç ou a gi​r ar, cada vez mais rá​pi​da, des​c en​do pelo
ori​f í​c io es​c u​r o. Im​pos​sí​vel acre​di​tar que uma ino​c en​te pia bran​c a cheia de água
pu​des​se ter de​sen​c a​de​a ​do tan​tos pro​ble​m as. Na se​gun​da-fei​r a, de​pois de fa​zer o
im​plan​te de aor​ta em Vi​o​la Flet​c her, um ralo de pia igual àque​le pa​r e​c e​r a-lhe a
pró​pria boca do in​f er​no!
— Mas... por que?! — per​gun​tou-se pela cen​té​si​m a vez, co​m e​ç an​do a de​-
ses​pe​r ar-se. — Oh, pa​pai... Como pre​c i​so de você! Como se​r ia bom se você es​ti​-
ves​se aqui co​m i​go... Oh, Deus!
Den​tre tan​tas fra​ses que Ja​c ob ci​ta​va, ha​via uma que sem​pre lhe pa​r e​c e​r a
en​gra​ç a​da. Ain​da eco​a ​va-lhe nos ou​vi​dos, acom​pa​nha​da de um leve mo​vi​m en​to
de ca​be​ç a... Quan​do al​guém lhe con​f es​sa​va que es​ta​va pre​o​c u​pa​do com o fu​tu​-
ro, seu pai dava de om​bros e di​zia: “E por que se pre​o​c u​par com o dia de ama​-
nhã, se você ain​da nem sabe o que pode lhe acon​te​c er hoje?”
Quan​ta ver​da​de!... Gin​ger lem​brou-se da fra​se do pai, do rá​pi​do mo​vi​m en​to
de ca​be​ç a, do le​van​tar de om​bros, po​r ém não con​se​guiu lem​brar-se do que a fa​-
zia rir tan​to quan​do a ou​via. Sen​tiu-se in​vá​li​da, par​ti​da, per​di​da.
Era sex​ta-fei​r a, dia 6 de de​zem​bro.

5. LA​G U​NA BE​A​CH, CA​LI​FÓR​NIA

Na ma​nha de se​gun​da-fei​r a, dia 2 de de​zem​bro, Dom e Parker Fai​ne ou​vi​-


ram, no con​sul​tó​r io do dr. Co​bletz, um di​a g​nós​ti​c o bem mais tran​qüi​li​za​dor do que
es​pe​r a​vam. Dom fora exa​m i​na​do ha​via pou​c o tem​po e não se cons​ta​ta​r a ne​nhu​-
ma anor​m a​li​da​de que pu​des​se pre​o​c u​par.
O mé​di​c o dis​se que, após a úl​ti​m a con​sul​ta, no dia 23 de no​vem​bro, co​m e​ç a​-
ra a pes​qui​sar um ma​te​r i​a l so​bre so​nam​bu​lis​m o. Des​c o​bri​r a que, no caso de
adul​tos, as cri​ses em ge​r al eram pas​sa​gei​r as, em​bo​r a não se des​c ar​tas​se a pos​si​-
bi​li​da​de de que o mal se tor​nas​se crô​ni​c o. No li​m i​te ex​tre​m o, en​c on​tra​r a re​gis​-
tros de pa​c i​e n​tes que, a par​tir de sur​tos fre​qüen​tes de so​nam​bu​lis​m o, aca​ba​r am
por de​sen​vol​ver um qua​dro de sin​to​m a​to​lo​gia bem mais gra​ve, di​a g​nos​ti​c a​da
como psi​c o​se ma​ní​a ​c o-de​pres​si​va. Os au​to​r es eram unâ​ni​m es em afir​m ar que,
em​bo​r a à pri​m ei​r a vis​ta o so​nam​bu​lis​m o não pu​des​se ser in​c lu​í​do en​tre as mo​-
lés​ti​a s gra​ves, era um mal de cura di​f í​c il. Em al​guns ca​sos, os pa​c i​e n​tes da​vam
si​nais de cres​c en​te an​si​e ​da​de em re​la​ç ão ao sono ou à hora de dor​m ir. Era essa
an​si​e ​da​de, e não o so​nam​bu​lis​m o em si, que po​dia even​tu​a l​m en​te cri​a r sé​r i​os
pro​ble​m as para a vida di​á ​r ia do pa​c i​e n​te.
Dom sen​tiu-se jo​ga​do so​bre esse ter​r e​no mi​na​do. Lem​brou-se da trin​c hei​r a
que cons​tru​í​r a di​a n​te da por​ta do quar​to e do ar​se​nal reu​ni​do so​bre a cama.
Sem dar mos​tras de pre​o​c u​pa​ç ão, o dr. Co​bletz su​ge​r iu uma li​nha te​r a​pêu​ti​c a
sim​ples, afir​m an​do que mui​tos ca​sos de so​nam​bu​lis​m o per​sis​ten​te fo​r am cu​r a​dos
com pe​que​nas do​ses de se​da​ti​vo, mi​nis​tra​das à hora de dor​m ir. De​pois de al​gu​-
mas noi​tes de sono re​gu​lar, a an​si​e ​da​de di​m i​nu​ía sig​ni​f i​c a​ti​va​m en​te e as cri​-
ses de​sa​pa​r e​c i​a m. Nos ca​sos mais di​f í​c eis, au​m en​ta​va-se a dose de se​da​ti​vo no​-
tur​no e pres​c re​vi​a m-se cal​m an​tes para o pe​r í​o​do de ati​vi​da​de do pa​c i​e n​te, sem​-
pre com o ob​j e​ti​vo de com​ba​ter a an​si​e ​da​de. Para Do​m i​nick, con​si​de​r a​das as
ex​te​nu​a n​tes ta​r e​f as a que se de​di​c a​va du​r an​te o sono, o mé​di​c o re​c ei​tou do​ses
diur​nas de cal​m an​te e uma cáp​su​la de so​ní​f e​r o an​tes de dor​m ir.
Quan​do vol​ta​vam de New​port, ten​do o mar à di​r ei​ta e as mon​ta​nhas à es​-
quer​da, Parker Fai​ne dis​se que não era se​gu​r o Dom fi​c ar so​zi​nho à noi​te en​quan​-
to as cri​ses não di​m i​nu​ís​sem de in​ten​si​da​de.
— Te​nho um quar​to de hós​pe​des — in​f or​m ou, como sem​pre di​r i​gin​do em
ve​lo​c i​da​de mai​or do que a re​c o​m en​da​da, po​r ém me​nor que a proi​bi​da. Por al​-
gum es​tra​nho mis​té​r io de per​so​na​li​da​de, dava a im​pres​são de con​c en​trar-se, ao
mes​m o tem​po, na es​tra​da e em Dom. — Vou fi​c ar de olho em você, mas não
pen​se que pre​ten​do la​var suas cu​e ​c as. De qual​quer modo, es​ta​r ei por per​to. Te​r e​-
mos tem​po para con​ver​sar so​bre o as​sun​to, até des​c o​brir que re​la​ç ão exis​te en​tre
suas an​dan​ç as no​tur​nas e o que acon​te​c eu na​que​le ve​r ão em Moun​tain​vi​e w. Sou
o me​lhor “papo” des​ta ci​da​de. Se não ti​ves​se co​m e​ti​do a bur​r i​c e de ser pin​tor, te​-
ria co​m e​ti​do a bur​r i​c e de ser psi​c a​na​lis​ta. Não sei por que... sem​pre con​si​go fa​-
zer as pes​so​a s fa​la​r em de si mes​m as. E en​tão? Como é? Va​m os brin​c ar de psi​c o​-
te​r a​pia?
Dom não acei​tou. Que​r ia fi​c ar so​zi​nho na toca que ha​via com​pra​do com o
suor de seu ros​to, onde ti​nha con​f or​to. Era di​f e​r en​te. Pela pri​m ei​r a vez na vida
não es​ta​va fu​gin​do de nada. A mu​dan​ç a que ocor​r e​r a du​r an​te a vi​a ​gem para
Moun​tain​vi​e w, na​que​le ve​r ão, fora dra​m á​ti​c a, inex​pli​c á​vel, mas ha​via sido uma
mu​dan​ç a para me​lhor. Aos trin​ta e três anos, ele afi​nal co​m e​ç a​va a con​tro​lar a
pró​pria vida, a se​gu​r á-la pe​las ré​de​a s, a mon​tá-la de um sal​to, como os ve​lhos
cow​boys, e pre​pa​r a​va-se para ex​plo​r ar a ter​r a vir​gem que se abria à sua fren​te.
Es​ta​va gos​tan​do do novo ho​m em que via cres​c er sob sua an​ti​ga pele e nada con​-
se​gui​r ia detê-lo. Res​ta​va-lhe ape​nas um medo: o de vol​tar, por des​c ui​do, à vida
va​zia que le​va​va an​tes, e de mor​r er de té​dio.
Tal​vez Parker ti​ves​se ra​zão: as cri​ses de so​nam​bu​lis​m o po​di​a m es​tar re​la​c i​o​-
na​das com tan​tas al​te​r a​ç ões em sua vida. Mas, tal​vez, as coi​sas fos​sem bem di​f e​-
ren​tes e, nes​se caso, Dom po​de​r ia en​c on​trar ou​tras cau​sas, nem tão mi​te​r i​o​sas
nem tão com​ple​xas. Ou tal​vez, ain​da, a re​la​ç ão en​tre as duas cri​ses de per​so​na​li​-
da​de fos​se mui​to sim​ples: o so​nam​bu​lis​m o es​ta​r ia en​c o​brin​do seu medo in-
cons​c i​e n​te de dei​xar-se en​vol​ver pela ex​c i​ta​ç ão de uma nova vida. Nes​se
caso, ele te​r ia que mer​gu​lhar fun​do em si pró​prio, re​sis​tir o mais que pu​des​se e
cri​a r co​r a​gem para vol​tar à tona como um novo ho​m em. Cla​r o! Que​r ia fi​c ar em
casa, so​zi​nho, to​m ar os re​m é​di​os que o dr. Co​bletz pres​c re​ve​r a e pen​sar mui​to.
Des​de se​gun​da-fei​r a até o sá​ba​do, dia sete de de​zem​bro, a de​c i​são pa​r e​c eu-
lhe per​f ei​ta. Ha​via dias em que se​quer pre​c i​sa​va dos com​pri​m i​dos de cal​m an​te,
li​m i​tan​do-se ao so​ní​f e​r o da noi​te, que to​m a​va com um copo de lei​te ou cho​c o​la​te
quen​te. A fre​qüên​c ia das cri​ses de so​nam​bu​lis​m o di​m i​nu​í​r am. An​tes de co​m e​ç ar
a to​m ar os re​m é​di​os, Dom so​f ria cri​ses di​á ​r i​a s. Com o tra​ta​m en​to, teve ape​nas
duas: uma na quin​ta-fei​r a e ou​tra na sex​ta, am​bas bem mais cur​tas, li​m i​ta​das às
úl​ti​m as ho​r as da noi​te, qua​se ao al​vo​r e​c er. Como se não bas​tas​se, já não se de​di​-
ca​va a ta​r e​f as tão es​tra​nhas en​quan​to dor​m ia. Não reu​nia ar​m as, não er​guia bar​-
ri​c a​das nem ten​ta​va pre​gar ja​ne​las. Tan​to na quin​ta quan​to na sex​ta-fei​r a, a ex​-
cur​são no​tur​na li​m i​ta​r a-se a uma pro​sai​c a tro​c a de cama: sa​í​r a do quar​to e es​-
con​de​r a-se no ar​m á​r io do cor​r e​dor. Ver​da​de que acor​da​r a com os mús​c u​los do​-
lo​r i​dos e as per​nas dor​m en​tes, tre​m en​do de medo e sem con​se​guir lem​brar-se de
ne​nhum de​ta​lhe do so​nho que o as​sus​ta​r a.
Com a gra​ç a de Deus! Co​m e​ç a​va a me​lho​r ar.
Na quin​ta-fei​r a vol​tou a tra​ba​lhar, re​to​m an​do o fio do novo ro​m an​c e que es​-
ta​va es​c re​ven​do.
Ta​bi​tha Wy ​c om​be, sua edi​to​r a em Nova York, te​le​f o​nou-lhe na sex​ta, com
óti​m as no​tí​c i​a s. A im​pren​sa aca​ba​va de pu​bli​c ar duas crí​ti​c as de pré-lan​ç a​m en​to
do Cre​pús​c u​lo, am​bas ex​c e​len​tes. De​pois de lê-las pelo te​le​f o​ne, Ta​bi​tha con​f es​-
sou que ha​via re​ser​va​do o me​lhor para o fim: as li​vra​r i​a s con​ti​nu​a ​vam pe​din​do
o ro​m an​c e, es​ti​m u​la​das pela onda de pu​bli​c i​da​de e por cen​te​nas de exem​pla​r es
dis​tri​bu​í​dos en​tre li​vrei​r os e crí​ti​c os. Já ha​vi​a m du​pli​c a​do a ti​r a​gem ini​c i​a l​m en​te
pre​vis​ta e, a jul​gar pe​los pri​m ei​r os re​sul​ta​dos, se​r i​a m obri​ga​dos a du​pli​c á-la no​-
va​m en​te. Dom con​ver​sou ao te​le​f o​ne por mais de meia hora e, quan​do Ta​bi​tha
se
des​pe​diu e des​li​gou, ele teve a sen​sa​ç ão de que sua vida vol​ta​va à ple​na e
tran​qüi​la nor​m a​li​da​de.
No sá​ba​do, acon​te​c eu uma coi​sa es​tra​nha, que po​dia in​di​c ar tan​to real me​-
lho​r a quan​to uma re​c a​í​da. Dom nun​c a se lem​bra​va de ne​nhum de​ta​lhe dos pe​sa​-
de​los que o fa​zi​a m sair da cama e es​c on​der-se pela casa. Mas no sá​ba​do, ao
acor​dar em pâ​ni​c o, man​ti​nha na me​m ó​r ia uma úni​c a ima​gem, mui​to ní​ti​da, pre​-
sen​te, tal​vez, nos úl​ti​m os mo​m en​tos do so​nho, pou​c o an​tes de acor​dar...
Lem​brou-se de ter so​nha​do com um ba​nhei​r o do qual via ape​nas os con​tor​-
nos, como se tudo es​ti​ves​se en​vol​to em né​voa. Al​guém em​pur​r ou-o até a pia.
Dom de​bru​ç ou-se, fra​c o, en​j o​a ​do, com o es​tô​m a​go em​bru​lha​do. Não con​se​guia
ver a pes​soa a seu lado, mas sen​tia a po​de​r o​sa pres​são das mãos que lhe em​pur​-
ra​vam a ca​be​ç a. Não po​dia gri​tar, nem res​pi​r ar... Es​ta​v a mor​ren​dol Pre​c i​sa​va
fu​gir dali, es​c a​par da​que​las mãos, mas es​ta​va tão fra​c o, tão fra​c o... Di​a n​te de
seus olhos, o ralo da pia pa​r e​c ia cada vez mais pró​xi​m o, com o me​tal cro​m a​do
bri​lhan​do en​tre as bru​m as que en​vol​vi​a m tudo. Era uma da​que​las pias an​ti​gas,
que re​que​r em uma pe​que​na tam​pa de bor​r a​c ha para ve​dar a sa​í​da da água. Al​-
guém ha​via ti​r a​do a tam​pa e a água jor​r a​va com for​ç a da tor​nei​r a, ba​tia nas pa​-
re​des da cuba, res​pin​ga​va-lhe o ros​to e cor​r ia para o ralo, gi​r an​do, gi​r an​do cada
vez mais rá​pi​do, mais rá​pi​do... A pes​soa que ele não con​se​guia iden​ti​f i​c ar pren​-
dia-lhe a ca​be​ç a e gri​ta​va, mas Dom não po​dia en​ten​der o que di​zia. O ralo,
a água... Era como se aque​la mi​ni​a ​tu​r a de tur​bi​lhão ti​ves​se o po​der de ar​r an​c á-lo
da vida, do mun​do, de den​tro de si pró​prio e ar​r as​tá-lo para pro​f un​de​zas cada vez
mai​o​r es, mais ame​a ​ç a​do​r as, mais ter​r í​veis. De re​pen​te en​ten​deu o que as mãos
que​r i​a m: en​f iá-lo na pia e fazê-lo es​vair-se com a água, como se fos​se um res​to
de lixo, um osso ro​í​do, um pe​da​ç o de car​ne mal​c hei​r o​sa a ca​m i​nho do tri​tu​r a​dor
de de​tri​tos...
Acor​dou gri​tan​do. Es​ta​va no ba​nhei​r o de sua pró​pria casa, de​bru​ç a​do so​bre a
pia, gri​tan​do, com a boca ro​ç an​do o ralo. Deu um pas​so atrás e por pou​c o não
caiu de cos​tas na ba​nhei​r a. Se​gu​r ou-se à to​a ​lha pen​du​r a​da jun​to ao es​pe​lho, equi​-
li​brou-se, os jo​e ​lhos ain​da trê​m u​los, mal con​se​guin​do res​pi​r ar. Al​guns ins​tan​-
tes de​pois, quan​do a res​pi​r a​ç ão co​m e​ç ou a nor​m a​li​zar-se, vol​tou à pia e olhou
para den​tro. Nada além de um ralo co​m um de me​tal cro​m a​do numa ino​f en​si​va
pia de por​c e​la​na bran​c a. Ao lado da tor​nei​r a lu​zia a pe​que​na tam​pa cro​m a​da.
Ape​nas isso.
O ba​nhei​r o do pe​sa​de​lo não era o seu. Era ou​tro, em al​gum ou​tro lu​gar. Do​-
mi​nick la​vou o ros​to e vol​tou para o quar​to.
So​bre a mesa-de-ca​be​c ei​r a, o re​ló​gio mar​c a​va duas e meia da ma​dru​ga​da.
Em​bo​r a não fi​zes​se sen​ti​do, nem pa​r e​c es​se ter re​la​ç ão real ou sim​bó​li​c a
com sua vida, o pe​sa​de​lo ain​da o per​tur​ba​va. De qual​quer modo, já que não se
pre​o​c u​pa​r a em pre​gar as ja​ne​las, nem cor​r e​r a em bus​c a de suas ar​m as de guer​-
ra, tal​vez não fos​se tão sé​r io quan​to pa​r e​c ia. Tal​vez até fos​se um pri​m ei​r o si​nal
de me​lho​r a. Co​m e​ç a​va a lem​brar-se dos pe​sa​de​los. Aos pou​c os se lem​bra​r ia de
tudo que lhe pas​sa​va pela ca​be​ç a en​quan​to dor​m ia... Quan​do isso acon​te​c es​se,
con​se​gui​r ia des​c o​brir o que o ator​m e-tava tan​to e po​de​r ia en​f ren​tar seus fan​tas​-
mas à luz do dia. En​tão fal​ta​r ia ape​nas um pas​so para a cura.
Nem mes​m o am​pa​r a​do por tan​tas idéi​a s re​c on​f or​ta​do​r as, Dom con​se​guiu
co​r a​gem para vol​tar a dor​m ir. Ao lado da cama, na pri​m ei​r a ga​ve​ta da mesa-de-
ca​be​c ei​r a, es​ta​va o vi​dro de so​ní​f e​r o. O mé​di​c o pres​c re​ve​r a ape​nas uma cáp​su​la
por noi​te, mas que mal po​de​r ia ha​ver se, uma vez na vida, ele do​bras​se a dose?
Dom foi até a sala, ser​viu-se de um pou​c o de uís​que e vol​tou ao quar​to; en​tão
apa​nhou uma cáp​su​la, co​lo​c ou-a na boca, en​go​liu-a com a be​bi​da e en​f i​ou-se
en​tre as co​ber​tas.
Cla​r o que co​m e​ç a​va a me​lho​r ar! Já se lem​bra​va de frag​m en​tos de so​nhos...
Logo as cri​ses de so​nam​bu​lis​m o se​r i​a m ape​nas uma es​tra​nha re​c or​da​ç ão de um
es​tra​nho pe​r í​o​do de sua vida, nada mais. Re​to​m a​r ia a ro​ti​na, vol​ta​r ia a tra​ba​lhar
nor​m al​m en​te e, nas ho​r as de ócio, por puro des​f as​tio, ten​ta​r ia des​c o​brir o que
acon​te​c e​r a. Por que, em de​ter​m i​na​das cir​c uns​tân​c i​a s, um ho​m em nor​m al e
equi​li​bra​do se dei​xa​r ia en​vol​ver por me​dos, so​nhos, pe​sa​de​los ou de​lí​r i​os?
O com​pri​m i​do co​m e​ç a​va a fa​zer efei​to. Dom mer​gu​lha​va num es​ta​do de
se​m i​c ons​c i​ê n​c ia, des​li​zan​do de​va​gar, dei​xan​do-se le​var... Foi as​sim, en​tre acor​-
da​do e des​per​to, que ou​viu a pró​pria voz mur​m u​r ar bai​xi​nho, na es​c u​r i​dão do
quar​to. Di​zia al​gu​m a coi​sa... sem​pre a mes​m a, re​pe​ti​da vá​r i​a s ve​zes:
— A Lua. A Lua. A Lua. A Lua.
O que se​r ia aqui​lo? Dom ain​da ten​tou re​sis​tir, in​tri​ga​do, an​si​o​so. Mas o so​ní​-
fe​r o e o uís​que fo​r am mais for​tes e ar​r as​ta​r am-no para um sono pro​f un​do, sem
luz e sem cor.
Eram três ho​r as e onze mi​nu​tos da ma​dru​ga​da de do​m in​go, dia 8 de de​zem​-
bro.

6. NOVA YORK, NOVA YORK

Cin​c o dias de​pois de ter rou​ba​do mais de três mi​lhões de dó​la​r es da Má​f ia,
Jack Twist foi vi​si​tar uma mu​lher mor​ta que in​sis​tia em con​ti​nu​a r res​pi​r an​do.
No do​m in​go, à tar​de, es​ta​c i​o​nou seu au​to​m ó​vel na ga​r a​gem sub​terrâ​nea de
uma clí​ni​c a par​ti​c u​lar no East Side e to​m ou o ele​va​dor para su​bir à re​c ep​ç ão,
onde se apre​sen​tou à por​ta​r ia e re​c e​beu um cra​c há de vi​si​tan​te.
Nin​guém di​r ia que es​ta​va num hos​pi​tal. A por​ta​r ia e a re​c ep​ç ão eram de​c o​-
ra​das com luxo e bom gos​to, no mes​m o es​ti​lo ar​r e​f e​ç o da ar​qui​te​tu​r a. Os dois
pe​que​nos ori​gi​nais de Erté, os so​f ás e pol​tro​nas es​to​f a​dos as re​vis​tas dis​pos​tas so​-
bre uma mesa bai​xa, tudo pa​r e​c ia sa​í​do de um ce​ná​r io dos anos 20.
Ex​c es​so de luxo. Nin​guém, li​ga​va para os Erté. O hos​pi​tal eco​no​m i​za​va em
mil ou​tros de​ta​lhes, po​r ém ja​m ais ar​r is​c a​r ia com​pro​m e​ter sua ima​gem, por​que
pre​c i​sa​va con​ti​nu​a r atrain​do cli​e n​tes mi​li​o​ná​r i​os e man​ter es​tá​veis os lu​c ros anu​-
ais de cem por cen​to. Os quar​tos es​ta​vam sem​pre ocu​pa​dos: es​qui​zo​f rê​ni​c os ca​-
ta​tô​ni-cos de meia-ida​de, cri​a n​ç as au​tis​tas, jo​vens e ve​lhos co​m a​to​sos, to​dos com
o mes​m o prog​nós​ti​c o fe​c ha​do. Eram pa​c i​e n​tes em
es​ta​do crô​ni​c o, de fa​m í​li​a s ri​c as o bas​tan​te para ga​r an​tir-lhes o me​lhor aten​-
di​m en​to pos​sí​vel.
Sem​pre que pen​sa​va na​que​le hos​pi​tal, Jack fi​c a​va in​dig​na​do: como é que não
exis​tia na ci​da​de um úni​c o bom hos​pi​tal a pre​ç os ra​zo​á ​veis para do​e n​tes men​tais
ou por​ta​do​r es de le​são ce​r e​bral ir​r e​ver​sí​vel? Os im​pos​tos su​bi​a m de hora em
hora e os ser​vi​ç os pú​bli​c os de​te​r i​o​r a​vam-se a rit​m o qua​se idên​ti​c o. Era a mes​m a
coi​sa em to​dos os lu​ga​r es... A clas​se mé​dia que se da​nas​se.
Se não fos​se um la​drão prós​pe​r o, ha​bi​li​do​so e bem-su​c e​di​do, ja​m ais po​de​r ia
pa​gar o que os mé​di​c os lhe co​bra​vam pon​tu​a l​m en​te a cada fim de mês. Ben​di​to
ta​len​to! Gran​de e ben​di​to ta​len​to para a apro​pri​a ​ç ão in​dé​bi​ta.
* O cra​c há de vi​si​tan​te abriu-lhe ca​m i​nho até o ou​tro ele​va​dor que su​bia ao
quar​to an​dar, onde fi​c a​vam os quar​tos de pa​r e​des bran​c as e lim​pas, lâm​pa​das
fluo​r es​c en​tes e chei​r o de de​sin​f e​tan​te hos​pi​ta​lar. No fim do cor​r e​dor, úl​ti​m a por​-
ta à di​r ei​ta, vi​via a mu​lher mor​ta que in​sis​tia em con​ti​nu​a r res​pi​r an​do. Jack pa​-
rou na fren​te da por​ta, com a mão no trin​c o. Fe​c hou os olhos, res​pi​r ou fun​do e
en​trou.
Era um quar​to mui​to mais sim​ples que o sa​guão da re​c ep​ç ão, po​r ém agra​dá​-
vel. Pa​r e​c ia um apar​ta​m en​to de se​gun​da ca​te​go​r ia num ho​tel de luxo: pé-di​r ei​to
alto, la​r ei​r a de pe​dra cla​r a, car​pe​te ver​de-mus​go, cor​ti​nas cla​r as, um sofá es​-
tam​pa​do em tons de ver​de e duas pol​tro​nas. A te​o​r ia di​zia que os pa​c i​e n​tes sen​ti​-
am-se me​lhor em am​bi​e n​tes mais do​m és​ti​c os e me​nos fri​os que nos quar​tos de
hos​pi​tal tra​di​c i​o​nais. Di​f í​c il acre​di​tar que os pa​c i​e n​tes no​tas​sem qual​quer di​f e​-
ren​ç a, mas as vi​si​tas apre​c i​a ​vam o con​f or​to dos es​to​f a​dos.
A cama hos​pi​ta​lar des​to​a ​va pa​te​ti​c a​m en​te da de​c o​r a​ç ão ge​r al, ape​sar dos
len​ç óis es​tam​pa​dos em ale​gre e dis​c re​to co​lo​r i​do. So​bre a cama, a pa​c i​e n​te.
Jack apro​xi​m ou-se, bai​xou a gra​de e, cur​van​do-se, bei​j ou o ros​to da es​po​sa.
Ela não se mo​veu. Jack to​m ou-lhe a mão e se​gu​r ou-a en​tre as suas. Imó​vel, iner​-
te, in​sen​sí​vel, aque​la mão era ma​c ia e quen​te.
— Jenny ? Sou eu. Você está bem? Que tal? Está bo​ni​ta... bo​ni​ta como sem​-
pre.
Na ver​da​de, para uma mu​lher que, ha​via oito anos, es​ta​va em coma, não
dava um pas​so, não sa​í​r a do quar​to, e não to​m a​r a sol nem res​pi​r a​r a um áto​m o de
ar li​vre, Jenny pa​r e​c ia mui​to bem. No en​tan​to só Jack po​de​r ia di​zer sin​c e​r a​m en​te
que a acha​va bo​ni​ta. Cla​r o que Jenny já não era a mes​m a, po​r ém era di​f í​c il
acre​di​tar que vi​via na​m o​r an​do a mor​te des​de qua​se uma dé​c a​da.
Os ca​be​los per​de​r am o bri​lho, mas con​ti​nu​a ​vam far​tos como an​tes, tão cas​-
ta​nhos como quan​do ele a vira pela pri​m ei​r a vez, qua​tor​ze anos atrás, ven​den​do
per​f u​m es na se​ç ão de ar​ti​gos mas​c u​li​nos de uma loja de de​par​ta​m en​tos. As en​-
fer​m ei​r as en​c ar-* re​ga​vam-se de lavá-los duas ve​zes por se​m a​na e de es​c o​vá-
los di​a ​r i​a ​m en​te. Se qui​ses​se, Jack po​de​r ia aca​r i​c i​a r-lhe os ca​be​los, a nuca, o pes​-
co​ç o sem per​tur​bá-la, por​que já não ha​via o que pu​des​se per​tur​bar Jenny. De
qual​quer modo, não a to​c ou, por​que isso o per​tur​ba​va, e mui​to.
Jenny não ti​nha ru​gas na tes​ta, nem jun​to aos olhos, sem​pre fe​c ha​dos. Es​ta​va
ma​gra, po​r ém me​nos do que se​r ia de es​pe​r ar. Pa​r e​c ia não ter ida​de, como uma
prin​c e​sa de con​tos de fada, ador​m e​c i​da fa​zia sé​c u​los es​pe​r an​do o bei​j o que po​-
de​r ia de​vol​vê-la à vida. Ape​nas a res​pi​r a​ç ão len​ta e ca​den​c i​a ​da, que fa​zia os sei​-
os su​bi​r em e des​c e​r em sob a ca​m i​so​la e os len​ç óis do​bra​dos, in​di​c a que ela ain​da
vi​via. Uma vez ou ou​tra, Jenny en​go​lia a sa​li​va, mo​vi​m en​to in​vo​lun​tá​r io e in​-
cons​c i​e n​te que nada sig​ni​f i​c a​va.
Pa​c i​e n​te de le​são ce​r e​bral ex​ten​sa e ir​r e​pa​r á​vel, ja​m ais vol​ta​r ia a mo​ver-se.
Não ha​via es​pe​r an​ç a. Jack sa​bia dis​so e es​ta​va con​f or​m a​do. As coi​sas se​r i​a m
ain​da pi​o​r es se ela não pu​des​se re​c e​ber os cui​da​dos mé​di​c os de um bom hos​pi​tal
— fi​si​o​te​r a​pia, exer​c í​c i​os di​á ​r i​os que lhe per​m i​ti​a m con​ser​var o tô​nus mus​c u​lar.
Jack dei​xou-se fi​c ar, com a mão da es​po​sa en​tre as suas, con​tem​plan​do-lhe o
ros​to. Ha​via sete anos que pas​sa​va duas noi​tes por se​m a​na e cin​c o ou seis ho​r as
todo do​m in​go ao lado dela. As ve​zes, quan​do po​dia, apa​r e​c ia tam​bém à tar​de,
du​r an​te a se​m a​na, e ja​m ais se can​sa​va de olhá-la.
Em dado ins​tan​te, pu​xou uma das pol​tro​nas para per​to da cama e sen​tou-se,
sem​pre se​gu​r an​do a mão de Jenny e fi​tan​do-a. En​tão co​m e​ç ou a con​ver​sar com
ela. Con​tou-lhe so​bre o fil​m e que vira, so​bre dois li​vros que aca​ba​r a de ler. Fa​lou-
lhe do tem​po, do frio que fa​zia, do ven​to. Des​c re​veu-lhe em de​ta​lhes duas lin​das
vi​tri​nes de​c o​r a​das para o Na​tal que ha​via vis​to no ca​m i​nho. Jenny não sor​r iu, não
pis​c ou, não mo​veu um mús​c u​lo. Per​m a​ne​c eu como es​ta​va ha​via oito anos, como
con​ti​nu​a ​r ia até mor​r er: imó​vel, ina​m o​ví​vel.
Como se​r ia a vida de Jenny se, por aca​so, al​gu​m a sen​si​bi​li​da​de ain​da so​bre​-
vi​ves​se em seu cé​r e​bro qua​se mor​to? E se ela ain​da pu​des​se ou​vir ou en​ten​der o
que se pas​sa​va a sua vol​ta? O que sen​ti​r ia, pri​si​o​nei​r a de um cor​po que não res​-
pon​dia a or​dens, sú​pli​c as, pe​di​dos? Como se sen​ti​r ia, in​c a​paz de co​m u​ni​c ar-se
com as pes​so​a s que a cer​c a​vam, alhei​a s, dis​tan​tes, cer​tas de que ela nada via ou
sen​tia? Os mé​di​c os dis​se​r am a Jack que isso era im​pos​sí​vel: Jenny não po​dia ou​-
vir nem ver, ex​c e​to, tal​vez, ima​gens ou fan​ta​si​a s in​c om​preen​sí​veis para nós e
para ela, re​ta​lhos de idéi​a s, qual​quer coi​sa como rá​pi​dos ins​tan​tes de sen​sa​ç ões
que, por ve​zes, bri​lhas​sem en​tre os cir​c ui​tos rom​pi​dos de seu cé​r e​bro. Mas... e se
es​ti​ves​sem en​ga​na​dos?
Na dú​vi​da, Jack con​ti​nu​a ​va fre​qüen​tan​do o hos​pi​tal, sen​ta​va-se ao seu lado e
fa​la​va-lhe como se ela pu​des​se ouvi-lo. Do lado de fora, o dia tor​na​va-se cada
vez mais cin​zen​to.
As cin​c o e quin​ze da tar​de, Jack le​van​tou-se da pol​tro​na, foi até o ba​nhei​r o e
la​vou o ros​to, que en​xu​gou com os olhos fi​tos no es​pe​lho, ten​tan​do adi​vi​nhar o
que Jenny po​de​r ia ter vis​to de atra​e n​te nele. Não era um ho​m em bo​ni​to: ti​nha a
tes​ta lar​ga de​m ais e as ore​lhas enor​m es. Em​bo​r a sua vi​são fos​se per​f ei​ta, um dos
olhos, li​gei​r a​m en​te es​trá​bi​c o, es​c a​pa​va para o lado es​quer​do. — Ha​via gen​te que
não con​se​guia en​c a​r á-lo ao con​ver​sar com ele, pois ten​ta​va sa​ber com qual dos
olhos re​a l​m en​te a via. Ao rir, Jack pa​r e​c ia um pa​lha​ç o de cir​c o mam​bem​be. Ao
fran​zir as so​bran​c e​lhas, tor​na​va-se ame​dron​ta​dor. De qual​quer modo, Jenny o
ama​r a. E por isso, aci​m a de to​das as ou​tras coi​sas, Jack tam​bém
a ama​r a apai​xo​na​da​m en​te, Por isso ela lhe fa​zia tan​ta fal​ta. Por isso e por
mil ou​tros mo​ti​vos.
Jack fe​c hou os olhos e deu as cos​tas ao es​pe​lho. Não con​se​guia ima​gi​nar que
pu​des​se exis​tir no mun​do ho​m em que se sen​tis​se mais só do que ele, na​que​le mo​-
men​to. Se pu​des​se exis​tir so​li​dão mai​or do que a sua... que Deus o aju​das​se a
nun​c a des​c o​bri-la.
Vol​tou ao quar​to, apro​xi​m ou-se da cama e des​pe​diu-se da es​po​sa. Bei​j ou-a,
as​pi​r ou o per​f u​m e de seus ca​be​los e saiu. As cin​c o e meia em pon​to, dei​xou o
hos​pi​tal.
Na rua, sen​ta​do ao vo​lan​te do car​r o, olha​va em vol​ta. Pe​des​tres, mo​to​r is​tas...
gen​te como ele. Não, não exa​ta​m en​te como ele. Aque​les eram os ha​bi​tan​tes do
ou​tro lado do mun​do, do “lado cer​to”, os bons, os bem edu​c a​dos, os jus​tos, que
des​vi​a ​r i​a m os olhos ou mu​da​r i​a m de cal​ç a​da se sou​bes​sem que ele vi​via de rou​-
bar, que era um la​drão pro​f is​si​o​nal. Ja​m ais acei​ta​r i​a m a idéia de que eram os
ver​da​dei​r os cul​pa​dos pe​los cri​m es que co​m e​tia, as​sim como não acei​ta​r i​a m a
ver​da​de mais sim​ples: Jack ja​m ais te-ria se tor​na​do cri​m i​no​so se eles, os jus​tos,
os bons, não lhe ti​ves​sem fei​to o que fi​ze​r am... a ele e a Jenny.
Jack sa​bia que a amar​gu​r a não re​sol​via nada, ape​nas o fa​zia sen​tir-se mais
só, dis​tan​c i​a ​do de seus se​m e​lhan​tes. A amar​gu​r a era cor​r o​si​va, mas em mo​m en​-
tos como aque​le, a pró​pria dor pa​r e​c ia-lhe bem-vin​da, pois dava-lhe a sen​sa​ç ão
de que con​ti​nu​a ​va vivo.
Mais tar​de, de​pois de jan​tar so​zi​nho num res​tau​r an​te chi​nês, Jack vol​tou ao
es​pa​ç o​so apar​ta​m en​to onde mo​r a​va, num dos pré​di​os mais ele​gan​tes da Quin​ta
Ave​ni​da, com vis​ta para o Cen​tral Par​que. Ofi​c i​a l​m en​te, o apar​ta​m en​to era pro​-
pri​e ​da​de de uma gran​de em​pre​sa com sede em Li​c h​tens​tein, que o com​pra​r a e
pa​ga​r a com che​que vi​sa​do con​tra um ban​c o su​í​ç o; em sua con​ta eram de​bi​ta​das,
men​sal​m en​te, as des​pe​sas de con​do​m í​nio.
Jack Twist ali mo​r a​va sob o nome de Phi​lip​pe De​lon. O pes​so​a l do pré​dio e os
pou​c os vi​zi​nhos com quem con​ver​sa​va sa​bi​a m ape​nas que era fi​lho de uma rica
fa​m í​lia fran​c e​sa e dava mui​to tra​ba​lho aos pais. Era uma es​pé​c ie de ove​lha ne​-
gra, que a fa​m í​lia
de​c i​di​r a man​dar para os Es​ta​dos Uni​dos sob o pre​tex​to de que al​guém pre​c i​-
sa​va su​per​vi​si​o​nar os in​ves​ti​m en​tos. Na ver​da​de, di​zia-se, nin​guém o que​r ia na
Fran​ç a. O dis​f ar​c e era per​f ei​to, pois Jack fa​la​va fran​c ês flu​e n​te​m en​te e era ca​-
paz de con​ver​sar du​r an​te ho​r as em in​glês, com per​f ei​to so​ta​que es​tran​gei​r o, sem
co​m e​ter qual​quer des​li​ze que o tor​nas​se sus​pei​to. Cla​r o que não exis​tia fa​m í​-
lia fran​c e​sa e Jack era o úni​c o pro​pri​e ​tá​r io da em​pre​sa se​di​a ​da em Li​c h​tens​tein
res​pon​sá​vel pela con​ta no ban​c o su​í​ç o. Vi​via das ren​das que au​f e​r ia in​ves​tin​do o
que rou​ba​va. Não era, de modo al​gum, um la​drão co​m um.
No apar​ta​m en​to, di​r i​giu-se para o ar​m á​r io do quar​to, en​trou e re​m o​veu uma
das di​visões do fun​do, dali re​ti​r ou duas ma​las,
que le​vou para a sala, co​lo​c an​do-as ao lado de sua pol​tro​na fa​vo​r i​ta, jun​to à
ja​ne​la. En​tão foi até a co​zi​nha e apa​nhou uma gar​r a​f a de cer​ve​j a no re​f ri​ge​r a​-
dor. Vol​tou à sala, sen​tou-se e, na es​c u​r i​dão, fi​c ou olhan​do para o par​que co​ber​to
de neve, ven​do os ara​bes​c os ca​pri​c ho​sos que as lu​zes de​se​nha​vam en​tre as som​-
bras das ár​vo​r es des​f o​lha​das.
Es​ta​va ape​nas adi​a n​do o mo​m en​to de abrir as ma​las, e sa​bia dis​so. Afi​nal,
com um sus​pi​r o, acen​deu o aba​j ur ao lado da pol​tro​na, pu​xou a mala me​nor para
mais per​to, abriu-a e co​m e​ç ou a exa​m i​nar o que con​ti​nha. Eram jói​a s: co​la​r es,
bro​c hes, pen​dants, brin​c os de di​a ​m an​tes; uma pul​sei​r a de es​m e​r al​das e di​a ​m an​-
tes; três bra​c e​le​tes de di​a ​m an​tes e sa​f i​r as; anéis, bro​c hes, bor​ret​tes, pren-de​do​r es
de gra​va​ta, al​f i​ne​tes de ouro. Fru​to de um tra​ba​lho que ele pró​prio ha​via exe​c u​ta​-
do, so​zi​nho, seis se​m a​nas atrás. De iní​c io pen​sa​r a em le​var mais al​guém; con​tu​-
do, à me​di​da que os pla​nos avan​ç a​r am, che​ga​r a à con​c lu​são de que não pre​c i​sa​-
ria de aju​da e, como pre​vi​r a, o as​sal​to cor​r eu sem sur​pre​sas. A úni​c a sur​pre​-
sa ocor​r e​r a de​pois.
Nor​m al​m en​te, de​pois de con​c luir um as​sal​to bem pla​ne​j a​do e ri​go​r o​sa​m en​te
exe​c u​ta​do de acor​do com os pla​nos, Jack en​tra​va num es​ta​do de exal​ta​ç ão, qua​se
de eu​f o​r ia. Para ele, não se tra​ta​va ape​nas de rou​bar al​guns in​c au​tos, po​r ém de
algo mais: cada as​sal​to bem-su​c e​di​do era como um gol​pe no quei​xo do ini​m i​go,
uma len​ta e ine​xo​r á​vel vin​gan​ç a con​tra o mun​do que lhe rou​ba​r a Jenny e,
com ela, o pró​prio sen​ti​do da vida. Até os vin​te e um anos, Jack dera ao país o
me​lhor de si mes​m o, e o que re​c e​be​r a em tro​c a? Anos de pri​são num chi​quei​r o
la​ti​no-ame​r i​c a​no, à mer​c ê de um di​ta​dor as​sas​si​no. E Jenny...
Ele fe​c hou os olhos, res​pi​r ou fun​do. Mes​m o tan​tos anos de​pois, ain​da lhe doía
a lem​bran​ç a de sua vol​ta, do reen​c on​tro com Jenny, do es​ta​do em que a en​c on​-
trou quan​do, afi​nal, con​se​guiu lo​c a​li​zá-la. Não! Já che​ga​va de dar-se ao país, à
so​c i​e ​da​de... Era hora de co​m e​ç ar a re​c e​ber e, se a re​tri​bui​ç ão não lhe vi​nha na​-
tu​r al​m en​te, sa​bia onde pro​c u​r á-la. Cada vez que vol​ta​va para casa com os bol​-
sos chei​os de jói​a s ou de dó​la​r es, sen​tia-se exal​ta​do, eu​f ó​r i​c o, qua​se fe​liz. A idéia
de que es​ta​va à mar​gem da lei, e aci​m a das re​gras, sem​pre lhe cau​sa​va pra​zer.
As​sim fora, in​va​r i​a ​vel​m en​te, até o dia em que rou​ba​r a aque​las jói​a s. Em
casa, exa​m i​nan​do as pe​dras, Jack per​c e​beu que não sen​tia nada: nem ex​c i​ta​ç ão,
nem eu​f o​r ia, nem pra​zer... nada. A des​c o​ber​ta as​sus​tou-o por​que, de qual​quer
modo, o pra​zer per​ver​so de sen​tir-se vin​ga​do ain​da sig​ni​f i​c a​va al​gu​m a coi​sa, era
um úl​ti​m o laço que o man​ti​nha li​ga​do ao mun​do, aos ho​m ens e à vida.
Sen​ta​do na pol​tro​na, Jack vi​r ou a mala e es​pa​lhou as jói​a s so​bre os jo​e ​lhos,
na es​pe​r an​ç a de reen​c on​trar suas an​ti​gas emo​ç ões. Se​pa​r ou al​gu​m as pe​dras,
apro​xi​m ou-as da lâm​pa​da. Em ri​gor, ja​m ais se per​m i​ti​r ia dei​xar no apar​ta​m en​-
to, por tan​to tem​po, as pro​vas do rou​bo. Mas, por ou​tro lado, de que lhe ser​vi​r i​a m
aque​las jói​a s, se não lhe pu​des​sem dar um pou​c o de ale​gria? So​bran​c e​lhas fran​-
zi​das, Jack vol​tou a re​c o​lher as jói​a s, guar​dou-as na mala e fe​c hou-a.
Na mala mai​or, es​ta​vam os dó​la​r es da par​ti​lha do as​sal​to ao ar​m a​zém da
Má​f ia, cin​c o dias atrás. Con​se​gui​r am abrir ape​nas um dos dois co​f res, po​r ém en​-
con​tra​r am mais de três mi​lhões de dó​la​r es, mais de um mi​lhão para cada um,
em no​tas de vin​te, cin-qüen​ta e cem. Já era hora de co​m e​ç ar a con​ver​ter o di​-
nhei​r o em che​ques que pu​des​sem ser re​m e​ti​dos para sua con​ta cor​r en​te na Su​í​-
ça. No en​tan​to, es​ta​va acon​te​c en​do com os dó​la​r es o mes​m o
es​tra​nho fe​nô​m e​no: Jack ain​da não sen​tia pra​zer al​gum em tocá-los ou pen​-
sar ne​les. Os dó​la​r es tam​bém não lhe da​vam a an​si​a ​da sen​sa​ç ão de triun​f o que o
man​ti​nha à tona da vida.
Jack apa​nhou um maço de no​tas, exa​m i​nou-o, vi​r ou-o de um lado para ou​tro,
apro​xi​m ou-o do na​r iz. O chei​r o do di​nhei​r o sem​pre lhe pa​r e​c e​r a ex​c i​tan​te, mas
aque​le di​nhei​r o pa​r e​c ia di​f e​r en​te, como os di​a ​m an​tes: não lhe di​zia nada, ape​nas
exa​la​va o suor dos mui​tos de​dos pe​los quais pas​sa​r a. Jack não se sen​tiu vi​to​r i​o​so,
nem mais es​per​to que os otá​r i​os do mun​do, nem mais for​te que a lei, nem mais
in​te​li​gen​te que os ra​tos hu​m a​nos que po​vo​a ​vam as ruas do “lado cer​to” da vida,
ca​bis​bai​xos, fa​zen​do o que lhes di​zi​a m que fi​zes​sem. Sen​tiu-se oco.
Se aqui​lo ti​ves​se acon​te​c i​do de​pois do as​sal​to à Má​f ia, tal​vez pu​des​se pen​sar
que o as​sal​to o dei​xa​r a in​di​f e​r en​te por​que rou​bar la​drões não era a mes​m a coi​sa
que rou​bar os im​be​c is do “lado cer​to”. Mas... e os di​a ​m an​tes? Fora um as​sal​to
per​f ei​to, à casa de um per​f ei​to ho​m em de ne​gó​c i​os, le​gí​ti​m o re​pre​sen​tan​te dos
ra​tos. Por que não preen​c hi​a m seu va​zio?
Um dos mo​ti​vos que o le​va​r a a pla​ne​j ar novo gol​pe, logo de​pois do rou​bo dos
di​a ​m an​tes fora exa​ta​m en​te esse: es​ta​va pre​o​c u​pa​do com o va​zio que sen​tia no
pei​to. Uma das re​gras que ja​m ais de​so​be​de​c ia era a de ob​ser​var uma fol​ga de
no mí​ni​m o al​gums me​ses en​tre um tra​ba​lho e ou​tro. No en​tan​to, uma se​m a​na
de​pois de rou​bar os di​a ​m an​tes, já es​ta​va pla​ne​j an​do gol​pe ao ar​m a​zém da Má​-
fia. Ora... e se o pro​ble​m a fos​se bem mais sim​ples? Que im​por​tân​c ia po​de​r i​a m
ter di​a ​m an​tes e mi​lhões de dó​la​r es para um ho​m em que já não pre​c i​sa​va de
nada? Ti​nha di​nhei​r o su​f i​c i​e n​te para vi​ver com todo o luxo até o fim da vida e
man​ter Jenny até mes​m o se ela lhe so​bre​vi​ves​se, o que era pra​ti​c a​m en​te im​pos​-
sí​vel. Tal​vez ti​ves​se ten​ta​do en​ga​nar-se a si mes​m o o tem​po todo. Não bus​c a​va
emo​ç ões que lhe des​sem a im​pres​são de es​tar vivo... O que que​r ia, na ver​da​de,
era di​nhei​r o, mi​lhões de dó​la​r es... Como já ti​nha con​se​guin​do acu​m u​lar a for​tu​na
com que sem​pre so​nha​r a, o di​nhei​r o per​de​r a a ca​pa​c i​da​de de emo​c i​o​ná-lo.
Jack fran​ziu as so​bran​c e​lhas. Era ra​zo​á ​vel, mas al​ta​m en​te im​pro​vá​vel. Co​-
nhe​c ia-se mui​to bem. Sa​bia exa​ta​m en​te o que sen​tia ao con​c luir um tra​ba​lho... E
sa​bia-o, so​bre​tu​do, pela fal​ta que lhe fa​zi​a m, na​que​le mo​m en​to, as úl​ti​m as emo​-
ções que ain​da o man​ti​nham vivo.
Al​gu​m a coi​sa es​ta​va acon​te​c en​do, uma mu​dan​ç a, uma trans​f or​m a​ç ão, um
va​zio. Não ti​nha pla​nos, nem de​se​j o al​gum, nem ho​r i​zon​te à vis​ta. Um ca​la​f rio
per​c or​r eu-lhe a es​pi​nha. O que se​r ia dele... se per​des​se o pra​zer de sen​tir-se vin​-
ga​do? Como po​de​r ia con​ti​nu​a r vi​ven​do?!
Com ges​tos len​tos, pen​sa​ti​vos, re​c o​lo​c ou os ma​ç os de di​nhei​r o no saco onde
os guar​da​va e re​pôs o saco na mala. En​tão apa​gou a luz e dei​xou-se fi​c ar no es​-
cu​r o, be​be​r i​c an​do a cer​ve​j a, os olhos per​di​dos na neve do par​que.
Como se não bas​tas​se o medo de ter per​di​do o úl​ti​m o laço que o apro​xi​m a​va
dos ho​m ens, ain​da ha​via o pe​sa​de​lo, sem​pre o mes​m o, re​pe​tin​do-se com mui​ta
fre​qüên​c ia, du​r an​te se​m a​nas, des​de al​gu​m as noi​tes an​tes do rou​bo das jói​a s. No
so​nho, ele ten​ta​va es​c a​par de um mo​to​c i​c lis​ta de ca​pa​c e​te es​c u​r o... Era isso, pelo
me​nos lhe pa​r e​c ia, pois não se lem​bra​va de qua​se nada além do ca​pa​c e​te: nem
moto, nem ho​m em, nem ros​to... nada. Uma pes​soa sem cor​po e sem ros​to per​se​-
guia-o a pé por sa​las e cor​r e​do​r es, lon​gos e som​bri​os cor​r e​do​r es. As ve​zes ele
cor​r ia em cam​po aber​to, por uma in​f i​ni​ta es​tra​da de​ser​ta que ras​ga​va a pai​sa​-
gem, ba​nha​da pela luz es​bran​qui​ç a​da do luar. Com o so​nho, noi​te após noi​te, o
medo au​m en​ta​va. Nas úl​ti​m as noi​tes, Jack des​per​ta​r a aos gri​tos, su​a n​do frio.
A in​ter​pre​ta​ç ão do so​nho pa​r e​c ia ób​via: o ho​m em do ca​pa​c e​te era um po​li​c i​-
al; tal​vez a lei co​m e​ç as​se a sus​pei​tar dele, tal​vez Jack co​m e​ç as​se a ter medo de
ser pre​so. Era es​tra​nho... Por mais ób​via que lhe pa​r e​c es​se a idéia, Jack não con​-
se​guia con​c en​trar-se nela. O so​nho dava-lhe ou​tra sen​sa​ç ão. O ho​m em do ca​pa​-
ce​te não pa​r e​c ia ser da po​lí​c ia... não, não... Era ou​tra coi​sa. Se, pelo me​nos, pu​-
des​se ter cer​te​za de que não vol​ta​r ia a so​nhar com aque​le mal​di​to ca​pa​c e​te... O
dia já ha​via sido tão di​f í​c il! Ele vol​tou ao re​f ri​ge​r a​dor, apa​nhou ou​tra cer​ve​j a e
no​va​m en​te sen​tou-se jun​to à ja​ne​la, na es​c u​r i​dão da sala.
Era o dia 8 de de​zem​bro, e Jack Twist — ex-ofi​c i​a l do Cor​po de Bri​ga​das de
Eli​te do Exér​c i​to nor​te-ame​r i​c a​no, guer​r i​lhei​r o trei​na​do em guer​r as de que pou​-
co se ou​viu fa​lar, sal​va​dor de mi​lha​r es de vi​das nos char​c os da Amé​r i​c a Cen​tral,
so​bre​vi​ven​te das tor​tu​r as que en​lou​que​c e​r am seu me​lhor ami​go, bem-su​c e​di​do
la​drão pro​f is​si​o​nal, ho​m em de co​r a​gem qua​se so​bre-hu​m a​na — ten​ta​va des​c o​-
brir se lhe so​bra​va for​ç a para con​ti​nu​a r vi​ven​do. Se já não via sen​ti​do em rou​bar
para vin​gar-se do que ha​vi​a m fei​to a sua vida, pre​c i​sa​va achar ou​tra ra​zão para
vi​ver. E ti​nha que achá-la logo. Pre​c i​sa​va des​c o​brir al​gu​m a ou​tra coi​sa. Pre​c i​sa​-
va... de​ses​pe​r a​da​m en​te.
7. ELKO COUNTY, NE​VA​DA

Er​nie Block vo​a ​va pela es​tra​da, sem ver as pla​c as de li​m i​te de ve​lo​c i​da​de,
de​ses​pe​r a​do para che​gar logo ao Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. Não se lem​bra​va de ja​-
mais ter cor​r i​do tan​to ao vo​lan​te de um car​r o, a não ser na​que​le do​m in​go, no Vi​-
et​nã, quan​do ser​via no se​tor de In​te​li​gên​c ia da Ma​r i​nha. Di​r i​gia en​tão um jipe,
atra​ves​san​do ter​r i​tó​r io ali​a ​do, e, de re​pen​te, sem sa​ber como, vira-se apa​nha​do
no fogo cru​za​do de dois pe​lo​tões ini​m i​gos. As ba​las pas​sa​vam zu​nin​do jun​to à sua
ca​be​ç a, os mor​tei​r os ar​r an​c a​vam lama da es​tra​da, cada vez mais per​to. Quan​do,
afi​nal, afas​tou-se da li​nha de fogo, ha​via re​c e​bi​do três fe​r i​m en​tos de es​ti​lha​ç os
de gra​na​das, es​ta​va tem​po​r a​r i​a ​m en​te sur​do por cau​sa das ex​plosões, lu​ta​va para
man​ter o con​tro​le do jipe que ain​da cor​r ia mes​m o sem mais pneus nem lo​nas
nas ro​das, e ima​gi​na​va que ja​m ais con-se​gui​r ia sen​tir tan​to medo, nem que vi​-
ves​se mil anos.
Pela es​tra​da, de vol​ta a Elko, o Vi​e t​nã co​m e​ç a​va a pa​r e​c er-lhe brin​c a​dei​r a
de cri​a n​ç a. Co​m e​ç a​va a es​c u​r e​c er. Er​nie ti​nha ido a Elko pou​c o de​pois do al​m o​-
ço, a fim de com​prar man​ti​m en​tos para o mo​tel; le​va​r a o ca​m i​nhão e dei​xa​r a
Fay e en​c ar​r e​ga​da de
aten​der à re​c ep​ç ão. Ti​nha tem​po de so​bra para ir e vol​tar an​tes do cre​pús​c u​-
lo, mas o mal​di​to pneu in​ven​ta​r a de fu​r ar, e para tro​c á-lo ele per​de​r a mi​nu​tos
pre​c i​o​sos. E ain​da per​de​r a mais tem​po na bor​r a​c ha​r ia, em Elko, por​que não que​-
ria re​to​m ar a es​tra​da sem es​te​pe. So​m an​do uma coi​sa e ou​tra, es​ta​va mais de
duas ho​r as atra​sa​do, e o sol já se apro​xi​m a​va do ho​r i​zon​te para os la​dos de Gre​-
at Ba​sin.
Pi​san​do fun​do no ace​le​r a​dor, Er​nie ul​tra​pas​sou to​dos os ou​tros ve​í​c u​los que
tran​si​ta​vam pela ro​do​via. De um modo ou de ou​tro, sa​bia que ja​m ais con​se​gui​r ia
che​gar vivo em casa se a es​c u​r i​dão o sur​preen​des​se na es​tra​da. Pela ma​nhã al​-
guém en​c on​tra​r ia o ca​dá​ver de um ho​m em agar​r a​do ao vo​lan​te de um ca​m i​-
nhão, ou, se so​bre​vi​ves​se, acha​r i​a m os res​tos do que ha​via sido, re​du​zi​do a tra​pos,
lou​c o fu​r i​o​so, ge​m en​do e mor​den​do-se de hor​r or, de​pois de ter pas​sa​do ho​r as
mer​gu​lha​do na con​tem​pla​ç ão da pai​sa​gem ne​gra, em com​ple​ta es​c u​r i​dão.
Des​de o dia de Ação de Gra​ç as, fa​zia duas se​m a​nas e meia... e Fay e ain​da
não des​c o​bri​r a nada. De​pois que ela vol​tou de Wis-con​sin, Er​nie não con​se​guia
dor​m ir sem dei​xar ace​sa a lâm​pa​da de ca​be​c ei​r a, à qual se acos​tu​m a​r a du​r an​te
os dias de so​li​dão. Pela ma​nhã, la​va​va os olhos com água bo​r i​c a​da ou gas​ta​va vi​-
dros e vi​dros de co​lí​r io para en​c o​brir os si​nais da noi​te mal​dor​m i​da. Por sor​te,
Fay e não o con​vi​da​r a para sair à noi​te, nem fa​la​r a em ir ao ci​ne​m a em Elko. Por
duas ve​zes ti​ve​r a que an​dar do es​c ri​tó​r io até o res​tau​r an​te, já noi​te fe​c ha​da.
Eram ape​nas al​guns pas​sos ao lado da pa​r e​de do mo​tel, pelo ca​m i​nho mui​to bem
ilu​m i​na​do, mas Er​nie che​ga​r a a pen​sar que não con​se​gui​r ia, e que Fay e aca​ba​r ia
des​c o​brin​do seu se​gre​do. Sen​ti​r a-se frá​gil como nun​c a, vul​ne​r á​vel, in​de​f e​so... e
qua​se en​lou​que​c i​do de medo. Mas con​se​gui​r a ir e vol​tar, e Fay e não sus​pei​ta​r a
de nada.
Na Ma​r i​nha, e mes​m o de​pois da bai​xa, Er​nie ja​m ais dei​xa​r a de cor​r es​pon​-
der ao que as pes​so​a s es​pe​r a​vam... Não era jus​to que Fay e, jus​ta​m en​te ela, fos​se
a pri​m ei​r a a de​c ep​c i​o​nar-se com ele. Deus! As mãos agar​r a​das no vo​lan​te do
ca​m i​nhão, os olhos fi​tan​do a noi​te que se apro​xi​m a​va, ain​da en​c o​ber​ta pe​los úl​ti​-
mos
tons ala​r an​j a​dos do po​e n​te, Er​nie Block fran​ziu as so​bran​c e​lhas. Co​m e​ç a​va a
pen​sar numa ex​pli​c a​ç ão que até en​tão não lhe ocor​r e​r a: se​ni​li​da​de. Po​dia ser...
se​ni​li​da​de pre​c o​c e. Ti​nha ape​nas cin-qüen​ta e dois anos mas que ou​tra ex​pli​c a​-
ção po​de​r ia ha​ver? Era ter​r í​vel, po​r ém me​nos as​sus​ta​dor do que não en​c on​trar
ex​pli​c a​ç ão ne​nhu​m a.
En​ten​der era fá​c il. Acei​tar é que era di​f í​c il. Fay e de​pen​dia dele! Como po​-
de​r ia per​m i​tir que o car​r e​gas​se, como um far​do, pelo res​to de seus dias... Um
ve​lho do​e n​te! Ne​nhum dos Block ja​m ais dei​xa​r a a fa​m í​lia ao de​sam​pa​r o! Ne​-
nhum dos ma​c hos Block po​de​r ia per​m i​tir que sua mu​lher as​su​m is​se as res​pon​sa​-
bi​li​da​des e os en​c ar​gos da vida. Não! Im​pos​sí​vel. Im​pen​sá​vel!
A es​tra​da con​tor​na​va uma pe​que​na ele​va​ç ão do ter​r e​no an​tes de che​gar à
ro​do​via. Pou​c o mais de um qui​lô​m e​tro adi​a n​te es​ta​va o mo​tel, úni​c a cons​tru​ç ão
à vis​ta na pai​sa​gem de​ser​ta. Fay e acen​de​r a o lu​m i​no​so de neon, que apa​r e​c ia, ao
lon​ge, con​tra o céu ar​r o​xe​a ​do. Para Er​nie, foi como a vi​são do pa​r a​í​so.
Em al​guns mi​nu​tos a noi​te es​ta​r ia che​gan​do. Er​nie foi ti​r an​do o pé do ace​le​-
ra​dor, com medo de atro​pe​lar al​guém e ser obri​ga​do a pa​r ar an​tes de che​gar em
casa. A agu​lha do ve​lo​c í​m e​tro des​c ia: cem, no​ven​ta, se​ten​ta e cin​c o, cin​qüen​ta...
Já es​ta​va qua​se na en​tra​da do mo​tel quan​do vi​r ou a ca​be​ç a para o sul, para
lon​ge da es​tra​da. De re​pen​te, sem po​der en​ten​der o que via, sen​tiu um ar​r e​pio na
es​pi​nha. Ha​via al​gu​m a coi​sa na pai​sa​gem... al​gu​m a coi​sa que, no lus​go-fus​c o do
po​e n​te, de​li​ne​a ​va-se em de​ter​m i​na​do pon​to, a me​nos de um qui​lô​m e​tro a sua
fren​te. Uma voz in​te​r i​or di​zia-lhe que ali es​ta​va a ex​pli​c a​ç ão de to​dos os seus tor​-
men​tos.
Mas... o que ha​via com aque​le lu​gar, aque​le lu​gar em es​pe​c i​a l? O que o tor​-
na​va di​f e​r en​te do res​to da pai​sa​gem dos mi​lha​r es e mi​lha​r es de qui​lô​m e​tros qua​-
dra​dos que Er​nie co​nhe​c ia tão bem como o chão de sua casa, que já vira tan​tas
ve​zes?!
Na bai​xa​da do ter​r e​no qua​se em fren​te ao mo​tel, no acli​ve su​a ​ve, um pou​c o
an​tes, nos con​tor​nos da ter​r a, no bar​r an​c o do ar-roio que cor​r ia si​len​c i​o​so, nos ar​-
bus​tos, nas pe​dras ro​la​das como
por aca​so e es​pa​lha​das por to​dos os la​dos... ha​via al​gu​m a coi​sa que pa​r e​c ia
que​r er fa​lar-lhe. Al​gu​m a coi​sa mis​te​r i​o​sa que es​pe​r a​va, exi​gin​do in​ves​ti​ga​ç ão!
Era como se a pró​pria ter​r a lhe gri​tas​se: “Aqui, Er​nie! E aqui que você en​c on​tra​-
rá al​gu​m as das res​pos​tas de que pre​c i​sa... Aqui en​c on​tra​r á par​te da ex​pli​c a​ç ão
de seus me​dos no​tur​nos. Aqui...”
Era ri​dí​c u​lo e es​pan​to​so, mas Er​nie viu-se es​ta​c i​o​nan​do o ca​m i​nhão a me​nos
de qui​nhen​tos me​tros de casa. Que​r ia ir até lá! Que​r ia che​gar ao pon​to que atra​ía
sua aten​ç ão! Sen​tiu-se como um ilu​m i​na​do, um es​c o​lhi​do dos deu​ses, em ple​na e
glo​r i​o​sa epi-fa​nia, pa​r a​do di​a n​te das por​tas de uma re​ve​la​ç ão mo​nu​m en​tal, es​-
pan​to​sa.
Sal​tou do ca​m i​nhão e dis​pôs-se a atra​ves​sar a pis​ta para che​gar a uma ele​va​-
ção do ter​r e​no, do ou​tro lado, de onde po​de​r ia ver me​lhor a fa​tia de ter​r a que o
hip​no​ti​za​va. Pre​c i​sou es​pe​r ar que pas​sas​sem duas car​r e​tas an​tes de atra​ves​sar a
es​tra​da. O co​r a​ç ão ba​tia-lhe for​te, e Er​nie es​que​c eu com​ple​ta​m en​te que a noi​te
já lhe che​ga​va aos cal​c a​nha​r es.
Pa​r ou no acos​ta​m en​to e es​pe​r ou, in​di​f e​r en​te ao frio e ao ven​to ge​la​do que
so​pra​va sem pa​r ar.
Apro​xi​m a​va-se o mo​m en​to... Al​gu​m a coi​sa ter​r i​vel​m en​te im​por​tan​te es​ta​va
para acon​te​c er... De re​pen​te, foi como se suas sen​sa​ç ões gi​r as​sem em re​de​m o​i​-
nho so​bre um eixo in​vi​sí​vel e mu​das​sem de di​r e​ç ão: não! Al​gu​m a coi​sa já acon​-
te​c e​r a... exa​ta​m en​te ali, na​que​le lo​c al! Não con​se​guia pen​sar, nem lem​brar,
nem en​ten​der, mas não du​vi​da​va: o medo do es​c u​r o co​m e​ç a​r a ali, em al​gum
mo​m en​to de al​gum tem​po... Er​nie des​c o​briu que sa​bia de tudo... po​r ém ja​m ais
con​se​gui​r ia lem​brar-se. A me​m ó​r ia o tra​ía e o trai​r ia sem​pre!
Lou​c u​r a! Era im​pos​sí​vel... Qual​quer fato que ti​ves​se ocor​r i​do ali e fos​se su​f i​-
ci​e n​te​m en​te im​por​tan​te para de​sen​c a​de​a r tan​tos efei​tos em seu com​por​ta​m en​to
te​r ia sido pre​sen​c i​a ​do tam​bém por Fay e. Er​nie não era es​que​c i​do, dis​tra​í​do, ou
idi​o​ta... Não era ho​m em de re​pri​m ir me​m ó​r i​a s per​tur​ba​do​r as... Lu​ta​r a na guer​-
ra,
en​f ren​ta​r a ini​m i​gos, en​c a​r a​r a a pró​pria mor​te, e ja​m ais se aba​la​r a com ne​-
nhum dos hor​r o​r es de que fora tes​te​m u​nha.
Ain​da as​sim, o suor ge​la​do con​ti​nu​a ​va a co​lar-lhe a ca​m i​sa às cos​tas. Bem
ali, à fren​te de sua casa, à vis​ta de to​dos, al​gu​m a coi​sa acon​te​c e​r a com ele, um
re​lâm​pa​go, uma fa​gu​lha de re​a ​li​da​de que seu cons​c i​e n​te não con​se​guiu as​si​m i​lar
e se​pul​tou para sem​pre nas som​bras do es​que​c i​m en​to. De re​pen​te, sem ra​zão
apa​r en​te, ele co​m e​ç a​va a lem​brar-se... como se uma pi​c a​da de agu​lha, du​r an​te
a noi​te, in​c om​preen​sí​vel e re​pen​ti​na, o fi​zes​se acor​dar de um pe​sa​de​lo.
Ca​be​ç a er​gui​da, pés se​pa​r a​dos e plan​ta​dos no chão com fir​m e​za, pei​to aber​-
to e for​te, om​bros po​de​r o​sos, pa​r e​c ia de​sa​f i​a r o ho​r i​zon​te. Que​r ia ou​vir o que
aque​la pai​sa​gem ti​ves​se para di​zer-lhe, por mais as​sus​ta​dor, ter​r í​vel, mons​truo​so
que fos​se. Que​r ia lem​brar-se! Se con​se​guis​se, tal​vez pu​des​se vi​ver de novo como
an​tes, como um ho​m em! No en​tan​to, as​sim como se abri​r a por um ins​tan​te, a
me​m ó​r ia fe​c hou-se no​va​m en​te. A pai​sa​gem vol​tou a ser a mes​m a de to​das as
tar​des, sem se​gre​dos, sem mis​té​r i​os, sem ves​tí​gi​os de acon​te​c i​m en​tos in​só​li​tos.
Er​nie sen​tiu-se mur​c har como um ba​lão fu​r a​do, sem tre​m o​r es, sem suor frio. No
pei​to, o co​r a​ç ão re​to​m ou o rit​m o nor​m al e tran​qüi​lo de to​dos os dias.
Er​nie pis​c ou, res​pi​r ou fun​do e olhou em tor​no sem en​ten​der o que fa​zia no
acos​ta​m en​to, lon​ge do ca​m i​nhão. Pe​diu a Deus que Fay e não o vis​se da ja​ne​la
do mo​tel. Se, por aca​so, ela se apro​xi​m as​se da por​ta e olhas​se para a es​tra​da,
cer​ta​m en​te ve​r ia a luz ama​r e​la​da do pis​c a-pis​c a do ca​m i​nhão. Era a úni​c a luz
pró​xi​m a, uma úni​c a pe​que​na luz bri​lhan​do na es​c u​r i​dão da noi​te que já en​vol​via
tudo. Ape​nas no ho​r i​zon​te, lon​ge, ain​da ha​via uma nes​ga de sol ama​r e​lo-ar​r o​xe​a ​-
do.
A noi​te! Foi como um mur​r o no pei​to. A exal​ta​ç ão dos mo​m en​tos em que
qua​se se lem​bra​r a ti​nham-no fei​to es​que​c er o medo da es​c u​r i​dão. Sem a exal​ta​-
ção para pro​te​gê-lo, es​ta​va só, à mer​c ê da noi​te, em ple​na es​tra​da. Gri​tou e dis​-
pa​r ou a cor​r er. Ou​viu o ran​ger dos frei​os de um ca​m i​nhão que qua​se o atro​pe​lou,
ou​viu o ge​m i​do gra​ve da bu​zi​na de uma car​r e​ta que des​vi​ou do cami-
nhao, e con​ti​nuou cor​r en​do, alu​c i​na​do. A es​c u​r i​dão pa​r e​c ia agi​gan​tar-se a
seu re​dor, qua​se al​c an​ç an​do-o. Ele pa​r ou um ins​tan​te jun​to à por​ta do ca​m i​nhão,
os olhos fe​c ha​dos, a ní​ti​da im​pres​são de que a noi​te se ins​ta​la​r a na ca​bi​ne do mo​-
to​r is​ta. Bas​ta​r ia abrir a por​ta para fazê-la es​c a​par para sem​pre, vis​c o​sa, den​sa...
Num úl​ti​m o e de​ses​pe​r a​do ges​to, como se es​c o​lhes​se apres​sar a mor​te que o
es​pe​r a​va, abriu a por​ta do ca​m i​nhão e ou​viu-a ba​ter con​tra a car​r o​c e​r ia. Sem
pen​sar, sal​tou para den​tro da ca​bi​ne. Nada... A noi​te não che​ga​r a ali. En​tão era
pre​c i​so fe​c har-se no ca​m i​nhão e es​pe​r ar. Olhos fe​c ha​dos, os den​tes ba​ten​do de
medo, ele tran​c ou a por​ta e fe​c hou o vi​dro. A idéia de que es​ta​va a pou​c os me​-
tros de casa deu-lhe for​ç as para re​a ​gir. Er​nie gi​r ou a cha​ve na ig​ni​ç ão e viu os
fa​r óis acen​de​r em-se a sua fren​te... Era luz! Sa​bia que não ti​nha con​di​ç ões de vol​-
tar à ro​do​via e apro​xi​m ar-se do mo​tel pela en​tra​da prin​c i​pal; no en​tan​to, tal​vez
con​se​guis​se con​tro​lar-se pelo me​nos até che​gar ao por​tão de sa​í​da do es​ta​c i​o​na​-
men​to. Foi o que fez. Qua​se sem sen​tir, ma​no​brou o ca​m i​nhão e es​ta​c i​o​nou-o
adi​a n​te da ja​ne​la da re​c ep​ç ão. Lá es​ta​va Fay e. Fal​ta​va ape​nas atra​ves​sar o pá​tio
do es​ta​c i​o​na​m en​to.
Ao vê-lo apro​xi​m ar-se cor​r en​do, ca​bis​bai​xo, Fay e abriu a por​ta.
— Já co​m e​ç a​va a me pre​o​c u​par — dis​se, sor​r in​do.
— O pneu fu​r ou...
Er​nie ca​m i​nhou até o bal​c ão, sem le​van​tar a ca​be​ç a, fin​gin​do que ten​ta​va
cor​r er o zí​per da ja​que​ta. Pre​c i​sou de al​guns ins​tan​tes para sen​tir-se com co​r a​-
gem de olhar para Fay e e sor​r ir. Mas es​ta​va em casa, ao lado da es​po​sa, e isso o
de​vol​via a um es​ta​do bem pró​xi​m o da nor​m a​li​da​de, o su​f i​c i​e n​te, es​pe​r a​va, para
que ela não des​c on​f i​a s​se de nada.
— Fi​quei com sau​da​de... — de​c la​r ou Fay e, de cos​tas para o bal​c ão, ar​r an​-
jan​do as pre​gas da cor​ti​na.
— Pa​r e​c e que saí há me​ses...
— E... Acho que es​tou apai​xo​na​da por você. Fi​quei com sau​da​de, como se
não o vis​se há mui​to tem​po. Não pos​so vi​ver sem você.
Fay e apro​xi​m ou-se do bal​c ão, en​c os​tou-se ao lado do ma​r i​do e bei​j ou-o.
Em​bo​r a es​ti​ves​sem ca​sa​dos ha​via mui​to tem​po, seus bei​j os eram sem​pre sin​c e​-
ros e chei​os de ca​lor. Es​ta​vam jun​tos fa​zia trin​ta e um anos, mas os bei​j os de
Fay e ain​da ti​nham o po​der de re​j u​ve​nes​c ê-lo.
— Com​prou os man​ti​m en​tos? E o ma​te​r i​a l elé​tri​c o? As lâm​pa​das e as to​-
ma​das que en​c o​m en​dei? — Ela se afas​tou. — Des​c ar​r e​gou o ca​m i​nhão?
— Não... — Er​nie olhou so​bres​sal​ta​do para a por​ta por onde ha​via en​tra​do.
— Es​tou can​sa​do... Não que​r o mais tra​ba​lhar hoje.
— Mas são só umas lâm​pa​das... Duas ou três cai​xas de la​ta​r ia...
— Sim, eu sei... — Ele sor​r iu e deu-lhe as cos​tas. — Juro que ama​nhã de
ma​nhã car​r e​go to​das as la​tas que você qui​ser. As cai​xas es​tão se​gu​r as no ca​m i​-
nhão... Mas... — Olhou em tor​no, per​ple​xo. — Você já pre​pa​r ou a re​c ep​ç ão! A
de​c o​r a​ç ão de Na​tal... Está lin​da!
— Não diga que você per​c e​beu! — Fay e riu alto.
Fes​tões ver​des, fi​tas ver​m e​lhas e dou​r a​das, pi​nhas e bo​las co​lo​r i​das en​f ei​ta​-
vam a por​ta e a pa​r e​de so​bre o sofá. Ao lado dos car​tões-pos​tais, um Pa​pai Noel
em ta​m a​nho na​tu​r al cur​va​va-se dan​do boas-vin​das a quem en​tras​se. So​bre o bal​-
cão, re​nas co​lo​r i​das pu​xa​vam um pe​que​no tre​nó de lou​ç a, car​r e​ga​do de pre​sen​-
tes.
— Você su​biu na es​c a​da para pen​du​r ar es​sas bo​las? — Er​nie er​gueu os
olhos para o teto.
— Na es​c a​da pe​que​na.
— Já lhe dis​se que é pe​r i​go​so su​bir na es​c a​da quan​do não es​tou em casa. E
se você ca​ís​se?
— Pois tam​bém já lhe dis​se que não sou fei​ta de por​c e​la​na, que​r i​do. —
Fay e olhou para o ma​r i​do. — O pro​ble​m a é que vo​c ês, ve​lhos lo​bos-do-mar,
pas​sam a vida que​r en​do se fa​zer de for​tes. Os su​per-ho​m ens...
— E mes​m o?
Al​guém ba​teu com os nós dos de​dos na por​ta da fren​te e en​trou. Era um ca​-
mi​nho​nei​r o à pro​c u​r a de um quar​to para pas​sar a noi​te. O co​r a​ç ão de Er​nie dis​-
pa​r ou, e ele só vol​tou a sen​tir-se se​gu​r o quan​do viu o ho​m em fe​c har a por​ta no​-
va​m en​te. Tra​ta​va-
se de um su​j ei​to alto e ma​gro, de cha​péu de cow​boy, ja​que​ta e cal​ç a de
brim. Fay e sor​r iu para ele, elo​gi​ou o cha​péu, como era seu cos​tu​m e. Ela sem​pre
acha​va al​gu​m a coi​sa agra​dá​vel para di​zer a qual​quer hós​pe​de que che​gas​se e
con​se​guia fa​zer com que to​dos se sen​tis​sem à von​ta​de, em se​gu​r an​ç a.
Er​nie dei​xou-a preen​c her a fi​c ha do ca​m i​nho​nei​r o e foi pen​du​r ar o ca​sa​c o
num dos gan​c hos jun​to à por​ta. De​pois di​r i​giu-se à mesa onde Fay e dei​xa​r a a
cor​r es​pon​dên​c ia do dia: con​tas, como sem​pre, ma​te​r i​a l de pu​bli​c i​da​de, uma car​-
ta pe​din​do do​na​ti​vos para uma as​so​c i​a ​ç ão de ca​r i​da​de, o che​que de sua pen​são,
o pri​m ei​r o car​tão de Na​tal do ano, e um en​ve​lo​pe bran​c o, co​m um, sem en​de​r e​-
ço do re​m e​ten​te. Er​nie abriu-o: con​ti​nha ape​nas uma foto co​lo​r i​da, ti​r a​da em
fren​te ao mo​tel, jun​to à por​ta do quar​to nú​m e​r o nove. Um ho​m em, uma mu​lher
e uma me​ni​na sor​r i​a m para a câ​m a​r a. O ho​m em, com pou​c o me​nos de trin​ta
anos, era mo​r e​no e sim​pá​ti​c o. A mu​lher, tam​bém mo​r e​na, pa​r e​c ia um pou​c o
mais jo​vem. E a me​ni​na, en​tre cin​c o e seis anos, era ex​c ep​c i​o​nal​m en​te bo​ni​ta. A
jul​gar pe​los shorts e ca​m i​se​tas que usa​vam e pelo sol que bri​lha​va na pa​r e​de do
mo​tel, de​vi​a m ter po​sa​do para o fo​tó​gra​f o no auge do ve​r ão.
In​tri​ga​do, Er​nie exa​m i​nou o ver​so da foto, à pro​c u​r a de uma de​di​c a​tó​r ia ou
de qual​quer iden​ti​f i​c a​ç ão. Nada. O en​ve​lo​pe tam​bém não lhe ser​viu para sa​ber
de quem se tra​ta​va. Pelo ca​r im​bo do cor​r eio, con​c luiu que a fo​to​gra​f ia ha​via sido
pos​ta​da em Elko, no sá​ba​do an​te​r i​or, dia 7 de de​zem​bro.
Vol​tou a olhar para as pes​so​a s re​tra​ta​das, ten​tan​do lem​brar se as co​nhe​c ia.
De re​pen​te, sen​tiu a nuca cris​par-se, o co​r a​ç ão dis​pa​r ar... exa​ta​m en​te como no
mo​m en​to em que des​c o​bri​r a aque​la pe​que​na por​ç ão de ter​r a jun​to à ro​do​via.
As​sus​ta​do, dei​xou a foto cair so​bre a mesa e vi​r ou o ros​to.
Jun​to ao bal​c ão, Fay e con​ti​nu​a ​va a con​ver​sar com o ca​m i​nho​nei​r o de cha​-
péu de cow​boy. Er​nie a viu vi​r ar-se para apa​nhar uma das cha​ves pen​du​r a​das no
pai​nel e não des​vi​ou os olhos. Fay e ti​nha o po​der de acal​m á-lo, mes​m o de lon​ge,
mes​m o sem per​c e​ber que ele a olha​va. Já era lin​da quan​do a co​nhe​c e​r a e, na​-
que​le mo-
men​to, tan​tos anos pas​sa​dos, pa​r e​c ia-lhe ain​da mais bo​ni​ta. Tal​vez os pri​m ei​-
ros fios bran​c os co​m e​ç as​sem a apon​tar en​tre seus ca​be​los loi​r os mas se​r ia di​f í​c il
per​c e​bê-los. Os olhos azuis e bri​lhan​tes da ado​les​c en​te pela qual Er​nie se apai​xo​-
na​r a con​ti​nu​a ​vam os mes​m os, tal​vez mais lu​m i​no​sos e, com cer​te​za, mais ma​du​-
ros e sá​bi​os. Fay e ti​nha o ros​to aber​to e fran​c o das mu​lhe​r es de Iowa, às ve​zes
ex​plo​si​vas, mas sem​pre con​f i​á ​veis.
Quan​do, afi​nal, o ca​m i​nho​nei​r o se afas​tou, le​van​do a cha​ve, Er​nie já se sen​-
tia mais cal​m o. Le​van​tou-se, apa​nhou a fo​to​gra​f ia e le​vou-a até ao bal​c ão.
— Sabe o que é isso? — per​gun​tou.
— Uma fa​m í​lia em fren​te ao quar​to nú​m e​r o nove. — Fay e bai​xou os olhos
para a foto. — De​vem ter pas​sa​do por aqui. — Fran​ziu as so​bran​c e​lhas, exa​m i​-
nan​do os três ros​tos com mais aten​ç ão. — E... mas não me lem​bro de​les. Nun​c a
vi essa fa​m í​lia... E gen​te des​c o​nhe​c i​da.
— E por que nos man​da​r i​a m uma foto? Sem nome, en​de​r e​ç o, nada?
— Ora... Com cer​te​za ima​gi​na​r am que nos lem​bra​r í​a ​m os de​les.
— Mas para isso se​r ia ne​c es​sá​r io que ti​ves​sem fi​c a​do vá​r i​os dias aqui —
Er​nie ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, cada vez mais in​tri​ga​do. — Que ti​vés​se​m os con​ver​sa​do
e nos co​nhe​c i​do um pou​c o me​lhor, pelo me​nos. Tam​bém te​nho cer​te​za de que
ja​m ais os vi. — Gos​ta​va de cri​a n​ç as e ja​m ais es​que​c e​r ia aque​la me​ni​na se al​-
gum dia a ti​ves​se vis​to. — A ga​r o​ti​nha é lin​da.
— Mais di​f í​c il se​r ia você es​que​c er a mãe da ga​r o​ti​nha — Fay e co​m en​tou,
rin​do. — Pa​r e​c e ar​tis​ta de ci​ne​m a.
— Ca​r im​bo de Elko... — Er​nie mal a ou​viu. — Por que, di​a ​bos, al​guém sai​-
ria de Elko para vir dor​m ir aqui no mo​tel?
— Tal​vez não mo​r em em Elko. Tal​vez te​nham vin​do nas fé​r i​a s do úl​ti​m o
ve​r ão. Ti​r a​r am essa fo​to​gra​f ia, vol​ta​r am para casa... No sá​ba​do, por aca​so, pas​-
sa​r am por Elko, lem​bra​r am-se de nós e man​da​r am a foto.
— Sem nome nem en​de​r e​ç o? Sem um car​tão?!
— E... isso é es​tra​nho...
— Es​sas fo​tos já saem re​ve​la​das da câ​m a​r a — ele pen​sou em voz alta. —
Por que não a dei​xa​r am co​nos​c o an​tes de par​tir?
A por​ta,abriu-se ou​tra vez, e en​trou um ra​paz de ca​be​los cres​pos e bi​go​de
far​to, es​f re​gan​do as mãos ge​la​das:
— Tem va​gas? — per​gun​tou, apro​xi​m an​do-se do bal​c ão. Er​nie dei​xou-o
en​tre​gue a Fay e e vol​tou para jun​to da mesa de
car​va​lho. Ti​nha a in​ten​ç ão de reu​nir toda a cor​r es​pon​dên​c ia e su​bir, mas dei​-
xou-se fi​c ar, imó​vel, pen​sa​ti​vo, olhos fi​xos nos três ros​tos da fo​to​gra​f ia.
Era ter​ç a-fei​r a, 10 de de​zem​bro, à noi​te.
8. CHI​CA​G O, IL​LI​NOIS
Quan​do Bren​dan Cro​nin se apre​sen​tou como aten​den​te no Hos​pi​tal In​f an​til
São José, o dr. Jim Mc​Mur​try era o úni​c o a co​nhe​c er sua ver​da​dei​r a iden​ti​da​de.
O pa​dre Wy ​c a​zik fi​ze​r a-o pro​m e​ter que guar​da​r ia se​gre​do e, tam​bém, que cui​-
da​r ia de dar mui​to tra​ba​lho a Bren​dan. Quan​to mais de​sa​gra​dá​veis as ta​r e​f as,
me​lhor, re​c o​m en​da​r a o pá​r o​c o. As​sim, no pri​m ei​r o dia de tra​ba​lho, cou​be a
Bren​dan tro​c ar ca​m as de do​e n​tes gra​ves, que dei​xa​vam os len​ç óis em​pa​pa​dos de
uri​na e fe​zes; lim​par uri​nóis e pri​va​das; au​xi​li​a r os fi​si​o​te​r a​peu​tas nos exer​c í​c i​os
pas​si​vos apli​c a​dos a cri​a n​ç as co​m a​to​sas; dar co​m i​da na boca de um me​ni​no de
oito anos, pa​r a​lí​ti​c o; em​pur​r ar ca​dei​r as de ro​das; lim​par o vô​m i​to e la​var as rou​-
pas de dois pa​c i​e n​tes de cân​c er, cons​tan​te​m en​te nau​se​a ​dos por efei​to da qui​m i​o​-
te​r a​pia. Nin​guém se pre​o​c u​pou em agra​de​c er-lhe os ser​vi​ç os nem o cha​m ou de
pa​dre Cro​nin. En​f er​m ei​r as, mé​di​c os, as​sis​ten​tes, pa​c i​e n​tes e fa​xi​nei​r os cha​m a​-
vam-no sim​ples​m en-tes de Bren​dan e não lhe per​m i​ti​a m es​que​c er, nem por um
ins​tan​te, a far​sa em que se trans​f or​m a​r a sua vida.
Ar​r a​sa​do pelo so​f ri​m en​to da​que​las cri​a n​ç as, ao fi​nal do pri​m ei​r o dia Bren​-
dan es​c on​deu-se no ba​nhei​r o mas​c u​li​no, tran​c ou-se por den​tro e lá fi​c ou, cho​r an​-
do. Fora obri​ga​do a mas​sa​ge​a r e mo​vi​m en​tar ar​ti​c u​la​ç ões de pa​c i​e n​tes de ar​tri​te
reu​m a​tói​de, cu​j as jun-
tas in​c ha​das e do​lo​r i​das mal su​por​ta​vam o con​ta​to da gaze em​be​bi​da em
anes​té​si​c o. Em ra​r os ca​sos o anes​té​si​c o lo​c al con​se​guia ali​vi​a r a ar​dên​c ia da
pele, sob a qual os os​sos pa​r e​c i​a m par​tir-se a cada exer​c í​c io. O cal​vá​r io das po​-
bres cri​a n​ç as era qua​se in​su​por​tá​vel. E ha​via ain​da as que apre​sen​ta​vam mús​c u​-
los atro​f i​a ​dos, fe​r i​das pu​r u​len​tas e fé​ti​das re​sul​tan​tes de quei​m a​du​r as, mu​ti​la​ç ões
cau​sa​das por es​pan​c a​m en​to e maus-tra​tos. Bren​dan cho​r a​va por to​das as suas
cri​a n​ç as.
Por mais que se es​f or​ç as​se, não con​se​guia en​ten​der o que o pa​dre Wy ​c a​zik
pre​ten​dia com aque​la te​r a​pia pelo de​ses​pe​r o. Se ele já não era um ho​m em de fé,
por que o obri​ga​va a con​vi​ver de per​to com os li​m i​tes do so​f ri​m en​to hu​m a​no? Se
exis​tia um Deus de mi​se​r i​c ór​dia e amor, se Je​sus re​a l​m en​te vi​e ​r a ao mun​do
para nos sal​var, por que os ino​c en​tes con​ti​nu​a ​vam a so​f rer, mor​r en​do de​va​gar,
um pou​c o por dia? Ah, sim... Bren​dan co​nhe​c ia de cor os ar​gu​m en​tos dos dou​to​-
res da Igre​j a: a hu​m a​ni​da​de es​ta​va à mer​c ê da dor e do so​f ri​m en​to por​que se se​-
pa​r ou de Deus, por​que o es​que​c eu, por​que ig​no​r ou a gra​ç a di​vi​na. Mas de que
va​li​a m os ar​gu​m en​tos te​o​ló​gi​c os fren​te aos ge​m i​dos de uma cri​a n​ç a di​la​c e​r a​-
da pela dor?!
No se​gun​do dia de tra​ba​lho, o pes​so​a l mé​di​c o ain​da o cha​m a​va de Bren​dan,
mas as cri​a n​ç as já ha​vi​a m ado​ta​do o ape​li​do de “Bo​lo​ta”, que ele mes​m o su​ge​r i​-
ra aos pa​c i​e n​tes da en​f er​m a​r ia, in​ter​r om​pen​do a lei​tu​r a de uma lon​ga his​tó​r ia.
As cri​a n​ç as ado​r a​r am a his​tó​r ia que Bren​dan leu, po​r ém gos​ta​r am mui​to
mais das ou​tras que ele in​ven​tou ao sa​bor da fan​ta​sia, em​ba​la​do pe​los ri​sos que
ar​r an​c a​va de al​guns, pe​los sim​ples sor​r i​sos de ou​tros, pelo si​lên​c io pa​c i​f i​c a​do de
tan​tos. Para al​gu​m as da​que​las cri​a n​ç as, o si​lên​c io era si​nal de má​xi​m a fe​li​c i​da​-
de, pois in​di​c a​va que, pelo me​nos, não ou​vi​a m os pró​pri​os ge​m i​dos. Ao tér​m i​no
do se​gun​do dia, ele ain​da cho​r ou, tran​c a​do no ba​nhei​r o, mas ape​nas por al​guns
mi​nu​tos.
No ter​c ei​r o dia, o ape​li​do ge​ne​r a​li​zou-se. Mé​di​c os, en​f er​m ei​r as, aten​den​tes,
to​dos es​que​c e​r am-se de Bren​dan para sem​pre: nas​c ia “Bo​lo​ta”, o ami​go das cri​-
an​ç as. Se não con​se​guis​se reen​c on​trar
a fé, Bren​dan pelo me​nos já ti​nha como ga​nhar a vida. Po​de​r ia em​pre​gar-se
como aten​den​te em hos​pi​tais in​f an​tis. Além de fa​zer tudo o que lhe ca​bia, ain​da
en​c on​tra​va tem​po para dis​trair os pa​c i​e n​tes com suas his​tó​r i​a s e ca​r e​tas en​gra​ç a​-
das. Pe​los cor​r e​do​r es, ou​vi​a m-se, a todo ins​tan​te, as vo​zes agu​das das cri​a n​ç as
en​f er​m as, cha​m an​do-o pelo ve​lho ape​li​do. E Bren​dan sen​tia-se re​c on​c i​li​a ​do, se​-
não com Deus, pelo me​nos com a vida. Já não cho​r a​va no ba​nhei​r o dos ho​m ens.
As ve​zes, quan​do a lem​bran​ç a de al​gum de seus pe​que​nos ami​gos lhe doía de​-
mais, cho​r a​va à noi​te, no quar​to de ho​tel onde dor​m ia des​de que dei​xa​r a a casa
pa​r o​qui​a l.
Na quar​ta-fei​r a à tar​de, exa​ta​m en​te uma se​m a​na de​pois de ter sido ad​m i​ti​do
como aten​den​te no hos​pi​tal, Bren​dan afi​nal en​ten​deu o que ha​via por trás dos pla​-
nos do pa​dre Wy ​c a​zik. Foi como uma ilu​m i​na​ç ão — não di​vi​na, mas ple​na​m en​te
ra​c i​o​nal. Uma des​c o​ber​ta sú​bi​ta, re​pen​ti​na, que o co​lheu en​quan​to pen​te​a ​va uma
das cri​a n​ç as.
Era uma me​ni​na de dez anos, Em​m e​li​ne, pa​c i​e n​te de rara e gra​vís​si​m a
afec​ç ão ós​sea. Emmy, como to​dos a cha​m a​vam, or​gu​lha​va-se mui​to, e com ra​-
zão, de seus lin​dos ca​be​los ne​gros, far​tos e bri​lhan​tes; sem​pre que po​dia, es​c o​va​-
va-os so​zi​nha, mas, às ve​zes, as ar​ti​c u​la​ç ões das mãos e dos bra​ç os do​í​a m-lhe
tan​to que ela mal con​se​guia se​gu​r ar a es​c o​va. Na quar​ta-fei​r a, Bren​dan aco​m o​-
dou-a numa ca​dei​r a de ro​das e le​vou para a sala de rai​os X, onde os mé​di​c os re​-
gu​lar​m en​te fa​zi​a m o acom​pa​nha​m en​to do efei​to das dro​gas que a me​ni​na es​ta​va
to​m an​do. Uma hora de​pois, ele a re​c on​du​ziu ao quar​to e co​m e​ç ou a es​c o​var-lhe
os ca​be​los. Emmy olha​va pela ja​ne​la e, de re​pen​te, apon​tan​do para fora com o
dedi-nho de​f or​m a​do, per​gun​tou:
— Está ven​do aque​la man​c ha de neve?
Bren​dan olhou na di​r e​ç ão in​di​c a​da, mas não viu nada além de uma man​c ha
cla​r a so​bre o ci​m en​to cin​zen​to do pá​tio in​ter​no do hos​pi​tal.
— Pa​r e​c e um na​vio — ex​pli​c ou ela. — Um lin​do na​vio an​ti​go, com três
ve​las chei​a s de ven​to, vo​a n​do por cima das on​das.
De iní​c io, Bren​dan não con​se​guiu ver nem na​vio nem ve​las
chei​a s de ven​to, mas, aos pou​c os, in​sis​tin​do, per​c e​beu que, de fato, a man​c ha
de neve lem​bra​va va​ga​m en​te a fi​gu​r a que a me​ni​na con​ti​nu​a ​va a des​c re​ver com
de​ta​lhes cada vez mais ri​c os.
— E veja só os en​f ei​tes na ja​ne​la — dis​se ela, de​pois de es​go​tar a des​c ri​-
ção do na​vio. — Até pa​r e​c e que a vi​dra​ç a vi​r ou ár​vo​r e de Na​tal!
Tudo que Bren​dan dis​tin​guia na su​per​f í​c ie do vi​dro eram go​tas de água con​-
ge​la​das; no en​tan​to, com​preen​dia que a me​ni​na as trans​f or​m as​se nos en​f ei​tes co​-
lo​r i​dos de uma fan​tás​ti​c a ár​vo​r e de Na​tal. Pre​sa na​que​le hos​pi​tal, de onde tal​vez
nun​c a mais sa​ís​se com vida, ela pre​c i​sa​va ima​gi​nar para si mes​m a um mun​-
do rçi​e ​lhor.
— Deus gos​ta do in​ver​no e da pri​m a​ve​r a — con​ti​nuou Emmy. — As es​ta​-
ções são di​f e​r en​tes por​que Ele não que​r ia que a gen​te en​j o​a s​se de ver tudo, sem​-
pre igual, sem​pre a mes​m a coi​sa... A irmã Ka​the​r i​ne dis​se isso, e ago​r a es​tou
des​c o​brin​do que é ver​da​de. Quan​do o sol ba​teu no gelo, ali do lado de fora, mi​-
nha cama vi​r ou um arco-íris de ver​da​de. E tão bo​ni​to, não é? A neve pa​r e​c e um
ca​sa​c o de pele, todo bran​c o, en​f ei​tan​do o mun​do... E a gen​te, quan​do olha, fica
as​sim, de boca aber​ta... Por isso é que não exis​tem flo​c os de neve iguais... e cada
um é mais bo​ni​to do que o ou​tro... E para a gen​te não es​que​c er que Deus fez para
nós um mun​do mui​to bo​ni​to.
Ape​sar da do​e n​ç a que a de​f or​m a​va, Emmy con​ti​nu​a ​va a acre​di​tar em
Deus, na bon​da​de di​vi​na, na per​f ei​ç ão do mun​do que Ele cri​a ​r a. Não era, ali​á s, a
úni​c a cri​a n​ç a do hos​pi​tal que ma​ni​f es​ta​va ta​m a​nha fé. Mui​tos ou​tros pa​c i​e n​tes
con​ti​nu​a ​vam a vi​ver na cer​te​za de que um Pai ge​ne​r o​so e bom os gui​a ​va pela
vida, e esse pen​sa​m en​to dava-lhes co​r a​gem. Bren​dan qua​se adi​vi​nha​va o que lhe
di​r ia o pa​dre Wy ​c a​zik: “Se es​sas po​bres cri​a n​ç as so​f rem tan​to e nem as​sim per​-
dem a fé, que des​c ul​pa mi​se​r á​vel você está ten​tan​do en​c on​trar para o que lhe
acon​te​c eu? E pos​sí​vel que, em sua ino​c ên​c ia e pu​r e​za, es​sas cri​a n​ç as sai​bam
mui​to mais so​bre Deus do que você, com seus lon​gos anos de es​tu​do em Roma...
Tal​vez sai​bam algo que você es​que​c eu... E tal​vez Deus es​te​j a
lhe man​dan​do um re​c a​do atra​vés de​las. O que você acha? Pelo me​nos acha
pos​sí​vel?”
Era uma li​ç ão, sim, cla​r a, emo​c i​o​nan​te, mais ain​da in​su​f i​c i​e n​te para res​tau​-
rar a fé em Bren​dan Cro​nin. O que o co​m o​via era a se​r e​na co​r a​gem com que as
cri​a n​ç as en​c a​r a​vam o so​f ri​m en​to. A pos​si​bi​li​da​de de exis​tir um Deus ca​paz de
dar li​ç ões aos ho​m ens, lan​ç an​do mão de ca​m i​nhos tão tor​tuo​sos, não pa​r e​c ia ser
o pon​to cen​tral do pro​ble​m a.
Pa​c i​e n​te​m en​te Bren​dan con​ti​nuou a es​c o​var os ca​be​los de Emmy ; quan​do
ter​m i​nou, ti​r ou a me​ni​na da ca​dei​r a de ro​das e co​lo​c ou-a na cama. En​quan​to pu​-
xa​va os co​ber​to​r es e co​bria as tris​tes per​nas es​que​lé​ti​c as da en​f er​m a, sen​tiu cres​-
cer den​tro de si nova onda de fú​r ia e re​vol​ta, a mes​m a fú​r ia que o in​va​di​r a du​-
ran​te a mis​sa na Igre​j a de San​ta Ber​nar​det​te, dois do​m in​gos atrás. Se en​c on​tras​se
por ali al​gum cá​li​c e sa​gra​do ou uma ban​de​j a re​ple​ta de hós​ti​a s con​sa​gra​das, cer​-
ta​m en​te os jo​ga​r ia no chão.
A me​ni​na ge​m eu, e Bren​dan ima​gi​nou que tal​vez ela adi​vi​nhas​se o que lhe
pas​sa​va pela ca​be​ç a. Emmy, po​r ém, ar​r e​ga​lou os olhos:
— O que acon​te​c eu, “Bo​lo​ta”? Você se ma​c hu​c ou?
— Como...?
— Você quei​m ou as mãos?
Sem en​ten​der, Bren​dan bai​xou os olhos para as mãos e viu a mes​m a coi​sa
que Emmy ti​nha vis​to: no cen​tro de cada pal​m a ha​via uma mar​c a cir​c u​lar,
como se a pele es​ti​ves​se quei​m a​da e in​c ha​da. Um anel ver​m e​lho de qua​se cin​c o
cen​tí​m e​tros de diâ​m e​tro, mui​to ní​ti​do, com bor​das cla​r a​m en​te de​li​ne​a ​das. Pa​r e​-
cia que os anéis fo​r am im​pres​sos na pele, mas, ao tocá-los com a pon​ta dos de​-
dos, Bren​dan sen​tiu que as mar​c as ti​nham re​le​vo.
— E es​tra​nho — mur​m u​r ou.
O mé​di​c o que es​ta​va de plan​tão no pron​to-so​c or​r o do hos​pi​tal era o dr. Stan
Hee​ton que, na​que​le ins​tan​te, exa​m i​na​va aten​ta​m en​te as mar​c as das mãos de
Bren​dan.
— Sen​te dor? — per​gun​tou.
— Não.
— Co​c ei​r a? Sen​sa​ç ão de ar​dor?
— Nada.
— For​m i​ga​m en​to, tal​vez? Tam​bém não? Já teve qual​quer coi​sa pa​r e​c i​da?
Na infân​c ia?
— Não que eu sai​ba.
— Al​gum ou​tro tipo de ma​ni​f es​ta​ç ão alér​gi​c a? Não... A um exa​m e su​per​f i​-
ci​a l pa​r e​c e uma mar​c a de quei​m a​du​r a mui​to leve, mas você lem​bra​r ia se, por
aca​so, ti​ves​se en​c os​ta​do as mãos em al​gum ob​j e​to quen​te o bas​tan​te para quei​-
má-las. Acho que po​de​m os ex​c luir a hi​pó​te​se de quei​m a​du​r a. — O mé​di​c o fez
uma bre​ve pau​sa an​tes de per​gun​tar: — Você dis​se que le​vou a ga​r o​ta à sala de
ra​di​o​lo​gia?
— Sim, mas nem che​guei a en​trar na sala de exa​m es.
— Não há o me​nor in​dí​c io de que isso seja re​sul​ta​do de quei​m a​du​r a por
ra​di​a ​ç ão. O mais pro​vá​vel é que seja uma der​m a-tose, tal​vez uma in​f ec​ç ão por
fun​gos, em​bo​r a os sin​to​m as clí​ni​c os não con​f ir​m em esse di​a g​nós​ti​c o. Não há co​-
cei​r a, nem for​m i​ga​m en​to. Além dis​so os anéis são mui​to ní​ti​dos, o que ra​r a​m en​-
te acon​te​c e nas in​f ec​ç ões por Mi​c ros​po​rum ou Tri​c hophy​ton.
— E en​tão? — Bren​dan res​pi​r ou fun​do. — O que pode ser?
O mé​di​c o he​si​tou por um ins​tan​te e res​pon​deu, le​van​tan​do os
om​bros:
— Nada sé​r io... Pro​va​vel​m en​te uma re​a ​ç ão alér​gi​c a. Se as mar​c as per​sis​-
ti​r em, você de​ve​r á fa​zer al​guns tes​tes para iden​ti​f i​c ar o agen​te aler​gê​ni​c o.
O dr. Hee​ton afas​tou-se da mesa de exa​m es e di​r i​giu-se a uma pe​que​na es​-
cri​va​ni​nha para preen​c her o for​m u​lá​r io de re​c ei​tas. Bren​dan fi​c ou em si​lên​c io
exa​m i​nan​do as es​tra​nhas mar​c as; de​pois cru​zou os bra​ç os e es​c on​deu as mãos.
Sem le​van​tar os olhos, ain​da es​c re​ven​do, o mé​di​c o co​m en​tou:
— Va​m os co​m e​ç ar com um tra​ta​m en​to sim​ples, à base de cor-ti​so​na. Se
em dois ou três dias as mar​c as não de​sa​pa​r e​c e​r em, vol​te ao con​sul​tó​r io. — Es​-
ten​deu-lhe a re​c ei​ta já pron​ta.
— Há al​gum ris​c o de con​tá​gio? — per​gun​tou Bren​dan, apa​nhan​do o pa​pel.
— O se​nhor sabe que tra​ba​lho com cri​a n​ç as e tal​vez...
— Não, não! Não se pre​o​c u​pe. Não há o me​nor ris​c o de con​tá​gio. Ago​r a,
por fa​vor, dei​xe-me dar mais uma es​pi​a ​da.
O pa​dre mos​trou-lhe as pal​m as das mãos e viu o dr. Hee​ton ar​r e​ga​lar os
olhos:
— Mas... Que di​a ​bo é isso?!
Os anéis ha​vi​a m su​m i​do.
Na mes​m a noi​te, no quar​to de ho​tel, Bren​dan vol​tou a mer​gu​lhar no so​nho
que con​ta​r a ao pa​dre Wy ​c a​zik e que fa​zia par​te da ro​ti​na de sua vida. Viu-se dei​-
ta​do em al​gum lu​gar des​c o​nhe​c i​do, com os bra​ç os e os pés amar​r a​dos às la​te​r ais
da cama. Uma pe​sa​da né​voa en​vol​via tudo. De den​tro des​sa né​voa apa​r e​c i​a m as
mãos que iam tocá-lo. Mãos en​lu​va​das. As mes​m as lu​vas pre​tas e bri​lhan​tes.
Ele des​per​tou en​r o​la​do nos len​ç óis, en​c har​c a​do de suor. Sen​tou-se, acen​deu a
lâm​pa​da de ca​be​c ei​r a, re​c os​tou-se nos tra​ves​sei​r os e es​pe​r ou que as ima​gens do
pe​sa​de​lo se es​va​ís​sem. De olhos fe​c ha​dos, pas​sou a mão pela tes​ta e es​tre​m e​c eu.
Com medo do que po​de​r ia ver, er​gueu as pal​m as das mãos até os olhos e apro​xi​-
mou-se da lâm​pa​da. Os dois anéis de pele ver​m e​lha e in​f la​m a​da lá es​ta​vam, ní​ti​-
dos como no mo​m en​to em que ha​vi​a m apa​r e​c i​do, à tar​de. Aos pou​c os, po​r ém,
en​quan​to Bren​dan os exa​m i​na​va, fo​r am de​sa​pa​r e​c en​do, até su​m i​r em.
Era quin​ta-fei​r a, dia 12 de de​zem​bro.

9. LA​G U​NA BE​A​CH, CA​LI​FÓR​NIA

Na ma​nhã de quin​ta-fei​r a, Dom Cor​vai​sis acor​dou na cama, cer​to de que


pas​sa​r a uma noi​te nor​m al. En​tre​tan​to, ao sen​tar-se na fren​te do com​pu​ta​dor para
co​m e​ç ar a tra​ba​lhar, des​c o​briu que se en​ga​na​r a mais uma vez. Numa das pri​-
mei​r as cri​ses, quan​do se sen​ta​r a à má​qui​na em tran​se de so​nam​bu​lis​m o, es​c re​-
ve​r a as mes​m as três pa​la​vras, re​pe​ti​das à exaus​tão: “Es​tou com medo. Es​-
tou com medo. Es​tou com medo”. Ago​r a lia no ví​deo: “A Lua. A Lua. A Lua. A
Lua”.
Cen​te​nas de ve​zes, sem​pre as mes​m as qua​tro le​tras: “A Lua”. A mes​m a coi​-
sa que re​pe​ti​r a, bai​xi​nho, no do​m in​go de ma​dru​ga​da, an​tes de ador​m e​c er. Dom
fi​c ou pa​r a​li​sa​do, de olhos fi​xos no mo​ni​tor, cada vez mais as​sus​ta​do; não sa​bia o
que po​de​r ia ha​ver de tão es​pe​c i​a l em “A Lua”.
Até en​tão, o tra​ta​m en​to do dr. Co​bletz pa​r e​c ia es​tar dan​do re​sul​ta​do. Fa​zia
mais de uma se​m a​na que não ti​nha cri​ses de so-nam​bu​lis​m o. A úni​c a al​te​r a​ç ão
no qua​dro fora o pe​sa​de​lo de sá​ba​do à noi​te, em que al​guém ten​ta​va en​f iá-lo
numa pia de ba​nhei​r o. O pró​prio dr. Co​bletz, que Dom ha​via pro​c u​r a​do, mos​trou-
se en​tu​si​a s​m a​do com seus pro​gres​sos.
— Va​m os con​ti​nu​a r com essa te​r a​pêu​ti​c a — dis​se-lhe o mé​di​c o. — Vou
re​no​var as re​c ei​tas, mas é im​por​tan​te que você não se ex​c e​da nas do​ses de cal​-
man​te. Tome um com​pri​m i​do por dia, no má​xi​m o dois se fi​c ar mui​to agi​ta​do.
Ago​r a, quan​to ao so​ní​f e​r o, não pas​se de uma cáp​su​la, à noi​te.
— Nun​c a to​m ei mais de uma — Dom men​tiu.
— Óti​m o. Es​sas dro​gas cri​a m de​pen​dên​c ia, e você po​de​r á, ape​nas, tro​c ar
de do​e n​ç a. Mas, se se​guir mi​nhas ins​tru​ç ões, não te​nho dú​vi​das de que es​ta​r á cu​-
ra​do até a pri​m ei​r a se​m a​na de ja​nei​r o.
Dom tam​bém acre​di​ta​va que es​ti​ves​se me​lho​r an​do; por essa ra​zão e tam​-
bám para que o dr. Co​bletz não al​te​r as​se o tra​ta​m en​to, re​sol​veu não con​f es​sar
que, às ve​zes, to​m a​va mais de qua​tro do​ses de cal​m an​te e três de so​ní​f e​r o, qua​se
sem​pre acom​pa​nha​das de cer​ve​j a du​r an​te o dia, e de uís​que à noi​te. Ain​da as​-
sim, ti​nha cer​te​za de que, mais dia me​nos dia, su​pe​r a​r ia o pro​ble​m a, vol​ta​r ia a
cri​a r co​r a​gem para dei​tar-se sem medo dos pe​sa​de​los e acor​da​r ia em paz, em
sua pró​pria cama. Gra​ç as a Deus! Cla​r o que o tra​ta​m en​to es​ta​va dan​do cer​to!
Pelo me​nos até aque​le mo​m en​to. “A Lua”.
Frus​tra​do e fu​r i​o​so, Dom fez o dis​que​te vol​tar ao co​m e​ç o e apa​gou as li​nhas
que es​c re​ve​r a du​r an​te a noi​te. Eram mais de cem, e, à me​di​da que de​sa​pa​r e​c i​-
am do mo​ni​tor, ele sen​tia cres​c er a an​si​e ​da​de. De re​pen​te, in​c a​paz de su​por​tar a
ten​são, le​van​tou-se, foi até o ba​nhei​r o e to​m ou um com​pri​m i​do de cal​m an​te.
Não po​de​r ia mes​m o con​ti​nu​a r tra​ba​lhan​do. Às onze e trin​ta, foi com Parker
Fai​ne bus​c ar Denny Ul​m es e Ny u​gen Kao Tran, seus “afi​lha​dos” dos Ir​m ãos da
Amé​r i​c a, en​ti​da​de de as​sis​tên​c ia so​c i​a l a me​no​r es de​sam​pa​r a​dos com a qual co​-
la​bo​r a​va des​de os tem​pos de Por​tland, Ore​gon. Era a úni​c a li​ga​ç ão que man​ti​-
nha com a vida da co​m u​ni​da​de, a úni​c a fres​ta em sua bem pro​te​gi​da toca de co​-
e​lho.
O pró​prio Dom pas​sa​r a a infân​c ia de casa em casa, aco​lhi​do com ca​r i​nho
por cer​to tem​po em al​gu​m as, ape​nas to​le​r a​do em ou​tras, cada vez mais so​li​tá​r io
e in​f e​liz. Al​gum dia, se che​gas​se a ca​sar, ado​ta​r ia um ou dois da​que​les me​ni​nos
dos Ir​m ãos da Amé​r i​c a. En​quan​to isso não acon​te​c ia, gos​ta​va de pas​sar al​guns
fins de, se​m a​na com os ga​r o​tos, ten​tan​do, ao mes​m o tem​po, pro​por​c i​o​nar-lhes
ho​r as agra​dá​veis e con​so​lar a cri​a n​ç a aban​do​na​da que so​bre​vi​via den​tro dele.
Ny u​gen Kao Tran, “afi​lha​do” de Dom, pre​f e​r ia ser cha​m a​do de “Duke”,
em ho​m e​na​gem a John Way ​ne, cu​j os fil​m es ado​r a​va. In​te​li​gen​te, ma​gro e ex​-
tra​or​di​na​r i​a ​m en​te ágil, ti​nha tre​ze anos e era o ca​ç u​la de uma fa​m í​lia de pes​c a​-
do​r es que fu​gi​r a dos hor​r o​r es da guer​r a do Vi​e t​nã. De​pois de so​bre​vi​ver à bru​ta​li​-
da​de do con​f li​to, ao con​f i​na​m en​to num cam​po de con​c en​tra​ç ão e à an​gús​tia de
va​gar por duas se​m a​nas em mar aber​to, num, pe​que​no bar​c o à de​r i​va, seu pai
mor​r e​r a as​sas​si​na​do. O cri​m e ocor​r e​r a fa​zia três anos, du​r an​te um as​sal​to à loja
em que ele tra​ba​lha​va como guar​da-no​tur​no, o se​gun​do em​pre​go que con​se​gui​r a
no en​so​la​r a​do e ma​r a​vi​lho​so sul da Ca​li​f ór​nia.
Denny Ul​m es era o “afi​lha​do” de Parker; o pai mor​r e​r a de cân​c er. O me​ni​-
no era mais re​tra​í​do que “Duke”; to​da​via, como os dois se en​ten​di​a m às mil ma​-
ra​vi​lhas, Dom e Parker cos​tu​m a​vam pro​gra​m ar jun​tos seus pas​sei​os.
De iní​c io, Parker re​sis​ti​r a à idéia de ado​tar um “afi​lha​do” dos Ir​m ãos da
Amé​r i​c a:
— Mas... eu?! — per​gun​ta​va, sem​pre que Dom vol​ta​va ao as​sun​to. — Por
que eu? Não sou e ja​m ais se​r ei pai... Bebo de​m ais e sou mu​lhe​r en​go. Che​ga a ser
cri​m e ima​gi​nar que eu pos​sa ser-
vir de ori​e n​ta​dor mo​r al para qual​quer ado​les​c en​te. Sou pre​gui​ç o​so, ir​r es​pon​-
sá​vel, ego​ís​ta... Vivo no mun​do da lua... O que é que eu po​de​r ia en​si​nar a um ga​-
ro​to?! Além do mais, não há mo​le​que aban​do​na​do que não gos​te de ca​c hor​r o... e
eu odeio ca​c hor​r o! Odeio pul​gas e chei​r o de ca​c hor​r o. Você está lou​c o! Logo eu
vou ado​tar um “afi​lha​do” dos Ir​m ãos da Amé​r i​c a?! Está doi​do...
Ape​sar de tudo, na​que​la quin​ta-fei​r a à tar​de, jun​to ao mar, foi Parker quem
or​ga​ni​zou a par​ti​da de vô​lei, já que a água lhe pa​r e​c eu fria de​m ais para um mer​-
gu​lho. De​pois in​ven​tou ou​tro jogo, de re​gras com​pli​c a​dís​si​m as, que en​vol​via,
além de qua​tro jo​ga​do​r es, duas ra​que​tes, uma bola de plás​ti​c o e uma lata va​zia.
Sob sua ori​e n​ta​ç ão, Dom e os me​ni​nos cons​tru​í​r am tam​bém um cas​te​lo de areia
com​ple​to, in​c lu​in​do o dra​gão que ame​a ​ç a​va uma in​vi​sí​vel prin​c e​sa.
Mais tar​de, al​m o​ç an​do no Res​tau​r an​te Ham​let Parker apro​vei​tou o mo​m en​to
em que os ga​r o​tos fo​r am ao ba​nhei​r o para co​m en​tar:
— Meu ami​go, essa coi​sa de Ir​m ãos da Amé​r i​c a foi uma das me​lho​r es
idéi​a s que já tive na vida...
— Que você teve?! — Dom ar​r e​ga​lou os olhos. — Você dis​se que não gos​-
ta​va de ca​c hor​r o, que os me​ni​nos ti​nham pul​gas... Qua​se pre​c i​sei ar​r as​tar você
pe​los ca​be​los!
— Eu es​ta​va num mau mo​m en​to — Parker jus​ti​f i​c ou-se. — Sem​pre gos​tei
de cri​a n​ç as. To​dos os ar​tis​tas têm co​r a​ç ão de cri​a n​ç a... Para cri​a r, é pre​c i​so não
en​ve​lhe​c er nun​c a. Os me​ni​nos me aju​dam a con​ser​var a ju​ven​tu​de...
— Ago​r a só fal​ta com​prar um ca​c hor​r o — Dom riu.
Parker tam​bém riu, es​va​zi​ou de um gole o copo de cer​ve​j a e
de​bru​ç ou-se so​bre a mesa, apro​xi​m an​do-se do ami​go:
— Está tudo bem com você? — per​gun​tou. — Hoje, na praia, tive a im​-
pres​são de que você es​ta​va pre​o​c u​pa​do com al​gu​m a coi​sa.
—- Há mui​tas coi​sas que me pre​o​c u​pam... Mas es​tou bem. As cri​ses de so​-
nam​bu​lis​m o qua​se de​sa​pa​r e​c e​r am. Te​nho so​nha​do pou​c o. Co​bletz é um bom
mé​di​c o.
— E o novo li​vro? Não me ve​nha com con​ver​sa fi​a ​da. Diga a ver​da​de.
Está tra​ba​lhan​do di​r ei​to?
— O li​vro vai bem — Dom men​tiu.
— Você, às ve​zes, fica com o olhar per​di​do... como se es​ti​ves​se do​pa​do —
co​m en​tou Parker, aco​m o​dan​do-se na ca​dei​r a. — Você não está se en​tu​pin​do de
com​pri​m i​dos, está?
— Acha, que eu sou idi​o​ta? — Dom des​vi​ou os olhos, atra​pa​lha​do com a
pers​pi​c á​c ia do ami​go. — Sei mui​to bem que cal​m an​te não é goma de mas​c ar...
Cla​r o que não es​tou me en​tu​pin​do de nada.
Por um mo​m en​to, Parker fi​c ou em si​lên​c io, exa​m i​nan​do aten​ta​m en​te o ros​to
do ou​tro; de​pois re​sol​veu mu​dar de as​sun​to.
O fil​m e até que não era ruim, mas, de​pois de meia hora de pro​j e​ç ão, Dom
não con​se​guia mais con​ti​nu​a r sen​ta​do. In​va​di​do por in​c on​tro​lá​vel e cres​c en​te an​-
si​e ​da​de, le​van​tou-se, foi até o ba​nhei​r o dos ho​m ens e en​go​liu o com​pri​m i​do de
cal​m an​te que le​va​r a no bol​so, pre​ven​do al​gu​m a cri​se re​pen​ti​na.
Que di​f e​r en​ç a po​de​r ia fa​zer um com​pri​m i​do a mais ou a me​nos? O im​por​-
tan​te é que es​ta​va me​lho​r an​do, con​se​guin​do ven​c er a an​si​e ​da​de. Já não an​da​va
pela casa, os pe​sa​de​los eram mais ra​r os. Es​ta​va me​lho​r an​do.
O chei​r o de de​sin​f e​tan​te ba​r a​to, de uri​na ran​ç o​sa e de pri​va​da suja dava-lhe
náu​se​a s. En​go​li​do a seco, o com​pri​m i​do pa​r e​c ia en​ta​lar-se na gar​gan​ta.
A noi​te, ape​sar dos re​m é​di​os, o so​nho re​pe​tiu-se. Ao acor​dar, Dom con​se​-
guiu lem​brar-se de ou​tros de​ta​lhes que lhe es​c a​pa​r am na noi​te an​te​r i​or. Além da
pia onde al​guém que​r ia afo​gá-lo, ha​via uma cama, um quar​to des​c o​nhe​c i​do,
uma né​voa den​sa e ama​r e​la​da que o im​pe​dia de dis​tin​guir for​m as ou ros​tos. Ha​-
via, pelo me​nos, duas ou​tras pes​so​a s no quar​to... mas pa​r e​c i​a m fan​tas​m as, som​-
bras de fu​m a​ç a e luz que apa​r e​c i​a m e de​sa​pa​r e​c i​a m no ar.
Dom ima​gi​nou que tal​vez es​ti​ves​se den​tro da água, no fun​do de um mar mis​-
te​r i​o​so e frio. Era di​f í​c il res​pi​r ar, o ar tor​na​va-se cada vez mais pe​sa​do, os
pulmões es​f or​ç a​vam-se cada vez mais para cum​prir sua fun​ç ão. Dom sen​tiu que
es​ta​va mor​r en​do. Os vul​tos de fu​m a​ç a apro​xi​m a​vam-se da cama, pre​o​c u​pa​dos,
e con​ver​sa​vam en​tre si, em voz bai​xa e afli​ta; era im​pos​sí​vel en​ten​der o que di​zi​-
am, em​bo​r a não fa​las​sem em ne​nhu​m a lín​gua es​tra​nha. Uma mão fria to​c ou-lhe
a pele. Dom ou​viu um ba​r u​lho de vi​dro que​bra​do. Em al​gum lu​gar, uma por​ta
ba​teu.
Cor​te rá​pi​do, como nos fil​m es. Ago​r a Dom está num ba​nhei​r o, ou numa co​-
zi​nha. E al​guém for​ç a-lhe a ca​be​ç a para den​tro da pia. E di​f í​c il res​pi​r ar, O ar pa​-
re​c e cola. As na​r i​nas se fe​c ham. Os pulmões co​m e​ç am a ar​der. Dom luta, quer
re​sis​tir, quer es​c a​par, mas al​guém o se​gu​r a, agar​r a-lhe a ca​be​ç a. Con​ti​nu​a m os
gri​tos, po​r ém, como an​tes, é im​pos​sí​vel en​ten​der o que di​zem os fan​tas​m as. E
con​ti​nu​a m a em​pur​r á-lo so​bre a pia.
Ao des​per​tar, ain​da dei​ta​do, Dom lem​brou-se da​que​la ma​nhã em que acor​-
da​r a na cama, fe​liz por não ter an​da​do pela casa, e de​pois des​c o​bri​r a que ha​via
es​c ri​to as mes​m as pa​la​vras cen​te​nas de ve​zes. Lem​brou-se tam​bém da​que​la
ma​dru​ga​da em que acor​da​r a no ba​nhei​r o, afo​gan​do-se na pia. Pelo me​nos ago​r a
es​ta​va na cama... já era um bom si​nal.
— Es​tou me​lho​r an​do mes​m o... mur​m u​r ou.
Trê​m u​lo, sen​tou-se na cama e acen​deu o aba​j ur. Não avis​tou bar​r i​c a​das di​-
an​te da por​ta nem pre​gos na ja​ne​la. Ne​nhum si​nal de medo ou de cri​se de so​-
nam​bu​lis​m o. O re​ló​gio mar​c a​va duas e nove da ma​dru​ga​da. So​bre a mesa-de-
ca​be​c ei​r a ao lado do re​ló​gio, ha​via uma lata de cer​ve​j a mor​na. Com um gole
amar​go, ele to​m ou mais uma cáp​su​la de se​da​ti​vo.
— Cla​r o... cla​r o que es​tou me​lho​r an​do.
Era sex​ta-fei​r a, dia 13.
10. ELKO COUNTY, NE​VA​DA
Na sex​ta-fei​r a, três dias de​pois da es​tra​nha ex​pe​r i​ê n​c ia na ro​do​via, Er​nie
Block não con​se​guia nem dor​m ir, nem fin​gir que dor-
mia. À me​di​da que a noi​te avan​ç a​va, tor​nan​do a es​c u​r i​dão cada vez mais
pre​sen​te do lado de fora dos vi​dros e das cor​ti​nas, sen​tia-se mais ten​so e an​si​o​so.
En​tão pres​sen​tiu que co​m e​ç a​r ia a gri​tar e, se co​m e​ç as​se, nada no mun​do po​de​r ia
de​vol​ver-lhe a sa​ni​da​de. Para evi​tar o de​sas​tre, le​van​tou-se da cama, sem fa​zer
ru​í​do, foi para o ba​nhei​r o, tran​c ou a por​ta e acen​deu a luz. Ma​r a​vi​lho​sa e ben​di​ta
luz... Er​nie des​c eu a tam​pa da pri​va​da e sen​tou-se, de cu​e ​c as, ten​tan​do acal​m ar-
se. Pre​c i​sou de mais de quin​ze mi​nu​tos de ple​na luz, como um la​gar​to pre​c i​sa de
sol.
Mais tran​qüi​lo, pon​de​r ou que de​via vol​tar logo para o quar​to, an​tes que Fay e
acor​das​se e des​se por sua fal​ta. Para pre​pa​r ar um dis​f ar​c e mais con​vin​c en​te, pu​-
xou a des​c ar​ga, abriu a tor​nei​r a da pia e de​m o​r ou-se la​van​do as mãos. Aca​bou
de en​xa​guá-las e ia apa​nhar a to​a ​lha pen​du​r a​da jun​to à ja​ne​la quan​do, sem que​-
rer, olhou para cima. O vi​dro fos​c o im​pe​dia que vis​se o céu es​c u​r o, po​r ém mes​-
mo as​sim ele sen​tiu um ca​la​f rio. Foi como se al​gu​m a coi​sa na​que​la ja​ne​la ti​ves​-
se o po​der de de​sen​c a​de​a r uma tor​r en​te de idéi​a s vi​o​len​ta, inin​ter​r up​ta, in​c on​tro​-
lá​vel. Es​ta​va em pe​r i​go... Era pre​c i​so fa​zer al​gu​m a coi​sa.
— Pos​so pas​sar por essa ja​ne​la — dis​se, num fio de voz. — Pos​so es​c a​par
por aí e sal​tar para o te​lha​do da des​pen​sa. Não é di​f í​c il... Pos​so cor​r er por trás do
mo​tel, che​gar até o ar​r oio, su​bir a co​li​na, ir para o les​te até che​gar a um da​que​les
ran​c hos e pro​c u​r ar aju​da...
Como que em tran​se, pis​c an​do e su​a n​do mui​to, sem pa​r ar de pen​sar em fu​-
gir, su​biu na bor​da da ba​nhei​r a. Era pre​c i​so fu​gir... mas do quê? De quem? Por
quê? Es​ta​va em casa, na com​ple​ta se​gu​r an​ç a de suas ve​lhas e co​nhe​c i​das pa​r e​-
des. E no en​tan​to não con​se​guia ti​r ar os olhos da ja​ne​la. Do​m i​na​va-o uma for​ç a
mai​or que sua von​ta​de, al​gu​m a coi​sa in​c om​preen​sí​vel e po​de​r o​sa, que ele não
po​dia con​tro​lar.
Sen​tia que pre​c i​sa​va sair dali como se aque​la fos​se a úl​ti​m a chan​c e de es​c a​-
par da an​gús​tia. Logo, po​r ém, a re​m o​ta es​pe​r an​ç a de fu​gir tran​f or​m ou-se em
pâ​ni​c o. O es​tô​m a​go dava vol​tas, o co​r a​ç ão pa​r e​c ia que​r er ex​plo​dir no pei​to. Sem
sa​ber por que agia da​que​le
modo, mas in​c a​paz de con​tro​lar-se, Er​nie me​xeu no trin​c o, em​pur​r ou o vi​dro
e abriu a ja​ne​la.
Ha​via al​guém do lado de fora. Al​guém... ou al​gu​m a coi​sa... no te​lha​do da
des​pen​sa. Um ho​m em, tal​vez, uma som​bra es​c u​r a, sem ros​to.
As​sus​ta​do, Er​nie ten​tou fe​c har a ja​ne​la, mas não con​se​guia mo​vi​m en​tar se​-
quer um dedo. Ha​via um ho​m em no te​lha​do, um ho​m em de ca​pa​c e​te. O vi​sor
es​pe​lha​do co​bria-lhe o ros​to com-ple​ta​m en​te. O es​tra​nho es​ten​deu a mão pela
ja​ne​la, pro​c u​r an​do al​c an​ç á-lo. Uma luva pre​ta.
Er​nie gri​tou. Quis es​c a​par da luva e es​c or​r e​gou na ba​nhei​r a. Ain​da ten​tou se​-
gu​r ar-se na cor​ti​na de plás​ti​c o, mas ape​nas ar​r an​c ou-a das ar​go​las que a pren​di​-
am. En​tão per​deu to​tal​m en​te o equi​lí​brio e de​sa​bou no chão, sen​tin​do uma pon​ta​-
da de dor agu​da nas cos​te​las.
— Er​nie! — Fay e gri​ta​va, es​m ur​r an​do a por​ta. — Pelo amor de Deus,
abra! O que está acon​te​c en​do?
Com es​f or​ç o, ele se le​van​tou, apro​xi​m ou-se da por​ta e abriu-a.
— Não en​tre — dis​se. — Há al​guém lá fora.
A que​da e a dor nas cos​tas da​vam-lhe a im​pres​são de que co​m e​ç a​va a des​-
per​tar de um pe​sa​de​lo. O ho​m em do ca​pa​c e​te tal​vez fi​zes​se par​te do pe​sa​de​lo...
tal​vez fos​se uma alu​c i​na​ç ão...
A sua fren​te, Fay e tre​m ia sob o pi​j a​m a.
— Onde? — per​gun​tou. — No te​lha​do? Quem é?
— Não sei.
Es​f re​gan​do as cos​tas do​lo​r i​das, Er​nie su​biu no​va​m en​te na ba​nhei​r a e olhou
para fora. Não viu nin​guém.
— Como era ele? — Fay e apro​xi​m ou-se.
Não sei. Pa​r e​c ia um mo​to​c i​c lis​ta, com lu​vas e ca​pa​c e​te...
En​quan​to fa​la​va, Er​nie per​c e​bia que nada do que dis​ses​se fa​r ia sen​ti​do para
a es​po​sa. Apro​xi​m ou-se da ja​ne​la, de​bru​ç ou-se para fora e olhou em vol​ta, por
cima do te​lha​do da des​pen​sa, para um lado e ou​tro. Nada... não ha​via nin​guém.
Fos​se quem fos​se, o ho​m em da luva pre​ta ha​via su​m i​do na noi​te. Se, por aca​so,
era mes​m o um ho​m em de car​ne e osso.
Só en​tão Er​nie deu-se con​ta de que es​ta​va di​a n​te da ja​ne​la aber​ta, ex​pos​to à
es​c u​r i​dão que se es​pa​lha​va pe​las co​li​nas até as mon​ta​nhas dis​tan​tes. To​tal es​c u​r i​-
dão, ape​nas pon​ti​lha​da de es​tre​las. Foi só um ins​tan​te, uma fra​ç ão de se​gun​do, e
o medo, ou​tra vez, to​m ou con​ta dele. Er​nie en​c o​lheu-se, fe​c hou os olhos, vi​r ou-se
para des​c er da ba​nhei​r a e fu​gir da noi​te.
— Fe​c he a ja​ne​la — or​de​nou Fay e.
Num der​r a​dei​r o es​f or​ç o para con​tro​lar-se, já sem co​r a​gem para abrir os
olhos, ele ta​te​ou a ja​ne​la à pro​c u​r a do trin​c o, pu​xou o vi​dro e, afi​nal, con​se​guiu
fe​c há-lo. En​tão des​c eu da ba​nhei​r a, res​pi​r ou fun​do e olhou para a mu​lher.
— Acho que, ago​r a, você pode con​tar tudo — dis​se ela.
Er​nie não res​pon​deu. Nos olhos de Fay e ha​via pre​o​c u​pa​ç ão,
que já es​pe​r a​va en​c on​trar. Ha​via sur​pre​sa, tam​bém pre​vi​sí​vel. Po​r ém ha​via
mais... Ela pa​r e​c ia ter adi​vi​nha​do tudo, e, para isso, Er​nie não es​ta​va pre​pa​r a​do.
Os dois fi​c a​r am fren​te a fren​te, olhos nos olhos, em si​lên​c io..
— E en​tão? — Fay e in​sis​tiu. — Pode me con​tar ago​r a?
— Mas... con​tar o quê? Eu já dis​se... ha​via um ho​m em na ja​ne​la.
— Não é dis​so que es​tou fa​lan​do. Que​r o sa​ber se você está pron​to para me
con​tar... tu​dol Seja lá o que for... O que está acon​te​c en​do! Por que você não con​-
se​gue dor​m ir, por que vive como se al​gu​m a coi​sa o ame​a ​ç as​se... — Fay e con​ti​-
nu​a ​va com os olhos fi​xos no ros​to do ma​r i​do. — Há mais ou me​nos dois me​ses
que você anda pre​o​c u​pa​do como nun​c a es​te​ve des​de que nos ca​sa​m os. Pre​o​c u​-
pa​do e... com medo...
En​tão ela sa​bia, ape​sar de to​dos os cui​da​dos que Er​nie to​m a​r a para es​c on​-
der-lhe a ver​da​de.
— Não... não é medo...
— Sim, é medo. — Não ha​via sar​c as​m o nem des​r es​pei​to em suas pa​la​-
vras. Fay e era de Iowa, e lá as mu​lhe​r es apren​dem que é pre​c i​so en​c a​r ar os pro​-
ble​m as de fren​te, para po​der re​sol​vê-los. — Em toda a nos​sa vida só vi você ter
medo uma vez... Foi quan​do Lucy ti​nha cin​c o anos e fi​c ou do​e n​te. Os mé​di​c os
dis​se​r am que os sin​to​m as po​di​a m su​ge​r ir uma dis​tro​f ia mus​c u​lar. Lem​bra-se?
— Meu Deus... Qua​se mor​r i de medo.
— Foi a úni​c a vez.
— Tam​bém sen​ti medo no Vi​e t​nã... al​gu​m as ve​zes. — En​tre as pa​r e​des
azu​le​j a​das do ba​nhei​r o, sua voz soou dis​tan​te e oca.
— Mas eu não es​ta​va no Vi​e t​nã e por​tan​to não vi. — Ela ain​da tre​m ia de
frio, os bra​ç os cru​za​dos so​bre o pei​to. — E tão raro ver você com medo que...
tam​bém es​tou as​sus​ta​da... Mais as​sus​ta​da ain​da, que​r i​do, por​que não te​nho idéia
do que está acon​te​c en​do. Se é al​gum se​gre​do, você tem obri​ga​ç ão... de... me
con​tar — ga​gue​j ou, os olhos en​c hen​do-se de lá​gri​m as. — Seja lá o que for!
— Não cho​r e... — Er​nie pe​diu. — Não cho​r e! Tudo vai aca​bar bem, eu
pro​m e​to.
— Con​te tudo, de uma vez!
— Está bem. Eu con​to.
— Ago​r a! Já!
Er​nie sen​tiu um frio no es​tô​m a​go. Ha​via su​bes​ti​m a​do Fay e... Afi​nal de con​-
tas, ela era mu​lher de ma​r i​nhei​r o, a me​lhor mu​lher que um ma​r i​nhei​r o po​de​r ia
de​se​j ar. Acom​pa​nha​r a-o pelo mun​do in​tei​r o, de Iowa a Sin​ga​pu​r a, de Sin​ga​pu​r a
à Ca​li​f ór​nia, da Ca​li​f ór​nia ao Alaska. Só não es​ti​ve​r a no Vi​e t​nã e, mais tar​de, em
Bei​r u​te. Mas em todo lu​gar aon​de os ofi​c i​a is da Ma​r i​nha po​di​a m le​var as es​po​-
sas, Fay e es​ti​ve​r a a seu lado, cer​c an​do-o de con​f or​to, cui​da​dos e ca​r i​nho. Ha​via
en​f ren​ta​do di​f i​c ul​da​des, pro​ble​m as, so​li​dão, e ja​m ais se quei​xa​r a. Era for​te
como um ro​c he​do. Que lou​c u​r a ter es​que​c i​do isso!
— Está bem — Er​nie res​pi​r ou qua​se ali​vi​a ​do, de​pois de me​ses de ten​são.
— Vou con​tar tudo.
Fay e pre​pa​r ou um café e os dois sen​ta​r am-se à mesa da co​zi​nha, bem aga​-
sa​lha​dos em gros​sos roupões, com ma​c i​os chi​ne​los nos pés. Ela adi​vi​nha​va os
pen​sa​m en​tos do ma​r i​do e sa​bia que Er​nie ti​nha di​f i​c ul​da​de em fa​lar so​bre si
mes​m o. Era pre​c i​so bas​tan​te café e mui​ta pa​c i​ê n​c ia.
Er​nie era ex​c e​len​te ma​r i​do, po​r ém às ve​zes su​c um​bia à tei​m o​sia dos Block.
Era um mal de fa​m í​lia, prin​c i​pal​m en​te dos ho​m ens.
Aque​la gen​te ti​nha ma​ni​a s: fa​zia as coi​sas à ma​nei​r a dos Block, e ha​via uma
ma​nei​r a para cada si​tu​a ​ç ão. To​das as ou​tras eram er​r a​das, e, ao lon​go dos anos,
Fay e apren​de​r a a ja​m ais per​gun​tar por quê. Os Block gos​ta​vam de ca​m i​se​tas
pas​sa​das a fer​r o, mas só ad​m i​ti​a m cu​e ​c as amas​sa​das como sa​í​a m do va​r al. As
es​po​sas dos Block sem​pre usa​vam su​tiã, mes​m o em casa e no auge do ve​r ão. To​-
dos os Block al​m o​ç a​vam pon​tu​a l​m en​te às doze e trin​ta, jan​ta​vam às sete, e Deus
ti​ves​se pi​e ​da​de da mu​lher que ser​vis​se a co​m i​da com dois mi​nu​tos de atra​so...
Era um cau​dal de re​c la​m a​ç ões, pro​tes​tos e la​m en​tos. Os Block sem​pre com​pra​-
vam car​r os da mes​m a mar​c a; não por​que con​si​de​r as​sem tais car​r os mui​to su​pe​-
ri​o​r es aos ou​tros, mas sim​ples​m en​te por​que sem​pre ha​vi​a m es​c o​lhi​do aque​la
mar​c a.
Com a gra​ç a de Deus Er​nie não ti​nha se​quer um dé​c i​m o das ma​ni​a s da fa​-
mí​lia. Para co​m e​ç ar, con​se​gui​r a sair de Pitts​burgh, onde ge​r a​ç ões de Block vi​vi​-
am no mes​m o bair​r o. De vol​ta ao mun​do real, lon​ge da in​f lu​ê n​c ia dos seus, ele
se trans​f or​m a​r a. As ma​ni​a s dos Block ja​m ais so​bre​vi​ve​r i​a m à vida na Ma​r i​nha:
como es​pe​r ar que as re​f ei​ç ões, por exem​plo, fos​sem ser​vi​das com a pon​tu​a ​li​da​-
de que a tra​di​ç ão exi​gia? De​pois de ca​sa​da, Fay e en​c ar​r e​ga​r a-se de es​c la​r e​c er
que pre​ten​dia pro​por​c i​o​nar-lhe a me​lhor vida do​m és​ti​c a que ele pu​des​se de​se​j ar,
mas que não se dei​xa​r ia in​ti​m i​dar pelo res​pei​to ob​ses​si​vo a ne​nhu​m a ri​dí​c u​la tra​-
di​ç ão fa​m i​li​a r. Em​bo​r a nem sem​pre com fa​c i​li​da​de, Er​nie adap​ta​r a-se a pon​to
de ser con​si​de​r a​do a ove​lha ne​gra da fa​m í​lia, cul​pa​do de pe​c a​dos tão gra​ves
como di​r i​gir qual​quer ve​í​c u​lo mo​to​r i​za​do, in​c lu​si​ve os que não le​va​vam a mar​c a
elei​ta pe​los Block.
Dos an​ti​gos ví​c i​os fa​m i​li​a ​r es ha​vi​a m so​bra​do pou​c os, um dos quais di​zia res​-
pei​to, pre​c i​sa​m en​te, às re​la​ç ões en​tre ma​r i​do e mu​lher. Para ele, o prin​c i​pal de​-
ver do ma​r i​do ain​da era pro​te​ger a mu​lher de to​dos os dis​sa​bo​r es da vida — o
que lhe pa​r e​c ia ób​vio, pois via as mu​lhe​r es como se​r es frá​geis e vul​ne​r á​veis, in​-
ca​pa​zes de en​f ren​tar pro​ble​m as gra​ves. Para po​der le​var a cabo essa ta​r e​f a, era
im​por​tan​te que o ma​r i​do nun​c a dei​xas​se a mu​lher sur​preen​dê-lo num mo​m en​to
de fra​que​za. Em​bo​r a seu ca​sa​m en​to
nun​c a se ti​ves​se pau​ta​do por es​sas re​gras, nem sem​pre Er​nie con​se​guia per​-
ce​ber que os dois já ha​vi​a m su​pe​r a​do as tra​di​ç ões fa​m i​li​a ​r es dos Block fa​zia
mais de um quar​to de sé​c u​lo.
Fay e no​ta​va que al​gu​m a coi​sa não ia bem e, no en​tan​to, Er​nie con​ti​nu​a ​va a
fin​gir que era uma ro​c ha. Mais ain​da: que vi​via como um fe​liz ma​r i​nhei​r o na re​-
ser​va, de​di​c an​do ale​gre​m en​te seus dias à se​gun​da pro​f is​são que es​c o​lhe​r a na
vida, a de pro​pri​e ​tá​r io de mo​tel de es​tra​da. Des​de al​gum tem​po, ela via a afli​ç ão
do ma​r i​do au​m en​tar como um fogo in​te​r i​or que o con​su​m ia. De iní​c io pro​c u​r ou
fa​c i​li​tar as coi​sas e fez-lhe al​gu​m as per​gun​tas, mas Er​nie nem deu si​nal de tê-la
ou​vi​do. Nas úl​ti​m as se​m a​nas, prin​c i​pal​m en​te de​pois que vol​ta​r a de Wis​c on​sin,
co​m e​ç ou a per​c e​ber que ele evi​ta​va sair à noi​te. Pa​r e​c ia não ter sos​se​go até
que to​das as lâm​pa​das da casa es​ti​ves​sem ace​sas.
Sen​ta​dos na co​zi​nha, o café fu​m e​gan​do na xí​c a​r a, as ja​ne​las bem fe​c ha​das,
Fay e ou​via aten​ta​m en​te o que Er​nie lhe con​ta​va, in​ter​r om​pen​do-o ape​nas quan​-
do lhe pa​r e​c ia que o ma​r i​do pre​c i​sa​va de es​tí​m u​lo para con​ti​nu​a r. A his​tó​r ia era
es​tra​nha, mas ela não se as​sus​tou com nada; ao con​trá​r io, à me​di​da que Er​nie fa​-
la​va, sen​tia-se cada vez mais se​gu​r a, cons​c i​e n​te do que es​ta​va acon​te​c en​do e da
for​m a como po​de​r ia aju​dá-lo.
Em voz bai​xa e fra​c a, Er​nie con​c luiu seu re​la​to:
— En​tão é isso! E essa a re​c om​pen​sa por tan​tos anos de tra​ba​lho e pou​pan​-
ça? Se​ni​li​da​de pre​c o​c e! E logo ago​r a, quan​do po​de​r i​a ​m os apro​vei​tar a vida, co​-
me​ç o a an​dar por aí fei​to um idi​o​ta, ba​ban​do e mi​j an​do na cal​ç a? Como um peso
mor​to para você car​r e​gar? E eu que pen​sa​va ter uns vin​te anos de boa vida
pela fren​te... Meu Deus... Eu sem​pre sou​be que a vida não é jus​ta... Mas nun​c a
pen​sei que ain​da fos​se en​c on​trar pela proa um mar en​c a​pe​la​do como esse...
— Não va​m os nau​f ra​gar — Fay e to​c ou-lhe a mão por cima da mesa. —
Cla​r o que o mal de Alz​hei​m er exis​te, cla​r o que pode ata​c ar até gen​te mais jo​-
vem que você, mas você não está fi​c an​do se​nil. Pelo que li, e tam​bém pelo que
vi acon​te​c er com meu pai, pos​so ga​r an​tir que a se​ni​li​da​de não apa​r e​c e as​sim...
seja pre​c o​c e
ou não. Seu caso é de fo​bia. Fo​bia. Há pes​so​a s que têm medo de al​tu​r a, por
exem​plo. Por al​gu​m a ra​zão que ain​da não co​nhe​c e​m os, você aca​bou en​tran​do
em uma cri​se de medo do es​c u​r o. Vai pas​sar.
— Já ou​viu fa​lar de fo​bi​a s que apa​r e​c em de re​pen​te, do dia para a noi​te?
Ain​da es​ta​vam de mãos da​das, e Fay e se​pa​r ou-se dele an​tes de res​pon​der
com ou​tra per​gun​ta:
— Você se lem​bra de He​len Dorf​m an? Era a pro​pri​e ​tá​r ia do nos​so apar​ta​-
men​to em Camp Pend​le​ton.
— Sim, cla​r o... O pré​dio da Rua Vine... He​len Dorf​m an mo​r a​va no pri​m ei​-
ro an​dar, apar​ta​m en​to um, e nós alu​ga​m os o apar​ta​m en​to seis... Faz mais de vin​-
te anos. — Er​nie pa​r e​c ia re​a ​ni​m ar-se à me​di​da que con​se​guia lem​brar-se de
tan​tos de​ta​lhes. — He​len ti​nha um gato pre​to... ele gos​ta​va mui​to de nós... Lem​-
bra que nos dei​xa​va pre​sen​tes na so​lei​r a da por​ta?
— Ca​m un​don​gos mor​tos.
— E... Os ra​ti​nhos fi​c a​vam lá, jun​to com o jor​nal e o lei​te... — Er​nie riu,
pis​c ou e le​van​tou a ca​be​ç a. — Já sei por que você fa​lou nis​so. He​len Dorf​m an ti​-
nha medo de sair de casa... Nem con​se​guia an​dar pelo pá​tio!
— A coi​ta​da so​f ria de ago​r a​f o​bia — dis​se Fay e. — Medo ir​r a​c i​o​nal de es​-
pa​ç os aber​tos. Vi​via como pri​si​o​nei​r a em sua pró​pria casa. Os mé​di​c os di​zi​a m
que en​tra​va em “cri​se pâ​ni​c a” quan​do saía.
— “Cri​se pâ​ni​c a”... — Er​nie re​pe​tiu. — E... isso mes​m o.
— E até aos trin​ta e cin​c o anos He​len foi per​f ei​ta​m en​te nor​m al. A ago​r a​f o​-
bia co​m e​ç ou de​pois da mor​te do ma​r i​do. Tudo isso para lhe di​zer que as fo​bi​a s
po​dem apa​r e​c er de re​pen​te, a qual​quer mo​m en​to.
— Seja lá que di​a ​bo for uma fo​bia, ve​nha de onde vier... é mui​to me​lhor
que se​ni​li​da​de pre​c o​c e. Mas... não que​r o pas​sar o res​to da vida mor​r en​do de
medo do es​c u​r o!
— Nem vai pas​sar. Na épo​c a de He​len, nin​guém sa​bia nada so​bre fo​bi​a s,
mas hoje em dia é di​f e​r en​te. Há es​tu​dos, pes​qui​sas... e deve ha​ver tra​ta​m en​to. E
cla​r o!
Em si​lên​c io, Er​nie bai​xou a ca​be​ç a.
— Eu não es​tou fi​c an​do lou​c o — mur​m u​r ou.
— Eu sei, bo​bi​nho...
A pa​la​vra “fo​bia” dava vol​tas e vol​tas na ca​be​ç a de Er​nie. Nos olhos azuis da
es​po​sa ele co​m e​ç a​va a ver a luz de uma es​pe​r an​ç a.
— De qual​quer modo, o que é que a sen​sa​ç ão es​qui​si​ta que tive na ro​do​via
pode ter a ver com essa... fo​bia? E a alu​c i​na​ç ão de hoje? O mo​to​c i​c lis​ta no te​lha​-
do... Como é que es​sas coi​sas se en​c ai​xam em sua ex​pli​c a​ç ão?
— Não sei. Mas um es​pe​c i​a ​lis​ta pode ex​pli​c ar tudo. Te​nho cer​te​za de que
tudo se en​c ai​xa.
— Está bem... mas por onde co​m e​ç a​m os? Como é que va​m os ‘ aca​bar
com essa lou​c u​r a?
— Já está tudo pla​ne​j a​do — de​c la​r ou Fay e com de​c i​são. — Aqui em Elko
não há ne​nhum mé​di​c o ca​paz de tra​tar um caso como o seu. Pre​c i​sa​m os de um
es​pe​c i​a ​lis​ta, de al​guém com ex​pe​r i​ê n​c ia em ca​sos de fo​bia. Acho que em Reno
tam​bém não en​c on​tra​r e​m os o que es​ta​m os pro​c u​r an​do. Mas numa ci​da​de mai​-
or... Mil-waukee, tal​vez. Lá, além do mais, po​de​m os fi​c ar em casa de Lucy.
— E apro​vei​tar para vi​si​tar Frank Jú​ni​or e Do​r ie... — Er​nie sor​r iu, pen​san​-
do nos ne​tos.
— Cla​r o. Já tí​nha​m os pla​ne​j a​do pas​sar o Na​tal com eles, não é? Pois bas​ta
vi​a ​j ar uma se​m a​na an​tes, no pró​xi​m o do​m in​go... na ver​da​de, ama​nhã mes​m o,
já que hoje é sá​ba​do. Te​r e​m os uma se​m a​na para pro​c u​r ar um bom mé​di​c o e,
de​pois do Na​tal, se você ain​da es​ti​ver em tra​ta​m en​to, eu ve​nho para cá, con​tra​to
al​guém para to​m ar con​ta do mo​tel e vol​to para fi​c ar com você. Já es​tá​va​m os
mes​m o pen​san​do em con​tra​tar um ge​r en​te... não é?
— Se fe​c har​m os o mo​tel uma se​m a​na an​tes do pre​vis​to, Sandy e Ned sai​-
rão pre​j u​di​c a​dos. Tal​vez os dois es​te​j am con​tan​do com a fé​r ia do res​tau​r an​te...
— O res​tau​r an​te pode con​ti​nu​a r fun​c i​o​nan​do para aten​der aos ca​m i​nho​nei​-
ros... Ali​á s, deve con​ti​nu​a r. E se Ned não tra​ba​lhar di​r ei​ti​nho vai ter que se ha​ver
co​nos​c o, quan​do vol​tar​m os!
Er​nie con​c or​dou com um ace​no de ca​be​ç a e sor​r iu:
— Você é fan​tás​ti​c a... ah! Você é mes​m o in​c rí​vel... ma​r a​vi​lho​sa!
— E. As ve​zes eu tam​bém me acho des​lum​bran​te.
— Não me can​so de agra​de​c er a Deus por ter você.
— Eu tam​bém. Não me ar​r e​pen​do de ter ca​sa​do com você, e es​tou cer​ta
de que ja​m ais me ar​r e​pen​de​r ei.
— Es​tou me sen​tin​do ali​vi​a ​do... Por que di​a ​bos de​m o​r ei tan​to tem​po para
lhe pe​dir aju​da?
— Por​que você é um Block, só por isso...
— E os Block são du​r os como con​c re​to!
Am​bos ri​r am, fe​li​zes por es​tar jun​tos, li​vres da ten​são que du​r an​te tan​to tem​-
po os aca​bru​nha​r a. Su​bi​ta​m en​te co​m o​vi​do, Er-nie to​m ou a mão da es​po​sa e le​-
vou-a aos lá​bi​os.
— E a pri​m ei​r a vez que con​si​go rir de ver​da​de há se​m a​nas — dis​se. —
Você é um gran​de ti​m o​nei​r o, que​r i​da. Po​de​m os en​f ren​tar qual​quer mar, não é
ver​da​de?
— Qual​quer um.
Era sá​ba​do, 14 de de​zem​bro. O dia co​m e​ç a​va a cla​r e​a r e Fay e Block ti​nha
cer​te​za de que, em bre​ve, su​pe​r a​r i​a m aque​la di​f i​c ul​da​de, como sem​pre, ao lon​-
go da vida, ha​vi​a m su​pe​r a​do to​das as di​f i​c ul​da​des, Bas​ta​va que se man​ti​ves​sem
jun​tos, lado a lado, mão na mão.
Como Er​nie, ela tam​bém se es​que​c e​r a da fo​to​gra​f ia que ha​vi​a m re​c e​bi​do na
ter​ç a-fei​r a an​te​r i​or, num en​ve​lo​pe sem re​m e​ten​te.
11. BOS​TON, MAS​SA​CHU​SETTS

So​bre o már​m o​r e po​li​do da pen​te​a ​dei​r a es​ta​va uma lin​da to​a ​lha de cro​c hê
ri​c a​m en​te tra​ba​lha​da; so​bre a to​a ​lha, um par de lu​vas pre​tas e um of​tal​m os​c ó​pio
de aço ino​xi​dá​vel.
Pa​r a​da jun​to à ja​ne​la, à es​quer​da da pen​te​a ​dei​r a, Gin​ger ti​nha o olhar per​di​-
do no ho​r i​zon​te, por cima das on​das de um mar cin​zen​to como o céu da​que​la tar​-
de de de​zem​bro. A ne​bli​na con​f e​r ia à pai​sa​gem uma es​pé​c ie de lu​m i​no​si​da​de di​-
fu​sa e pe​r o​la​da. Nos li​m i​tes da pro​pri​e ​da​de dos Han​naby, pró​xi​m o à en​c os​ta de
um ro​c he​do, via-se uma nes​ga de praia e um an​c o​r a​dou​r o co​ber​to de neve.
Ha​via neve tam​bém na tri​lha gra​m a​da que su​bia em di​r e​ç ão à casa.
Era uma casa mui​to gran​de, cons​tru​í​da por vol​ta de 1850, à qual se acres​-
cen​ta​r am vá​r i​os cô​m o​dos em 1892, 1905 e, no​va​m en​te, em 1950. Uma ala​m e​da
mu​r a​da de ti​j o​los con​du​zia até duas pe​sa​das por​tas de ma​dei​r a da en​tra​da prin​c i​-
pal. Pi​la​r es, co​lu​nas, ca​pi​téis, por​tais es​c ul​pi​dos em pe​dra, ja​ne​las emol​du​r a​das,
bal​c ões de fer​r o tra​ba​lha​do, sa​c a​das aber​tas para o mar, tudo con​tri​bu​ía para dar
à cons​tru​ç ão um as​pec​to im​po​nen​te e ma​j es​to​so.
A pro​pri​e ​da​de fora ad​qui​r i​da, em 1884, pelo bi​sa​vô de Ge​or​ge Han​naby, e já
na​que​la épo​c a ti​nha um nome, como as an​ti​gas mansões dos ro​m an​c es in​gle​ses.
Cha​m a​va-se Mi​r an​te do Mar, e era esse o de​ta​lhe que mais in​ti​m i​da​va Gin​ger.
No Bro​okly n, onde nas​c e​r a, as pes​so​a s mo​r a​vam em ca​sas sim​ples e anô​ni​m as.
No hos​pi​tal, Ge​or​ge Han​naby ja​m ais a fi​ze​r a sen​tir-se in​ti​m i​da​da ou di​m i​nu​-
í​da. Era uma fi​gu​r a res​pei​tá​vel pela ex​pe​r i​ê n​c ia e pela au​to​r i​da​de, mas não dei​-
xa​va de pa​r e​c er-se com qual​quer mor​tal co​m um, des​ses que mo​r am em ca​sas
nor​m ais. No Mi​r an​te, tudo mu​da​va: Ge​or​ge era no​bre e Gin​ger, ple​béia. Não
que al​gu​m a ati​tu​de ou pa​la​vra mar​c as​se qual​quer li​m i​te in​trans​po​ní​vel para ela.
Nem que seus an​f i​tri​ões fos​sem ca​pa​zes de qual​quer ges​to me​nos afe​tuo​so... O
que a fa​zia sen​tir-se des​lo​c a​da eram os fan​tas​m as pa​trí​c i​os da Nova In​gla​ter​r a
que vi​vi​a m no Mi​r an​te.
Gin​ger ocu​pa​va um dos apar​ta​m en​tos de hós​pe​des, com​pos​to de quar​to, sala
e ba​nhei​r o; em​bo​r a fos​se o mais sim​ples dos vá​r i​os que ha​via no Mi​r an​te, ofe​r e​-
cia-lhe tal​vez mais es​pa​ç o e con​f or​to que sua pró​pria casa. Um re​quin​ta​do ta​pe​te
em tons de azul e pês​se​go co​bria o as​so​a ​lho de lar​gas tá​bu​a s de car​va​lho. O
teto bran​c o con​tras​ta​va har​m o​ni​o​sa​m en​te com as pa​r e​des pin​ta​das em su​a ​ve cor
de pês​se​go.
Por to​dos os la​dos dis​pu​nham-se pe​ç as an​ti​gas, trans​por​ta​das no sé​c u​lo 19
pe​los na​vi​os mer​c an​tes do bi​sa​vô de Ge​or​ge: lin​das cô​m o​das usa​das como pen​te​-
a​dei​r as, me​sas-de-ca​be​c ei​r a, ga​ve​tei-ros para rou​pas.
As duas pol​tro​nas es​to​f a​das em seda, tam​bém cor de pês​se​go, ha​vi​a m sido
com​pra​das di​r e​ta​m en​te de uma fina loja fran​c e​sa. Os dois aba​j u​r es aos la​dos da
cama fo​r am mon​ta​dos a par​tir de can​de​la​bros do mais de​li​c a​do cris​tal. Era tudo
per​f ei​to, lin​do, mas Gin​ger sen​tia-se como se cada por​m e​nor ser​vis​se ape​nas
para im​pe​di-la de es​que​c er que, ali, a apa​r en​te sim​pli​c i​da​de bro​ta​va de pro​f un​-
das e ro​bus​tas ra​í​zes de elegân​c ia e tra​di​ç ão.
Como já fi​ze​r a in​c on​tá​veis ve​zes nos úl​ti​m os dez dias, ela se apro​xi​m ou da
pen​te​a ​dei​r a e exa​m i​nou as lu​vas pre​tas; de​pois cal​ç ou-as, fle​xi​o​nou os de​dos, vi​-
rou as mãos, à es​pe​r a de uma cri​se de medo. Quan​to mais exa​m i​na​va as lu​vas,
con​tu​do, me​nos ame​a ​ç a​do​r as lhe pa​r e​c i​a m. Eram lu​vas co​m uns, com​pra​das no
dia em que dei​xa​r a o hos​pi​tal; não pa​r e​c i​a m ter o po​der de pro​vo​c ar-lhe qual​-
quer tipo de cri​se. Ti​r ou-as, de​pres​sa, ao ou​vir uma ba​ti​da na por​ta.
— Está pron​ta, que​r i​da? — a voz de Rita Han​naby per​gun​tou.
— Sim. Já es​tou indo!
Apa​nhou a bol​sa e pa​r ou um ins​tan​te na fren​te do es​pe​lho. Usa​va um con​-
jun​to de ma​lha, com​pos​to de saia ver​de-cla​r a e blu​sa bran​c a com um pe​que​no
de​brum ver​de jun​to à gola; sa​pa​tos e bol​sa de cou​r o em per​f ei​ta har​m o​nia com a
rou​pa; pul​sei​r a de ouro, com a cor e o bri​lho de seus ca​be​los. Achou-se de​f i​ni​ti​-
va​m en​te chi​que... Ora, tal​vez não chi​que, mas ra​zo​a ​vel​m en​te bem ves​ti​da.
A de​c ep​ç ão mai​or es​pe​r a​va-a no cor​r e​dor. Mal pou​sou os olhos em Rita, sen​-
tiu-se em des​van​ta​gem. Não es​ta​va nem mes​m o ape​nas ra​zo​a ​vel​m en​te bem
ves​ti​da. Pa​r e​c ia uma bo​ne​c a en​f ei​ta​da... Uma as​pi​r an​te, ama​do​r a e in​c om​pe​ten​-
te. Uma apren​diz de elegân​c ia!
Ma​gra, como Gin​ger, po​r ém um pal​m o mais alta, aos cin​qüen-ta e oito anos
Rita pa​r e​c ia uma rai​nha, da ca​be​ç a aos pés. Os ca​be​los cas​ta​nho-es​c u​r os, tra​ta​-
dos por mãos de mes​tre, eram per​f ei​tos. O ros​to, se ti​ves​se fei​ç ões ain​da mais
re​gu​la​r es, pa​r e​c e​r ía se​ve​r o. En​tre​tan​to, uma boa alma sim​ples e ca​lo​r o​sa bri​lha​-
va em seus be​los olhos cin​zen​tos, na pele de por​c e​la​na, nos lá​bi​os far​tos, no sor​r i​-
so fá​c il. Rita usa​va tail​leur cin​zen​to, co​lar e brin​c os de pé​r o​las,
o cha​péu tie fel​tro pre​to de​bru​a ​do com uma fita de ta​f e​tá. O mais im​pres​si​o​-
nan​te na​que​le fes​ti​val de re​f i​na​da elegân​c ia era que nada, ab​so​lu​ta​m en​te nada,
fora pla​ne​j a​do. Quem vis​se Rita Han-naby po​de​r ia ima​gi​nar que pas​sa​r a ho​r as
pre​pa​r an​do-se para sair. Nao. Gin​ger ti​nha cer​te​za de que ela já nas​c e​r a com pé​-
ro​las, por​te de rai​nha e guar​da-rou​pa com​ple​to. Era um caso de elegân​c ia con​-
gê​ni​ta.
— Você está... des​lum​bran​te! — ex​c la​m ou Rita.
— Per​to de você, eu me sin​to como se es​ti​ves​se de je​a ns des​bo​ta​do e ca​-
mi​se​ta ve​lha.
— Bo​ba​gem! Você é mais bo​ni​ta do que já fui ou se​r ei. Es​pe​r e só para ver
a qual de nós o gar​ç om aten​de me​lhor.
Gin​ger sa​bia que era bo​ni​ta, nun​c a per​de​r ia tem​po com fal​sas mo​dés​ti​a s,
mas era bo​ni​ta como uma fada... Rita era di​f e​r en​te: ti​nha no​bre​za. Po​de​r ia sen​-
tar-se em qual​quer tro​no e nin​guém se atre​ve​r ia a du​vi​dar de seus le​gí​ti​m os di​-
rei​tos à re​a ​le​za.
Nao era cul​pa dela; des​de a che​ga​da de Gin​ger, tra​ta​va-a não como fi​lha,
mas como irmã e ami​ga. Na ver​da​de, Gin​ger sen​tia-se des​lo​c a​da no Mi​ran​te e
hu​m i​lha​da pela elegân​c ia de Rita uni​c a​m en​te por que sua vida es​ta​va em ru​í​nas.
Até duas se​m a​nas atrás, não sa​bia o que era de​pen​der de al​guém para vi​ver. E ali
es​ta​va, não só de​pen​den​te da ca​r i​da​de alheia, como in​c a​paz de dar um pas​so so​-
zi​nha pela rua. Rita de​di​c a​va-se a ela em tem​po in​te​gral, in​ven​ta​va pas​sei​os
agra​dá​veis, pro​c u​r a​va as​sun​tos que pu​des​sem in​te​r es​sá-la, es​f or​ç a​va-se ao má​-
xi​m o para fazê-la es​que​c er os pro​ble​m as. Em vão: como po​de​r ia al​guém dei​xar
de pen​sar que, aos trin​ta anos, es​ta​va re​du​zi​da à mi​se​r á​vel con​di​ç ão de órfã po​-
bre?
As duas des​c e​r am jun​tas a es​c a​da​r ia de már​m o​r e, apa​nha​r am os ca​sa​c os no
ar​m á​r io do sa​guão e sa​í​r am, en​c a​m i​nhan​do-se para o lu​xuo​so au​to​m ó​vel que as
es​pe​r a​va di​a n​te da por​ta prin​c i​pal. Her​bert, uma es​pé​c ie de cru​za​m en​to de mor​-
do​m o com fac​tó-tum, já li​ga​r a o car​r o e dei​xa​r a o mo​tor gi​r an​do para es​quen​-
tar. Não es​que​c e​r a, cla​r o, de li​gar tam​bém a ca​le​f a​ç ão in​ter​na.
Ex​c e​len​te mo​to​r is​ta, em pou​c o tem​po Rita dei​xa​va para trás as ruas tran​qüi​-
las dos bair​r os re​si​den​c i​a is e mer​gu​lha​va no trá​f e​go in​ten​so do cen​tro da ci​da​de,
em di​r e​ç ão ao con​sul​tó​r io do dr. lm​m a​nu​e l Gud​hau​sen, na Rua Sta​te. A ter​c ei​r a
con​sul​ta de Gin-ger es​ta​va mar​c a​da para as onze e trin​ta. O pla​no te​r a​pêu​ti​c o
pre​via três sessões por se​m a​na —■ às se​gun​das, quar​tas e sex​tas-fei​r as — até
con​se​gui​r em des​c o​brir as ra​í​zes psi​c o​ló​gi​c as do trau​m a que dava ori​gem às cri​-
ses de medo, às re​a ​ç ões de fuga e à per​da de cons​c i​ê n​c ia. Nos mo​m en​tos de de​-
pres​são má​xi​m a, Gin​ger ju​r a​va que pas​sa​r ia os pró​xi​m os trin​ta anos de sua vida
dei​ta​da no divã do dr. Gud​hau​sen.
Rita pla​ne​j a​va fa​zer al​gu​m as com​pras du​r an​te a ses​são e de​pois vol​tar para
bus​c ar Gin​ger e irem al​m o​ç ar jun​tas. Como sem​pre aca​ba​r i​a m co​m en​do em al​-
gum res​tau​r an​te ele​gan​tís​si​m o, cuja de​c o​r a​ç ão, por sim​ples que fos​se, pa​r e​c e​r ia
o ce​ná​r io de uma peça de te​a ​tro, na qual Rita era a es​tre​la e Gin​ger fa​zia o pa​pel
de garo-ti​nha que fin​gia ser adul​ta.
— Pen​sou no que eu lhe dis​se sex​ta-fei​r a pas​sa​da? — Rita per​gun​tou, sem
des​vi​a r o olhar do trân​si​to. — O tra​ba​lho vo​lun​tá​r io no ser​vi​ç o so​c i​a l do hos​pi​tal?
— Não sei... Acho que vai ser meio... es​tra​nho.
— É um tra​ba​lho im​por​tan​te.
— Eu sei. Ad​m i​r o mui​to o que você faz para ar​r e​c a​dar fun​dos para o hos​-
pi​tal. Sei do equi​pa​m en​to que con​se​gui​r am com​prar com o di​nhei​r o ar​r e​c a​da​-
do... Mas acho que não es​tou pre​pa​r a​da para vol​tar ao Me​m o​r i​a l. Não creio que
su​por​ta​r ia es​tar tão per​to... e ao mes​m o tem​po tão lon​ge... do úni​c o tra​ba​lho que
sei fa​zer para ga​nhar a vida.
— En​tão não pen​se mais nis​so, que​r i​da. Te​m os ou​tras coi​sas, como o Co​-
mi​tê Pró-or​ques​tra Sin​f ô​ni​c a, a As​so​c i​a ​ç ão de Am​pa​r o aos Ve​lhos, a Co​m is​são
de As​sis​tên​c ia Ju​di​c i​á ​r ia aos Me​no​r es... Você se​r ia mui​to útil em qual​quer um
des​ses gru​pos.
Rita tra​ba​lha​va em vá​r i​os co​m i​tês de as​sis​tên​c ia so​c i​a l, não ape​nas or​ga​ni​-
zan​do-os, como, tam​bém, en​vol​ven​do-se pes​so​a l​m en​te no tra​ba​lho di​á ​r io de
man​tê-los em fun​c i​o​na​m en​to.
— Al​gum des​ses a in​te​r es​sa? — in​sis​tiu. — Te​nho a im​pres​são de que você
gos​ta​r ia de tra​ba​lhar com cri​a n​ç as.
— Sim, mas... — Gin​ger res​pi​r ou fun​do — já ima​gi​nou o que po​de​r á acon​-
te​c er se eu ti​ver um ata​que no meio das cri​a n​ç as? Elas mor​r e​r i​a m de sus​to, e
eu...
— Ora, que bo​ba​gem! Você sem​pre diz a mes​m a coi​sa quan​do in​sis​to em
tirá-la de den​tro de casa. “E se eu ti​ver um ata​que no meio da rua?” A ver​da​de é
que te​m os sa​í​do mui​to, e até ago​r a você nao teve ata​que ne​nhum. Com cer​te​za
nun​c a mais terá. Po​r ém, mes​m o que te​nha, ago​r a, no meio da rua, não vai me
fa​zer de​sis​tir, nem me dei​xar em​ba​r a​ç a​da. Pou​c as coi​sas no mun​do con​se​guem
me em​ba​r a​ç ar.
— Sei que você não é uma vi​o​le​ta de es​tu​f a... Mas não pre​sen​c i​ou um de
meus ata​ques. Não sabe como eu fico, nem do que
sou ca​paz...
— Você fala como se fos​se o mé​di​c o e o mons​tro de sai​a s. Sei que não é
as​sim. Ain​da não es​pan​c ou nin​guém até ma​tar, es​pan​c ou?
Gin​ger não po​dia dei​xar de rir.
— Você é im​pos​sí​vel...
— En​tão está re​sol​vi​do. Óti​m o! Você vai ser mui​to útil a nos​so gru​po.
Com cer​te​za, Rita não via em Gin​ger um sim​ples caso novo que exi​gia a sua
aten​ç ão e boa par​te de seu es​pí​r i​to ca​r i​ta​ti​vo; já que fora en​c ar​r e​ga​da de cui​dar
dela, es​ta​va ar​r e​ga​ç an​do as man​gas e ati​r an​do-se ao tra​ba​lho. Nada a de​te​r ia até
con​se​guir a to​tal re​a ​bi​li​ta​ç ão da jo​vem ami​ga. Suas aten​ç ões co​m o​vi​a m Gin​ger,
po​r ém, ao mes​m o tem​po, dei​xa​vam-na ain​da mais de​pri​m i​da, por​que a fa​zi​a m
per​c e​ber o quan​to pre​c i​sa​va de cui​da​dos.
O au​to​m ó​vel pa​r ou num se​m á​f o​r o; era o ter​c ei​r o ve​í​c u​lo da fila, cer​c a​do de
ou​tros car​r os, ca​m i​nhões, ôni​bus, tá​xis e vá​r i​os ca​m i​nhões de en​tre​gas. Atra​vés
dos vi​dros fe​c ha​dos, os ru​í​dos da rua che​ga​vam até Gin​ger como se vi​e s​sem de
mui​to lon​ge. Ao ou​vir o som es​pe​c i​a l de um mo​tor, ela vi​r ou a ca​be​ç a e olhou
para fora. En​tão viu uma gran​de mo​to​c i​c le​ta. No mes​m o ins​tan​te, o mo​to​c i​c lis​ta
tam​bém olhou em sua di​r e​ç ão. Não ti​nha ros​to, mas ape​nas um vi​sor es​pe​lha​do
que se es​ten​dia da tes​ta ao quei​xo.
Foi a pri​m ei​r a cri​se em mais de dez dias. Ou​tra vez a né​voa en​c o​briu tudo. A
úni​c a di​f e​r en​ç a em re​la​ç ão às ou​tras cri​ses foi a ra​pi​dez com que tudo acon​te​-
ceu. Não hou​ve eta​pas, como no caso das lu​vas, do of​tal​m os​c ó​pio ou da pia. Des​-
sa vez Gin​ger sen​tiu-se mer​gu​lhar de re​pen​te, sem pau​sa, num oce​a ​no de medo.
No mo​m en​to em que seus olhos en​c on​tra​r am o vi​sor do ca​pa​c e​te, seu co​r a​ç ão
dis​pa​r ou, a res​pi​r a​ç ão fi​c ou sus​pen​sa e ela des​li​gou-se da re​a ​li​da​de, per​den​do-se
numa den​sa onda de ter​r or.
Pri​m ei​r o deu-se con​ta do som das bu​zi​nas. Bu​zi​nas de car​r os, de ôni​bus, de
ca​m i​nhões. Guin​c hos agu​dos, ani​m a​les​c os. Ge​m i​dos, zur​r os, ga​ni​dos, la​ti​dos, ui​-
vos. En​tão abriu os olhos. Ain​da não con​se​guia ver com cla​r e​za, mas per​c e​beu
que con​ti​nu​a ​va sen​ta​da no car​r o. Pou​c o adi​a n​te, o si​nal es​ta​va ver​de, po​r ém o
au​to​m ó​vel pa​r e​c ia mais pró​xi​m o da cal​ç a​da, como que atra​ves​sa​do so​bre o lei​to
da rua, obs​tru​in​do o trân​si​to. Por isso so​a ​vam tan​tas bu​zi​nas ao re​dor.
Gin​ger ou​viu-se so​lu​ç ar bai​xi​nho. E viu Rita in​c li​na​da para ela, se​gu​r an​do-
lhe os pu​nhos com for​ç a.
— Você está bem?
San​gue. De​pois dos ge​m i​dos de​ses​pe​r a​dos, dos ui​vos e ga​ni​dos... ha​via san​-
gue. A saia ver​de-cla​r a es​ta​va man​c ha​da de san​gue. As​sim como suas mãos... e
as mãos de Rita!
— Oh, meu Deus...
— Você está bem?
Uma das unhas de Rita fora ar​r an​c a​da e pen​dia, pre​sa por um fio de cu​tí​c u​-
la, ba​lan​ç an​do no ar. O dor​so de uma de suas mãos pa​r e​c ia ter le​va​do uma mor​-
di​da! Ha​via ar​r a​nhões tam​bém na pal​m a da mão. O san​gue pin​ga​va da unha ar​-
ran​c a​da, dos ar​r a​nhões e das mor​di​das. Os pu​nhos do pa​le​tó cin​zen​to es​ta​vam
em​pa​pa-dos de san​gue.
As bu​zi​nas con​ti​nu​a ​vam pro​tes​tan​do, cada vez mais fe​r o​zes.
Gin​ger le​van​tou os olhos e viu que Rita, sem​pre tão im​pe​c á​vel, es​ta​va pá​li​da
e des​gre​nha​da. Na face es​quer​da um ar​r a​nhão
san​gra​va, e o san​gue, es​c or​r en​do pelo ros​to, mis​tu​r a​va-se à ma-qui​la​gem e
pin​ga​va do quei​xo.
— Gra​ç as a Deus! — Rita sus​pi​r ou ali​vi​a ​da. — Já pas​sou.
— O que foi que eu fiz?
— Só me deu uns ar​r a​nhões. Nada gra​ve. Você teve uma cri​se, en​trou em
pâ​ni​c o e ten​tou sair do car​r o. Eu tra​tei de im​pe​di-la por cau​sa do trân​si​to.
Ma​no​bran​do com di​f i​c ul​da​de para pas​sar ao lado, o mo​to​r is​ta de um car​r o
gri​tou-lhes um pa​la​vrão.
— Eu feri você... — Gin​ger en​go​liu o suco amar​go que lhe su​biu pela gar​-
gan​ta, a náu​sea cres​c en​do.
Rita con​ti​nu​a ​va im​pas​sí​vel, in​di​f e​r en​te às bu​zi​nas que so​a ​vam ao re​dor. Sol​-
tou os pu​nhos de Gin​ger e to​m ou-lhe as mãos com ca​r i​nho.
— Já pas​sou, que​r i​da. Está tudo bem. Só pre​c i​so de umas pin​c e​la​das de
mer​ti​o​la​te.
O mo​to​c i​c lis​ta. O vi​sor es​pe​lha​do.
Gin​ger olhou pela ja​ne​la à es​quer​da: aque​le ho​m em sem ros​to ha​via de​sa​pa​-
re​c i​do. Ape​nas um ra​paz co​m um pas​sa​va com sua mo​to​c i​c le​ta ao lado do car​r o,
sem in​ten​ç ão de ame​a ​ç á-la.
A lis​ta au​m en​ta​va: as lu​vas pre​tas, o of​tal​m os​c ó​pio, o ralo da pia e, ago​r a, o
vi​sor es​pe​lha​do. O que po​de​r ia ha​ver de co​m um en​tre to​dos es​ses ob​j e​tos?
— Sin​to mui​to... mui​to... so​lu​ç ou, as lá​gri​m as es​c or​r en​do-lhe pelo ros​to.
— Es​que​ç a. Te​m os que tra​tar de sair da​qui. Rita abriu o por​ta-lu​vas, apa​-
nhou um maço de len​ç os de pa​pel e lim​pou o vo​lan​te e a ala​van​c a do câm​bio,
ain​da su​j os de san​gue.
Gin​ger afun​dou no as​sen​to es​to​f a​do, fe​c hou os olhos e ten​tou pa​r ar de cho​-
rar, mas não con​se​guiu. Era a quar​ta cri​se psi​c ó​ti​c a em cin​c o se​m a​nas. Che​ga​r a
a hora de lu​tar. Não po​dia con​ti​nu​a r ca​bis​bai​xa di​a n​te do pró​prio des​ti​no, fi​gin​do-
se dó​c il e con​f or​m a​da, es​pe​r an​do a pró​xi​m a cri​se ou o pas​se de má​gi​c a que
lhe ex​pli​c as​se tudo. Não! Pre​c i​sa​va fa​zer al​gu​m a coi​sa!
Era se​gun​da-fei​r a, dia 16 de de​zem​bro, e Gin​ger de​c i​diu agir
an​tes de so​f rer uma quin​ta cri​se. Ain​da não sa​bia por onde co​m e​ç ar, mas sa​-
bia que en​c on​tra​r ia um meio. Não po​dia mais ter pena de si mes​m a. To​c a​r a o
fun​do do poço... o pon​to ex​tre​m o de hu​m i​lha​ç ão, medo e de​ses​pe​r o. Acon​te​c es​se
o que acon​te​c es​se, não ha​ve​r ia como pi​o​r ar as coi​sas. Só lhe res​ta​va co​m e​ç ar
a lu​tar pela vida. Como sem​pre fi​ze​r a. Ah... e ha​ve​r ia de con​se​guir! Sem​pre con​-
se​guia... Ia sair do poço, vol​tar à vida, vol​tar à luz... E es​que​c er para sem​pre a es​-
cu​r i​dão em que ha​via mer​gu​lha​do.

TRÊS______________

Vés​pe​r a e dia de Na​t al


1. LA​G U​NA BE​A​CH, CA​LI​FÓR​NIA

Às oito ho​r as da ma​nhã de ter​ç a-fei​r a, dia 24 de de​zem​bro, Dom Cor​vai​sis le​-
van​tou-se e la​vou o ros​to, sen​tin​do-se ain​da ton​to por cau​sa dos mui​tos cal​m an​tes
e so​ní​f e​r os to​m a​dos na vés​pe​r a.

Era a dé​c i​m a pri​m ei​r a noi​te que dor​m ia sem so​nhos ou cri​ses de so​nam​bu​-
lis​m o. A te​r a​pia es​ta​va fun​c i​o​nan​do. Que mal pode-ria ha​ver numa tem​po​r á​r ia e
con​tro​la​da de​pen​dên​c ia de re​m é​di​os, se, em pou​c o tem​po, aca​ba​r ia por li​vrar-se
da afli​ç ão cons​tan​te de pas​sar as noi​tes pe​r am​bu​lan​do pela casa?
Não acre​di​ta​va na pos​si​bi​li​da​de de tor​nar-se de​pen​den​te, nem mes​m o psi​c o​-
lo​gi​c a​m en​te. Sa​bia que es​ta​va exa​ge​r an​do nas do​ses, mas ain​da não era o caso
de pre​o​c u​par-se. Quan​do os vi​dros es​ta​vam qua​se va​zi​os, in​ven​tou uma com​pli​-
ca​da his​tó​r ia que en​vol​via um as​sal​to a sua casa e con​se​guiu que o dr. Co​bletz lhe
des​se ou​tra re​c ei​ta. Men​ti​r a ao mé​di​c o para po​der com​prar os so​ní​f e​r os e, ago​r a,
os mo​m en​tos de mai​or cla​r e​za e lu​c i​dez eram ra​r os. Em ge​r al, seus dias pas​sa​-
vam como que en​vol​tos em né​voa, a su​a ​ve né​voa in​du​zi​da pela se​da​ç ão quí​m i​c a
cons​tan​te. Já nem con​se​guia pen​sar no que po​de​r ia acon​te​c er em ja​nei​r o, quan​-
do se es​go​tas​se o pra​zo es​ta​be​le​c i​do pelo dr. Co​bletz para a ten​ta​ti​va de cura clí​ni​-
ca.
Às dez ho​r as, in​c a​paz de con​c en​trar-se para es​c re​ver, Dom ves​tiu uma ja​-
que​ta de ve​lu​do e saiu. Fa​zia frio. De de​zem​bro a abril, como em to​dos os anos,
as prai​a s es​ta​r i​a m de​ser​tas, ex​c e​to em al​guns ra​r os dias um pou​c o mais quen​tes.
Ao vo​lan​te de seu car​r o, des​c en​do para o cen​tro da ci​da​de, Dom via La​gu​na
Be​a ​c h como que ador​m e​c i​da sob o céu som​brio e cin​zen​to. Che​gou a ocor​r er-lhe
a idéia de que tal​vez sua im​pres​são fos​se re​sul​ta​do do en​tor​pe​c i​m en​to pro​vo​c a​do
pe​los re​m é​di​os, mas logo ele tra​tou de fu​gir de tão pe​r i​go​sa li​nha de aná​li​se.
Cons​c i​e n​te de que não es​ta​va em ple​no gozo de suas fa​c ul​da​des de per​c ep​ç ão,
di​r i​gia com ex​tre​m o cui​da​do.
A mai​or par​te da cor​r es​pon​dên​c ia que re​c e​bia che​ga​va-lhe pela cai​xa pos​tal.
As​sim, to​m ou o rumo do cor​r eio para re​c o​lher o que hou​ves​se che​ga​do. Como
era as​si​nan​te de mui​tas re​vis​tas, alu​ga​r a uma das ga​ve​tas mai​o​r es, que, sen​do
vés​pe​r a de Na​tal, es​ta​va qua​se cheia. Dom nem se pre​o​c u​pou em exa​m i​nar o
que lhe ha​vi​a m man​da​do: reu​niu to​dos os en​ve​lo​pes e re​vis​tas e vol​tou ao car​r o
com a in​ten​ç ão de pas​sar os olhos na cor​r es​pon​dên​c ia en​quan​to to​m as​se o des​j e​-
jum.
Se​guiu en​tão para o Cot​ta​ge, res​tau​r an​te po​pu​lar e já tra​di​c i​o​nal, um pou​c o
aci​m a da es​tra​da cos​tei​r a. A hora era tar​dia para o des​j e​j um e pre​m a​tu​r a para o
al​m o​ç o, de modo que o res​tau​r an​te es​ta​va qua​se de​ser​to. Dom es​c o​lheu uma das
me​sas com vis​ta para o mar, sen​tou-se e pe​diu dois ovos com ba​c on, quei​j o, tor​-
ra​das e suco de la​r an​j a. En​quan​to mas​ti​ga​va, co​m e​ç ou a exa​m i​nar os en​ve​lo​pes.
Além das re​vis​tas e de al​gu​m as con​tas, ha​via uma car​ta de Len​nart Sane, a ma​-
ra​vi​lho​sa agen​te su​e ​c a que ne​go​c i​a ​va di​r ei​tos au​to​r ais de tra​du​ç ões na Es​c an​di​-
ná​via e na Ho​lan​da, e um en​ve​lo​pe da Ran​dom Hou​se. Ao ver o lo​go​ti​po da edi​-
to​r a, ele adi​vi​nhou o con​te​ú​do, e a ex​c i​ta​ç ão dis​si​pou a né​voa que ain​da lhe en​-
vol​via o cé​r e​bro. Dom lar​gou a tor​r a​da e abriu o en​ve​lo​pe: con​ti​nha o pri​m ei​r o
exem​plar de seu pri​m ei​r o ro​m an​c e. Ho​m em ne​nhum po​de​r á sa​ber o que uma
mu​lher sen​te quan​do, pela pri​m ei​r a vez, toma nos bra​ç os o fi​lho re​c ém-nas​c i​do.
Mas um ro​m an​c is​ta pode ex​pe​r i​m en​tar uma sen​sa​ç ão mui​to se​m e​lhan​te
quan​do, pela pri​m ei​r a vez, vê seu nome im​pres​so no pri​m ei​r o exem​plar de
seu pri​m ei​r o li​vro.
Dom não con​se​guia des​vi​a r os olhos. Ter​m i​na​r a de co​m er e es​ta​va es​pe​r an​-
do o café quan​do, com um sor​r i​so, de​c i​diu exa​m i​nar o res​tan​te da cor​r es​pon​dên​-
cia. En​tre ou​tros, ha​via um en​ve​lo​pe bran​c o, sem nome nem en​de​r e​ç o do re​m e​-
ten​te, con​ten​do ape​nas uma fo​lha de pa​pel com duas fra​ses da​ti​lo​gra​f a​das:
O sa​nâm​bu​lo de​v e​rá pro​c u​rar no pas​sa​do a ori​gem de seu pro​ble​ma. E lá que
está se​pul​ta​do o se​gre​do.
Atô​ni​to, Dom leu e re​leu a men​sa​gem. Em sua mão, o pa​pel tre​m ia. Ele co​-
me​ç ou a suar frio.

2. BOS​TON, MAS​SA​CHU​SETTS

Gin​ger sal​tou do táxi e pa​r ou um mo​m en​to di​a n​te de um pré​dio de seis an​da​-
res, re​ves​ti​do de ti​j o​los no me​lhor es​ti​lo vi​to​r i​a ​no. Uma ra​j a​da de ven​to sa​c u​diu-
lhe os ca​be​los e agi​tou os ga​lhos nus das ár​vo​r es da Rua New​bury, num ru​í​do
seco de os​sos cho​c a​lhan​do. Ela cur​vou a ca​be​ç a para en​f ren​tar a ven​ta​nia, pas​-
sou pelo por​tão de fer​r o tra​ba​lha​do e en​trou no edi​f í​c io nú​m e​r o 127. Du​r an​te dé​-
ca​das ali fun​c i​o​na​r a o Ho​tel Agas​siz, um dos mar​c os his​tó​r i​c os da evo​lu​ç ão da
ci​da​de, ago​r a trans​f or​m a​do em pré​dio de apar​ta​m en​tos. E ali mo​r a​va Pa​blo
Jack​son, so​bre quem Gin​ger sa​bia ape​nas o que lera no Bos​ton Glo​be da vés​pe​r a.
De​pois que Ge​or​ge saiu para ir ao hos​pi​tal e Rita foi fa​zer suas úl​ti​m as com​-
pras de Na​tal, Gin​ger es​c a​pou de casa, ig​no​r an​do os ro​gos da em​pre​ga​da La​vi​nia
para que es​pe​r as​se a pa​troa vol​tar. Dei​xa​r a um bi​lhe​te di​zen​do que es​ta​va bem e
não de​m o​r a​r ia; ago​r a re​za​va para seus an​f i​tri​ões não se pre​o​c u​pa​r em mui​to.
O pró​prio Pa​blo Jack​son abriu-lhe a por​ta, e Gin​ger ar​r e​ga​lou os olhos. Es​ta​-
va sur​pre​sa não por ele ser ne​gro e ter mais de oi​ten​ta anos — es​ses de​ta​lhes já
ha​vi​a m sido men​c i​o​na​dos no ar​ti​go do jor​nal —, mas pela in​c rí​vel vi​ta​li​da​de do
ho​m em a sua fren​te. Alto, com mais de um me​tro e oi​ten​ta, es​guio, Pa​blo ves​tia
cami
sa bran​c a e cal​ç a pre​ta de vin​c o per​f ei​to; os ca​be​los, bran​c os e bri​lhan​tes,
da​vam a im​pres​são de en​vol​vê-lo numa aura má​gi​c a e mis​te​r i​o​sa. Com um ges​-
to ga​lan​te, con​vi​dou-a a en​trar e ca​m i​nhou a sua fren​te in​di​c an​do-lhe o ca​m i​nho
com a elegân​c ia de um ho​m em qua​r en​ta anos mais jo​vem.
Ou​tra sur​pre​sa aguar​da​va-a na sala de es​tar. Em​bo​r a não es​pe​r as​se en​c on​-
trar um am​bi​e n​te dig​no de mu​seu, fi​c ou des​lum​bra​da com o as​pec​to mo​der​no e
are​j a​do do apo​sen​to. Tudo era am​plo, ele​gan​te, de ex​c ep​c i​o​nal bom gos​to, des​de
as pa​r e​des cla​r as até os am​plos so​f ás con​f or​tá​veis. Um ta​pe​te co​lo​r i​do que​bra​va
a mo​no​to​nia das li​nhas re​tas dos mó​veis, cri​a n​do a ilu​são de um mo​vi​m en​to de
on​das ma​c i​a s. Aci​m a do enor​m e apa​r a​dor, um ori​gi​nal de Pi​c as​so atra​ía ir​r e​sis​-
ti​vel​m en​te a aten​ç ão.
Gin​ger sen​tou-se numa das duas pol​tro​nas dis​pos​tas fren​te a fren​te, jun​to à
va​r an​da. Agra​de​c eu o café e res​pi​r ou fun​do:
— Se​nhor Jack​son, acho que co​m e​ç a​m os mal. Eu lhe men​ti quan​do fa​la​-
mos pelo te​le​f o​ne.
— Uma con​f is​são... Não é mau co​m e​ç o — ele sor​r iu, cru​zou as per​nas e
es​pe​r ou, as mãos de lon​gos de​dos ne​gros des​c an​san​do nos bra​ç os da pol​tro​na.
— Não sou re​pór​ter.
— Não tra​ba​lha no Pe​o​pie? — exa​m i​nou-lhe o ros​to, aten​to. — Ora, tudo
bem. Sou​be que você não era re​pór​ter as​sim que a vi. Os re​pór​te​r es, hoje em
dia, che​gam à por​ta de nos​sa casa fin​gin​do-se in​te​r es​sa​dos, ou in​te​r es​san​tes,
como pre​f e​r ir, mas sem​pre são mui​to ar​r o​gan​tes. No mo​m en​to em que a vi, pa​-
ra​da à mi​nha fren​te, tive cer​te​za de que não era um de​les.
— Es​tou pre​c i​san​do de aju​da. E o se​nhor é a úni​c a pes​soa que pode me
aju​dar.
— Uma don​ze​la em apu​r os? — Pa​blo não pa​r e​c ia nem zan​ga​do nem an​si​-
o​so para vê-la par​tir, como ela, de cer​to modo, re​c e​a ​r a.
— Ima​gi​nei que não con​c or​da​r ia em fa​lar co​m i​go se eu lhe con​tas​se a
ver​da​de. Sou mé​di​c a, re​si​den​te em ci​r ur​gia no Me​m o​r i​a l, da​qui de Bos​ton.
Quan​do li o ar​ti​go so​bre o se​nhor, pu​bli​c a​do on​tem no Glo​be, pen​sei que tal​vez
pu​des​se me aju​dar.
— Se​r ia um pra​zer co​nhe​c ê-la, mes​m o se vi​e s​se ape​nas para me ven​der
as​si​na​tu​r as de re​vis​tas. Aos oi​ten​ta e um anos, um ho​m em não pode mais se dar
ao luxo de des​per​di​ç ar qual​quer chan​c e de co​nhe​c er gen​te in​te​r es​san​te.
Gin​ger sor​r iu, agra​de​c i​da por seu es​f or​ç o para dei​xá-la à von​ta​de. Ti​nha
boas ra​zões para des​c on​f i​a r que a vida so​c i​a l da​que​le ve​lhi​nho de oi​ten​ta e um
anos era mil ve​zes mais ex​c i​tan​te que a sua. Pa​blo con​ti​nuou:
— Além dis​so, nem mes​m o um fós​sil como eu dei​xa​r ia pas​sar a opor​tu​ni​-
da​de de co​nhe​c er uma mu​lher tão bo​ni​ta como você. Mas va​m os ao que in​te​r es​-
sa. O que pen​sa que pos​so fa​zer para aju​dá-la?
Sen​ta​da na bei​r a da pol​tro​na, ela re​te​sou-se e dis​pa​r ou:
— An​tes de mais nada, gos​ta​r ia de sa​ber se tudo que o Glo​be dis​se so​bre o
se​nhor é ver​da​de.
— Na me​di​da em que pode ser ver​da​de o que di​zem os jor​nais... — Pa​blo
er​gueu os om​bros. — E ver​da​de que meus pais vi​ve​r am na Fran​ç a, como ame​r i​-
ca​nos ex​pa​tri​a ​dos; que mi​nha mãe tra​ba​lhou como can​to​r a num café de Pa​r is,
an​tes e de​pois da Pri​m ei​r a Guer​r a Mun​di​a l; que meu pai era mú​si​c o. Tam​bém é
ver​da​de que eles con​vi​ve​r am com Pi​c as​so e que per​c e​be​r am que era um gê​nio
mui​to an​tes de o res​to da hu​m a​ni​da​de en​ten​der isso. Eu me cha​m o Pa​blo em ho​-
me​na​gem a ele. Meus pais com​pra​r am al​gu​m as obras de Pi​c as​so nos tem​pos em
que ain​da eram ba​r a​tas, e o pró​prio pin​tor lhes deu vá​r i​a s te​las de pre​sen​te.
Meus pais eram pes​so​a s de bon goüt... bom gos​to, como di​zem os fran​c e​ses. Ja​-
mais che​ga​r am a pos​suir cem te​las de Pi​c as​so, como di​zia o jor​nal, mas ape​nas
cin​qüen​ta. O que, na ver​da​de, foi mais do que su​f i​c i​e n​te para lhes dar con​f or​to
até o fim da vida e para me man​ter.
— E é ver​da​de que o se​nhor tra​ba​lhou como má​gi​c o?
— Du​r an​te mais de cin​qüen​ta anos — Pa​blo riu e er​gueu a mão di​r ei​ta
como se fi​zes​se um ju​r a​m en​to, re​c o​nhe​c en​do mo​des​ta​m en​te o pro​dí​gio de sua
lon​ge​vi​da​de. Um belo ges​to de pres​ti​di​gi​ta​ç ão. Gin​ger sur​preen​deu-se, olhos
mui​tos aber​tos, es​pe​r an​do que de
re​pen​te sur​gis​se uma pom​ba bran​c a, ou um co​e ​lho. — Che​guei a ser mui​to
fa​m o​so. Sxns​pa​reil, o me​lhor, sem dú​vi​das e sem mo​dés​tia. Sei que mi​nha fama
foi mai​or na Eu​r o​pa do que na Amé​r i​c a, mas, ain​da as​sim, mui​ta gen​te por aqui
fa​la​va e ou​via fa​lar das mi​nhas má​gi​c as.
— Seu es​pe​tá​c u​lo in​c lu​ía um ato de hip​no​tis​m o, não é? O se​nhor hip​no​ti​za​-
va al​guém da pla​téia...
Pa​blo res​pon​deu com um ace​no de ca​be​ç a:
— Era a me​lhor par​te do show. O pú​bli​c o fi​c a​va des​lum​bra​do.
— E ago​r a, pelo que diz o jor​nal, o se​nhor está tra​ba​lhan​do para a po​lí​c ia,
usan​do suas téc​ni​c as de hip​no​se em tes​te​m u​nhas de cri​m es... para fa​zer com que
se lem​brem de de​ta​lhes que pos​sam ter es​que​c i​do.
— Sim, mas não é um tra​ba​lho re​gu​lar e cons​tan​te. — Ele fez um ges​to no
ar, como que re​c o​lhen​do na car​to​la o co​e ​lho, a pom​ba e quais​quer gran​des es​pe​-
ran​ç as que Gin​ger pu​des​se ter ali​m en​ta​do. — Nos úl​ti​m os dois anos a po​lí​c ia me
pro​c u​r ou ape​nas duas ve​zes, como úl​ti​m o re​c ur​so.
— Mas... o se​nhor con​se​guiu aju​dar? As pes​so​a s se lem​bra​r am do que ha​-
vi​a m es​que​c i​do?
— Ah, sim... exa​ta​m en​te como diz o jor​nal. Por exem​plo... um ho​m em pa​-
ra​do jun​to ao meio-fio pode ter vis​to, de re​lan​c e, a cha​pa do car​r o em que o cri​-
mi​no​so es​c a​pou, mas a im​pres​são não é su​f i​c i​e n​te para que ele a re​gis​tre na me​-
mó​r ia cons​c i​e n​te. O que acon​te​c e é que, em​bo​r a não cons​c i​e n​te, o re​gis​tro per​-
ma​ne​c e em sua me​m ó​r ia. Isso é uma lei... nun​c a es​que​c e​m os o que ve​m os ou
sen​ti​m os, mes​m o que não te​nha​m os cons​c i​ê n​c ia de to​das as im​pressões
que guar​da​m os. O que a hip​no​se faz é con​du​zir a pes​soa, atra​vés de um tran​se,
de vol​ta ao pas​sa​do: com isso é pos​sí​vel fazê-la re​vi​ver de​ter​m i​na​da si​tu​a ​ç ão. No
caso da tes​te​m u​nha que dei como exem​plo, bas​ta pe​dir-lhe que olhe para o car​r o
e “veja” o nú​m e​r o da cha​pa.
— E isso fun​c i​o​na... sem​pre?
— Não. Mas qua​se sem​pre.
— Por que a po​lí​c ia pro​c u​r a o se​nhor? Os psi​qui​a ​tras que tra​ba​lham para a
po​lí​c ia não co​nhe​c em as téc​ni​c as de hip​no​se?
— É pos​sí​vel que co​nhe​ç am. Mas são psi​qui​a ​tras, não es​pe​c i​a ​lis​tas em hip​-
no​se. Quan​to a mim, como te​nho anos de ex​pe​r i​ê n​c ia, aca​bei por de​sen​vol​ver
um mé​to​do pró​prio... téc​ni​c as pró​pri​a s, que, em ge​r al, fun​c i​o​nam me​lhor do que
as téc​ni​c as co​nhe​c i​das pe​los psi​qui​a ​tras.
— O se​nhor, en​tão, é o me​lhor.
— Um ex​pert... Sim, é ver​da​de. Sou o me​lhor den​tre os me​lho​r es que exis​-
tem. Mas por que isso lhe in​te​r es​sa tan​to, dou​to​r a?
Gin​ger sen​ta​r a-se com a bol​sa so​bre os jo​e ​lhos, as mãos cru​za​das. Mas, à
me​di​da que fa​la​va so​bre suas cri​ses, foi en​tre​la​ç an​do os de​dos, cada vez com
mais for​ç a, até que as ar​ti​c u​la​ç ões co​m e​ç a​r am a doer, es​bran​qui​ç a​das. A sua
fren​te, Pa​blo ou​via, aten​to, in​te​r es​sa​do, dei​xan​do-se, aos pou​c os, en​vol​ver por
sua es​tra​nha his​tó​r ia.
— Po​bre cri​a n​ç a... — dis​se, afi​nal. — Es​pe​r e um mo​m en​to. Es​pe​r e, por
fa​vor. — Le​van​tou-se de re​pen​te e saiu da sala. Quan​do vol​tou, tra​zia dois cá​li​c es
de co​nha​que.
— Obri​ga​da, se​nhor Jack​son. Não cos​tu​m o be​ber, prin​c i​pal​m en​te a esta
hora.
— Por fa​vor, me cha​m e de Pa​blo. Quan​to à be​bi​da, acho que você pas​sou
a noi​te em cla​r o, mal to​m ou seu des​j e​j um, e saiu. Seu re​ló​gio bi​o​ló​gi​c o, por​tan​to,
não está acer​ta​do com o re​ló​gio cro​no​ló​gi​c o das ou​tras pes​so​a s. Para você, é
como se es​ti​vés​se​m os no meio da tar​de, hora per​f ei​ta para um co​nha​que.
Di​a n​te do ar​gu​m en​to, Gin​ger acei​tou a be​bi​da. Pa​blo vol​tou à pol​tro​na, e, por
al​guns ins​tan​tes, ne​nhum dos dois fa​lou. Foi ela quem que​brou o si​lên​c io:
— Pre​c i​so que me hip​no​ti​ze, que me faça re​gre​dir ao dia doze de no​vem​-
bro, ao mo​m en​to em que saí da Casa Berns​tein. E aí que que​r o pa​r ar para que
você me in​ter​r o​gue, até eu con​se​guir en​ten​der por que aque​las lu​vas pre​tas me
as​sus​ta​r am tan​to.
— Im​pos​sí​vel! — Pa​blo in​ter​r om​peu-a. — Não e não.
— Pos​so pa​gar...
— O pro​ble​m a não é esse. Não pre​c i​so de di​nhei​r o. Sou má​gi​c o, não sou
mé​di​c o.
— Já es​tou me tra​tan​do com um psi​qui​a ​tra. Che​guei a su​ge​r ir que me hip​-
no​ti​zas​se... mas ele se nega a ado​tar esse tipo de te​r a​pia.
— E deve ter suas ra​zões.
— Se​gun​do ele, é mui​to cedo para ten​tar uma re​gres​são hip​nó​ti​c a. Dis​se
que é pos​sí​vel que a hip​no​se aju​de, mas que pode ser pe​r i​go​sa... que pre​c i​so es​tar
pre​pa​r a​da para en​c a​r ar a ver​da​de. Uma con​f ron​ta​ç ão pre​m a​tu​r a po​de​r ia me le​-
var a um... co​lap​so... al​gu​m a es​pé​c ie de sur​to de​pres​si​vo.
— Con​c or​do com seu psi​qui​a ​tra. Ele sabe que...
— Tal​vez sai​ba o que é me​lhor para os ou​tros pa​c i​e n​tes. — Gin-ger qua​se
gri​tou, lem​bran​do-se do tor​m en​to que eram as sessões de te​r a​pia, obri​ga​da a fa​-
lar e fa​lar, sem​pre com a sen​sa​ç ão de que per​dia tem​po e di​nhei​r o. — Mas não
tem a me​nor idéia do que pode ser me​lhor para miml Se ti​ver que es​pe​r ar ain​da
um ano an​tes de ten​tar a hip​no​se, já te​r ei en​lou​que​c i​do com​ple​ta​m en​te, e a cura
não vai me ser​vir de nada! Te​nho que fa​zer al​gu​m a coi​sa! E o mais ra​pi​da​m en​te
pos​sí​vel... en​quan​to há tem​po!
— Não pos​so as​su​m ir uma res​pon​sa​bi​li​da​de que...
— Eu sei — Gin​ger in​ter​r om​peu-o, pou​sou o cá​li​c e so​bre a mesa ao lado
da pol​tro​na e abriu a bol​sa. — Sa​bia que você di​r ia exa​ta​m en​te isso. — Ti​r ou da
bol​sa uma fo​lha de pa​pel da​ti​lo​gra​f a​da. — Por fa​vor, leia. — Pa​blo pe​gou o pa​-
pel e des​do​brou-o com mãos fir​m es.
— O que é isso? — per​gun​tou.
— Uma de​c la​r a​ç ão fir​m a​da por mim. As​su​m o to​tal res​pon​sa​bi​li​da​de por
qual​quer coi​sa que pos​sa me acon​te​c er. Você es​ta​r á isen​to de cul​pas, não po​de​r á
ser pro​c es​sa​do, nem...
Ele de​vol​veu-lhe o do​c u​m en​to, sem lê-lo.
— Não es​tou pre​o​c u​pa​do em ser pro​c es​sa​do... A lei é mui​to len​ta, e eu sou
mui​to ve​lho. Em qual​quer caso, já es​ta​r ei mor​to quan​do che​gar a hora de ser jul​-
ga​do pela jus​ti​ç a dos ho​m ens. O pro​ble​m a não é esse, dou​to​r a. O pro​ble​m a é
que, caso al​gu​m a coi​sa lhe acon​te​ç a, eu mes​mo ja​m ais me per​do​a ​r ei... nem nes​-
se mun​do, nem no in​f er​no. E se você en​trar em sur​to de​pres​si​vo?
— Se não me aju​dar ago​ra, e se eu ti​ver que es​pe​r ar um ano para des​c o​-
brir o que vai ser fei​to de mi​nha vida, vou en​trar em sur​to de​pres​si​vo mui​to an​tes
do que você pen​sa! — Ela se le​van​tou, de​ses​pe​r a​da, e pros​se​guiu: — Se me
man​dar em​bo​r a ago​r a, se me obri​gar a vol​tar para a casa onde es​tou, obri​ga​da a
vi​ver da ca​r i​da​de alheia, de​pen​den​do da bon​da​de de al​guns ami​gos... Se me
man​dar para aque​le mal​di​to dou​tor Gud​hau​sen, eu... não sei... — De re​pen​te, fal​-
tou-lhe a voz. Gin​ger en​go​liu em seco, res​pi​r ou fun​do. — Não é ver​da​de... eu
sei... Es​ta​r ei con​de​na​da... Nao pos​so con​ti​nu​ar a vi​v er as​siml Se eu en​trar em sur​-
to ama​nhã de ma​nhã... a cul​pa será sua! Por​que pode me sal​var e me re​c u​-
sou sua aju​da!
— Sin​to mui​to, dou​to​r a.
— Por fa​v or...
— Não pos​so.
— Ne​gro des​gra​ç a​do! — Gin​ger pa​r ou de re​pen​te, lá​bi​os en​tre​a ​ber​tos,
hor​r o​r i​za​da com o que aca​ba​va de di​zer. Fe​c hou os olhos e ge​m eu bai​xi​nho, co​-
brin​do o ros​to com as mãos. — Oh, Deus... Des​c ul​pe, des​c ul​pei — Dei​xou-se
cair na pol​tro​na, es​c on​deu o ros​to en​tre as mãos e cho​r ou.
Pa​blo le​van​tou-se e apro​xi​m ou-se, cal​m o como sem​pre.
— Não cho​r e, dou​to​r a Weiss, por fa​vor. As coi​sas vão se re​sol​ver. Não de​-
ses​pe​r e.
— En​ga​no seu. As coi​sas nun​c a vão se re​sol​ver para mim. Mi​nha vida ja​-
mais vol​ta​r á a ser o que era...
An​tes de re​pli​c ar, ele to​m ou-lhe as mãos, afas​tou-as do ros​to e obri​gou Gin​-
ger a fitá-lo. En​tão sor​r iu e mos​trou-lhe a pal​m a da mão di​r ei​ta, para que se cer​-
ti​f i​c as​se de que es​ta​va va​zia. De re​pen​te, rá​pi​do, ti​r ou uma mo​e ​di​nha pra​te​a ​da
de den​tro da ore​lha dela. E vol​tou a fi​c ar mui​to sé​r io.
— Está bem — dis​se, por fim. — Você con​se​guiu. Não es​tou con​ven​c i​do
de que devo fa​zer o que me pede, mas vou fa​zer. Nun​c a, em oi​ten​ta e um anos,
con​se​gui re​sis​tir a cho​r o de mu​lher bo​ni​ta.
Em vez de pa​r ar de cho​r ar, Gin​ger co​m e​ç ou a so​lu​ç ar alto, ali​vi​a ​da, in​di​f e​-
ren​te às lá​gri​m as que lhe cor​r i​a m pelo ros​to. Tal​vez, fi​nal​m en​te, co​m e​ç as​se a
sur​gir uma es​pe​r an​ç a...
— ... e ago​r a você está dor​m in​do, dor​m in​do... dor​m in​do pro​f un​da​m en​te...
Está re​la​xa​da, sol​ta, cada vez mais sol​ta... e vai res​pon​der a mi​nhas per​gun​tas.
Está bem?
— Sim...
— Você não pode se re​c u​sar a res​pon​der. Não pode se re​c u​sar. Você vai
res​pon​der. Vai di​zer a ver​da​de.
As cor​ti​nas das três gran​des ja​ne​las da sala es​ta​vam fe​c ha​das e as lu​zes apa​-
ga​das. Uma úni​c a lâm​pa​da bri​lha​va, ama​r e​la​da, ao lado da pol​tro​na onde Gin​ger
es​ta​va sen​ta​da. A luz re​f le​tia-se em seus ca​be​los e cri​a ​va-lhe uma au​r é​o​la dou​r a​-
da ao re​dor do ros​to mui​to pá​li​do. A fren​te da pol​tro​na, Pa​blo ob​ser​va​va-a, aten​-
to. Era uma mu​lher mui​to bo​ni​ta, de uma be​le​za doce e frá​gil. Al​gu​m a coi​sa, po​-
rém, por trás do ros​to de li​nhas per​f ei​tas, mos​tra​va uma alma de guer​r ei​r a, uma
alma for​te, qua​se mas​c u​li​na.
Jus​te mi​li​e u... o meio-ter​m o per​f ei​to, o equi​lí​brio vi​tal, o cor​te de ouro dos
clás​si​c os... os con​trá​r i​os em har​m o​nia... be​le​za e ca​r á​ter em do​ses iguais.
Gin​ger man​ti​nha olhos fe​c ha​dos, mas Pa​blo per​c e​beu, por bai​xo das pál​pe​-
bras cer​r a​das, a in​ten​sa ati​vi​da​de das pu​pi​las. Si​nal de tran​se pro​f un​do. Vol​tou en​-
tão a sua pol​tro​na, mer​gu​lha​da nas som​bras da sala, sen​tou-se e cru​zou as per​nas.
— Por que é que você tem medo das lu​vas pre​tas? — per​gun​tou em voz
bai​xa.
— Não sei.
— Não es​que​ç a que você tem que di​zer a ver​da​de. Não pode men​tir, não
pode es​c on​der nada... Ago​r a res​pon​da... por que tem medo das lu​vas pre​tas?
— Não sei.
— E por que tem medo do of​tal​m os​c ó​pio?
— Não sei.
— Por que tem medo do ralo da pia?
— Não sei.
— Você co​nhe​c e o mo​to​c i​c lis​ta da Rua Sta​te?
— Não.
— En​tão, por que teve medo dele?
— Não sei.
Fran​zin​do as so​bran​c e​lhas, Pa​blo sus​pi​r ou e ba​lan​ç ou a ca​be​ç a.
— Tudo bem. Va​m os fa​zer uma vi​a ​gem no tem​po. Pa​r e​c e im​pos​sí​vel, mas
e pos​sí​vel e até bem fá​c il. Você vai vi​a ​j ar de vol​ta à infân​c ia. Não há como re​-
sis​tir... O tem​po é um rio cor​r en​do para trás... para trás... cada vez mais para trás.
Já não es​ta​m os no dia vin​te e qua​tro de de​zem​bro... o tem​po con​ti​nua a cor​r er
para trás... dia vin​te e três... vin​te e dois... vin​te e um... — E con​ti​nuou até che​gar
ao dia doze de no​vem​bro. — Ago​r a você está na Casa Berns​tein, es​pe​r an​do o tro​-
co. Está sen​tin​do o chei​r o dos paes? Dos tem​pe​r os? Diga... que chei​r os são es​ses?
Gin​ger ins​pi​r ou, o ros​to trans​f i​gu​r a​do. Sua voz soou di​f e​r en​te, ani​m a​da, ale​-
gre:
— Cas​ta​nhas as​sa​das... pi​c les... pães de mel... café... Cho​c o​la​te! Sin​ta esse
chei​r o! E bolo de cho​c o​la​te!
— Óti​m o! Ago​r a você já re​c e​beu o tro​c o...
— Es​que​c i a car​tei​r a! — in​ter​r om​peu-o.
—- En​tão vol​te ao bal​c ão e apa​nhe a car​tei​r a. Óti​m o... Você está an​dan​do
para a por​ta, ten​tan​do abrir a bol​sa...
— ...guar​dar a car​tei​r a... Te​nho que fa​zer uma lim​pe​za nes​sa bol​sa...
— O pa​c o​te de com​pras está no bra​ç o es​quer​do... Ago​r a! Paf​tl Você es​bar​-
ra no ho​m em do cha​péu rus​so. Ele se​gu​r a o pa​c o​te e não o dei​xa cair...
So​bres​sal​ta​da, Gin​ger agi​tou-se na ca​dei​r a.
— Oh! — ex​c la​m ou, le​van​tan​do a ca​be​ç a de re​pen​te.
— Ele lhe pede des​c ul​pas. Diz que a cul​pa foi dele.
— Oh, não. Foi mi​nha! — Ela já não fa​la​va com Pa​blo, e sim com o ho​-
mem das lu​vas pre​tas. — Não vi o se​nhor en​trar... Oh, es​tou óti​m a. Obri​ga​da.
— Ele lhe de​vol​ve o pa​c o​te. Você agra​de​c e... — Pa​blo des​c ru-zou as per​-
nas e cur​vou-se para a fren​te a fim de ob​ser​vá-la de per​to. — En​tão... você vê as
lu​vas pre​tas.
A trans​f or​m a​ç ão foi vi​o​len​ta e ins​tan​tâ​nea. Gin​ger sal​tou na
pol​tro​na, cos​tas re​tas, ten​sa, e abriu os olhos como se fos​se uma bo​ne​c a de
lou​ç a.
— As lu​vas... Meu Deus! As lu​vas!
— Fale... Como são es​sas lu​vas?
— Bri​lhan​tes.
— E o que mais?
— Não!— ele gri​tou e le​van​tou-se.
— Por fa​vor, sen​te-se — Pa​blo pe​diu-lhe, sem al​te​r ar a voz. Gin​ger não se
mo​veu, como que pa​r a​li​sa​da no meio de um mo​vi​m en​to de fuga. Não cor​r eu,
mas tam​bém não vol​tou a sen​tar-se.
—Es​tou-lhe di​zen​do para se sen​tar e acal​m ar-se.
Por fim ela sen​tou-se, mas con​ti​nuou com as cos​tas mui​to re-« tas, as mãos
fe​c ha​das com for​ç a, ain​da ten​sa. Os olhos con​ti​nu​a ​vam ar​r e​ga​la​dos, fi​xos no
ros​to de Pa​blo, mas não ven​do se​não o par de lu​vas pre​tas. Pa​r e​c ia um ani​m al
pron​to para sal​tar e fu​gir à pri​m ei​r a ame​a ​ç a.
— Está tudo bem... Você está cal​m a... cada vez mais cal​m a... mais cal​-
ma...
— Sim... es​tou cal​m a... — A res​pi​r a​ç ão tor​nou-se um pou​c o mais len​ta, os
om​bros mo​ve​r am-se de leve, po​r ém Gin​ger con​ti​nu​a ​va ten​sa.
Pa​blo sem​pre con​se​gui​r a con​tro​lar qual​quer pes​soa que hip​no​ti​zas​se. E ago​r a
de​pa​r a​va com al​gu​m a coi​sa mui​to es​tra​nha: aque​la moça con​ti​nu​a ​va a re​sis​tir à
su​ges​tão hip​nó​ti​c a. A par​tir de cer​to pon​to, ele de​c i​diu con​tra-ata​c ar:
— En​tão fale so​bre as lu​vas pre​tas — dis​se, aten​to e an​si​o​so.
— Oh, Deus... — O belo ros​to cris​pou-se de medo.
— Acal​m e-se... re​la​xe... e fale so​bre as lu​vas pre​tas. Por que tem medo
das lu​vas pre​tas?
— Não... não dei​xe que elas me to​quem! Não\
Gin​ger cru​zou os bra​ç os so​bre o pei​to e en​c o​lheu-se na pol​tro​na.
— Ago​r a es​c u​te bem..,. — Pa​blo apro​xi​m ou a pol​tro​na. — O tem​po está
sus​pen​so. O re​ló​gio não anda mais, nem para a fren​te nem para trás. As lu​vas
não po​dem to​c ar em você. Não vou per​m i​tir que che​guem per​to de você, fi​que
tran​qüi​la. Te​nho o po-
der de fa​zer o tem​po pa​r ar, e já o pa​r ei. Nada vai lhe acon​te​c er. Você está
se​gu​r a... Está me ou​vin​do?
— S-sim... — Ain​da ha​via medo e in​c er​te​za em sua voz e ela con​ti​nu​a ​va
en​c o​lhi​da no fun​do da pol​tro​na.
Cada vez mais in​tri​ga​do, Pa​blo ob​ser​va​va-a. Gin​ger con​ti​nu​a ​va como que
pa​r a​li​sa​da pelo medo, ape​sar do tran​se pro​f un​do e das ins​tru​ç ões cla​r as para
acal​m ar-se.
— Lem​bre-se, o tem​po pa​r ou — dis​se ele. — Você está se​gu​r a por​que não
vou per​m i​tir que as lu​vas pre​tas se apro​xi​m em. Pode exa​m i​ná-las à von​ta​de... e
diga-me por que a as​sus​tam tan​to.
Sem res​pon​der, ela co​m e​ç ou a tre​m er.
— É mui​to im​por​tan​te. Olhe bem... — Pa​blo ca​lou-se um mo​m en​to e de​c i​-
diu mu​dar a li​nha das per​gun​tas. — Tem cer​te​za de que são as lu​vas que lhe dão
tan​to medo? São es​sas lu​vas?
— Não... não es​sas lu​vas...
— As lu​vas pre​tas que você está ven​do ape​nas a fa​zem lem​brar de ou​tras
lu​vas... é isso? Ou​tras lu​vas... que você viu em ou​tro lu​gar... tal​vez há mui​to, mui​to
tem​po... E isso?
— Sim! E isso!
— E quan​do foi que você viu as ou​tras lu​vas? Quan​do?
— Não sei.
— Eu sei que você sabe. — Ele se le​van​tou, deu al​guns pas​sos pela sala,
sem​pre de olhos pos​tos na fi​gu​r i​nha dou​r a​da, en​c o​lhi​da em sua pol​tro​na, tre​m en​-
do de medo. — Mui​to bem, va​m os sol​tar o tem​po, mas sem in​ter​r om​per nos​sa
vi​a ​gem para o pas​sa​do. Va​m os para trás... para trás... até o dia em que você viu
as ver​da​dei​ras lu​vas pre​tas... As pri​m ei​r as... As pri​m ei​r as que a as​sus​ta​r am. Es​-
ta​m os indo... indo... já qua​se che​gan​do... Ago​r a! Você está di​a n​te das ver​da​dei​r as
lu​vas pre​tas.
Na pol​tro​na, olhos es​bu​ga​lha​dos, Gin​ger não via nem a sala de es​tar de Pa​blo
Jack​son, nem a loja de do​c es e sal​ga​dos. Es​ta​va no pas​sa​do, em al​gum pon​to per​-
di​do no pas​sa​do.
— Onde você está? — ele per​gun​tou, an​si​o​so, de​bru​ç a​do so​bre a pol​tro​na.
— Pre​c i​sa me di​zer onde está... Não pode men​tir.
— O ros​to... — ela ge​m eu bai​xi​nho, a voz tão ater​r o​r i​za​da que
Pa​blo sen​tiu um ca​la​f rio per​c or​r er-lhe as cos​tas. — O ros​to... sem ros​to...
— Ex​pli​que me​lhor. Que ros​to é esse? Des​c re​va o ros​to que você está ven​-
do.
— As lu​vas pre​tas... o ros​to de vi​dro... es​c u​r o.
— Mas... o que está di​zen​do?... Um ros​to como o do mo​to​c i​c lis​ta... O ca​pa​-
ce​te?
— As lu​vas... o vi​sor... — De re​pen​te, um es​pas​m o de medo sa​c u​diu-a.
— Cal​m a, cal​m a... Está tudo bem, você está se​gu​r a. Eu es​tou aqui... Ago​r a,
fale. Ain​da está ven​do um ho​m em de ca​pa​c e​te, com o vi​sor so​bre o ros​to... e
usan​do lu​vas pre​tas?
Vin​do de al​gum lu​gar in​de​f i​ní​vel, o som en​c heu a sala. Era al​gu​m a coi​sa
como um la​m en​to, um ge​m i​do, um so​lu​ç o, sa​í​do não da gar​gan​ta, mas de den​tro
do cor​po... Vi​nha de Gin​ger. Era um ga​ni​do de ter​r or.
— Acal​m e-se... Re​la​xe... acal​m e-se. Nin​guém pode feri-la. Você está em
se​gu​r an​ç a... — Cada vez mais as​sus​ta​do, Pa​blo ajo​e ​lhou-se di​a n​te da pol​tro​na,
aca​r i​c i​a n​do o bra​ç o de Gin​ger com mo​vi​m en​tos su​a ​ves e len​tos, ten​tan​do evi​tar
o ris​c o de pre​c i​sar fazê-la des​per​tar do tran​se an​tes do mo​m en​to pre​vis​to. — Fale
para se li​vrar dis​so... Onde você está? Está mui​to lon​ge? Quan​do é esse mo​m en​to
em que você está?
O ga​ni​do de ter​r or trans​f or​m ou-se em uivo. Um bra​do sem tem​po ou lu​gar.
A res​pos​ta tor​tu​r a​da de mi​lê​ni​os de medo su​f o​c a​do.
Pa​blo re​te​sou-se fren​te à pol​tro​na. Quan​do fa​lou, já não ha​via su​a ​vi​da​de em
sua voz, mas um co​m an​do frio e fir​m e:
— Es​tou con​tro​lan​do sua men​te. Você está dor​m in​do e eu con​tro​lo seu pen​-
sa​m en​to. Não pode fa​zer nada que eu não quei​r a e deve fa​zer tudo que eu man​-
dar. Eu lhe or​de​no que fale.
Ela sal​tou na pol​tro​na, como se re​c e​bes​se uma des​c ar​ga elé​tri​c a, mas não
fa​lou.
— Res​pon​da. Onde é que você está?
— Em lu​gar ne​nhum.
— Onde?
De re​pen​te, ela pa​r ou de tre​m er. Os bra​ç os, que con​ti​nu​a ​vam cru​za​dos so​bre
o pei​to, sol​ta​r am-se e ca​í​r am ao lado do cor​po, iner​tes. Como por en​c an​to, o
medo de​sa​pa​r e​c eu do ros​to, dos olhos, dos ges​tos. Em voz mui​to fra​c a, inex​pres​-
si​va, Gin​ger, afi​nal, res​pon​deu:
— Não es​tou em lu​gar ne​nhum. Eu es​tou mor​ta.
— Não é ver​da​de.
— Eu es​tou mor​ta — re​pe​tiu.
— E im​por​tan​te que você me diga onde es​tão as lu​vas que lhe cau​sam tan​-
to medo. E im​por​tan​te para você... se cu​r ar. Se me dis​ser, o pe​sa​de​lo es​ta​r á ter​-
mi​na​do. Que​r o sa​ber onde es​tão es​sas lu​vas que lhe fa​zem tan​to mal. E im​por​-
tan​te que você fale.
— Eu es​tou mor​ta...
Pa​blo con​ti​nu​a ​va ajo​e ​lha​do di​a n​te da pol​tro​na, os olhos fi​xos no ros​to de Gin​-
ger. Por isso, por​que es​ta​va pró​xi​m o e aten​to, viu que sua res​pi​r a​ç ão tor​na​va-se
ir​r e​gu​lar. To​c ou-lhe a mão e sen​tiu-a iner​te, ge​la​da. Rá​pi​do, to​m ou-lhe o pul​so e
co​m e​ç ou a con​tar. A pul​sa​ç ão ir​r e​gu​lar... co​m e​ç a​va a fu​gir! Em pâ​ni​c o, lo​c a​li​zou
a veia do pes​c o​ç o. Qua​se nada: ape​nas um la​te​j ar len​to, mui​to fra​c o.
Ela es​ta​va en​tran​do num tran​se mui​to mais pro​f un​do que o pro​du​zi​do pela
hip​no​se! Es​ta​va ten​tan​do fu​gir para al​gum pon​to ain​da mais dis​tan​te, para não
ou​vir a voz que a gui​a ​va e não ser obri​ga​da a res​pon​der as per​gun​tas. Mas... se​r ia
pos​sí​vel?! Se​r ia pos​sí​vel que al​guém de​c i​dis​se mor​r er, pa​r ar de res​pi​r ar, de​ter o
co​r a​ç ão... ape​nas para não ter que res​pon​der al​gu​m as per​gun​tas?
Ao lon​go da vida Pa​blo Jack​son en​c on​tra​r a as mais es​tra​nhas re​a ​ç ões de blo​-
queio a lem​bran​ç as trau​m á​ti​c as. A li​te​r a​tu​r a psi​c a​na​lí​ti-ca, en​tre ou​tras, era pró​-
di​ga em re​la​tos de ca​sos de blo​quei​os in​c ons​c i​e n​tes, de de​f e​sas in​c ons​c i​e n​tes
face a lem​bran​ç as as​sus​ta​do​r as ou do​lo​r o​sas. Que ex​pe​r i​ê n​c ia po​de​r ia ser tão
ter​r í​vel a pon​to de fa​zer com que uma mu​lher jo​vem, sau​dá​vel, in​te​li​gen​te, bo​ni​-
ta, pre​f e​r is​se mor​r er a ter que en​f ren​tar uma sim​ples re​c or​da​ç ão?!
To​c an​do-lhe o ros​to, afli​to, ele re​sol​veu:
— Che​ga de per​gun​tas. Você pode vol​tar. Não vou per​gun​tar mais nada.
Não pre​c i​sa di​zer coi​sa al​gu​m a.
Gin​ger fez um mo​vi​m en​to com os lá​bi​os qua​se im​per​c ep​tí​vel. Pa​r e​c ia sus​-
pen​sa en​tre a vida e a mor​te, ten​tan​do de​c i​dir que ca​m i​nho es​c o​lher.
— Acre​di​te... Juro que não vou mais lhe pe​dir que fale. Juro! — Os de​dos
ain​da co​la​dos a seu pul​so, Pa​blo sen​tiu que o ba​ti​m en​to, aos pou​c os, vol​ta​va à
nor​m a​li​da​de. — Aca​ba​r am-se as per​gun​tas... Pode vol​tar... Vol​te...
Gin​ger ins​pi​r ou pro​f un​da​m en​te uma, duas, três ve​zes, a cor re​tor​nan​do-lhe
aos lá​bi​os. Em pou​c os mi​nu​tos, re​tor​na​va ao pre​sen​te, na pol​tro​na da sala de es​-
tar, e es​ta​va des​per​ta.
— O que hou​ve? — per​gun​tou, olhan​do ao re​dor. — Já sei... Você nao con​-
se​guiu me fa​zer vi​a ​j ar mui​to, não foi?
— Meu Deus... — Pa​blo de​sa​bou so​bre sua pol​tro​na. — Se você sou​bes​se...
Vi​a ​j ou mui​to, dou​to​r a! E para mui​to lon​ge...
— Você... está tre​m en​do... Por quê? O que acon​te​c eu?
Foi a vez de Gin​ger cor​r er até o bar e vol​tar com a gar​r a​f a para re​pe​tir a
dose de co​nha​que.
Pou​c o de​pois, ao des​pe​dir-se de Pa​blo para en​trar no táxi que ele cha​m a​r a
pelo te​le​f o​ne, Gin​ger ain​da di​zia:
— Juro que não te​nho a mí​ni​m a idéia do que acon​te​c eu. Te​nho cer​te​za ab​-
so​lu​ta de que ja​m ais pas​sei por qual​quer ex​pe​r i​ê n​c ia tão trau​m á​ti​c a a pon​to de
me fa​zer pre​f e​r ir a mor​te à lem​bran​ç a. Não faz sen​ti​do!
— Faça sen​ti​do ou não, há um trau​m a em seu pas​sa​do. Um trau​m a que en​-
vol​ve um ho​m em de lu​vas pre​tas, um ho​m em com um “ros​to sem ros​to”, como
você dis​se, “o ros​to de vi​dro es​c u​r o”. Pro​va​vel​m en​te, um mo​to​c i​c lis​ta, como o
que você viu na Rua Sta​te e que tan​to a as​sus​tou. Essa lem​bran​ç a está so​ter​r a​da
em seu pas​sa​do, no in​c ons​c i​e n​te mais pro​f un​do... e você não pa​r e​c e sin​c e​r a​m en​-
te in​te​r es​sa​da em fazê-la vir à luz. Meu con​se​lho é que con​te a seu psi​qui​a ​tra o
que acon​te​c eu hoje, e dei​xe que ele es​c o​lha a me​lhor te​r a​pia a ser se​gui​da.
— Gud​hau​sen é tra​di​c i​o​nal, anda mui​to de​va​gar. Que​r o que você me aju​-
de.
— Não pos​so ar​r is​c ar sua vida. De modo al​gum con​c or​da​r ei em hip​no​ti​zá-
la ou​tra vez.
— A me​nos que en​c on​tre al​gu​m a re​f e​r ên​c ia a qual​quer ou​tro caso como o
meu... Você pro​m e​teu pes​qui​sar.
— Não es​pe​r e mui​to de mi​nhas pes​qui​sas — Pa​blo sor​r iu. — Na ver​da​de,
es​tou pes​qui​san​do há mais de cin​qüen​ta anos e nun​c a li nada so​bre o tipo de re​a ​-
ção que você apre​sen​tou.
— Você pro​m e​teu...
— Pro​m e​ti pes​qui​sar. E só isso que vou fa​zer.
— Pro​m e​teu tam​bém que, caso en​c on​tre al​gu​m a te​r a​pia ra​zo​á ​vel para tra​-
tar um blo​queio como o meu, vai tes​tá-la em mim.
Con​ti​nu​a ​va atur​di​da, po​r ém sen​tia-se in​f i​ni​ta​m en​te mais cal​m a do que quan​-
do che​ga​r a à casa de Pa​blo Jack​son. Pelo me​nos ha​vi​a m con​se​gui​do en​c on​trar
uma hi​pó​te​se de tra​ba​lho, em​bo​r a ain​da não sou​bes​sem exa​ta​m en​te o que sig​ni​-
fi​c a​va ou até onde po​de​r ia levá-los. Ti​nham uma equa​ç ão: bas​ta​va des​c o​brir a
fór​m u​la que a tor​na​r ia com​preen​sí​vel. Ha​via um nó em al​gum pon​to de seu pas​-
sa​do. Quan​do o lo​c a​li​zas​sem, no es​pa​ç o ou no tem​po, es​ta​r ia aber​ta a pos​si​bi​li​da​-
de de cura de​f i​ni​ti​va. Se​r ia o fim das cri​ses e do medo.
— Con​te tudo a seu psi​qui​a ​tra — Pa​blo in​sis​tiu.
— Te​nho pou​c as fi​c has e pre​f i​r o apos​tar to​das em você.
— Você é tei​m o​sa.
— Não. Sou ape​nas de​c i​di​da e per​sis​ten​te.
— Tei​m o​sia.
— Fir​m e​za. De​c i​são.
— Achar​ne​me​nú
— Che​gan​do ao Mi​r an​te, vou pro​c u​r ar um di​c i​o​ná​r io de fran​c ês e des​c o​-
brir se é um in​sul​to. Se for, você vai ou​vir pou​c as e boas quan​do eu vol​tar para a
pró​xi​m a ses​são. Até quin​ta!
— Não adi​a n​ta vir na quin​ta-fei​r a — pre​ve​niu Pa​blo. — Pre​c i​so de al​gum
tem​po para pes​qui​sar. E não vou hip​no​ti​zá-la no​va​m en​te en​quan​to não en​c on​trar
al​gum tipo de ex​pli​c a​ç ão te​ó​r i​c a con​f i​á ​vel para o que acon​te​c eu hoje, e en​quan​-
to não sou​ber exa​ta​m en​te o que fa​zer em ter​m os de te​r a​pia.
— lis​tá bem. Es​pe​r o até sex​ta ou sá​ba​do. Se você não te​le​f o​nar até lá, pode
se pre​pa​r ar por​que es​ta​r ei sen​ta​da aqui na so​lei​r a da por​ta, ao lado do lei​te e do
pão, à es​pe​r a. — Gin​ger fi​tou-o nos olhos, com tris​te​za. — Você é mi​nha úni​c a
es​pe​r an​ç a.
— Po​bre me​ni​na... — ele sus​pi​r ou. — Não ali​m en​te gran​des es​pe​r an​ç as.
— Nao há pe​r i​go, por​que só te​nho uma... você. — Gin​ger er​gueu-se na
pon​ta dos pés e bei​j ou-o no ros​to.
— Au ív​v oir. Não pre​c i​sa de di​c i​o​ná​r io... sig​ni​f i​c a “até bre​ve”.
— Shã​lon. Tam​bém não pre​c i​sa de di​c i​o​ná​r io... quer di​zer “fi​que em paz”.
Na cal​ç a​da, di​r i​gin​do-se para o táxi que a es​pe​r a​va, lem​brou-se de uma das
fra​ses pre​f e​r i​das de seu pai. Uma fra​se sá​bia e re​a ​lis​ta que, de al​gum modo, ser​-
viu para con​tra​ba​lan​ç ar a im​pres​são de que tudo es​ta​va co​m e​ç an​do a me​lho​r ar
ape​nas por​que con​se​gui​r a dar um pri​m ei​r o pas​so: “O mo​m en​to mais cla​r o do dia
é sem​pre o úl​ti​m o, an​tes que des​ç am as som​bras da noi​te”.
3. CHI​CA​G O, IL​LI​NOIS

Win​ton Tolk, o pa​tru​lhei​r o alto, pre​to e sem​pre sor​r i​den​te, saiu da vi​a ​tu​r a
para com​prar três san​du​í​c hes e três re​f ri​ge​r an​tes no bar da es​qui​na, dei​xan​do
Paul Ar​m es ao vo​lan​te e o pa​dre Bren​dan Cro​nin no ban​c o tra​sei​r o. Bren​dan via
a en​tra​da do bar, mas não o que se pas​sa​va lá den​tro, por​que as vi​tri​nes bri​lha​-
vam, co​ber​tas de de​se​nhos e car​ta​zes co​lo​r i​dos: Pa​pai Noel, re​nas, fes​tões ver​-
des, fi​tas ver​m e​lhas, an​j os e es​tre​las. Ne​va​va no​va​m en​te, e o ser​vi​ç o de me​te​o​-
ro​lo​gia pre​via quin​ze cen​tí​m e​tros de neve até a meia-noi​te, o que ga​r an​tia um
belo Na​tal bran​c o no dia se​guin​te.
Quan​do Win​ton saiu do car​r o, Bren​dan in​c li​nou-se para Paul Ar​m es:
— Sem que​r er des​m e​r e​c er O Bom Pas​tor, o que você me diz de Na​tal
Bran​c o? Que fil​m e!
- Ah, uma be​le​za... — sus​pi​r ou o ou​tro.
Con​ti​nu​a ​r am fa​lan​do so​bre fil​m es de Na​tal, e Bren​dan ti​nha cer​te​za de que
se lem​bra​r a do me​lhor de to​dos os tem​pos.
— Li​o​nel Barry ​m o​r e fa​zia o ava​r en​to. E Glo​r ia Gra​ha​m e... que atriz!
— E Tho​m as Mit​c hell?
Win​ton apro​xi​m ou-se da por​ta do bar e en​trou.
— Que elen​c o! — ex​c la​m ou Bren​dan, sau​do​so.
— Es​ta​m os es​que​c en​do de ou​tro... De Ilu​são Tam​bém se Vive...
— Gran​de fil​m e. Mas ain​da pre​f i​r o O Bom Pas​tor... E mais...
Os ti​r os e o ru​í​do de vi​dro es​ti​lha​ç a​do ocor​r e​r am no mes​m o
ins​tan​te, sem di​f e​r en​ç a de fra​ç ão de se​gun​do. Mes​m o no car​r o, de ja​ne​las
fe​c ha​das, com o zum​bi​do in​ter​m i​ten​te do rá​dio e do apa​r e​lho de ca​le​f a​ç ão,
Bren​dan ou​viu o ba​r u​lho e ca​lou-se de re​pen​te, dei​xan​do a fra​se sus​pen​sa no ar.
A ex​plo​são aca​ba​va com a paz da rua prin​c i​pal e re​du​zia a ca​c os o Pa​pai Noel
pin​ta​do na vi​tri​ne do bar da es​qui​na. De​pois dos pri​m ei​r os ti​r os hou​ve uma pau​sa,
e logo ou​tra ra​j a​da rom​peu o si​lên​c io.
— Mer​da! — Paul Ar​m es de​sa​bo​to​ou o col​dre e saiu da vi​a ​tu​r a, pis​to​la na
mão; os úl​ti​m os es​ti​lha​ç os de vi​dro ain​da re​ti​ni​a m na cal​ç a​da. — Fi​que abai​xa​do!
— gri​tou para Bren​dan pro​te​gen​do-se atrás da por​ta do car​r o.
Atur​di​do, Bren​dan olhou para o bar a tem​po de ver a por​ta abrir-se com vi​o​-
lên​c ia e dois ra​pa​zes apa​r e​c e​r em, um pre​to e um bran​c o. O pre​to usa​va boné de
tri​c ô e ja​que​ta de ma​r i​nhei​r o, e em​pu​nha​va uma pis​to​la semi-au​to​m á​ti​c a de
cano cur​to. O ou​tro, de ca​sa​c o de cou​r o, ti​nha um re​vól​ver. Cor​r e​r am jun​tos
para fora do bar, meio abai​xa​dos, o ne​gro mi​r an​do a vi​a ​tu​r a po​li​c i​a l. Bren​dan es​-
ta​va di​a n​te dele, hip​no​ti​za​do pelo cano da arma. Viu um bri​lho ama​r e​la​do, como
um flash... po​de​r ía ju​r ar que fora atin​gi​do. Mas o vi​dro tra​sei​r o, pró​xi​m o de seus
olhos, con​ti​nu​a ​va in-tato. O vi​dro da fren​te é que se es​ti​lha​ç ou so​bre o pai​nel e o
ban​c o. Com o sus​to, Bren​dan des​per​tou e jo​gou-se no chão, à fren​te do ban​c o
onde es​ti​ve​r a sen​ta​do, o co​r a​ç ão ba​ten​do como tam​bor.
Má sor​te: Win​ton Tolk en​tra​r a no bar exa​ta​m en​te quan​do os dois ra​pa​zes lim​-
pa​vam a cai​xa re​gis​tra​do​r a. Tal​vez es​ti​ves​se mor​to.
Com os bra​ç os por cima da ca​be​ç a, es​c on​di​do sob o as​sen​to da vi​a ​tu​r a,
Bren​dan ou​viu a voz de Paul Ar​m es di​r i​gin​do-se aos ra​pa​zes:
— Lar​guem as ar​m as!
Mais dois ti​r os. De re​vól​ver. Mas... do re​vól​ver de quem? Do as​sal​tan​te ou da
po​lí​c ia? Mais um tiro... Al​guém gri​tou. Paul ou um dos ra​pa​zes?
Sem co​r a​gem para le​van​tar-se, Bren​dan es​pe​r ou. Gra​ç as aos con​ta​tos do pa​-
dre Wy ​c a​zik, fa​zia cin​c o dias que acom​pa​nha​va Win-ton e Paul no tra​ba​lho di​á ​-
rio de pa​tru​lha​m en​to das ruas. Ves​tia-se de ter​no e gra​va​ta, sem ba​ti​na, e fora
apre​sen​ta​do aos po​li​c i​a is como ad​vo​ga​do con​tra​ta​do pela Igre​j a para ava​li​a r o
al​c an​c e e a uti​li​da​de dos pro​gra​m as de as​sis​tên​c ia so​c i​a l. Uma boa his​tó​r ia que,
até ali, nin​guém ha​via pos​to em dú​vi​da. Win​ton e Paul co​bri​a m a área cen​tral,
en​tre a Ave​ni​da Fors​ter ao nor​te, a Mar​gi​nal do Lago a les​te, a Es​tra​da de Ir​ving
Park ao sul, e a Ave​ni​da Nor​th Ash​land a oes​te. Era a re​gi​ã o mais mi​se​r á​vel de
Chi​c a​go, de​ten​to​r a de al​tos ín​di​c es de cri​m i​na​li​da​de, ha​bi​ta​da por ne​gros, ín​di​os
e, prin​c i​pal​m en​te, por​to-ri​que​nhos. Cin​c o dias de con​vi​vên​c ia di​á ​r ia bas​ta​r am
para que Bren​dan apren​des​se a gos​tar e ad​m i​r ar os dois po​li​c i​a is. Mais do que
isso, a ex​pe​r i​ê n​c ia fi​ze​r a-o co​nhe​c er a vida di​f í​c il de to​das as boas al​m as que vi​-
vi​a m e tra​ba​lha​vam na​que​la re​gi​ã o de ruas imun​das e pré​di​os de​c a​den​tes... mi​-
se​r á​veis pre​sas de que se ali​m en​ta​vam os cha​c ais da hu​m a​ni​da​de. Sen​tia-se pre​-
pa​r a​do para qual​quer sur​pre​sa, e já ha​via vis​to mui​ta coi​sa... até que o in​c i​den​te
no bar mos​trou-lhe que ain​da não co​nhe​c ia o pior.
Ou​tro tiro fu​r ou a la​ta​r ia da vi​a ​tu​r a, fa​zen​do-a es​tre​m e​c er. En​c o​lhi​do, Bren​-
dan pen​sou em re​zar, mas as pa​la​vras não lhe vi​nham à me​m ó​r ia. Con​ti​nu​a ​va a
ser um ho​m em sem Deus, o mais so​li​tá​r io dos ho​m ens.
Do lado de fora, Paul Ar​m es gri​tou:
— Lar​guem as ar​m as!
E um dos ra​pa​zes res​pon​deu:
— Foda-se!
De​pois de uma se​m a​na no Hos​pi​tal In​f an​til São José, Bren​dan con​ver​sa​r a
com o pa​dre Wy ​c a​zik e fora man​da​do para ou​tro hos​pi​tal, en​c ar​r e​ga​do da en​f er​-
ma​r ia dos do​e n​tes ter​m i​nais, lu​gar tris​te, po​vo​a ​do de ge​m i​dos, onde não ha​via
cri​a n​ç as. Como já acon​te​c e​r a no São José, logo en​ten​deu o que o ve​lho pá​r o​c o
que​r ia en​si​nar-lhe: há pes​so​a s para as quais a mor​te não é um mal, e sim uma
bên​ç ão de Deus. Pes​so​a s que pe​dem a Deus que as leve, e pes​so​a s que agra​de​-
cem a Deus a gra​ç a de fa​zer ces​sar o so​f ri​m en​to de seus en​tes que​r i​dos. A mor​te
de um ho​m em ou de uma mu​lher pode de​m ons​trar que, qua​se sem​pre, há algo
de no​bre e pro​f un​do no ato de se​pa​r ar-se dos vi​vos. E como se, por al​guns ins​tan​-
tes, to​dos pu​des​sem par​ti​lhar a dor mís​ti​c a da mor​te de Cris​to.
Ou​tra mag​ní​f i​c a li​ç ão... Bren​dan, no en​tan​to, ain​da não vol​ta​r a a crer. En​c o​-
lhi​do den​tro da vi​a ​tu​r a po​li​c i​a l, pa​r a​li​sa​do en​tre dois fo​gos, ten​ta​va en​c on​trar as
pa​la​vras de qual​quer ora​ç ão, en​tre mui​tas que co​nhe​c ia, mas a me​m ó​r ia não o
aju​da​va. Não con​se​guia fa​lar, ti​nha a boca seca, a lín​gua pe​sa​da.
Os gri​tos con​ti​nu​a ​vam, po​r ém Bren​dan não con​se​guia en​ten​der o que es​ta​va
acon​te​c en​do, em par​te por​que vá​r i​a s pes​so​a s gri​ta​vam ao mes​m o tem​po, em
par​te por​que os ti​r os o dei​xa​r am semi-sur​do.
Ain​da não ti​ve​r a tem​po para pen​sar na li​ç ão que o pa​dre Wy ​c a​zik pre​ten​dia
en​si​nar-lhe, fa​zen​do-o co​nhe​c er de per​to o bair​r o po​bre. Ha​via po​bres por toda a
ci​da​de e, fos​se qual fos​se a li​ç ão, Bren​dan já sa​bia que ne​nhu​m a se​r ia su​f i​c i​e n​te
para con​ven​c ê-lo de que Deus era mais real que uma ra​j a​da de ba​las. A mor​te
se​r ia sem​pre feia, mal​c hei​r o​sa, in​sen​sa​ta. Di​a n​te dela, de que va​le​r ia a pro​m es​sa
da vida eter​na na gló​r ia de Deus?
Bren​dan ain​da ou​via ti​r os, o ma​tra​que​a r da pis​to​la au​to​m á​ti​c a e pas​sos de al​-
guém que cor​r ia. Era como se es​ti​ves​se na fren​te de ba​ta​lha. Ou​tra ra​j a​da de ba​-
las, e mais vi​dros es​ti​lha​ç a​r am-se. Ou​tro gri​to, ago​r a mais ter​r í​vel que o pri​m ei​-
ro. Ou​tro tiro... e o si​lên​c io. Si​lên​c io per​f ei​to e pro​f un​do.
Paul Ar​m es abriu a por​ta da vi​a ​tu​r a, Bren​dan es​pi​ou para fora e gri​tou de
sus​to e hor​r or.
— Fi​que abai​xa​do! — gri​tou o po​li​c i​a l, es​guei​r an​do-se para re​to​m ar o as​-
sen​to do mo​to​r is​ta. — Há dois mor​tos, mas pode ha​ver ou​tros as​sal​tan​tes ar​m a​-
dos den​tro do bar.
— Onde está Win​ton? — Bren​dan per​gun​tou.
Paul nao res​pon​deu. Apa​nhou o mi​c ro​f o​ne e cha​m ou:
— Aten​ç ão, plan​tão da cen​tral! Aten​ç ão, plan​tão da cen​tral!
Deu as co​or​de​na​das do lo​c al e o en​de​r e​ç o do bar, e pe​diu re​f or​ç os.
De olhos fe​c ha​dos, ain​da en​c o​lhi​do no fun​do do car​r o, Bren​dan po​dia lem​-
brar-se per​f ei​ta​m en​te da fo​to​gra​f ia que Win​ton Tolk le​va​va na car​tei​r a e exi​bia a
todo o mo​m en​to: a es​po​sa, Ray ​nel​la, e três fi​lhos.
— Es​ses fi​lhos da puta... — res​m un​gou Paul Ar​m es, a voz trê​m u​la, re​c ar​-
re​gan​do a arma.
— Você acha que Win​ton está... fe​r i​do?
— Deve es​tar.
— E pre​c i​san​do de so​c or​r o.
— Já pedi re​f or​ç os.
— Mas tal​vez pre​c i​se de so​c or​r o... jál — Bren​dan qua​se gri​tou.
— Não po​de​m os en​trar lá. Deve ha​ver ou​tros des​ses mer​das. Dois ou
mais... não po​de​m os adi​vi​nhar. Te​m os que es​pe​r ar os re​f or​ç os.
— Win​ton pode es​tar per​den​do san​gue... Se os re​f or​ç os de​m o​r a​r em mui​to,
ele pode... mor​r er.
— E você pen​sa que eu não sei? — Paul es​tre​m e​c eu de rai​va. Aca​bou de
re​c ar​r e​gar a arma e saiu no​va​m en​te do car​r o para ob​ser​var a en​tra​da do bar.
Quan​to mais Bren​dan pen​sa​va em Win​ton, mais fu​r i​o​so fi​c a​va. Se ain​da fos​-
se ca​paz de re​zar, tal​vez con​se​guis​se mas​ti​gar e en​go​lir pelo me​nos um pou​c o da
rai​va. Sem fé, o ódio cres​c eu, cres​c eu até to​m ar con​ta dele. Não era jus​to... Não,
não com Win​ton! Não es​ta​va cer​to! Ele abriu a por​ta tra​sei​r a da vi​a ​tu​r a e
saiu para a cal​ç a​da co​ber​ta de neve. A sua fren​te es​ta​va o bar.
— Bren​dan! — Paul Ar​m es gri​tou le​van​tan​do-se de trás da vi​a ​tu​r a. — Não
en​tre! Pelo amor de Deus... vol​te para o car​r o!
Sem dar ou​vi​dos, Bren​dan con​ti​nuou a an​dar, mo​vi​do pela rai​va e pela cer​te​-
za de que Win​ton Tolk pre​c i​sa​va ser so​c or​r i​do logo, ou es​ta​r ia mor​to quan​do che​-
gas​sem os re​f or​ç os.
So​bre a cal​ç a​da ja​zia o cor​po do as​sal​tan​te de ca​sa​c o de cou​r o; ti​nha um bu​-
ra​c o no pei​to e ou​tro jun​to à gar​gan​ta. A al​guns pas​sos de sua mão aber​ta, es​ta​va
uma pis​to​la, com cer​te​za a mes​m a que fe​r i​r a Win​ton.
— Cro​nin! — Ar​m es cha​m a​va. — Vol​te aqui!
Bren​dan já es​ta​va den​tro do bar, mas não via nada. As lu​zes es​ta​vam apa​ga​-
das, tal​vez ti​ves​sem sido des​tru​í​das du​r an​te o ti​r o​teio. A al​guns me​tros da en​tra​da,
en​tre ca​c os de vi​dro, ja​zia o cor​po do ne​gro de boné de tri​c ô. Bren​dan pas​sou a
per​na por cima do ca​dá​ver e con​ti​nuou an​dan​do. A ba​ti​na tal​vez ser​vis​se, pelo
me​nos, para pro​te​gê-lo dos ti​r os, se al​gum da​que​les de​ge​ne​r a​dos fos​se ca​tó​li​c o
pra​ti​c an​te. Ou não... Se aque​les ani​m ais eram ca​pa​zes de ati​r ar num po​li​c i​a l, o
que não fa​r i​a m com um pa​dre​c o? Bren​dan es​ta​va cego de fú​r ia... por​que Deus
não exis​tia! Ou por​que, caso exis​tis​se, pou​c o li​ga​va para o des​ti​no dos bons e dos
jus​tos!
O bal​c ão fi​c a​va jun​to à pa​r e​de dos fun​dos. Por trás do bal​c ão es​ta​va a gre​-
lha. A fren​te, al​gu​m as me​sas e ca​dei​r as, qua​se to​das de per​nas para cima. Pelo
chão es​pa​lha​vam-se guar​da​na​pos, co​pos, po​tes de mos​tar​da, ve​lhas no​tas de pou​-
cos dó​la​r es. Um pou​c o à es​quer​da, uma enor​m e poça de san​gue e, no meio,
Win​ton Tolk.
Bren​dan apro​xi​m ou-se do po​li​c i​a l, es​que​c i​do da pos​si​bi​li​da​de de que ou​tro
as​sal​tan​te es​ti​ves​se es​c on​di​do atrás das me​sas ca​í​das, e ajo​e ​lhou-se no chão em​-
pa​pa​do de san​gue. Win​ton re​c e​be​r a dois ti​r os. Ti​nha dois hor​r í​veis bu​r a​c os de
bala no pei​to, nada que pu​des​se ser tra​ta​do com tor​ni​que​te ou ban​da​gens. O san​-
gue bro​ta​va das fe​r i​das e es​c or​r ia, num fio gros​so, pelo can​to da boca. Es​ta​va
imó​vel, de olhos fe​c ha​dos, in​c ons​c i​e n​te ou mor​to.
— Win​ton? — Bren​dan cha​m ou-o.
Nada. Nem res​pos​ta, nem o mais leve si​nal de mo​vi​m en​to.
Qua​se sem po​der pen​sar, mo​vi​do por uma fú​r ia tão vi​o​len​ta como a que o fi​-
ze​r a jo​gar no chão o cá​li​c e da mis​sa, Bren​dan apal​pou o pes​c o​ç o de Win​ton,
uma mão de cada lado, à pro​c u​r a de qual​quer si​nal de vida. Não sen​tiu a pul​sa​-
ção da aor​ta e pen​sou na fo​to​gra​f ia de Ray ​nel​la e das cri​a n​ç as de Tolk. Ru​bro de
rai​va, ge​m ia de hor​r or pela in​di​f e​r en​ç a de Deus e pela mi​sé​r ia dos ho​m ens
aban​do​na​dos à pró​pria des​gra​ç a.
— Não... — ri​lhou os den​tes. — Ele não pode mor​r er!
As pon​tas dos de​dos ain​da to​c an​do o pes​c o​ç o de Win​ton, sen​tiu um leve es​-
tre​m e​c i​m en​to. Ain​da não era uma veia pul​san​do... mas era um si​nal de vida.
Com as mãos, apal​pou o pei​to, os bra​ç os do po​li​c i​a l, à pro​c u​r a de mais um in​dí​-
cio, e en​c on​trou-o, mui​to fra​c o e ir​r e​gu​lar, mas era um si​nal!
— Ele está vivo?
Bren​dan er​gueu a ca​be​ç a e viu um ho​m em de aven​tal bran​c o, cer​ta​m en​te o
dono do bar le​van​tan​do-se de trás do bal​c ão. A seu lado apa​r e​c eu uma mu​lher,
tam​bém de aven​tal. Na rua, so​a ​va a si​r e​ne de uma am​bu​lân​c ia que se apro​xi​m a​-
va.
Sem ti​r ar as mãos do pes​c o​ç o de Win​ton, Bren​dan sen​tia que as pul​sa​ç ões
tor​na​vam-se aos pou​c os mais for​tes e re​gu​la​r es. Não po​dia ser... Win​ton per​de​r a
mui​to san​gue, per​m a​ne​c e​r a mui​to tem​po sem so​c or​r o mé​di​c o. Di​f i​c il​m en​te so​-
bre​vi​ve​r ia, ain​da que a am​bu​lân​c ia che​gas​se a tem​po de levá-lo para o hos​pi​tal.
A si​r e​ne so​a ​va a dois quar​tei​r ões de dis​tân​c ia, pelo me​nos.
Bren​dan des​vi​ou as mãos para o pei​to. O san​gue bro​ta​va en​tre seus de​dos,
como que nas​c i​do de uma fon​te ines​go​tá​vel. Ele já não con​se​guia sen​tir ódio
nem rai​va. Es​ta​va va​zio, es​go​ta​do. Bai​xou a ca​be​ç a e co​m e​ç ou a cho​r ar.
Win​ton Tolk me​xeu-se. Tos​siu. Abriu os olhos. Res​pi​r ou uma, duas ve​zes. Ge​-
meu. Sur​pre​so, Bren​dan to​c ou-lhe o pul​so, vol​tou a apal​par-lhe o pes​c o​ç o. Es​ta​va
ba​ten​do! Uma pul​sa​ç ão ain​da tê​nue, mas não tão fra​c a como da pri​m ei​r a vez.
— Win​ton! — Cha​m ou-o, ele​van​do a voz para fa​zer-se ou​vir ape​sar do
som es​tri​den​te da si​r e​ne que zum​bia di​a n​te do bar. — Está me ou​vin​do?
O pa​tru​lhei​r o não o re​c o​nhe​c eu. Tos​siu ou​tra vez e es​tre​m e​c eu. Bren​dan er​-
gueu-lhe a ca​be​ç a, vi​r an​do-a para o lado, de modo que o san​gue não se de​po​si​-
tas​se no fun​do da gar​gan​ta. Com isso, Win​ton res​pi​r ou me​lhor. Es​ta​va mui​to fe​r i​-
do, per​de​r a mui​to san​gue, com cer​te​za es​ta​va em cho​que... mas es​ta​va vivo.
VjVo.
Na rua, a si​r e​ne ca​lou-se. Bren​dan cor​r eu até o bal​c ão em​pur​r an​do o pro​pri​-
e​tá​r io e a mu​lher, que pa​r e​c i​a m pa​r a​li​sa​dos. Ele pró​prio es​ta​va de​ses​pe​r a​do: sa​-
bia que não ha​via um se​gun​do a per​der.
— Sa​í​a m da fren​te! — gri​tou. — Tra​gam um mé​di​c o. Di​gam a Ar​m es que
ele está vivo! Vão, de​pres​sa!
O pro​pri​e ​tá​r io do bar cor​r eu para a por​ta, e Bren​dan vol​tou para jun​to de
Win​ton. O pa​tru​lhei​r o já res​pi​r a​va me​lhor. Sen​tin​do as mãos úmi​das de san​gue,
num ges​to au​to​m á​ti​c o Bren​dan es​f re​gou-as no pa​le​tó. En​tão per​c e​beu que, pela
pri​m ei​r a vez em qua​se duas se​m a​nas, as mar​c as aver​m e​lha​das vol​ta​r am a apa​-
re​c er, uma na pal​m a de cada mão. Os mes​m os anéis de pele ver​m e​lha e in​c ha​-
da.
Po​li​c i​a is e en​f er​m ei​r os in​va​di​r am o bar, pas​san​do por cima do ca​dá​ver do
as​sal​tan​te bran​c o, e Bren​dan afas​tou-se para dar-lhes es​pa​ç o. Foi até o bal​c ão e
en​c os​tou-se um ins​tan​te para res​pi​r ar. De re​pen​te, era como se todo o can​sa​ç o do
mun​do ca​ís​se so​bre seus om​bros. Não con​se​guiu dar um pas​so além do bal​c ão e
lá fi​c ou, pa​r a​do, olhan​do para as pal​m as das mãos.
Du​r an​te dois ou três dias, logo de​pois de con​sul​tar o dr. Hee-ton, usa​r a a lo​-
ção à base de cor​ti​so​na que o mé​di​c o lhe re​c ei​ta​r a e, como as mar​c as su​m i​r am,
dei​xa​r a de apli​c ar o re​m é​dio. Nem pen​sa​r a mais no as​sun​to. De​via ser uma aler​-
gia, um caso es​tra​nho e re​pen​ti​no, mas nada além de aler​gia. Ali, jun​to ao bal​-
cão do bar, olha​va para as pró​pri​a s mãos e não en​ten​dia o que es​ta​va acon​te​c en​-
do. As vo​zes dos po​li​c i​a is e en​f er​m ei​r os che​ga​vam-lhe aos ou​vi​dos como se vi​e s​-
sem de mui​to lon​ge:
— Ve​j am!... Nun​c a vi tan​to san​gue!
— Dois ti​r os no pei​to! Não pode es​tar vivo...
— Por​r a! Saia da fren​te!
— Pre​c i​sa​m os de plas​m a hu​m a​no. Ur​gen​te.
— Onde está a iden​ti​f i​c a​ç ão dele? Se não acha​r em, tes​tem o san​gue. Al​-
guém aí sabe o tipo san​guí​neo do po​li​c i​a l Tolk? Dei​xem! Fa​ze​m os o tes​te na am​-
bu​lân​c ia a ca​m i​nho do hos​pi​tal.
Bren​dan afi​nal con​se​guiu des​vi​a r os olhos das mãos e fi​tou o gru​po que se
agi​ta​va em tor​no de Win​ton Tolk. Em se​gun​dos o pa​tru​lhei​r o es​ta​va co​lo​c a​do na
maca, en​vol​to em co​ber​to​r es, sen​do car​r e​ga​do para fora. Um dos po​li​c i​a is ar​r as​-
tou o ca​dá​ver do as​sal​tan​te e abriu pas​sa​gem para os en​f er​m ei​r os que le​va​vam a
maca. Na cal​ç a​da, Paul Ar​m es apro​xi​m ou-se do com​pa​nhei​r o fe​r i​do e ten​tou
sor​r ir-lhe.
No chão, fi​c ou a poça de san​gue. Não: o mar de san​gue. No​va​m en​te Bren​-
dan olhou para as pal​m as das mãos. As mar​c as ha​vi​a m su​m i​do.

4. LAS VE​G AS, NE​VA​DA

O te​xa​no de cal​ç a ama​r e​la ja​m ais te​r ia ten​ta​do ar​r as​tar Jor​j a Mo-na​tel​la
para a cama, se sou​bes​se que ela es​ta​va fu​r i​o​sa a pon​to de que​r er cas​trar o pri​-
mei​r o que se atra​ves​sas​se em seu ca​m i​nho.
Em​bo​r a a tar​de do dia 24 de de​zem​bro já es​ti​ves​se adi​a n​ta​da, o es​pí​r i​to do
Na​tal ain​da não dera si​nais de sua pre​sen​ç a. Em ge​r al cal​m a e bem-hu​m o​r a​da,
Jor​j a es​ta​va num de seus pi​o​r es dias, indo e vin​do pelo cas​si​no, do bar para as
me​sas de jogo, das me​sas de jogo para o bar, abas​te​c en​do os co​pos dos jo​ga​do​-
res.
Ha​via vá​r i​a s ra​zões para ta​m a​nho mau hu​m or. A pri​m ei​r a, era que Jor​j a odi​-
a​va seu tra​ba​lho. Se já de​tes​ta​va ser gar​ç o​ne​te num bar tran​qüi​lo, que dirá num
cas​si​no do ta​m a​nho de um cam​po de fu​te​bol. Era de ma​tar! Uma vi​a ​gem com​-
ple​ta ao bar, ida e vol​ta, bas​ta​va para aca​bar com seus pés. Duas vi​a ​gens da​vam-
lhe bo​lhas nos cal​c a​nha​r es. E o ho​r á​r io de tra​ba​lho? Como é que uma mu​lher po​-
dia pen​sar em or​ga​ni​zar a vida de uma fi​lha de sete anos, tra​ba​lhan​do nos ho​r á​r i​-
os mais im​pos​sí​veis?
Não bas​tas​se a pri​m ei​r a ra​zão, ha​via ain​da o uni​f or​m e: um mi​n​ús​c u​lo maio
ver​m e​lho que mais mos​tra​va do que co​bria, bai​xo em cima, alto em​bai​xo, ri​dí​-
cu​lo, hor​r í​vel! E usa​do com uma fai-
xa elás​ti​c a para afi​nar a cin​tu​r a, que já era fina, e au​m en​tar o bus​to, que já
era gran​de. Jor​j a an​da​va pelo sa​lão, sen​tin​do-se um pôs​ter eró​ti​c o, do tipo que se
vê em ofi​c i​na mecâ​ni​c a.
A ter​c ei​r a ra​zão do mau hu​m or eram os ho​m ens: do dono do cas​si​no aos mi​-
se​r á​veis, des​gra​ç a​dos, mal​di​tos va​ga​bun​dos que jo​ga​vam dia e noi​te e vi​vi​a m
be​lis​c an​do-lhe o tra​sei​r o. Cla​r o! Que mu​lher se sub​m e​te​r ia a ves​tir uma rou​pa
da​que​las... a me​nos que es​ti​ves​se in​te​r es​sa​da em in​c rí​veis aven​tu​r as eró​ti​c as?!
E quan​to ao nome? Jor​j a. Tão bo​ni​ti​nho... Ma​m ãe de​via es​tar bê​ba​da quan​do
o in​ven​tou. Não era mais sim​ples es​c re​ver Ge​ór​gia, como todo mun​do? Cla​r o
que nin​guém des​c on​f i​a ​r ia que era Jor​j a se pu​des​se res​pon​der, rá​pi​do, quan​do lhe
per​gun​tas​sem: Jor​ja, Jór​gia, Ge​ór​gia, sons tão pa​r e​c i​dos. Mas o dono do cas​si​no
exi​gia que as me​ni​nas usas​sem um cra​c há pen​du​r a​do no maio, e lá es​ta​va, como
em man​c he​te de jor​nal: JOR​JA. De quin​ze em quin​ze mi​nu​tos, apa​r e​c ia um idi​o​-
ta per​gun​tan​do se o nome era esse mes​m o. Era. Um nome idi​o​ta, mal es​c ri​to,
me​ti​do a bes​ta. Só po​dia an​dar pen​du​r a​do numa mu​lher idi​o​ta, mal re​sol​vi​da,
me​ti​da a bes​ta. Em seus pi​o​r es mo​m en​tos, ela pen​sa​va em re​que​r er à Jus​ti​ç a o
cum​pri​m en​to de um sim​ples di​r ei​to à dig​ni​da​de: que seu nome fos​se es​c ri​to cor​-
re​ta​m en​te. Em seus me​lho​r es mo​m en​tos, lem​bra​va que qual​quer al​te​r a​ç ão na
gra​f ia in​ven​ta​da por sua mãe num mo​m en​to de exal​ta​ç ão cri​a ​do​r a po​de​r ia ofen​-
dê-la. De qual​quer modo, se os ra​pa​zes con​ti​nu​a s​sem com as pi​a ​di​nhas, tal​vez
fos​se obri​ga​da a re​ba​ti​zar-se: ma​dre Te​r e​sa de Cal​c u​tá. Ha​via re​m o​ta pos​si​bi​li​-
da​de de que bas​tas​se isso para dei​xá-los im​po​ten​tes por uns seis me​ses.
Ser​vir be​bi​da aos fi​gu​r ões não era o pior. O pior era quan​do apa​r e​c ia um su​-
per​f i​gu​r ão, de De​troit, ou de Las Ve​gas, ou de Dal-las, e in​ven​ta​va de se en​gra​-
çar com ela, e pe​dia que o dono do cas​si​no ar​r an​j as​se um en​c on​tro mais... ín​ti​-
mo. Ha​via tan​tas ga​r o​tas por ali... Na ver​da​de, nem tan​tas, mas ha​via al​gu​m as.
Por que logo ela? Jor​j a sa​bia o que ia acon​te​c er des​de o mo​m en​to em que via
en​trar um dos tais su​per​f i​gu​r ões. O pa​trão cha​m a​va-a, pas​sa​va-lhe o re​c a​do, e
ela res​pon​dia:
— Vão os dois para o in​f er​no, você e ele. Sou gar​ç o​ne​te. Não sou pros​ti​tu​-
ta.
Tin​tim por tin​tim, o que aca​ba​va de acon​te​c er, quin​ze mi​nu​tos an​tes. Um
mag​na​ta do pe​tró​leo, de cara ver​r u​guen​ta e olhos de sapo, pro​c e​den​te de Hous​-
ton, me​ti​do em fos​f o​r es​c en​tes cal​ç as ama​r e​las, ca​m i​sa azul, gra​va​ta ver​m e​lha.
Um dos mai​o​r es cli​e n​tes do ho​tel. Lá veio ele... o há​li​to fe​den​do a alho.
E ago​r a o pa​trão es​ta​va fu​r i​o​so por​que ela não acei​ta​r a o con​vi​te de um ho​-
mem tão im​por​tan​te. Rainy Tar​nell, cru​piê do pe​r í​o​do diur​no, atre​ve​r a-se a co​-
men​tar:
— Acho que você está se fa​zen​do de an​ti​qua​da... de moça sé​r ia... Isso já
pas​sou de moda, que​r i​da!
Gomo se ir para a cama e abrir as per​nas para um des​c o​nhe​c i​do de Hous​ton
fos​se ape​nas uma ques​tão de moda... O mes​m o que sa​ber que não se deve usar
sa​pa​tos bran​c os no in​ver​no...
O tra​ba​lho era hor​r í​vel, mas era um tra​ba​lho, e Jor​j a não po​dia dar-se ao
luxo de fi​c ar de​sem​pre​ga​da. O sa​lá​r io era bom para uma mãe di​vor​c i​a ​da de um
pai que se re​c u​sa​va a pa​gar pen​são à fi​lha. E ser​via tam​bém para ir pa​gan​do, aos
pou​c os, as dí​vi​das que Alan ha​via fei​to em seu nome an​tes de su​m ir de casa. Jor​-
ja pre​c i​sa​va de​ses​pe​r a​da​m en​te de cada dó​lar que ga​nha​va. Além do sa​lá​r io, ha​-
via tam​bém as gor​j e​tas, às ve​zes bem gor​das. Prin​c i​pal​m en​te quan​do um dos
fre​gue​ses ga​nha​va no pô​quer ou nos da​dos.
Na vés​pe​r a de Na​tal, como sem​pre, o cas​si​no es​ta​va pou​c o mo​vi​m en​ta​do, e
as gor​j e​tas an​da​vam cur​tas. Do dia de Ação de Gra​ç as até o Na​tal ha​via pou​c a
gen​te em Las Ve​gas. De 26 de de​zem​bro em di​a n​te, en​tão sim, as coi​sas co​m e​-
ça​vam a me​lho​r ar. Os caça-ní​queis es​ta​vam mu​dos. Al​guns cru​pi​ê s dor​m i​ta​vam,
de​bru​ç a​dos so​bre as me​sas va​zi​a s.
— Cla​r o que te​nho que es​tar de mau hu​m or... — Jor​j a sus​pi​r ou. — Es​tou
com dor nos pés, dor nas cos​tas, en​f ren​to um im​be​c il que pen​sa que es​tou à ven​-
da como uma gar​r a​f a de uís​que, bri​go com Rainy Tar​nell e nem te​nho um puto
de um tos​tão.
As qua​tro ho​r as, quan​do aca​ba​va seu tur​no, cor​r eu para o ves​ti​á ​r io, ba​teu o
pon​to, ti​r ou o maio, ves​tiu-se e cor​r eu para o car​r o, como se es​ti​ves​se com​pe​tin​-
do por uma me​da​lha olím​pi​c a. Nem o tem​po co​la​bo​r a​va para im​buí-la do es​pí​r i​-
to na​ta​li​no. Em Las Ve​gas ha​via Na​tais ge​la​dos, com o ven​to quei​m an​do o ros​to
e ge​lan​do os os​sos, e Na​tais quen​tes, com sol, short e ca​m i​se​ta. Na​que​le ano o
Na​tal es​ta​va mor​no, nem quen​te nem frio.
Seu ve​lho car​r o pe​gou logo à ter​c ei​r a ten​ta​ti​va, even​to raro que, em ou​tras
cir​c uns​tân​c i​a s, bas​ta​r ia para fazê-la me​lho​r ar de hu​m or. O ru​í​do do mo​tor, no
en​tan​to, lem​brou-lhe o au​to​m ó​vel re​c ém-sa​í​do da loja que Alan le​va​r a em​bo​r a,
quin​ze me​ses atrás, quan​do a aban​do​na​r a sem di​nhei​r o, com Ma​r eie e um mon​te
de dí​vi​das.
Alan Ry koff. A coi​sa que mais a ir​r i​ta​va era o tra​ba​lho de gar-ço​ne​te; em se​-
gun​do lu​gar, vi​nha Alan. Quan​do o di​vór​c io foi ho​m o​lo​ga​do ela vol​ta​r a a usar seu
nome de sol​tei​r a, Mo​na​tel​la, mas não con​se​guiu apa​gar, com igual fa​c i​li​da​de, as
lem​bran​ç as do so​f ri​m en​to que Alan Ry koff cau​sa​r a a ela e a Ma​r eie.
Por mais que se es​f or​ç as​se para es​que​c ê-lo, ti​nha-o pre​sen​te a cada ins​tan​te.
O mi​se​r á​vel já de​ve​r ia ter em​bar​c a​do para Aca​pul-co, com aque​la im​be​c il lou​-
ra, a tal de “Pi​m en​ti​nha” Car​r a​f i​e ld. Nem se lem​brou de que era Na​tal e Ma​r eie
es​pe​r a​va um pre​sen​te. Como é que se ex​pli​c a a uma me​ni​na de sete anos que o
pai se es​que​c eu de lhe com​prar um pre​sen​te de Na​tal? E que nem vai apa​r e​c er
para vê-la?
Ape​sar das dí​vi​das que Alan dei​xa​r a, Jor​j a de​c i​di​r a re​c u​sar a pen​são, num
im​pul​so mo​m en​tâ​neo. Quan​do re​sol​veu pe​dir-lhe que se res​pon​sa​bi​li​zas​se ao
me​nos pe​las des​pe​sas de edu​c a​ç ão da fi​lha, ou​viu-o de​c la​r ar, com a mai​or sem-
ce​r i​m ô​nia, que não era pai de Ma​r eie e, por​tan​to, não lhe ca​bia pa​gar nada. Fi​lho
da puta! Jor​j a ca​sa​r a aos de​ze​no​ve anos; Alan ti​nha en​tão vin​te e qua​tro, e ela ja​-
mais o tra​í​r a, nem uma úni​c a vez... Alan sa​bia dis​so, cla​r o! O que que​r ia era
“cor​tar des​pe​sas in​ú​teis” como sem​pre di​zia; não po​dia gas​tar com a me​ni​na
por​que pre​c i​sa​va de mui​to di​nhei​r o para vi​ver como gos​ta​va, com rou​pas ca​r as,
mu​lhe​r es ca​r as, car​r os ca​r os... coi​sas mais im​por​tan​tes que es​po​sa e fi​lha. Para
evi​tar que Ma​r eie aca​bas​se en​vol​vi​da na​que​la imun​dí​c ie, Jor​j a aca​bou por abrir
mão tam​bém de sua úni​c a e úl​ti​m a exi​gên​c ia.
En​tão... era como se Alan es​ti​ves​se mor​to e en​ter​r a​do. Não ha​via mo​ti​vo
para con​ti​nu​a r a pen​sar nele, po​r ém, ain​da as​sim, pas​san​do pelo cru​za​m en​to da
Ave​ni​da Mary ​land com a Rua De​sert Inn, Jor​j a lem​bra​va que, quan​do se en​vol​-
ve​r a com ele, era jo​vem de​m ais para ca​sar e in​gê​nua de​m ais para per​c e​ber que
aque​la pele de cor​dei​r o es​c on​dia um lobo fa​m in​to. Na in​ge​nui​da​de de seus de​ze​-
no​ve anos, acha​va Alan très so​f is​ti​c a​do e char​m o​so. Aos pou​c os, po​r ém, co​m e​-
çou a des​c o​brir que se uni​r a a um su​j ei​to bobo, vai​do​so, pre​gui​ç o​so e de​sa​ver​go​-
nha​da​m en​te mu​lhe​r en​go.
Mes​m o in​sa​tis​f ei​ta, ain​da ten​ta​r a sal​var o ca​sa​m en​to. Pla​ne​j a​r a fé​r i​a s em
fa​m í​lia, três se​m a​nas de fé​r i​a s, na ilu​são de que to​dos os pro​ble​m as se re​sol​ve​r i​-
am se Alan pas​sas​se al​gum tem​po com Ma​r eie e a co​nhe​c es​se me​lhor. Ele tra​-
ba​lha​va como cru​piê num cas​si​no, e Jor​j a era gar​ç o​ne​te em ou​tro sa​lão de jo​-
gos; como seus ho​r á​r i​os eram de​sen​c on​tra​dos, pra​ti​c a​m en​te não se viam. Se
os três pu​des​sem fi​c ar al​guns dias jun​tos, lon​ge dos pro​ble​m as, só os três, vi​a ​j an​-
do de car​r o, tal​vez ain​da pu​des​sem cons​truir um ver​da​dei​r o lar.
In​f e​liz​m en​te, mas como se​r ia fá​c il de pre​ver, a ten​ta​ti​va fra​c as​sa​r a. De​pois
que vol​ta​r am a Las Ve​gas, Alan es​ta​va pior do que an​tes. Sim​ples​m en​te não re​-
sis​tia a qual​quer rabo-de-saia que lhe apa​r e​c es​se pela fren​te. Foi como se a vi​a ​-
gem ti​ves​se aca​ba​do de en​lou​que​c ê-lo... Era uma ma​nia, uma ob​ses​são, um de​-
ses​pe​r o. Três me​ses de​pois das fé​r i​a s, em ou​tu​bro da​que​le ano, ele su​m iu
de casa. E da vi​a ​gem so​brou ape​nas uma boa lem​bran​ç a: o en​c on​tro com aque​la
lin​da dou​to​r a loi​r a, que vi​a ​j a​va de Stan​f ord para Bos​ton... “Mi​nhas pri​m ei​r as fé​-
ri​a s!”, dis​se​r a ela. Gin​ger... Gin​ger Weiss. Isso mes​m o: o nome dela era Gin​ger
Weiss.
A dou​to​r a Weiss nun​c a po​de​r ia ima​gi​nar que pro​vo​c a​r a um ter​r e​m o​to na
vida de Jor​j a. Jo​vem, bo​ni​ta, pa​r e​c en​do tão so​zi​nha no mun​do, e, ao mes​m o tem​-
po, tão se​gu​r a, for​te e de​c i​di​da, ser​viu-lhe de mo​de​lo des​de o mo​m en​to em que
se en​c on​tra​r am. Jor​j a sem​pre se sen​ti​r a pre​des​ti​na​da a mor​r er de ve​lha como
gar​ç o​ne​te, in​c a​paz de con​se​guir qual​quer coi​sa me​lhor para si e para a fi​lha...
Sem​pre acha​r a que não ser​via para nada. Quan​do Alan
fu​giu, foi a lem​bran​ç a de Gin​ger que lhe deu for​ç as para ir à luta.
Fa​zia onze me​ses que es​ta​va ma​tri​c u​la​da na Uni​ver​si​da​de de Las Ve​gas
como alu​na aten​ta dos cur​sos de ad​m i​nis​tra​ç ão de em​pre​sas. Sua vida era uma
cor​r e​r ia eter​na, do bar para casa, de casa para a uni​ver​si​da​de, cui​dan​do de Ma​-
reie, das com​pras, da lim​pe​za, da rou​pa para la​var... Só quan​do aca​bas​se de pa​-
gar as dí​vi​das que Alan dei​xa​r a te​r ia con​di​ç ões e di​nhei​r o para abrir seu pró​prio
ne​gó​c io e co​m e​ç ar a vi​ver. Uma bou​ti​que. O pla​no es​ta​va pron​to, po​li​do, li​vre de
tudo que pu​des​se pa​r e​c er de​lí​r io. Um bom pla​no, sim​ples e re​a ​lis​ta: o fu​tu​r o de
Ma​r eie es​ta​r ia as​se​gu​r a​do, sua vida me​lho​r a​r ia, e nada no mun​do a fa​r ia abrir
mão da fe​li​c i​da​de.
Pena que Jor​j a nun​c a mais viu a dra. Weiss para agra​de​c er-lhe... não pelo
que ha​via fei​to, por​que, na ver​da​de, não fi​ze​r a nada, mas por ela ser exa​ta​m en​te
como era.
Na es​qui​na de Rua Paw​nee, Jor​j a do​brou à es​quer​da e pa​r ou di​a n​te da casa
de Kara Per​sag​hi​a n. Ma​r eie cor​r eu para en​c on​trá-la na cal​ç a​da e sal​tou-lhe ao
pes​c o​ç o, gri​tan​do:
— Ma​m ãe che​gou!
Pela pri​m ei​r a vez na​que​le dia, Jor​j a con​se​guiu es​que​c er o uni​f or​m e de gar​-
ço​ne​te, o te​xa​no, a bri​ga com o cru​piê, o mo​tor do car​r o que vi​via ra​te​a n​do. Ma​-
reie era a úni​c a pes​soa no mun​do ca​paz de fazê-la re​c u​pe​r ar a fé e a es​pe​r an​ç a,
prin​c i​pal​m en​te nos mo​m en​tos em que to​das as sa​í​das lhe pa​r e​c i​a m blo​que​a ​das.
— Você se di​ver​tiu bas​tan​te? — a me​ni​na per​gun​tou.
— Mui​to, que​r i​da. E você está chei​r an​do a amen​doim.
— Kara fez bo​li​nhos. Tam​bém me di​ver​ti mui​to... Ma​m ãe, você sabe por
que os ele​f an​tes pre​f e​r em vi​ver na Amé​r i​c a? —- Ma​r eie riu. — Por​que aqui tem
um mon​te de or​ques​tras e eles ado​r am dan​ç ar! — Mais ri​sa​das. — Não é en​gra​-
ça​do?
Jor​j a sa​bia dos ris​c os de ser “mae-co​r u​j a”, mas sa​bia tam​bém que Ma​r eie
era mui​to bo​ni​ta. Mo​r e​na, de ca​be​los es​c u​r os, ti​nha olhos azuis como o céu do
ve​r ão, como os olhos de Alan. De re​pen​te, a me​ni​na fi​tou-a, es​pan​ta​da:
— Ei! Você sabe que dia é hoje?
— Cla​r o... Já é qua​se vés​pe​r a de Na​tal.
— Só fal​ta es​c u​r e​c er. Tia Kara dis​se que eu pos​so le​var uns bo​li​nhos para
co​m er em casa. Pa​pai Noel saiu do polo nor​te e está bem per​ti​nho das cha​m i​nés
das ca​sas do ou​tro lado do mun​do, onde já é noi​te. Tia Kara dis​se que eu me
com​por​tei mal du​r an​te o ano, e por isso vou ga​nhar só um co​lar de car​vão... Mas
é men​ti​r a dela, não é, ma​m ãe?
— Brin​c a​dei​ra dela — Jor​j a riu.
— Não, se​nho​r a! Não e não! Não es​tou brin​c an​do. — Kara Per-sag​hi​a n
apro​xi​m ou-se da por​ta, mui​to sé​r ia, com seu in​f a​lí​vel aven​tal pre​so à cin​tu​r a. —
Você vai ga​nhar um co​lar de car​vão e, tal​v ez, um par de brin​c os de car​vão para
com​bi​nar.
Ma​r eie riu, fe​liz, sem olhar para a baby-sit​ter que ado​r a​va des​de quan​do a
co​nhe​c e​r a. Kara apro​xi​m ou-se le​van​do o ca​sa​c o da me​ni​na, um li​vro de de​se​-
nhos para co​lo​r ir e um pra​to de bo​li​nhos. Jor​j a en​tre​gou o ca​sa​c o e o li​vro à fi​lha
e apa​nhou o pra​to com um olhar de gra​ti​dão eter​na. Ia des​pe​dir-se, quan​do
Kara pe​diu:
— Será que eu po​de​r ia fa​lar um mo​m en​ti​nho com você? Só nós duas? —
Pis​c ou o olho para Ma​r eie.
— Cla​r o... — Jor​j a aco​m o​dou no car​r o a ga​r o​ta e o pra​to, e vol​tou-se. — O
que hou​ve? O que Ma​r eie an​dou fa​zen​do?
— Nada de gra​ve. Mas acon​te​c eu uma coi​sa es​tra​nha e acho que você
pre​c i​sa sa​ber. Ma​r eie es​ta​va fa​lan​do so​bre os pre​sen​tes que quer ga​nhar. E dis​se
que só quer uma coi​sa, o tal de “Mé​di​c o In​f an​til”.
— E a pri​m ei​r a vez que ela exi​ge um pre​sen​te... Não en​ten​do por que in​-
ven​tou essa his​tó​r ia de mé​di​c o.
— Não pas​sa um dia sem que ela fale do “Mé​di​c o In​f an​til”. Você já pro​vi​-
den​c i​ou?
Jor​j a riu, es​pi​a n​do pela por​ta para ter cer​te​za de que Ma​r eie não po​dia ouvi-
la:
— Ah, fi​que sos​se​ga​da. Pa​pai Noel já anda por aí com um lin​do “Mé​di​c o
In​f an​til” no tre​nó.
— Óti​m o. Ela fi​c a​r ia mui​to tris​te se não ga​nhas​se o pre​sen​te que está es​pe​-
ran​do. O que acon​te​c eu hoje deve ter al​gu​m a coi​sa a ver com isso. Ma​r eie já es​-
te​ve do​e n​te al​gu​m a vez? Do​e n​ç a sé​r ia?
— Sé​r ia? Não, gra​ç as a Deus! Ela é mui​to sau​dá​vel.
— Es​te​ve hos​pi​ta​li​za​da?
— Nun​c a. Por quê?
Kara fran​ziu as so​bran​c e​lhas.
— Bem... Hoje es​tá​va​m os con​ver​san​do e ela, como sem​pre, fa​la​va do
“Mé​di​c o In​f an​til”... Dis​se que que​r ia ser mé​di​c a, para po​der tra​tar de si mes​m a
quan​do fi​c as​se do​e n​te. Dis​se que não que​r ia mais que ne​nhum mé​di​c o to​c as​se
nela, por cau​sa “da​que​les mé​di​c os”... “Quais?”, per​gun​tei. “Aque​les que me
mal​tra​ta​r am tan​to”, res​pon​deu. En​tão eu per​gun​tei o que exa​ta​m en​te ela es​ta​-
va que​r en​do di​zer, e Ma​r eie fe​c hou a cara. Até pen​sei que não fos​se res​pon​der.
De​pois de al​gum tem​po, con​tou, numa voz mui​to sé​r ia, qua​se afli​ta, que, uma
vez, os mé​di​c os a amar​r a​r am numa cama de hos​pi​tal e lhe de​r am in​j e​ç ões, e a
es​pe​ta​r am com agu​lhas, e jo​ga​r am lu​zes mui​to for​tes em seus olhos, e fi​ze​r am
“um mon​te de mal​da​des” com ela. Dis​se que eram “uns su​j ei​tos mui​to maus”, e
que, por isso, ela que​r ia cres​c er logo para po​der ser mé​di​c a e cu​r ar a si mes​m a.
— Mas... ela nun​c a es​te​ve em hos​pi​tal ne​nhum... — Jor​j a ba​lan​ç ou a ca​be​-
ça sem en​ten​der. — Por que te​r ia in​ven​ta​do uma his​tó​r ia tão... es​tra​nha?
— Ain​da não é tudo. Quan​do ela me dis​se isso, eu fi​quei pre​o​c u​pa​da. Pen​-
sei que tal​vez ti​ves​se acon​te​c i​do al​gu​m a coi​sa pa​r e​c i​da, que ela po​dia mes​m o ter
es​ta​do do​e n​te. E achei que se​r ia bom você me di​zer o que hou​ve. Afi​nal, a me​ni​-
na pas​sa qua​se to​das as tar​des co​m i​go e, sei lá... Eu pre​c i​so sa​ber o que fa​zer no
caso de uma re​c a​í​da, ou de um ata​que. Você sabe como eu me pre​o​c u​po com as
cri​a n​ç as...
Kara sus​pi​r ou, sem​pre en​c a​r an​do Jor​j a com olhos ten​sos de pre​o​c u​pa​ç ão, e
pros​se​guiu:
— En​tão eu co​m e​c ei a fa​zer per​gun​tas so​bre a tal do​e n​ç a. Sem pres​si​o​nar,
é cla​r o, com mui​ta cal​m a, sem dei​xar que ela per​c e-
bes​se todo o meu in​te​r es​se... De re​pen​te, a coi​ta​di​nha ex​plo​diu em lá​gri​m as.
Não, não é for​ç a de ex​pres​são: ela ex​plo​diu mes​m o. Es​tá​va​m os na co​zi​nha, eu
fa​zen​do os bo​li​nhos, e Ma​r eie olhan​do. De re​pen​te, ela co​m e​ç ou a cho​r ar e a tre​-
mer como vara ver​de. Ten​tei acal​m á-la, co​lo​quei-a no colo, fiz ca​r i​nho...
Nada adi​a n​tou. Quan​to mais eu me es​f or​ç a​va, mais ela cho​r a​va e tre​m ia. Até
que sal​tou de meu colo e fu​giu... Fui en​c on​trá-la na sala, en​c o​lhi​da num can​to,
atrás da ca​dei​r a de ba​lan​ç o... Pa​r e​c ia que que​r ia se es​c on​der de al​guém, de al​-
gu​m a coi​sa pe​r i​go​sa.
— Meu Deus... — Jor​j a mur​m u​r ou, per​ple​xa.
— Le​vei mais de cin​c o mi​nu​tos para con​ven​c ê-la a sair do can​to e pa​r ar
de cho​r ar. Só co​m e​ç ou a se acal​m ar quan​do me fez pro-rpe​ter que, caso “aque​-
les mé​di​c os” vol​tas​sem para bus​c á-la, eu tran​c a​r ia a por​ta e não os dei​xa​r ia en​-
trar... — Kara sus​pi​r ou no​va​m en​te. — Foi mui​to es​tra​nho. Ela es​ta​va em pâ​ni​c ol
No car​r o, a ca​m i​nho de casa, Jor​j a dis​se para a fi​lha:
— Bo​ni​ta his​tó​r ia você in​ven​tou hoje... Kara me con​tou tudo.
— Que his​tó​r ia? — Ma​r eie le​van​tou os olhos, in​tri​ga​da e sé​r ia.
— Aque​la his​tó​r ia so​bre os mé​di​c os.
— Oh...
— Amar​r a​da na cama do hos​pi​tal... Como é que você foi in​ven​tar uma
coi​sa des​sas?
— Eu não in​ven​tei — pro​tes​tou a me​ni​na. — E ver​da​de.
— Cla​r o que não é!
— E, ma​m ãe, é ver​da​de, sim... — A voz mal lhe saía da gar​gan​ta.
— Até hoje você só es​te​ve num hos​pi​tal, na ma​ter​ni​da​de onde nas​c eu. E
te​nho cer​te​za de que não se lem​bra de nada — Jor​j a sus​pi​r ou. — Você se lem​bra
do que a gen​te fa​lou so​bre isso de in​ven​tar his​tó​r i​a s? O que acon​te​c eu com o Pato
Do​nald quan​do ele co​m e​ç ou a in​ven​tar his​tó​r i​a s?
— A Fada Boa apa​r e​c eu e dis​se que ele não po​dia ir na fes​ta da mar​m o​ta.
— Exa​ta​m en​te.
— E mui​to feio in​ven​tar coi​sas — Ma​r eie con​c or​dou. — Nin-
guém gos​ta de gen​te que in​ven​ta coi​sas. Nem os es​qui​los, nem as mar​m o​tas.
— Cla​r o — Jor​j a não pôde dei​xar de rir. — Nin​guém gos​ta... nem os es​qui​-
los.
No si​nal ver​m e​lho, Jor​j a pa​r ou o car​r o e olhou para a fi​lha, que se man​ti​nha
rí​gi​da no as​sen​to, fi​tan​do o es​pa​ç o a sua fren​te.
— O pior de tudo é in​ven​tar coi​sas só para pre​o​c u​par o pai ou a mãe —
dis​se Ma​r eie sem​pre mui​to sé​r ia.
— ... ou qual​quer ou​tra pes​soa que gos​te de você — com​ple​tou a mãe. —
Kara, por exem​plo, fi​c ou mui​to pre​o​c u​pa​da com a his​tó​r ia que você in​ven​tou.
— Mas eu não que​r ia que ela fi​c as​se pre​o​c u​pa​da!
— Não? Só que​r ia se fa​zer de gen​te gran​de? Por que in​ven​tou tudo aqui​lo?
Você nun​c a es​te​ve num hos​pi​tal!
— Es​ti​ve, sim.
— Ah, é? E quan​do?
— Não con​si​go me lem​brar.
— Lem​brar?!
— As ve​zes pa​r e​c e que vou me lem​brar... mas logo es​que​ç o ou​tra vez.
A tei​m o​sia da me​ni​na co​m e​ç a​va re​a l​m en​te a ir​r i​tá-la. Jor​j a fran​ziu a tes​ta e
in​sis​tiu:
— Pois eu que​r o sa​ber de tudo, e ago​r a mes​m o. Onde fica esse hos​pi​tal?
— Não sei... Nun​c a me lem​bro de tudo... Quan​do pa​r e​c e que vou me lem​-
brar de tudo... eu fico com medo.
— Como ago​r a?
— Ago​ra, não. Mas à tar​de, quan​do tia Kara per​gun​tou, eu me lem​brei... e
fi​quei com medo...
O si​nal mu​dou, e Jor​j a ca​lou-se, pre​c i​sa​va en​c on​trar um modo de fa​zer a
me​ni​na en​ten​der que es​ta​va con​f un​din​do re​a ​li​da​de e fan​ta​sia. Ah, po​bres das
mães que pen​sam que sa​bem tudo so​bre os fi​lhos! Não pas​sa​va uma se​m a​na
sem Ma​r eie in​ven​tar uma no​vi​da​de: ges​tos, ati​tu​des, his​tó​r i​a s e, prin​c i​pal​m en​te,
per​gun​tas que a dei​xa​vam sem res​pos​ta. Pa​r e​c ia que to​das as cri​a n​ç as do mun​do
co​nhe​c i​a m um li​vro inal​c an​ç á​vel aos adul​tos, onde ha​via mi​lha​r es de per​-
gun​tas im​pos​sí​veis de ser res​pon​di​das, uma para cada dia da se​m a​na. Como se
aca​bas​se de con​sul​tar o tal li​vro e ti​ves​se en​c on​tra​do a per​gun​ta do dia, Ma​r eie
le​van​tou os olhos para a mãe:
— Por que é que Pa​pai Noel pre​f e​r e aque​les “alei​j a​di​nhos”?
— Que alei​ja​di​nhos}\ — Jor​j a ar​r e​ga​lou os olhos.
~ Os anões que an​dam com ele. Os fi​lhos dele e da Ma​m ãe Noel... Por que
nas​c e​r am alei​j a​dos?
— Em pri​m ei​r o lu​gar, os anões não são fi​lhos de Pa​pai Noel; ape​nas tra​ba​-
lham para ele.
— Será que ga​nham bem? E re​c e​bem gor​j e​tas?
— Não, que​r i​da. Os anões não re​c e​bem nem sa​lá​r io nem gor​j e​tas.
— Mas en​tão... como é que com​pram co​m i​da?
— Pa​pai Noel dá tudo para eles: casa, co​m i​da, rou​pa la​va​da...
Com cer​te​za, no pró​xi​m o Na​tal Ma​r eie já não acre​di​ta​r ia em
Pa​pai Noel. Tan​tas per​gun​tas! Quan​to mais ela per​gun​ta​va, mais Jor​j a sen​tia
que a fi​lha es​ta​va cres​c en​do, e acha​va isso uma pena. Ela vi​via os úl​ti​m os me​ses
de fan​ta​sia, os úl​ti​m os me​ses má​gi​c os da vida.
— Os anõe​zi​nhos são como a fa​m í​lia de Pa​pai Noel — ex​pli​c ou. — Tra​ba​-
lham por​que gos​tam do que fa​zem, e ado​r am an​dar por aí na épo​c a do Na​tal.
— En​tão... Pa​pai Noel ado​tou os anões? Será que ele e Ma​m ãe Noel não
po​di​a m ter fi​lhos? Coi​ta​dos!
— Não é nada dis​so... eles não pre​c i​sam de fi​lhos, por​que já têm os anões
para amar.
Obri​ga​da, meu Deus, por ter me dado Ma​r eie... Deus, obri​ga​da, obri​ga​da por
ela... Pena que o pre​ç o de ta​m a​nha ale​gria ti​ves​se sido amar aque​le ca​f a​j es​te do
Alan Ry koff. A lei das com​pen​sa​ç ões...
En​trou na es​qui​na do Los Hu​e ​vos, o con​do​m í​nio onde mo​r a​va, e es​ta​c i​o​nou o
car​r o na ga​r a​gem nú​m e​r o qua​tro. Los Hu​e ​vos: os ovos. Cin​c o anos de​pois de ter-
se mu​da​do para aque​le pré​dio, Jor​j a ain​da não con​se​guia en​ten​der por que al​-
guém ba​ti​za​r ia as​sim um edi​f í​c io.
Mal o car​r o es​ta​c i​o​nou, Ma​r eie cor​r eu para a en​tra​da do pré​dio, car​r e​gan​do
o li​vro de co​lo​r ir e o pra​to de bo​li​nhos. Já não pa​r e​c ia pre​o​c u​pa​da com mé​di​c os
nem com anões ado​ta​dos. Jor​j a se​guiu-a, pen​san​do se se​r ia o caso de vol​tar ao
as​sun​to do hos​pi​tal e obri​gá-la a fa​lar mais. De​c i​diu adi​a r a con​ver​sa; afi​nal,
era vés​pe​r a de Na​tal, ti​nham um fe​r i​a ​do pela fren​te, e nada jus​ti​f i​c a​r ia es​tra​gar
a fes​ta da me​ni​na.
A pri​m ei​r a vis​ta, pelo me​nos, ela pa​r e​c ia ter en​ten​di​do que a mae não es​ta​va
sa​tis​f ei​ta com tan​tas fan​ta​si​a s... Ver​da​de que ain​da não se ren​de​r a quan​to à his​tó​-
ria dos mé​di​c os, po​r ém aca​ba​r ia es​que​c en​do tudo aqui​lo. De que va​le​r ia in​sis​tir
para fazê-la es​que​c er um as​sun​to que, tal​vez, já es​ti​ves​se mes​m o es​que​c i​do? Bo​-
ba​gem... Ma​r eie te​r ia um bom Na​tal, e isso era a úni​c a coi​sa ver​da​dei​r a​m en​te
im​por​tan​te para Jor​j a. Os mé​di​c os não vol​ta​r i​a m a per​tur​bar-lhe a paz fa​m i​li​a r.

5. LA​G U​NA BE​A​CH, CA​LI​FÓR​NIA

Do​m i​nik Cor​vai​sis re​leu o bi​lhe​te anô​ni​m o mais de cem ve​zes:


O so​nâm​bu​lo de​v e​rá pro​c u​rar no pas​sa​do a ori​gem de seu pro​ble​ma. E lá que
está se​pul​ta​do o se​gre​do.
Além de não tra​zer en​de​r e​ç o do re​m e​ten​te, o en​ve​lo​pe es​ta​va tão amas​sa​do
que era im​pos​sí​vel de​c i​f rar o ca​r im​bo da ci​da​de onde fora pos​to no cor​r eio.
Dom pa​gou a con​ta do des​j e​j um no Cot​ta​ge, vol​tou para o car​r o, sen​tou-se e
no​va​m en​te re​leu o bi​lhe​te. A seu lado, o pri​m ei​r o exem​plar do Cre​pús​c u​lo ja​zia
es​que​c i​do so​bre o as​sen​to. Num ges​to au​to​m á​ti​c o ele en​f i​ou a mão no bol​so da
ja​que​ta e apa​nhou dois com​pri​m i​dos de cal​m an​te. Es​ta​va a pon​to de en​go​li-los a
seco, mas pa​r ou, a mão jun​to aos lá​bi​os. Não. Para des​c o​brir o que sig​ni​f i​c a​va
aque​le bi​lhe​te ti​nha que man​ter as idéi​a s em or​dem. E, pela pri​m ei​r a vez em
mui​tas se​m a​nas, con​se​guiu re​sis​tir à ten​ta​ç ão de fu​gir aos pro​ble​m as. Os com​pri​-
mi​dos vol​ta​r am para o bol​so da ja​que​ta.
Como ain​da pre​c i​sa​va com​prar al​guns pre​sen​tes, di​r i​giu-se ao Shop​ping Cen​-
ter de Cos​ta Mesa. An​dou de loja em loja, es​c o​lhen​do o que que​r ia, e, en​quan​to
es​pe​r a​va os pa​c o​tes, in​va​r i​a ​vel​m en​te re​lia o bi​lhe​te. O au​tor se​r ia Parker? Tal​vez
o ami​go qui​ses​se as​sus​tá-lo, dar-lhe uma sa​c u​di​da para obri​gá-lo a es​que​c er os
com​pri​m i​dos. Bem que Parker se​r ia ca​paz de tal lou​c u​r a, com aque​las suas idéi​-
as de cho​que te​r a​pêu​ti​c o! Não... era ab​sur​do... Por mais que ado​r as​se lan​c es te​a ​-
trais e não per​des​se chan​c e de fa​zer o pa​pel de psi​c o​te​r a​peu​ta ama​dor, ele não
che​ga​r ia a tan​to. Pre​f e​r ia ir di​r e​to ao as​sun​to, às ve​zes até di​r e​to de​m ais! Bem,
se não es​c re​ve​r a o bi​lhe​te, com cer​te​za te​r ia mil idéi​a s so​bre o au​tor. Jun​tos, tal​-
vez con​se​guis​sem des​c o​brir al​gu​m a coi​sa e ar​m ar uma nova es​tra​té​gia para en​-
fren​tar o fu​tu​r o.
De vol​ta a La​gu​na, a me​nos de um quar​tei​r ão da casa do ami​go, Dom teve
ou​tra idéia, mui​to es​tra​nha, tão es​tra​nha que, para po​der pen​sar, foi obri​ga​do a
es​ta​c i​o​nar o car​r o jun​to ao meio-fio. Ti​r ou o bi​lhe​te do bol​so e cor​r eu os de​dos
pelo pa​pel, sen​tin​do um ca​la​f rio pe​las cos​tas. No es​pe​lho re​tro​vi​sor viu a ima​gem
de seus pró​pri​os olhos, chei​os de hor​r or. E se ele mes​m o ti​ves​se es​c ri​to o bi​lhe​te
du​r an​te uma das cri​ses de so​nam​bu​lis-mo? Qua​se im​pos​sí​vel... Como te​r ia se
ves​ti​do dor​m in​do e sa​í​do de casa para pro​c u​r ar uma cai​xa de cor​r eio e re​m e​ter
o en​ve​lo​pe? Como te​r ia vol​ta​do para casa, tro​c a​do de rou​pa e se dei​ta​do de novo
sem des​per​tar? Im​pos​sí​vel... Ou não? De qual​quer modo, se fi​ze​r a tudo aqui​lo
para man​dar um re​c a​do a si mes​m o... es​ta​va mui​to pior do que ima​gi​na​va! As​-
sus​ta​do, en​xu​gou na cal​ç a as mãos úmi​das de suor.
Ape​nas três pes​so​a s, no pla​ne​ta, sa​bi​a m das cri​ses de so​nam​bu-lis​m o: o pró​-
prio Dom, Parker Fai​ne e o dr. Co​bletz. Se não po​dia ser ele, se Parker já es​ta​va
eli​m i​na​do... te​r ia sido o dr. Co​bletz? Cla​r o que não! Mas en​tão... quem?l
Dom li​gou o mo​tor, ma​no​brou o car​r o e, em vez de pro​c u​r ar Parker, vol​tou
para casa. Dez mi​nu​tos de​pois, no es​c ri​tó​r io, sen​tou-se di​a n​te do com​pu​ta​dor e ti​-
rou do bol​so o bi​lhe​te amas​sa​do. Di​gi​tou o tex​to e viu-o apa​r e​c er no mo​ni​tor, em
bri​lhan​tes le​tras ver​des. A se​guir, aci​o​nou a im​pres​so​r a e es​pe​r ou pela pri​m ei​-
ra có​pia, ou​vin​do o ma​tra​que​a r dos ti​pos. Con​f or​m e a pro​gra​m a​ç ão que usa​va
sem​pre, a im​pres​so​r a pro​du​ziu duas vias, cada uma com um tipo de le​tra. Com
um có​di​go aces​só​r io, Dom ins​truiu a má​qui​na para fa​zer mais duas có​pi​a s nos
dois ou​tros ti​pos pos​sí​veis, e mar​c ou cada có​pia com o nome do tipo usa​do: Pres​-
ti​ge Eli​te, Ar​ti​san 10, Cour​ri​e r 10, Let​ter Go​thic. En​tão apa​nhou as qua​tro có​pi​a s e
co​lo​c ou-as so​bre a mesa, ao lado do bi​lhe​te ori​gi​nal, es​pe​r an​ç o​so de com​pro​var
que o bi​lhe​te fora im​pres​so num tipo di​f e​r en​te e que, por​tan​to, não era ele o au​-
tor. Não deu cer​to. Uma das có​pi​a s, no tipo Cour​ri​e r 10, pa​r e​c ia irmã gê​m ea do
bi​lhe​te. Cla​r o que isso não eli​m i​na​va a hi​pó​te​se de qual​quer ou​tra pes​soa ter em
casa ou no es​c ri​tó​r io um com​pu​ta​dor idên​ti​c o ao seu e uma im​pres​so​r a pro​gra​-
ma​da com o mes​m o tipo. Quan​tas im​pres​so​r as com Cour​ri​e r 10 po​di​a m exis​tir
em todo o país? Mi​lha​r es? Mi​lhões?
Dom com​pa​r ou o pa​pel das có​pi​a s com o do bi​lhe​te: nada de ex​c ep​c i​o​nal. O
bi​lhe​te fora es​c ri​to em pa​pel co​m um, ven​di​do às res​m as em qual​quer pa​pe​la​r ia
de bair​r o dos cin​qüen​ta Es​ta​dos do país. Ain​da as​sim, ele er​gueu a fo​lha con​tra a
luz pro​c u​r an​do al​gu​m a pos​sí​vel mar​c a de água. Não en​c on​trou ne​nhu​m a. Aque​le
pa​pel co​m um e sem mar​c a bem po​dia ter sa​í​do do es​to​que de sua im​pres​so​r a.
As al​ter​na​ti​vas con​ti​nu​a ​vam sen​do as mes​m as: Parker, o dr. Co​bletz ou o pró​prio
Dom. Quem mais po​de​r ia sa​ber?
Além dis​so, o que sig​ni​f i​c a​va aque​le bi​lhe​te? Que se​gre​do po​de​r ia es​tar se​-
pul​ta​do em seu pas​sa​do? Al​gum trau​m a de infân​c ia? Al​gu​m a ex​pe​r i​ê n​c ia re​pri​-
mi​da, so​ter​r a​da em seu in​c ons​c i​e n​te, bus​c an​do uma sa​í​da atra​vés do so​nam​bu​lis​-
mo?
Ain​da sen​ta​do di​a n​te do com​pu​ta​dor, olhan​do para o nada cada vez mais ten​-
so, lem​brou-se do cal​m an​te no bol​so da ja​que​ta, mas re​sis​tiu à ten​ta​ç ão. Sen​tia
que o cer​c o a sua vol​ta se fe​c ha​va mais e mais, po​r ém, igual​m en​te, sen​tia que só
po​de​r ia se sal​var se lu​tas​se com to​das as for​ç as, com toda a sua ca​pa​c i​da​de de
ra​c i​o​c í​nio, com to​dos os sen​ti​dos mo​bi​li​za​dos. Pre​c i​sa​va con​c en​trar-se e pen​sar
mui​to até en​ten​der o que es​ta​va acon​te​c en​do... Aos pou​c os, con​se​guiu acal​m ar-
se e, ou​tra vez, re​sis​tiu à ten​ta​ç ão de, atra​vés dos re​m é​di​os, re​f u​gi​a r-se de novo
em sua toca de co​e ​lho.
Pela pri​m ei​r a vez em vá​r i​a s se​m a​nas co​m e​ç a​va a sen​tir-se em paz con​si​go
mes​m o. Sa​bia que es​ta​va em di​f i​c ul​da​des e não po​dia con​tar com a aju​da de
nin​guém. Es​ta​va só... mas ain​da não per​de​r a com​ple​ta​m en​te a ca​pa​c i​da​de de
pen​sar. Ain​da ha​ve​r ia de re​to​m ar as ré​de​a s de seu pró​prio des​ti​no.
Pen​sa​ti​vo, com o bi​lhe​te na mão, le​van​tou-se e deu al​guns pas​sos pela casa,
até apro​xi​m ar-se da ja​ne​la. Lá fora, jun​to ao por-ta​o​zi​nho de en​tra​da, viu a cai​xa
de cor​r es​pon​dên​c ia, em​bu​ti​da numa pe​que​na co​lu​na de ti​j o​los, bri​lhan​do sob a
luz azu​la​da do pos​te da rua. Ra​r a​m en​te lem​bra​va-se de abrir aque​la cai​xa, por​-
que ra​r a​m en​te re​c e​bia cor​r es​pon​dên​c ia em casa. Quan​do mui​to, en​c on​tra​va ali
an​ún​c i​os de ele​tro​do​m és​ti​c os e um ou ou​tro pe​di​do de aju​da de al​gu​m a as​so​c i​a ​-
ção de ca​r i​da​de do bair​r o. Olhan​do a cai​xa de lon​ge, Dom lem​brou-se de que
não a abria já ha​via tem​pos e saiu.
A rua es​ta​va cal​m a, so​pra​va uma bri​sa fria car​r e​ga​da do chei​r o do mar. A
luz da lâm​pa​da de mer​c ú​r io, Dom abriu a cai​xa de cor​r es​pon​dên​c ia e re​c o​lheu
qua​tro ca​tá​lo​gos, seis car​tões de Na​tal... e um en​ve​lo​pe bran​c o, co​m um, sem en​-
de​r e​ç o ou nome do re​m e​ten​te. Cu​r i​o​so e as​sus​ta​do, cor​r eu de vol​ta para casa e
foi até o es​c ri​tó​r io, ras​gan​do o en​ve​lo​pe pelo ca​m i​nho. En​c on​trou uma úni​c a fo​-
lha de pa​pel onde leu:
A Lua.
Um dis​c ur​so de mil pa​la​vras não o te​r ia as​sus​ta​do mais. Pa​r e​c ia-lhe que, de
re​pen​te, o chão se abria sob seus pés e ele co​m e​ç a​va a cair, a cair... como Ali​c e,
no País das Ma​r a​vi​lhas, mer​gu​lhan​do na toca do Co​e ​lho Bran​c o, cada vez mais
fun​do, em di​r e​ç ão a ou​tro mun​do, de onde nem a ló​gi​c a nem a ra​zão po​de​r i​-
am ar​r an​c á-lo.
— “A Lua”. Não era pos​sí​vel! Nin​guém sa​bia que ti​ve​r a aque​le so​nho, in​-
com​preen​sí​vel e as​sus​ta​dor, que o fi​ze​r a des​per​tar num mar de suor frio, re​pe​tin​-
do: “A Lua”, “A Lua”... Nem que es​c re-
vera as mes​m as pa​la​vras cen​ta​nas de ve​zes du​r an​te uma cri​se de so​nam​bu​-
lis​m o. Não con​ta​r a a nin​guém, nem a Parker, nem ao dr. Co​bletz, com medo de
que achas​sem que ele es​ta​va pi​o​r an​do, que os com​pri​m i​dos não es​ta​vam sur​tin​do
efei​to. Ain​da mais: não en​ten​dia o que as duas pe​que​nas pa​la​vras po​di​a m que​r er
di​zer, mas elas lhe da​vam medo! O que po​de​r ia ha​ver em “A Lua” para fazê-lo
es​pi​a r por so​bre o om​bro, apa​vo​r a​do, para cer​ti​f i​c ar-se de que não ha​via nin​-
guém por per​to? O que o im​pe​di​r a de con​tar o so​nho a al​guém? Sim​ples: o medo
de que o dr. Co​bletz sus​pen​des​se o tra​ta​m en​to com os com​pri​m i​dos; o medo de
en​lou​que​c er se não to​m as​se os re​m é​di​os. Sim​ples.
“A Lua”. Mer​da! Nin​guém sa​bia do so​nho.
Nin​guém... além dele mes​m o.
Dom gi​r ou o en​ve​lo​pe en​tre os de​dos, trê​m u​lo. Foi en​tão que viu a mar​c a do
ca​r im​bo. Des​f a​zia-se o mis​té​r io: o en​ve​lo​pe fora pos​ta​do em Nova York. Es​ta​do
de Nova York, no dia 18 de de​zem​bro, quar​ta-fei​r a da se​m a​na an​te​r i​or.
Ele qua​se riu alto. En​tão, ain​da não es​ta​va com​ple​ta​m en​te lou​c o! Não man​-
da​r a car​tas para si mes​m o. Não te​r ia sido pos​sí​vel! Não ha​via a me​nor som​bra
de dú​vi​da de que, no dia 18 de de​zem​bro, es​ta​va em La​gu​na Be​a ​c h, a qua​se cin​-
co mil qui​lô​m e​tros de dis​tân​c ia da agên​c ia dos cor​r ei​os onde aque​le en​ve​lo​pe
fora en​tre​gue! E, com toda a cer​te​za, tam​bém o ou​tro, o do bi​lhe​te so​bre o pas​sa​-
do.
Mas en​tão... quem os en​vi​a ​r a? E por quê? Quem, em Nova York, po​de​r ia sa​-
ber de suas cri​ses de so​nam​bu​lis​m o... do so​nho... de “A Lua” que es​c re​ve​r a no
com​pu​ta​dor?
Mi​lha​r es de per​gun​tas, e ne​nhu​m a res​pos​ta. E o pior é que ele não sa​bia por
onde co​m e​ç ar a de​c i​f rar ta​m a​nho enig​m a. En​c on​tra​va-se numa si​tu​a ​ç ão mui​to
es​tra​nha. Será que a ló​gi​c a o aju​da​r ia a re​sol​ver tudo aqui​lo?
Pas​sa​r a dois me​ses pen​san​do ape​nas nas cri​ses de so​nam​bu​lis​m o, como se
an​dar dor​m in​do pela casa fos​se a coi​sa mais ter​r í​vel que pu​des​se acon​te​c er a um
ho​m em... a ele, pelo me​nos. De re​pen​te, co​m e​ç a​va a per​c e​ber que o pior ain​da
es​ta​va por acon​te-
cer. Era pos​sí​vel ex​pli​c ar e en​ten​der o so​nam​bu​lis​m o, mas o que ha​ve​r ía
atrás de tudo aqui​lo?
Lem​brou-se da pri​m ei​r a men​sa​gem que en​c on​tra​r a no com​pu​ta​dor: “Es​tou
com medo”. Do que po​de​r ia ter tan​to medo? O que... ou quem o as​sus​ta​va tan​to a
pon​to de levá-lo a es​c on​der-se pe​los can​tos, a pon​to de fazê-lo pre​gar as ja​ne​las
e er​guer bar​r i​c a​das di​a n​te das por​tas?
Nao... O so​nam​bu​lis​m o nada ti​nha a ver com stressl A an​si​e ​da​de nada ti​nha a
ver com a pu​bli​c a​ç ão do Cre​pús​c u​lo... Nada dis​so! A ex​pli​c a​ç ão era ou​tra. Mais
com​pli​c a​da. Mui​to mais es​tra​nha. O que po​de​r ia ser? O que se​r ia ain​da mais ter​-
rí​vel do que o medo?
Al​gu​m a coi​sa que ele via quan​do dor​m ia, e que era in​c a​paz de en​ten​der
quan​do es​ta​va acor​da​do.
6. NEW HA​VEN COUNTY, CON​NEC​TI​CUT

0 céu já nao pa​r e​c ia tão ame​a ​ç a​dor como an​tes de es​c u​r e​c er, mas a luz ain​-
da não sur​gi​r a. Al​gu​m as es​tre​las, aqui e ali, bri​lha​vam na es​c u​r i​dão.
Sen​ta​do na neve, no pon​to mais alto de uma co​li​na, en​c os​ta​do no bar​r an​c o,
meio es​c on​di​do en​tre os pi​nhei​r os, Jack Twist es​pe​r a​va a pas​sa​gem de um car​r o
blin​da​do. Já es​ta​va tra​ba​lhan​do ou​tra vez, me​nos de três se​m a​nas de​pois de ter
pos​to as mãos em mais de três mi​lhões de dó​la​r es per​ten​c en​tes à Má​f ia. Usa​va
bo​tas, lu​vas, ja​que​ta bran​c a, gor​r o de lã en​f i​a ​do até as ore​lhas e amar​r a​do sob o
quei​xo. Pou​c o abai​xo, a su​do​e s​te, avis​ta​va as lu​zes de uma cons​tru​ç ão, po​r ém es​-
ta​va mer​gu​lha​do na es​c u​r i​dão, ape​nas sen​tin​do as on​das de va​por que lhe sa​í​a m
do na​r iz. A nor​des​te, es​ten​di​a m-se qui​lô​m e​tros de cam​pos ge​la​dos e es​c u​r os, de​-
mar​c a​dos ape​nas por al​gu​m as ra​r as ár​vo​r es ene​gre​c i​das de frio. Do ou​tro lado
ha​via al​gu​m as fá​bri​c as, lo​j as, bair​r os re​si​den​c i​a is. Jack não po​dia vê-los, mas
pres​sen​tia-os no bri​lho que di​vi​sa​va ao lon​ge, no ho​r i​zon​te.
De re​pen​te apa​r e​c e​r am os fa​r óis. Jack apa​nhou o bi​nó​c u​lo de len​tes sen​sí​veis
a rai​os in​f ra​ver​m e​lhos e fo​c a​li​zou o ve​í​c u​lo que se apro​xi​m a​va pela ro​do​via se​-
cun​dá​r ia. Ape​sar do es​tra​bis​m o no olho es​quer​do, ti​nha ex​c e​len​te vi​são; com a
aju​da do bi​nó​c u​lo, logo cons​ta​tou que não se tra​ta​va do car​r o blin​da​do, e, por​tan​-
to, não lhe in​te​r es​sa​va. De​po​si​tou o bi​nó​c u​lo no chão co​ber​to de neve e con​ti​nuou
es​pe​r an​do. En​tão vol​tou-lhe à men​te a lem​bran​ç a de ou​tra noi​te de es​pe​r a, mais
quen​te, mais úmi​da, na sel​va da Amé​r i​c a Cen​tral. De co​m um en​tre as duas noi​-
tes ha​via ape​nas o bi​nó​c u​lo. Ago​r a es​pe​r a​va um car​r o blin​da​do que pre​ten​dia as​-
sal​tar. No pas​sa​do es​pe​r a​va as tro​pas ini​m i​gas, que cada vez mais fe​c ha​vam o
cer​c o a seu re​gi​m en​to.
Ape​nas vin​te sol​da​dos, a eli​te da tro​pa es​pe​c i​a l, com​pu​nham o re​gi​m en​to co​-
man​da​do pelo te​nen​te Rafe Eik​horn; Jack era o sub​c o​m an​dan​te. Ha​vi​a m pe​ne​tra​-
do em ter​r i​tó​r io hos​til, mas, até aque​le mo​m en​to, o ini​m i​go não dera si​nais de ter
per​c e​bi​do a in​va​são de suas li​nhas. Se fos​sem des​c o​ber​tos, po​de​r i​a m ten​tar con​-
ven​c er os guer​r i​lhei​r os de que es​ta​vam em mis​são de re​c o​nhe​c i​m en​to e se ha​vi​-
am per​di​do na sel​va. Di​f í​c il se​r ia ex​pli​c ar-lhes por que seus uni​f or​m es não exi​bi​-
am as di​vi​sas do exér​c i​to re​gu​lar e por que não por​ta​vam iden​ti​f i​c a​ç ão ofi​c i​a l.
A mis​são ti​nha um úni​c o ob​j e​ti​vo: des​truir o cam​po de “ree​du​c a​ç ão” — que
nome cí​ni​c o! — in​ti​tu​la​do Ins​ti​tu​to da Fra​ter​ni​da​de Uni​ver​sal e li​ber​tar os ín​di​os
miski​to que o Exér​c i​to do Povo man​ti​nha con​f i​na​dos. Duas se​m a​nas an​tes, dois
va​len​tes pa​dres ca​tó​li​c os ha​vi​a m con​se​gui​do es​c a​par do país, le​van​do mil e qui​-
nhen​tos ín​di​os. Os pa​dres dis​se​r am que os ín​di​os se​r i​a m mas​sa​c ra​dos e en​ter​r a​-
dos em vala co​m um, a me​nos que fos​sem res​ga​ta​dos ime​di​a ​ta​m en​te.
Os miski​tos or​gu​lha​vam-se de suas ra​í​zes tra​di​c i​o​nais e da cul​tu​r a de seus an​-
te​pas​sa​dos e re​c u​sa​vam a ba​r a​ta fi​lo​so​f ia co​le​ti​vis-ta dos lí​de​r es po​lí​ti​c os que
aca​ba​vam de as​su​m ir o po​der no país. Mais dia me​nos dia se​r i​a m mor​tos, em
nome da le​a l​da​de ao pró​prio pas​sa​do. Ge​no​c í​dio. Mas​sa​c re. Os no​vos go​ver​nan​-
tes não pa​r e​c i​a m dis​pos​tos a es​pe​r ar mui​to. Pre​c i​sa​vam eli​m i​nar to​dos os fo​c os
de re​sis​tên​c ia para fir​m ar-se no po​der.
Ob​vi​a ​m en​te, o Exér​c i​to ame​r i​c a​no, não de​sig​na​r ia vin​te de seus me​lho​r es
sol​da​dos ape​nas para sal​var um ban​do de ín​di​os re​bel​des. No mun​do in​tei​r o ha​via
di​ta​do​r es de to​dos os ti​pos, uns de di​r ei​ta, ou​tros de es​quer​da, e sem​pre ha​ve​r ia
re​bel​des, mais ou me​nos tra​di​c i​o​na​lis​tas, mais ou me​nos de es​quer​da ou de di​r ei​-
ta. Os di​ta​do​r es vi​vi​a m man​dan​do ma​tar gen​te, e os Es​ta​dos Uni​dos não po​di​a m
es​tar pre​sen​tes ao mes​m o tem​po em to​dos os lu​ga​r es lu​tan​do para im​pe​dir que os
mais fra​c os fos​sem as​sas​si​na​dos pe​los mais for​tes.
A ver​da​de era que além dos miski​tos, ha​via na​que​le Ins​ti​tu​to da Fra​ter​ni​da​de
Uni​ver​sal onze ho​m ens que va​lia a pena sal​var. Tal​vez por​que ha​vi​a m sido va​len​-
tes até o úl​ti​m o mo​m en​to, de​nun​c i​a n​do as atro​c i​da​des do novo re​gi​m e... Tal​vez, é
cla​r o, por​que pos​su​í​a m in​f or​m a​ç ões que o go​ver​no ame​r i​c a​no con​si​de​r a​va de
gran​de va​lia para a de​po​si​ç ão do go​ver​no ini​m i​go que aca​ba​va de im​por-se
ao povo. No que di​zia res​pei​to a Washing​ton, não pa​r e​c ia ha​ver dú​vi​das de que
aque​les onze ho​m ens va​li​a m o ris​c o da vida de seus me​lho​r es sol​da​dos. Por isso é
que Jack Twist lá es​ta​va.
O re​gi​m en​to con​se​guiu che​gar até o ins​ti​tu​to, um ver​da​dei​r o cam​po de con​-
cen​tra​ç ão, cer​c a​do de ara​m e far​pa​do com al​tas tor​r es de guar​da. Do lado de
fora da cer​c a, um pré​dio de con​c re​to, com dois an​da​r es, alo​j a​va a ad​m i​nis​tra​ç ão
do cam​po, e al​gu​m as ve​lhas bar​r a​c as re​m en​da​das abri​ga​vam as tro​pas da guar​-
da.
Pou​c o de​pois de meia-noi​te, o re​gi​m en​to ame​r i​c a​no cer​c ou pré​dio e bar​r a​-
cas, e abriu fogo. Após o pri​m ei​r o ata​que, co​m e​ç a​r am os com​ba​tes cor​po-a-cor​-
po. Meia hora de​pois do úl​ti​m o tiro, os ín​di​os e os onze ho​m ens mais fe​li​zes que
Jack já vira an​da​vam em fila in​di​a ​na atra​vés da sel​va, em di​r e​ç ão à fron​tei​r a.
Dois sol​da​dos mor​r e​r am e três es​ta​vam fe​r i​dos. O co​m an​dan​te Rafe Eik​horn
pu​xa​va a lon​ga fila que se ar​r as​ta​va pela sel​va. Jack e três ou​tros sol​da​dos fe​c ha​-
vam o cor​te​j o, co​brin​do a re​ta​guar​da e le​van​do os ar​qui​vos se​c re​tos do ins​ti​tu​to
— re​gis​tros de in​ter​r o​ga​tó​r i​os, tor​tu​r a e as​sas​si​na​tos de ín​di​os e cam​po​ne​ses. So
dei​xa-
ram o ins​ti​tu​to de​pois do úl​ti​m o pri​si​o​nei​r o quan​do a co​lu​na de Rafe Eik​horn
já es​ta​va a mais de três qui​lô​m e​tros de dis​tân​c ia.
Jack e os três sol​da​dos fo​r am rá​pi​dos, mas nem as​sim con​se​gui​r am al​c an​ç ar
a co​lu​na. Es​ta​vam ain​da a vá​r i​os qui​lô​m e​tros da fron​tei​r a de Hon​du​r as quan​do,
an​tes do ama​nhe​c er, fo​r am in​ter​c ep​ta​dos por he​li​c óp​te​r os ini​m i​gos, que des​c i​a m
do céu como um en​xa​m e de ves​pas ne​gras, dei​xan​do cair guer​r i​lhei​r os e bom​-
bas por to​dos os la​dos. Os ín​di​os e os sol​da​dos que acom​pa​nha​vam Rafe con​se​-
gui​r am es​c a​par com os ou​tros pri​si​o​nei​r os li​ber​ta​dos, po​r ém Jack e seus três ho​-
mens fo​r am cap​tu​r a​dos e le​va​dos para ou​tro dos mui​tos ins​ti​tu​tos de fra​ter​ni​da​de
uni​ver​sal que ha​via no país — na ver​da​de, para o pior de to​dos que se​quer era re​-
gis-‘ tra​do ofi​c i​a l​m en​te. Se​r ia da​no​so para a ima​gem do novo go​ver​no se, de re​-
pen​te, os po​vos do mun​do to​m as​sem co​nhe​c i​m en​to de que o novo pa​r a​í​so ope​r á​-
rio abri​ga​va uma po​c il​ga como aque​le cen​tro de ree​du​c a​ç ão, onde, em nome da
li​ber​da​de, pes​so​a s eram mu​ti​la​das, tor​tu​r a​das e mor​tas. Na me​lhor tra​du​ç ão da
fic​ç ão de Ge​or​ge Orwell, o cam​po para o qual Jack fora le​va​do não ti​nha nome,
e, como não ti​nha nome, não exis​tia.
Os pri​si​o​nei​r os tam​bém não ti​nham nome, nem as ce​las ti​nham nú​m e​r o.
Jack e ou​tros três sol​da​dos exem​pla​r es do exér​c i​to ame​r i​c a​no so​f re​r am tor​tu​r as
fí​si​c as e psi​c o​ló​gi​c as, fo​r am hu​m i​lha​dos e de​gra​da​dos, pas​sa​r am fome e frio, vi​-
ram-se obri​ga​dos a con​vi​ver dia e noi​te com ame​a ​ç as de no​vas tor​tu​r as ou de
exe​c u​ç ões si​m u​la​das. Um de​les mor​r eu e ou​tro en​lou​que​c eu; ape​nas Jack e seu
me​lhor ami​go, Os​c ar Wes​ton, con​se​gui​r am man​ter a vida e a sa​ni​da​de men​tal
du​r an​te os onze me​ses e meio em que per​m a​ne​c e​r am pre​sos.
Oito anos de​pois, sen​ta​do na neve, com as cos​tas apoi​a ​das num bar​r an​c o em
Con​nec​ti​c ut, à es​pe​r a de um car​r o blin​da​do, Jack sen​tia chei​r os e ou​via ru​í​dos
que não fa​zi​a m par​te da​que​la noi​te ge​la​da. Pas​sos de bo​tas num cor​r e​dor de con​-
cre​to. O fe​dor dos bal​des chei​os de fe​zes e uri​na. Os ui​vos de medo dos pri​si​o​nei​-
ros que os tor​tu​r a​do​r es iam bus​c ar para ou​tra ses​são de in​ter​r o​ga​tó​r io.
Jack fe​c hou os olhos e res​pi​r ou fun​do, en​c hen​do os pulmões com o ar lim​po
e ge​la​do de Con​nec​ti​c ut. Ra​r a​m en​te pen​sa​va na​que​les dias de hor​r or. Para ele, o
pior ocor​r e​r a de​pois que fu​gi​r a de lá, de​pois que sou​be​r a o que ha​via acon​te​c i​do
com sua Jenny. 0 in​f er​no em que vi​ve​r a na Amé​r i​c a Cen​tral não con​se​gui​r a des​-
truí-lo, mas o que o mun​do fi​ze​r a com Jenny dei​xa​r a-o ar​r a​sa​do. Ou​tros fa​r óis
sur​gi​r am no ho​r i​zon​te. Jack mu​niu-se do bi​nó​c u​lo: era o car​r o blin​da​do que se
apro​xi​m a​va. O re​ló​gio mar​c a​va 9:38. Pon​tu​a l, como to​das as noi​tes da se​m a​na.
Ape​sar do fe​r i​a ​do do dia se​guin​te, a me​lhor com​pa​nhia de trans​por​te de va​lo​-
res do país ja​m ais se atra​sa​va...
Jack ajo​e ​lhou-se e abriu a va​li​se de cou​r o que es​ta​va a seu lado no chão.
Con​ti​nha um rá​dio, sin​to​ni​za​do na fre​qüên​c ia do apa​r e​lho do car​r o blin​da​do. O
mo​to​r is​ta co​m u​ni​c a​va-se com um dos pos​tos de as​sis​tên​c ia ins​ta​la​dos ao lon​go do
ca​m i​nho:
— Três-zero-um na es​c u​ta — dis​se al​guém.
— Rena — o mo​to​r is​ta res​pon​deu.
— Ro​dol​f o.
— Rede.
0 pos​to fi​ze​r a con​ta​to cha​m an​do o nú​m e​r o do car​r o e o mo​to​r is​ta res​pon​de​r a
com a se​nha ade​qua​da con​f ir​m an​do que tudo es​ta​va bem com o car​r o 301. Uma
se​nha para cada dia da se​m a​na.
Jack des​li​gou o rá​dio, fe​c hou a va​li​se e vol​tou-se para ver o car​r o blin​da​do
pas​sar a pou​c os me​tros de seu pos​to de ob​ser​va​ç ão. Seu pla​no es​ta​va pron​to. O
car​r o 301 era pon​tu​a ​lís​si​m o, e ele não pre​c i​sa​r ia vol​tar àque​la co​li​na até a noi​te
do as​sal​to, mar​c a​do, em prin​c í​pio, para o sá​ba​do, dia 11 de ja​nei​r o. Fal​ta​va-lhe
ape​nas acer​tar os úl​ti​m os de​ta​lhes.
Em ge​r al, Jack gos​ta​va tan​to de pla​ne​j ar quan​to de agir. Na​que​la noi​te, con​-
tu​do, vol​tan​do para o car​r o que dei​xa​r a es​ta​c i​o​na​do numa rua tran​qüi​la, onde não
cha​m a​r ia a aten​ç ão de nin​guém, ia ca​bis​bai​xo e pen​sa​ti​vo. Tal​vez co​m e​ç as​se a
per​der tam​bém a ca​pa​c i​da​de de se di​ver​tir com a es​pe​r a da exe​c u​ç ão de
um pla​no cri​m i​no​so. Es​ta​va mui​to mu​da​do... e não con​se​guia en​ten​der a ra​zão.
Ao apro​xi​m ar-se do car​r o, a noi​te já não es​ta​va tão es​c u​r a. Ele olhou para
cima e viu a lua bri​lhan​te, ama​r e​la​da, imen​sa como se ti​ves​se cres​c i​do mui​to em
sua vi​a ​gem pelo es​pa​ç o e ain​da es​ti​ves​se cres​c en​do. Pa​r ou de re​pen​te, os olhos
fi​xos nela, o quei​xo para cima, sem con​se​guir mo​ver-se. Sen​tiu um ca​la​f rio na
es​pi​nha, uma es​pé​c ie de ar​r e​pio nos os​sos...
— A Lua — mur​m u​r ou.
Com o som da pró​pria voz, o ar​r e​pio alas​trou-se pela pele, por todo o cor​po.
Era pre​c i​so fu​gir dali... rá​pi​do, rá​pi​do! An​tes de ser cor​r o​í​do pela luz áci​da que
pa​r e​c ia pin​gar da Lua. Al​gu​m a coi​sa co​m e​ç a​va a amo​le​c er den​tro dele... Era
pre​c i​so fu​gir!
O medo pas​sou tão re​pen​ti​na​m en​te como sur​gi​r a. Jack não con​se​guia en​ten​-
der o que ha​via acon​te​c i​do. O que te​r ia a Lua a ver com aqui​lo? A Lua... a mes​-
ma ve​lha Lua de sem​pre, das can​ç ões de amor e dos po​e ​tas. Mui​to es​tra​nho.
Con​ti​nuou a an​dar na di​r e​ç ão do car​r o, mas não es​que​c ia a Lua e, meio sem
que​r er, ain​da vi​r ou-se para olhá-la, tes​ta fran​zi​da.
No car​r o, di​r i​gin​do para New Ha​ven, afi​nal, con​se​guiu pa​r ar de pen​sar na
Lua. Jenny, como sem​pre, ocu​pa​va-o in​tei​r o, co​r a​ç ão e cé​r e​bro... No Na​tal, en​-
tão, era ain​da mais tris​te pen​sar que ela es​ta​va no hos​pi​tal, em coma ir​r e​ver​sí​vel.
Mais tar​de, da ja​ne​la do apar​ta​m en​to, olhan​do a ci​da​de ilu​m i​na​da, com uma
gar​r a​f a de cer​ve​j a na mão, Jack con​c lu​ía que, da Rua 261 ao Park Row, de Ben​-
so​nhurst a Lit​tle Neck, não exis​tia na ci​da​de al​guém mais so​li​tá​r io do que ele na​-
que​la vés​pe​r a de Na​tal.

7. DIA DE NA​TAL

Elko County, Ne​v a​da


Sandy Sar​ver acor​dou logo que o dia nas​c eu, cla​r e​a n​do o tm-ler. O mun​do
pa​r e​c ia ain​da não ter des​per​ta​do, como se o tem​po tam​bém es​ti​ves​se sus​pen​so.
Se qui​ses​se, ela po​de​r ia vi​r ar-se para o lado e con​ti​nu​a r dor​m in​do, pois es​ta​va de
fé​r i​a s e ain​da ti​nha
oito dias de fol​ga pela fren​te. Er​nie e Fay e Block ha​vi​a m fe​c ha​do o mo​tel e
vi​a ​j a​do para Milwaukee, a fim de pas​sar o Na​tal com os ne​tos. O res​tau​r an​te
tam​bém es​ta​r ia fe​c ha​do, pelo me​nos du​r an​te o Na​tal. Mas Sandy sa​bia que não
con​se​gui​r ia dor​m ir ou​tra vez. Es​ta​va acor​da​da, bem acor​da​da, e es​pre​gui​ç ou-se
como uma gata. Pen​sou que se​r ia bom acor​dar Ned, bei​j á-lo, fazê-lo mon​tar
nela, mas Ned era ape​nas uma som​bra nas som​bras do quar​to. Em​bo​r a es​ti​ves​se
ar​den​do de von​ta​de, re​sol​veu dei​xá-lo dor​m ir mais um pou​c o. Te​r ia mui​to tem​po
para fa​zer amor à tar​de. Saiu da cama sem fa​zer ru​í​do, foi até o ba​nhei​r o e abriu
o chu​vei​r o. Achou pru​den​te co​m e​ç ar o ba​nho com água mor​na e con​c luí-lo com
uma du​c ha ge​la​da.
Du​r an​te anos Sandy ha​bi​tu​a ​r a-se à idéia de que era frí​gi​da e não ti​nha in​te​-
res​se por sexo; bas​ta​va ver-se nua no es​pe​lho para co​r ar de ver​go​nha. De re​pen​-
te, sem mais nem me​nos, tudo co​m e​ç ou a mu​dar... De re​pen​te, seu cor​po co​m e​-
çou a aque​c er-se e o sexo pas​sou a pa​r e​c er... in​te​r es​san​te! Dito as​sim pa​r e​c ia bo​-
ba​gem. Qual​quer um sabe que sexo é in​te​r es​san​te, mas até pou​c o tem​po
atrás, para ela, sexo era obri​ga​ç ão. De re​pen​te... o cor​po acor​dou: de​li​c i​o​sa sur​-
pre​sa e mis​té​r io in​de​c i​f rá​vel.
De​pois do ba​nho, vol​tou nua para o quar​to e ves​tiu uma blu​sa de lã e a cal​ç a
je​a ns. En​tão foi até a mi​n​ús​c u​la co​zi​nha do trai​ler para pre​pa​r ar um suco de la​-
ran​j a, po​r ém mu​dou de idéia. Pre​f e​r ia sair e di​r i​gir um pou​c o. Dei​xou um bi​lhe​-
te para Ned, ves​tiu o ca​sa​c o for​r a​do de lã de car​nei​r o e cor​r eu para a ca​m i​o​ne​ta.
Di​r i​gir era sua se​gun​da nova pai​xão na vida, a mai​or fe​li​c i​da​de do mun​do de​pois
de fa​zer amor. Ou​tra es​tra​nha mu​dan​ç a. Até pou​c o tem​po atrás, Sandy não só
de​tes​ta​va di​r i​gir, como acha​va um tor​m en​to vi​a ​j ar em qual​quer ve​í​c u​lo. E de re​-
pen​te...
Não ha​via mis​té​r io al​gum em en​ten​der sua an​ti​ga aver​são a sexo. A cul​pa
era de seu pai, Hor​ton Pur​ney, ho​m em ca​la​do, mes​qui​nho e ter​r i​vel​m en​te pe​r i​-
go​so. Sandy não che​gou a co​nhe​c er a mãe, que mor​r eu de par​to quan​do ela nas​-
ce​r a. Mas o pai... co​nhe​c e​r a-o mui​to bem, bem de​m ais. Mo​r a​va com ele num
ca​se​bre em ru​í​nas nos ar​r e​do​r es de Bars​tow, nos li​m i​tes do de​ser​to da Ca​li​f ór​nia.
Suas pri​m ei​r as lem​bran​ç as da infân​c ia eram lem​bran​ç as do pai, usan​do e abu​-
san​do dela na cama. Até o dia em que Sandy con​se​guiu fu​gir de casa, aos qua​-
tor​ze anos, seu pai ser​viu-se dela o quan​to quis, como se ela não pas​sas​se de um
brin​que​do eró​ti​c o.
Seu pro​ble​m a com re​la​ç ão a qual​quer ve​í​c u​lo mo​to​r i​za​do tam​bém es​ta​va
re​la​c i​o​na​do com o pai. Hor​ton re​sol​ve​r a mon​tar uma ofi​c i​na de con​ser​to de mo​-
to​c i​c le​tas no ve​lho gal​pão que ha​via nos fun​dos da casa. Ja​m ais ga​nha​r a um tos​-
tão com o ne​gó​c io, mas, uma vez a cada seis me​ses, obri​ga​va Sandy a vi​a ​j ar
com ele, duas ho​r as e meia de pe​sa​de​lo, até Las Ve​gas, onde co​nhe​c ia um su​j ei​-
to cha​m a​do Sam​son Cher​r ik. Cher​r ik ti​nha um ca​der​ni​nho com no​m es e te​le​f o​nes
de ta​r a​dos que gos​ta​vam de alu​gar ga​r o​ti​nhas. E Cher​r ik ado​r a​va ver Sandy. De​-
pois de al​gu​m as se​m a​nas em Las Ve​gas, vol​ta​vam para casa, de car​r o, e seu pai
ti​nha os bol​sos chei​os de di​nhei​r o. Para Sandy, a vi​a ​gem a Las Ve​gas cons​ti​tu​ía
um tor​m en​to, por​que ela sa​bia per​f ei​ta​m en​te o que a es​pe​r a​va lá. No en​tan​to, a
vi​a ​gem de vol​ta era pior do que qual​quer pe​sa​de​lo, por​que sig​ni​f i​c a​va vol​tar para
a casa suja e mal​c hei​r o​sa... e para a cama imun​da onde a es​pe​r a​va a fome in​sa​-
ci​á ​vel da​que​le por​c o cha​m a​do Hor​ton Pur​ney. Para a fren​te ou para trás, sen​tia-
se pre​sa a uma es​tra​da que só po​dia levá-la à des​gra​ç a... Com o tem​po, o medo
con​ta​m i​nou to​das as lem​bran​ç as: o ven​to da es​tra​da, o chei​r o de po​e i​r a, o ron​c o
do mo​tor, o chi​a ​do dos pneus no as​f al​to. E a mal​di​ta es​tra​da!
Sen​tir pra​zer na cama, com o ma​r i​do, era como um mi​la​gre. Pa​r e​c ia im​pos​-
sí​vel acre​di​tar que um dia po​de​r ia es​que​c er a dor do pas​sa​do, o ve​ne​no que con​-
ta​m i​na​va to​das as suas ale​gri​a s, trans​f or​m an​do o pra​zer em dor e em pe​c a​do.
Até que, dois me​ses atrás, no ve​r ão, tudo sim​ples​m en​te mu​dou! E con​ti​nu​a ​va
mu​dan​do. Era como re​nas​c er, lim​pa, nova, rom​pen​do as ca​dei​a s uma a
uma. Sen​tia-se dig​na de res​pei​to, pela pri​m ei​r a vez na vida... Sen​tia-se li​vre!
En​trou na ca​m i​o​ne​ta e deu a par​ti​da. O trai​ler es​ta​va es​ta​c i​o​na​do num lote
de ter​r a pró​xi​m o a Be​owawe, uma ci​da​de tão pe-
que​na que não exis​tia, ao lado de uma es​tra​da que era qua​se uma pi​c a​da.
Sandy en​ve​r e​dou por ela e do​brou em di​r e​ç ão ao nor​te. Pas​san​do por Be​owawe,
logo che​ga​r ia à Ro​do​via Oi​ten​ta, e en​tão po​de​r ia ir para les​te, até Elko, ou para
oes​te, na di​r e​ç ão de Bat​tle Moun​tain. Aca​bou de​c i​din​do-se pelo sul, en​tran​do por
uma es​tra​di​nha es​bu​r a​c a​da que não cri​ou pro​ble​m a al​gum nem à ca​m i​o​ne​ta de
tra​ç ão nas qua​tro ro​das, nem à ri​so​nha mo​to​r is​ta que a di​r i​gia em alta ve​lo​c i​da​-
de. Em quin​ze mi​nu​tos, che​gou a um en​tron​c a​m en​to e es​c o​lheu con​ti​nu​a r em di​-
re​ç ão ao sul, en​tran​do cada vez mais na pai​sa​gem de​ser​ta e de​so​la​da. Com uma
gui​na​da na di​r e​ç ão, saiu da es​tra​da e en​trou, à di​r ei​ta, numa es​trei​ta pi​c a​da ape​-
nas mar​c a​da so​bre a ter​r a nua pelo sul​c o de pou​c os e raròs pneus.
Ha​via al​guns ves​tí​gi​os de neve acu​m u​la​da de lon​ge em lon​ge. No ho​r i​zon​te,
as mon​ta​nhas bri​lha​vam, mui​to bran​c as, mas na pla​ní​c ie ha​via pou​c a neve para
a épo​c a de Na​tal. Cá e lá, via-se uma ár​vo​r e ain​da bran​c a, ou uma pe​que​na ele​-
va​ç ão de ter​r a man​ten​do ain​da um pou​c o de neve, ou ain​da um ar​bus​to seco
guar​dan​do res​tos de neve en​tre os ga​lhos. No con​j un​to, po​r ém, a pai​sa​gem pa​r e​-
cia nua, seca e mar​r om. Os pneus le​van​ta​vam uma nu​vem de po​e i​r a.
Sandy se​guiu em fren​te, de​pois fez uma vol​ta, ro​dou um pou​c o para o nor​te,
vi​r ou à es​quer​da e, afi​nal, che​gou a um lu​gar co​nhe​c i​do, ao qual não pla​ne​j a​r a ir.
Fa​zia já al​gum tem​po que, ao sair de car​r o sem des​ti​no, aca​ba​va che​gan​do àque​-
le lu​gar. Nun​c a to​m a​va o mes​m o ca​m i​nho. Cada vi​a ​gem era uma sur​pre​sa, e to​-
das aca​ba​vam exa​ta​m en​te ali. Era di​f í​c il ex​pli​c ar, mas ha​via na​que​la pai​sa​gem
al​gu​m a coi​sa que a acal​m a​va. Tal​vez fos​sem as co​li​nas, ou as pe​dras que pa​r e​c i​-
am apro​xi​m ar as mon​ta​nhas, ou a gra​m a — nem sa​bia, mas acha​va o con​j un​to
mui​to agra​dá​vel à vis​ta. Para di​zer a ver​da​de, o lu​gar em nada di​f e​r ia de cen​te​-
nas de ou​tros pe​da​ç os de ter​r a pe​las re​don​de​zas. Mas era ali que Sandy se sen​tia
em paz.
Ela des​li​gou o mo​tor e des​c eu da ca​m i​o​ne​ta. Deu al​guns pas​sos a esmo, as
mãos me​ti​das nos bol​sos da ja​que​ta de lã de car​nei
ro, es​que​c i​da do frio. Por ca​m i​nhos com​pli​c a​dos, aca​ba​r a apro​xi​m an​do-se
da Ro​do​via Oi​ten​ta. Al​guns pou​c os qui​lô​m e​tros adi​a n​te, via os ca​m i​nhões que
tra​f e​ga​vam, es​c u​ta​va o ron​c o dos mo​to​r es. Mas era fe​r i​a ​do, e ha​via pou​c o mo​vi​-
men​to na es​tra​da. Do ou​tro lado es​ta​vam o Mo​tel Tran​qüi​li​da​de e o res​tau​r an​-
te, mas Sandy ape​nas cor​r eu os olhos na​que​la di​r e​ç ão. O que a atra​ía es​ta​va à
fren​te, tal​vez na ter​r a, tal​vez no ar, mas ali, era onde ela se sen​tia em casa. Ali,
onde a paz nas​c ia das pe​dras. Como o ca​lor que o chão ir​r a​dia à tar​di​nha, de​pois
de um dia de sol mui​to quen​te. Não es​ta​va pre​o​c u​pa​da em des​c o​brir por que gos​-
ta​va tan​to da​que​la lu​gar. Bas​ta​va-lhe sen​tir a be​le​za que pa​r e​c ia bro​tar de cada
ga​lho seco e de cada tor​r ão de ter​r a. Nin​guém pre​c i​sa ten​tar en​ten​der por que
acha belo o oca​so, ou por que pre​f e​r e ro​sas a cra​vos ou jas​m ins.
Na​que​la ma​nhã de Na​tal, Sandy ain​da não sa​bia que es​ta​va pi​san​do a mes​-
ma ter​r a em di​r e​ç ão à qual Er​nie Block fora pra​ti​c a​m en​te ar​r as​ta​do, no dia 10 de
de​zem​bro, ao vol​tar de Elko, sem com​preen​der como ou por quê. Tam​bém não
sa​bia que Er​nie vi​ve​r a ali uma es​pé​c ie de tran​se, exal​ta​ç ão e medo, emo​ç ões
com​ple​ta​m en​te di​f e​r en​tes das que ela ex​pe​r i​m en​ta​va. Ain​da pas​sa​r i​a m se​m a​-
nas, até des​c o​brir que aque​le lu​gar exer​c ia uma atra​ç ão es​tra​nha, e mui​to for​te,
so​bre vá​r i​a s ou​tras pes​so​a s, gen​te ami​ga, que ela ain​da não co​nhe​c ia.
Chi​c a​go, Il​li​nois
Foi a ma​nhã de Na​tal mais atri​bu​la​da da vida do pa​dre Ste​f an Wy ​c a​zik,
aque​le po​lo​nês in​c an​sá​vel, pá​r o​c o de San​ta Ber​nar​det-te, sal​va​dor de pa​dres em
con​f li​to. A me​di​da que pas​sa​vam as ho​r as, a ma​nhã com​pli​c ou-se, até se trans​-
for​m ar no mais fan​tás​ti​c o Na​tal de quan​tos ha​via tido ou te​r ia. De​pois da mis​sa,
re​c e​beu os pa​r o​qui​a ​nos que que​r i​a m cum​pri​m en​tá-lo e ofe​r e​c er-lhe ces​tas de
fru​tas ou pra​ti​nhos de bolo, e foi até o Hos​pi​tal Uni​ver​si​tá​r io para vi​si​tar Win​ton
Tolk, o pa​tru​lhei​r o fe​r i​do du​r an​te o as​sal​to ao bar no cen​tro da ci​da​de. Tolk fora
ope​r a​do e pas​sa​r a a tar​de e a noi​te na Uni​da​de de Te​r a​pia In​ten​si​va; de ma​-
nhã, twnst​c ri​r anwio para um dos quar​tos ane​xos à UTI, por​que já su​pe​r a​r a a fase
crí​ti​c a.
Quan​do o pa​dre Wy ​c a​zik che​gou, en​c on​trou Ray ​nel​la Tolk, a mu​lher do pa​-
tru​lhei​r o, sen​ta​da ao lado da cama. Era uma mu​la​ta bo​ni​ta, de pela cor de cho​c o​-
la​te e ca​be​los bem cui​da​dos.
— Se​nho​r a Tolk? Sou Ste​f an Wy ​c a​zik — apre​sen​tou-se.
— Mas...
O ve​lho pá​r o​c o sor​r iu e pro​c u​r ou tran​qüi​li​zá-la:
— Acal​m e-se. Não es​tou aqui para dar a ex​tre​m a-un​ç ão a seu ma​r i​do.
— Ain​da bem... — mur​m u​r ou Win​ton. — Não te​nho a me​nor in​ten​ç ão de
mor​r er.
Cons​c i​e n​te e aten​to, o pa​tru​lhei​r o apre​sen​ta​va ex​c e​len​te apa​r ên​c ia. Es​ta​va
qua​se sen​ta​do na cama, as cos​tas apoi​a ​das no es​tra​do er​gui​do; ti​nha o pei​to en​-
vol​to em ban​da​gens, vá​r i​os ele​tro​dos co​la​dos ao tó​r ax e um ca​te​ter pre​so à agu​-
lha es​pe​ta​da em sua mão. Com cer​te​za ain​da es​ta​va re​c e​ben​do gli​c o​se e an​ti​bi​ó​-
ti​c os, mas pa​r e​c ia en​c on​trar-se em fran​c a re​c u​pe​r a​ç ão.
O pa​dre Wy ​c a​zik fi​c ou pa​r a​do jun​to aos pés da cama, gi​r an​do o bar​r e​te en​-
tre as mãos. De re​pen​te, dan​do-se con​ta do que fa​zia, jo​gou o bar​r e​te so​bre uma
ca​dei​r a pró​xi​m a.
— Se​nhor Tolk, se acha que está em con​di​ç ões de fa​lar, gos​ta​r ia de lhe fa​-
zer al​gu​m as per​gun​tas so​bre o que hou​ve on​tem — dis​se, e, no​tan​do os olha​r es
in​tri​ga​dos do ca​sal, ten​tou ex​pli​c ar-se me​lhor: — Bren​dan Cro​nin, o ra​paz que
acom​pa​nhou vo​c ês no pa​tru​lha​m en​to du​r an​te a se​m a​na toda, é... meu fun​c i​o​ná​-
rio.
— Esse é um ho​m em que eu que​r ia ver! — Ray ​nel​la ex​c la​m ou, o ros​to
ilu​m i​nan​do-se.
— Ele me sal​vou a vida — Tolk sus​pi​r ou. — Fez uma lou​c u​r a! Uma coi​sa
que nun​c a de​via ter fei​to... Mas sou obri​ga​do a ad​m i​tir que, se Bren​dan não ti​ves​-
se agi​do como lou​c o, eu não es​ta​r ia aqui, ago​r a.
— O se​nhor Cro​nin en​trou no bar sem sa​ber se al​gum as​sal​tan​te ain​da es​ta​-
va es​c on​di​do por lá — ex​pli​c ou Ray ​nel​la. — Cor​r eu o ris​c o de ser as​sas​si​na​do!
— Nos​sos re​gu​la​m en​tos pro​í​bem que qual​quer po​li​c i​a l faça o que ele fez.
Se a si​tu​a ​ç ão fos​se in​ver​ti​da... que​r o di​zer, se ele es​ti​ves​se em meu lu​gar, eu não
po​de​r ia en​trar no bar — o pa​tru​lhei-ro in​f or​m ou. — O se​nhor en​ten​de, não é? Eu
não da​r ia a Bren​dan uma me​da​lha por bra​vu​r a... mas devo-lhe a vida.
O pá​r o​c o fran​ziu as so​bran​c e​lhas. Já sa​bia de tudo aqui​lo des​de a vés​pe​r a,
de​pois de uma lon​ga con​ver​sa com o che​f e de Tolk, seu ve​lho ami​go. Win​ton Tolk
era o se​gun​do ho​m em, em ape​nas al​gu​m as ho​r as, que elo​gi​a ​va a co​r a​gem de
Bren​dan e cha​m a​va-o de lou​c o. — En​gra​ç a​do... Bren​dan sem​pre foi um de
meus me​lho​r es... fun​c i​o​ná​r i​os. Ele aten​deu o se​nhor? Pres​tou-lhe os pri​m ei​r os
so​c or​r os?
— Acho que sim, mas não pos​so afir​m ar — Win​ton res​pi​r ou fun​do. — Só
sei que, de re​pen​te, re​c u​pe​r ei a cons​c i​ê n​c ia... e ele es​ta​va meio de​bru​ç a​do so​bre
meu pei​to, cha​m an​do meu nome... Mas eu es​ta​va mui​to fe​r i​do... qua​se in​c ons​c i​-
en​te.
— E um mi​la​gre meu ma​r i​do es​tar vivo — mur​m u​r ou Ray ​nel-la, es​tre​m e​-
cen​do.
— E mes​m o... — O po​li​c i​a l sor​r iu ca​r i​nho​sa​m en​te para a es​po​sa e vol​tou-
se para o pa​dre Wy ​c a​zik. — Na ver​da​de, nin​guém acre​di​ta​va que eu con​se​guis​se
so​bre​vi​ver. Pa​r e​c e que per​di mui​to san​gue.
— Bren​dan apli​c ou-lhe um tor​ni​que​te para es​tan​c ar a he​m or​r a​gia?
— Não sei. Como já dis​se, eu es​ta​va qua​se in​c ons​c i​e n​te.
O pa​dre ca​lou-se, ten​tan​do en​c on​trar um modo de per​gun​tar o que que​r ia sa​-
ber sem ex​por os ver​da​dei​r os mo​ti​vos de sua vi​si​ta.
— Eu sei que você es​ta​va qua​se in​c ons​c i​e n​te... mas será que che​gou a per​-
ce​ber se ha​via al​gu​m a coi​sa... di​f e​r en​te... ou es​tra​nha... nas mãos de Bren​dan?
— Como as​sim? O que o se​nhor quer di​zer?
— Ele to​c ou seus fe​r i​m en​tos, não to​c ou?
— Não sei. Acho que sim... — Win​ton ca​lou-se por um ins​tan​te, pro​c u​r an​-
do lem​brar-se... Sim! Cla​r o! Ele me to​m ou o pul​so e de​pois pro​c u​r ou des​c o​brir
de onde saía o san​gue.
— E quan​do ele o to​c ou... Você sen​tiu al​gu​m a coi​sa? Al​gu​m a coi​sa... di​f e​-
ren​te?
— Nao es​tou en​ten​den​do...
0 ve​lho sa​c er​do​te ba​lan​ç ou a ca​be​ç a e sor​r iu:
— Nao se pre​o​c u​pe. O que im​por​ta é que você está bem. — Con​sul​tou o
re​ló​gio e fin​giu sur​pre​sa. — Deus do céu! Es​tou atra​sa​dís​si​m o para um com​pro​-
mis​so mui​to im​por​tan​te! — E, an​tes que os dois ti​ves​sem tem​po de per​gun​tar-lhe
o que fora fa​zer ali, ace​nou-lhes com uma bên​ç ão rá​pi​da e saiu do quar​to.
0 pa​dre Wy ​c a​zik an​da​va como sar​gen​to ins​tru​tor de re​c ru​tas: pas​sos fir​m es,
ca​be​ç a er​gui​da, pei​to es​tu​f a​do, bar​r i​ga en​c o​lhi​da. Quan​do ti​nha pres​sa, en​tão,
avan​ç a​va como um tan​que de guer​r a. Nin​guém es​pe​r a​r ia ver um pa​dre an​dar
da​que​le jei​to.
Ao sair do quar​to de Tolk, ele mar​c hou pelo cor​r e​dor, em​pur​r ou me​c a​ni​c a​-
men​te as duas por​tas de vai​vém que apa​r e​c e​r am a sua fren​te e avan​ç ou pela ala
cen​tral da UTI, onde Tolk es​ti​ve​r a in​ter​na​do na vés​pe​r a. Mal viu a pri​m ei​r a en​-
fer​m ei​r a, pe​diu-lhe — ou or​de​nou-lhe — que cha​m as​se o mé​di​c o de plan​tão, dr.
Roy ​c e Al​bright. Ro​gan​do a Deus que o per​do​a s​se por men​tir um pou​c o e le​vas​se
em con​ta sua boas in​ten​ç ões, apre​sen​tou-se como con​f es​sor e guia es​pi​r i​tu​a l da
fa​m í​lia Tolk; dis​se que Ray ​nel​la o en​c ar​r e​ga​r a de in​f or​m ar-se so​bre to​dos os de​-
ta​lhes da si​tu​a ​ç ão do ma​r i​do; como ele re​a l​m en​te es​ta​va, que tra​ta​m en​to re​c e​-
bia, que tipo de fe​r i​m en​tos so​f re​r á.
0 dr. Al​bright ti​nha um ros​to ex​tre​m a​m en​te en​gra​ç a​do e uma voz in​c ri​vel​-
men​te sé​r ia, o que tor​na​va di​f í​c il o di​á ​lo​go; en​tre​tan​to, mos​trou-se dis​pos​to a res​-
pon​der a qual​quer per​gun​ta que a fa​m í​lia de​se​j as​se fa​zer. Não es​ta​va en​c ar​r e​ga​-
do do caso, mas lera to​dos os re​la​tó​r i​os ao che​gar pela ma​nhã, por​que o qua​dro
pa​r e​c ia-lhe mui​to in​te​r es​san​te.
— Diga à se​nho​r a Tolk que to​dos po​dem dor​m ir tran​qüi​los. 0 pa​tru​lhei​r o está
se re​c u​pe​r an​do bem, mui​to bem. Re​c e​beu duas ba​las no tó​r ax, dis​pa​r a​das qua​se
à quei​m a-rou​pa, ca​li​bre 38. Até on​tem, nun​c a vi nin​guém le​var dois ti​r os de 38
no tó​r ax e sair
da UTI em me​nos de vin​te e qua​tro ho​r as. O se​nhor Tolk é um ho​m em de
sor​te.
— As ba​las não atin​gi​r am o co​r a​ç ão, nem ou​tro ór​gão vi​tal. E isso?
— Sim, mas não é só — Al​bright fran​ziu as so​bran​c e​lhas. — Os ti​r os não
atin​gi​r am se​quer uma veia ou ar​té​r ia im​por​tan​te. O se​nhor sabe que uma bala 38
é um ver​da​dei​r o pe​tar​do, não sabe? Des​trói os te​c i​dos que en​c on​tra pela fren​te,
tri​tu​r a os te​c i​dos cha​m a​dos “mo​les”, e pode re​ben​tar até os os​sos mais re​sis​ten​-
tes. No caso de Tolk, a bala le​sou vei​a s e ar​té​r i​a s, po​r ém não cau​sou um só rom​-
pi​m en​to sig​ni​f i​c a​ti​vo. Pura sor​te.
— En​tão a tra​j e​tó​r ia das ba​las foi in​ter​r om​pi​da... por al​gum
OSSO?
— Des​v i​a​da, tal​vez. Não há osso que con​si​ga pa​r ar uma bala de alto ca​li​-
bre. Os pro​j é​teis fo​r am lo​c a​li​za​dos em te​c i​dos mo​les. E aí está ou​tra coi​sa cu​r i​o​-
sa... Não há si​nal de fra​tu​r a. Mui​ta sor​te.
O pa​dre Wy ​c a​zik ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, con​c or​dan​do, e per​gun​tou:
— E como es​ta​vam os pro​j é​teis quan​do fo​r am ex​tra​í​dos? Eram re​a l​m en​te
de tão alto ca​li​bre? Apre​sen​ta​vam al​gum de​f ei​to... de fa​bri​c a​ç ão, tal​vez? Um de​-
fei​to ex​pli​c a​r ia por que duas ba​las trin​ta e oito não ma​ta​r am o pa​tru​lhei​r o Tolk...
nem che​ga​r am a feri-lo mais que três ti​r os ca​li​bre vin​te e dois.
O mé​di​c o fez uma ca​r e​ta, que tor​nou seu ros​to ain​da mais en​gra​ç a​do.
— Não sei... E pos​sí​vel, pelo me​nos em tese. Para des​c o​brir isso, o se​nhor
pre​c i​sa per​gun​tar à po​lí​c ia téc​ni​c a. Ou ao dou​tor Son​ne​f ord, o ci​r ur​gi​ã o que ex​-
traiu os pro​j é​teis.
— Ouvi di​zer que Tolk per​deu mui​to san​gue.
— Ain​da não en​c on​trei o dou​tor Son​ne​f ord, mas te​nho cer​te​za de que hou​-
ve um erro no re​la​tó​r io da ci​r ur​gia. O re​la​tó​r io diz que o pa​tru​lhei​r o re​c e​beu
mais de qua​tro li​tros de san​gue em trans​f u​são en​quan​to per​m a​ne​c eu no cen​tro
ci​r úr​gi​c o. E cla​r o que não pode ser!
— E por que não?
— Se Tolk ti​ves​se per​di​do mais de qua​tro li​tros de san​gue an​tes de en​trar
em ci​r ur​gia, nem te​r ia sido pre​c i​so ope​r á-lo... Por​que ele já es​ta​r ia sem cir​c u​la​-
ção. Es​ta​r ia mor​to. Frio e duro.
Las Ve​gas, Ne​v a​da
Mary e Pete Mo​na​tel​la, pais de Jor​j a, che​ga​r am ao apar​ta​m en​to da fi​lha às
seis ho​r as da ma​nha, os olhos in​c ha​dos de sono, de​c i​di​dos a ocu​par o lu​gar que
lhes ca​bia, por di​r ei​to, ao lado da ár​vo​r e de Na​tal, no mo​m en​to em que Ma​r eie
acor​das​se para abrir os pre​sen​tes.
Da al​tu​r a de Jor​j a, Mary já fora uma mu​lher de cor​po per​f ei​to; ago​r a, en​ve​-
lhe​c i​da, pa​r e​c ia pe​sa​da, gor​da, des​lei​xa​da. Pete era mais bai​xo que a es​po​sa; ti​-
nha pei​to lar​go e per​nas cur​tas, e con​se​guia su​m ir de qual​quer am​bi​e n​te sem dar
um pas​so. Era o ho​m em mais trans​pa​r en​te e in​vi​sí​vel que Jor​j a co​nhe​c ia. Os dois
che​ga​r am car​r e​ga​dos de pre​sen​tes para a neta e de crí​ti​c as para a fi​lha. Sem​pre
que iam vi​si​tá-la, pu​nham-se a des​f i​a r um ro​sá​r io de can​sa​ti​vas re​pro​va​ç ões e
im​pra​ti​c á​veis con​se​lhos. Nem bem en​tra​r a, Mary já co​m en​ta​va que Jor​j a pre​c i​-
sa​va lim​par as pás do exaus​tor. De​pois, co​lo​c an​do os pa​c o​tes jun​to à ár​vo​r e, ex​-
cla​m ou:
— Que fal​ta de ima​gi​na​ç ão! Por que não com​prou fi​tas mais co​lo​r i​das?
Cri​a n​ç a ado​r a pa​c o​te bo​ni​to, com mui​tas fi​tas, de to​das as co​r es.
Em ma​té​r ia de crí​ti​c a, Pete não fi​c a​va atrás; ao ar​r u​m ar a ban​de​j a de do​-
ces, mos​trou-se es​c an​da​li​za​do:
— Do​c es de pa​da​r ia...?! Você teve a co​r a​gem de não fa​zer bo​li​nhos para
sua fi​lha?! Ver​da​dei​r os bo​li​nhos de Na​tal...
— Pa​pai, não te​nho tem​po para isso... Tra​ba​lho mui​to, vou à uni​ver​si​da​de
e...
— Nao ve​nha me di​zer que é di​f í​c il ser mãe di​vor​c i​a ​da — in​ter​r om​peu-a o
ve​lho. — Es​tou can​sa​do de sa​ber que é di​f í​c il. Eu lhe dis​se que era di​f í​c il... Mas
es​ta​m os fa​lan​do de coi​sas sé​r i​a s, de tra​di​ç ões que não po​dem ser es​que​c i​das! O
que é um Na​tal sem bo​li​nhos fei​tos em casa?! Es​ta​m os dis​c u​tin​do prin​c í​pi​os!
— E isso mes​m o — Mary con​c or​dou. — Prin​c í​pi​os!
Jor​j a ain​da não se dei​xa​r a en​vol​ver pelo es​pí​r i​to do Na​tal, e, no pas​so em
que ia a car​r u​a ​gem, nun​c a che​ga​r ia lá. Com pai e mae fa​lan​do sem pa​r ar, di​zen​-
do sem​pre as mes​m as coi​sas, no eter​no tom de re​pri​m en​da... nem em mil anos
che​ga​r ia lá! Quem a sal​vou foi Ma​r eie.
Às seis e meia em pon​to, a me​ni​na apa​r e​c eu à por​ta do quar​to, um se​gun​do
de​pois de Jor​j a ter co​lo​c a​do o peru no for​no. Ain​da es​ta​va de ca​m i​so​la, os pe​zi​-
nhos nos chi​ne​los, lin​da como uma bo​ne​c a.
— Será que Pa​pai Noel trou​xe o “Mé​di​c o In​f an​til” que eu pedi?
— Isso não sei, mas trou​xe um mon​te de coi​sas — res​pon​deu Pete. — Ve​-
nha só ver.
Os olhos de Ma​r eie bri​lha​r am ao avis​tar a pi​lha de pa​c o​tes em​bai​xo da ár​vo​-
re, e sua con​ta​gi​a n​te ale​gria teve o dom de in​ter​r om​per os sermões dos avós. Du​-
ran​te al​guns mi​nu​tos, o apar​ta​m en​to en​c heu-se de ri​sos e ex​pressões de fe​li​c i​da​-
de.
A ga​r o​ta ha​via aber​to a me​ta​de dos pa​c o​tes quan​do o cli​m a de ale​gria em
fa​m í​lia co​m e​ç ou a mu​dar — ape​nas uma rá​pi​da amos​tra da tem​pes​ta​de que de​-
sa​ba​r ia mais tar​de. Com a voz an​gus​ti​a ​da, os olhos chei​os de lá​gri​m as, Ma​r eie
re​c la​m ou que Pa​pai Noel es​que​c e​r a o “Mé​di​c o In​f an​til”. Co​lo​c ou de lado uma
enor​m e bo​ne​c a, sem ao me​nos tirá-la da cai​xa, e ati​r ou-se so​bre os em​bru​lhos,
pro​c u​r an​do o úni​c o que re​a l​m en​te a in​te​r es​sa​va. Ha​via fre​ne​si ou de​ses​pe​r o nos
ges​tos com que ras​ga​va os pa​péis, ar​r an​c a​va as fi​tas e des​c ar​ta​va os brin​que​dos.
Jor​j a logo per​c e​beu que al​gu​m a coi​sa não ia bem. Mary e Pete ain​da pre​c i​sa​-
ram de vá​r i​os mi​nu​tos, mas, por fim, tam​bém no​ta​r am e co​m e​ç a​r am a pe​dir à
neta que exa​m i​nas​se me​lhor o con​te​ú​do de cada cai​xa, não jo​gas​se as coi​sas
para trás, pen​sas​se que os brin​que​dos eram frá​geis... Não con​se​gui​r am nada.
Jor​j a não ha​via dei​xa​do o “Mé​di​c o In​f an​til” jun​to à ár​vo​r e; pre​f e​r i​r a es​c on​-
dê-lo no ar​m á​r io, para fa​zer uma sur​pre​sa à fi​lha, e ago​r a ar​r e​pen​dia-se amar​-
ga​m en​te da idéia. Di​a n​te dos três úl​ti​m os pa​c o​tes, to​dos pe​que​nos de​m ais para
con​ter o que ela pro​c u​r a​va Ma​r eie co​m e​ç ou a tre​m er dos pés à ca​be​ç a. Mas...
pelo amor de Deus! O que esse “Mé​di​c o In​f an​til” po​de​r ia ter de tão im​por-
tan​te? Qual​quer ou​tro brin​que​do que Ma​r eie ga​nha​r a e dei​xa​r a de lado era
mui​to mais caro, mui​to mais bo​ni​to. Por que ela es​ta​va tão ob​c e​c a​da pelo “Mé​di​-
co In​f an​til”?
De​pois de iden​ti​f i​c ar to​dos os brin​que​dos, quan​do já não ha​via jun​to à ár​vo​r e
um úni​c o pa​c o​te fe​c ha​do, Ma​r eie pôs-se a cho​r ar, de​ses​pe​r a​da:
— Nao veio! Pa​pai Noel es​que​c eu! Ele es​que​c eu! Con​si​de​r an​do a enor​m e
quan​ti​da​de de pre​sen​tes que se es​pa​lha​vam pelo chão, aque​las lá​gri​m as pa​r e​c i​-
am ain​da mais es​tra​nhas. Mary e Pete olha​vam para a neta sem sa​ber se era o
caso de bri​gar com ela ou com Jor​j a, que a cri​a ​va tão mal.
Jor​j a es​c o​lheu o ca​m i​nho mais fá​c il para im​pe​dir que o Na​tal vi​r as​se guer​r a
an​tes mes​m o de ser fes​ta: cor​r eu a bus​c ar o brin​que​do es​c on​di​do. Quan​do vol​tou,
com o pa​c o​te nas mãos, Ma​r eie pra​ti​c a​m en​te sal​tou so​bre ela.
— Mas... o que está acon​te​c en​do com essa me​ni​na?! — Mary ar​r e​ga​lou os
olhos.
— O que esse tal de “Mé​di​c o In​f an​til” pode ter de tão es​pe​c i​a l? — Pete vi​-
rou-se para a fi​lha.
Ma​r eie ar​r an​c ou as fi​tas com um ges​to brus​c o, ras​gou o pa​pel do em​bru​lho,
e só quan​do se cer​ti​f i​c ou de que ti​nha nas mãos o so​nha​do brin​que​do foi que co​-
me​ç ou a se acal​m ar:
— Pa​pai Noel não es​que​c eu... — mur​m u​r ou.
— Nem to​dos os pre​sen​tes é Pa​pai Noel quem dá — co​m en​tou Jor​j a, apro​-
xi​m an​do-se da fi​lha. — Por que é que você não dá uma es​pi​a ​di​nha no car​tão? —
Pa​r e​c en​do de​sin​te​r es​sa​da, a me​ni​na obe​de​c eu e sor​r iu sem en​tu​si​a s​m o.
— E... do pa​pai...
Jor​j a sen​tiu o olhar de Mary e Pete, mas não teve co​r a​gem de vi​r ar-se para
en​c a​r á-los. Os dois sa​bi​a m que Alan es​ta​va em Aca-pul​c o, com a tal “Pi​m en​ti​-
nha”, e que ja​m ais se da​r ia ao tra​ba​lho de com​prar um pre​sen​te para Ma​r eie,
mui​to me​nos de man​dá-lo en​tre​gar com um car​tão. E Jor​j a sa​bia que eles não
con​c or​da​vam com as ar​ti​m a​nhas de que lan​ç a​va mão para ilu​dir a fi​lha.
Mais tar​de, quan​do es​ta​va cui​dan​do do peru, Mary apro​xi​m ou-se dela.
— Por que fez aqui​lo? — per​gun​tou bai​xi​nho. — Por que dis​se a Ma​r eie
que aque​le rato lhe man​dou o pre​sen​te que ela mais que​r ia?
An​tes de res​pon​der, Jor​j a vi​r ou o peru, re​gou-o com o mo​lho e re​c o​lo​c ou a
as​sa​dei​r a no for​no.
— Ma​r eie me​r e​c e ter um Na​tal fe​liz, como to​das as me​ni​nas. Que cul​pa
ela tem se Alan é um rato?
— Ela não tem cul​pa. Mas não se deve men​tir para as cri​a n​ç as. A ver​da​de
é a ver​da​de — Mary in​sis​tiu.
— Ela só tem sete anos, ma​m ãe. A ver​da​de, no caso dela, é tris​te de​m ais.
— Mais cedo ou mais tar​de Ma​r eie vai des​c o​brir quem é Alan... Você sabe
o que seu pai ou​viu di​zer so​bre a mu​lher que está vi​ven​do com ele?
Atur​di​da com a per​gun​ta, an​si​o​sa para mu​dar de as​sun​to, Jor​j a es​pi​ou o peru
mais uma vez e ex​c la​m ou:
— To​m a​r a que não fi​que mui​to seco!
A ma​no​bra não deu cer​to. Mary dis​pa​r ou a in​f or​m a​ç ão:
— Ela tra​ba​lha em dois cas​si​nos como call girl. Call girl... ga​r o​ta de pro​-
gra​m a... pros​ti​tu​ta! O pai de Ma​r eie está vi​ven​do com uma pros​ti​tu​ta! O que
acon​te​c eu com ele?! — Sem es​pe​r ar res​pos​ta, pro​nun​c i​ou seu ve​r e​di​to: — E me​-
lhor para vo​c ês duas que ele as es​que​ç a. Sabe Deus que do​e n​ç as deve ter, an​dan​-
do com uma pros​ti​tu​ta.
Pela ter​c ei​r a vez, Jor​j a abriu o for​no para exa​m i​nar o peru.
— Já lhe pedi para não fa​lar em Alan — res​m un​gou.
— Pen​sei que você gos​ta​r ia de sa​ber quem é a mu​lher que...
— Pois bem, ago​r a já sei. Que tal en​c er​r ar o as​sun​to?
— Mas... mi​nha fi​lha... já pen​sou se ele apa​r e​c er aqui de re​pen​te e dis​ser
que quer le​var Ma​r eie para Aca​pul​c o, ou para Dis​ney ​lân-dia, ou sei lá para
onde...? A po​bre ino​c en​te com aque​le pai de​pra​va​do...
— O que você está di​zen​do é ab​sur​do. Alan não quer nem lem​brar que
Ma​r eie exis​te! Por​que Ma​r eie é a pro​va viva das res​pon​sa​bi​li​da​des que ele de​ve​-
ria as​su​m ir e não quer as​su​m ir!
— Mas e se...
— Che​ga, ma​m ãe! Que mer​da!
Nao foi um gri​to, por​que as duas con​ti​nu​a ​vam a fa​lar em voz bai​xa, mas ha​-
via tan​to ran​c or nas pa​la​vras de Jor​j a que o efei​to foi ime​di​a ​to. Mary ca​lou-se,
ca​m i​nhou até a ge​la​dei​r a, abriu a por​ta e exa​m i​nou o con​te​ú​do.
— Você fez nho​que! — co​m en​tou.
— Sim, fiz, com mi​nhas pró​pri​a s mãos.
0 co​m en​tá​r io não foi fei​to com a in​ten​ç ão de ali​m en​tar a dis​c us​são, mas,
con​si​de​r an​do os “prin​c í​pi​os” de Pete, tal​vez pa​r e​c es​se uma pro​vo​c a​ç ão. Jor​j a
mor​deu os lá​bi​os e res​pi​r ou fun​do para não cho​r ar. Mary con​ti​nu​a ​va pa​r a​da di​-
an​te do re​f ri​ge​r a​dor aber​to.
— A sa​la​da tam​bém está pron​ta... E eu que pen​sei que você fos​se pre​c i​sar
de aju​da... Qual o quê... Você re​sol​veu tudo, já pre​pa​r ou o jan​tar...
Sem sa​ber o que fa​zer, Mary fe​c hou o re​f ri​ge​r a​dor e olhou em vol​ta à pro​-
cu​r a de al​gu​m a ou​tra coi​sa para elo​gi​a r. Ao ver seus olhos ma​r e​j a​dos de lá​gri​-
mas, Jor​j a cor​r eu para ela de bra​ç os aber​tos. Não ha​via o que di​zer, e, se hou​-
ves​se, não sa​be​r i​a m como di​zer, por isso abra​ç a​r am-se em si​lên​c io. Mi​nu​tos de​-
pois, Mary sa​c u​diu a ca​be​ç a:
— Não sei por que sou as​sim com você. Mi​nha mãe era as​sim, e a mãe
dela tam​bém. E eu ju​r ei que, com você, eu se​r ia di​f e​r en​te!
— Eu amo você... do jei​ti​nho que você é.
— Acho que o pro​ble​m a é que você é mi​nha úni​c a fi​lha. Se eu ti​ves​se tido
mais fi​lhos... dois ou três... acho que se​r ia mais fá​c il.
— A cul​pa é mi​nha. Te​nho an​da​do ten​sa, pre​o​c u​pa​da...
— Cla​r o que você está pre​o​c u​pa​da. — Mary abra​ç ou-a com mais for​ç a.
— Aque​le rato de​sa​pa​r e​c e, dei​xa Ma​r eie so​zi​nha, obri​ga você a tra​ba​lhar de dia
e es​tu​dar à noi​te... Você tem todo o di​r ei​to de es​tar ten​sa... Mas eu me or​gu​lho
tan​to de você! E pre​c i​so ter mui​ta co​r a​gem para en​f ren​tar a vida como você a
vem en​f ren​tan​do.
Os gri​tos de Ma​r eie in​ter​r om​pe​r am o ca​r i​nho​so di​á ​lo​go. O que será que ela
in​ven​tou ago​r a?, Jor​j a pen​sou. Apro​xi​m ou-se da por​ta da sala e viu Pete ten​tan​do
con​ven​c er a neta a brin​c ar com uma bo​ne​c a que lhe dera.
— Olhe só — di​zia o ve​lho. — Ela cho​r a quan​do você aper​ta a bar​r i​ga, ri
quan​do você faz có​c e​gas nas cos​tas...
— Não que​r o sa​ber des​sa dro​ga de bo​ne​c a! — Ma​r eie gri​tou ou​tra vez,
com a se​r in​ga de plás​ti​c o apon​ta​da para o avô. — O que eu que​r o é dar ou​tra in​-
je​ç ão!
— Mas já to​m ei mais de vin​te in​j e​ç ões hoje... — Pete ge​m eu. — Es​tou
can​sa​do...
— Eu pre​c i​so pra​ti​c ar... — su​pli​c ou a me​ni​na, lan​ç an​do-lhe um olhar afli​to.
— Se eu não co​m e​ç ar a apren​der ago​r a, nun​c a vou con​se​guir ser mi​nha pró​pria
mé​di​c a... Por fa​vor...
Pete vi​r ou-se para a fi​lha e fez uma ca​r e​ta de ir​r i​ta​ç ão. Mary fran​ziu as so​-
bran​c e​lhas:
— O que é que ela tem com esse “Mé​di​c o In​f an​til”?!
— Ah... Eu tam​bém gos​ta​r ia de sa​ber... — sus​pi​r ou Jor​j a.
— Mui​to sé​r ia, Ma​r eie apli​c ou a in​j e​ç ão no bra​ç o do avô. Jor​j a viu que sua
tes​ta bri​lha​va de suor.
— Eu tam​bém gos​ta​r ia de sa​ber... — re​pe​tiu.
Bos​ton, Mas​sac​bu​setts
Foi o pior Na​tal da vida de Gin​ger Weiss.
Ape​sar de ser ju​deu, seu pai ja​m ais dei​xa​r a de ce​le​brar o Na​tal, por que di​-
zia que “paz na ter​r a aos ho​m ens de boa von​ta​de” não po​de​r ia fa​zer mal a nin​-
guém. Mes​m o de​pois de sua mor​te, Gin​ger con​ti​nu​a ​r a sen​tin​do que o Na​tal era
mais que um sim​ples fe​r i​a ​do, era um dia de paz e har​m o​nia en​tre os ho​m ens.
Até aque​le ano, o Na​tal ja​m ais a de​pri​m i​r a.
Ge​or​ge e Rita fi​ze​r am o pos​sí​vel e o im​pos​sí​vel para que ela não se sen​tis​se
des​lo​c a​da, mas não con​se​gui​r am des​f a​zer-lhe a im​pres​são de que se es​ta​va in​-
tro​m e​ten​do na in​ti​m i​da​de de uma co​m e​m o​r a​ç ão fa​m i​li​a r. Os três fi​lhos do ca​sal
ha​vi​a m che​ga​do ao Mi​r an​te para pas​sar al​guns dias de fé​r i​a s, e os ne​tos en​c hi​a m
a casa de ru​í​dos e ri​sa​das. To​dos os Han​naby, do mais ve​lho ao mais moço, es​-
for​ç a​vam-se para in​c luí-la nos ri​tos tra​di​c i​o​nais da fami-
lia, como reu​nir-se para fa​zer pi​po​c a na co​zi​nha ou ba​ter de por​ta em por​ta
pela vi​zi​nhan​ç a para de​se​j ar fe​liz Na​tal.
Na ma​nhã de Na​tal, lá es​ta​va ela, ven​do as cri​a n​ç as ata​c a​r em fu​r i​o​sa​m en​te
a mon​ta​nha de pre​sen​tes que as es​pe​r a​va jun​to à ár​vo​r e en​f ei​ta​da de bo​las, ve​las
e bis​c oi​tos. Como to​dos os adul​tos, es​ta​va sen​ta​da no chão, abrin​do pa​c o​tes e en​-
si​nan​do as cri​a n​ç as a ma​nu​se​a ​r em os no​vos brin​que​dos. Du​r an​te duas ou três ho​-
ras, che​gou a es​que​c er os pro​ble​m as e dei​xou-se en​vol​ver pela ale​gria da fes​ta.
A hora do al​m o​ç o, po​r ém — um al​m o​ç o far​to, mas sim​ples e leve, es​pé​c ie
de “ape​r i​ti​vo” para o gran​de jan​tar —, a ale​gria já ha​via su​m i​do, e Gin​ger vol​ta​-
va a sen​tir-se fora de lu​gar. Quan​to mais ou​via as ri​sa​das e as con​ver​sas so​bre
“os ve​lhos tem​pos”, mais se lem​bra​va dos tem​pos em que sua vida era uma es​-
tra​da cla​r a, sem obs​tá​c u​los in​trans​po​ní​veis e sem tro​pe​ç os ini​m a​gi​ná​veis.
De​pois do al​m o​ç o, dis​se que es​ta​va can​sa​da e re​f u​gi​ou-se no quar​to. A pai​sa​-
gem que avis​ta​va da ja​ne​la acal​m ou-a um pou​c o, mas não a fez sen​tir-se me​-
lhor. Se, pelo me​nos, pu​des​se ter cer​te​za de que Pa​blo Jack​son lhe te​le​f o​na​r ia na
ma​nhã se​guin​te... e lhe di​r ia que es​tu​da​r a seu caso, pes​qui​sa​r a ou​tros ca​sos se​-
me​lhan​tes de blo​quei​os de me​m ó​r ia... e es​ta​va pron​to para hip​no​ti​zá-la ou​tra vez!
Para sur​pre​sa de Gin​ger, nem Ge​or​ge nem Rita pa​r e​c e​r am es​pan​ta​dos com
a vi​si​ta que ha​via fei​to a Pa​blo. Mos​tra​r am-se pre​o​c u​pa​dos, é cla​r o, por​que ela
sa​í​r a so​zi​nha e fi​ze​r am-na pro​m e​ter que, no fu​tu​r o, pe​di​r ia a Rita, ao mo​to​r is​ta
ou a qual​quer ou​tro em​pre​ga​do da casa que a le​vas​se aon​de qui​ses​se ir. Não dis​-
se​r am uma pa​la​vra so​bre a idéia de ten​tar ou​tro ca​m i​nho de cura... ain​da que
achas​sem mui​to es​tra​nho aque​le ca​m i​nho da hip​no​se pra​ti​c a​da por um má​gi​c o.
Por mais bela que fos​se a pai​sa​gem, Gin​ger aca​bou can​san​do-se de fi​c ar em
pé jun​to à ja​ne​la. Apro​xi​m ou-se da cama e sur​preen​deu-se ao ver dois li​vros co​-
lo​c a​dos na mesa-de-ca​be​c ei​r a. Um de​les era um ro​m an​c e de Tim Powers, au​tor
que ela já co​nhe​c ia; o ou​tro, uma có​pia ain​da não en​c a​der​na​da de... tal​vez um
ro​m an​c e...
Cre​pús​c u​lo na Ba​bi​lô​nia. Quem os te​r ia dei​xa​do ali? Seu quar​to vi​via cheio
de li​vros, to​dos tra​zi​dos da bi​bli​o​te​c a de Ge​or​ge e Rita, por​que, nas úl​ti​m as se​m a​-
nas, Gin​ger não fa​zia pra​ti​c a​m en​te coi​sa al​gu​m a se​não ler. Mas ti​nha cer​te​za de
que o li​vro de Tim Powers não fora re​ti​r a​do da bi​bli​o​te​c a jun​to ao sa​lão, e ja​-
mais ou​vi​r a fa​lar em Cre​pús​c u​lo na Ba​bi​lô​nia.
O ro​m an​c e de Powers pa​r e​c ia óti​m o: tra​ta​va de va​ga​bun​dos vi​a ​j an​do pelo
país, du​r an​te a Re​vo​lu​ç ão Ame​r i​c a​na, fa​zen​do sua pró​pria guer​r a par​ti​c u​lar con​-
tra os sol​da​dos in​gle​ses... Ja​c ob ado​r a​va ro​m an​c es his​tó​r i​c os. En​quan​to fo​lhe​a ​va
o li​vro, Gin​ger viu um pa​pel co​la​do à capa do ou​tro vo​lu​m e. Exa​m i​nou-o com
aten​ç ão e re​c o​nhe​c eu a as​si​na​tu​r a de uma ami​ga de Rita, que fa​zia rese-‘ nhas
para o Glo​be. Sem​pre que lhe caía nas mãos um li​vro in​te​r es​san​te, ela o man​da​-
va para Rita, mes​m o an​tes do lan​ç a​m en​to nas li​vra​r i​a s. Sa​ben​do dis​so, Gin​ger
con​c luiu que os li​vros ha​vi​a m aca​ba​do de che​gar, e Rita os lar​ga​r a ali por sa​ber
que não te​r ia tem​po de ler du​r an​te as fes​tas.
Dei​xan​do de lado o ro​m an​c e de Powers, Gin​ger apa​nhou Cre​pús​c u​lo na Ba​-
bi​lô​nia. Não co​nhe​c ia o au​tor. Do​m i​nick Cor​vai-sis, mas achou in​te​r es​san​te o pe​-
que​no re​su​m o da his​tó​r ia, im​pres​sa na so​bre​c a​pa. Cor​r eu os olhos pela pri​m ei​r a
pá​gi​na, vol​tou ao pri​m ei​r o pa​r á​gra​f o para re​ler com mais cui​da​do... e não pôde
mais lar​gar o li​vro. Ain​da es​ta​va sen​ta​da na cama; para aco​m o​dar-se me​lhor, le​-
van​tou-se e ca​m i​nhou até uma das pol​tro​nas jun​to à la​r ei​r a. No bre​ve tra​j e​to, e
só en​tão, viu a fo​to​gra​f ia do au​tor na con​tra​c a​pa. Sen​tiu a pele ar​r e​pi​a r-se. Tre​-
meu dos pés à ca​be​ç a... Por um mo​m en​to, teve a im​pres​são de que aque​la fo​to​-
gra​f ia, como as lu​vas ou o of​tal​m os​c ó​pio, de​sen​c a​de​a ​r ia nova cri​se. Ten​tou jo​gar
o li​vro lon​ge, e não pôde. Ten​tou an​dar para a pol​tro​na, e tam​bém não con​se​guiu.
En​tão fe​c hou os olhos, res​pi​r ou fun​do, uma, duas, três ve​zes, es​pe​r an​do que a
pul​sa​ç ão vol​tas​se ao nor​m al.
Quan​do olhou no​va​m en​te a fo​to​gra​f ia, o ros​to es​tam​pa​do na con​tra​c a​pa ain​-
da a per​tur​ba​va, mas não tan​to como da pri​m ei​r a vez que o vira. Ti​nha cer​te​za
de que co​nhe​c ia aque​le ho​m em...
o ros​to não lhe era es​tra​nho... co​nhe​c e​r a-o em cir​c uns​tân​c i​a s... de​sa​gra​dá​-
veis, mas não con​se​guia lem​brar quan​do ou onde. A bi​o​gra​f ia do au​tor, logo abai​-
xo da fo​to​gra​f ia, di​zia que ha​via vi​vi​do em Por​tland, Ore​gon, e atu​a l​m en​te mo​r a​-
va em La​gu​na Be​a ​c h, Ca​li​f ór​nia... lu​ga​r es onde ela ja​m ais ha​via pos​to os pés.
Onde po-de​r i​a m ter-se co​nhe​c i​do? Do​m i​nick Cor​vai​sis, pa​r e​c ia ter cer​c a de 35
anos... Um ho​m em atra​e n​te, pa​r e​c i​do com An​thony Per-kins quan​do jo​vem. Tao
atra​e n​te que pa​r e​c ia ina​c re​di​tá​vel ela tê-lo es​que​c i​do...
A re​a ​ç ão que o ros​to da​que​le ho​m em pro​vo​c a​r a era es​tra​nha, mas em ou​tros
tem​pos Gin​ger não se te​r ia pre​o​c u​pa​do mui​to. Nos úl​ti​m os dois me​ses, po​r ém,
apren​deu a res​pei​tar to​dos os si​nais, por mais in​sig​ni​f i​c an​tes que pa​r e​c es​sem à
pri​m ei​r a vis​ta.
Sen​tou-se, fi​xou os olhos no ros​to de Do​m i​nick Cor​vai​sis, e con​c en​trou-se o
mais que pôde, ten​tan​do lem​brar. Por fim, como se adi​vi​nhas​se que o Cre​pús​c u​lo
da Ba​bi​lô​nia pro​vo​c a​r ia mu​dan​ç as pro​f un​das em sua vida, re​c o​m e​ç ou a ler.
Chi​c a​go, Il​li​nois
0 pa​dre Ste​f an Wy ​c a​zik saiu do Hos​pi​tal Uni​ver​si​tá​r io, en​trou no car​r o e ru​-
mou para o pré​dio onde fun​c i​o​na​va o De​par​ta​m en​to de In​ves​ti​ga​ç ões Ci​e n​tí​f i​c as
da Po​lí​c ia de Chi​c a​go. Era dia de Na​tal, po​r ém os em​pre​ga​dos da pre​f ei​tu​r a tra​-
ba​lha​vam duro, lim​pan​do a neve das cal​ç a​das.
No la​bo​r a​tó​r io do DIC ha​via ape​nas dois fun​c i​o​ná​r i​os de plan​tão, as ve​lhas
sa​las do ve​lho pré​dio de​ser​tas como uma tum​ba egíp​c ia es​c on​di​da sob to​ne​la​das
de areia e pe​dra.
Em cir​c uns​tân​c i​a s nor​m ais, a po​lí​c ia ja​m ais con​c or​da​r ia em res​pon​der às
per​gun​tas do pa​dre Wy ​c a​zik. Mas, em pri​m ei​r o lu​gar, para o sa​c er​do​te, aque​las
não eram cir​c uns​tân​c i​a s nor​m ais; em se​gun​do lu​gar, me​ta​de da for​ç a pú​bli​c a de
Chi​c a​go era com​pos​ta de po​li​c i​a is ca​tó​li​c os, o que sig​ni​f i​c a​va que o pa​dre Wy ​c a​-
zik po​dia con​tar com a so​li​da​r i​e ​da​de de, pelo me​nos, al​gu​m as de​ze​nas de fun​c i​o​-
ná​r i​os. Vá​r i​os de​les ha​vi​a m fa​c i​li​ta​do seu aces​so pe​los cor​r e​do​r es tu​m u​la​r es do
DIC até a pre​sen​ç a do dr. Murphy Ai​m es.
Gor​do e ca​r e​c a, o dr. Ai​m es ti​nha um bi​go​de ralo que lhe pen​dia dos can​tos
da boca. O pa​dre Wy ​c a​zik já ha​via fa​la​do com ele pelo te​le​f o​ne, an​tes de ir vi​si​-
tar o pa​tru​lhei​r o Tolk no hos​pi​tal, e por isso era aguar​da​do no la​bo​r a​tó​r io. Os dois
ho​m ens sen​ta​r am-se, um fren​te ao ou​tro, jun​to a um dos bal​c ões da sala prin​c i​-
pal do la​bo​r a​tó​r io, so​bre o qual es​ta​vam ar​r u​m a​dos, à es​pe​r a, uma pas​ta de do​-
cu​m en​tos e vá​r i​os ou​tros ob​j e​tos. O dr. Ai​m es foi o pri​m ei​r o a fa​lar:
— An​tes de mais nada, gos​ta​r ia de di​zer-lhe que ja​m ais con​c or​da​r ia em
fa​lar com o se​nhor so​bre o in​c i​den​te que en​vol​veu o pa​tru​lhei​r o Tolk, se hou​ves​se
a mais re​m o​ta pos​si​bi​li​da​de de que o caso che​gas​se a jul​ga​m en​to. Como os dois
as​sal​tan​tes fo​r am mor​tos e não há a quem acu​sar, po​de​m os con​ver​sar.
— Com​preen​do e res​pei​to sua po​si​ç ão. E lhe agra​de​ç o mui​to o fa​vor de
me re​c e​ber.
Os olhos de Ai​m es bri​lha​vam de cu​r i​o​si​da​de.
— Ain​da não con​se​gui en​ten​der exa​ta​m en​te o que há de tão in​te​r es​san​te
nes​se caso — dis​se. — Nem por que o se​nhor pa​r e​c e tão pre​o​c u​pa​do.
— Para ser sin​c e​r o, eu tam​bém ain​da não con​se​gui en​ten​der.
— Re​pli​c ou o pá​r o​c o, ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a.
Não dis​se​r a uma úni​c a pa​la​vra cla​r a so​bre o caso nem aos ami​gos a quem
pe​di​r a aju​da para en​trar em con​ta​to com al​guém da po​lí​c ia, e tam​bém não ti​nha
in​ten​ç ão de ser mui​to ex​plí​c i​to com aque​le dr. Ai​m es. Tudo por uma úni​c a ra​zão:
se dis​ses​se a qual​quer um de​les o que, em sua opi​ni​ã o, tor​na​va o caso tão in​te​r es​-
san​te, pen​sa​r i​a m que es​ta​va lou​c o e de​sis​ti​r i​a m de aju​dá-lo.
— Bem... — Ai​m es deu de om​bros, con​f or​m a​do em não ver sa​tis​f ei​ta sua
cu​r i​o​si​da​de. — O se​nhor per​gun​tou so​bre as ba​las.
— Abriu um en​ve​lo​pe plás​ti​c o e es​va​zi​ou-o na pal​m a da mão, exi​bin​do
dois pe​que​nos frag​m en​tos de chum​bo. — Aqui es​tão as ba​las que fo​r am ex​tra​í​-
das do tó​r ax do pa​tru​lhei​r o Tolk.
— Es​ses frag​m en​tos já fo​r am exa​m i​na​dos, não? — O pa​dre apa​nhou um
de​les e apro​xi​m ou-o dos olhos. — Creio que isso é pro​c e​di​m en​to ro​ti​nei​r o. E o
peso de​les era... nor​m al, para o ca​li​bre... que de​ve​r i​a m ter?
— Se o se​nhor está per​gun​tan​do se os pro​j é​teis es​tão re​du​zi​dos a frag​m en​-
tos tão pe​que​nos por​que ba​te​r am em al​gu​m a pa​r e​de, a res​pos​ta é não. Na ver​da​-
de, es​ses pro​j é​teis de​vem ter ba​ti​do em al​gum osso, e é es​tra​nho que os frag​-
men​tos não se​j am ain​da me​no​r es. Mas, para to​dos os efei​tos, es​ses pe​da​ç os de
chum​bo es​tão nor​m ais.
— O que eu que​r ia sa​ber é se o peso des​se chum​bo é o peso nor​m al do
chum​bo de uma bala de ca​li​bre trin​ta e oito. Po​de​r ia ter ha​vi​do al​gum de​f ei​to de
fa​bri​c a​ç ão nes​sas ba​las, por exem​plo?
— Oh, não, cla​r o que não. Es​tão nor​m ais. Não há dú​vi​da.
— Es​sas ba​las en​tão são gran​des... ca​pa​zes de cau​sar ter​r í​veis fe​r i​m en​tos a
um ho​m em — co​m en​tou o pá​r o​c o pen​sa​ti​vo. — E quan​to à arma?
Ai​m es apa​nhou ou​tro en​ve​lo​pe plás​ti​c o, mai​or que o pri​m ei​r o, e re​ti​r ou um
re​vól​ver. O re​vól​ver do qual sa​í​r am as ba​las que fe​r i​r am Tolk.
— Tam​bém foi exa​m i​na​do? — per​gun​tou Ste​f an. — Tes​te de ba​lís​ti​c a, ti​-
ros?
— Tudo. Pro​c e​di​m en​to ro​ti​nei​r o.
— E não há nada de... es​tra​nho nes​sa arma? Nada que pu​des​se ter fei​to o
tiro não sair... como de​ve​r ia sair? Nada que pu​des​se ter fei​to com que o pro​j é​til
fos​se lan​ç a​do a bai​xa ve​lo​c i​da​de, por exem​plo?
— E uma per​gun​ta bem es​tra​nha... De qual​quer modo, a res​pos​ta é não. E
uma óti​m a arma, em per​f ei​to es​ta​do.
O pa​dre Wy ​c a​zik re​c o​lo​c ou os frag​m en​tos de chum​bo no en​ve​lo​pe e le​van​-
tou os olhos:
— E os car​tu​c hos? Po​de​r i​a m ter me​nos pól​vo​r a que o nor​m al? Po​de​r i​a m
es​tar mal​c ar​r e​ga​dos?
— Está ten​tan​do des​c o​brir por que dois ti​r os de trin​ta e oito não aca​ba​r am
com o pa​tru​lhei​r o Tolk? — per​gun​tou Ai​m es, os olhos mui​to aber​tos.
O ve​lho sa​c er​do​te fez que sim com a ca​be​ç a, e con​ti​nuou com o in​ter​r o​ga​tó​-
rio.
—-So​bra​r am ba​las no tam​bor do re​vól​ver?
— Duas. E o ho​m em ti​nha ain​da mais mu​ni​ç ão nos bol​sos do ca​sa​c o. Mais
uma dú​zia de ba​las.
— O se​nhor che​gou a exa​m i​nar as ba​las que fi​c a​r am no tam​bor?
— Para quê? — Ai​m es ar​r e​ga​lou ain​da mais os olhos.
— Po​de​r ia abrir um des​ses car​tu​c hos ago​r a?
— Sim... mas por quê? O que o se​nhor está pro​c u​r an​do?
O pá​r o​c o de San​ta Ber​nar​det​te sus​pi​r ou e ba​lan​ç ou a ca​be​ç a:
— Tem toda a ra​zão de fi​c ar in​tri​ga​do, e eu gos​ta​r ia mui​to de agra​de​c er-
lhe a aten​ç ão que está me dan​do, mas ain​da não pos​so lhe di​zer nada. Como os
mé​di​c os, os ad​vo​ga​dos e os po​li​c i​a is, os pa​dres são res​pon​sá​veis por se​gre​dos
que, às ve​zes, não de​vem re​ve​lar a nin​guém. Só pos​so pro​m e​ter-lhe que, caso as
cir​c uns​tân​c i​a s me per​m i​tam dar as ex​pli​c a​ç ões que o se​nhor tem o di​r ei​to de es​-
pe​r ar, vol​ta​r ei aqui e lhe con​ta​r ei tudo.
Ai​m es fran​ziu as so​bran​c e​lhas e en​c a​r ou o ve​lho, como que ava​li​a n​do os ris​-
cos. Ste​f an não fu​giu ao olhar; o ou​tro le​van​tou-se e apa​nhou um ter​c ei​r o en​ve​lo​-
pe, que con​ti​nha os car​tu​c hos não-dis​pa​r a​dos:
— Es​pe​r e aqui — dis​se.
Vin​te mi​nu​tos de​pois, vol​tou com uma pe​que​na ban​de​j a bran​c a e, so​bre ela,
as duas ba​las aber​tas e des​m on​ta​das.
— E aqui que a agu​lha en​tra — ex​pli​c ou, apon​tan​do uma pe​que​na peça ar​-
re​don​da​da com um furo mi​n​ús​c u​lo ao cen​tro — e pas​sa para o com​par​ti​m en​to
onde fica ar​m a​ze​na​da a pól​vo​r a. Até esse pon​to, tudo per​f ei​to. Na ou​tra ex​tre​m i​-
da​de do car​tu​c ho está a cáp​su​la com a bu​c ha e o chum​bo, en​vol​to nes​sa es​pé​c ie
de capa de co​bre. Todo e qual​quer tipo de pro​j é​til apre​sen​ta es​sas ra​nhu​r as em
vol​ta, onde é co​lo​c a​da uma gra​xa que fa​c i​li​ta sua pas​sa​gem pelo cano da arma.
De um lado, a en​tra​da da agu​lha; de ou​tro, a cáp​su​la. En​tre uma ex​tre​m i​da​de e
ou​tra fica a pól​vo​r a, no que cos​tu​m a​m os cha​m ar de “câ​m a​r a de com​bus​tão”.
Aqui está o ma​te​r i​a l que ex​traí da câ​m a​r a de com​bus​tão des​sa bala. Está ven​do
es​ses flo​c os mi​n​ús​c u​los, cin​zen​tos? E ni​tro​c e​lu​lo​se, ma​te​r i​a l al​ta​m en​te com​bus​tí​-
vel que se in​f la​m a ao ser atin​gi​do pela
fa​ís​c a da en​tra​da da agu​lha. Quan​do a ni​tro​c e​lu​lo​se ex​plo​de, a cáp​su​la é ex​-
pe​li​da para fora do car​tu​c ho. A câ​m a​r a de com​bus​tão es​ta​va cheia de ni​tro​c e​lu​-
lo​se. Para evi​tar vol​tar ao la​bo​r a​tó​r io, abri tam​bém a se​gun​da bala. Não há a
me​nor som​bra de dú​vi​da. As duas es​tão per​f ei​tas. O ho​m em que fe​r iu o pa​tru​-
lhei​r o Tolk es​ta​va car​r e​ga​do com ex​c e​len​te mu​ni​ç ão Re​m ing​ton, em per​f ei​to es​-
ta​do. Tolk é um ho​m em de sor​te. Mui​ta sor​te...
New York, New York
Jack Twist pas​sou o Na​tal na clí​ni​c a ao lado de Jenny. Nos fe​r i​a ​dos era ain​da
mais tris​te pas​sar as tar​des com a es​po​sa, po​r ém se​r ia mui​to pior pen​sar que ela
es​ta​r ia lá so​zi​nha.
‘ Em​bo​r a Jenny ti​ves​se pas​sa​do em coma pro​f un​da mais de dois ter​ç os de
sua vida de ca​sa​dos, Jack ain​da a ama​va como an​ti​ga​m en​te. Fa​zia mais de oito
anos que não a ou​via fa​lar nem a via sor​r ir. Já não po​dia bei​j á-lo, mas, para ele,
ain​da era como se na​que​la cama es​ti​ves​se Jenny Mae Ale​xan​der, sua lin​da noi​-
va.
Na pri​são do di​ta​dor la​ti​no-ame​r i​c a​no, Jack man​ti​ve​r a-se vivo gra​ç as à cer​-
te​za de que Jenny o es​pe​r a​va em casa, sen​tia sau​da​de, pre​o​c u​pa​va-se com ele e
re​za​va to​das as noi​tes para que Deus o le​vas​se de vol​ta. Ao lon​go do cal​vá​r io de
fome e tor​tu​r as, era essa cer​te​za que o im​pe​dia de en​lou​que​c er, a cer​te​za de que,
mais dia me​nos dia reen​c on​tra​r ia o abra​ç o de Jenny, sen​ti​r ia seu ca​lor, ou-vi​r ia
seu riso. Um fio de es​pe​r an​ç a, mui​to tê​nue, que o se​pa​r a​va da mor​te e da lou​c u​-
ra.
Dos qua​tro sol​da​dos que fo​r am cap​tu​r a​dos, ape​nas Jack e Os​c ar Wes​ton so​-
bre​vi​ve​r am e con​se​gui​r am vol​tar para casa. A fuga tam​bém fora ina​c re​di​tá​vel.
Pas​sa​r am qua​se um ano à es​pe​r a de que al​guém os res​ga​tas​se, cer​tos de que seu
país ja​m ais os dei​xa​r ia en​tre​gues à sa​nha da​que​les ani​m ais. As ve​zes, che​ga​vam
a con-je​tu​r ar so​bre a for​m a de res​ga​te: al​gum co​m an​do de eli​te iria bus​c á-los ou
o go​ver​no ame​r i​c a​no op​ta​r ia pe​los ca​nais di​plo​m á​ti​c os? Mes​m o de​pois de onze
me​ses de es​pe​r a, ain​da es​pe​r a​vam, po​r ém co​m e​ç a​va a ser ar​r is​c a​do de​m ais
con​ti​nu​a r lá. Es​ta​vam mui​to ma​gros e fi​si​c a​m en​te de​bi​li​ta​dos; ha​vi​a m so​f ri​do
sur​tos fre​qüen-tes de in​c on​tá​veis fe​bres tro​pi​c ais, ne​nhum de​les tra​ta​do con​ve​ni​-
en​te​m en​te. Es​pe​r ar mais se​r ia sui​c í​dio.
Ha​via uma úni​c a pos​si​bi​li​da​de de fu​gir, nos ra​r os dias em que eram re​ti​r a​dos
da cela e le​va​dos ao tri​bu​nal de Jus​ti​ç a do Povo, o que ocor​r ia mais ou me​nos
uma vez por mês. O tri​bu​nal fun​c i​o​na​va num pré​dio cla​r o e lim​po, no cen​tro da
ca​pi​tal, e ali o go​ver​no di​ta​to​r i​a l os exi​bia à im​pren​sa in​ter​na​c i​o​nal para pro​-
var ao mun​do que tra​ta​va bem to​dos os pri​si​o​nei​r os. An​tes de sair da cela, Jack e
Os​c ar eram obri​ga​dos a to​m ar ba​nho, bar​be​a r-se e tro​c ar de rou​pa. No tri​bu​nal,
al​ge​m a​vam-lhes as mãos por bai​xo da mesa e os co​lo​c a​vam fren​te às câ​m a​r as
de te​le​vi​são, para res​pon​der às per​gun​tas dos jor​na​lis​tas. Eles res​pon​di​a m a to​-
das com pa​la​vrões e obs​c e​ni​da​des, o que não al​te​r a​va nada, por​que os ta​pes
eram edi​ta​dos e suas vo​zes subs​ti​tu​í​das pe​las vo​zes de agen​tes trei​na​dos para fa​-
lar ex​c e​len​te in​glês.
De​pois dis​so eram en​tre​vis​ta​dos pe​los jor​na​lis​tas atra​vés de um cir​c ui​to in​-
ter​no de te​le​vi​são — o que cons​ti​tu​ía ou​tro ble​f e, pois os jor​na​lis​tas fi​c a​vam fe​-
cha​dos numa sala à par​te e ou​vi​a m as res​pos​tas dos agen​tes sen​ta​dos aos mi​c ro​-
fo​nes, fora do al​c an​c e das câ​m a​r as.
Nos pri​m ei​r os dias do dé​c i​m o pri​m ei​r o mês de pri​são, Jack e Os​c ar co​m e​ç a​-
ram a pla​ne​j ar a fuga, sa​ben​do que de​vi​a m apro​vei​tar os mo​m en​tos que pas​sa​-
vam fora do cam​po. Já não ti​nham os mús​c u​los for​tes e o ex​c e​len​te pre​pa​r o fí​si​-
co de an​tes, e suas úni​c as ar​m as eram os es​ti​le​tes que con​se​gui​r am fa​bri​c ar afi​-
an​do os​sos de rato nas pe​dras da cela. Afi​a ​dos como fa​c as e fi​nos como agu​lhas,
os es​ti​le​tes eram, con​tu​do, mi​se​r a​vel​m en​te pre​c á​r i​os para en​f ren​tar o ar​m a​m en​-
to da guar​da que os vi​gi​a ​va dia e noi​te. Ain​da as​sim, Jack e Os​c ar re​sol​ve​r am ar​-
ris​c ar.
Para sur​pre​sa de am​bos, a fuga foi um su​c es​so. De​pois de che​gar à pri​são
ofi​c i​a l, fo​r am en​tre​gues à vi​gi​lân​c ia de um úni​c o guar​da que os le​vou para to​m ar
ba​nho. O guar​da dei​xou a arma no col​dre e o col​dre fe​c ha​do, pro​va​vel​m en​te
por​que os ba​nhei​r os fi​c a​vam na área cen​tral da pri​são, o pon​to mais pro​te​gi​do de
todo o com​ple​xo car​c e​r á​r io. Além dis​so o guar​da ima​gi​na​va que Jack e Os​c ar
es​ta​vam fra​c os de​m ais para ten​tar qual​quer coi​sa. A sur​pre​sa foi o gran​de ali​a ​do
dos dois pri​si​o​nei​r os que sal​ta​r am so​bre o guar​da e o ma​ta​r am a gol​pes de es​ti​le​-
te, sem fa​zer o me​nor ru​í​do.
Jack e Os​c ar con​f is​c a​r am a arma e a mu​ni​ç ão do mor​to e dis​pa​r a​r am pe​los
cor​r e​do​r es, ar​r i​c an​do-se a ser vis​tos e re​c ap​tu​r a​dos. Por sor​te não ha​via na pri​-
são ofi​c i​a l o mes​m o rí​gi​do es​que​m a de se​gu​r an​ç a dos cam​pos de ree​du​c a​ç ão, de
modo que logo con​se​gui​r am che​gar ao piso in​f e​r i​or, de onde se​gui​r am para o
almo-xa​r i​f a​do; lá en​c on​tra​r am as ram​pas de des​c ar​ga e a sa​í​da para a rua.
Sete ou oito cai​xas aca​ba​vam de ser dei​xa​das jun​to à en​tra​da, ti​r a​das de um
ca​m i​nhão es​ta​c i​o​na​do fren​te a uma das sa​í​das. O mo​to​r is​ta dis​c u​tia com ou​tro
ho​m em, am​bos sa​c u​din​do fo​lhas e fo​lhas de pa​pel, um no na​r iz do ou​tro. Não ha​-
via mais nin​guém por per​to. Sem​pre dis​c u​tin​do, os dois ho​m ens en​c a​m i​nha​r am-
se para o es​c ri​tó​r io en​vi​dra​ç a​do, do ou​tro lado do al​m o​xa​r i​f a​do; Jack e Os​c ar en​-
fi​a ​r am-se no ca​m i​nhão ain​da car​r e​ga​do de cai​xas a se​r em en​tre​gues. Em pou​-
cos mi​nu​tos, o mo​to​r is​ta vol​tou, res​m un​gan​do pa​la​vrões, en​trou na ca​bi​ne do ca​-
mi​nhão, ba​teu a por​ta com rai​va e par​tiu rumo à ci​da​de. Logo de​pois so​a ​r am os
alar​m es da pri​são.
Dez mi​nu​tos e vá​r i​os quar​tei​r ões mais tar​de, o ca​m i​nhão pa​r ou. O mo​to​r is​ta
abriu a por​ta tra​sei​r a e apa​nhou uma das vá​r i​a s cai​xas que ain​da le​va​va, sem
sus​pei​tar que Jack e Os​c ar es​ta​vam a me​nos de um pal​m o de dis​tân​c ia, es​c on​di​-
dos atrás dos vo​lu​m es. Com a cai​xa nos bra​ç os, o ho​m em di​r i​giu-se ao pré​dio
em fren​te ao qual ha​via es​ta​c i​o​na​do. Nes​se mo​m en​to os dois fu​gi​ti​vos dei​xa​r am
o ca​m i​nhão.
Es​ta​vam num bair​r o que não co​nhe​c i​a m, de ruas imun​das e ca​sas ve​lhas. Ali
en​c on​tra​r am ho​m ens e mu​lhe​r es qua​se mal​tra​pi​lhos, gen​te mi​se​r á​vel e des​va​li​da
que não lhes ne​gou aju​da; ali sen​ti​r am-se en​tre ir​m ãos de in​f or​tú​nio. Quan​do
caiu a noi​te, abas​te​c i​dos com a pou​c a co​m i​da que pu​de​r am con​se​guir, par​ti​-
ram na di​r e​ç ão da sel​va. Pelo ca​m i​nho rou​ba​r am uma foi​c e de uma
fa​zen​da, al​gu​m as ma​ç ãs, um aven​tal de cou​r o, sa​c os de ani​a ​gem que po​de​-
rí​a m ser​vir de pro​te​ç ão para os pés quan​do con​su​m is​sem as san​dá​li​a s que usa​-
vam na pri​são, e um ca​va​lo. An​tes de ama​nhe​c er, che​ga​r am à sel​va, dei​xa​r am o
ca​va​lo e pros​se​gui​r am a pé. Es​ta​vam exaus​tos e fa​m in​tos, ar​m a​dos ape​nas com
a foi​c e que rou​ba​r am e o re​vól​ver que ha​vi​a m ti​r a​do do guar​da; sem ins​tru​m en​-
tos pe​los quais se ori​e n​tar, gui​a n​do-se pelo sol e pe​las es​tre​las, ru​m a​r am para o
nor​te, na di​r e​ç ão da fron​tei​r a, mais de cem qui​lô​m e​tros adi​a n​te.
Fora como vi​a ​j ar num pe​sa​de​lo. Jenny era o úni​c o pen​sa​m en​to ca​paz de
dar-lhe for​ç as para con​ti​nu​a r, e Jack pen​sa​va nela, so​nha​va com ela, ali​m en​ta​va-
se dela. Sete dias de​pois, quan​do afi​nal che​ga​r am a ter​r i​tó​r io ali​a ​do, des​c o​briu
que de​via a vida aos dois úni​c os bens que lhe res​ta​vam no mun​do: o trei​na​m en​to
mi​li​tar, que o en​si​na​r a a so​bre​vi​ver, e Jenny, que o en​si​na​r a a não per​der a fé.
Pela pri​m ei​r a vez em mui​tos me​ses, sen​tiu que o pior ha​via pas​sa​do. Mas es​ta​va
en​ga​na​do.
Ago​r a, sen​ta​do à ca​be​c ei​r a de Jenny, ou​vin​do as can​ç ões de Na​tal que vi​-
nham do gra​va​dor, sen​tia-se nau​f ra​gar de tris​te​za. O Na​tal tra​zia-lhe lem​bran​ç a
de ou​tros Na​tais, um de​les pas​sa​do na pri​são, so​nhan​do com Jenny... Sem sa​ber
que ela, já em coma, es​ta​va como que mor​ta, per​di​da para sem​pre.
Fe​liz Na​t al.
Chi​c a​go, Il​li​nois
O pa​dre Wy ​c a​zik avan​ç a​va pelo cor​r e​dor do Hos​pi​tal In​f an​til São José. Mui​ta
gen​te vi​si​ta​va os pa​c i​e n​tes e pe​los alto-fa​lan​tes fil​tra​va-se o som de can​ç ões na​-
ta​li​nas. Eram mães, pais, ir​m ãos, ir​m ãs, avôs e avós das cri​a n​ç as do​e n​tes, to​dos
car​r e​ga​dos de pre​sen​tes e de pra​ti​nhos chei​os de do​c es e de es​pe​r an​ç as. Por al​-
guns mo​m en​tos, to​dos es​que​c i​a m as do​r es e as afli​ç ões, e en​tre​ga​vam-se à sin​-
ce​r a ale​gria do Na​tal. Mes​m o jun​to às ca​be​c ei​r as dos do​e n​tes mais gra​ves ha​via
ros​tos sor​r i​den​tes e ri​sos.
Ao re​dor de uma cama, po​r ém, pa​r e​c ia ha​ver ain​da mais ale​gria do que em
qual​quer ou​tro can​to do hos​pi​tal: era a cama de uma me​ni​na de dez anos, Em​-
me​li​ne Hal​bourg. Quan​do o pa​dre Wy ​c a​zik se apre​sen​tou, os pais de Emmy sau​-
da​r am-no com um sor​r i​so de pura fe​li​c i​da​de, duas ir​m ãs da me​ni​na ri​r am para
ele e os avós e os tios des​m an​c ha​r am-se em me​su​r as, cer​tos de que se tra​ta​va do
ca​pe​lão do hos​pi​tal.
Bren​dam já lhe dis​se​r a que Emmy es​ta​va bem, mas o ve​lho pá​r o​c o mal po​-
dia acre​di​tar no que es​ta​va ven​do. A pe​que​na en​f er​m a pa​r e​c ia ter re​nas​c i​do!
Duas se​m a​nas an​tes, pelo que di​zia Bren​dan, ela es​ta​va à mor​te. E ago​r a seus
olhos bri​lha​vam, as fa​c es re​to​m a​vam o ro​sa​do su​a ​ve de an​tes, os de​dos já não
apre​sen​ta​vam si​nal de in​c ha​ç o, e ela mo​via-se li​vre​m en​te na cama. Já não pa​r e​-
cia do​e n​te... na ver​da​de, pa​r e​c ia per​f ei​ta​m en​te cu​ra​dal
Para sur​pre​sa das sur​pre​sas, Emmy le​van​tou-se da cama com a aju​da de
um par de mu​le​tas e deu al​guns pas​sos, sob os ri​sos fe​li​zes da fa​m í​lia. A ve​lha ca​-
dei​r a de ro​das pa​r e​c ia apo​sen​ta​da para sem​pre.
— Bem... já vou indo — dis​se o pa​dre Wy ​c a​zik. — Só pas​sei para lhe tra​zer
os vo​tos de Fe​liz Na​tal de um ami​go seu, Bren​dan Cro​nin.
— O “Bo​lo​ta”! — Emmy riu. — Ele é ma​r a​vi​lho​so... Foi hor​r í​vel quan​do
dis​se​r am que ele não es​ta​va mais tra​ba​lhan​do aqui. To​dos fi​c a​m os com sau​da​-
de...
— Não che​guei a co​nhe​c er esse “Bo​lo​ta” — co​m en​tou a mãe da me​ni​na
—, mas, pelo que di​zem as cri​a n​ç as, ele era me​lhor que uma to​ne​la​da de re​m é​-
di​os.
— O “Bo​lo​ta” fi​c ou só uma se​m a​na no hos​pi​tal — Emmy ex​pli​c ou. —
Mas tem vin​do vi​si​tar a gen​te. Eu até es​ta​va es​pe​r an​do que apa​r e​c es​se hoje...
para po​der lhe dar um bei​j o enor​m e.
— Bren​dan foi pas​sar o Na​tal com a fa​m í​lia.
— Que bom! É as​sim que deve ser o Na​tal, não é? Cada um com sua fa​m í​-
lia, bem con​ten​te, e to​dos se aman​do uns aos ou​tros.
— É... — O pa​dre Wy ​c a​zik ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, pen​san​do que ne​nhum dos
gran​des dou​to​r es da Igre​j a se​r ia ca​paz de ser mais cla​r o ou mais pre​c i​so. — E
exa​ta​m en​te as​sim que o Na​tal deve ser.
Se pu​des​se fa​lar com Emmy em par​ti​c u​lar, gos​ta​r ia de in​ter​r o​gá-
Ia so​bre a tar​de do dia 11 de de​zem​bro, quan​do Bren​dan lhe pen​te​a ​va os ca​-
be​los e ela olha​va a neve atrás da ja​ne​la. Que​r ia sa​ber so​bre as mar​c as nas pal​-
mas das mãos do jo​vem sa​c er​do​te. Emmy foi a pri​m ei​r a pes​soa a vê-las, an​tes
mes​m o que Bren​dan re​pa​r as​se ne​las. Na​que​la tar​de, pela pri​m ei​r a vez, as mar​-
cas apa​r e​c e​r am. Que​r ia sa​ber se Emmy sen​ti​r a al​gu​m a coi​sa de es​pe​c i​a l quan​-
do Bren​dan to​c ou-lhe os ca​be​los. Mas era im​pos​sí​vel abor​dar o as​sun​to com tan​-
tos adul​tos em vol​ta, e o pa​dre Wy ​c a​zik sa​bia que era ain​da mui​to cedo para co​-
me​ç ar a dar ex​pli​c a​ç ões.
Las Ve​gas, Ne​v a​da
Pas​sa​do o co​m e​ç o di​f í​c il, o Na​tal trans​c or​r ia tran​qüi​lo no apar​ta​m en​to de
Jor​j a Mo​na​tel​la. Mary e Pete pa​r a​r am de cri​ti​c ar tudo a todo mo​m en​to, re​la​xa​-
ram e dei​xa​r am-se le​var pela ale​gria de Ma​r eie. Quan​to a Jor​j a, fez-lhe bem
sen​tir que os ama​va. O jan​tar foi ser​vi​do dez mi​nu​tos de​pois da meia-noi​te, um
atra​so mais do que nor​m al. Ma​r eie pa​r e​c ia mais tran​qüi​la em re​la​ç ão ao “Mé​di​-
co In​f an​til” e, exaus​ta, dava si​nais de es​tar mais in​te​r es​sa​da em dor​m ir do que
em co​m er. Ha​via ri​sos em vol​ta da mesa e, jun​to à pa​r e​de, a ár​vo​r e bri​lha​va de
lu​zes co​lo​r i​das.
A tem​pes​ta​de apro​xi​m ou-se de re​pen​te e veio for​te, de​vas​ta​do​r a.
— Você está co​m en​do de​m ais... — Pete dis​se à neta, brin​c an​do. — Já co​-
meu mais do que nós to​dos jun​tos!
— Cla​r o que não!
— Cla​r o que sim! Se co​m er mais uma co​lhe​r a​da, acho que vai ex​plo​dir.
Ma​r eie er​gueu a co​lher cheia de bolo, exi​biu-a para que to​dos a vis​sem, e
apro​xi​m ou-a da boca.
— Não! — O avô co​briu os olhos como se não qui​ses​se ver a ex​plo​são. —
Não faça isso...
A me​ni​na abo​c a​nhou o bolo, mas​ti​gou e en​go​liu. En​tão olhou em vol​ta, com
ar de triun​f o, e per​gun​tou:
— Es​tão ven​do? Não ex​plo​di.
— En​tão vai ex​plo​dir na pró​xi​m a gar​f a​da... — ga​r an​tiu Pete. — Cla​r o... Se
não ex​plo​dir, va​m os ter que le​var você para o hos​pi​tal.
Mar​c ie dei​xou cair a co​lher.
— Para o hos​pi​tal eu não vou — dis​se, sé​r ia, os olhos mui​to aber​tos.
— Cla​r o que vai! Te​r e​m os que le​var você para que o mé​di​c o es​va​zie sua
bar​r i​ga an​tes da ex​plo​são...
— Não...
Jor​j a per​c e​beu que a voz da fi​lha so​a ​va di​f e​r en​te; ela já não es​ta​va achan​do
gra​ç a na brin​c a​dei​r a e co​m e​ç a​va a pa​r e​c er as​sus​ta​da de ver​da​de. Cla​r o que não
ti​nha medo de ex​plo​dir... era a idéia de ir para o hos​pi​tal que a fa​zia tre​m er de
medo.
— Não... não! — a me​ni​na re​pe​tiu.
Vai... — O ve​lho con​ti​nu​a ​va a rir, sem per​c e​ber a al​te​r a​ç ão no ros​to da neta.
— Pa​pai... acho que... — Jor​j a ain​da ten​tou in​ter​f e​r ir, mas Pete nem a ou​-
viu.
— Va​m os pre​c i​sar de um ca​m i​nhão, por​que você es​ta​r á tão gor​da que não
ha​ve​r á de ca​ber na am​bu​lân​c ia... — pros​se​guiu o avô.
Ma​r eie fe​c hou os olhos e sa​c u​diu a ca​be​ç a.
— Não! — gri​tou. — Não vou dei​xar que aque​les mé​di​c os... to​quem em
mim. Não vou dei​xar!
— Que​r i​da, vovô está brin​c an​do — dis​se Jor​j a, pro​c u​r an​do acal​m á-la.
— Não dei​xe que eles me le​vem, ma​m ãe... Eles vão-me ma​c hu​c ar...
como da ou​tra vez!
Mary ar​r e​ga​lou os olhos e per​gun​tou para a fi​lha:
— Mas quan​do foi que ela es​te​ve num hos​pi​tal?!
— Nun​c a. Não sei por que...^
— Cla​r o que já es​ti​ve! Cla​r o! E ver​da​de... — Ma​r eie in​ter​r om​peu. — Eles
me amar​r a​r am na cama e me en​c he​r am de agu​lhas, e eu fi​quei com medo e...
não que​r o! Não vou dei​xar que se apro​xi​m em... Não\
Pen​san​do na his​tó​r ia que Kara Per​sag​hi​a n lhe con​ta​r a na vés​pe​r a, Jor​j a le​-
van​tou-se e apro​xi​m ou-se da me​ni​na.
— Meu bem, você nun​c a es​te​ve...
Eu es​ti​v e, sim! Ago​r a ja não era ape​nas um gri​to, era um
ge​m i​do de puro ter​r or. Ma​r eie jo​gou a co​lher para cima e Pete en​c o​lheu-se
para não ser atin​gi​do.
— Ma​r eie! — Jor​j a gri​tou.
A me​ni​na sal​tou da ca​dei​r a, lí​vi​da:
— Vou ser mé​di​c a quan​do cres​c er para po​der cui​dar de mi​nhas do​e n​ç as!
E não vou dei​xar que nin​guém me es​pe​te com aque​las agu​lhas... — Olhos mui​to
aber​tos, ela nem per​c e​bia as lá​gri​m as que lhe es​c or​r i​a m pelo ros​to.
Jor​j a es​ten​deu a mão para acal​m á-la com um afa​go, mas a ga​r o​ta sal​tou
para trás como se de re​pen​te vis​se al​guém ame​a ​ç an​do-a. Não a mãe, mas al​-
guém de quem ti​nha medo e a quem só ela via. A vi​são tal​vez fos​se fru​to de sua
ima​gi​na​ç ão, po​r ém o medo era real, qua​se pal​pá​vel. Ma​r eie es​ta​va pá​li​da, os lá​-
bi​os ar​r o​xea-dos... pres​tes a des​m ai​a r de medo!
— Por fa​vor, que​r i​da... fale co​m i​go... Sou eu! E ma​m ãe...
De lon​ge, a me​ni​na ten​ta​va co​brir o ros​to com as mãos para
im​pe​dir que a to​c as​sem. De re​pen​te, Jor​j a sen​tiu chei​r o de uri​na e, as​sus​ta​-
da, viu a man​c ha es​c u​r a jun​to aos sa​pa​tos da fi​lha, es​pa​lhan​do-se pelo ta​pe​te.
— Ma​r eie...
Pa​r e​c ia que a ga​r o​ta que​r ia gri​tar, mas a voz não saía.
— O... o que é isso?! — Mary le​van​tou-se.
— Meu Deus! Eu não sei...
Com os olhos ain​da fi​xos em al​gu​m a coi​sa que só ela via, Ma​r eie co​m e​ç ou a
ge​m er bai​xi​nho.
Nova York, Nova York
O gra​va​dor con​ti​nu​a ​va a to​c ar as can​ç ões de Na​tal, e Jenny Twist lá es​ta​va,
imó​vel e dis​tan​te. Jack Twist já de​sis​ti​r a de lhe fa​lar, de​pois de ho​r as de mo​nó​lo​-
go tris​te e in​ú​til. Sen​ta​do, em si​lên​c io, vol​ta​va às lem​bran​ç as da Amé​r i​c a Cen​tral.
Ao re​gres​sar para os Es​ta​dos Uni​dos, des​c o​bri​r a que o res​ga​te dos onze pri​si​-
o​nei​r os do Ins​ti​tu​to da Fra​ter​ni​da​de Uni​ver​sal ha​via sido apre​sen​ta​do à opi​ni​ã o
pú​bli​c a como um ato ter​r o​r is​ta, um se​qües​tro em mas​sa, le​va​do a cabo por al​-
guns dis​si​den​tes in-
te​r es​sa​dos em fo​m en​tar a guer​r a na re​gi​ã o. Não ape​nas o pró​prio Jack,
como tam​bém os ou​tros mi​li​ta​r es en​vol​vi​dos na ope​r a​ç ão de res​ga​te ha​vi​a m sido
pin​ta​dos como agen​tes do cri​m e or​ga​ni​za​do ocul​tos sob o uni​f or​m e do Exér​c i​to.
Mais que quais​quer ou​tros, os que eram pri​si​o​nei​r os fo​r am trans​f or​m a​dos em al​-
vos di​r e​tos da ira da opo​si​ç ão.
Em pâ​ni​c o, o Con​gres​so aca​ba​r a vo​tan​do lei que proi​bia ati​vi​da​des mi​li​ta​r es
na Amé​r i​c a Cen​tral, in​c lu​í​da a ope​r a​ç ão de res​ga​te dos qua​tro sol​da​dos pre​sos.
Di​zia-se que se​r ia pos​sí​vel li​ber​tá-los pe​los ca​nais di​plo​m á​ti​c os dis​po​ní​veis.
Por isso es​pe​r a​r am tan​to! Ti​nham sido aban​do​na​dos pelo país que de​ve​r ia
agra​de​c er-lhes a co​r a​gem e a de​di​c a​ç ão. De iní​c io, Jack não acre​di​tou no que to​-
dos lhe di​zi​a m. Mais tar​de, quan​do já era in​ú​til ten​tar fu​gir aos fa​tos, o cho​que foi
ter​r í​vel. O se​gun​do pior cho​que de sua vida.
De vol​ta à pá​tria, vi​via as​se​di​a ​do por jor​na​lis​tas hos​tis e foi in​ti​m a​do a de​por
pe​r an​te uma co​m is​são de de​pu​ta​dos, para es​c la​r e​c er de​ta​lhes de seu en​vol​vi​-
men​to no “se​qües​tro”. Até en​tão, ain​da ima​gi​na​va que po​de​r ia res​ta​be​le​c er a
ver​da​de, que te​r ia pelo me​nos uma chan​c e de apre​sen​tar sua ver​são dos fa​tos.
Logo per​c e​beu que nin​guém es​ta​va in​te​r es​sa​do na ver​da​de, mui​to me​nos no que
ti​ves​se a di​zer so​bre os fa​tos. Seu de​poi​m en​to foi mon​ta​do como um show de te​-
le​vi​são, como uma opor​tu​ni​da​de va​li​o​sa para que al​guns po​lí​ti​c os dis​c ur​sas​sem
em nome da li​ber​da​de e de mais meia dú​zia de va​lo​r es ti​dos e ha​vi​dos como
“ame​r i​c a​nos”, na me​lhor tra​di​ç ão do mal​f a​da​do se​na​dor Joe Mac​Car​thy.
Em pou​c os me​ses, to​dos o es​que​c e​r am; à me​di​da que ga​nha​va peso e se res​-
ta​be​le​c ia dos hor​r o​r es da pri​são, dei​xa​va de ser re​c o​nhe​c i​do nas ruas como “o
cri​m i​no​so de guer​r a que apa​r e​c eu na te​le​vi​são”. Mas a dor e a cer​te​za de ter sido
tra​í​do ja​m ais o aban​do​na​r am.
Tudo isso com​pu​nha o qua​dro do se​gun​do mai​or cho​que de sua vida, pois o
mai​or de to​dos foi des​c o​brir o que acon​te​c e​r a a Jenny du​r an​te seu ca​ti​vei​r o na
Amé​r i​c a Cen​tral. Um as​sal​to, con​ta​r am-lhe. Um ho​m em as​sal​ta​r a-a à en​tra​da
do pré​dio onde
mo​r a​va, no mo​m en​to em que vol​ta​va do tra​ba​lho. En​c os​ta​r a-lhe uma arma
na ca​be​ç a, ar​r as​ta​r a-a para o apar​ta​m en​to, vi​o​len​ta​r a-a, ba​te​r a-lhe com a co​r o​-
nha da arma na ca​be​ç a e dei​xa​r a-a ca​í​da, cer​to de que es​ta​va mor​ta. Ao vol​tar
da Amé​r i​c a Cen​tral Jack en​c on​tra​r a-a num hos​pi​tal pú​bli​c o, em coma pro​f un​da
e ir​r e​ver​sí​vel. Mal​c ui​da​da, mal​tra​ta​da, suja.
O as​sal​tan​te ha​via sido iden​ti​f i​c a​do pelo de​poi​m en​to de al​gu​m as tes​te​m u​nhas
e pe​las im​pressões di​gi​tais que dei​xa​r a no apar​ta​m en​to. Cha​m a​va-se Nor​m am
Haz​zurt e es​ta​va em li​ber​da​de con​di​c i​o​nal, de​pois de adi​a r o jul​ga​m en​to gra​ç as à
ha​bi​li​da​de do ad​vo​ga​do que con​tra​ta​r a. Jack dis​pen​sou as for​m a​li​da​des ju​r í​di​c as
e in​ves​ti​gou por con​ta pró​pria até dar-se por sa​tis​f ei​to. Haz​zurt era mes​m o o cul​-
pa​do, mas nun​c a se​r ia con​de​na​do. Ha​via ex​c es​so de de​ta​lhes téc​ni​c os no pro​c es​-
so, e o mes​m o ad​vo​ga​do que o li​ber​ta​r a uma vez aca​ba​r ia por ab​sol​vê-lo no​va​-
men​te.
As​sim, ao mes​m o tem​po que en​f ren​ta​va a im​pren​sa e os po​lí​ti​c os, Jack fa​zia
pla​nos para o fu​tu​r o. Ti​nha duas ta​r e​f as pri​o​r i​tá​r i​a s: an​tes de qual​quer ou​tra coi​-
sa, pre​c i​sa​va ma​tar Nor​m an 9 Haz​zurt, e sem le​van​tar sus​pei​tas. De​pois, de​via
ar​r an​j ar di​nhei​r o para ti​r ar Jenny da​que​le hos​pi​tal e ins​ta​lá-la numa clí​ni​c a par​ti​-
cu​lar. Pre​c i​sa​va de mui​to di​nhei​r o e só co​nhe​c ia um modo de obtê-lo: o rou​bo.
Como sol​da​do da tro​pa de eli​te, fora trei​na​do no uso de to​dos os ti​pos de ar​m as,
en​ten​dia de ex​plo​si​vos, era pe​r i​to em ar​tes mar​c i​a is e téc​ni​c as de so​bre​vi​vên​c ia.
Seu país o aban​do​na​r a, mas, por es​tra​nha iro​nia, de​via ao Exér​c i​to a ex​c ep​c i​o​nal
ha​bi​li​da​de que pos​su​ía para so​bre​vi​ver em si​tu​a ​ç ões ad​ver​sas e, me​lhor que tudo,
para po​der vin​gar-se. O pró​prio Exér​c i​to o trei​na​r a em téc​ni​c as de bur​lar a lei
sem ja​m ais ser apa​nha​do.
Nor​m an Haz​zurt mor​r eu “aci​den​tal​m en​te’5 na ex​plo​são de um de​pó​si​to de
gás, dois me​ses de​pois da vol​ta de Jack. Duas se​m a​nas mais tar​de, a trans​f e​r ên​-
cia de Jenny para uma clí​ni​c a pri​va​da foi fi​nan​c i​a ​da pelo as​sal​to a um ban​c o,
pla​ne​j a​do e exe​c u​ta​do com a pre​c i​são de uma ope​r a​ç ão mi​li​tar.
Lon​ge de sa​tis​f a​zer Jack, a mor​te de Haz​zurt, dei​xa​r a-o ain​da mais de​pri​m i​-
do. Ma​tar um ho​m em na guer​r a era di​f e​r en​te de eli-
mi​nar al​guém a san​gue-frio. E Jack não sa​bia ma​tar se​não em le​gí​ti​m a de​f e​-
sa.
Rou​bar era di​f e​r en​te... era ex​c i​tan​te, ter​r i​vel​m en​te ex​c i​tan​te. Após o as​sal​to
ao ban​c o, Jack sen​tia-se exal​ta​do, emo​c i​o​na​do, ex​c i​ta​do. Tal​vez ali es​ti​ves​se o re​-
mé​dio para seus ma​les. O cri​m e, afi​nal, dera-lhe nova mo​ti​va​ç ão para vi​ver. E
as​sim ha​via sido sem​pre... até al​gum tem​po atrás.
Na​que​le mo​m en​to, sen​ta​do à ca​be​c ei​r a de Jenny, Jack Twist per​gun​ta​va-se o
que mais lhe res​ta​r ia fa​zer para con​ti​nu​a r vi​ven​do, dia após dia... Além do min​-
gua​do pra​zer de rou​bar, res​ta​va-lhe Jenny, e não ha​via mais nada, nem nin​guém.
Já não pre​c i​sa​va pre​o​c u​par-se com o fu​tu​r o da es​po​sa, por​que o que pos​su​ía
era mais do que su​f i​c i​e n​te para man​tê-la bem-cui​da​da e bem-as​sis​ti-da; ti​nha
mais di​nhei​r o do que con​se​gui​r ia gas​tar. Vi​via ape​nas em fun​ç ão das pou​c as ho​-
ras que pas​sa​va ali, ao lado da cama dela, olhan​do seu ros​to se​r e​no, to​c an​do-lhe
a mão... e re​zan​do para que acon​te​c es​se um mi​la​gre.
Ou​tra es​tra​nha iro​nia... Um ho​m em como ele, in​di​vi​du​a ​lis​ta, de​ter​m i​na​do,
auto-su​f i​c i​e n​te, re​du​zi​do à úni​c a es​pe​r an​ç a de um mi​la​gre...
De re​pen​te, en​quan​to Jack ru​m i​na​va seus pen​sa​m en​tos, Jenny pro​du​ziu um
som, um ge​m i​do, um aces​so de tos​se, tal​vez um pi-gar​r o. Res​pi​r ou fun​do, uma
ou duas ve​zes, e sus​pi​r ou de leve, um sus​pi​r o lon​go, ar​r as​ta​do. Num ins​tan​te de
lou​c u​r a, Jack sal​tou da pol​tro​na, apro​xi​m ou-se da cama, es​pe​r an​do vê-la de olhos
aber​tos, cons​c i​e n​te pela pri​m ei​r a vez em mais de oito anos. O mi​la​gre... O mi​la​-
gre po​der ia acon​te​c er no ins​tan​te mes​m o em que ele pen​sa​va... Mas os olhos de
Jenny con​ti​nu​a ​vam fe​c ha​dos, sua face au​sen​te como sem​pre. Jack to​c ou-lhe o
ros​to, ta​te​ou o pes​c o​ç o à pro​c u​r a de al​gum si​nal de vida. Não era um mi​la​gre.
O que acon​te​c eu foi co​m um, nor​m al, ine​vi​tá​vel e qua​se vul​gar: Jenny Twist aca​-
ba​va de mor​r er.
Chi​c a​go, Il​li​nois
Na​que​le dia de Na​tal, ha​via pou​c os mé​di​c os de plan​tão no Hos-pi​tai In​f an​til
São José, mas dois de​les, um re​si​den​te cha​m a​do Jar-vil e um in​ter​no de nome
Kli​net, mor​r i​a m de von​ta​de de con​ver​sar com o pa​dre Wy ​c a​zik so​bre a sur​-
preen​den​te re​c u​pe​r a​ç ão de Em​m e​li​ne Hal​bourg. Por fim, o jo​vem Kli​net con​du​-
ziu o sa​c er​do​te até uma das sa​las de con​sul​ta onde dei​xa​r a o dos​siê sa​ni​tá​r io da
me​ni​na e os re​sul​ta​dos dos exa​m es ra​di​o​ló​gi​c os.
— Faz cin​c o se​m a​nas que co​m e​ç a​m os a usar uma dro​ga sin​té​ti​c a re​c en​te​-
men​te li​be​r a​da — in​f or​m ou.
O dr. Jar​vil cos​tu​m a​va fa​lar pou​c o e em ge​r al man​ti​nha os olhos bai​xos, mas
es​ta​va mui​to ex​c i​ta​do ao en​trar na sala de exa​m es. O caso de Em​m e​li​ne Hal​-
bourg pa​r e​c ia-lhe ex​tre​m a​m en​te in​te​r es​san​te. Era di​f í​c il acre​di​tar que ela ha​via
me​lho​r a​do tan​to!
— Essa dro​ga tem apre​sen​ta​do bons re​sul​ta​dos em afec​ç ões ós​se​a s como a
que Emmy apre​sen​ta — dis​se. — Em al​guns ca​sos, ob​te​ve-se au​m en​to do nú​m e​-
ro de os​te​ó​c i​tos nor​m ais; em ou​tros, foi pos​sí​vel de​ter o pro​c es​so de de​te​r i​o​r a​ç ão
do pe​r i​ós​teo. Não sa​be​m os exa​ta​m en​te por quê, mas têm-se ob​ser​va​do ca​sos em
que a dro​ga es​ti​m u​lou a fi​xa​ç ão do cál​c io in​ter​c e​lu​lar. No caso de Emmy, em
que a do​e n​ç a ata​c ou a me​du​la ós​sea, a subs​tân​c ia al​te​r ou as ca​r ac​te​r ís​ti​c as quí​-
mi​c as da ca​vi​da​de me​du​lar e dos ca​nais de Ha​vers, cri​a n​do um meio am​bi​e n​te
des​f a​vo​r á​vel à pro​li​f e​r a​ç ão de mi​c ro​or​ga​nis​m os e, ao mes​m o tem​po, es​ti​m u​lan​-
te para o cres​c i​m en​to das cé​lu​las he​m a​to​po​é ​ti​c as... as cé​lu​las que pro​du​zem gló​-
bu​los ver​m e​lhos... e das ta​xas de he​m o​glo​bi​na.
— Mas não há re​gis​tro de re​sul​ta​dos tão rá​pi​dos como no caso de Emmy
— acres​c en​tou Kli​net.
— Essa dro​ga não tem pro​pri​e ​da​des cu​r a​ti​vas — Jar​vil con​ti​nuou. — O que
ela faz é, ape​nas, re​tar​dar o avan​ç o da do​e n​ç a ou, na me​lhor das hi​pó​te​ses, detê-
lo. Seja como for, não é ca​paz de in​du​zir a re​ge​ne​r a​ç ão ós​sea. Cla​r o que, em
cer​ta me​di​da, pode ocor​r er a re​ge​ne​r a​ç ão de de​ter​m i​na​das áre​a s que ain​da não
es​te​j am se​r i​a ​m en​te com​pro​m e​ti​das. O caso de Emmy é úni​c o. — O mé​di​c o
apa​nhou al​gu​m as das cha​pas ra​di​o​ló​gi​c as e er​gueu-as con​tra a luz. — Os os​sos
da pa​c i​e n​te es​tão se re​ge​ne​r an​do... re​c om​pon​do-se.
— E com es​pan​to​sa ra​pi​dez. — Kli​net pas​sou a mão pe​los ca​be​los, como
se o ges​to pu​des​se tor​nar mais com​preen​sí​vel o fe​nô​m e​no.
Jar​vil en​tre​gou ao pa​dre Wy ​c a​zik a sé​r ie de cha​pas fei​tas ao lon​go de seis se​-
ma​nas, onde a me​lho​r a apa​r e​c ia, mui​to vi​sí​vel, até aos olhos de um lei​go.
— Emmy to​m ou a dro​ga du​r an​te três se​m a​nas sem qual​quer re​sul​ta​do —
pros​se​guiu Kli​net. — De re​pen​te, há quin​ze dias, as cha​pas co​m e​ç a​r am a mos​-
trar que não só a do​e n​ç a en​tra​va em re​gres​são como os os​sos afe​ta​dos es​ta​vam
se re​ge​ne​r an​do.
O cro​no​gra​m a era per​f ei​to. Duas se​m a​nas atrás, os anéis aver​m e​lha​dos apa​-
re​c i​a m pela pri​m ei​r a vez nas pal​m as das mãos de Bren​dan Cro​nin. Mas o pa​dre
Wy ​c a​zik não dis​se pa​la​vra so​bre a co​in​c i​dên​c ia.
Jar​vil mos​trou-lhe um gran​de dos​siê de cha​pas ra​di​o​ló​gi​c as e tes​tes quí​m i​c os
que pro​va​vam à exaus​tão que os ca​nais de Har-vers dos os​sos de Emmy es​ta​-
vam pra​ti​c a​m en​te nor​m ais, fun​c i​o​nan​do per​f ei​ta​m en​te, cum​prin​do o pa​pel de
ali​m en​tar e nu​trir os te​c i​dos ós​se​os. Apon​tou-lhe, numa cha​pa mais an​ti​ga, uma
re​gi​ã o es​bran​qui​ç a​da, em que o in​te​r i​or de um osso apa​r e​c ia com​ple​ta​m en​te
blo​que​a ​do com a ir​r i​ga​ç ão san​guí​nea in​ter​r om​pi​da. Em ou​tra cha​pa, mais re​c en​-
te, a mes​m a re​gi​ã o apa​r e​c ia de​sobs​tru​í​da.
— Não há re​gis​tro de ne​nhum caso em que essa dro​ga te​nha dis​sol​vi​do
uma pla​c a como essa — dis​se. — Há ca​sos em que pe​que​nas re​gi​ões obs​tru​í​das
fo​r am des​blo​que​a ​das mas eram re​gi​ões mui​to pe​que​nas, e a de​sobs​tru​ç ão foi
sim​ples con​se​qüên​c ia da es​ta​bi​li​za​ç ão da do​e n​ç a. Nun​c a ocor​r eu nada como o
que ve​m os aqui... É... é tudo mui​to es​tra​nho.
— Se esse pro​c es​so de re​ge​ne​r a​ç ão ós​sea con​ti​nu​a r — Kli​net acres​c en​tou
—, Emmy es​ta​r á cu​r a​da em me​nos de três me​ses. E isso é um... fe​nô​m e​no!
— Com​ple​ta​m en​te cu​r a​da... — re​f or​ç ou Jar​vil, ba​lan​ç an​do aca​be​ç a.
O pa​dre Wy ​c a​zik man​ti​nha os olhos bai​xos, como se exa​m i​nas​se as cha​pas,
sem von​ta​de de en​c a​r ar os mé​di​c os, sem co​r a​gem de di​zer-lhes que nem suas
ha​bi​li​da​des pro​f is​si​o​nais nem a tal dro​ga eram res​pon​sá​veis pela cura de Em​m e​-
li​ne Hal​bourg. Os dois pa​r e​c i​a m tão eu​f ó​r i​c os que ele re​sol​veu es​pe​r ar um pou​-
co an​tes de ex​pres​sar sua sé​r ia sus​pei​ta de que ha​via ou​tro po​der en​vol​vi​do na​-
que​la cura. Um po​der mais mis​te​r i​o​so que qual​quer dro​ga com que a mo​der​na
me​di​c i​na pu​des​se so​nhar.
Milwaukee, Wis​c on​sin
O dia de Na​tal foi como um bál​sa​m o para Er​nie e Fay e Block, ao lado de
Lucy, Frank e das cri​a n​ç as. Ao fim da tar​de, quan​do sa​í​r am so​zi​nhos para dar um
pas​seio até o cen​tro da ci​da​de, sen​ti​a m-se me​lhor do que nun​c a.
A tar​de es​ta​va per​f ei​ta para um pas​seio: fria, mas seca e sem ven​to. Fa​zia
qua​tro dias que não ne​va​va, e as ruas es​ta​vam lim​pas e de​sim​pe​di​das. A me​di​da
que o tem​po pas​sa​va o ar pa​r e​c ia bri​lhar, ilu​m i​na​do pe​los tons ala​r an​j a​dos do
cre​pús​c u​lo.
Bem aga​sa​lha​dos, Fay e e Er​nie sa​í​r am de bra​ç os da​dos, con​ver​san​do e rin​-
do, re​lem​bran​do os acon​te​c i​m en​tos do dia e co​m en​tan​do os en​f ei​tes de Na​tal que
bri​lha​vam nas por​tas das ca​sas vi​zi​nhas. Os anos cor​r i​a m, mas, para Fay e, era
como se ela e Er​nie ain​da fos​sem jo​vens, com a vida pela fren​te, chei​os de so​-
nhos.
Des​de o mo​m en​to em que che​ga​r am a Milwaukee, no dia 15 de de​zem​bro,
as coi​sas ha​vi​a m me​lho​r a​do, e Fay e ti​nha cer​te​za de que, dali por di​a n​te, tudo
co​m e​ç a​r ia a ajus​tar-se. Er​nie es​ta​va bem: an​da​va ou​tra vez com pas​sos fir​m es e
sor​r ia como an​tes, bem-hu​m o​r a​do. Cla​r o que a com​pa​nhia de Lucy, do gen​r o e
dos ne​tos aju​da​va mui​to, mas a ver​da​de é que as cri​ses de medo pa​r e​c i​a m su​pe​-
ra​das para sem​pre.
As sessões de te​r a​pia com o dr. Fon​te​lai​ne — Er​nie já ti​ve​r a seis — tam​bém
co​la​bo​r a​vam para os gran​des pro​gres​sos que Fay e ob​ser​va​va. Er​nie ain​da ti​nha
medo do es​c u​r o, mas já não en​tra​va em pâ​ni​c o como quan​do ha​vi​a m sa​í​do de
Ne​va​da. Na opi​ni​ã o do mé​di​c o, era mais fá​c il tra​tar uma fo​bia do que mui​tas ou​-
tras per​tur​ba​ç ões psi​c o​ló​gi​c as. As des​c o​ber​tas mais re​c en​tes nes​sa área
pa​r e​c i​a m in​di​c ar que, na gran​de mai​o​r ia dos ca​sos de fo​bia, a do​e n​ç a re​su​-
mia-se aos sin​to​m as, dis​pen​san​do uma lon​ga te​r a​pia para de​sen​ter​r ar os trau​m as,
as ve​zes mui​to an​ti​gos, que se es​c on​di​a m no sub​c ons​c i​e n​te do pa​c i​e n​te. Já não se
con​si​de​r a​va ne​c es​sá​r io — nem pos​sí​vel ou de​se​j á​vel — des​c o​brir a cau​sa de
uma fo​bia an​tes de co​m e​ç ar a curá-la. As téc​ni​c as mais mo​der​nas con​sis​ti​-
am em en​si​nar ao pa​c i​e n​te os re​c ur​sos para di​m i​nuir a sen​si​bi​li​da​de.
As​sim, aos pou​c os, em me​ses ou mes​m o em se​m a​nas, a fo​bia po​dia ser con​-
tro​la​da mes​m o sem es​tar cu​r a​da e a vida do pa​c i​e n​te vol​ta​va ao nor​m al. Ape​nas
um ter​ç o dos pa​c i​e n​tes não res​pon​dia t a essa te​r a​pia. Nes​ses ca​sos era pre​c i​so
re​c or​r er às te​r a​pi​a s tra​di​c i​o​nais ou ao uso de dro​gas blo​que​a ​do​r as, ca​pa​zes de in​-
ter​f e​r ir numa cri​se de pâ​ni​c o. Er​nie, con​tu​do, fa​zia pro​gres​sos tão gran​des que o
pró​prio dr. Fon​te​lai​ne, oti​m is​ta por na​tu​r e​za, es​ta​va en​c an​ta​do.
Fay e, por sua vez, pro​c u​r a​va pes​qui​sar o as​sun​to ao má​xi​m o.
Num dos mui​tos li​vros que lera, des​c o​briu que po​de​r ia aju​dar o ma​r i​do se
con​se​guis​se fazê-lo en​c a​r ar as cri​ses a par​tir de ou​tro pon​to de vis​ta, como se ele
fos​se per​so​na​gem de uma his​to​r ia en​gra​ç a​da ou seu caso fos​se ape​nas um en​tre
vá​r i​os. Aos pou​c os,
Er​nie co​m e​ç ou a se di​ver​tir com as his​tó​r i​a s que ela lhe con​ta​va so​bre ví​ti​-
mas das fo​bi​a s mais es​tra​nhas, em com​pa​r a​ç ão com as quais seu medo de es​c u​-
ro pa​r e​c ia brin​c a​dei​r a de cri​a n​ç a. Fay e in- $
ven​ta​va per​so​na​gens pte​r ó​f o​bas, que mor​r i​a m de medo de pe​nas, ic​ti​ó​f o​bas
hor​r o​r i​za​das com a pos​si​bi​li​da​de de en​c on​tra​r em pei​xes, pe​di​ó​f o​bas apa​vo​r a​das
com bo​ne​c os ou fan​to​c hes. Er​nie riu mui​to dos coi​tó​f o​bos, fe​liz com sua pro​sai​c a
nic​to​f o​bia. Ima​gi​ne só... ter medo de sexo! Mas as​sus​tou-se ao sa​ber que exis​tem
pes​so​a s que so​f rem de au​to​f o​bia... o in​c on​tro​lá​vel medo de si mes​m o. Que coi​sa
ter​r í​vel!
Na​que​le mo​m en​to, an​dan​do ao cre​pús​c u​lo, Fay e fa​la​va e fa​la​va, ten​tan​do
fazê-lo es​que​c er a noi​te que se apro​xi​m a​va. Con​ta​va-lhe so​bre John Chee​ver, au​-
tor con​sa​gra​do, ven​c e​dor do mai​or prê​m io li​te​r á​r io do país, e que so​f ria de ge​f i​-
ro​f o​bia, o medo ir​r a​c i​o​nal de pon​tes al​tas. Er​nie ou​via com aten​ç ão, mas não se
es-
que​da​da noi​te. À me​di​da que as som​bras cres​c i​a m so​bre a cal​ç a​da, seus de​-
dos cris​pa​vam-se so​bre o bra​ç o de Fay e, e só não a fe​r i​a m por​que não con​se​gui​-
am ven​c er o obs​tá​c u​lo das gros​sas rou​pas de lã que ela usa​va.
Sete quar​tei​r ões adi​a n​te, já não ha​via pos​si​bi​li​da​de de vol​ta​r em para casa
an​tes do cair da noi​te. O céu es​ta​va ne​gro, ao lon​ge, jun​to ao ho​r i​zon​te. As som​-
bras co​bri​a m tudo. As lâm​pa​das de mer​c ú​r io acen​di​a m-se na rua, cri​a n​do para
Er​nie ra​r as ilhas de re​la​ti​va paz em me​tros e me​tros de an​gús​tia. Seus olhos bri​-
lha​vam as​sus​ta​dos, e ele res​pi​r a​va cada vez mais rá​pi​do.
— Lem​bre-se do que o mé​di​c o dis​se... con​tro​le a res​pi​r a​ç ão — re​c o​m en​-
dou Fay e, aper​tan​do-lhe a mão.
Er​nie res​pon​deu com um rá​pi​do ace​no de ca​be​ç a e ten​tou ins​pi​r ar len​ta​m en​-
te, con​tan​do os se​gun​dos.
— Você acha que po​de​m os vol​tar? — per​gun​tou-lhe a mu​lher, exa​m i​nan​do
o céu já com​ple​ta​m en​te es​c u​r o.
— Sim... Acho que sim — ele res​pon​deu, os den​tes cer​r a​dos.
De​r am um pri​m ei​r o pas​so para fora da área ilu​m i​na​da jun​to
ao pos​te. Er​nie res​f o​le​ga​va, o ar es​c a​pan​do-lhe como um as​so​bio por en​tre
os den​tes.
Es​ta​vam ten​tan​do ou​tra das téc​ni​c as te​r a​pêu​ti​c as do dr. Fon​te-lai​ne, cha​m a​da
de “cho​que”, se​gun​do a qual o pa​c i​e n​te de​via ser en​c o​r a​j a​do a en​f ren​tar o pró​-
prio medo e con​f ron​tá-lo o mai​or tem​po pos​sí​vel, até ven​c ê-lo. O cho​que ba​se​a ​-
va-se na idéia de que os ata​ques de pâ​ni​c o são au​to​c on​ti​dos, por​que a fi​si​o​lo​gia
hu​m a​na não é ca​paz de fun​c i​o​nar du​r an​te mui​to tem​po nos ní​veis de alto des​gas​-
te a que o pâ​ni​c o a obri​ga. Há um mo​m en​to em que o cor​po já não con​se​gue
pro​du​zir a adre​na​li​na ne​c es​sá​r ia à fuga, e o pró​prio or​ga​nis​m o se obri​ga a adap​-
tar-se à si​tu​a ​ç ão ame​a ​ç a​do​r a. Pode ser uma paz du​r a​dou​r a, e en​tão o pa​c i​e n​te é
con​si​de​r a​do cu​r a​do. Pode ser ape​nas uma tré​gua, e nes​se caso tor​na-se ne​c es​sá​-
rio re​pe​tir as sessões de te​r a​pia de cho​que.
Uti​li​za​da sem as​sis​tên​c ia mé​di​c a, a téc​ni​c a po​de​r ia re​pre​sen​tar gra​ve ame​a ​-
ça à saú​de men​tal do pa​c i​e n​te; por isso o dr. Fon-te​lai​ne pre​f e​r ia usá-la numa
ver​são mo​di​f i​c a​da, que en​vol​via
três es​tá​gi​os de con​f ron​ta​ç ão com o ele​m en​to ge​r a​dor das cri​ses de medo.
Er​nie ten​ta​va ul​tra​pas​sar o pri​m ei​r o des​ses es​tá​gi​os: aju​da​do por Fay e, de​via
per​m a​ne​c er no es​c u​r o du​r an​te quin​ze mi​nu​tos, ten​do à vis​ta al​gu​m a área ilu​m i​-
na​da. As​sim, ca​m i​nha​vam pela cal​ç a​da, de pos​te em pos​te, pa​r an​do em cada
área de luz a fim de que ele reu​nis​se a co​r a​gem ne​c es​sá​r ia para en​f ren​tar a nova
eta​pa.
Den​tro de uma ou duas se​m a​nas, Er​nie co​m e​ç a​r ia o tra​ba​lho re​la​ti​vo ao se​-
gun​do es​tá​gio da te​r a​pia. Fay e o le​va​r ia de car​r o até uma re​gi​ã o onde já não vis​-
sem as lu​zes da rua e an​da​r ia a seu lado tan​to tem​po quan​to ele su​por​tas​se. En​tão,
com uma lan​ter​na, lhe da​r ia a opor​tu​ni​da​de de se re​f a​zer. O ter​c ei​r o es​tá​gio,
por fim, con​sis​ti​r ia em an​dar so​zi​nho no es​c u​r o, sem lan​ter​nas e sem luz de qual​-
quer tipo. Al​gu​m as se​m a​nas de tra​ta​m en​to e, com toda a cer​te​za, Er​nie es​ta​r ia
cu​r a​do.
Mas en​c on​tra​va-se ain​da no pri​m ei​r o es​tá​gio, lon​ge de se sen​tir li​vre do
medo do es​c u​r o. De​pois de per​c or​r er seis dos sete quar​tei​r ões que o se​pa​r a​vam
de casa, Er​nie res​f o​le​ga​va como um ca​va​lo de cor​r i​da, su​a ​va frio e so​nha​va
com a se​gu​r an​ç a de seu quar​to ilu​m i​na​do. Mas já ha​via an​da​do seis quar​tei​r ões!
Nada mau... As​sim, com toda a cer​te​za, logo es​ta​r ia per​f ei​ta​m en​te bem.
Ao che​ga​r em em casa, en​quan​to Lucy a aju​da​va a ti​r ar o ca​sa​c o, Fay e ten​-
ta​va con​ven​c er-se de que Er​nie me​lho​r a​r a e, em dois ou três me​ses, es​ta​r ia cu​-
ra​do, exa​ta​m en​te como o dr. Fon​te​lai​ne pre​vi​r a. Tal​vez, po​r ém, fos​se isso que
mais a pre​o​c u​pa​va: a me​lho​r a era fá​c il de​m ais, rá​pi​da de​m ais para ser ver​da​-
dei​r a — e, so​bre​tu​do, para ser du​r a​dou​r a. Por mais que se es​f or​ç as​se para
não per​der o oti​m is​m o, Fay e pres​sen​tia que al​gu​m a coi​sa não es​ta​va cer​ta. Al​gu​-
ma coi​sa ain​da es​ta​va er​r a​da... e mui​to er​r a​da.
Bos​ton, Mas​sa​c hu​setts
Afi​lha​do de Pi​c as​so e má​gi​c o de fama in​ter​na​c i​o​nal, Pa​blo Jack-son, era,
como não po​de​r ia dei​xar de ser, uma das es​tre​las do high-so​c i​e ty de Bos​ton. Não
bas​tas​se isso, du​r an​te a Se​gun​da Guer​r a Mun​di​a l pres​ta​r a re​le​van​tes ser​vi​ç os às
for​ç as da Re​sis​tên​c ia fran-
cesa e à In​te​li​gên​c ia bri​tâ​ni​c a. Com as no​tí​c i​a s de sua re​c en​te co​la​bo​r a​ç ão
com a po​lí​c ia, vol​ta​va à evi​dên​c ia, e re​c e​bia sem​pre mais con​vi​tes do que po​dia
acei​tar.
Na​que​le ano re​sol​veu pas​sar o Na​tal numa re​c ep​ç ão fe​c ha​dís-sima, para
ape​nas vin​te e dois con​vi​da​dos, em casa do sr. e sra. Ira Her​genshei​m er, em Bro​-
ok​li​ne. Uma casa mag​ní​f i​c a em es​ti​lo co​lo​ni​a l ge​or​gi​a ​no, ele​gan​te e aco​lhe​do​r a
como o ca​sal que lá vi​via, gen​te que en​r i​que​c e​r a com o mer​c a​do imo​bi​li​á ​r io du​-
ran​te os anos 50. Um bar fora mon​ta​do na bi​bli​o​te​c a, e nu​m e​r o​sos gar​ç ons cir​c u​-
la​vam pe​las sa​las com ban​de​j as de ca​na​pês e ta​ç as de cham​pa​nhe. No hall, um
quar​te​to de cor​das to​c a​va mú​si​c a su​a ​ve, tor​nan​do o am​bi​e n​te ain​da mais agra​dá​-
vel para que os con​vi​da​dos pu​des​sem con​ver​sar.
Pa​blo es​ta​va ali exa​ta​m en​te por​que que​r ia con​ver​sar, mas ti​nha em vis​ta um
in​ter​lo​c u​tor mui​to es​pe​c i​a l: seu ve​lho ami​go Ale-xan​der Ch​r is​toph​son, ex-em​bai​-
xa​dor ame​r i​c a​no na In​gla​ter​r a, ex-se​na​dor pelo Es​ta​do de Mas​sa​c hu​setts, e ex-
di​r e​tor da CIA, apo​sen​ta​do fa​zia uma dé​c a​da. Ch​r is​toph​son ti​nha se​ten​ta e seis
anos, mas, como Pa​blo, tam​bém fora pou​pa​do pelo tem​po. Alto, ele​gan​te, o ros​to
fino e clás​si​c o dos bos​to​ni​a ​nos de boa e tra​di​c i​o​nal es​tir​pe, ain​da era o mes​m o
ho​m em in​te​li​gen​te e bri​lhan​te dos anos de ju​ven​tu​de e ape​nas o leve tre​m or da
mão di​r ei​ta tra​ía a úni​c a do​e n​ç a que os anos lhe trou​xe​r am, o mal de Parkin​son.
Meia hora an​tes do jan​tar, Pa​blo con​se​guiu ar​r as​tar Alex para lon​ge do gru​-
po que o cer​c a​va e o le​vou até o es​c ri​tó​r io par​ti​c u​lar de Ira Her​genshei​m er. De​-
pois de tran​c ar a por​ta, apro​xi​m ou-se das pol​tro​nas de cou​r o jun​to à la​r ei​r a, com
duas ta​ç as de cham​pa​nhe.
— Pre​c i​so de um con​se​lho — dis​se, para co​m e​ç ar a con​ver​sa.
— Você deve sa​ber que os ve​lhos ado​r am dar con​se​lhos — re​pli​c ou Alex,
sor​r in​do. — Acho que as​sim nos sen​ti​m os re​c om​pen​sa​dos por não dar mais
exem​plos... Mas não acre​di​to que você pre​c i​se de con​se​lhos. Com cer​te​za já re​-
sol​veu a ques​tão e está ape​nas tes​tan​do sua hi​pó​te​se.
Ig​no​r an​do o co​m en​tá​r io, Pa​blo des​pe​j ou:
— On​tem fui pro​c u​r a​do por uma jo​vem. Uma jo​vem ex​tre​m a​m en​te bo​ni​-
ta, ele​gan​te, mui​to in​te​li​gen​te, ha​bi​tu​a ​da a re​sol​ver os pró​pri​os pro​ble​m as... mas
que aca​ba de en​c on​trar-se fren​te a fren​te com um pro​ble​m a bem es​tra​nho. A jo​-
vem pre​c i​sa de aju​da.
— Fan​tás​ti​c o! — Alex er​gueu as so​bran​c e​lhas. — Aos oi​ten​ta e um anos
você anda às vol​tas com jo​vens que pre​c i​sam de aju​da?! E foi ela quem o pro​c u​-
rou. Es​tou im​pres​si​o​na​do, hu​m i​lha​do e... mor​to de in​ve​j a.
— Ora, ve​lho li​ber​ti​no... Nao é nada dis​so... Não se tra​ta de uma aven​tu​r a...
Es​tou fa​lan​do de uma moça com pro​ble​m as mui​to sé​r i​os. — Sem men​c i​o​nar no​-
mes ou de​ta​lhes que pu​des​sem iden​ti​f i​c ar Gin​ger, Pa​blo re​la​tou o que ela lhe
con​ta​r a so​bre as cri​ses de medo, e des​c re​veu a ses​são de hip​no​se. — Não te​nho
dú​vi​das de que a moça es​ta​va a pon​to de en​trar em coma... coma auto-in​du​zi​da.
E ra​zo​á ​vel ima​gi​nar que po​de​r ia che​gar ao sui​c í​dio. E tudo isso para fu​gir as mi​-
nhas per​gun​tas... Não pre​c i​so di​zer que não vol​tei a hip​no​ti​zá-la de​pois do que
acon​te​c eu, mas pro​m e​ti a ela que iria pes​qui​sar e ver se en​c on​tra​va al​gum caso
se​m e​lhan​te. E o que te​nho fei​to de on​tem para hoje. Es​ta​m os aqui, con​ver​san​do,
exa​ta​m en​te por​que en​c on​trei uma re​f e​r ên​c ia mui​to in​te​r es​san​te num de seus li​-
vros. Sim, eu sei que você fa​la​va de um caso de blo​queio psi​c o​ló​gi​c o im​pos​to à
for​ç a, como par​te de um pro​c es​so de la​va​gem ce​r e​bral; o blo​queio da moça de
que es​tou fa​lan​do é cri​a ​ç ão dela; mas não te​nho dú​vi​das de que os ca​sos são se​-
me​lhan​tes.
Alex Ch​r is​toph​son es​c re​ve​r a vá​r i​os li​vros, ins​pi​r a​dos em sua ex​pe​r i​ê n​c ia, nos
anos de ser​vi​ç o na con​tra-es​pi​o​na​gem, du​r an​te a Se​gun​da Guer​r a Mun​di​a l, e,
mais tar​de, nas pri​m ei​r as es​c a​r a​m u​ç as da guer​r a fria. Dois des​ses li​vros tra​ta​-
vam qua​se ex​c lu​si​va​m en​te de mé​to​dos de la​va​gem ce​r e​bral, e um de​les des​c re​-
via uma téc​ni​c a cha​m a​da “blo​queio de Az​r a​e l”, nome es​c o​lhi​do em re​f e​r ên​c ia a
um dos an​j os que anun​c i​a m a mor​te. Esse “blo​queio de Az​r a​e l” po​dia dei​xar
ves​tí​gi​os, um pro​c es​so es​pan​to​sa​m en​te se​m e​lhan​te ao que es​ta​va acon​te​c en​do a
Gin​ger Weiss: ves​tí​gi​os de me​m ó​r i​a s si​ti​a ​das, si​nais mui​to se​m e​lhan​tes à que​da
de uma bar-
rei​r a que pa​r e​c ia cer​c ar na me​m ó​r ia lem​bran​ç a de al​gum acon​te​c i​m en​to
trau​m á​ti​c o ocor​r i​do no pas​sa​do.
Em si​lên​c io, ou​vin​do ao lon​ge os acor​des da mú​si​c a su​a ​ve que vi​nha do hall,
Alex cur​vou-se e co​lo​c ou a taça de cham​pa​nhe so​bre a mesa. Pa​blo viu sua mão
tre​m er.
— De nada adi​a n​ta pe​dir-lhe que es​que​ç a isso, não é?
— Alex re​c os​tou-se ou​tra vez à pol​tro​na. — Se​r ia in​ú​til, eu sei... mas é o
úni​c o bom con​se​lho que pos​so lhe dar.
Pa​blo es​ta​va sur​pre​so com a se​r i​e ​da​de do ami​go.
— Ora... Eu dis​se à moça que ia pes​qui​sar... pro​m e​ti aju​dá-la.
— Es​tou apo​sen​ta​do há oito anos e meu faro já não é o mes​m o... Mas sin​to
que você vai se me​ter em com​pli​c a​ç ões que ain​da pão po​de​m os ava​li​a r. Es​que​ç a
a moça e não vol​te a vê-la. Não in​sis​ta em aju​dá-la.
— Mas... eu pro​m e​ti!
— Eu ti​nha cer​te​za de que não adi​a n​ta​r ia nada, mas achei que de​ve​r ia ten​-
tar... — Alex cru​zou os bra​ç os. — Está bem. Vou-lhe di​zer o que sei so​bre o blo​-
queio de Az​r a​e l... Em pri​m ei​r o lu​gar, não é uma téc​ni​c a mui​to usa​da no Oci​den​-
te, mas os rus​sos a con​si​de​r am uti​lís​si​m a. Ima​gi​ne​m os, por exem​plo, um agen​te
rus​so de nome Ivan, com trin​ta anos de ser​vi​ç os pres​ta​dos à KGB. E cla​r o que
Ivan sabe mui​tas coi​sas, tem in​f or​m a​ç ões re​gis​tra​das na me​m ó​r ia que, se ca​ís​-
sem em mãos ini​m i​gas, em pou​c os me​ses des​trui​r í​a m a com​pli​c a​da rede de es​-
pi​o​na​gem rus​sa mon​ta​da no Oci​den​te. Os su​pe​r i​o​r es de Ivan já não con​se​guem
dor​m ir, com medo de que ele ve​nha a ser pre​so e in​ter​r o​ga​do.
— Tan​to quan​to sei, com o uso de de​ter​m i​na​das dro​gas e o em​pre​go de
téc​ni​c as de hip​no​se, é pos​sí​vel ar​r an​c ar a ver​da​de de qual​quer pes​soa, mes​m o
que ela não quei​r a fa​lar.
— Exa​ta​m en​te. Os su​pe​r i​o​r es de Ivan sa​bem que se for pre​so, ele aca​ba​r á
fa​lan​do, ain​da que não seja tor​tu​r a​do. Por isso, man​tém um exér​c i​to de agen​tes
mais jo​vens, to​dos mui​to bem trei​na​dos, mas sem os anos de ser​vi​ç o e as to​ne​la​-
das de in​f or​m a​ç ões que Ivan tem ar​m a​ze​na​das na ca​be​ç a. De qual​quer modo, às
ve​zes, ain​da é ne​c es​sá​r io re​c or​r er a Ivan, seja por​que a mis​são exi​ge
al​guém mais ex​pe​r i​e n​te, seja por qual​quer ou​tra ra​zão. A par​tir do mo​m en​to
em que Ivan en​tra em ação, co​m e​ç a a cres​c er o ris​c o de que seja pre​so e in​ter​-
ro​ga​do.
Pa​blo pen​sou por um se​gun​do, an​tes de co​m en​tar:
— Um ris​c o que é pre​c i​so cor​r er.
— Até cer​to pon​to, sim. Mas su​po​nha que Ivan sabe de uma ou duas coi​sas
que de modo al​gum po​de​r í​a m ser re​ve​la​das ao ini​m i​go, como lo​c a​li​za​ç ão de de​-
pó​si​tos de ar​m a​m en​to ou pla​nos de guer​r a. Se re​ve​la​dos, tais se​gre​dos le​va​r i​a m à
des​trui​ç ão seu país, e por isso Ivan pre​c i​sa es​que​c ê-los. E ape​nas uma pe​que​na
par​te do que há em sua me​m ó​r ia, tão pe​que​na que pode ser su​pri​m i​da sem da​ni​-
fi​c ar sua com​pe​tên​c ia pro​f is​si​o​nal. As​sim, caso Ivan seja pre​so, po​de​r á ser in​ter​-
ro​ga​do sem que nin​guém des​c on​f ie de que está es​c on​den​do al​gu​m a coi​sa. Po​de​-
rá fa​lar so​bre uma in​f i​ni​da​de de as​sun​tos e vá​r i​os ou​tros se​gre​dos... Mas não fa​-
la​r á, em hi​pó​te​se al​gu​m a, so​bre os se​gre​dos blo​que​a ​dos em sua me​m ó​r ia.
— E a isso cha​m am “blo​queio de Az​r a​e l”...
— Ivan re​c e​be um de​ter​m i​na​do tipo de tra​ta​m en​to. Dro​gas, hip​no​se... que
o fa​zem es​que​c er de​ter​m i​na​dos te​m as. E, as​sim, pode exe​c u​tar as missões para
as quais seja ne​c es​sá​r io.
Alex con​c or​dou com um ges​to de ca​be​ç a e re​sol​veu dar um exem​plo:
— Su​po​nha​m os que, anos atrás, Ivan te​nha sido um dos agen​tes en​vol​vi​dos
num aten​ta​do con​tra o papa João Pau​lo II. Com o em​pre​go de de​ter​m i​na​das téc​-
ni​c as, é pos​sí​vel fazê-lo es​que​c er tudo que se re​f e​r e ao aten​ta​do. Tais in​f or​m a​-
ções vol​tam ao in​c ons​c i​e n​te e fi​c am tran​c a​das lá, fora do al​c an​c e de qual​quer
soro da ver​da​de e de qual​quer téc​ni​c a de in​ter​r o​ga​tó​r io, se​j am es​tas de per​su​a ​-
são ou de tor​tu​r a fí​si​c a. Po​r ém há mais. Na mes​m a hi​pó​te​se de Ivan ser pre​so e
in​ter​r o​ga​do, su​po​nha​m os que seus cap​to​r es, até mes​m o por aca​so, co​m e​c em a
sus​pei​tar da exis​tên​c ia de um blo​queio in​du​zi​do. E evi​den​te que se ati​r a​r ão ao as​-
sun​to com re​do​bra​da aten​ç ão, por​que sa​bem que o que está por trás do blo​queio
será, sem dú​vi​da, a in​f or​m a​ç ão mais im​por​tan​te que o po​bre Ivan po​de​r á for​ne​-
cer. E aqui que co​m e​ç a a ver​da​dei​r a
uti​li​da​de do blo​queio de Az​r a​e l. Quan​do Ivan for in​ter​r o​ga​do so​bre os as​sun​-
tos que foi in​du​zi​do a es​que​c er, seu in​c ons​c i​e n​te o for​ç a​r á a en​trar em coma pro​-
fun​da, pro​f un​da o bas​tan​te para não ou​vir a voz do in​qui​si​dor. Em si​tu​a ​ç ão de ex​-
tre​m a pres​são, po​de​r á auto-in​du​zir-se a mor​r er. Tal​vez o me​lhor nome para essa
téc​ni​c a seja “ga​ti​lho de Az​r a​e l”, pois é a pró​pria ví​ti​m a que aci​o​na o me​c a​nis​m o
da coma ou até da mor​te.
Fas​c i​na​do, Pa​blo ar​r e​ga​lou os olhos.
— Mas... o ins​tin​to de so​bre​vi​vên​c ia não é for​te o bas​tan​te para su​pe​r ar o
blo​queio? — per​gun​tou. — Acho im​pos​sí​vel que, mes​m o sob pres​são in​ten​sa,
Ivan pre​f i​r a mor​r er a re​ve​lar os se​gre​dos. Acho que não há lem​bran​ç a que não
vol​te se o in​di​ví​duo es​ti​ver cor​r en​do ris​c o de vida!
— Pois acha er​r a​do... — A luz su​a ​ve que bri​lha​va ao lado da pol​tro​na, o
ros​to de Alex pa​r e​c ia tor​nar-se cin​zen​to. — Há dro​gas mo​der​nís​si​m as que, ali​a ​-
das a no​vas téc​ni​c as de hip​no​se, po​dem fa​zer com que Ivan pre​f i​r a mor​r er. As
ci​ê n​c i​a s de con​tro​le da men​te es​tão mui​to avan​ç a​das e en​vol​vem fe​nô​m e​nos as​-
sus​ta​do​r es. A su​pres​são do ins​tin​to de so​bre​vi​vên​c ia, o mais for​te que o ho​m em
pos​sui para a pró​pria pre​ser​va​ç ão, é ape​nas um des​ses fe​nô​m e​nos. Ivan pode ser
pro​gra​m a​do para au​to​des-truir-se.
O ve​lho má​gi​c o pro​c u​r ou, sem en​c on​trar, um úl​ti​m o gole de cham​pa​nhe em
sua taça.
— A po​bre moça pa​r e​c e ter in​ven​ta​do por sua con​ta al​gu​m a coi​sa como o
blo​queio de Az​r a​e l, para fu​gir de al​gu​m a lem​bran​ç a que a as​sus​ta mui​to — co​-
men​tou.
— Er​r a​do. — Alex ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, mui​to sé​r io. — Nin​guém é ca​paz de
in​ven​tar por sua pró​pria con​ta o blo​queio de Az​r a​e l.
— Mas não há ou​tra ex​pli​c a​ç ão! Você não a viu... Ela foi su​m in​do, como
se es​c a​pas​se por en​tre meus de​dos! Seu co​r a​ç ão qua​se pa​r ou! Ela che​gou a pa​-
rar de res​pi​r ar... Você tem al​gu​m a idéia de como isso pode ser tra​ta​do? Há al​gu​-
ma pos​si​bi​li​da​de de de​sa​ti​var um blo​queio des​se, sem matá-la?
Alex le​van​tou-se da pol​tro​na, en​f i​ou as mãos nos bol​sos e ca​m i​nhou até a ja​-
ne​la.
— Você ain​da não en​ten​deu por que eu lhe pedi que es​que​c es​se esse as​sun​-
to — dis​se. — Não... Não é pos​sí​vel ima​gi​nar que al​guém pos​sa auto-in​du​zir-se a
um blo​queio de Az​r a​e l. A men​te hu​m a​na ja​m ais se​r ia ca​paz de for​ç ar-se à mor​-
te ape​nas pelo medo de des​c o​brir al​gu​m a ver​da​de as​sus​ta​do​r a. O blo​queio de
Az​r a​e l sem​pre é in​du​zi​do por agen​te ex​ter​no. Não há blo​queio de Az​r a​e l sem
agen​te ex​ter​no. Na hi​pó​te​se de que você te​nha en​c on​tra​do al​guém que guar​da
se​gre​dos pro​te​gi​dos pelo blo​queio de Az​r a​e l, pode ter cer​te​za de que há mais
gen​te in​te​r es​sa​da em
seu si​lên​c io.
— Está su​ge​r in​do que ela so​f reu uma la​va​gem ce​r e​bral? Mas isso é ri​dí​c u​-
lo! Ela não é es​piã.
— Te​nho cer​te​za de que não é.
— Tam​bém não é rus​sa... E por que al​guém lhe fa​r ia uma la​va​gem ce​r e​-
bral? E uma moça co​m um, nor​m al... Não há ra​zão para al​guém ter medo dela!
Ain​da jun​to à ja​ne​la, Alex vi​r ou-se de fren​te para o ami​go:
— E ape​nas uma idéia, uma hi​pó​te​se que po​de​r ia ocor​r er a qual​quer um
— dis​se. — Mas... e se ela ti​ves​se tes​te​m u​nha​do al​gu​m a coi​sa? Se, por mero aci​-
den​te, ti​ves​se vis​to algo que al​guém não de​se​j as​se que vis​se? Algo mui​to im​por​-
tan​te, tal​vez se​c re​to... Nes​se caso, po​de​r ia ter so​f ri​do a la​va​gem ce​r e​bral.
Sem achar o que di​zer, Pa​blo ar​r e​ga​lou os olhos e ba​lan​ç ou a ca​be​ç a.
— Mas... O que ela te​r ia vis​to de tão im​por​tan​te para ser tra​ta​da como...
uma es​piã?! — per​gun​tou por fim e, como o ami​go se li​m i​tas​se a dar de om​bros,
sem res​pos​ta, con​ti​nuou: — E quem es​ta​r ia in​te​r es​sa​do em fazê-la es​que​c er...
seja lá o que for?!
Des​sa vez Alex sou​be exa​ta​m en​te como re​pli​c ar:
— Os rus​sos, a CIA, o ser​vi​ç o se​c re​to is​r a​e ​len​se, o M-16 in​glês. E mais
uma dú​zia de or​ga​ni​za​ç ões ca​pa​zes de ma​ni​pu​lar as téc​ni​c as de con​tro​le men​tal.
— Acho que ela nun​c a vi​a ​j ou para o ex​te​r i​or. Nes​se caso, te​r ía-mos ape​-
nas a CIA.
— Não ne​c es​sa​r i​a ​m en​te. To​das as or​ga​ni​za​ç ões que ci​tei têm agen​tes que
ope​r am em nos​so país. Além dis​so, não são ape​nas es​ses gru​pos que co​nhe​c em
as téc​ni​c as de con​tro​le men​tal. Há gru​pos de fa​ná​ti​c os re​li​gi​o​sos, gru​pos po​lí​ti​c os
mar​gi​nais, cen​te​nas tal​vez... Você sabe que es​sas idéi​a s se es​pa​lham com fa​c i​li​-
da​de, e as dro​gas es​tão aí, ao al​c an​c e de um mé​di​c o, por exem​plo. De qual​quer
modo, se ela se en​vol​veu com gen​te ca​paz de lan​ç ar mão de mé​to​dos de blo​-
queio psi​c o​ló​gi​c o para fazê-la es​que​c er o que sabe, não é se​gu​r o ten​tar aju​dá-la
a lem​brar-se. Não é se​gu​r o nem para ela nem para você.
— Não acho que...
— Pois acho que você de​via achar.
— As cri​ses de medo, as fu​gas, os pe​r í​o​dos de in​c ons​c i​ê n​c ia, o medo in​-
ven​c í​vel de um par de lu​vas pre​tas, de ca​pa​c e​tes... Isso pa​r e​c e in​di​c ar que a bar​-
rei​r a psi​c o​ló​gi​c a não é tão só​li​da como você des​c re​veu. E pos​sí​vel que ela pró​-
pria es​te​j a con​se​guin​do ven​c er o blo​queio? É pos​sí​vel que es​ses ma​ní​a ​c os ti​ves​-
sem fei​to um tra​ba​lho de ama​dor? Um tra​ba​lho im​per​f ei​to, com fa​lhas? E... por
quê?
Alex vol​tou à pol​tro​na, sen​tou-se e in​c li​nou-se para a fren​te, os olhos mui​to
sé​r i​os fi​tos no ros​to de Pa​blo.
— Pois aí está, exa​ta​m en​te, o que mais me pre​o​c u​pa — dis​se. — Não
acre​di​to que uma bar​r ei​r a men​tal, só​li​da o bas​tan​te para re​sis​tir du​r an​te to​dos es​-
ses me​ses, co​m e​c e, de re​pen​te, a rom​per-se es​pon​ta​ne​a ​m en​te. O blo​queio não
fun​c i​o​na as​sim... E é evi​den​te que sua ami​ga se en​vol​veu com pro​f is​si​o​nais. As​-
sim sen​do, os pro​ble​m as que está en​f ren​tan​do... as cri​ses, o medo... só po​dem
sig​ni​f i​c ar uma coi​sa...
— Sim...? — mur​m u​r ou Pa​blo, an​si​o​so.
— Que as lem​bran​ç as re​pri​m i​das pelo blo​queio de Az​r a​e l são de tal na​tu​-
re​za, tão as​sus​ta​do​r as, tão ex​plo​si​vas, que nada, nem mes​m o a mais avan​ç a​da
tec​no​lo​gia de con​tro​le men​tal, con​se​gue man​tê-las a dis​tân​c ia do cons​c i​e n​te.
Exis​te algo ter​r í​vel ocul​to na
me​m ó​r ia de sua ami​ga... algo gran​de de​m ais, tão gran​de que está for​ç an​do o
ca​m i​nho para a cons​c i​ê n​c ia. Es​ses ob​j e​tos... as lu​vas, o of​tal​m os​c ó​pio, o ca​pa​c e​-
te... es​tão fun​c i​o​nan​do como de​to​na-do​r es de cri​ses por​que, pro​va​vel​m en​te, fa​-
zem par​te das lem​bran​ç as re​pri​m i​das. Quan​do ela os vê, as lem​bran​ç as che​gam
bem pró​xi​m as do cons​c i​e n​te. Logo, po​r ém, aci​o​na-se o blo​queio e as lem​bran​ç as
vol​tam a de​sa​pa​r e​c er no in​c ons​c i​e n​te.
O co​r a​ç ão de Pa​blo ba​tia rá​pi​do.
— Nes​se caso, tal​vez seja pos​sí​vel hip​no​ti​zá-la, fazê-la re​gre​dir e der​r u​bar
o blo​queio de Az​r a​e l, que, ali​á s, já está dan​do si​nais de es​ta​f a. Ten​do cui​da​do, é
pos​sí​vel fazê-la lem​brar e evi​tar o coma auto-in​du​zi​do...
De um sal​to, Alex le​van​tou-se da pol​tro​na e pos​tou-se di​a n​te do ami​go, o
dedo em ris​te.
— Você não está en​ten​den​do! E pe​r i​go​so de​m ais! Você está se me​ten​do
com gen​te mui​to pe​r i​go​sa. Se aju​dar sua ami​ga a se lem​brar, fará com que os
ini​m i​gos dela se trans​f or​m em em seus ini​m i​gos tam​bém. Vo​c ês se​r ão dois a co​-
nhe​c er o se​gre​do que eles que​r em es​c on​der!
— Ela é tão jo​vem... E está com a vida ar​r ui​na​da...
— Você não pode aju​dá-la. Está mui​to ve​lho e é um só.
— Você pen​sa as​sim por​que não a co​nhe​c e, por​que não sabe quem é ela e
o que faz. Vou-lhe con​tar tudo para que...
— Não que​r o sa​ber! — Alex gri​tou.
— Ela é mé​di​c a — Pa​blo in​sis​tiu. — Está con​c lu​in​do o pe​r í​o​do de re​si​dên​-
cia. Ou es​ta​va... de​pois de qua​tor​ze anos de tra​ba​lho, es​tu​do e de​di​c a​ç ão. E ago​r a
está per​den​do tudo o que con​se​guiu! E uma tra​gé​dia!
— Em mi​nha opi​ni​ã o, nada dis​so in​te​r es​sa. O que in​te​r es​sa é pen​sar que
ela tal​vez des​c u​bra que lem​brar pode ser pior do que não lem​brar. As me​m ó​r i​a s
que ela ain​da man​tém re​pri​m i​das po​dem ser... de​vas​ta​do​r as!
— É pos​sí​vel... — Pa​blo con​c or​dou. — Mas não cabe a nós de​c i​dir isso. A
vida dela está em jogo... Por que ne​gar-lhe a chan​c e de re​sol​ver?
Alex não mo​veu um mús​c u​lo:
— Se sua ami​ga não for des​tru​í​da pela ver​da​de, aca​ba​r á as​sas​si​na​da pe​los
ho​m ens que lhe im​plan​ta​r am o blo​queio. Até me sur​preen​de mui​to que já não a
te​nham as​sas​si​na​do. Quem quer que es​te​j a por trás dis​so, nos​sos ser​vi​ç os se​c re​-
tos ou ser​vi​ç os es​tran​gei​r os, você sabe que há um as​pec​to no qual to​dos con​c or​-
dam... para eles, o pes​so​a l ci​vil é des​c ar​tá​vel, com​ple​ta​m en​te des​c ar​tá​vel. Não
en​ten​do por que se de​r am ao tra​ba​lho de im​plan​tar um blo​queio em sua ami​ga,
quan​do po​de​r i​a m ter-se li​vra​do dela com uma bala. Ba​las são mais sim​ples e
mais ba​r a​tas. Ima​gi​no que te​nham que​r i​do lhe dar uma se​gun​da chan​c e. Mas
não se ilu​da, meu ami​go... ela não terá uma ter​c ei​r a chan​c e! Quan​do sou​be​r em
que o blo​queio de Az​r a​e l está sen​do bom​bar​de​a ​do, eles a ma​ta​r ão.
— Tal​vez sim. Tal​vez não — re​pli​c ou Pa​blo. — Você pre​c i​sa co​nhe​c ê-la.
Ela é fan​tás​ti​c a! Cheia de for​ç a e von​ta​de de vi​ver... for​te como um ro​c he​do...
Des​de cedo apren​deu a lu​tar para con​se​guir o que quer. E ago​r a... Para ela a vida
está in​su​por​tá​vel! Não sei se ela mes​m a não es​c o​lhe​r ia lu​tar, em are​na aber​ta,
olho no olho do ini​m i​go... em vez de es​c on​der-se atrás do es​que​c i​m en​to de... seja
lá o que for!
— E você? Acho bom es​c la​r e​c er que, em mi​nha opi​ni​ã o, se eles de​c i​di​r em
ma​tar, você é o se​gun​do da lis​ta. Tal​vez, mes​m o, o pri​m ei​r o, já que, no caso de
sua ami​ga, ain​da po​dem con​tar com o blo​queio. Já pen​sou nis​so?
— Aos oi​ten​ta e um anos, a vida co​m e​ç a a fi​c ar mui​to mo​nó​to​na... — Pa​-
blo riu. — Você acha que eu dei​xa​r ia pas​sar uma aven​tu​r a como essa?! Vo​gue la
galè​rel Vou ar​r is​c ar.
— Está co​m e​ten​do um erro gra​ve.
— E pos​sí​vel, meu ami​go... é pos​sí​vel. Por que será, en​tão, que me sin​to
tão bem?
Chi​c a​go Il​li​nois
O dr. Ben​net Son​ne​f ord, que ope​r a​r a Win​ton Tolk no dia se​guin​te ao in​c i​den​te
do bar, con​du​ziu o pa​dre Wy ​c a​zik até seu es-
cri​to​r io do​m es​ti​c o, uniâ sala de pa​r e​des co​ber​tas com pei​xes em​pa​lha​dos:
um gi​gan​tes​c o al​ba​c o​r a, um sal​m ão, al​gu​m as tru​tas — mais de trin​ta olhos de vi​-
dro es​pi​a ​vam os dois ho​m ens, sem vê-los. De um lado, uma es​tan​te cheia de tro​-
féus, ta​ç as dou​r a​das e pra​te​a ​das, mui​tas me​da​lhas. O mé​di​c o sen​tou-se à es​c ri​-
va​ni​nha de car​va​lho, exa​ta​m en​te sob o al​ba​c o​r a, e in​di​c ou ao pa​dre uma da ca​-
dei​r as.
O hos​pi​tal for​ne​c e​r a ape​nas o te​le​f o​ne do con​sul​tó​r io do dr.
Son​ne​f ord, mas o ve​lho pá​r o​c o não sos​se​gou en​quan​to não des​c o​briu o en​de​-
re​ç o de sua re​si​dên​c ia. Sem​pre va​len​do-se da aju​da de vá​r i​os ami​gos na em​pre​-
sa te​le​f ô​ni​c a, é cla​r o. E ago​r a lá es​ta​va seh​ta​do à fren​te do mé​di​c o, às sete e
meia da noi​te de Na​tal, no úl​ti​m o pa​r á​gra​f o dos pe​di​dos de des​c ul​pas pela in​ter​-
rup​ç ão. Logo ata​c ou o as​sun​to prin​c i​pal:
^ — Bren​dan tra​ba​lha co​m i​go na pa​r ó​quia de San​ta Ber​nar​det​te. j
É um ex​c e​len​te co​la​bo​r a​dor, e eu não gos​ta​r ia de vê-lo me​ti​do em com​pli​-
ca​ç ões.
Son​ne​f ord, que ti​nha al​gu​m a coi​sa de pei​xe, no pá​li​do ros​to de olhos sa​li​e n​tes
e boca lar​ga, ad​m i​r ou-se.
— Com​pli​c a​ç ões? — Apa​nhou uma pe​que​na cha​ve de fen​da, es​c o​lhi​da
den​tre vá​r i​a s numa cai​xa de fer​r a​m en​tas, bai​xou os olhos e con​c en​trou-se no
con​ser​to de um car​r e​tei de pes​c a​r ia que es​ta​va so​bre a mesa. — Que tipo de
com​pli​c a​ç ões?
— Obs​tru​ç ão do tra​ba​lho de agen​tes da lei.
— Isso é ri​dí​c u​lo. — Son​ne​f ord cui​da​do​sa​m en​te re​ti​r ou dois mi​n​ús​c u​los
pa​r a​f u​sos do car​r e​tei. — Se ele não ti​ves​se so​c or​r i​do o pa​tru​lhei​r o, não es​ta​r í​a ​-
mos con​ver​san​do, por​que o pa​tru​lhei​r o es​ta​r ia mor​to. Tolk re​c e​beu qua​tro li​tros e
meio de san​gue.
— É mes​m o? En​tão não hou​ve en​ga​no no preen​c hi​m en​to do re​la​tó​r io da
ci​r ur​gia.
— Não, não hou​ve. — O mé​di​c o abri​r a o car​r e​tei e exa​m i​na​va-o com
mui​ta aten​ç ão. — Um adul​to tem se​ten​ta mi​li​li​tros de san​gue por qui​lo​gra​m a de
peso cor​po​r al. Tolk é um ho​m em cor​pu​len​to, pesa cem qui​los. E pre​vi​sí​vel que ti​-
ves​se sete li​tros de san​gue nas vei​a s. As​sim, quan​do or​de​nei que lhe des​sem san​-
gue, ao ini-
ciar a ci​r ur​gia, ha​via so​bre a mesa ape​nas qua​r en​ta por cen​to do pa​tru​lhei​r o
Tolk. — Tro​c ou a cha​ve de fen​da por um ali​c a​te. —• E ele re​c e​be​r a um li​tro de
san​gue na am​bu​lân​c ia, an​tes de che​gar ao hos​pi​tal.
— Está di​zen​do que, an​tes de ser so​c or​r i​do, o pa​tru​lhei​r o che​gou a per​der
se​ten​ta e cin​c o por cen​to do san​gue que ti​nha? Mas... é pos​sí​vel per​der tan​to san​-
gue e so​bre​vi​ver?
— Não — Son​ne​f ord res​pon​deu, sem le​van​tar os olhos.
O pa​dre Wy ​c a​zik sen​tiu uma onda de pra​zer cor​r er-lhe pe​las cos​tas.
— As ba​las alo​j a​r am-se nos te​c i​dos mo​les e não atin​gi​r am ór​gãos vi​tais.
Po​de​r i​a m ter sido des​vi​a ​das pe​las cos​te​las? Por al​gum ou​tro osso?
Son​ne​f ord con​ti​nu​a ​va a con​ser​tar o car​r e​tei, mas pa​r ou e le​van​tou a ca​be​ç a:
— Se aque​las duas ba​las ti​ves​sem atin​gi​do al​gum osso, te​r i​a m pro​du​zi​do
es​ti​lha​ç a​m en​to dos te​c i​dos ós​se​os. Não vi nada dis​so. Por ou​tro lado, se não ti​ves​-
sem en​c on​tra​do te​c i​do duro pela fren​te, te​r i​a m va​r a​do o tó​r ax, e aber​to dois ori​-
fí​c i​os de sa​í​da. Eu mes​m o en​c on​trei as ba​las alo​j a​das em te​c i​do mus​c u​lar.
Ste​f an pa​r ou, como que à es​pe​r a.
— Por que será que te​nho a sen​sa​ç ão de que há mais al​gu​m a coi​sa so​bre a
qual o se​nhor está e não está que​r en​do fa​lar? — per​gun​tou.
— E por que será que te​nho a sen​sa​ç ão de que o se​nhor não foi sin​c e​r o ao
ex​por os mo​ti​vos que o trou​xe​r am aqui?
— Tou​c hél — O pa​dre Wy ​c a​zik bai​xou a ca​be​ç a.
Son​ne​f ord sus​pi​r ou e de​vol​veu à cai​xa as pe​que​nas fer​r a​m en​tas.
— Tudo bem. Pela aná​li​se dos ori​f í​c i​os de en​tra​da das ba​las, te​nho ab​so​lu​ta
cer​te​za de que uma de​las atin​giu o tó​r ax de Tolk e al​c an​ç ou a par​te in​f e​r i​or do
osso es​ter​no, que de​ve​r ia ter par​ti​do. Os frag​m en​tos do osso atin​gi​do te​r i​a m se
es​pa​lha​do por to​dos os la​dos e ne​c es​sa​r i​a ​m en​te aca​ba​r i​a m por atin​gir ór​gãos,
vei​a s ou ar​té​r i​a s vi​tais. Apa​r en​te​m en​te, não foi isso que an​c on​te​c eu.
— Por que “apa​r en​te​m en​te”? Ou acon​te​c eu, ou não acon​te​c eu.
— Eu sei que a bala atin​giu o es​ter​no, por​que não há como en​trar por onde
ela en​trou e che​gar até onde eu a en​c on​trei sem atin​gir o es​ter​no. No en​tan​to, eu
a en​c on​trei alo​j a​da em te​c i​do mus​c u​lar, na par​te pos​te​r i​or do tó​r ax... A úni​c a ex​-
pli​c a​ç ão pos​sí​vel é que a bala... ora, que a bala... atra​v es​sou o osso. Cla​r o que sei
que isso é im​pos​sí​vel. Mas tam​bém sei que exa​m i​nei o ori​f í​c io de en​tra​da, vi o
es​ter​no a mi​lí​m e​tros da fe​r i​da, in​ta​to, e en​c on​trei a bala atrás do es​ter​no. Não
pos​so ima​gi​nar como ela che​gou lá. O mes​m o acon​te​c eu com a se​gun​da bala.
Ela deve ter atin​gi​do uma cos​te​la. Mas a cos​te​la tam​bém es​ta​va in​ta​ta. Uma bala
de ca​li​bre trin​ta e oito é mais do que su​f i​c i​e n​te para des​truir uma cos​te​la.
— O se​nhor pode ter se en​ga​na​do — dis​se o pa​dre, as​su​m in​do a pos​tu​r a de
ad​vo​ga​do do di​a ​bo. — A bala pode ter pas​sa​do en​tre duas cos​te​las...
— Não. — O mé​di​c o le​van​tou a ca​be​ç a, po​r ém não olhou para Ste​f an; pa​-
re​c ia cada vez mais con​f u​so. — Não co​m e​to er​r os des​se tipo. Além de tudo o
que lhe dis​se, há ou​tro de​ta​lhe ain​da mais in​tri​gan​te. Não hou​ve dano al​gum aos
te​c i​dos que fi​c am en​tre o pon​to em que a bala en​trou e o pon​to onde a en​c on​trei.
Isso é ab​so​lu​ta​m en​te im​pos​sí​vel de en​ten​der. Não há a me​nor pos​si​bi​li​da​de de
um pro​j é​til dis​pa​r a​do por arma de fogo atra​ves​sar te​c i​do mus​c u​lar hu​m a​no sem
da​ni​f i​c á-lo.
— Tal​vez... um pe​que​no mi​la​gre...
— Não... Um gran​de mi​la​gre.
— Se ape​nas uma ar​té​r ia e uma veia fo​r am atin​gi​das e, ain​da as​sim, sem
gra​vi​da​de... como foi que Tolk per​deu tan​to san​gue?
— Não sei. Os fe​r i​m en​tos que en​c on​trei não po​dem ser res​pon​sá​veis pela
vas​ta he​m or​r a​gia.
O mé​di​c o ca​lou-se e bai​xou a ca​be​ç a. Pa​r e​c ia as​sus​ta​do! Mas por que es​ta​-
ria as​sus​ta​do? Se tes​te​m u​nha​r a um mi​la​gre, te​r ia an​tes ra​zões para sen​tir-se eu​-
fó​r i​c o!
— Dou​tor, sei que não é fá​c il, para um ci​e n​tis​ta como o se​nhor, ad​m i​tir
que exis​tem coi​sas que sua ci​ê n​c ia não é ca​paz de ex​pli​c ar. Coi​sas que, na ver​da​-
de, pa​r e​c em apon​tar na di​r e​ç ão opos​ta
à ra​zão ci​e n​tí​f i​c a. De qual​quer modo, é im​por​tan​te que o se​nhor me con​te
tudo que viu. Te​nho a im​pres​são de que há mais al​gu​m a coi​sa. O quê? Como foi
que Tolk per​deu tan​to san​gue se suas fe​r i​das eram tão in​sig​ni​f i​c an​tes?
Son​ne​f ord aco​m o​dou-se na ca​dei​r a por trás da es​c ri​va​ni​nha, as cos​tas mui​to
re​tas, todo o cor​po ten​so.
— Em ca​sos como o de Tolk — co​m e​ç ou —, o pro​c e​di​m en​to ci​r úr​gi​c o de
ro​ti​na é sim​ples. De​pois de dar iní​c io à trans​f u​são de san​gue, lo​c a​li​zei os pro​j é​teis
atra​vés de cha​pas ra​di​o​grá​f i​c as do tó​r ax e re​a ​li​zei as in​c isões ne​c es​sá​r i​a s para
re​m o​vê-los. Du​r an​te o pro​c es​so, en​c on​trei um pe​que​no pon​to de rom​pi​m en​to na
ar​té​r ia me​sen​té​r i​c a su​pe​r i​or e ou​tro numa das vei​a s in​ter​c os​tais su​pe​r i​o​r es. Eu ti​-
nha cer​te​za de que ha​via ou​tras vei​a s ou ar​té​r i​a s atin​gi​das, mas não con​se​gui lo​-
ca​li​zá-las de ime​di​a ​to. En​tão re​sol-vi pin​ç ar e su​tu​r ar os dois va​sos que en​c on​tra​-
ra e só de​pois pro​c u​r ar ou​tros even​tu​a is da​nos. E coi​sa rá​pi​da... ape​nas al​-
guns mi​nu​tos... Su​tu​r ei pri​m ei​r o a ar​té​r ia, por​que a he​m or​r a​gia era mai​or na​que​-
le pon​to. En​tão...
— Sim...? — mur​m u​r ou o pa​dre Wy ​c a​zik, an​si​o​so.
— Vol​tei à veia in​ter​c os​tal. A pin​ç a es​ta​va exa​ta​m en​te onde eu a co​lo​c a​-
ra... mas a fe​r i​da de​sa​pa​r e​c e​r a.
— De​sa​pa​r e​c e​r a... — o pá​r o​c o re​pe​tiu. Era o fato de que tan​to pre​c i​sa​va.
A coi​sa es​tra​nha, o fe​nô​m e​no inex​pli​c á​vel, a re​ve​la​ç ão!
— Isso mes​m o... — Son​ne​f ord, afi​nal, le​van​tou os olhos, chei​os de medo.
Medo de des​c o​brir que pre​sen​c i​a ​r a um mi​la​gre. — A veia ci​c a​tri​zou! Eu sei que
ha​via um rom​pi​m en​to... Eu vi, mi​nha as​sis​ten​te viu, mi​nhas en​f er​m ei​r as vi​r am!
Re​ti​r ei a pin​ç a, e o san​gue fluiu nor​m al​m en​te, sem va​za​m en​to al​gum. Mais tar​-
de, quan​do ex​traí as ba​las, foi como se o te​c i​do mus​c u​lar es​ti​ves​se se re​ge​ne​r an​-
do... bem ali, di​a n​te de nos​sos olhos!
— O que quer di​zer “foi como se...”?
O mé​di​c o he​si​tou por um mo​m en​to; pa​r e​c ia con​f u​so.
— Nada — dis​se afi​nal. — Os te​c i​dos es​ta​vam se re​ge​ne​r an​do... sei que é
di​f í​c il acre​di​tar, mas eu vi. Não há como pro​var isso, mas eu sei que uma das ba​-
las es​tou​r ou o es​ter​no de Tolk, ou​tra
re​ben​tou-lhe uma cos​te​la, e de​ze​nas de frag​m en​tos pon​ti​a ​gu​dos o fu​r a​r am
por to​dos os la​dos. Tolk per​deu san​gue por cau​sa des​sas de​ze​nas, tal​vez cen​te​nas
de pe​que​nos fe​r i​m en​tos, vá​r i​os de​les mor​tais. Mas, en​tre o mo​m en​to em que foi
fe​r i​do e o mo​m en​to em que che​gou à mesa de ci​r ur​gia, seus fe​r i​m en​tos... ci​c a​-
tri​za​r am. Os os​sos se re​ge​ne​r a​r am. Tan​to a ar​té​r ia me​sen​té​r i​c a su​pe​r i​or quan​to a
veia in​ter​c os​tal fo​r am se​ve​r a​m en​te atin​gi​das, e, no en​tan​to, es​ta​vam em pro​c es​-
so de ci​c a​tri​za​ç ão quan​do as exa​m i​nei. A he​m or​r a​gia in​ten​sa dòs pri​m ei​r os mi​-
nu​tos deve ter ocor​r i​do em fun​ç ão des​ses fe​r i​m en​tos, o que ex​pli​c a​r ia a gran​de
per​da de san​gue... ini​c i​a l. De​pois, aos pou​c os, os fe​r i​m en​tos fo​r am su​m in​do.
« - Eo que é que sua as​sis​ten​te e as en​f er​m ei​r as pen​sam dis​so?
— E en​gra​ç a​do... Nem che​ga​m os a fa​lar mui​to so​bre o caso. Nao me per​-
gun​te por quê... Acho que é por​que não acre​di​ta​m os em mi​la​gres.
— O que não dei​xa de ser um pou​c o tris​te... — Ste​f an co​m en​tou.
Com os olhos mui​to aber​tos, a som​bra do medo tor​nan​do-os
ain​da mais pa​r e​c i​dos com os olhos do pei​xe na pa​r e​de, Son​ne-ford ain​da re​-
sis​tia:
— Su​pon​do... veja bem... su​pon​do que Deus exis​te — per​gun​tou —, por
que Ele se pre​o​c u​pa​r ia em sal​var a vida des​se pa​tru​lhei​r o?
— Tolk é um bom ho​m em.
— E daí? To​dos os dias vejo mor​r er meia dú​zia de “bons ho​m ens”, “boas
mu​lhe​r es”, “boas cri​a n​ç as”... Por que Deus se pre​o​c u​pa​r ia em sal​var esse ho​-
mem em es​pe​c i​a l?
O ve​lho sa​c er​do​te le​van​tou-se e apro​xi​m ou a ca​dei​r a da es​c ri​va​ni​nha.
— Foi fran​c o co​m i​go, dou​tor, e eu tam​bém vou ser fran​c o com o se​nhor.
Pres​sin​to que há al​gu​m a coi​sa mui​to for​te por trás des​ses acon​te​c i​m en​tos. Uma
for​ç a, uma pre​sen​ç a so​bre-hu​m a​na que não se re​la​c i​o​na di​r e​ta​m en​te com o pa​-
tru​lhei​r o Tolk, e sim com Bren​dan, o ho​m em que o so​c or​r eu no bar.
— E há ou​tras evi​dên​c i​a s? — Son​ne​f ord pis​c ou, sur​pre​so.
— Há, pelo me​nos, mais uma evi​dên​c ia. — E, sem ci​tar no-
mes, o pa​dre Wy ​c a​zik con​tou-lhe so​bre a re​c u​pe​r a​ç ão de Emmy Hal​bourg.
To​da​via, nem de​pois de ou​vir a nar​r a​ti​va do que po-de​r ia ser ou​tro “mi​la​gre”, o
mé​di​c o mos​trou-se mais tran​qüi​lo ou me​nos ame​dron​ta​do.
— Tal​vez eu não es​te​j a en​ten​den​do bem o que se pas​sa com o se​nhor, mas
acho que tem boas ra​zões para sen​tir-se fe​liz. Afi​nal de con​tas, o se​nhor teve a
opor​tu​ni​da​de úni​c a e ines​ti​m á​vel de ver a pró​pria mão de Deus em ação. Por
que está as​sus​ta​do?
Son​ne​f ord pi​gar​r e​ou an​tes de res​pon​der:
— Meus pais eram lu​te​r a​nos; fui edu​c a​do como lu​te​r a​no, mas sou ateu há
vin​te e cin​c o anos. E ago​r a...
— Ah, sim... En​ten​do.
Fe​liz da vida, Ste​f an sen​tiu que ha​via fis​ga​do mais uma alma para a gló​r ia de
Deus. Não po​dia sus​pei​tar que, an​tes do fim da noi​te, a ale​gria da​que​le mo​m en​to
se trans​f or​m a​r ia em amar​ga de​c ep​ç ão.
Reno, Ne​v a​da
Ze​be​di​a h Lo​m ack ja​m ais ima​gi​nou que sua vida pu​des​se ter​m i​nar em sui​c í​-
dio no dia de Na​tal, mas pa​r e​c ia ter che​ga​do ao fim da li​nha, e a idéia de aca​bar
com tudo não lhe saía da ca​be​ç a.
Car​r e​gou a es​pin​gar​da, co​lo​c ou-a so​bre a mesa, no meio da co​zi​nha imun​da,
e pro​m e​teu a si mes​m o que da​r ia fim à pró​pria vida se, até a meia-noi​te, não
con​se​guis​se li​vrar-se da mal​di​ç ão que o per​se​guia.
A Lua. A Lua o fas​c i​na​va, do​m i​na​va e ob​c e​c a​va des​de o ve​r ão re​tra​sa​do,
em​bo​r a, nos pri​m ei​r os tem​pos, tudo pa​r e​c es​se nor​m al e ino​c en​te. Pe​los fins de
agos​to da​que​le ano, ele até gos​ta​va de pa​r ar na por​ta dos fun​dos, com uma gar​-
ra​f a de cer​ve​j a na mão, e fi​c ar olhan​do a Lua e as es​tre​las. Em me​a ​dos de se​-
tem​bro com​prou um te​les​c ó​pio e al​guns li​vros de as​tro​no​m ia.
Ele mes​m o se sur​preen​dia com tão re​pen​ti​no in​te​r es​se pe​los as​tros. Em cin​-
qüen​ta anos de vida como jo​ga​dor pro​f is​si​o​nal, ja​m ais se in​te​r es​sa​r a por qual​-
quer coi​sa afo​r a os nai​pes de ba​r a​lho. Tra​ba​lha​va em Reno, Lake Ta​hoe, Las Ve​-
gas, às ve​zes em al​gu​m a ci​da​de me​nor, como Elko ou Bul​lhe​a d City, fa​zen​do
sem​pre a úni​c a coi​sa que sa​bia: jo​gar pô​quer com tu​r is​tas. Era um jo​ga​dor de
ex​c ep​c i​o​nal ha​bi​li​da​de, apai​xo​na​do pe​las car​tas mais do que por mu​lhe​r es, co​-
mi​da ou be​bi​da. Nem mes​m o o di​nhei​r o lhe pa​r e​c ia im​por​tan​te: via-o tão-so​-
men​te como a con​se​qüên​c ia, mais ou me​nos ób​via, de sua pai​xão pelo jogo.
Para ser fe​liz, Zeb pre​c i​sa​va só de um ba​r a​lho, um par​c ei​r o e um pano ver​de.
Até que com​prou o te​les​c ó​pio e en​lou​que​c eu.
No co​m e​ç o, du​r an​te dois ou três me​ses, li​m i​tou-se a dar rá​pi​das es​pi​a ​de​las
no céu, com​prou mais al​guns li​vros e pen​sou que ha​via en​c on​tra​do um hobby in​-
te​r es​san​te. No Na​tal an​te​r i​or co​m e​ç ou a con​c en​trar-se na Lua, e foi en​tão que
tudo pi​o​r ou. Acon​te​c eu-lhe uma coi​sa mui​to es​tra​nha. Aos pou​c os, o hobby do te​-
les​c ó​pio tor​na​va-se cada vez mais fas​c i​nan​te, e logo ele es​ta​va can​c e​lan​do tem​-
po​r a​das de tra​ba​lho nos cas​si​nos só para ob​ser​var mais a Lua. Em fe​ve​r ei​r o, já
não con​se​guia des​gru​dar o olho da len​te do te​les​c ó​pio des​de o mo​m en​to em que
a Lua sur​gia no ho​r i​zon​te até vê-la de​sa​pa​r e​c er. Em abril ti​nha mais de cem li​-
vros de as​tro​no​m ia e saía de casa ape​nas duas ou três ve​zes por se​m a​na para ir
ao cas​si​no. Em ju​nho a bi​bli​o​te​c a con​ta​va mais de qui​nhen​tos tí​tu​los, e Zeb pas​-
sa​va a co​lar fo​tos da Lua pe​las pa​r e​des. Já não jo​ga​va car​ta e vi​via do di​nhei​r o
que eco​no​m i​za​va para a ve​lhi​c e. Daí por di​a n​te, o in​te​r es​se pela Lua dei​xou de
ser sim​ples hobby e trans​f or​m ou-se em ob​ses​são.
Em se​tem​bro, mil e qui​nhen​tos li​vros de as​tro​no​m ia em​pi​lha​vam-se pela
casa. Du​r an​te o dia, Zeb lia sem pa​r ar ou, quan​do não es​ta​va len​do, fi​c a​va de
olhos fi​xos nas fo​to​gra​f i​a s co​la​das pe​las pa​r e​des, in​c a​paz de en​ten​der e de evi​tar
o fas​c í​nio que a Lua exer​c ia so​bre ele. As cra​te​r as, as pla​ní​c i​e s, os aci​den​tes
do sa​té​li​te eram tão fa​m i​li​a ​r es para ele quan​to os cin​c o cô​m o​dos de sua casa.
Nas noi​tes de Lua cheia fi​c a​va olhan​do pelo te​les​c ó​pio até não se agüen​tar mais
em pé.
An​tes que a ob​ses​são pela Lua o do​m i​nas​se, Zeb Lo​m ack era um ho​m em re​-
la​ti​va​m en​te bem cui​da​do e até ele​gan​te. Mas, com o pas​sar do tem​po, foi dei​-
xan​do de lado os exer​c í​c i​os fí​si​c os e co-
me​ç ou a ali​m en​tar-se de en​la​ta​dos e re​f ei​ç ões com​pra​das pron​tas, por​que já
não con​se​guia fa​zer qual​quer coi​sa que não es​ti​ves​se re​la​c i​o​na​da à Lua.
Era ter​r í​vel, por​que, ao mes​m o tem​po que o fas​c i​na​va, a Lua as​sus​ta​va-o
mui​to. Zeb pas​sa​va da cu​r i​o​si​da​de à es​tra​nhe​za, da es​tra​nhe​za ao medo, e do
medo ao pâ​ni​c o. Vi​via ner​vo​so e ten​ta​va acal​m ar-se co​m en​do sem pa​r ar, con​se​-
qüen​te​m en​te en​gor​dou, tor​nou-se flá​c i​do, fi​c ou in​do​len​te, mas não se im​por​ta​va
nem um pou​c o com as mu​dan​ç as fí​si​c as que o trans​f or​m a​vam em ou​tro ho​-
mem.
No co​m e​ç o de ou​tu​bro só pen​sa​va na Lua, so​nha​va com a Lua, e não ha​via
um me​tro de pa​r e​de em sua casa que não es​ti​ves​se co​ber​to de fo​to​gra​f i​a s da
Lua. Em ju​nho, Zeb com​prou cin​qüen-ta có​pi​a s enor​m es de uma fo​to​gra​f ia que
mos​tra​va de​ta​lhes da su​per​f í​c ie lu​nar; como não ha​via mais es​pa​ç o para elas nas
pa​r e​des, pre​gou-as no teto, es​pa​lhou-as pelo chão, co​lou-as às vi​dra​ç as. As ve​zes,
dei​ta​va-se no chão da sala, de onde ha​via re​ti​r a​do os mó​veis, e, como se es​ti​ves​-
se num pla​ne​tá​r io, pas​sa​va ho​r as olhan​do os pos​ters co​lo​r i​dos. Eram ho​r as de
gran​de pra​zer e de inex​pli​c á​vel ter​r or.
Na noi​te de Na​tal, Zeb lá es​ta​va, es​ten​di​do no chão, com meia cen​te​na de
do​ses da Lua so​bre a ca​be​ç a, quan​do viu um nome es​c ri​to a tin​ta so​bre uma das
fo​tos. Era sua le​tra, mas ele não ti​nha a me​nor lem​bran​ç a de ter es​c ri​to qual​quer
coi​sa. Do​mi​nick... Quem se​r ia? E quan​do te​r ia es​c ri​to? Con​ti​nuou a per​c or​r er
com os olhos a sé​r ie in​f in​dá​vel de cra​te​r as e pla​ní​c i​e s, até de​pa​r ar com ou​tro
nome es​c ri​to num pôs​ter: Gin​ger... En​c on​trou ain​da um Faye e um Er​nie. An​si​o​-
so, ro​lou pelo chão à pro​c u​r a de ou​tros no​m es, po​r ém não en​c on​trou mais ne​-
nhum.
Ti​nha cer​te​za de que não co​nhe​c ia nin​guém com qual​quer um da​que​les no​-
mes. Ha​via dois ou três Er​ni​e s no cas​si​no, mas não eram seus ami​gos e, ain​da
que fos​sem, não ha​ve​r ia ra​zão para es​c re​ver seus no​m es pe​las pa​r e​des. Quan​to
mais pen​sa​va, mais se de​ses​pe​r a​va, por​que co​m e​ç a​va a sen​tir que, na ver​da​de,
sa​bia quem eram aque​las pes​so​a s, sa​bia que to​dos ha​vi​a m tido um pa​pel im-
por​tan​tís​si​m o em sua vida e, pior que tudo, sa​bia que sua pró​pria vida de​pen​-
dia de que se lem​bras​se de​les.
Al​gu​m a coi​sa em seu ín​ti​m o co​m e​ç ou a in​c har como um ba​lão. In​tui​ti​va​-
men​te Zeb pres​sen​tiu que, quan​do o ba​lão atin​gis​se o li​m i​te má​xi​m o, es​tou​r a​r ia...
e en​tão ele en​ten​de​r ia tudo que se pas​sa​va. Tudo: os no​m es, a ob​ses​são pela Lua,
o medo que sen​tia quan​do olha​va pelo te​les​c ó​pio. Com o ba​lão, que não pa​r a​va
de cres​c er, cres​c ia tam​bém o medo. Zeb sen​tiu o cor​po inun​da​do de suor ge​la​do,
trê​m u​lo dos pés à ca​be​ç a.
De re​pen​te, as lem​bran​ç as pas​sa​r am a ser a gran​de e ter​r í​vel ame​a ​ç a que
pe​sa​va so​bre sua vida. Não! Não que​r ia lem​brar-se de nada! Como sem​pre
acon​te​c ia, a an​si​e ​da​de pro​vo​c ou-lhe mui​ta fome, e ele cor​r eu para a co​zi​nha à
pro​c u​r a do que co​m er. Não en​c on​trou nada so​bre a mesa, nem na ge​la​dei​r a.
Pelo chão, es​pa​lha​vam-se la​tas va​zi​a s, cai​xas de lei​te tam​bém va​zi​a s e em​ba​la​-
gens de ovos, uma de​las com um ve​lho ovo po​dre ain​da gru​da​do. Zeb ten​-
tou lem​brar-se de quan​do sa​í​r a pela úl​ti​m a vez para ir ao su​per​m er​c a​do. Não ti​-
nha idéia... tan​to po​dia ter sido al​guns dias an​tes como me​ses atrás. Era im​pos​sí​-
vel des​c o​brir, por​que em seu mun​do alu​c i​na​do, po​vo​a ​do de cra​te​r as pra​te​a ​das e
de​ser​tas, não ha​via tem​po. Des​de quan​do não co​m ia? Não sa​bia... Lem​bra​va-se
va​ga​m en​te de ter aber​to uma lata de pu​dim, mas isso tam​bém po​de​r ia ter sido
ho​r as atrás ou dias an​tes.
Ao per​c e​ber a si​tu​a ​ç ão a que sua vida se re​du​zi​r a, Zeb as​sus​tou-se tan​to que,
pela pri​m ei​r a vez em se​m a​nas, con​se​guiu pen​sar com al​gu​m a cla​r e​za. Olhou em
vol​ta e, tam​bém pela pri​m ei​r a vez, viu a imun​dí​c ie acu​m u​la​da pelo chão: lixo
pe​los can​tos; la​tas en​f er​r u​j a​das, al​gu​m as com doce, ou​tras com gor​du​r a aze​da,
to​das chei​r an​do mal; cai​xas de ce​r e​a is; de​ze​nas de em​ba​la​gens de lei​te; pa​-
péis su​j os de doce; e ba​r a​tas. As ba​r a​tas pas​se​a ​vam en​tre a su​j ei​r a, su​bi​a m pe​las
pa​r e​des, an​da​vam pe​las ga​ve​tas, cor​r i​a m em vol​ta da pia.
— Meu Deus... — ele ge​m eu bai​xi​nho, qua​se num so​lu​ç o. — O que está
acon​te​c en​do co​m i​go?! Oh, Deus... o que é que está acon​te​c en​do?!
Num ges​to au​to​m á​ti​c o, le​vou a mão ao ros​to e es​tre​m e​c eu ao
per​c e​ber que es​ta​va bar​bu​do. Se​r ia ca​paz de ju​r ar que se bar​be​a ​va to​dos os
dias, como sem​pre. Apa​vo​r a​do, cor​r eu para o ba​nhei​r o à pro​c u​r a de um es​pe​lho
e, quan​do se viu re​f le​ti​do no cris​tal em-po​e i​r a​do, não se re​c o​nhe​c eu. Es​ta​va sujo
como um men​di​go; os ca​be​los cain​do pela tes​ta e pelo pes​c o​ç o, em​plas​tra​dos de
res​tos de co​m i​da, gor​du​r a e su​j ei​r a; o ros​to pá​li​do e in​c ha​do, os olhos alu​c i​na​dos
como os de um ani​m al. E fe​dia. Seu cor​po fe​dia... Por cer​to ha​via dias, ou até se​-
ma​nas, que não to​m a​va ba​nho.
Es​ta​va do​e n​te... Só po​dia es​tar mui​to do​e n​te... Não sa​bia o que se pas​sa​va na​-
que​la casa. Sa​bia ape​nas que pre​c i​sa​va che​gar até o te​le​f o​ne e pe​dir so​c or​r o. E
no en​tan​to per​m a​ne​c eu imó​vel, com medo de que, se al​guém o en​c on​tras​se na​-
que​le es​ta​do, con​c lu​ís​se que ele ha​via mes​m o en​lou​que​c i​do e o le​vas​se para o
hos​pí​c io. Como ha​vi​a m fei​to com seu pai.
Quan​do Zeb ti​nha oito anos, seu pai so​f re​r á uma cri​se ter​r í​vel, pu​se​r a-se a
gri​tar que ti​r as​sem os bi​c hos de per​to de sua cama, lim​pas​sem as pa​r e​des, ti​r as​-
sem os bi​c hos... Os mé​di​c os o le​va​r am, di​zi​a m, para cu​r ar a be​be​dei​r a, mas nun​-
ca o trou​xe​r am de vol​ta. De​li​rium tre​mens, fora o di​a g​nós​ti​c o. Des​de aque​la épo​-
ca, Zeb ti​nha medo de ir pa​r ar num hos​pí​c io... E se​r ia o mí​ni​m o que po​de​r ia
acon​te​c er, se al​guém vis​se as con​di​ç ões em que vi​via. Ele pre​c i​sa​va de​f en​der-
se. En​tão car​r e​gou a es​pin​gar​da e co​lo​c ou-a so​bre a mesa da co​zi​nha, pro​pon​do
a si mes​m o um de​sa​f io:
— Po​nha fogo nes​ses li​vros so​bre a Lua, ar​r an​que to​das es​sas fo​tos e dê um
jei​to na casa. De​pois tome um ba​nho e faça a bar​ba. Quan​do es​ti​ver lim​po, tal​-
vez con​si​ga en​ten​der o que está acon​te​c en​do. Só en​tão, vá bus​c ar so​c or​r o.
A es​pin​gar​da fa​zia par​te do de​sa​f io. Por sor​te, da​que​la vez, a fome fi​ze​r a-o
des​per​tar do tran​se pro​vo​c a​do pela Lua, mas Zeb pres​sen​tia que não te​r ia ou​tra
chan​c e de es​c a​par. E se não con​se​guis​se re​sis​tir ao can​to das lu​na​r es se​r ei​a s que
o si​ti​a ​vam, a úni​c a fuga pos​sí​vel se​r ia a mor​te. Nes​se caso, lá es​ta​va a es​pin​gar​-
da. Bas​ta​r ia metê-la na boca, pu​xar o ga​ti​lho e es​tou​r ar os mi​o​los: es​ta​r ia li​vre
para sem​pre.
Me​lhor mor​r er que con​ti​nu​a r a vi​ver da​que​le jei​to. Me​lhor mor​r er que ser
tran​c a​do numa cela, en​f i​a ​do numa ca​m i​sa-de-for​ç a, como seu pai.
Sem le​van​tar os olhos do chão para não ver as fo​to​gra​f i​a s nas pa​r e​des, Zeb
vol​tou à sala e co​m e​ç ou a reu​nir os li​vros, al​guns en​c a​pa​dos com fo​tos re​c or​ta​-
das de re​vis​tas ou jor​nais. Apa​nhou-os, co​lo​c ou-os de​bai​xo do bra​ç o, saiu para o
pá​tio co​ber​to de neve e ca​m i​nhou na di​r e​ç ão da chur​r as​quei​r a de ti​j o​los. Tre​-
men​do de frio, jo​gou a pri​m ei​r a leva de li​vros so​bre o car​vão e vol​tou para apa​-
nhar ou​tros, sem co​r a​gem de le​van​tar a ca​be​ç a para o céu. Era noi​te de Lua
cheia.
Aos pou​c os, à me​di​da que o tra​ba​lho avan​ç a​va pe​no​sa​m en​te, cres​c ia-lhe o
de​se​j o de vol​tar ao es​tu​do da Lua, aos li​vros, ao te​les​c ó​pio. De​se​j o de​ses​pe​r a​do,
alu​c i​nan​te, como o que ator​m en​ta um vi​c i​a ​do em he​r o​í​na, o cor​po in​tei​r o im​plo​-
ran​do... mais e mais... Zeb con​se​guiu re​sis​tir.
Indo e vin​do, da sala à chur​r as​quei​r a, pa​r e​c ia-lhe que, aos pou​c os, apro​xi​-
ma​va-se o mo​m en​to de lem​brar-se da​que​la gen​te: Do-mi​nick, Gin​ger, Faye, Er​-
nie... O ins​tin​to di​zia-lhe que se​r ia pos​sí​vel en​ten​der a cau​sa do fas​c í​nio per​ver​so
que a Lua exer​c ia so​bre ele, se con​se​guis​se lem​brar quem eram aque​las qua​tro
pes​so​a s. Con​c en​tra​va-se nos no​m es, lu​tan​do para não pen​sar na Lua. Che​gou a
pen​sar que es​ta​va pres​tes a ven​c er a ba​ta​lha...
A chur​r as​quei​r a já es​ta​va cheia de li​vros, du​zen​tos ou tre​zen​tos vo​lu​m es
pron​tos para se​r em quei​m a​dos. Zeb acen​deu um fós​f o​r o e in​c li​nou-se para ate​a r
fogo à pri​m ei​r a pá​gi​na. En​tão com​preen​deu tudo. A chur​r as​quei​r a es​ta​va va​zia.
Ele dei​xou cair a cai​xa de fós​f o​r os e cor​r eu para a co​zi​nha, os olhos es​bu​ga​lha​-
dos, o co​r a​ç ão adi​vi​nhan​do o que o es​pe​r a​va. Sim... os li​vros lá es​ta​vam, úmi​dos,
res​pin​ga​dos de neve e su​j os de car​vão. Co​m e​ç a​r a a levá-los para fora, mas de
re​pen​te, em al​gum mo​m en​to, sem que ti​ves​se per​c e​bi​do, a Lua hip​no​ti​za​r a-o ou​-
tra vez, to​m a​r a con​ta de seus sen​ti​dos e obri​ga​r a-o a car​r e​gar os li​vros para den​-
tro de casa.
Seu pri​m ei​r o im​pul​so foi cho​r ar. As lá​gri​m as es​c or​r i​a m-lhe pelo ros​to, po​-
rem Zeb não era ho​m em de se en​tre​gar sem luta. De
den​tes cer​r a​dos, lí​vi​do, tor​nou a em​pi​lhar al​guns li​vros, vol​tou-se e ca​m i​-
nhou, mais uma vez na di​r e​ç ão da chur​r as​quei​r a. Era como se es​ti​ves​se no in​f er​-
no, con​de​na​do, até a con​su​m a​ç ão dos tem​pos, a re​pe​tir cada um dos ges​tos de
um ri​tu​a l fre​né​ti​c o e in​ú​til.
Na ter​c ei​r a ou quar​ta vi​a ​gem, des​c o​briu que ia e vi​nha, mas não dei​xa​va os
li​vros na chur​r as​quei​r a. Le​va​va-os de novo para den​tro. A Lua obri​ga​va-o a
guar​dar para sem​pre seus ob​j e​tos de cul​to.
Ca​bis​bai​xo, os olhos se​m i​c er​r a​dos, Zeb pa​r ou de re​pen​te, qua​se à so​lei​r a da
por​ta. A neve acu​m u​la​da so​bre o chão ti​nha um bri​lho pra​te​a ​do, so​bre​na​tu​r al. Ele
er​gueu a ca​be​ç a, fi​tou o céu sem nu​vens, e mur​m u​r ou:
— A Lua...
A par​tir des​se mo​m en​to, foi como se já es​ti​ves​se mor​to.
La​gu​na Be​a​c h, Ca​li​f ór​nia
Para Do​m i​nick Cor​vai​sis o dia de Na​tal era um dia como qual​quer ou​tro.
Sem mu​lher nem fi​lhos, sem ja​m ais ter tido fa​m í​lia, sem von​ta​de de co​m er peru
so​zi​nho em casa, via a data trans​c or​r er em to​tal nor​m a​li​da​de. Al​guns ami​gos, en​-
tre os quais Parker Fai​ne, sem​pre o con​vi​da​vam para a ceia, mas Dom ra​r a​m en​-
te acei​ta​va tais con​vi​tes: não que​r ia sen​tir-se in​tru​so. Além do mais, Dom per​ten​-
cia a uma ca​te​go​r ia bem di​f e​r en​c i​a ​da de se​r es hu​m a​nos: os que se sen​tem bem
acom​pa​nha​dos em sua pró​pria com​pa​nhia. Com a casa cheia de bons li​vros, nun​-
ca se sen​ti​r ia so​li​tá​r io em dia al​gum...
Na​que​le Na​tal, con​tu​do, não con​se​guia con​c en​trar-se em nada. Só pen​sa​va,
al​ter​na​da​m en​te, em duas coi​sas: no bi​lhe​te que ha​via re​c e​bi​do e nos cal​m an​tes
que que​r ia to​m ar, po​r ém não de​via. Ape​sar do medo de uma re​c a​í​da, des​de a
vés​pe​r a dei​xa​r a de re​c or​r er aos re​m é​di​os. Es​ta​va re​sol​vi​do a en​f ren​tar o que o
fu​tu​r o lhe re​ser​vas​se sem o am​pa​r o de qual​quer mu​le​ta quí​m i​c a. Mas nem por
isso a von​ta​de di​m i​nu​ía. Ao con​trá​r io, era tão in​ten​sa que, a cer​ta al​tu​r a, Dom
cor​r eu ao ba​nhei​r o, des​pe​j ou o con​te​ú​do dos vi​dri​nhos na pri​va​da e pu​xou a des​-
car​ga. Não con​f i​a ​va
mais em sua ca​pa​c i​da​de de re​sis​tir. À me​di​da que as ho​r as pas​sa​vam, a an​si​-
e​da​de cres​c ia a ní​veis qua​se in​su​por​tá​veis, mui​to pró​xi​m os dos pi​c os a que che​-
ga​r a an​tes do tra​ta​m en​to.
As sete ho​r as da noi​te, Dom che​gou à casa de Parker, e logo re​c e​beu um
copo com a be​bi​da que o pró​prio an​f i​tri​ã o pre​pa​r a​r a: ba​ti​da de ge​m a​da com ca​-
ne​la. Parker fi​ze​r a a bar​ba e cor​ta​r a os ca​be​los... Fan​tás​ti​c a ho​m e​na​gem ao
gran​de dia da cris​tan​da​de! Re​f or​m a​do por fora, con​ti​nu​a ​va, no en​tan​to, o mes​m o
ter​r í​vel ir​r e​ve​r en​te de sem​pre.
— Mas que Na​tal! Nun​c a vi tan​ta paz e amor jun​tos! — ex​c la​m ou com iro​-
nia. — Meu ama​do ir​m ão só fa​lou umas qua​r en​ta ou cin​qüen​ta ve​zes so​bre a in​-
ve​j a que sen​te de meu su​c es​so... Essa deve ser a me​lhor mar​c a que ele con​se​-
gue, em anos! Efei​to da san​ti​da​de do dia!... E Car​la, mi​nha meia-irmã, cha​m ou
Do​r een de puta só uma vez... E Do​r een, além de ser cu​nha​da dela, co​m e​ç ou a
con​ver​sa di​zen​do que Car​la per​ten​c e “à Ida​de da Pe​dra, tem a ca​be​ç a cheia de
mer​da”... Que dia, ami​go! Puro amor e fra​ter​ni​da​de... Nem um úni​c o so​pa​po ao
lon​go de uma tar​de in​tei​ra de con​vi​vên​c ia fa​m i​li​a r! O ma​r i​do de Car​la, por
exem​plo, ape​sar de ter fi​c a​do bê​ba​do como um gam​bá... o que já é uma das
mais ca​r as tra​di​ç ões da fa​m í​lia... não ro​lou es​c a​das abai​xo ne​nhu​ma vez... e só
re​pe​tiu a cena em que imi​ta Bet​te Mid​ler... dei​xe ver... umas de​zes​se​te ve​zes!
Dom se​guiu-o até o con​j un​to es​to​f a​do jun​to à va​r an​da, sen​tou-se e dis​se:
— Vou fa​zer uma lon​ga vi​a ​gem. Vou de avi​ã o até Por​tland e lá alu​go um
car​r o. Que​r o re​f a​zer o per​c ur​so de Por​tland até Reno, atra​ves​sar Ne​va​da e me​-
ta​de de Utah pela Ro​do​via Oi​ten​ta. De​pois pre​ten​do ir a Moun​tain​vi​e w.
Parker per​m a​ne​c ia em pé, ou​vin​do-o sem mo​ver um mús​c u​lo; era evi​den​te,
po​r ém, que a idéia lhe pa​r e​c ia mag​ní​f i​c a:
— Sim... Mas por quê? Teve ou​tra cri​se de so​nam​bu​lis​m o? Acon​te​c eu mais
al​gu​m a coi​sa e você des​c o​briu que essa vi​a ​gem pode de​c i​f rar o mis​té​r io?
— Não tive ne​nhu​m a cri​se, mas es​tou es​pe​r an​do uma re​c a​í​da.
Tal​vez acon​te​ç a hoje à noi​te... por​que jo​guei fora aque​les mal​di​tos com​pri​-
mi​dos. Não me fa​zi​a m bem. Eu es​ta​va fi​c an​do de​pen​den​te... vi​c i​a ​do, essa é a
pa​la​vra. Mas não dis​se nada a nin​guém, por​que achei que fi​c ar vi​c i​a ​do em tran​-
qüi​li​zan​tes era me​nos ter​r í​vel que con​vi​ver com as lou​c u​r as que eu fa​zia du​r an​te
as cri​ses. Mas ago​r a as coi​sas mu​da​r am. Veja isso. — Mos​trou ao ami​go os dois
en​ve​lo​pes que ha​via re​c e​bi​do. — Não es​tou fi​c an​do lou​c o. Há re​al​men​te al​gu​m a
coi​sa. Este che​gou pri​m ei​r o. — Com mão trê​m u​la, es​ten​deu-lhe o en​ve​lo​pe mais
amas​sa​do.
Parker abriu-o, leu a men​sa​gem e fi​c ou per​ple​xo. Dom con​ti​nuou:
— Es​ta​va em mi​nha cai​xa pos​tal. Apa​nhei on​tem. Sem re​m e​ten​te. E este
ou​tro foi co​lo​c a​do em casa, na cai​xa de cor​r es​pon​dên​c ia.
An​tes de en​tre​gar o se​gun​do en​ve​lo​pe, Dom con​tou ao ami​go o que es​c re​ve​-
ra no com​pu​ta​dor e re​la​tou-lhe os cons​tan​tes so​nhos com a Lua; fa​lou in​c lu​si​ve
da noi​te em que acor​da​r a re​pe​tin​do: “A Lua”, “a Lua”...
— Mas... se está di​zen​do que eu sou a pri​m ei​r a pes​soa a quem você con​ta
isso... como al​guém pode ter es​c ri​to esse bi​lhe​te? — Parker per​gun​tou, cada vez
mais in​tri​ga​do.
— Não sei. Mas seja lá quem for, está bem in​f or​m a​do so​bre mi​nhas cri​ses
de so​nam​bu​lis​m o. E pos​sí​vel que te​nha des​c on​f i​a ​do de al​gu​m a coi​sa por cau​sa
da con​sul​ta ao dou​tor Co​bletz.
— Quer di​zer que... al​guém pode es​tar se​guin​do você?
— E o que pa​r e​c e... De qual​quer modo, é tudo mui​to es​tra​nho. Seja quem
for, pode sa​ber do so​nam​bu​lis​m o, mas não sabe que eu es​c re​vi “A Lua” uma
por​ç ão de ve​zes, nem que so​nhei isso ou aqui​lo. No en​tan​to, não há dú​vi​da de que
a pes​soa sabe que te​nho al​gum pro​ble​m a com a Lua. Mas como es​ta​r ia a par dis​-
so...?
Parker sen​tou-se de​va​gar, os olhos fi​xos no ros​to do ami​go.
— Você pre​c i​sa en​c on​trar essa pes​soa... — de​c la​r ou.
— Nova York é tão gran​de... Di​f í​c il co​m e​ç ar por lá... — Dom sus​pi​r ou, ca​-
lan​do-se por al​guns mo​m en​tos. — Quan​to mais re-leio o pri​m ei​r o bi​lhe​te, o que
fala so​bre o se​gre​do de tudo es​tar
no pas​sa​do, mais me con​ven​ç o de que você pode ter ra​zão. (i mui​to pro​vá​vel
que mi​nha atu​al cri​se de per​so​na​li​da​de es​te​j a re​la​c i​o​na​da com as mu​dan​ç as de
com​por​ta​m en​to que acon​te​c e​r am logo de​pois da vi​a ​gem de Por​tland a Moun​-
tain​vi​e w. A idéia é re​pe​tir a vi​a ​gem, dor​m ir nos mes​m os mo​téis, co​m er nos mes​-
mos res​tau​r an​tes, ten​tar re​pro​du​zir tudo exa​ta​m en​te como acon​te​c eu... Tal​vez
sir​va para avi​var as lem​bran​ç as, para ati​var mi​nha me​m ó​r ia.
— Mas, se ti​ves​se ocor​r i​do al​gu​m a coi​sa tão im​por​tan​te, como é que você
iria es​que​c er...?
— E pos​sí​vel que eu não te​nha es​que​c i​do es​pon​ta​ne​a ​m en​te. Pode ser que
al​guém me in​du​ziu a es​que​c er.
Parker pis​c ou, como se a idéia lhe pa​r e​c es​se es​pan​to​sa de​m ais, e a ata​c ou
por ou​tro flan​c o:
— E seja quem for esse fi​lho da puta... por que lhe man​da​r ia bi​lhe​tes?
Que​r o di​zer... você está cons​tru​in​do uma hi​pó​te​se em que há você, de um lado, e
eles, no cam​po opos​to. O au​tor des​ses bi​lhe​tes é do time de​lesl
— Tal​vez es​te​j a ar​r e​pen​di​do... Ou não con​c or​de com tudo que fi​ze​r am co​-
mi​go... Se é que al​guém fez al​gu​m a coi​sa co​m i​go.
— O quê? O que al​guém po​de​r ia ter fei​to com você?...
Dom bai​xou os olhos, gi​r an​do o copo en​tre os de​dos:
— Não sei... Só sei que o au​tor des​ses bi​lhe​tes está que​r en​do me mos​trar
que meus pro​ble​m as não são psi​c o​ló​gi​c os, que há al​gu​m a ou​tra coi​sa por trás do
so​nam​bu​lis​m o. Ima​gi​no que, tal​vez... ele es​te​j a que​r en​do me aju​dar a des​c o​brir
a ver​da​de.
— E por que ele não lhe te​le​f o​na e con​ta tudo de uma vez?
— Por​que tal​vez te​nha medo de me con​tar. Pode ser um dos ca​be​ç as de
uma cons​pi​r a​ç ão, ou mem​bro de um gru​po que não tem in​te​r es​se em que a ver​-
da​de seja des​c o​ber​ta, sei lá... Se ele me te​le​f o​na e os ou​tros des​c o​brem... está
per​di​do. Vá​r i​a s ve​zes, como se o ges​to o aju​das​se a en​ten​der, Parker pas​sou a
mão pela ca​be​ç a e pelo quei​xo.
— Você fala como se uma so​c i​e ​da​de se​c re​ta o per​se​guis​se. CIA, Má​f ia,
KGB, o di​a ​bo... todo mun​do que​r en​do aca​bar com você. Está mes​mo pen​san​do
em... la​va​gem ce​r e​bral?
— Cha​m e como qui​ser. Seja lá o que for que eu es​que​c i, não te​r ia su​m i​do
de mi​nha me​m ó​r ia sem aju​da ex​ter​na. Devo ter des​c o​ber​to al​gum se​gre​do. Di​-
ga​m os que esse se​gre​do foi apa​ga​do de mi​nha me​m ó​r ia. Mas era tão for​te, tão...
cho​c an​te, di​ga​m os as​sim, que, mes​m o apa​ga​do da me​m ó​r ia, con​ti​nua pre​sen​te
no in​c ons​c i​e n​te, lu​tan​do para vir à tona atra​vés das cri​ses de so​nam​bu​lis​m o e do
com​pu​ta​dor. E isso... E ago​r a esse cons​pi​r a​dor ar​r e​pen​di​do se põe a me man​dar
bi​lhe​tes com pis​tas ci​f ra​das.
Parker leu e re​leu os bi​lhe​tes, be​beu um lon​go gole do co​que​tel e ba​lan​ç ou a
ca​be​ç a:
— E uma mer​da... mas co​m e​ç o a achar que você pode es​tar cer​to. E não
gos​to nada da idéia. Não que​ro que você es​te​j a cer​to, en​ten​de? Pre​f i​r o acre​di​tar
que só está ima​gi​nan​do o ro​tei​r o de um novo li​vro e apa​r e​c eu aqui para tes​tá-lo.
E in​ven​tou essa lou​c u​r a toda para me im​pres​si​o​nar. Mas... não con​si​go pen​sar
em ou​tra ex​pli​c a​ç ão...
Per​c e​ben​do que aper​ta​va o copo com for​ç a ca​paz de re​ben​tá-lo, Dom co​lo​-
cou-o so​bre a mesa e en​xu​gou na cal​ç a a mão úmi​da de suor.
— Nem eu — mur​m u​r ou. — Por​que não há ou​tra ex​pli​c a​ç ão pos​sí​vel.
Por um ins​tan​te fi​c a​r am am​bos qui​e ​tos, pen​sa​ti​vos. E en​tão Parker rom​peu o
si​lên​c io:
— E qual po​de​r ia ter sido o... se​gre​do que você des​c o​briu na​que​la es​tra​da?
— Não faço a me​nor idéia.
— Já lhe pas​sou pela ca​be​ç a a hi​pó​te​se de que seja al​gu​m a coi​sa... tão ter​-
rí​vel, tão pe​r i​go​sa... que tal​vez fos​se me​lhor es​que​c er para sem​pre?
— Já... Ah, se eu pu​des​se es​que​c er... Se não es​ti​ves​se en​lou​que​c en​do, se
não an​das​se pela casa, noi​tes a fio, pre​gan​do as ja​ne​las ou me ar​m an​do para en​-
fren​tar ini​m i​gos in​vi​sí​veis... Se es​sas lem​bran​ç as es​ti​ves​sem mes​m o so​ter​r a​das
para sem​pre... — De re​pen​te Dom pa​r ou de sus​pi​r ar e ba​teu com o pu​nho cer​r a​-
do no bra​ç o do sofá. — Dro​ga! Como está não pode fi​c ar! Te​nho que sa​ber o que
acon​te​c eu... por​que, se não des​c o​brir, vou aca​bar en​lou​que​c en​do de ver​da​de.
Sim, eu sei que es​sas fra​ses são me​lo​dra​m á​ti​c as. Mas, do jei​to que as coi​sas es​-
tão evo​lu​in​do, logo as cri​ses de so​nam​bu​lis​m o vão se trans​f or​m ar em ma​nia de
per​se​gui​ç ão. Os mons​tros que me as​sus​tam quan​do es​tou dor​m in​do co​m e​ç a​r ão a
apa​r e​c er tam​bém à luz do dia... Até que eu não su​por​te mais, meta uma bala no
ou​vi​do e vá di​r e​to para o in​f er​no.
— Deus do céu...
— Es​tou fa​lan​do sé​r io.
— Eu sei, e por isso mes​m o é que digo... Deus do céu!
Reno, Ne​v a​da
Uma nu​vem fez com que Zeb Lo​m ack des​per​tas​se. Sem o bri​lho pá​li​do da
Lua, con​se​guiu ter al​guns se​gun​dos de lu​c i​dez, su​f i​c i​e n​tes para dar-se con​ta de
que es​ta​va em man​gas de ca​m i​sa, tre​m en​do de frio. Não fos​se a nu​vem, já não
du​vi​da​va que fi​c a​r ia ali, pa​r a​do, bo​qui​a ​ber​to, olhos fi​xos no céu, até o ama​nhe​-
cer. De​pois, en​lou​que​c i​do, en​tra​r ia em casa, dei​ta​r ia no chão e per​m a-ne​c e​r ia
em cul​to mudo, ren​di​do à ma​gia da face re​don​da da ve​lha deu​sa lu​nar... até mor​-
rer de fome ou de frio.
Se​m i​c ons​c i​e n​te, sol​tou um uivo de medo e cor​r eu para den​tro de casa. Es​-
cor​r e​gou na neve do pá​tio, des​li​zou ou​tra vez ao apro​xi​m ar-se da por​ta, tro​pe​ç ou
no de​grau da en​tra​da, mas, meio em pé, meio de qua​tro, con​se​guiu en​trar e, as​-
sim, es​c a​par do en​c an​to ne​f as​to da luz que o per​se​guia. Se, pelo me​nos, as pa​r e​-
des não es​ti​ves​sem for​r a​das de mil ou​tras luas... Zeb ain​da ten​tou re​sis​tir e de
olhos cer​r a​dos co​m e​ç ou a ar​r an​c ar as fo​tos co​la​das por toda par​te. Não adi​a n​ta​-
va fe​c har os olhos. Ha​via luas per​c ep​tí​veis ao tato de seus de​dos de​ses​pe​r a​dos,
qua​se vi​sí​veis na es​c u​r i​dão. Que lou​c u​r a... As fo​tos ga​nha​vam tex​tu​r a e vo​lu​-
me. Ar​r an​c á-las era como cor​r er os de​dos pe​las cra​te​r as que co​nhe​c ia tão bem,
pe​las pla​ní​c i​e s are​no​sas, pe​los sul​c os res​se​qui​dos. Me​nos ter​r í​vel se​r ia abrir os
olhos. Zeb ren​deu-se e, er​guen​do a ca​be​ç a, fi​tou a face im​pla​c á​vel da deu​sa.
Lou​c o. Como o pai. Lou​c o de amar​r ar. A co​zi​nha... a mesa...
e a es​pin​gar​da...
Chi​c a​go, Il​li​nois
Fi​lho de bra​vos po​lo​ne​ses, “in​f a​lí​vel bra​ç o di​r ei​to do car​de​a l”, o pa​dre Wy ​-
ca​zik não es​ta​va ha​bi​tu​a ​do ao fra​c as​so e não sa​bia o que fa​zer das mãos, dos pés
e dos ar​gu​m en​tos.
— Como é que você me diz que ain​da não acre​di​ta em Deus, de​pois de
tudo que lhe con​tei?! — es​bra​ve​j ou.
— Sin​to mui​to — mur​m u​r ou Bren​dan Cro​nin, bai​xan​do a ca​be​ç a hu​m il​de​-
men​te. — De​pois de tudo que o se​nhor me con​tou, Deus me pa​r e​c e tão im​pos​sí​-
vel quan​to on​tem à tar​de, por exem​plo.
Es​ta​vam sen​ta​dos num quar​to da casa dos pais de Bren​dan, no bair​r o ir​lan​dês
de Brid​ge​port, onde o jo​vem cura se re​c o​lhe​r a, em obe​di​ê n​c ia às ins​tru​ç ões do
pa​dre Wy ​c a​zik, logo após o ti​r o​teio no bar. An​gus​ti​a ​do, sem sa​ber mais o que di​-
zer, Bren​dan en​c o​lhia-se na cama de ca​sal co​ber​ta por uma ve​lha col​c ha ama​r e​-
la​da. Ste​f an an​da​va de um lado para ou​tro, ten​tan​do con​su​m ir a ener​gia da rai​va
em pas​sa​das cada vez mais lar​gas e ba​r u​lhen​tas.
— Veja só como são as coi​sas... — dis​se —, con​se​gui meia con​ver​são de
um ateu pro​f es​so, um ci​e n​tis​ta... ape​nas com o caso da re​c u​pe​r a​ç ão do pa​tru​lhei​-
ro. E aí está você, o agen​te de Deus, cada vez mais des​c ren​te...
— Fico fe​liz pelo dou​tor Son​ne​f ord — de​c la​r ou Bren​dan com um sor​r i​so
tris​te. — Mas, para mim, a fé que ele aca​ba de des​c o​brir está per​di​da para sem​-
pre.
Bren​dan re​c u​sa​va-se a de​m ons​trar emo​ç ão em face dos mi​la​gres de que
fora par​tí​c i​pe pri​vi​le​gi​a ​do, mas esse não era o úni​c o mo​ti​vo da ir​r i​ta​ç ão do pa​dre
Wy ​c a​zik. O que con​si​de​r a​va mais gra​ve era a in​di​f e​r en​ç a com que o ou​tro en​c a​-
ra​va a ter​r í​vel per​da que so​f re​r á. Se não qui​ses​se mes​m o reen​c on​trar a fé per​di​-
da, o caso es​ta​r ia en​c er​r a​do. Bren​dan pa​r e​c ia me​nos pre​o​c u​pa​do que em seu úl​-
ti​m o en​c on​tro. Na ver​da​de, mos​tra​va-se cada vez mais con​f or​m a​do, tran​qüi​lo,
pa​c i​f i​c a​do. Como po​dia sen​tir-se tão à von​ta​de em sua nova con​di​ç ão de ateu?
— Foi você que cu​r ou Emmy — Ste​f an in​sis​tia. — Foi você
que sal​vou a vida de Tolk. Você, e os es​tig​m as que Deus pôs em suas mãos.
Bren​dan abriu as mãos e exa​m i​nou-as aten​to.
— Sei que fo​r am mi​nhas mãos — mur​m u​r ou. — Mas não foi Deus que me
deu o po​der de cu​r ar.
— Não foi Deus?! E quem mais po​de​r ia ter sido?!
— Não sei, e da​r ia qual​quer coi​sa para acre​di​tar que Deus me es​c o​lheu
para essa mis​são. Mas não acre​di​to.
— Dro​ga! — O fi​lho de bra​vos po​lo​ne​ses per​de​r a a pa​c i​ê n​c ia. — O que
você quer que Deus faça para con​ven​c ê-lo? Que apa​r e​ç a numa car​r u​a ​gem de
fogo, com toda a sua cor​te de an​j os, e o co-rpe “san​to mi​la​grei​r o”? Você pre​c i​sa
ser mais hu​m il​de!
O jo​vem pa​dre sor​r iu e re​pli​c ou cal​m a​m en​te:
— Sei que tudo que acon​te​c eu tem uma ex​pli​c a​ç ão ra​c i​o​nal e sim​ples. Sin​-
to que exis​te ou​tra for​ç a por trás des​ses even​tos. E não acre​di​to que seja a for​ç a
de Deus.
— E que for​ç a, po​de​r ia ser? — Ste​f an cru​zou os bra​ç os em de​sa​f io.
— Não sei... Uma for​ç a tre​m en​da​m en​te po​de​r o​sa. Uma coi​sa ma​r a​vi​lho​-
sa, mag​ní​f i​c a, que não tem nada a ver com Deus. O se​nhor dis​se que as mar​c as
em mi​nhas mãos eram es​tig​m as. En​tão por que apa​r e​c e​r am como sim​ples ro​de​-
las aver​m e​lha​das? Por que Deus não pro​vi​den​c i​ou es​tig​m as em for​m a de cruz,
de pei​xe... de qual​quer sím​bo​lo tra​di​c i​o​nal​m en​te cris​tão?
O pa​dre Wy ​c a​zik er​gueu os olhos, ro​gan​do aos céus que não lhe fal​tas​se cal​-
ma e pa​c i​ê n​c ia na​que​le mo​m en​to tão gra​ve. O pri​m ei​r o pen​sa​m en​to que lhe
ocor​r eu foi me​nos que ba​nal; deu-se con​ta de que, nos pri​m ei​r os tem​pos da cri​se
de fé, Bren​dan Cro-nin de​so​la​r a-se a pon​to de ema​gre​c er um pou​c o e, ago​r a, já
não pa​r e​c ia tris​te nem de​ses​pe​r a​do — ao con​trá​r io, es​ta​va ro​li​ç o como um lei​-
tão, a pele de seu ros​to re​c u​pe​r a​va a cor ro​sa​da dos me​lho​r es dias e seus olhos
bri​lha​vam de... san​ti​da​de!
— Sen​te-se mui​to bem, não é? — Ste​f an per​gun​tou.
— Sim... Mas não sei por quê.
— Sua alma está em paz.
— Está.
— Em​bo​r a você ain​da não te​nha reen​c on​tra​do a fé.
— E, em​bo​r a eu ain​da não te​nha reen​c on​tra​do a fé. Acho que a ex​pli​c a​ç ão
pode es​tar num so​nho que tive on​tem.
— Ou​tra vez aque​la his​tó​r ia das lu​vas pre​tas?
— Não, não... On​tem so​nhei que es​ta​va an​dan​do num lu​gar de pura luz,
uma lin​da luz dou​r a​da, tão bri​lhan​te que eu não con​se​guia ver nada ao re​dor. Ain​-
da as​sim era uma luz su​a ​ve, que não me fe​r ia os olhos. Sua voz ad​qui​r iu um tom
de re​ve​r ên​c ia. — Eu ia an​dan​do, an​dan​do, sem sa​ber quem era nem para onde
ia, mas cer​to de que me apro​xi​m a​va cada vez mais de uma coi​sa ou de um lu​gar
de in​c rí​vel im​por​tân​c ia... e in​des​c ri​tí​vel be​le​za. Não se tra​ta​va ape​nas de uma
apro​xi​m a​ç ão. Era como se eu es​ti​ves​se sen​do cha​m a​do, em si​lên​c io, por um
sen​ti​m en​to... uma for​ç a nas​c i​da de den​tro de mim que me con​du​zia. Meu co​r a​-
ção bate e sin​to um pou​c o de medo. Não é um medo ruim. E a sen​sa​ç ão de que o
que está acon​te​c en​do é im​por​tan​te... Con​ti​nuo an​dan​do pela re​gi​ã o de luz, na di​-
re​ç ão de al​gu​m a coi​sa que não con​si​go ver, mas sei que está lá.
Como que ar​r as​ta​do pela voz de Bren​dan, o pa​dre Wy ​c a​zik apro​xi​m ou-se e
sen​tou-se a seu lado na cama:
— E um so​nho de ca​r ac​te​r ís​ti​c as ni​ti​da​m en​te es​pi​r i​tu​a is. Deus está cha​-
man​do você. Ele quer que você vol​te à fé, aos de​ve​r es de sa​c er​do​te.
— Não há a me​nor in​di​c a​ç ão da pre​sen​ç a di​vi​na. Eu vi​via al​gum ou​tro tipo
de ilu​m i​na​ç ão, mui​to di​f e​r en​te de tudo o que já sen​ti em Cris​to. Acor​dei qua​tro
ve​zes du​r an​te a noi​te, e mi​nhas mãos sem​pre mos​tra​vam as mar​c as aver​m e​lha​-
das. Eu vol​ta​va a dor​m ir, e o so​nho re​c o​m e​ç a​va. Al​gu​m a coi​sa mui​to im​por​tan​-
te está acon​te​c en​do, e sou par​te dela. Mas não é nada que eu pos​sa ex​pli​c ar.
Nada que mi​nha edu​c a​ç ão, mi​nha ex​pe​r i​ê n​c ia de vida, mi​nha an​ti​ga fé pos​sam
en​ten​der.
O ve​lho pá​r o​c o res​pi​r ou fun​do, pen​san​do que a tal luz dou​r a​da po​dia mui​to
bem ser obra do de​m ô​nio e não de Deus. E se o de​m ô​nio ti​ves​se per​c e​bi​do que a
fé de Bren​dan Cro​nin va​c i​la​va... se ti​ves​se for​j a​do a luz dou​r a​da para se​du​zir o
po​bre in​f e​liz e ar​r as​tá-lo para o ca​m i​nho do mal? Pelo sim, pelo não, sem es​tra​-
té​gia de​f i​ni​da para en​f ren​tar o di​a ​bo em pes​soa, o pa​dre Wy ca-zik re​sol​veu ga​-
nhar tem​po:
— Bem... Acha que che​gou a hora de en​trar em con​ta​to com Lee Kel​log,
nos​so su​pe​r i​or em Il​li​nois, e pe​dir-lhe au​to​r i​za​ç ão para en​c a​m i​nhar você ao psi​-
qui​a ​tra da Or​dem?
— Não. Não creio que isso adi​a n​te. O que eu gos​ta​r ia de fa​zer, se o se​nhor
não se opu​ser, é vol​tar para meu quar​to na casa pa​r o​qui​a l e dar tem​po ao tem​-
po... es​pe​r ar para ver o que acon​te​c e. E evi​den​te que, como já não te​nho fé, não
pos​so ou​vir con​f issões nem ce​le​brar mis​sa. Mas pos​so aju​dá-lo com os fi​c há​r i​os,
ou dar uma mão ao pes​so​a l da co​zi​nha.
— Cla​r o! — O bom cura res​pi​r ou ali​vi​a ​do. Por um ins​tan​te te​m e​r a que
Bren​dan Cro​nin anun​c i​a s​se sua de​c i​são de aban​do​nar a ba​ti​na. — Te​m os mui​to
que fa​zer jun​tos. Só há ain​da uma per​gun​ta que eu gos​ta​r ia que você res​pon​des​-
se... Ain​da acre​di​ta que reen​c on​tra​r á a fé?
— Não me sin​to ali​e ​na​do de Deus, ape​nas va​zio. Com o tem​po, é pos​sí​vel
que eu vol​te a fa​zer par​te da Igre​j a de Cris​to, como o se​nhor está con​ven​c i​do de
que aca​ba​r á acon​te​c en​do. Ain​da acre​di​to que po​de​r ei vol​tar, só não sei quan​do
nem como.
Em​bo​r a de​c ep​c i​o​na​do pela in​di​f e​r en​ç a de Bren​dan fren​te aos mi​la​gres de
Emmy e Tolk, o pa​dre Wy ​c a​zik es​ta​va sa​tis​f ei​to com a pos​si​bi​li​da​de de man​tê-lo
ao al​c an​c e de seus con​se​lhos.
Bren​dan acom​pa​nhou o pá​r o​c o até a por​ta, e os dois des​pe​di​r am-se com um
abra​ç o tão afe​tuo​so quan​to numa des​pe​di​da en​tre pai e fi​lho. Jun​to ao pe​que​no
por​tão que dava para a cal​ç a​da, o jo​vem pa​dre co​m en​tou:
— Ain​da não sei por quê, mas sin​to que es​ta​m os às vés​pe​r as de uma fan​-
tás​ti​c a aven​tu​r a.
— A des​c o​ber​ta... ou re​des​c o​ber​ta... da fé é sem​pre uma fan​tás​ti​c a aven​tu​-
ra — res​pon​deu Ste​f an, com a cer​te​za de ter pes​pe-gado um belo mur​r o no quei​-
xo do de​m ô​nio. De​pois, como bom pes​c a​dor de al​m as, par​tiu.
Reno, Ne​v a​da
Ge​m en​do, lu​tan​do para res​pi​r ar, re​sis​tin​do o quan​to po​dia ao efei​to nar​c o​ti​-
zan​te da Lua, Zeb pi​so​te​ou as ba​r a​tas que cor​r i​a m pelo chão da co​zi​nha, che​gou
até a mesa, apa​nhou a es​pin​gar​da e en​f i​ou o cano da arma na boca. En​tão per​c e​-
beu que seus bra​ç os eram cur​tos de​m ais para al​c an​ç ar o ga​ti​lho. O de​se​j o de
olhar para as luas que o cha​m a​vam do teto e das pa​r e​des era tão avas​sa-la​dor
que Zeb sen​tia-se como se al​guém o pu​xas​se pe​los ca​be​los para obri​gá-lo a er​-
guer a ca​be​ç a. Quan​do fe​c ha​va os olhos, era como se al​gum ini​m i​go in​vi​sí​vel
qui​ses​se ar​r an​c ar-lhe as pál​pe​bras. Só o medo de ser in​ter​na​do num hos​pí​c io,
como o pai, dava-lhe for​ç as para re​sis​tir ao fas​c í​nio de​m o​ní​a ​c o da Lua.
Ain​da sem abrir os olhos, Zeb dei​xou-se cair na ca​dei​r a, ar​r an​c ou sa​pa​to e
meia, se​gu​r ou a es​pin​gar​da com as duas mãos, vol​tou a co​lo​c ar o cano da arma
en​tre os lá​bi​os e en​c os​tou o dedo do pé no ga​ti​lho ge​la​do. A luz fan​tas​m a​gó​r i​c a da
Lua pa​r e​c ia pe​ne​trar-lhe a pele e cor​r er-lhe nas vei​a s, no san​gue... Uma atra​ç ão
tão po​de​r o​sa que Zeb não re​sis​tiu mais: abriu os olhos e viu as cen​te​nas de luas
co​la​das às pa​r e​des.
— Não! — gri​tou, ba​ten​do com a lín​gua no cano da es​pin​gar​da.
No ins​tan​te em que mer​gu​lha​va mais fun​do na​que​le tran​se alu​c i​na​do, pres​si​-
o​nan​do o dedo so​bre o ga​ti​lho, a bo​lha im​pe​ne​trá​vel que guar​da a mais re​c ôn​di​ta
me​m ó​r ia re​ben​tou... Zeb lem​brou-se de tudo: do ve​r ão re​tra​sa​do, de Do​m i​nick,
Gin​ger, Fay e, Er​nie, do jo​vem pa​dre, dos ou​tros, da Ro​do​via 80, do Mo​tel Tran​-
qüi​li​da​de... Deus! O mo​tel e... a Lua!
Nin​guém ja​m ais sa​be​r á se Zeb aper​tou o ga​ti​lho sem que​r er, num in​c on​tro​-
lá​vel es​pas​m o de medo, ou se, ao con​trá​r io, foi o hor​r or da lem​bran​ç a que o fez
ma​tar-se. De qual​quer modo, a es​pin​gar​da dis​pa​r ou com es​tron​do, a ex​plo​são ar​-
ran​c ou-lhe a par​te pos​te​r i​or do crâ​nio e pôs fim a seu ter​r or.
Bos​ton, Mas​sa​c hu​setts
Gin​ger pas​sou a tar​de do dia de Na​tal len​do Cre​pús​c u​lo na Ba​bi​lô​nia; às sete
da noi​te, hora de des​c er e reu​nir-se à fa​m í​lia Han-
naby para o ape​r i​ti​vo e o jan​tar, las​ti​m ou dei​xar o li​vro. Não ape​nas por​que
a tra​m a do ro​m an​c e era fas​c i​nan​te, mas, tal​vez prin​c i​pal​m en​te, por cau​sa da
foto do au​tor. Do​m i​nick Cor​vai​sis olha​va-a da con​tra​c a​pa, mo​r e​no, olhos sé​r i​os e
pro​f un​dos, e, por es​tra​nho que fos​se, dava-lhe medo. Não po​dia dei​xar de pen​sar
que já o co​nhe​c ia de al​gum lu​gar.
O jan​tar em fa​m í​lia, com os fi​lhos e ne​tos dos Han​naby, te​r ia sido agra​dá​vel
se ela não qui​ses​se tan​to vol​tar ao quar​to e re​to​m ar a lei​tu​r a. As dez da noi​te,
quan​do per​c e​beu que po​de​r ia des​pe​dir-se sem ofen​der nin​guém, de​se​j ou boa
noi​te, fe​li​c i​da​des e saú​de a to​dos, e cor​r eu para o li​vro. As três e qua​r en​ta e cin​-
co da ma​dru​ga​da, com o me​nor nú​m e​r o pos​sí​vel de in​ter​r up​ç ões para exa​m i​nar
a foto da con​tra​c a​pa, ter​m i​nou de de​vo​r ar o Cre​pús​c u​lo.
A casa mer​gu​lha​da no si​lên​c io da noi​te, o Mi​r an​te pa​r e​c en​do va​zio, Gin​ger
dei​xou-se fi​c ar com o li​vro no colo, sem ti​r ar os olhos do ros​to tão fa​m i​li​a r de
Do​m i​nick Cor​vai​sis... A me​di​da que o tem​po pas​sa​va, sen​tia cada vez mais for​te
um es​tra​nho tipo de co​m u​ni​c a​ç ão com aque​le ros​to, con​ven​c en​do-se de que re​-
al​m en​te o co​nhe​c ia. Mais do que isso, des​c o​bria que, de al​gum modo ini​m a​gi​ná​-
vel e in​c om​preen​sí​vel, aque​le ho​m em ti​nha algo a ver com a re​c en​te re​vi​r a​vol​ta
que ocor​r ia em sua vida. Ain​da que a cer​te​za pa​r e​c es​se frá​gil, de​li​r an​te, ali​m en​-
ta​da por uma in​tui​ç ão que po​de​r ia es​tar tão dis​tor​c i​da como tudo o mais em sua
vida psi​c o​ló​gi​c a, era uma cer​te​za que cres​c ia de ins​tan​te em ins​tan​te, até fazê-la
sal​tar da pol​tro​na e de​c i​dir-se a agir.
Saiu do quar​to na pon​ta dos pés e des​c eu para a co​zi​nha, atra​ves​san​do me​tros
de cor​r e​do​r es es​c u​r os e si​len​c i​o​sos. Na co​zi​nha, de​pois de fe​c har a por​ta e acen​-
der a luz, apro​xi​m ou-se do te​le​f o​ne, li​gou e pe​diu o ser​vi​ç o de in​f or​m a​ç ões de
La​gu​na Be​a ​c h.
Era uma da ma​nhã na Ca​li​f ór​nia, hora im​pró​pria para acor​dar um es​c ri​tor.
Mas, se a te​le​f o​nis​ta pelo me​nos lhe des​se um nú​m e​r o para li​gar de ma​nhã, Gin​-
ger po​de​r ia dor​m ir me​lhor. Nem isso con​se​guiu. De​c ep​c i​o​na​da, po​r ém não sur​-
pre​sa, ou​viu da te​le​f o​nis​ta a in​f or​m a​ç ão de que o te​le​f o​ne de Do​m i​nick Cor​vai-
sis não cons​ta​va da lis​ta. Si​len​c i​o​sa como sa​í​r a, vol​tou para o quar​to, de​c i​di​da
a es​c re​ver uma car​ta àque​le Cor​vai​sis da con​tra​c a​pa do Cre​pús​c u​lo. Re​m e​te​r ia a
car​ta à edi​to​r a pelo ser​vi​ç o de en​tre​ga rá​pi​da, com um pe​di​do para que fos​se en​-
vi​a ​da ao des​ti​na​tá​r io com a má​xi​m a ur​gên​c ia pos​sí​vel. Por que não? Tal​vez não
des​se em nada, tal​vez fos​se um ges​to pre​c i​pi​ta​do e ir​r a​c i​o​nal. Tal​vez Do​m i​nick
Cor​vai​sis não ti​ves​se coi​sa al​gu​m a a ver com seus pro​ble​m as e não des​se aten​-
ção à car​ta, ou a jul​gas​se lou​c a var​r i​da. Mas ha​via uma chan​c e, uma num mi​-
lhão, de que seu ins​tin​to es​ti​ves​se cer​to... e, nes​se caso, con​se​gui​r ia en​c on​trar a
pon​ta da me​a ​da. Pro​ba​bi​li​da​de mais do que su​f i​c i​e n​te para jus​ti​f i​c ar o ris​c o de
ban​c ar a idi​o​ta.
La​gu​na Be​a​c h, Ca​li​f ór​nia
Ain​da sem sa​ber que um dos pri​m ei​r os exem​pla​r es de seu li​vro es​ta​be​le​c e​r a
con​ta​do en​tre ele e uma mu​lher cuja vida se des​pe​da​ç a​va em Bos​ton, Dom fi​c ou
na casa de Parker Fai​ne até meia-noi​te, ana​li​san​do as pos​sí​veis ca​r ac​te​r ís​ti​c as da
cons​pi​r a​ç ão que ima​gi​na​va ter des​c o​ber​to. Ne​nhum dos dois dis​pu​nha de in​f or​-
ma​ç ões su​f i​c i​e n​tes para tra​ç ar um per​f il dos cons​pi​r a​do​r es, mas o sim​ples fato
de po​der fa​lar so​bre o as​sun​to e en​c on​trar um ami​go com quem tro​c ar idéi​a s já
bas​ta​va para Dom sen​tir-se mais se​gu​r o.
Am​bos con​c or​da​vam pelo me​nos num de​ta​lhe: Dom não de​ve​r ia vi​a ​j ar a
Por​tland e dar iní​c io à odis​séia en​quan​to não des​c o​bris​se que re​a ​ç ão te​r ia seu or​-
ga​nis​m o e como evo​lui​r i​a m as cri​ses de so​nam​bu​lis​m o a par​tir do mo​m en​to em
que sus​pen​des​se o tra​ta​m en​to. Era pos​sí​vel que as cri​ses não vol​tas​sem, e, nes​se
caso, ele po​de​r ia vi​a ​j ar sem a pre​o​c u​pa​ç ão de per​der o con​tro​le num quar​to de
ho​tel de uma ci​da​de dis​tan​te. De qual​quer modo, se hou​ves​se re​c a​í​da, an​tes de
vi​a ​j ar pre​c i​sa​va en​c on​trar um jei​to de pre​ve​nir gran​des de​sas​tres. Além dis​so,
aguar​dan​do al​guns dias, po​de​r ia re​c e​ber ou​tros bi​lhe​tes de seu mis​te​r i​o​so cor​r es​-
pon​den​te, tal​vez com al​gu​m a in​f or​m a​ç ão nova que, en​tre ou​tras coi​sas, tor​nas​se
a vi​a ​gem des​ne​c es​sá​r ia. Quem sabe uma in​di​c a​ç ão mais
pre​c i​sa, por exem​plo, so​bre o lo​c al onde en​c on​trar pai​sa​gens ou si​tu​a ​ç ões
que o aju​das​sem a lem​brar-se.
A meia-noi​te, Dom le​van​tou-se para sair. Parker es​ta​va tão in​tri​ga​do com o
que ou​vi​r a du​r an​te as ho​r as de con​ver​sa, que fi​c ou ani​m a​do e des​per​to como se
o dia es​ti​ves​se ape​nas co​m e​ç an​do.
— Tem cer​te​za de que deve dor​m ir em casa? — per​gun​tou, já na por​ta.
Dom an​dou um pou​c o pela va​r an​da, olhan​do os ara​bes​c os de​se​nha​dos no
chão de la​dri​lhos pela luz ama​r e​la​da de uma lu​m i​ná​r ia meio es​c on​di​da en​tre as
fo​lha​gens. Pa​r ou, le​van​tan​do os olhos para o ami​go:
— Já fa​la​m os so​bre isso. Não te​nho cer​te​za de nada, mas acho que é o me​-
lhor que te​nho a fa​zer.
— Pro​m e​te que me te​le​f o​na, se pre​c i​sar de al​gu​m a coi​sa?
— Pro​m e​to.
— E tome aque​las pre​c au​ç ões de que fa​la​m os.
Foi o que Dom fez ao che​gar em casa. Ti​r ou o re​vól​ver da pen​te​a ​dei​r a e
tran​c ou-o a cha​ve numa das ga​ve​tas do es​c ri​tó​r io; de​pois es​c on​deu a cha​ve sob
um pa​c o​te de sor​ve​te na úl​ti​m a pra​te​lei​r a do free​zer. Me​lhor ser sur​preen​di​do por
um la​drão do que cor​r er o ris​c o de me​ter cin​c o ba​las em al​guém du​r an​te o sono.
Des​c eu à ga​r a​gem e vol​tou com três me​tros de cor​da, cor​ta​dos de um car​r e​tei.
Es​c o​vou os den​tes, ves​tiu o pi​j a​m a e, pron​to para dei​tar-se, amar​r ou fir​m e​m en​te
uma das pon​tas da cor​da ao pul​so di​r ei​to, de modo que, para se sol​tar, se​r ia obri​-
ga​do a de​sa​tar uma sé​r ie de nós mui​to com​pli​c a​dos. A ou​tra pon​ta da cor​da foi
ata​da, tam​bém com fir​m e​za, à ca​be​c ei​r a da cama. Com os trin​ta cen​tí​m e​tros de
cada nó so​bra​va-lhe cor​da su​f i​c i​e n​te para mo​vi​m en​tar-se li​vre​m en​te so​bre o
col​c hão, mas não para afas​tar-se da cama.
Nas ou​tras noi​tes em que an​da​r a pela casa, ha​via con​se​gui​do exe​c u​tar ta​r e​-
fas bas​tan​te com​ple​xas, que exi​gi​a m boa dose de con​c en​tra​ç ão, mas ne​nhu​m a
tão di​f í​c il como de​sa​tar nós, o que de​m an​da​va ex​tre​m a ha​bi​li​da​de ma​nu​a l, mes​-
mo de uma pes​soa des​per​ta. Caso qui​ses​se sair da cama, te​r ia que li​vrar-se da
cor​da, e es​pe​r a​va que, não o con​se​guin​do, aca​bas​se acor​dan​do an​tes. Era tro​c ar
um ris​c o pelo ou​tro. Se a casa pe​gas​se fogo, ou se a re​gi​ã o fos​se sa​c u​di​da por um
ter​r e​m o​to, mor​r e​r ia an​tes de con​se​guir sair da cama, su​f o​c a​do pela fu​m a​ç a ou
so​ter​r a​do por uma ava​lan​c he de ti​j o​los e te​lhas. Mas não ha​via es​c o​lha.
No mo​m en​to em que se en​f i​ou sob os co​ber​to​r es e apa​gou a lâm​pa​da de ca​-
be​c ei​r a, o re​ló​gio di​gi​tal ao lado da cama mar​c a​va 0:58. Dei​ta​do de cos​tas, olhos
no teto, ima​gi​nan​do o que po​de​r ia ter acon​te​c i​do no ve​r ão de dois anos an​tes, es​-
pe​r ou o sono che​gar.
A dois pas​sos da cama, o te​le​f o​ne con​ti​nu​a ​va mudo. Se seu nome cons​tas​se
da lis​ta te​le​f ô​ni​c a, Dom te​r ia re​c e​bi​do um te​le​f o​ne​m a na​que​le exa​to ins​tan​te.
Um cha​m a​do in​te​r ur​ba​no de Bos​ton de uma mu​lher jo​vem, bo​ni​ta e as​sus​ta​da.
Um cha​m a​do que te​r ia al​te​r a​do ra​di​c al​m en​te o cur​so dos acon​te​c i​m en​tos das se​-
ma​nas vin​dou​r as e que po​de​r ia ter sal​va​do vá​r i​a s vi​das.
Milwaukee, Wis​c on​sin
No quar​to de hós​pe​des da casa de sua úni​c a fi​lha, à luz da lâm​pa​da de ca​be​-
cei​r a ace​sa du​r an​te toda a noi​te por cau​sa da nic​to​f o-bia de Er​nie, Fay e Block fi​-
ta​va o ma​r i​do, que mur​m u​r a​va com o ros​to en​f i​a ​do no tra​ves​sei​r o. Aca​ba​va de
acor​dar com os gri​tos de Er​nie e, apoi​a ​da no co​to​ve​lo, a ca​be​ç a in​c li​na​da, pro​c u​-
ra​va en​ten​der o que ele di​zia. Era a mes​m a pa​la​vra, re​pe​ti​da e re​pe​ti​da, aba​f a​da
pelo tra​ves​sei​r o. Er​nie pa​r e​c ia as​sus​ta​do, e Fay e, cada vez mais ner​vo​sa, apro​xi​-
mou-se ain​da mais. De re​pen​te, Er​nie vi​r ou-se e ela pôde ou​vir, em​bo​r a não
com​preen​des​se:
— A Lua... a Lua... a Lua...
Las Ve​gas, Ne​v a​da
Jor​j a le​vou Ma​r eie para sua cama por​que não acha​va se​gu​r o dei​xá-la so​zi​-
nha de​pois do dia agi​ta​do que ti​ve​r a. Mal pôde dor​m ir, pois Ma​r eie pas​sou a noi​te
ator​m en​ta​da por pe​sa​de​los que a fa​zi​a m sal​tar e dar pon​ta​pés e so​c os no ar,
como se qui​ses​se li​vrar-se de al​guém que a pren​dia. Fa​la​va de mé​di​c os e in​j e​-
ções. Jor​j a ima​gi​nou que aqui​lo po​de​r ia es​tar acon​te​c en​do já des​de al​gum tem​-
po, sem que ti​ves​se per​c e​bi​do.
Os quar​tos de am​bas eram se​pa​r a​dos por um ar​m á​r io du​plo que abria para
os dois la​dos: na ver​da​de, ape​nas al​gu​m as rou​pas pen​du​r a​das de​li​m i​ta​vam os
apo​sen​tos. No en​tan​to, quan​do a me​ni​na fa​la​va du​r an​te o sono, não con​se​guia
ouvi-la. Ago​r a, ten​do-a a seu lado, sen​tia ar​r e​pi​os àque​la voz aba​f a​da e afli​ta.
As​sim que ama​nhe​c es​se, le​va​r ia a fi​lha ao mé​di​c o. Não fos​se dia de Na​tal, te​r ia
pro​c u​r a​do aju​da na​que​la ma​nhã mes​m o.
De​pois do ber​r ei​r o por cau​sa da brin​c a​dei​r a de ir para o hos​pi​tal, de​pois de
sair da mesa cor​r en​do, em pâ​ni​c o, de​pois do pipi na cal​ç a, Ma​r eie de​m o​r a​r a
mais de dez mi​nu​tos para se acal​m ar. Re​sis​ti​r a a to​dos os ar​gu​m en​tos, es​per​ne​a ​-
ra, gri​ta​r a, dera so​c os e pon​ta​pés, até que, afi​nal, con​c or​da​r a em to​m ar um ba​-
nho e tro​c ar de rou​pa. Mas já es​ta​va di​f e​r en​te, igual a um pe​que​no zum​bi, olhos
au​sen​tes, ros​to apá​ti​c o. Pa​r e​c ia que o medo, ao dei​xá-la, ti​ves​se le​va​do a ener​gia
e a in​te​li​gên​c ia que a man​ti​nham viva.
Aque​le es​ta​do per​sis​ti​r a por qua​se uma hora, du​r an​te a qual Jor​j a ten​ta​r a lo​-
ca​li​zar o dr. Be​san​c ourt, pe​di​a ​tra que cui​da​va de Ma​r eie nas ra​r as oca​si​ões em
que ado​e ​c ia. Mary e Pete con​ti​nu​a ​vam à vol​ta da neta, ten​tan​do ar​r an​c ar-lhe um
sor​r i​so ou, à fal​ta de coi​sa me​lhor, uma sim​ples pa​la​vra, po​r ém a me​ni​na con​ti​-
nu​a ​va muda... E Jor​j a, te​le​f o​ne na mão, lem​bra​va-se dos ar​ti​gos de jor​nal que
ha​via lido so​bre au​tis​m o in​f an​til. Não con​se​guia lem​brar-se se o au​tis​m o era um
mal con​gê​ni​to ou se, ao con​trá​r io, po​dia acon​te​c er de re​pen​te com qual​quer cri​-
an​ç a sau​dá​vel e nor​m al. As​sim, sem mais nem me​nos, uma me​ni​na de sete anos
de​c i​de fe​c har-se para o mun​do ex​te​r i​or, es​c a​par para ou​tra di​m en​são, para den​-
tro de si mes​m a... e para sem​pre. Jor​j a sen​tia-se à bei​r a da lou​c u​r a.
Aos pou​c os, con​tu​do, Ma​r eie vol​ta​r a ao nor​m al. Pas​sa​r a a res​pon​der às per​-
gun​tas dos avós, em​bo​r a com fra​ses cur​tas e uma voz tão va​zia e dis​tan​te quan​to
no mo​m en​to dos gri​tos. Pu​se​r a o dedo na boca, há​bi​to já aban​do​na​do aos dois
anos de ida​de, e vol​ta​r a à sala para brin​c ar com os pre​sen​tes no​vos. Brin​c ou o
res​to da tar​de, sem pa​r e​c er di​ver​tir-se, e seu ros​ti​nho es​ta​va ten​so como nun​-
ca. Jor​j a con​ti​nu​a ​va pre​o​c u​pa​da, mas tran​qüi​li​za​va-se ao no​tar que a fi​lha não se
mos​tra​va mui​to in​te​r es​sa​da no “Mé​di​c o In​f an​til”.
As qua​tro e meia, Ma​r eie pa​r e​c ia ter vol​ta​do ao nor​m al. Con​ver​sa​va e ria
como sem​pre, a pon​to de Jor​j a ima​gi​nar que a agi​ta​ç ão da hora do al​m o​ç o não
pas​sa​r a de um rom​pan​te de mau hu​m or.
A sa​í​da, lon​ge dos ou​vi​dos da neta, Mary co​m en​ta​r a:
— Ela está ten​tan​do nos di​zer que se sen​te pou​c o ama​da e con​f u​sa, e não
en​ten​de por que o pai foi em​bo​r a. A me​ni​na pre​c i​sa de ca​r i​nho, só isso.
Jor​j a sa​bia que não era “só isso”. Cla​r o que Ma​r eie sen​tia fal​ta do pai, cla​r o
que se sen​tia aban​do​na​da por ele, cla​r o que vi​via dú​zi​a s de con​f li​tos mal re​sol​vi​-
dos. Po​r ém ha​via ou​tra coi​sa... es​tra​nha, per​tur​ba​do​r a, ir​r a​c i​o​nal. E era essa “ou​-
tra coi​sa” que a as​sus​ta​va.
Pou​c o de​pois da sa​í​da dos avós, Ma​r eie vol​ta​r a a brin​c ar com as se​r in​gas e o
es​te​tos​c ó​pio, mos​tran​do a mes​m a in​ten​si​da​de fre​né​ti​c a da pri​m ei​r a hora. Na
hora de dei​tar-se car​r e​ga​r a to​dos os ape​tre​c hos para o lado da cama e, na​que​le
ins​tan​te, ador​m e​c i​da, con​ti​nu​a ​va fa​lan​do de mé​di​c os, en​f er​m ei​r as e in​j e​ç ões.
Mes​m o que Ma​r eie es​ti​ves​se ca​la​da e cal​m a, Jor​j a de​m o​r a​r ia a dor​m ir. Pre​-
o​c u​pa​ç ões são mais efi​c i​e n​tes que café para ti​r ar o sono. Acor​da​da, tra​tou de
pres​tar aten​ç ão e ver se en​ten​dia o que a me​ni​na di​zia. Já pas​sa​va das duas da
ma​nhã, quan​do Ma​r eie afi​nal pa​r ou de fa​lar de mé​di​c os e in​j e​ç ões. De​pois de
um úl​ti​m o sal​to na cama e al​guns pon​ta​pés dis​tri​bu​í​dos a esmo, ela pa​r ou de re​-
pen​te, rí​gi​da, ab​so​lu​ta​m en​te rí​gi​da, as cos​tas so​bre o col​c hão.
— A Lua... — mur​m u​r ou as​sus​ta​da. Ca​lou-se por um ins​tan​te e, quan​do
vol​tou a fa​lar, já não ha​via só medo em sua voz. Ha​via pâ​ni​c o, ter​r or. — A Lua, a
Lua...
Chi​c a​go, Il​li​nois
Sa​c er​do​te em re​ti​r o de pro​va​ç ão, Bren​dan Cro​nin dor​m ia con​f or​ta​vel​m en​te
ins​ta​la​do sob len​ç óis quen​tes e uma pe​sa​da col​c ha de re​ta​lhos, sor​r in​do de al​gu​-
ma coi​sa que lhe acon​te​c ia em so​nho. So​pran​do for​te por en​tre os ga​lhos do
gran​de pi​nhei​r o jun​to à ja​ne​la, o ven​to as​so​bi​a ​va nas te​lhas e en​tra​va pe​las fres​-
tas da ja​ne​la como o alen​to rit​m a​do de um res​pi​r a​dor mecâ​ni​c o. Per​di​do em so​-
nhos, o jo​vem pa​dre deve ter sen​ti​do a pul​sa​ç ão do ven​to, pois co​m e​ç ou a fa​lar
bai​xi​nho, qua​se que can​ta​r o​lan​do, no rit​m o su​a ​ve em que se ba​lan​ç a​vam as cor​-
ti​nas:
— A Lua... a Lua... a Lua...
La​gu​na Be​a​c h, Ca​li​f ór​nia
— A Lua! A Lua!
Do​m i​nick Cor​vai​sis acor​dou ao som dos pró​pri​os gri​tos, as​sus​ta​do com a dor
lan​c i​nan​te que sen​tia no pul​so di​r ei​to. Es​ta​va de qua​tro no chão, ao lado da cama,
mer​gu​lha​do na es​c u​r i​dão, lu​tan​do para des​ven​c i​lhar-se de al​gu​m a coi​sa que lhe
pren​dia a mão. Aos pou​c os, po​r ém, lem​brou-se da cor​da com que se amar​r a​r a à
ca​be​c ei​r a.
A res​pi​r a​ç ão ain​da ace​le​r a​da, o co​r a​ç ão dis​pa​r a​do, ta​te​ou à pro​c u​r a da lâm​-
pa​da de ca​be​c ei​r a. A luz re​pen​ti​na ofus​c ou-lhe os olhos e ele pre​c i​sou de al​guns
se​gun​dos para dar-se con​ta de que, dor​m in​do, con​se​gui​r a des​f a​zer um dos qua​tro
nós e já co​m e​ç a​va a de​sa​tar o se​gun​do quan​do, afi​nal, de​sis​ti​r a. En​tão, em pâ​ni​-
co, como sem​pre nas cri​ses de so​nam​bu​lis​m o, co​m e​ç a​r a a pu​xar e tor​c er e es​ti​-
rar a cor​da, ten​tan​do sol​tar-se. Como um cão pre​so pela pata.
Le​van​tou-se, afas​tou os len​ç óis e sen​tou-se na cama. Ti​nha cer​te​za de que
ha​via so​nha​do, em​bo​r a não se lem​bras​se de nada. Ain​da as​sim, adi​vi​nha​va que
era um novo pe​sa​de​lo, di​f e​r en​te do ou​tro, que o acom​pa​nha​va, pon​tu​a l fa​zia já
um mês. Nun​c a so​nha​r a com a Lua. Era ou​tro pe​sa​de​lo, tão as​sus​ta​dor quan​to o
pri​m ei​r o, mas por ou​tros mo​ti​vos. Ain​da ti​nha nos ou​vi​dos o eco dos gri​tos que o
ha​vi​a m acor​da​do. Seus pró​pri​os gri​tos, as​sus​ta​dos, ater​r o​r i​za​dos. A Lua\ A Lua.\
Es​tre​m e​c eu e le​vou a mão à ca​be​ç a do​lo​r i​da.
O que po​dia sig​ni​f i​c ar “a Lua”?...
Bos​ton, Mas​sa​c hu​setts
Gin​ger sen​tou-se na cama, cos​tas re​tas, ou​vin​do o eco de um gri​to. A seu
lado, La​vi​nia, a em​pre​ga​da dos Han​naby, di​zia:
— Des​c ul​pe, dou​to​r a Weiss. Eu não que​r ia as​sus​tá-la. A se​nho​r a teve um
pe​sa​de​lo.
— Pe​sa​de​lo? — Gin​ger olhou em vol​ta sem en​ten​der, sem se lem​brar de
nada.
— Sim, e dos pi​o​r es — as​se​gu​r ou-lhe a moça. — Pe​los gri​tos, deve ter sido
ter​r í​vel. Eu es​ta​va pas​san​do pelo hall quan​do ouvi a se​nho​r a cho​r an​do alto. Che​-
guei a me afas​tar um pou​c o, mas per​c e​bi que era um so​nho ruim. En​tão a se​nho​-
ra co​m e​ç ou a gri​tar tan​to e tão alto que re​sol​vi vol​tar para acor​dá-la.
— Gri​tan​do... Eu es​ta​va gri​tan​do} — Gin​ger per​gun​tou, con​f u​sa. — E o que
eu di​zia?
— Re​pe​tia sem​pre a mes​m a coi​sa — La​vi​nia res​pon​deu. — “A Lua, a
Lua, a Lua...” E pa​r e​c ia mui​to ame​dron​ta​da.
— Não me lem​bro de nada.
— Era sem​pre “a Lua”. Mas com voz tão as​sus​ta​da que che​guei a pen​sar
que al​guém es​ta​va ma​tan​do a se​nho​r a.

SE​G UN​DA PAR​TE


TEM​PO DE

DES​CO​B ER​TA
Co​ra​gem é re​sis​tên​c ia ao medo, con​tro​le do medo — não au​sên​c ia do medo.
Mark Twain
Qual o sen​ti​do da vida?
Qual o ob​je​ti​v o que per​ma​ne​c e ocul​to atrás de nos​sa luta?
De onde vi​e ​mos, para onde va​mos?
Sem​pre as mes​mas eter​nas per​gun​tas soam e eco​am Atra​v és dos dias, ao lon​-
go das noi​tes de so​li​dão. As​pi​ra​mos à luz, es​plên​di​da luz Que nos tra​rá a re​v e​la​-
ção Do sen​ti​do do so​nho do ho​mem.
Li​vro das La​m en​ta​ç ões
Um ami​go pode ser con​si​de​ra​do a obra-pri​ma da Na​tu​re​za.
Ralph Wal​do Emer​son

Q UA​TRO__________________

26 de de​zem​bro — 11 de ja​nei​r o

1. BOS​TON, MAS​SA​CHU​SETTS

En​tre 27 de de​zem​bro e 5 de ja​nei​r o, Gin​ger Weiss es​te​ve sete ve​zes no


apar​ta​m en​to de Pa​blo Jack​son. Em seis des​sas vi​si​tas sub​m e​teu-se a sessões de
hip​no​se, cui​da​do​sa​m en​te ori​e n​ta​das pelo má​gi​c o, para o pe​r í​o​do em que, se​gun​-
do ele, po​de​r ia lo​c a​li​zar-se o blo​queio de Az​r a​e l.
Gin​ger pa​r e​c ia-lhe cada vez mais bo​ni​ta, mais in​te​li​gen​te, de​c i​di​da e atra​e n​-
te. Aos pou​c os, Pa​blo re​c o​nhe​c ia nela as qua​li​da​des que gos​ta​r ia de en​c on​trar na
fi​lha que te​r ia se hou​ves​se le​va​do ou​tro tipo de vida. Gin​ger ins​pi​r a​va-lhe ca​r i​-
nho, afe​to, sen​ti​m en​tos pa​ter​nais até en​tão des​c o​nhe​c i​dos para ele.
Pa​blo con​tou-lhe qua​se tudo que ou​vi​r a de Ale​xan​der Ch​r is-toph​son na fes​ta
de Na​tal dos Her​genshei​m er. De iní​c io, ela re​sis​tiu à idéia de que al​guém a ti​ves​-
se in​du​zi​do a es​que​c er par​te do pas​sa​do:
— Não é pos​sí​vel. Es​sas coi​sas não acon​te​c em com gen​te como eu. Não
pas​so de uma íar​mishteh do Bro​ok​lin e nun​c a tive nada a ver com es​pi​ões e in​tri​-
gas in​ter​na​c i​o​nais.
De tudo que ou​vi​r a de Alex Ch​r is​toph​son, Pa​blo omi​tiu ape​nas o que o ve​lho
es​pi​ã o apo​sen​ta​do lhe dis​se​r a so​bre os ris​c os de en​vol​ver-se no caso. Ti​nha cer​te​-
za de que, se Gin​ger sou​bes​se
da opi​ni​ã o de Alex, se​r ia a pri​m ei​r a a de​se​j ar afas​tar-se, com medo de en​-
vol​vê-lo em seus pro​ble​m as. Um pou​c o para evi​tar-lhes cons​tran​gi​m en​tos, um
pou​c o para não per​der a opor​tu​ni​da​de de acom​pa​nhar o caso até o fim, Pa​blo
nao lhe fa​lou so​bre essa par​te do as​sun​to.
Na pri​m ei​r a vi​si​ta, dia 27 de de​zem​bro, an​tes de dar iní​c io à ses​são de hip​no​-
se, ele pre​pa​r ou um al​m o​ç o leve para os dois. Sen​ta​da à mesa, Gin​ger ain​da re​-
sis​tia:
— Mas eu nun​c a tive nem per​to de uma ins​ta​la​ç ão mi​li​tar, nun​c a me erj​-
vol​vi em qual​quer tipo de pes​qui​sa se​c re​ta, nun​c a fa​lei com qual​quer pes​soa, ho​-
mem ou mu​lher, que pu​des​se ter re​la​ç ão com ser​vi​ç os de es​pi​o​na​gem. Isso é ri​-
dí​c u​lo!
— Você pode ter vis​to al​gu​m a coi​sa, tal​vez lon​ge de qual​quer área de se​gu​-
ran​ç a má​xi​m a. Pode ter acon​te​c i​do em qual​quer lu​gar onde você es​ta​va nor​m al​-
men​te... só que na hora er​r a​da.
— Mas... se eles me fi​ze​r am pas​sar por uma la​va​gem ce​r e​bral, o pro​c es​so
deve ter de​m o​r a​do al​gum tem​po. Eu te​r ia per​m a​ne​c i​do pre​sa du​r an​te al​guns
dias, pelo me​nos. Es​tou cer​ta até aqui?
— Creio que sim.
— E como po​de​r ia ter acon​te​c i​do? — Gin​ger abriu os bra​ç os. — Está bem,
con​c or​do que, ao lon​go do pro​c es​so, não se​r ia di​f í​c il me fa​zer es​que​c er tam​bém
quan​do ou onde eu te​r ia vis​to o que não de​via ver. Mas ha​ve​r ia uma fa​lha em
meu pas​sa​do, dois ou três dias es​que​c i​dos!
— Não ne​c es​sa​r i​a ​m en​te. Se​r ia fá​c il im​plan​tar uma lem​bran​ç a fal​sa para
en​c o​brir os dias que fos​sem apa​ga​dos. Você ja​m ais des-co​bri​r ia.
— Deus do céu! E ver​da​de? E pos​sí​vel fa​zer... isso?!
— Es​pe​r o lo​c a​li​zar esse blo​c o de lem​bran​ç as fal​sas im​plan​ta​do ar​ti​f i​c i​a l​-
men​te em seu pas​sa​do. — Pa​blo aca​bou de mas​ti​gar e con​ti​nuou: — Pode ser
um tra​ba​lho de​m o​r a​do, por​que pre​c i​sa​m os re​gre​dir pas​so a pas​so, mas te​nho
cer​te​za de que vou re​c o​nhe​c ê-lo no ins​tan​te em que você co​m e​ç ar a fa​lar. Lem​-
bran​ç as ver​da​dei​r as são chei​a s de de​ta​lhes. Pode-se im​plan​tar um blo​c o de gran-
des acon​te​c i​m en​tos, mas não a subs​tân​c ia e o re​a ​lis​m o de lem​bran​ç as au​tên​-
ti​c as. O que você deve ter re​gis​tra​do na me​m ó​r ia é como um ro​tei​r o de ci​ne​m a,
uma ori​e n​ta​ç ão ge​r al, em gran​des li​nhas. Quan​do en​c on​tra​m os algo as​sim, sem
den​si​da​de, sem de​ta​lhes, che​ga​r e​m os ao pe​r í​o​do cuja lem​bran​ç a real foi apa​ga​-
da.
Gin​ger ar​r e​ga​lou os olhos.
— Sim! — ex​c la​m ou. — En​ten​do per​f ei​ta​m en​te. Quan​do eu co​m e​ç ar a
fa​lar como pa​pa​gaio, che​ga​r e​m os ao mo​m en​to em que a coi​sa acon​te​c eu... E
quan​do eu vol​tar a fa​lar nor​m al​m en​te, te​r e​m os en​c on​tra​do o úl​ti​m o dia en​c o​ber​-
to pelo blo​queio. Mas... é qua​se im​pos​sí​vel acre​di​tar que al​guém pos​sa ter fei​to
isso co​m i​go! De qual​quer modo, se for mes​m o ver​da​de, en​tão to​dos os sin​to​m as
que te​nho ma​ni​f es​ta​do... as cri​ses, as fu​gas, os pe​r í​o​dos de in​c ons​c i​ê n​c ia... são
ape​nas uma re​a ​ç ão nor​m al. São as lem​bran​ç as ver​da​dei​r as lu​tan​do para che​gar
ao ní​vel da cons​c i​ê n​c ia. Nes​se caso, eu não te​r ia ne​nhum pro​ble​m a psi​c o​ló​gi​c o,
e po​de​r ia vol​tar a tra​ba​lhar! Tudo que pre​c i​sa​m os fa​zer é fa​c i​li​tar o ca​m i​nho
para que eu re​a l​m en​te me lem​bre... E en​tão es​ta​r ei li​vre para re​c o​m e​ç ar a vi​-
ver!
Ca​r i​nho​sa​m en​te, o ve​lho má​gi​c o to​m ou-lhe a mão.
— Tam​bém te​nho es​pe​r an​ç as de que isso acon​te​ç a — dis​se —, mas não
vai ser fá​c il. Não es​que​ç a que, cada vez que nos apro​xi​m ar​m os do blo​queio,
você está cor​r en​do sé​r io ris​c o de vida. Vou to​m ar to​das as pre​c au​ç ões pos​sí​veis,
mas, ain​da as​sim, o ris​c o é imen​so.
As duas sessões ini​c i​a is de hip​no​se pro​f un​da co​m e​ç a​r am na mes​m a pol​tro​na
em que Gin​ger sen​ta​r a-se ao pro​c u​r ar Pa​blo pela pri​m ei​r a vez. Uma teve lu​gar
no dia 27 de de​zem​bro, a ou​tra ocor​r eu no do​m in​go, dia 29; am​bas du​r a​r am qua​-
tro ho​r as. Pa​blo a fez re​gre​dir no pas​sa​do, dia a dia, ao lon​go de qua​se nove me​-
ses, po​r ém não en​c on​trou nada dig​no de in​te​r es​se es​pe​c i​a l.
No mes​m o do​m in​go, Gin​ger su​ge​r iu-lhe que a in​ter​r o​gas​se so​bre Do​m i​nick
Cor​vai​sis, o au​tor cuja fo​to​gra​f ia a im​pres​si​o​na​r a tan​to. O má​gi​c o hip​no​ti​zou-a,
re​pe​tiu-lhe, mais uma vez, que que-
ria mui​to co​nhe​c er seu pas​sa​do e per​gun​tou-lhe se al​gum dia co​nhe​c e​r a al​-
guém cha​m a​do Do​m i​nick Cor​vai​sis. Ela não va​c i​lou.
— Sim — dis​se em voz bai​xa.
Pa​blo in​sis​tiu no as​sun​to, cui​da​do​so e aten​to, mas não es​ta​va con​se​guin​do ar​-
ran​c ar-lhe ne​nhu​m a in​f or​m a​ç ão até que um re​ta​lho de lem​bran​ç a aflo​r ou à su​-
per​f í​c ie.
— Ele jo​gou sal em meu ros​to — Gin​ger con​tou.
— Do​m i​nick Cor​vai​sis jo​gou sal em seu ros​to?! E por quê?
— Não sei... Não me lem​bro...
— Quan​do foi isso?
Ela res​pi​r ou fun​do, fran​ziu as so​bran​c e​lhas e, à me​di​da que Pa​blo in​sis​tia, foi
afun​dan​do na pol​tro​na até que, como da pri​m ei​r a vez, co​m e​ç ou a dar si​nais de
pul​sa​ç ão ir​r e​gu​lar e res​pi​r a​ç ão cada vez mais len​ta. Como da pri​m ei​r a vez, es​ta​-
va en​tran​do em coma. Já pre​ve​ni​do, o má​gi​c o con​ven​c eu-a de que não vol​ta​r ia a
in​ter​r o​gá-la so​bre aque​le as​sun​to e ela de​vol​veu à pul​sa​ç ão o rit​m o nor​m al.
Não ha​via dú​vi​da de que Gin​ger co​nhe​c ia Do​m i​nick Cor​vai​sis. Mais do que
isso! Não ha​via dú​vi​da de que a lem​bran​ç a dele era par​te do blo​c o que lhe fora
rou​ba​do.
Nas duas sessões se​guin​tes, na se​gun​da-fei​r a, dia 30, e na quar​ta, dia de Ano
Novo, Pa​blo a fez re​gre​dir mais oito me​ses, até o fi​nal do mês de ju​lho, dois anos
atrás; con​tu​do, não des​c o​briu nada es​tra​nho ou ir​r e​gu​lar. Na quin​ta-fei​r a, 2 de ja​-
nei​r o, Gin​ger pe​diu-lhe que a in​ter​r o​gas​se so​bre o pe​sa​de​lo da noi​te an​te​r i​or, que
não con​se​guia re​c or​dar. Era a quar​ta vez, des​de o Na​tal, que acor​da​va gri​tan​do
“A Lua! A Lua!”, e os gri​tos eram tão al​tos e de​ses​pe​r a​dos que des​per​ta​vam to​-
dos os mo​r a​do​r es do Mi​r an​te.
— Acho que esse so​nho está re​la​c i​o​na​do com o tal pe​r í​o​do que es​ta​m os
pro​c u​r an​do — dis​se. — Se você me hip​no​ti​zar, tal​vez a gen​te des​c u​bra al​gu​m a
coi​sa.
Pa​blo con​ten​tou-a, mas Gin​ger re​c u​sou-se a fa​lar so​bre o as​sun​to e ou​tra vez
deu si​nais de es​tar en​tran​do em coma. O so​nho, como o nome de Do​m i​nick Cor​-
vai​sis, fa​zia dis​pa​r ar os
me​c a​nis​m os do blo​queio de Az​r a​e l, pro​va de que tam​bém en​vol​via ele​m en​-
tos da me​m ó​r ia su​pri​m i​da.
Na sex​ta-fei​r a não hou​ve ses​são de hip​no​se. Pa​blo pe​diu tem​po para ler al​-
guns ar​ti​gos so​bre blo​quei​os de me​m ó​r ia e de​c i​dir-se pelo me​lhor mé​to​do a se​-
guir para a con​ti​nu​a ​ç ão do tra​ta​m en​to. Sen​ta​do no es​c ri​tó​r io ao lado do gra​va​dor
com as fi​tas de to​das as sessões dos pri​m ei​r os dias do ano, de​di​c ou-se a ou​vir no​-
va​m en​te o que Gin​ger lhe dis​se​r a. Pro​c u​r a​va um si​nal, qual​quer mu​dan​ç a de en​-
to​na​ç ão, al​gu​m a pa​la​vra que so​a s​se es​tra​nha ou des​lo​c a​da.
Não en​c on​trou nada de ex​c ep​c i​o​nal, mas no​tou que a voz de Gin​ger tor​na​va-
se li​gei​r a​m en​te mais an​si​o​sa, à me​di​da que se apro​xi​m a​va do dia 31 de agos​to,
no ano re​tra​sa​do. Ao lon​go da ses​são, a mu​dan​ç a pas​sa​r a des​per​c e​bi​da, mas
ago​r a, com a pos​si​bi​li​da​de de ou​vir o con​j un​to das lem​bran​ç as e se​le​c i​o​nar os
tre​c hos mais im​por​tan​tes para es​c u​tá-los vá​r i​a s ve​zes, o pro​c es​so de an​si​e ​da​-
de cres​c en​te tor​na​va-se per​f ei​ta​m en​te iden​ti​f i​c á​vel. Pa​blo co​m e​ç ou a per​c e​ber
que se apro​xi​m a​va do pe​r í​o​do que Gin​ger fora for​ç a​da a es​que​c er. As​sim, na
sex​ta ses​são de re​gres​são hip​nó​ti​c a, dia 4 de ja​nei​r o, ele não se sur​peen​deu com
o que viu.
Como sem​pre, Gin​ger es​ta​va sen​ta​da na pol​tro​na jun​to à va​r an​da, os ca​be​los
mui​to loi​r os con​tras​tan​do com a neve que caía lá fora. Tudo trans​c or​r ia nor​m al​-
men​te, até que ela che​gou ao mês de ju​lho de dois anos an​tes. Nes​se pon​to, re​te​-
sou-se na pol​tro​na, a tes​ta fran​zi​da, a voz ten​sa e qua​se inau​dí​vel. Pa​blo não ti​-
nha a me​nor dú​vi​da de que se apro​xi​m a​vam do pe​r í​o​do en​c o​ber​to pelo blo​queio
de Az​r a​e l.
Na vi​a ​gem ao pas​sa​do, Gin​ger re​m e​m o​r ou os me​ses de in​ten​sa ati​vi​da​de de
re​si​dên​c ia mé​di​c a no Me​m o​r i​a l até o en​c on​tro com Ge​or​ge Han​naby na se​gun​-
da-fei​r a, dia 30 de ju​lho, mais de de​zes​se​te me​ses atrás. As lem​bran​ç as con​ti​nu​-
a​vam vi​vi​das, cla​r as, chei​a s de de​ta​lhes. Ain​da na vés​pe​r a, do​m in​go, 29, ela ar​-
ru​m a​va o novo apar​ta​m en​to. Nos dias 28, 27, 26, 25, 24 com​pra​r a mó​veis, ele​-
tro​do​m és​ti​c os e ob​j e​tos para a casa. No dia 18 de ju​lho che​ga​r a o ca​m i​nhão de
mu​dan​ç as com o que ela ha​via le​va​do pa-
ra Paio Alto, Ca​li​f ór​nia, e mais o que ha​via com​pra​do lá du​r an​te os dois anos
do cur​so de es​pe​c i​a ​li​za​ç ão em ci​r ur​gia car​di​o​vas​c u-lar. No dia 17, ela mes​m a
che​ga​r a a Bos​ton, vi​a ​j an​do de car​r o, e alu​ga​r a um quar​to num ho​tel pró​xi​m o e
Be​a ​c on Hill.
— Você vi​a ​j ou... de car​r o? De um lado a ou​tro do país? — Pa-blo sur​-
preen​deu-se.
— Eram as pri​m ei​r as fé​r i​a s de mi​nha vida. Gos​to de di​r i​gir... e achei que
se​r ia in​te​r es​san​te co​nhe​c er toda essa re​gi​ã o... — Sua voz es​ta​va tão as​sus​ta​da
como se re​la​tas​se uma jor​na​da ao in​f er​no.
Pa​blo in​sis​tiu na re​gres​são pe​los dias de vi​a ​gem até a ma​nhã de 10 de ju​lho,
ter​ç a-fei​r a. Gin​ger pas​sa​r a a noi​te num mo​tel, em Ne​va​da.
— Como se cha​m a​va o lu​gar? — per​gun​tou o má​gi​c o.
— ... T... Tran​qüi...li​da​de... — ela ga​gue​j ou.
— Des​c re​va-o.
Mãos cris​pa​das nos bra​ç os da pol​tro​na, as​sus​ta​da, Gin​ger obe​de​c eu, fa​zen​do
um es​f or​ç o so​bre-hu​m a​no. Era evi​den​te que al​gu​m a coi​sa a ater​r o​r i​za​va.
— En​tão você pas​sou a noi​te no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. Era nove de ju​lho,
se​gun​da-fei​r a — dis​se Pa​blo, ten​tan​do con​tro​lar a pró​pria an​si​e ​da​de. — Ago​r a
pres​te aten​ç ão... Hoje é nove de ju​lho, se​gun​da-fei​r a, e você está se apro​xi​m an​-
do do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. Que ho​r as são?
Gin​ger es​tre​m e​c eu, en​go​liu em seco e não res​pon​deu. Pa​blo in​sis​tiu vá​r i​a s
ve​zes até ouvi-la res​pon​der num sus​sur​r o:
— Não che​guei na se​gun​da-fei​r a... S... sex​ta...
— Na sex​ta-fei​r a an​te​r i​or?! — Ele sal​tou na pol​tro​na. — Você pas​sou vá​r i​-
as noi​tes, de seis de ju​lho, sex​ta-fei​r a, até o dia nove, se​gun​da-fei​r a, num mo​tel
de es​tra​da, num fim-de-mun​do?! — Pa​blo nao des​pre​ga​va os olhos do ros​to de
Gin​ger. Ali es​ta​va o pe​r í​o​do que pa​r e​c ia per​di​do para sem​pre. — E por quê?
— Por​que era um lu​gar tran​qüi​lo — res​pon​deu numa voz dura e inex​pres​-
si​va. — Afi​nal, eu es​ta​va de fé​r i​a s... que​r ia des​c an​sar. O mo​tel era per​f ei​to para
des​c an​sar.
O ve​lho má​gi​c o res​pi​r ou fun​do, re​c os​tou-se na pol​tro​na e, en-
quan​to seus olhos va​ga​vam pela neve que se acu​m u​la​va no pa​r a​pei​to da ja​-
ne​la, es​c o​lheu cui​da​do​sa​m en​te as pa​la​vras da per​gun​ta se​guin​te:
— Você dis​se que o mo​tel não ti​nha pis​c i​na e que os quar​tos eram mui​to
sim​ples. Não me pa​r e​c e um lu​gar con​vi​da​ti​vo para uma es​ta​dia tão lon​ga. Por
que você quis pas​sar qua​tro dias lá?
— Para des​c an​sar, já dis​se. Dor​m ir a ses​ta... Ler dois ou três li​vros, ver te​-
le​vi​são. E óti​m a por​que eles têm uma an​te​na pa​r a​bó​li​c a. — A voz tor​na​va-se
cada vez mais im​pes​so​a l, como se Gin-ger es​ti​ves​se len​do um script es​pe​c i​a l​-
men​te pre​pa​r a​do para aque​le tipo de in​ter​r o​ga​tó​r io. — De​pois de dois anos de
mui​to tra​ba​lho em*Stan​f ord, eu pre​c i​sa​va de al​guns dias de des​c an​so.
— E que li​vros você leu no mo​tel?
— Não me lem​bro.
— Tudo bem... Você está em seu quar​to no mo​tel, len​do. En​ten​deu? Você
está len​do. Olhe para o li​vro que tem nas mãos e diga-me qual é o tí​tu​lo.
— Eu... Não... O li​vro não tem tí​tu​lo.
— Todo li​vro tem tí​tu​lo.
— Este não tem.
— Por​que não exis​te, não é?
Na mes​m a voz fria, que con​tras​ta​va com os pu​nhos cer​r a​dos e as go​tas de
suor bri​lhan​do na tes​ta, ela res​pon​deu:
— E... Não exis​te... Des​c an​sei, dor​m i a ses​ta. Li dois ou três li​vros. Vi te​le​-
vi​são... A te​le​vi​são é óti​m a por​que eles têm uma an​te​na pa​r a​bó​li​c a.
— E o que você viu na te​le​vi​são?
— No​ti​c i​á ​r i​os. Fil​m es.
— Que fil​m es?
— Não... não me lem​bro... — Gin​ger es​tre​m e​c eu ou​tra vez.
Pa​blo sa​bia que ela não se lem​bra​va sim​ples​m en​te por​que não
vira fil​m e ne​nhum. Hos​pe​da​r a-se de fato no Mo​tel Tran​qüi​li​da-de, pois des​-
cre​ve​r a-o em to​dos os de​ta​lhes, mas lá não lera ne​nhum li​vro, nem as​sis​ti​r a a fil​-
mes na te​le​vi​são. Al​guém in​ter​f e​r i​r a em sua me​m ó​r ia e ins​tru​í​r a-a para fa​lar
da​que​la ma​nei​r a e para
for​ne​c er res​pos​tas im​pre​c i​sas. Ali es​ta​vam as fal​sas lem​bran​ç as, ar​qui​te​ta​-
das e im​plan​ta​das para en​c o​brir os fa​tos ver​da​dei​r os que ela tes​te​m u​nha​r a no
mo​tel. Nem o mais há​bil es​pe​c i​a ​lis​ta em la​va​gem ce​r e​bral se​r ia ca​paz de cri​a r
uma teia de acon​te​c i​m en​tos fal​sos ca​paz de re​sis​tir a um in​ter​r o​ga​tó​r io bem con​-
du​zi​do, deli-be​r a​da​m en​te ori​e n​ta​do em bus​c a de al​gum blo​queio ar​ti​f i​c i​a l de me​-
mó​r ia.
— Onde você jan​ta​va quan​do es​ta​va lá? — Pa​blo per​gun​tou.
— No res​tau​r an​te do mo​tel. E pe​que​no e não tem um car​dá​pio va​r i​a ​do,
mas a co​m i​da é bem ra​zo​á ​vel — res​pon​deu, a voz neu​tra.
— E o que você co​m eu?
— Não sei... não me lem​bro.
— Mas você aca​bou de di​zer que “a co​m i​da é bem ra​zo​á ​vel”... Se lem​bra
isso, de​via lem​brar tam​bém o que co​m eu...
— Ora... é um lu​gar pe​que​no e não tem um car​dá​pio va​r i​a ​do, mas...
Quan​to mais Pa​blo a pres​si​o​na​va, mais via a ten​são cres​c er-lhe nas mãos e
no ros​to. A voz man​ti​nha-se fria, mo​nó​to​na, sem in​f le​xão, re​pe​tin​do sem​pre as
mes​m as res​pos​tas pro​gra​m a​das, po​r ém o cor​po pa​r e​c ia pres​tes a ex​plo​dir de an​-
si​e ​da​de.
Não se​r ia di​f í​c il fazê-la es​que​c er para sem​pre as fal​sas lem​bran​ç as que lhe
ha​vi​a m sido im​plan​ta​das. Bas​ta​r ia or​de​nar que as es​que​c es​se, e ela as es​que​c e​-
ria. De​pois, bas​ta​r ia or​de​nar-lhe que se lem​bras​se do que re​a l​m en​te acon​te​c e​r a
no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, e ela se lem​bra​r ia de tudo. No en​tan​to, en​tre uma eta​pa
e ou​tra, ha​via os ga​ti​lhos pro​gra​m a​dos pelo blo​queio de Az​r a​e l. Um des​ses ga​ti​-
lhos po​de​r ia in​du​zi-la a coma pro​f un​da an​tes de dar-lhe tem​po para fa​lar. Se​r ia
pre​c i​so ir mui​to de​va​gar, ta​te​a n​do com cui​da​do, à pro​c u​r a de even​tu​a is bre​c has
ou fa​lhas no blo​queio, para po​der apro​xi​m ar-se da ver​da​de em re​la​ti​va se​gu​r an​-
ça. O ba​lan​ç o do dia se​r ia mais do que lu​c ra​ti​vo se fos​se pos​sí​vel pre​c i​sar quan​-
tas ho​r as ha​vi​a m sido rou​ba​das da vida da dra. Weiss.
— Va​m os vol​tar para o dia seis de ju​lho, sex​ta-fei​r a, dois anos
atrás. Você está preen​c hen​do a fi​c ha de en​tra​da no mo​tel. Que ho​r as são? —
Pa​blo per​gun​tou.
— Ain​da não são oito da noi​te. — A voz vol​ta​r a ao nor​m al, in​di​c an​do que
as lem​bran​ç as eram au​tên​ti​c as. — Ain​da fal​ta​va uma hora para es​c u​r e​c er, mas
eu es​ta​va exaus​ta. Só que​r ia jan​tar, to​m ar um ba​nho e dor​m ir. — Ela des​c re​veu
Er​nie e Fay e, que a re​c e​be​r am na por​ta​r ia, e até se lem​brou de seus no​m es.
— De​pois de preen​c her a fi​c ha de en​tra​da, você jan​tou no res​tau​r an​te do
mo​tel. Des​c re​va o res​tau​r an​te.
Até de​ter​m i​na​do mo​m en​to, a des​c ri​ç ão jor​r ou fá​c il, rica em de​ta​lhes; de​pois
Gin​ger re​a s​su​m iu a voz fria e me​tá​li​c a, con​f ir​m an​do a sus​pei​ta de que a la​va​-
gem ce​r e​bral co​bria o pe​r í​o​do de tem​po com​preen​di​do en​tre al​gum mo​m en​to
du​r an​te o jan​tar na​que​la sex​ta-fei​r a e o ins​tan​te em que sa​í​r a do mo​tel na ter​ç a-
fei​r a se​guin​te. Pa​blo re​c on​du​ziu-a ao pe​que​no res​tau​r an​te, ten​tan​do lo​c a​li​zar
o exa​to mo​m en​to em que co​m e​ç a​va o blo​queio:
— Diga-me o que acon​te​c eu a par​tir do mo​m en​to em que en​trou no res​-
tau​r an​te. Que​r o sa​ber tudo, mi​nu​to a mi​nu​to.
Gin​ger le​van​tou-se. Des​c on​tra​í​da, vol​tan​do a ca​be​ç a para os la​dos como al​-
guém que aca​ba de en​trar num res​tau​r an​te e pro​c u​r a lu​gar para sen​tar-se. Pa​blo
tam​bém le​van​tou-se e se​guiu-a, im​pe​din​do-a de tro​pe​ç ar nos mó​veis que ela não
via. Seus mo​vi​m en​tos não re​ve​la​vam o me​nor si​nal de ten​são, in​di​c an​do que as
lem​bran​ç as eram não só au​tên​ti​c as, mas tam​bém agra​dá​veis.
— De​m o​r ei um pou​c o por​que fui ao quar​to la​var as mãos, pas​sar uma es​-
co​va nos ca​be​los e tro​c ar de blu​sa. Já está qua​se es​c u​r e​c en​do. A pai​sa​gem está
toda aver​m e​lha​da, e o res​tau​r an​te tam​bém. Vou me sen​tar ali, per​to da ja​ne​la.
— Pa​blo gui​ou-a pela sala até um dos so​f ás co​ber​tos de al​m o​f a​das cla​r as, e viu-a
as​pi​r ar um chei​r o que só ela sen​tia. — Que de​lí​c ia! Ce​bo​la, chei​r o-ver​de... Ba​ta​-
tas fri​tas!
— O res​tau​r an​te está cheio?
Sem abrir os olhos, ela vol​tou a ca​be​ç a para a di​r ei​ta e para a es​quer​da.
— Não. O co​zi​nhei​r o está atrás do bal​c ão. A gar​ç o​ne​te aten​de os fre​gue​ses.
Três ho​m ens com jei​to de ca​m i​nho​nei​r os ocu​pam
três me​sas di​f e​r en​tes. Na​que​la mesa, há mais três ho​m ens... Na ou​tra, o pa​-
dre gor​do... Lá no fun​do, um moço alto — Gin​ger apon​ta​va com o dedo en​quan​to
fa​la​va. — Ao todo, onze pes​so​a s, con​tan​do co​m i​go.
— Está bem. Vá sen​tar à mesa que você es​c o​lheu.
Ela se le​van​tou de novo, sor​r iu para al​guém, con​tor​nou um obs​tá​c u​lo, tal​vez
uma mesa que só ela via, e, de re​pen​te, re​c uou, as​sus​ta​da.
— Oh! — ex​c la​m ou, vi​r an​do-se para trás.
— O que acon​te​c eu?
Sem res​pon​der, Gin​ger pis​c ou, pas​sou a mão no ros​to, sor​r iu e dis​se para
uma pes​soa que tam​bém es​ti​ve​r a no res​tau​r an​te do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de na​que​le
dis​tan​te dia 6 de ju​lho:
— Não foi nada! Tudo bem... Já lim​pei. Está ven​do? — Er​gueu a ca​be​ç a
para mos​trar o ros​to à in​vi​sí​vel cri​a ​tu​r a que se le​van​ta​va de uma ca​dei​r a a sua
fren​te. — Já que der​r u​bou o sa​lei​r o, tem todo o di​r ei​to de jo​gar um pou​c o de sal
por cima do om​bro... Meu pai fa​zia isso para afas​tar mau-olha​do... Ele cos​tu​m a​-
va jo​gar três pi​ta​das... Se es​ti​ves​se sen​ta​do aí onde você está, eu fi​c a​r ia so​ter​r a​da
sob uma sa​li​na. — Sem​pre sor​r in​do, afas​tou-se em di​r e​ç ão à “mesa jun​to à ja​-
ne​la”.
— Es​pe​r e — Pa​blo cha​m ou-a. — Como é esse ho​m em que jo​gou sal por
cima do om​bro?
— E jo​vem. Tem trin​ta e dois, trin​ta e três anos... Um me​tro e oi​ten​ta, mais
ou me​nos... Ma​gro, ca​be​los es​c u​r os, olhos es​c u​r os. Sim​pá​ti​c o, atra​e n​te... Pa​r e​c e
tí​m i​do, doce...
O ho​m em da con​tra​c a​pa do Cre​pús​c u​lo na Ba​bi​lô​nia: Domi-nick Cor​vai​sis.
Gin​ger con​ti​nuou an​dan​do pela sala e Pa​blo con​du​ziu-a no​va​m en​te para o
sofá. Ela sen​tou-se e olhou para o lado, como se exa​m i​nas​se a pai​sa​gem, sor​r in​-
do à luz do sol que se pu​nha nas pla​ní​c i​e s de Ne​va​da. De​pois sor​r iu para a gar​ç o​-
ne​te, dis​se duas ou três coi​sas so​bre a be​le​za do po​e n​te e pe​diu uma cer​ve​j a.
Quan​do re​c e​beu a gar​r a​f a, exe​c u​tou to​dos os ges​tos ne​c es​sá​r i​os para ser​vir-se,
apa​nhar o copo e levá-lo aos lá​bi​os.
A sala es​ta​va mer​gu​lha​da em si​lên​c io. Às ve​zes, Gin​ger vol​ta​va a ca​be​ç a
para os la​dos, como que ava​li​a n​do de​ta​lhes do in​vi​sí​vel res​tau​r an​te. Pa​blo não a
apres​sou. Sa​bia que es​ta​vam mui​to pró​xi​m os do mo​m en​to cru​c i​a l em que a me​-
mó​r ia au​tên​ti​c a ce​de​r ia lu​gar à me​m ó​r ia for​j a​da. Es​ta​vam mui​to pró​xi​m os, por​-
tan​to, do mo​m en​to em que ocor​r e​r a, na​que​le res​tau​r an​te, al​gu​m a coi​sa que Gin​-
ger não de​ve​r ia ter pre​sen​c i​a ​do.
Na​que​le dia do pas​sa​do, o sol es​c on​dia-se no ho​r i​zon​te. A gar-ço​ne​te vol​ta​r a
para ano​tar o pe​di​do do jan​tar: sopa de le​gu​m es e tor​ta de car​ne.
De re​pen​te, Gin​ger es​tre​m e​c eu no sofá e per​gun​tou, fran​zin​do as so​bran​c e​-
lhas:
— Mas... o que é isso?!
— O que você está ven​do? — Sem que​r er, Pa​blo olhou para a ja​ne​la.
Gin​ger le​van​tou-se, pre​o​c u​pa​da, fa​lan​do com al​guém que só ela via:
— Não sei o que é isso... — Des​li​zou para o lado, qua​se caiu, apoi​ou-se na
pa​r e​de. — Ge​v al​tl Pa​r e​c e um ter​r e​m o​to! O chão está tre​m en​do... Tudo está tre​-
men​do! Mi​nha cer​ve​j a caiu da mesa! Mas... o que está acon​te​c en​do? E esse
som?! — Já ha​via medo em sua voz, mui​to medo. — A por​ta! — Gin​ger gri​tou e
vi​r ou-se como se qui​ses​se fu​gir. Che​gou a dar al​guns pas​sos em di​r e​ç ão à por​ta, e
pa​r ou de re​pen​te, lí​vi​da, os olhos es​bu​ga​lha​dos, o cor​po os​c i​lan​do para a fren​te e
para trás.
Pa​blo apro​xi​m ou-se com duas rá​pi​das pas​sa​das, mas, an​tes que pu​des​se se​-
gu​r á-la, ela caiu de jo​e ​lhos so​bre o ta​pe​te, a ca​be​ç a in​c li​na​da, os bra​ç os cru​za​dos
so​bre o pei​to.
— O que hou​ve? — per​gun​tou o má​gi​c o ten​tan​do man​ter a voz cal​m a.
— Nada. — Ou​tra vez, a voz neu​tra. Mu​dan​ç a ins​tan​tâ​nea.
— O que é esse som?
— Que som?
— Pelo amor de Deus! O que está acon​te​c en​do no Mo​tel Tran​qui​li​da​de?!
O ros​to ex​pri​m ia hor​r or, mas a voz era fria e me​tá​li​c a:
— Es​tou jan​tan​do.
— Men​ti​r a! Essa lem​bran​ç a foi im​plan​ta​da em você.
— Es​tou jan​tan​do — ela re​pe​tiu.
Pa​blo fez mais uma ten​ta​ti​va e de​sis​tiu: o ris​c o era gran​de de​m ais. Ha​vi​a m
che​ga​do ao mo​m en​to em que co​m e​ç a​va a agir o blo​queio de Az​r a​e l. Gin​ger só
se lem​bra​va re​a l​m en​te do que ocor​r e​r a a par​tir da ma​nhã de ter​ç a-fei​r a, quan​do
apa​nha​r a o car​r o para se​guir vi​a ​gem em di​r e​ç ão a Salt Lake City. Aos pou​c os,
tal​vez fos​se pos​sí​vel rom​per o blo​queio, mas o que ha​vi​a m con​se​gui​do já era
mui​to para um só dia de co​lhei​ta.
Ago​r a ti​nham por onde co​m e​ç ar. Sa​bi​a m que na​que​la noi​te de sex​ta-fei​r a, 6
de ju​lho, dois anos an​tes, Gin​ger vira al​gu​m a coi​sa que não de​ve​r ia ter vis​to.
Como tes​te​m u​nha des​se... acon​te​c i​m en​to, trans​f or​m a​r a-se em ter​r í​vel ame​a ​ç a
para al​guém. Al​guém que du​r an​te vá​r i​os dias man​ti​ve​r a-a pri​si​o​nei​r a no Mo​tel
Tran​qüi​li​da​de e im​pu​se​r a-lhe uma la​va​gem ce​r e​bral, fei​ta por pro​f is​si​o​nais mui​-
to com​pe​ten​tes, para im​pe​dir que ela re​ve​las​se o que vira. Tra​ba​lha​r am du​r an​te
três dias: sá​ba​do, do​m in​go e se​gun​da-fei​r a. Na ter​ç a-fei​r a, eles a li​ber​ta​r am, já
es​que​c i​da do que vira.
Eles... Mas quem po​de​r ia ser eles, es​ses des​c o​nhe​c i​dos tão in​f i​ni​ta​m en​te po​-
de​r o​sos? E o que Gin​ger te​r ia vis​to?

2. POR​TLAND, ORE​G ON

No do​m in​go, dia 5 de ja​nei​r o, Do​m i​nick Cor​vai​sis to​m ou um avi​ã o para Por​-
tland e ins​ta​lou-se num ho​tel bem pró​xi​m o da casa onde ha​via mo​r a​do. Cho​via
mui​to e fa​zia frio.
Dom pas​sou a tar​de no quar​to, sen​ta​do di​a n​te da ja​ne​la, ora con​tem​plan​do a
pai​sa​gem, ora exa​m i​nan​do ma​pas das es​tra​das que cor​ta​vam a re​gi​ã o. Por vá​r i​-
as ve​zes con​se​guiu re​c ons​ti​tuir as eta​pas da vi​a ​gem que fi​ze​r a no ve​r ão re​tra​sa​do
e que se pre​pa​r a​va para re​pe​tir a par​tir do dia se​guin​te.
Como dis​se​r a a Parker Fai​ne no dia de Na​tal, es​ta​va con​ven​c i-
do de que, em de​ter​m i​na​do pon​to da​què​la vi​a ​gem, es​bar​r a​r a em al​gu​m a
coi​sa proi​bi​da. Por mais pa​r a​nói​c o que pu​des​se pa​r e​c er, es​ta​va con​ven​c i​do tam​-
bém de que al​guém o sub​m e​te​r a a la​va​gem ce​r e​bral para fazê-lo es​que​c er o que
vira. Era a úni​c a con​c lu​são pos​sí​vel, de​pois do que di​zi​a m os bi​lhe​tes mis​te​r i​o​sos
de seu cor​r es​pon​den​te anô​ni​m o.
Dois dias an​tes, re​c e​be​r a uma ter​c ei​r a men​sa​gem, num en​ve​lo​pe pos​ta​do
em Nova York e que ele ago​r a es​va​zi​a ​va so​bre a mesa. Des​sa vez o en​ve​lo​pe não
con​ti​nha ne​nhum bi​lhe​te, ape​nas duas fo​to​gra​f i​a s.
A pri​m ei​r a foto não o im​pres​si​o​nou, po​r ém pro​vo​c ou-lhe es​tra​nha ten​são.
Dom ti​nha cer​te​za de que não co​nhe​c ia aque​le ho​m em, um pa​dre jo​vem, gor​du​-
cho, de ca​be​los rui​vos, olhos ver​des e na​r iz sar​den​to. Sen​ta​do jun​to a uma pe​que​-
na es​c ri​va​ni​nha, com uma mala ao lado da ca​dei​r a, o pa​dre olha​va di​r e​ta​m en​te
para a câ​m a​r a; seu ros​to re​don​do era tão inex​pres​si​vo quan​to o ros​to de um ca​-
dá​ver.
A se​gun​da foto cau​sou-lhe sur​pre​sa e emo​ç ão mui​to mai​o​r es, que per​sis​ti​a m
mes​m o de​pois da cen​té​si​m a vez que a exa​m i​na​va. Mos​tra​va uma mu​lher jo​vem,
que Dom ti​nha a im​pres​são de co​nhe​c er de al​gum lu​gar, mas não se lem​bra​va
de onde. Olhan​do para aque​le ros​to, sen​tia o mes​m o medo que o ator​m en​ta​va
ao des​per​tar dos pe​sa​de​los ou sair das cri​ses de so​nam​bu​lis​m o. A moça de​via ter
vin​te e seis ou vin​te e sete anos. Era loi​r a, de olhos azuis e ex​c ep​c i​o​nal​m en​te bo​-
ni​ta — ou me​lhor, se​ria ex​c ep​c i​o​nal​m en​te bo​ni​ta se não ti​ves​se o ros​to tão va​zio
e au​sen​te como o do pa​dre. A foto fo​c a​li​za​va-a da cin​tu​r a para cima, dei​ta​da
numa cama es​trei​ta, com o len​ç ol pu​xa​do até o quei​xo. Ela es​ta​va amar​r a​da à
cama, e em seu bra​ç o via-se uma se​r in​ga com agu​lha in​tra-ve​no​sa. Pa​r e​c ia pe​-
que​na, fra​c a, in​de​f e​sa e opri​m i​da.
Des​de o pri​m ei​r o mo​m en​to, aque​la fo​to​gra​f ia re​c or​da​va-lhe o pe​sa​de​lo dos
ho​m ens gri​tan​do per​to dele e obri​gan​do-o a in​c li​nar-se so​bre uma pia. Às ve​zes,
o pe​sa​de​lo co​m e​ç a​va numa cama pa​r e​c i​da, en​vol​ta numa né​voa ama​r e​la​da que
o im​pe​dia de ver. Quan​to mais olha​va para a moça mais Dom se con​ven​c ia de
que, em
al​gum lu​gar do pla​ne​ta, ha​via uma foto igual àque​la, onde ele pró​prio apa​r e​-
cia amar​r a​do a uma cama, com uma agu​lha es​pe​ta​da na veia do bra​ç o, o ros​to
va​zio como o de um zum​bi.
Ao ver as duas fo​to​gra​f i​a s, na sex​ta-fei​r a em que Dom as re​c e​be​r a, Parker
Fai​ne co​m en​ta​r a:
— Cor​to o saco se es​ti​ver er​r a​do, mas sou ca​paz de apos​tar que essa moça
está sob efei​to de dro​gas, sen​do sub​m e​ti​da a um pro​c es​so quí​m i​c o de la​va​gem
ce​r e​bral, pro​va​vel​m en​te como você tam​bém foi. Deus do céu... Essa his​tó​r ia
está fi​c an​do cada vez mais mis​te​r i​o​sa. O tipo da his​tó​r ia que nin​guém pode con​-
tar para a po​lí​c ia, por​que não se sabe de que lado a po​lí​c ia está. E se você ti​ver
me​ti​do as pa​tas em al​gum pro​j e​to se​c re​to do go​ver​no? Pelo me​nos res​ta o con​so​-
lo de sa​ber que você não foi o úni​c o a ver o que não de​via. O pa​dre​c o e a ga​r o​ta
tam​bém es​ta​vam por lá. Quem fez esse tra​ba​lho em vo​c ês es​ta​va mui​to in​te​r es​-
sa​do em es​c on​der seu se​gre​do. E que se​gre​do, para jus​ti​f i​c ar tan​to trans​tor​no!
Sen​ta​do di​a n​te da ja​ne​la de seu quar​to de ho​tel, Dom se​gu​r a​va uma foto em
cada mão, lado a lado, exa​m i​nan​do ora uma, ora ou​tra.
— Quem são vo​c ês? — per​gun​tou em voz alta. — Como se cha​m am? O
que nos terá acon​te​c i​do por essa es​tra​da?
Ao lon​ge, nos li​m i​tes da noi​te de Por​tland, bri​lhou um re​lâm​pa​go, pre​nun​c i​-
an​do tem​pes​ta​de. Em mi​nu​tos a chu​va co​m e​ç ou a cair, pe​sa​da, ba​ten​do como
cas​c os de ca​va​lo nas pa​r e​des do ho​tel, sa​c u​din​do as vi​dra​ç as.
Ho​r as mais tar​de, Dom amar​r ou-se à cama, usan​do o equi​pa​m en​to que já
pas​sa​r a por con​si​de​r á​vel me​lho​r ia des​de o Na​tal. Em pri​m ei​r o lu​gar, des​c o​bri​r a
que, para evi​tar es​c o​r i​a ​ç ões nos pul​sos, bas​ta​va en​vol​vê-los com gaze. De​pois
subs​ti​tui​r a o bar​ban​te por um fio de nái​lon tor​c i​do, mais fino, po​r ém mui​to
mais re​sis​ten​te, do tipo usa​do pe​los al​pi​nis​tas em gran​des es​c a​la​das. De​c i​di​r a
ado​tar o fio de nái​lon por​que na noi​te de 28 de de​zem​bro con​se​gui​r a sol​tar-se, ro​-
en​do o bar​ban​te que o pren​dia à cama. O fio de al​pi​nis​ta era tão re​sis​ten​te quan​to
um cabo de aço e mui​to mais fá​c il de trans​por​tar.
Na pri​m ei​r a noi​te em Por​tland, Dom acor​dou três ve​zes, de​ba​ten​do-se para
se li​vrar dos nós, su​a n​do, ofe​gan​te, com o co​r a​ç ão dis​pa​r a​do, e gri​tan​do:
— A Lua! A Lua!

3. LAS VE​G AS, NE​VA​DA

Um dia de​pois do Na​tal, Jor​j a Mo​na​tel​la le​vou Ma​r eie ao con​sul​tó​r io do dr.
Louis Be​san​c ourt, onde ocor​r eu uma cena ter​r í​vel, que os dei​xou sem fala, um
fren​te ao ou​tro. Já quan​do se apro​xi​m a​va da sala de es​pe​r a, Ma​r eie co​m e​ç ou a
cho​r ar; logo pas​sou aos gri​tos mais lan​c i​nan​tes, es​per​ne​ou e es​bra​ve​j ou como
nun​c a fi​ze​r a:
— Não! Mé​di​c o, não! Ele vai me ma​c hu​c ar! Naol
Em ge​r al a me​ni​na era tran​qüi​la e mui​to bem com​por​ta​da. Em suas ra​r as
cri​ses de mau hu​m or ou de de​so​be​di​ê n​c ia, bas​ta​vam-lhe uma ou duas pal​m a​di​-
nhas no tra​sei​r o para se acal​m ar. Jor​j a ten​tou esse úl​ti​m o re​c ur​so e ar​r e​pen​deu-
se: pela pri​m ei​r a vez na vida, as pal​m a​das ti​ve​r am efei​to opos​to ao es​pe​r a​do, e
só fi​ze​r am au​m en​tar os ber​r os, os pon​ta​pés e as lá​gri​m as.
Foi pre​c i​so pe​dir aju​da a uma en​f er​m ei​r a para ar​r as​tar Ma​r eie até a sala de
con​sul​tas. O pró​prio dr. Be​san​c ourt, sem​pre tão sim​pá​ti​c o e pa​c i​e n​te, só con​se​-
guiu apa​vo​r ar ain​da mais a ga​r o​ta. Quan​do ele apa​nhou o of​tal​m os​c ó​pio para
exa​m i​ná-la, Ma​r eie uri​nou na cal​ç a, como no dia de Na​tal. E de​pois, exa​ta​m en​te
como na​que​le dia, o des​c on​tro​le ab​so​lu​to ce​deu lu​gar à mes​m a cal​m a au​sen​te,
que fi​ze​r a Jor​j a pen​sar em au​tis​m o. Mui​to pá​li​da, ain​da trê​m u​la, a me​ni​na pa​r ou
de re​pen​te, os bra​ç os ca​í​dos ao lon​go do cor​po.
En​tão o dr. Be​san​c ourt pôde pro​c e​der ao exa​m e, que não lhe per​m i​tiu di​a g​-
nos​ti​c ar qual​quer anor​m a​li​da​de, em​bo​r a não hou​ves​se dú​vi​da de que al​gu​m a
coi​sa não ia bem. O mé​di​c o fa​lou so​bre a pos​si​bi​li​da​de de um dis​túr​bio neu​r o​ló​-
gi​c o ou ce​r e​bral, aven​tou a hi​pó​te​se de pro​ble​m as psi​c o​ló​gi​c os, e pe​diu uma lon-
ga sé​r ie de exa​m es, para os quais se​r ia ne​c es​sá​r io in​ter​nar Ma​r eie no Hos​pi​-
tal Sun​r i​se por al​guns dias.
A cena do con​sul​tó​r io foi ape​nas uma amos​tra do que acon​te​c e​r ia no hos​pi​-
tal. A sim​ples apa​r i​ç ão de um mé​di​c o ou en​f er​m ei​r a bas​ta​va para mer​gu​lhar a
me​ni​na no pâ​ni​c o mais ir​r a​c i​o​nal e ab​so​lu​to. Do pâ​ni​c o, ela evo​lu​ía para a his​te​-
ria, até que, fi​si​c a​m en​te exaus​ta, caía na​que​la es​pé​c ie de tran​se ca​ta​tô​ni​c o do
qual le​va​va ho​r as para se re​c u​pe​r ar.
Jor​j a pe​diu uma se​m a​na de li​c en​ç a no cas​si​no e pra​ti​c a​m en​te mu​dou para o
hos​pi​tal du​r an​te os qua​tro dias de exa​m es. Quan​do po​dia, dor​m ia numa cama
adi​c i​o​nal ins​ta​la​da no quar​to, e dor​m ia pou​c o: mes​m o sob o efei​to de for​tes se​da​-
ti​vos a me​ni​na pas​sa​va as noi​tes aos gri​tos, de​ba​ten​do-se sem pa​r ar.
— A Lua! — ex​c la​m a​va. — A Lua!
No quar​to dia, Jor​j a es​ta​va a pon​to de pe​dir so​c or​r o ao mé​di​c o, quan​do Ma​-
reie sim​ples​m en​te vol​tou ao nor​m al. Mos​trou-se con​tra​r i​a ​da por es​tar no hos​pi​tal
e pe​diu para vol​tar para casa, mas nao gri​tou nem agiu como se to​dos os de​m ô​ni​-
os a per​se​guis​sem. Con​ti​nu​a ​va pá​li​da, ner​vo​sa e ten​sa, po​r ém pela pri​m ei​r a vez
em dias co​m eu com gran​de ape​ti​te.
Mais tar​de, en​quan​to Ma​r eie al​m o​ç a​va, de​pois de pas​sar pelo úl​ti​m o exa​m e
pre​vis​to, o dr. Be​san​c ourt cha​m ou Jor​j a para uma con​ver​sa par​ti​c u​lar:
— Não en​c on​tra​m os nada — in​f or​m ou, os olhos gen​tis de sem​pre bri​lhan​-
do no ros​to re​don​do. — To​dos os exa​m es fo​r am ne​ga​ti​vos. Ma​r eie não tem ne​-
nhum tu​m or ce​r e​bral nem qual​quer le​são ou dis​f un​ç ão do apa​r e​lho neu​r o​ló​gi​c o.
— Gra​ç as a Deus!
— Vou en​c a​m i​nhá-la para um psi​c ó​lo​go in​f an​til, Ted Co​verly, que sa​be​r á
como aju​dá-la. De qual​quer modo... te​nho um pal​pi​te. E en​gra​ç a​do, mas acho
que já cu​r a​m os Ma​r eie, sem sa​ber.
•— Como?! O que está que​r en​do di​zer? — Jor​j a es​ta​va per​ple​xa.
— Uma das hi​pó​te​ses de di​a g​nós​ti​c o era que ela ti​ves​se de​sen​vol​vi​do um
tipo de fo​bia. Os sin​to​m as são tí​pi​c os... medo ir​r a​c i​o​nal, cri​ses pâ​ni​c as... Um dos
mé​to​dos uti​li​za​dos para eli​m i​nar
fo​bi​a s é o que cha​m a​m os de “cho​que te​r a​pêu​ti​c o”. Du​r an​te al​gum tem​po o
pa​c i​e n​te é ex​pos​to ao fa​tor que de​sen​c a​deia as cri​ses de pâ​ni​c o até que a fo​bia se
es​go​te por si mes​m a. É uma te​r a​pia vi​o​len​ta e ex​tre​m a​m en​te agres​si​va, que eu
ja​m ais re​c o​m en​da​r ia a uma cri​a n​ç a. Mas é pos​sí​vel que, sem que​r er, a te​nha​-
mos in​du​zi​do a um “cho​que te​r a​pêu​ti​c o” pelo sim​ples fato de man​tê-la in​ter​na​da
no hos​pi​tal du​r an​te qua​tro dias.
— E por que ela de​sen​vol​veu essa fo​bia? Como é que foi ocor​r er uma coi​-
sa tão... es​qui​si​ta? — Jor​j a fran​ziu as so​bran​c e​lhas. — Ma​r eie nun​c a es​te​ve hos​-
pi​ta​li​za​da, nun​c a pas​sou por ne​nhu​m a ex​pe​r i​ê n​c ia de​sa​gra​dá​vel com mé​di​c os ou
hos​pi​tais. Na ver​da​de, ela nun​c a fi​c ou re​a l​m en​te do​e n​te!
O dr. Be​san​c ourt ba​lan​ç ou a ca​be​ç a e afas​tou-se para dar pas​sa​gem a uma
maca em​pur​r a​da por duas en​f er​m ei​r as.
— Sa​be​m os pou​c a coi​sa so​bre a ori​gem das fo​bi​a s — ex​pli​c ou. — Sa​be​-
mos, por exem​plo, que não é ne​c es​sá​r io ser so​bre​vi​ven​te de um de​sas​tre de avi​-
ão para ter medo de voar. As fo​bi​a s são... ines​pe​r a​das. Mes​m o que Ma​r eie es​te​j a
cu​r a​da, sem​pre po​de​r á res​tar al​gum ves​tí​gio de medo, com o qual va​le​r á a pena
o psi​c ó​lo​go tra​ba​lhar. Fi​que tra​qüi​la. Ted Co​verly sa​be​r á o que fa​zer com sua fi​-
lha.
Na​que​la mes​m a tar​de, dia 30 de de​zem​bro, se​gun​da-fei​r a, Ma​r eie re​c e​beu
alta e vol​tou para casa. Pa​r e​c ia to​tal​m en​te cu​r a​da, rin​do como sem​pre, ale​gre e
ta​ga​r e​la. Mal en​trou em casa, cor​r eu para sua pi​lha de pre​sen​tes e brin​c ou um
pou​c o com o “Mé​di​c o In​f an​til”, que logo tro​c ou por uma bo​ne​c a.
Pou​c o de​pois os avós fo​r am vi​si​tá-la. En​quan​to Ma​r eie es​ta​va hos​pi​ta​li​za​da,
Jor​j a con​se​gui​r a man​tê-los a dis​tân​c ia, ex​pli​c an​do que as vi​si​tas po​de​r i​a m re​tar​-
dar a re​c u​pe​r a​ç ão da me​ni​na; em casa, po​r ém, como ela pa​r e​c ia mui​to bem, to​-
dos se tran​qüi​li​za​r am. Du​r an​te o jan​tar, sor​r i​den​te e tran​qüi​la, Ma​r eie ga​r an​tiu a
es​ta​bi​li​da​de e a paz do​m és​ti​c as.
Jor​j a ain​da dei​xou a fi​lha dor​m ir em sua cama nas três noi​tes se​guin​tes, te​-
men​do que os pe​sa​de​los vol​tas​sem a ator​m en​tá-la. Con​tu​do, ape​nas duas ve​zes
em três noi​tes acor​dou com o gri​to
de “A Lua!” — na ver​da​de, mais um ge​m i​do que um gri​to. Numa des​sas
noi​tes, Jor​j a re​sol​veu con​tra-ata​c ar e, na ma​nhã se​guin​te, per​gun​tou à fi​lha se so​-
nha​r a com a Lua.
— So​nho de Lua? — Ma​r eie sa​c u​diu os ca​c hos lou​r os. — Não so​nhei com
a Lua... so​nhei com ca​va​los. Será que al​gum dia você me com​pra um ca​va​lo de
ver​da​de?
— Pode ser... Quan​do ti​ver​m os uma casa gran​de.
— C/aro! — A me​ni​na riu alto. — Como é que eu ia ter um ca​va​lo no apar​-
ta​m en​to?! Os vi​zi​nhos iam re​c la​m ar...
Na quin​ta-fei​r a Ma​r eie teve a pri​m ei​r a con​sul​ta com o dr. Co-verly e gos​tou
dele. Se ain​da sen​tia medo de mé​di​c os con​se​guiu dis​f ar​ç ar mui​to bem e re​a ​giu
com to​tal nor​m a​li​da​de. Foi a pri​m ei​r a noi​te, des​de a vol​ta do hos​pi​tal, em que
dor​m iu no ou​tro quar​to, com a úni​c a com​pa​nhia do urso de pe​lú​c ia. Três ve​-
zes, ao lon​go da noi​te, Jor​j a le​van​tou-se para vê-la e ape​nas uma vez ou​viu-a
mur​m u​r ar a la​dai​nha co​nhe​c i​da: “Lua... Lua... Lua”. Es​tra​nha e as​sus​ta​do​r a la​-
dai​nha, por​que Ma​r eie pa​r e​c ia emi​tir um ge​m i​do, que po​dia ser tan​to de dor
como de pra​zer.
Na sex​ta-fei​r a, com três dias de fé​r i​a s es​c o​la​r es pela fren​te, Jor​j a dei​xou
Ma​r eie aos cui​da​dos de Kara Per​sag​hi​a n e foi tra​ba​lhar. Sen​tiu-se qua​se ali​vi​a ​da
por vol​tar à ba​r u​lhei​r a e à fu​m a​ç a do cas​si​no. Ci​gar​r os, fe​dor de cer​ve​j a aze​da,
mau há​li​to... qual​quer coi​sa era me​lhor que chei​r o de de​sin​f e​tan​te de hos​pi​tal.
No fim da tar​de, quan​do foi bus​c ar a fi​lha, Ma​r eie exi​biu-lhe, or​gu​lho​sa, a
pro​du​ç ão de um dia in​tei​r o de de​se​nhos: de​ze​nas de luas, de to​dos os ta​m a​nhos e
co​r es ima​gi​ná​veis.
Na ma​nhã de do​m in​go, dia 5 de ja​nei​r o, quan​do se di​r i​gia à co​zi​nha para
pre​pa​r ar o café, Jor​j a en​c on​trou Ma​r eie ins​ta​la​da à mesa da sala. Ain​da de pi​j a​-
ma, a me​ni​na es​ta​va des​c o​lan​do to​das as fo​to​gra​f i​a s de seu ál​bum de bebê e em​-
pi​lhan​do-as cui​da​do​sa​m en​te.
— Vou guar​dar as fo​tos nes​sa cai​xa de sa​pa​tos por​que pre​c i​so do ál​bum
para fa​zer uma co​le​ç ão de luas.
— Por que está tão in​te​r es​sa​da na Lua?
— Por​que é bo​ni​ta — Ma​r eie res​pon​deu, co​lan​do a pri​m ei​r a da co​le​ç ão.
Co​lou-a e pa​r ou, olhos mui​to fi​xos, fas​c i​na​da, como que em tran​se. O mes​m o
olhar com que fi​ta​va o “Mé​di​c o In​f an​til”.
Com um ar​r e​pio de medo, Jor​j a lem​brou que a fo​bia aos mé​di​c os co​m e​ç a​r a
da​que​le jei​to, em apa​r en​te cal​m a, qua​se sem que ela per​c e​bes​se. E se Ma​r eie ti​-
ves​se ape​nas tro​c a​do de fo​bia? Seu pri​m ei​r o im​pul​so foi cor​r er para o te​le​f o​ne e
li​gar para o dr. Co-verly, mes​m o sa​ben​do que era do​m in​go e di​f i​c il​m en​te o en​-
con​tra​r ia. An​tes de li​gar, po​r ém, pen​sou me​lhor e con​c luiu que es​ta​va se as​sus​-
tan​do à-toa. Afi​nal de con​tas, Ma​r eie não pa​r e​c ia ter medo da Lua, só es​ta​va...
fas​c i​na​da. A Lua era ou​tra das suas pai​xões ful​m i​nan​tes e pas​sa​gei​r as. Qual​quer
mãe de uma ga​r o​ti​nha de sete anos co​nhe​c e bem es​ses re​pen​tes de en​tu​si​a s​m o,
tão fu​ga​zes quan​to en​vol​ven​tes.
Pelo sim, pelo não, de​c i​diu con​tar tudo ao psi​c ó​lo​go quan​do le​vas​se Ma​r eie
ao con​sul​tó​r io para a se​gun​da ses​são, na ter​ç a-fei​r a se​guin​te.
Vin​te mi​nu​tos de​pois da meia-noi​te de se​gun​da-fei​r a, Jor​j a foi ver se a fi​lha
dor​m ia bem e en​c on​trou-a acor​da​da, sen​ta​da jun​to à ja​ne​la, no quar​to es​c u​r o,
olhan​do para o céu.
— O que acon​te​c eu?
— Nada. Ve​nha ver — res​pon​deu a me​ni​na sem vi​r ar a ca​be​ç a.
Jor​j a apro​xi​m ou-se da ja​ne​la e per​gun​tou:
— O que você está ven​do?
— A Lua... — Ma​r eie nem pis​c a​va, o ros​ti​nho er​gui​do para o céu, onde bri​-
lha​va o quar​to cres​c en​te. — A Lua...

4. BOS​TON, MAS​SA​CHU​SETTS

A se​gun​da-fei​r a, dia 6 de ja​nei​r o, ama​nhe​c eu ge​la​da. O for​te ven​to do mar


cas​ti​ga​va a ci​da​de, obri​gan​do as pes​so​a s a an​dar de​pres​sa, o na​r iz es​c on​di​do sob
o ca​c he​c ol, a ca​be​ç a bai​xa, os om​bros
cur​va​dos. À luz cin​zen​ta do in​ver​no, as tor​r es de aço e vi​dro do cen​tro co​-
mer​c i​a l pa​r e​c i​a m fei​tas de gelo, e as aris​to​c rá​ti​c as cons​tru​ç ões da Bos​ton an​ti​ga
per​di​a m a tra​di​c i​o​nal elegân​c ia para mos​trar-se sim​ples​m en​te ve​lhas. As ár​vo​-
res, des​f o​lha​das, er​gui​a m para o céu os ga​lhos co​ber​tos de neve.
Her​bert, mor​do​m o e faz-tudo dos Han​naby, di​r i​gia o car​r o, le​van​do Gin​ger
para a sé​ti​m a ses​são com Pa​blo Jack​son. O ven​to da noi​te an​te​r i​or der​r u​ba​r a pos​-
tes e fios elé​tri​c os, des​li​gan​do os se​m á​f o​r os e trans​f or​m an​do em caos ab​so​lu​to o
trân​si​to do cen​tro da ci​da​de. Por fim, com cin​c o mi​nu​tos de atra​so, che​ga​r am à
Rua New​bury.
Logo após as re​ve​la​ç ões da ses​são do sá​ba​do, Gin​ger le​van​ta​r a a hi​pó​te​se de
en​trar em con​ta​to com os pro​pri​e ​tá​r i​os do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, em Ne​va​da, para
ten​tar des​c o​brir al​gu​m a coi​sa so​bre os acon​te​c i​m en​tos da​que​la noi​te de 6 de ju​-
lho. Das duas uma: ou os pro​pri​e ​tá​r i​os do mo​tel eram cúm​pli​c es do gru​po que a
sub​m e​te​r a à la​va​gem ce​r e​bral, ou eram ví​ti​m as, como ela pró​pria.
Sem dei​xá-la aca​bar de fa​lar, Pa​blo fora logo di​zen​do que era pe​r i​go​so de​-
mais. Na hi​pó​te​se de os pro​pri​e ​tá​r i​os do mo​tel fa​ze​r em par​te de al​gu​m a or​ga​ni​-
za​ç ão cri​m i​no​sa, ir lá se​r ia o mes​m o que en​f i​a r a ca​be​ç a em toca de urso.
— Você pre​c i​sa ser pa​c i​e n​te. An​tes de ten​tar qual​quer con​ta​to com quem
quer que seja, deve reu​nir to​das as in​f or​m a​ç ões pos​sí​veis.
Uma se​gun​da idéia se​r ia pe​dir pro​te​ç ão à po​lí​c ia e exi​gir uma in​ves​ti​ga​ç ão
es​pe​c i​a l. Pa​blo, to​da​via, con​ven​c e​r a-a de que eles não po​de​r i​a m fa​zer nada sem
que Gin​ger apre​sen​tas​se al​gu​m a pro​va de ter sido ví​ti​m a de la​va​gem ce​r e​bral.
Além dis​so, o cri​m e, fos​se qual fos​se, ocor​r e​r a em área es​tra​nha à ju​r is​di​ç ão da
po​lí​c ia es​ta​du​a l de Mas​sa​c hu​setts. Se​r ia ne​c es​sá​r io pro​c u​r ar os fe​de​r ais ou a po​lí​-
cia es​ta​du​a l de Ne​va​da. E se um de​les fos​se o agen​te es​pe​c i​a l en​c ar​r e​ga​do da la​-
va​gem ce​r e​bral — o cul​pa​do, e não o sal​va​dor?
Frus​tra​da, mas in​c a​paz de en​c on​trar qual​quer fa​lha nos ar​gu​m en​tos do má​gi​-
co, Gin​ger con​f or​m a​r a-se em con​ti​nu​a r com as sessões de re​gres​são hip​nó​ti​c a.
Pa​blo dis​se​r a-lhe que que​r ia ter o
do​m in​go li​vre para ou​vir a gra​va​ç ão da ses​são do sá​ba​do, e que, na se​gun​da-
fei​r a de ma​nhã, ia vi​si​tar um ami​go no hos​pi​tal.
— Se for con​ve​ni​e n​te para você, ve​nha me ver à uma hora, na se​gun​da-
fei​r a. Po​de​r e​m os con​ti​nu​a r a son​dar seu blo​queio com toda a cal​m a do mun​do.
Na se​gun​da de ma​nhã, ele te​le​f o​na​r a in​f or​m an​do que seu ami​go es​ta​va bem
me​lhor e que Gin​ger po​de​r ia vi​si​tá-lo mais cedo, às onze ho​r as, se qui​ses​se.
— Se qui​ser, ve​nha às onze e pre​pa​r a​m os o al​m o​ç o jun​tos.
Na​que​le mo​m en​to, sain​do do ele​va​dor e di​r i​gin​do-se ra​pi​da​m en​te para o
apar​ta​m en​to de Pa​blo, Gin​ger de​c i​diu fa​zer tudo exa​ta​m en​te como ele su​ge​r i​r a,
“com a mai​or cal​m a do mun​do”. As​sim, ao de​pa​r ar com a por​ta aber​ta, en​trou
tran​qüi​la​m en​te e cha​m ou o má​gi​c o. Em al​gum lu​gar da casa al​guém res​m un​-
gou e um ob​j e​to caiu no chão.
— Pa​blo? — Sem ob​ter res​pos​ta, ela atra​ves​sou a sala e tor​nou a cha​m á-lo:
— Pa​blo, onde você está?
Si​lên​c io.
Uma das por​tas da bi​bli​o​te​c a es​ta​va aber​ta. Gin​ger en​trou e en​c on​trou o
ami​go es​ten​di​do no ta​pe​te, jun​to à es​c ri​va​ni​nha. Ain​da es​ta​va com a capa de
chu​va e as ga​lo​c has, si​nal de que aca​ba​r a de che​gar do hos​pi​tal.
Ela cor​r eu e ajo​e ​lhou-se a seu lado, in​ven​ta​r i​a n​do as pos​si​bi​li​da​des de aci​-
den​te car​di​o​vas​c u​lar, trom​bo​se, he​m or​r a​gia ce​r e​bral, em​bo​lia, ata​que car​dí​a ​c o.
Em ne​nhum mo​m en​to ocor​r eu-lhe que Pa​blo ti​ves​se le​va​do um tiro, até que o vi​-
rou so​bre o ta​pe​te e viu o san​gue jor​r an​do-lhe do pei​to.
O ve​lho mo​veu os olhos de um lado para ou​tro, qua​se in​c ons​c i​e n​te, e só con​-
se​guiu bal​bu​c i​a r uma pa​la​vra, a voz mui​to fra​c a:
— Fuja...
Até en​tão Gin​ger agia mo​vi​da pelo mes​m o im​pul​so: ao vê-lo ca​í​do, cor​r e​r a
para aju​dá-lo, como ami​ga e como mé​di​c a. Mas, de re​pen​te, ao ouvi-lo di​zer
que fu​gis​se, foi como se uma dú​zia de si​r e​nes dis​pa​r as​sem em sua ca​be​ç a. Não
ou​vi​r a ti​r os... Uma arma com si​len​c i​a ​dor. Um as​sas​si​no pro​f is​si​o​nal... Pe​ri​go!
O co​r a​ç ão aos pu​los, le​van​tou-se e vol​tou-se para a sa​í​da. O as​sas​si​no es​pe​-
ra​va-a ao lado da por​ta: alto, om​bros lar​gos, im​per​m e​á ​vel de gola le​van​ta​da e
cin​to amar​r a​do, pis​to​la e si​len​c i​a ​dor em pu​nho. Era um ho​m em for​te, mas, para
sur​pre​sa de Gin​ger pa​r e​c ia bem me​nos ame​a ​ç a​dor do que ima​gi​na​r a. Ti​nha cer​-
ca de trin​ta anos, um ros​to sim​pá​ti​c o e uns olhos azuis que ir​r a​di​a ​vam ino​c ên​c ia.
Quan​do fa​lou, sur​preen​deu-a ain​da mais:
— Meu Deus... Nada dis​so de​ve​r ia ter acon​te​c i​do... Eu só es​ta​va co​pi​a n​do
as fi​tas... Eu só que​r ia co​pi​a r. — O ho​m em apon​ta​va para a es​c ri​va​ni​nha, onde se
en​c on​tra​vam o gra​va​dor e de​ze​nas de fi​tas es​pa​lha​das. Re​gis​tros das sessões de
hip​no​se.
— Dei​xe-me cha​m ar uma am​bu​lân​c ia — Gin​ger pe​diu, as lá​gri​m as es​c or​-
ren​do pelo ros​to, e deu um pas​so em di​r e​ç ão ao te​le​f o​ne, mas o ho​m em ame​a ​-
çou-a com o re​vól​ver.
— O gra​va​dor é es​pe​c i​a l, ex​tra-rá​pi​do... — la​m en​tou-se ele. — Mais um
pou​c o e tudo es​ta​r ia pron​to! O que é que ele veio fa​zer em casa, uma hora an​tes
do que de​via?!
Sem di​zer nada, Gin​ger apa​nhou uma al​m o​f a​da e co​lo​c ou-a sob a ca​be​ç a de
Pa​blo para im​pe​dir que ele se en​gas​gas​se com o san​gue que es​c or​r ia para a gar​-
gan​ta. O ho​m em con​ti​nu​a ​va a la​m u​r i​a r-se:
— Ele che​gou em si​lên​c io... como um fan​tas​m a! Nem o vi en​trar...
Gin​ger lem​brou-se do an​dar ele​gan​te e elás​ti​c o do ami​go, como se cada pas​-
so fos​se a aber​tu​r a de um ato de má​gi​c a... No chão, Pa​blo tos​siu e fe​c hou os
olhos. Não ha​ve​r ia es​pe​r an​ç a de sal​va​ç ão, a me​nos que ele fos​se aten​di​do com
ur​gên​c ia. Ci​r ur​gia de emer​gên​c ia... e tudo que ela po​dia fa​zer era pas​sar-lhe a
mão pe​los ca​be​los.
— Por fa​vor, dei​xe-me cha​m ar uma am​bu​lân​c ia... — pe​diu mais uma vez.
— E por que ele es​ta​va ar​m a​do?! — es​bra​ve​j ou o ho​m em. — O que um
ve​lho de oi​ten​ta e um anos po​de​r ia fa​zer com um re​vól​ver?!
Sur​pre​sa, Gin​ger olhou para o chão e» viu a arma ca​í​da a pou-
cos cen​tí​m e​tros da mão de Pa​blo... En​tão com​preen​deu tudo.
Pa​blo sa​bia que es​ta​va em pe​r i​go... Sa​bia que era pe​r i​go​so aju​dá-la... E ela,
como uma idi​o​ta, obri​ga​r a-o a aten​dê-la... Sem ima​gi​nar que qual​quer ten​ta​ti​va
de que​brar o blo​queio em sua me​m ó​r ia po​de​r ía cha​m ar a aten​ç ão de gen​te po​-
de​r o​sa, de as​sas​si​nos como aque​le que ali es​ta​va, de arma na mão. Al​guém a se​-
guia, tal​vez não dia e noi​te, mas se​guia-a, ob​ser​va​va seus mo​vi​m en​tos, co​nhe​c ia
as pes​so​a s com quem fa​la​va. No ins​tan​te em que apa​r e​c e​r a pela pri​m ei​r a vez no
apar​ta​m en​to de Pa​blo, Gin​ger con​de​na​r a-o à mor​te. E ele sa​bia! Cla​r o... Se não
sou​bes​se, não an​da​r ia ar​m a​do. A cul​pa é mi​nha, pen​sou, afli​ta.
— Se esse idi​o​ta não es​ti​ves​se ar​m a​do... — con​ti​nuou o ho​m em.
— Se não ti​ves​se fa​la​do em cha​m ar a po​lí​c ia... eu te​r ia sa​í​do sem
ati​r ar nele. Eu não que​r ia fe​r ir o ve​lho... Mer​da!
— En​tão, pelo amor de Deus, dei​xe-me cha​m ar uma am​bu​lân​c ia! Se você
não que​r ia feri-lo, en​tão va​m os aju​dá-lo...
O ho​m em ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, olhan​do para Pa​blo:
— Não adi​a n​ta... Ele está mor​to.
Foi como se al​guém a es​m ur​r as​se no pei​to. Gin​ger to​m ou o pul​so do ami​go,
to​c ou-lhe a ca​r ó​ti​da à pro​c u​r a de al​gum si​nal de vida. Nem pre​c i​sa​va: bas​ta​va
ver o bri​lho de vi​dro em seus olhos pa​r a​dos para ter cer​te​za do que o ho​m em dis​-
se​r a.
— Não... — ela ge​m eu bai​xi​nho. — Oh, não, não...
Pa​r e​c ia im​pos​sí​vel que o co​nhe​c es​se fa​zia ape​nas duas se​m a​nas.
Era como se já fos​sem ami​gos há mui​to tem​po... Gin​ger ofe​r e​c eu-lhe todo o
seu afe​to de órfã, e ele o acei​ta​r a sem re​ser​vas. E ago​r a es​ta​va mor​to!
— Sin​to mui​to... — O as​sas​si​no ba​lan​ç a​va a ca​be​ç a de um lado para ou​tro.
— Sin​to, sin​to mes​m o... Se ele não ti​ves​se apa​r e​c i​do aí com o re​vól​ver eu já te​r ia
sa​í​do. E ago​r a? Ma​tei um ho​m em... E... e você me viu... pode me re​c o​nhe​c er...
Lu​tan​do con​tra o de​ses​pe​r o, cer​ta de que não ti​nha tem​po para lá​gri​m as,
Gin​ger le​van​tou-se e en​c a​r ou-o. Ele dis​pa​r ou a fa​lar, qua​se que pen​san​do em
voz, alta:
— Te​nho que dar um jei​to em você. Te​nho que re​vi​r ar a casa
in​tei​r a, ar​r an​c ar umas ga​ve​tas, re​ben​tar a fe​c ha​du​r a, rou​bar al​gu​m a coi​sa
de va​lor... as​sim vão pen​sar que vo​c ês dois che​ga​r am jun​tos e en​c on​tra​r am um
la​drão aqui. E vai dar cer​to... Ago​r a não pre​c i​so mais co​pi​a r as fi​tas. Vou levá-
las. E me​lhor que nin​guém mais ouça es​sas fi​tas. — Olhou para Gin​ger e fez um
ar​r e​m e​do de sor​r i​so. — Sin​to mui​to, mas ti​nha que ser as​sim. Par​te da cul​pa é
mi​nha, por que eu não po​de​r ia ter dei​xa​do que o ve​lho me sur​preen​des​se... Mas o
que está fei​to... — Deu um pas​so em di​r e​ç ão a ela. — Será que a cena vai pa​r e​-
cer mais con​vin​c en​te se eu vi​o​len​tar você? Que​r o di​zer, será que a po​lí​c ia não
vai es​tra​nhar que um la​drão se li​m i​te a dar um tiro numa mu​lher tão bo​ni​-
ta? .Qual​quer la​drão pen​sa​r ia logo em vi​o​len​tar você... — Apro​xi​m ou-se mais, e
Gin​ger co​m e​ç ou a re​c u​a r. — Mas será que eu con​si​go... sa​ben​do que te​r ei que
matá-la de​pois? — Ele pra​ti​c a​m en​te a en​c ur​r a​la​r a con​tra a es​tan​te de li​vros. —
Acre​di​te, moça... eu não gos​to nada do que está acon​te​c en​do. Acho hor​r í​vel...
Um as​sas​si​no se​den​to de san​gue se​r ia mil ve​zes me​nos as​sus​ta​dor que aque​le
des​gra​ç a​do ba​ban​do des​c ul​pas e ar​r e​pen​di​m en​tos. Um mons​tro! Um mons​tro
ca​paz de co​m e​ter dois ho​m i​c í​di​os e um es​tu​pro, las​ti​m an​do-se de ser obri​ga​do a
tan​tos cri​m es... ar​r e​pen​den​do-se mes​m o an​tes de ma​tar, vi​o​len​tar, rou​bar... e
ain​da as​sim, rou​ban​do, vi​o​len​tan​do, ma​tan​do...
— Por fa​vor. Tire a capa — or​de​nou o ho​m em.
— Juro que não con​to nada a nin​guém... Vou di​zer que não vi você, que não
pos​so re​c o​nhe​c ê-lo... Por fa​vor, me dei​xe ir em​bo​r a!
— Ah, se eu pu​des​se, moça... Tire a capa.
De​va​gar, ten​tan​do ga​nhar tem​po, ela co​m e​ç ou a de​sa​bo​to​a r a capa. Es​ta​va
trê​m u​la, e ain​da exa​ge​r ou o tre​m or para re​tar​dar ao má​xi​m o a ta​r e​f a. Por fim,
sem al​ter​na​ti​va, ti​r ou a capa.
O ho​m em deu mais um pas​so, se​gu​r an​do a arma a al​guns cen​tí​m e​tros da
mão de Gin​ger. Pa​r e​c ia me​nos ten​so, os de​dos qua​se sol​tos à vol​ta do cabo, o in​-
di​c a​dor lon​ge do ga​ti​lho.
— Por fa​vor... não me ma​c hu​que... — Quan​to mais as​sus​ta​da ela se mos​-
tra​va, mais o cri​m i​no​so se des​c on​tra​ía. De re​pen​te, tal​vez sur​gis​se a bre​c ha que
es​pe​r a​va para po​der fu​gir.
— Eu não que​ro ma​c hu​c ar você... — dis​se ele, como se a idéia de gos​tar
do que fa​zia o ofen​des​se ter​r i​vel​m en​te. — Tam​bém não que​r ia ma​c hu​c ar o ve​-
lho. A cul​pa foi dele. Pro​m e​to que não vai doer nada. Pro​m e​to.
Sem​pre se​gu​r an​do a arma na mão di​r ei​ta, o as​sas​si​no to​c ou-lhe os sei​os com
a es​quer​da. Gin​ger fe​c hou os olhos e per​m a​ne​c eu imó​vel, na es​pe​r an​ç a de que
ele re​la​xas​se a guar​da, à me​di​da que se ex​c i​tas​se. Ape​sar de sua dú​vi​da quan​to a
pos​suí-la an​tes de matá-la, o ho​m em dei​xa​va-se le​var por um tipo de pra​zer vi​o​-
len​to e per​ver​so. Ape​sar dos olhos azuis e da voz ma​c ia, trans​pi​r a​va mal​da​de por
to​dos os po​r os.
— Lin​do... pe​que​ni​no, mas fir​m e... — Ele en​f i​ou a mão por bai​xo da ma​lha,
apa​nhou uma das al​ç as do su​tiã e pu​xou-a até re​ben​tá-la. Sem que​r er, Gin​ger ge​-
meu de dor. — Está do​e n​do? Des​c ul​pe, vou to​m ar mais cui​da​do. — Re​ben​tou a
ou​tra alça e ar​r an​c ou-lhe o su​tiã.
Gin​ger sen​tiu a mão úmi​da e ge​la​da to​c ar em sua pele nua.
Já não ti​nha para onde fu​gir, as cos​tas co​la​das à es​tan​te. O ho​m em es​ta​va a
sua fren​te, a arma apon​ta​da; mes​m o as​sim, ela ten​tou avan​ç ar, mas o cano do
re​vól​ver en​c os​tou-lhe no pei​to, fe​c han​do qual​quer pos​si​bi​li​da​de de fuga. Se des​se
um pas​so, se​r ia fu​zi​la​da sem pi​e ​da​de.
As ca​r í​c i​a s con​ti​nu​a ​vam, mis​tu​r a​das com mur​m ú​r i​os de des​c ul​pas e la​m en​-
tos; em voz cada vez mais rou​c a o mons​tro re​pe​tia sem​pre que de​tes​ta​va es​tu​prar
uma jo​vem tão sim​pá​ti​c a, e pa​r e​c ia es​pe​r ar que ela o per​do​a s​se pelo pe​c a​do de
matá-la.
Sem ter como fu​gir, eno​j a​da com a cas​c a​ta de pa​la​vras que o ho​m em vo​m i​-
ta​va, Gin​ger sen​tiu-se de re​pen​te à bei​r a de uma cri​se agu​da de claus​tro​f o​bia.
Me​lhor se​r ia fazê-lo pu​xar o ga​ti​lho e aca​bar logo com aque​le pe​sa​de​lo. Ela mo​-
via a ca​be​ç a de um lado para ou​tro, ten​tan​do es​c a​par do há​li​to de cer​ve​j a ve​lha
que pro​c u​r a​va sua boca, im​plo​r an​do que o cri​m i​no​so a dei​xas​se ir.
Ain​da mais ex​c i​ta​do pelo medo que via em seus olhos, o ho​m em tor​nou-se
mais ou​sa​do nas ca​r í​c i​a s:
— Ah... acho que vou con​se​guir, bo​ne​c a... Você vai ver... Aí
está. Ve​nha, to​que em mim. — Co​lou-se a seu cor​po, es​f re​gan​do-se com
fre​ne​si. Por in​c rí​vel que fos​se, pa​r e​c ia con​ven​c i​do de que a sim​ples exi​bi​ç ão de
seu pê​nis ere​to bas​ta​r ia para per​su​a ​di-la a en​trar na​que​le jogo per​ver​so.
Es​ta​va con​de​na​do a de​sa​pon​tar-se. Para agar​r ar-se a ela foi obri​ga​do a bai​-
xar a arma. Em​ba​la​do pela ex​c i​ta​ç ão, cer​to de que a ví​ti​m a es​ta​va a sua mer​c ê,
es​que​c eu-se de man​ter o re​vól​ver apon​ta​do. Era a se​nha que Gin​ger es​pe​r a​va
para en​trar em ação. Num ges​to len​to, que tan​to po​de​r ia ser de medo como de
pai​xão, ela gi​r ou a ca​be​ç a, apro​xi​m ou os lá​bi​os do pes​c o​ç o do ho​m em, exa​ta​-
men​te por cima do pomo-de-adão, e mor​deu-o com toda a for​ç a. Ao mes​m o
tem​po, er​gueu o jo​e ​lho e gol​pe​ou-o nos tes​tí​c u​los, agar​r an​do o bra​ç o que se​gu​r a​-
va a arma. O as​sas​si​no sol​tou um ber​r o de dor e re​c uou, hor​r o​r i​za​do.
Gin​ger ain​da sen​tia nos lá​bi​os o gos​to de san​gue da pri​m ei​r a mor​di​da e já se
pre​pa​r a​va para a se​gun​da. Sem dar tem​po para que o mons​tro se re​c u​pe​r as​se,
avan​ç ou para ele, se​gu​r ou o bra​ç o ar​m a​do e cra​vou-lhe os den​tes no pul​so. Ele
já não sa​bia se gri​ta​va de dor ou de sus​to. Uma jo​vem tão bo​ni​ta, tão de​li​c a​da...
Como po​de​r ia ima​gi​nar...? A se​gun​da mor​di​da obri​gou-o a lar​gar o re​vól​ver. Gin​-
ger abai​xou-se para apa​nhá-lo e, nes​se ins​tan​te, o ho​m em apli​c ou-lhe um soco
vi​o​len​to no meio das cos​tas. Ca​í​da so​bre os jo​e ​lhos, o ros​to to​c an​do o chão, ela
mal con​se​guia ver ou res​pi​r ar por cau​sa da dor, tão for​te que lhe cau​sa​va náu​se​-
as. Che​gou a pen​sar que ha​via fra​tu​r a​do a co​lu​na ver​te​bral e ja​m ais po​de​r ia le​-
van​tar-se. Ain​da ofe​gan​te, po​r ém com a vi​são mais cla​r a, per​c e​beu que o cri​m i​-
no​so se apro​xi​m a​va para pe​gar a arma, e ati​r ou-se nas per​nas dele. O ho​m em
ain​da agi​tou os bra​ç os, na de​ses​pe​r a​da ten​ta​ti​va de man​ter o equi​lí​brio, mas aca​-
bou es​ta​te​lan​do-se so​bre uma das me​sas de can​to, der​r u​bou o aba​j ur e ro​lou so​-
bre o ca​dá​ver de Pa​blo Jack​son.
Um de cada lado da sala, am​bos mal po​den​do res​pi​r ar, pe​tri​f i​c a​dos de sus​to,
caça e ca​ç a​dor fi​ta​r am-se por um ins​tan​te. Dei​ta​dos de lado, en​c o​lhi​dos como
fe​tos, lu​ta​vam para fa​zer o ar che​gar aos pulmões. Gin​ger viu os olhos do ho​-
mem, fi​xos, ar​r e​ga​la​dos,
chei​os de medo de mor​r er. A mor​di​da do pes​c o​ç o não ora su​f i​c i​e n​te para
matá-lo, pois não atin​gi​r a a veia ju​gu​lar ou a ar​té​r ia ca​r ó​ti​da. Seus den​tes ha​vi​a m
to​c a​do uma ca​m a​da su​per​f i​c i​a l de car​ti​la​gem e uma pe​que​na por​ç ão de te​c i​dos
mo​les, ses​si​o​nan​do ape​nas al​guns cen​tí​m e​tros de va​sos pe​r i​f é​r i​c os. De qual​quer
modo, tal​vez o ho​m em nao sou​bes​se de nada dis​so e es​ti​ves​se cer​to de que ia
mor​r er. A dor de​via ser ter​r í​vel. Gin​ger viu-o le​var a mão ao pes​c o​ç o fe​r i​do e
olhar os de​dos co​ber​tos de san​gue. O ca​ç a​dor es​ta​va com medo de mor​r er... e
isso po​de​r ía tor​ná-lo ino​f en​si​vo como um bebê ou pe​r i​go​so como um leão.
Os dois vi​r am, ao mes​m o tem​po, que a arma con​ti​nu​a ​va ca​í​da ao chão, mais
pró​xi​m a dele que de Gin​ger. O san​gue pin​gan​do so​bre o ta​pe​te, ar​r as​tan​do-se so​-
bre o pu​nho fe​r i​do, o ho​m em co​m e​ç ou en​ga​ti​nhar em di​r e​ç ão ao re​vól​ver.
Gin​ger não teve es​c o​lha: le​van​tou-se e cor​r eu.
Saiu da bi​bli​o​te​c a e vol​tou à sala, meio en​c o​lhi​da, sem po​der mo​vi​m en​tar
per​nas ou bra​ç os com li​ber​da​de por cau​sa da dor que ain​da a ce​ga​va, pen​san​do
em es​c a​par do apar​ta​m en​to pela por​ta da fren​te. De re​pen​te lem​brou-se de que
não con​se​gui​r ía che​gar à rua, por​que só ha​via dois ca​m i​nhos: o ele​va​dor, que
não te​r ia tem​po de es​pe​r ar, e a es​c a​da, onde o mons​tro a agar​r a​r ia. Di​a n​te dis​so,
gi​r ou so​bre os cal​c a​nha​r es, dis​pa​r ou pela sala, em​pur​r ou a por​ta de vai​vém que
se​pa​r a​va a copa da co​zi​nha, sal​tou so​bre uma das ga​ve​tas jun​to ao fo​gão e apa​-
nhou um cu​te​lo de açou​guei​r o. Per​c e​beu que es​ta​va ge​m en​do. Uma es​pé​c ie de
sil​vo, bai​xo e ten​so, es​c a​pa​va-lhe dos lá​bi​os por en​tre os den​tes cer​r a​dos. Res​pi​-
rou fun​do, obri​gou-se a si​len​c i​a r o sil​vo e con​se​guiu con​tro​lar-se.
O ho​m em ain​da não apa​r e​c e​r a na co​zi​nha. Um ou dois se​gun​dos mais tar​de,
Gin​ger per​c e​beu que era uma sor​te ele não ter apa​r e​c i​do, por​que o cu​te​lo não
ser​vi​r ía de nada fren​te a arma de fogo, à dis​tân​c ia de qua​se dois me​tros. Fu​r i​o​sa
com a pró​pria im​pre​vi​dên​c ia, vol​tou para jun​to da por​ta e en​c os​tou-se à pa​r e​de.
As cos​tas ain​da do​í​a m, mas o pior já ha​via pas​sa​do. O co​r a​ç ão ba​tia fu​r i​o​so con​-
tra as cos​te​las co​la​das à pa​r e​de, e Gin-ger pen​sou que o ho​m em po​de​r ia ouvi-lo
da ou​tra sala, como se fos​se um tam​bor.
Es​pe​r ou, o cu​te​lo abai​xa​do, pron​to para er​guer-se em arco e atin​gir as cos​tas
do mons​tro, se ele en​tras​se de re​pen​te, em fú​r ia, se​den​to de vin​gan​ç a, cer​to de
que es​ta​va mor​r en​do. Mas... e se ele en​tras​se de​va​gar, com cui​da​do, em​pur​r an​-
do pal​m o a pal​m o a por​ta de vai​vém? A si​tu​a ​ç ão se com​pli​c a​r ia para Gin​ger.
Cada se​gun​do que pas​sa​va mais a apro​xi​m a​va da se​gun​da hi​pó​te​se.
A me​nos que a mor​di​da fos​se mais pro​f un​da do que ela ima​gi​na​va. Nes​se
caso, o ho​m em tal​vez con​ti​nu​a s​se es​ti​r a​do na bi​bli​o​te​c a, em​pa​pan​do de san​gue o
ta​pe​te chi​nês. Gin​ger pe​diu a Deus que o dei​xas​se por lá. Mas era in​ú​til ilu​dir-se.
O as​sas​si​no es​ta​va vivo. E se apro​xi​m a​va.
Ela pen​sou em gri​tar e cha​m ar a aten​ç ão de al​gum vi​zi​nho, que tal​vez li​gas​se
para a po​lí​c ia. Mas a po​lí​c ia não che​ga​r ia a tem​po de sal​vá-la. An​tes de fu​gir o
ho​m em ti​nha que matá-la. Gri​tar era des​per​dí​c io de ener​gia.
Gin​ger co​la​va-se à pa​r e​de, que​r en​do fun​dir-se nela. A por​ta de vai​vém pa​r e​-
cia en​f ei​ti​ç á-la, como se fos​se uma co​bra ar​m an​do o bote so​bre a pre​sa. Ela já
não su​por​ta​va a ten​são. Onde di​a ​bos es​ta​va o mal​di​to?!
Pas​sa​r am-se cin​c o se​gun​dos, dez, vin​te. O que o mons​tro es​ta​r ia fa​zen​do? A
cada ins​tan​te, pa​r e​c ia mais aze​do o gos​to de san​gue na boca e a náu​sea vol​ta​va a
cres​c er. Com tem​po para pen​sar. Gin​ger dava-se con​ta do hor​r or da si​tu​a ​ç ão, da
sel​va​ge​r ia de seus ges​tos, de seus pró​pri​os pen​sa​m en​tos. Sel​va​gem... a pa​la​vra
era exa​ta​m en​te essa... sel​va​gem como uma fera acu​a ​da, pron​ta para ma​tar. A
ima​gem do cu​te​lo en​tran​do na car​ne do ho​m em a fez es​tre​m e​c er. Não! Não era
uma as​sas​si​na... era mé​di​c a! Ju​r a​r a li​vrar as pes​so​a s da dor, da do​e n​ç a, do so​f ri​-
men​to. Pre​c i​sa​va pa​r ar de pen​sar em matá-lo. Era pe​r i​go​so, con​f u​so e ir​r i​tan​te.
Mas onde es​ta​va ele?
De​c i​diu não es​pe​r ar mais. Os mi​nu​tos de es​pe​r a afrou​xa​vam-lhe os ins​tin​tos
de de​f e​sa, dei​xa​vam-na mais vul​ne​r á​vel... Te​r ia mes​m o que agir como uma
fera, se qui​ses​se sal​var a pele. Es​pe​r ar
era fa​c i​li​tar as coi​sas para o as​sas​si​no. Com cui​da​do, apoi​ou a mão na por​ta,
e sen​tiu a pre​sen​ç a do cri​m i​no​so a pou​c os cen​tí​m e​tros de dis​tân​c ia, do ou​tro lado
da por​ta, es​pe​r an​do que ela fi​zes​se o pri​m ei​r o mo​vi​m en​to.
Gin​ger pa​r ou, e re​te​ve a res​pi​r a​ç ão, aten​ta a to​dos os ru​í​dos. Si​lên​c io. En​c os​-
tou o ou​vi​do à por​ta. Si​lên​c io ab​so​lu​to. Na mão, úmi​da de suor, o cabo do cu​te​lo
pa​r e​c ia es​c or​r e​ga​dio, pe​ga​j o​so. Sem ru​í​do, em​pur​r ou a por​ta ape​nas o su​f i​c i​e n​te
para es​pi​a r. O ho​m em não es​ta​va ali, como pen​sa​r a, mas do ou​tro lado da
sala, jun​to à en​tra​da do hall. Aca​ba​va de vol​tar do cor​r e​dor ex​ter​no, a arma em
pu​nho. Sem dú​vi​da, sa​í​r a para exa​m i​nar o ele​va​dor e a es​c a​da; não a en​c on​trou
e re​tor​nou ao apar​ta​m en​to. En​trou e tran​c ou a por​ta, para im​pe​di-la de sair. Já
sa​bia, cla​r o, que ela con​ti​nu​a ​va ali den​tro.
O mons​tro le​vou a mão mor​di​da à gar​gan​ta mor​di​da. Res​pi​r a​va com di​f i​c ul​-
da​de, mas já não dava si​nais de pâ​ni​c o; pa​r e​c ia ter des​c o​ber​to que, se so​bre​vi​ve​-
ra até en​tão, não es​ta​va à bei​r a da mor​te.
No meio da sala, o cri​m i​no​so olhou para o lado dos quar​tos. Não viu nin​guém
e vi​r ou-se para a por​ta da co​zi​nha. Gin​ger sen​tiu como se ele es​ti​ves​se ven​do-a
atra​vés da bre​c ha, mas o ho​m em es​ta​va mui​to lon​ge para per​c e​ber que a por​ta
não es​ta​va com​ple​ta​m en​te fe​c ha​da. Obri​ga​do a es​c o​lher en​tre um ca​m i​nho e
ou​tro, op​tou pe​los quar​tos e lá se foi, pas​sos fir​m es e de​c i​di​dos.
O pla​no de es​pe​r á-lo jun​to à por​ta da co​zi​nha, com o cu​te​lo pron​to para ata​-
cá-lo, já não fun​c i​o​na​r ia. Ele era um pro​f is​si​o​nal, ha​bi​tu​a ​do à vi​o​lên​c ia. Ape​sar
de ter per​di​do o pri​m ei​r o round, co​lhi​do de sur​pre​sa pela fú​r ia do ata​que de Gin​-
ger, já se re​c u​pe​r a​r a do sus​to e da dor. Quan​do re​tor​nas​se dos quar​tos, es​ta​r ia
ain​da mais se​gu​r o. Ja​m ais en​tra​r ia afoi​ta​m en​te na co​zi​nha.
En​tão... a úni​c a sa​í​da era es​c a​par do apar​ta​m en​to. E rá​pi​do.
Sem vis​lum​brar a me​nor chan​c e de al​c an​ç ar a por​tra da sala an​tes que o as​-
sas​si​no con​c lu​ís​se a pri​m ei​r a fase de sua bus​c a, Gin​ger lar​gou o cu​te​lo so​bre a
pia e, em si​lên​c io, apro​xi​m ou-se da ja​ne​la. Afas​tou as cor​ti​nas e viu a sa​í​da de
emer​gên​c ia, bem a sua fren​te.
De​va​gar, gi​r ou o trin​c o e abriu a ja​ne​la. As do​bra​di​ç as res​se​qui​das sol​ta​r am
um guin​c ho agu​do, e o pai​nel de vi​dro ba​teu rui​do​sa​m en​te na pa​r e​de, im​pe​li​do
com for​ç a pela ação da gra​vi​da​de, Gin​ger teve cer​te​za de que o ho​m em es​c u​ta​-
ra o ba​r u​lho, pois ou​via-o cor​r er na di​r e​ç ão da co​zi​nha.
Rá​pi​da, sal​tou para o pa​ta​m ar de fer​r o da es​c a​da e co​m e​ç ou a des​c er. O
ven​to frio pe​ne​tra​va-lhe a car​ne até os os​sos. Ha​via gelo nos de​graus, agu​das
pon​tas de água con​ge​la​da gru​da​vam-se ao cor​r i​m ão. De qual​quer modo, mes​m o
com o ris​c o de es​c or​r e​gar e es​pa​ti​f ar-se na cal​ç a​da, só lhe res​ta​vam duas al​ter​-
na​ti​vas: cor​r er ou ofe​r e​c er a nuca aos ti​r os. Ela der​r a​pou vá​r i​a s ve​zes, sem con​-
se​guir fir​m ar-se no cor​r i​m ão, por​que as agu​lhas de gelo cor​ta​vam como aço.
A qua​tro de​graus do an​dar de bai​xo, ou​viu a voz do ho​m em, que pu​la​va a ja​-
ne​la e ga​nha​va a es​c a​da. Dois de​graus an​tes de al​c an​ç ar o pa​ta​m ar de fer​r o, ela
es​c or​r e​gou de novo e caiu, sen​tin​do re​a ​vi​var-se a dor nas cos​tas. Ain​da ten​tou
agar​r ar-se ao cor​r i​m ão, mas só con​se​guiu des​pren​der al​gu​m as agu​lhas de gelo,
que bri​lha​r am por um ins​tan​te con​tra o céu e se par​ti​r am ao to​c ar o chão.
O ven​to en​c o​briu o ru​í​do si​bi​lan​te do pri​m ei​r o tiro, aba​f a​do pelo si​len​c i​a ​dor,
mas Gin​ger viu es​ti​lha​ç os de fer​r o sal​ta​r em a cen​tí​m e​tros de sua ca​be​ç a. O cri​-
mi​no​so er​r a​r a por pou​c o. Ela olhou para cima, a tem​po de vê-lo fa​zer mira... e
es​c or​r e​gar pela es​c a​da abai​xo. Viu-o ten​tar agar​r ar-se ao cor​r i​m ão, sem con​se​-
guir equi​li​brar-se. E viu-o apro​xi​m ar-se, aos tram​bo​lhões, do pa​ta​m ar onde ela
es​ta​va. An​tes de che​gar lá, po​r ém, o ho​m em fir​m ou um pé no gra​dil e pa​r ou,
com uma per​na para fora, en​tre os fer​r os do cor​r i​m ão, a ou​tra con​tra a pa​r e​de, e
uma das mãos en​f i​a ​da no es​pa​ç o en​tre dois de​graus: a mão da arma. Por isso, e
só por isso, não pôde con​ti​nu​a r ati​r an​do.
Gin​ger pre​c i​sa​va ape​nas da​que​les dois ou três se​gun​dos para le​van​tar-se e
fu​gir. Le​van​tou-se como pôde, vi​r ou-se para dar uma úl​ti​m a olha​da na di​r e​ç ão
do ho​m em, que tam​bém já se er​guia... e viu os bo​tões do im​per​m e​á ​vel dele. Bo​-
tões de me​tal po​li​do... im​pres​sos com a fi​gu​r a de um leão ram​pan​te, a co​nhe​c i​da
ima-
gem he​r ál​di​c a da Casa Real in​gle​sa. Mas eram bo​tões co​m uns, dos que se
en​c on​tram em mi​lha​r es de ja​que​tas es​por​ti​vas, ca​sa​c os de lã, abri​gos de in​ver​no.
Gin​ger, po​r ém, não via nada além de​les, como se uni​c a​m en​te os bo​tões exis​tis​-
sem a sua vol​ta. A es​c a​da, a arma, o as​sas​si​no, até o ven​to que a fa​zia tre​m er de
frio de​sa​pa​r e​c e​r am. Os bo​tões eram a gran​de ame​a ​ç a... a úni​c a ame​a ​ç a.
— Nao... — dis​se, ten​tan​do lu​tar con​tra o medo. Os bo​tões. — Não... Não! —
Os bo​tões.
Que mo​m en​to se​r ia pior para ter uma cri​se?! E, no en​tan​to, a cri​se veio, vi​o​-
len​ta, in​c on​tro​lá​vel. A pri​m ei​r a, em mais de três se​m a​nas, tra​zen​do o mes​m o
medo pâ​ni​c o das ou​tras ve​zes. Um medo que a fa​zia sen​tir-se der​r o​ta​da, pe​que​-
na, frá​gil, in​c a​paz de lu​tar. Era pre​c i​so fu​gir... mas, ao re​dor tudo era es​c u​r i​dão.
Gin​ger fe​c hou os olhos para não ver os bo​tões e dis​pa​r ou es​c a​da abai​xo, per​-
ce​ben​do va​ga​m en​te que po​dia es​c or​r e​gar, que​brar a per​na ou par​tir a es​pi​nha. E
en​tão, quan​do não pu​des​se mais se mo​ver, o ho​m em se apro​xi​m a​r ia, co​la​r ia um
cano frio de re​vól​ver a sua tes​ta e lhe ex​plo​di​r ia a ca​be​ç a.
Fez-se a tre​va.
Frio.
Quan​do o mun​do vol​tou a apa​r e​c er — ou quan​do Gin​ger re​tor​nou ao mun​do
—, ela es​ta​va en​c o​lhi​da so​bre um amon​to​a ​do de fo​lhas se​c as, neve e som​bras,
jun​to aos de​graus de uma casa, a qual​quer dis​tân​c ia da Rua New​bury e do apar​-
ta​m en​to de Pa-blo. As cos​tas do​í​a m-lhe mui​to, e a dor alas​tra​va-se pelo lado di​-
rei​to do cor​po. A pal​m a da mão es​quer​da ar​dia, quei​m a​da de frio. O frio pa​r a​li​-
sa​va-a, vin​do do chão onde es​ta​va sen​ta​da e da pa​r e​de onde apoi​a ​va as cos​tas. O
ven​to as​so​bi​a ​va a sua vol​ta, chi​a n​do e ge​m en​do como se so​pras​se uma enor​m e
gar​gan​ta hu​m a​na.
Não sa​bia como nem quan​do che​ga​r a ali, mas sa​bia que cor​r ia o ris​c o de
apa​nhar uma pneu​m o​nia. Por onde an​da​r ia o as​sas​si​no? Ain​da po​dia es​tar por
per​to, a sua pro​c u​r a... Tal​vez ela ain​da fos​se obri​ga​da a fu​gir. De​c i​diu es​pe​r ar um
mi​nu​to.
Que mi​la​gre a fi​ze​r a des​c er a es​c a​da sem ver onde pi​sa​va? Como con​se​gui​-
ra cor​r er pe​las ruas ge​la​das sem que​brar uma per​na ou o pes​c o​ç o? Ocor​r ia-lhe
ape​nas uma ex​pli​c a​ç ão: fu​gi​r a como um bi​c ho, apro​vei​tan​do-se da ir​r a​c i​o​na​li​da​-
de, gui​a ​da mais pelo ins​tin​to que pela in​te​li​gên​c ia. Os bi​c hos sem​pre sa​bem onde
pi​sam.
Como aves de ra​pi​na, ven​to e frio con​ti​nu​a ​vam a cer​c á-la, cada vez mais
per​to. Era como es​tar en​ter​r a​da viva... num sar​c ó​f a​go de neve e fo​lhas mor​tas.
Es​ta​va na hora de re​tor​nar à vida.
A sua vol​ta, viu um pe​que​no quin​tal de​ser​to e uma fi​lei​r a de ca​sas, tam​bém
sem nin​guém à vis​ta. O chão co​ber​to de neve, al​gu​m as ár​vo​r es des​f o​lha​das...
nada mui​to ame​a ​ç a​dor. Tre​m en​do, olhos ene​vo​a ​dos de lá​gri​m as, Gin​ger su​biu
al​guns de​graus e an​dou pela va​r an​da de ti​j o​los que le​va​va do fun​do da casa à en​-
tra​da. Que​r ia des​c o​brir onde es​ta​va, en​c on​trar um modo de vol​tar ao apar​ta​m en​-
to de Pa​blo, achar um te​le​f o​ne, cha​m ar a po​lí​c ia... Mas não con​se​guiu fa​zer ne​-
nhu​m a des​sas coi​sas. Ao che​gar à cal​ç a​da, viu duas lâm​pa​das ace​sas, ape​sar do
dia, por​que o me​c a​nis​m o fo-to​e ​lé​tri​c o que as ati​va​va fora con​f un​di​do pelo cin​-
zen​to da ma​nhã. Lâm​pa​das ama​r e​la​das, cor de âm​bar como pe​que​nas cha​-
mas de vela...
Lâm​pa​das ama​r e​la​das... cor de âm​bar... No​va​m en​te Gin​ger sen​tiu que não
con​se​guia res​pi​r ar, o co​r a​ç ão es​ta​va a pon​to de ex​plo​dir, ba​ten​do cada vez mais
for​te. O medo! Ou​tra vez... o me​dol
Não... ou​tra vez, não! Mas sim... e lá es​ta​va ou​tra vez a né​voa que a im​pe​dia
de ver... a fuga, o medo... o nada.
Ain​da mais frio.
Mãos e pés du​r os, in​sen​sí​veis.
De​via es​tar de vol​ta à Rua New​bury. Con​se​gui​r a es​c on​der-se sob um ca​m i​-
nhão es​ta​c i​o​na​do, atrás da cai​xa de câm​bio ou do tan​que de óleo. Es​ti​c ou a ca​be​-
ça e es​pi​ou para fora. Viu ape​nas os pneus dos car​r os pa​r a​dos do ou​tro lado da
cal​ç a​da.
Es​c on​den​do-se... sem​pre es​c on​den​do-se. Cada vez que re​tor​na​va de uma
cri​se es​ta​va es​c on​di​da em al​gum lu​gar, como se al​guém ou algo ter​r í​vel a per​se​-
guis​se. Hoje, cla​r o, po​de​r ia es​tar se es​c on​den​do do as​sas​si​no de Pa​blo. Mas, e
nas ou​tras ve​zes? O que lhe dava a sen​sa​ç ão de que al​guém a per​se​guia? Mes​m o
ali, na​que​le
ins​tan​te, per​sis​tia a im​pres​são de que ha​via mais al​guém em seu en​c al​ç o;
mais al​guém... além do as​sas​si​no. Uma coi​sa qual​quer, uma ima​gem... tal​vez
uma lem​bran​ç a, lu​tan​do para vir à tona. Uma lem​bran​ç a do que vira em Ne​va​-
da. Al​gu​m a lem​bran​ç a...
— Ei, moça...
Gin​ger vi​r ou-se na di​r e​ç ão da voz, que pa​r e​c ia vir da tra​sei​r a do ca​m i​nhão.
Viu o ros​to de um ho​m em apoi​a ​do nas mãos e nos jo​e ​lhos, a ca​be​ç a meio en​f i​a ​-
da sob o ve​í​c u​lo. Não era o as​sas​si​no de Pa​blo.
— O que é que há com você?
Não era o as​sas​si​no, que de​via ter su​m i​do ao per​der as es​pe​r an​ç as de en​c on​-
trá-la. Era um ros​to des​c o​nhe​c i​do... Me​lhor as​sim, ‘mes​m o que fos​se des​c o​nhe​-
ci​do.
— O que está fa​zen​do aí? — ele per​gun​tou.
Gin​ger fe​c hou os olhos para não re​c o​m e​ç ar a cho​r ar. O que po​de​r i​a m pen​-
sar as pes​so​a s que a viam cor​r en​do como lou​c a pe​las ruas... ou en​c o​lhi​da em​bai​-
xo de um ca​m i​nhão? Que fim le​va​r a seu amor-pró​prio?
Sem res​pon​der, ar​r as​tou-se na di​r e​ç ão do ros​to e acei​tou a mão que o ho​-
mem es​ten​deu para aju​dá-la a sair dali. Na cal​ç a​da, viu que o ca​m i​nhão per​ten​-
cia à Com​pa​nhia de Mu​dan​ç as May ​f lo-wer e ti​nha as por​tas es​c an​c a​r a​das. Viu
tam​bém que o ho​m em era jo​vem e mu​la​to, e usa​va um uni​f or​m e de in​ver​no
com o lo​go​ti​po da May ​f lower es​tam​pa​do no pei​to.
— O que hou​ve? Está com medo?
En​quan​to o ou​via, Gin​ger avis​tou um guar​da de bra​ç os aber​tos no cru​za​m en​-
to de duas ruas, me​nos de meio quar​tei​r ão adi​a n​te, di​r i​gin​do o trá​f e​go. Cor​r eu
para ele, es​que​c i​da do mu​la​to, que ain​da a cha​m ou.
Todo o cor​po doía-lhe como se já não ti​ves​se os​sos ou mús​c u​los, mas ape​nas
equi​m o​ses, lu​xa​ç ões e fra​tu​r as. Era in​c rí​vel que ain​da pu​des​se cor​r er. As sar​j e​tas
es​ta​vam chei​a s de neve, po​r ém a cal​ç a​da e o as​f al​to não es​ta​vam es​c or​r e​ga​di​os,
pro​te​gi​dos por ca​m a​das de pro​du​tos an​ti​der​r a​pan​tes. Des​vi​a n​do de dois car​r os
que se apro​xi​m a​vam do cru​za​m en​to, Gin​ger ain​da en​c on​trou for​ç as para
gri​tar ao guar​da:
— Hou​ve um cri​m e! As​sas​si​na​to... Um ho​m em está mor​to! O se​nhor pre​c i​-
sa vir co​m i​go!
En​tão, quan​do o guar​da deu um pas​so em sua di​r e​ç ão, as so​bran​c e​lhas fran​-
zi​das no ros​to co​r a​do de ir​lan​dês, Gin​ger viu os bo​tões da pe​sa​da tú​ni​c a de lã que
o pro​te​gia do ven​to... Eram bo​tões di​f e​r en​tes da​que​les que lu​zi​a m no im​per​m e​á ​-
vel do as​sas​si​no. Não os​ten​ta​vam le​ões ram​pan​tes, mas ou​tra ima​gem, tal​vez um
bra​são... Bas​ta​r am-lhe, con​tu​do, para des​c o​brir que vira bo​tões em al​gum mo​-
men​to, em al​gum ca​sa​c o... no Mo​tel Tran​qüi-li​da​de! Ha​via uma lem​bran​ç a que​-
ren​do acor​dar... Uma lem​bran​ç a mui​to tê​nue, po​r ém su​f i​c i​e n​te para dis​pa​r ar o
ga​ti​lho con​tra o blo​queio de Az​r a​e l.
An​tes de per​der-se do mun​do real, mer​gu​lhan​do em seu in​f er​no par​ti​c u​lar
de né​voa ama​r e​la​da, Gin​ger ou​viu a pró​pria voz, gri​tan​do de de​ses​pe​r o e hor​r or.
Mais frio, im​pos​sí​vel.
Na​que​la ma​nhã, pelo me​nos para a dra. Gin​ger Weiss, Bos​ton era a ci​da​de
mais fria do pla​ne​ta. Frio na car​ne, frio na alma.
Ao des​per​tar da cri​se, es​ta​va sen​ta​da no chão so​bre o gelo. Ti​nha as mãos
con​ge​la​das, os pés dor​m en​tes e os lá​bi​os do​lo​r i​dos. Como sem​pre, es​ta​va es​c on​-
di​da, des​sa vez num es​trei​to cor​r e​dor en​tre a cer​c a viva cui​da​do​sa​m en​te po​da​da
e a pa​r e​de de ti​j o​los, numa es​tra​da la​te​r al do ex-Ho​tel Agas​siz. O pré​dio onde
Pa​blo mo​r a​va. Onde ele fora as​sas​si​na​do. Onde co​m e​ç a​r a o pe​sa​de​lo da ma​nha.
Vol​ta​r a ao pon​to de par​ti​da.
Ou​viu pas​sos. Sem mo​ver um mús​c u​lo, avis​tou um par de bo​tas de cou​r o
ata​das até a me​ta​de da ca​ne​la e a cal​ç a azul-es​c u​r a do uni​f or​m e da po​lí​c ia de
trân​si​to. Era ele... o guar​da ao qual pe​di​r a so​c or​r o. Com medo de ou​tra cri​se, fe​-
chou os olhos com for​ç a.
A la​va​gem ce​r e​bral tal​vez ti​ves​se efei​tos co​la​te​r ais. Tal​vez dei​xas​se se​qüe​las
in​c u​r á​veis, pro​vo​c as​se lesões ir​r e​ver​sí​veis ao te​c i​do ce​r e​bral, ou cau​sas​se pro​-
ble​m as psi​c o​ló​gi​c os... Nao era de es​tra​nhar
que a es​tru​tu​r a psi​c o​ló​gi​c a nor​m al aca​bas​se ce​den​do à gi​gan​tes​c a pres​são
das lem​bran​ç as re​gis​tra​das e logo su​f o​c a​das para sem​pre. Um pro​c es​so vi​o​len​to,
in​c ri​vel​m en​te agres​si​vo. Ain​da que en​c on​tras​se ou​tro es​pe​c i​a ​lis​ta em hip​no​se
dis​pos​to a aju​dá-la, como Pa​blo a aju​da​r a, tal​vez não hou​ves​se pos​si​bi​li​da​de de
cura. Tal​vez o blo​queio fos​se in​des​tru​tí​vel. Nes​se caso, es​ta​r ia con​de​na​da à lou​-
cu​r a. Se so​f re​r á três cri​ses de fuga numa úni​c a ma​nhã, o que po​de​r ia evi​tar
que so​f res​se ou​tras três numa tar​de, ou numa hora?
As bo​tas de cou​r o con​ti​nu​a ​vam ran​gen​do so​bre a neve, para lá e para cá.
Gin​ger viu o guar​da apro​xi​m ar-se mais e abrir a tou-cei​r a de ar​bus​tos:
* — O que hou​ve, moça? O que era que você es​ta​va gri​tan​do so​bre um as​-
sas​si​na​to?
E se ti​ves​se ou​tra cri​se e nun​c a mais vol​tas​se?
— Va​m os... não cho​r e... — O guar​da in​c li​nou-se e es​ten​deu-lhe a mão
para aju​dá-la a le​van​tar-se. — Se não me dis​ser o que hou​ve, não pos​so aju​dá-la.
Gin​ger não se​r ia Gin​ger, nem se​r ia a fi​lha de Ja​c ob Weiss, se não re​a ​gis​se
com es​pe​r an​ç a a um ges​to de aten​ç ão afe​tuo​so e sin​c e​r o. Res​pi​r ou fun​do e abriu
os olhos, fi​xos na di​r e​ç ão dos bo​tões da tú​ni​c a. Nada acon​te​c eu: sim​ples bo​tões...
O que não sig​ni​f i​c a​va gran​de coi​sa, já que tam​bém lhe pa​r e​c i​a m ino​f en​si​vos o
of​tal​m os​c ó​pio, as lu​vas pre​tas e to​dos os ou​tros ob​j e​tos que ti​ve​r am o po​der de
de​sen​c a​de​a r uma cri​se.
— Ma​ta​r am Pa​blo. Pa​blo Jack​son foi as​sas​si​na​do por eles.
As pa​la​vras so​a ​r am como uma sen​ten​ç a de da​na​ç ão eter​na. Aque​le 6 de ja​-
nei​r o se​r ia para sem​pre um dia de luto. Pa​blo ti​nha mor​r i​do por​que ten​ta​r a aju​-
dá-la.
O dia mais frio de sua vida.

5. A CA​M I​NHO
Na ma​nhã de se​gun​da-fei​r a, dia 6 de ja​nei​r o, di​r i​gin​do um car​r o alu​ga​do,
Dom Cor​vai​sis vi​si​ta​va, pela se​gun​da vez, a re​gi​ã o onde
mo​r a​va, em Por​tland, pro​c u​r a​va o ho​m em que ha​via sido, mais de de​zoi​to
me​ses atrás, quan​do par​ti​r a para Moun​tain​vi​e w, Utah. A chu​va pe​sa​da ces​sa​r a
pou​c o an​tes de o dia cla​r e​a r. O céu, ain​da co​ber​to de nu​vens, era o mais cin​zen​to
que ele já vira, som​brio como o de uma pai​sa​gem de​vas​ta​da.
Di​r i​giu pelo cam​pus da uni​ver​si​da​de, es​ta​c i​o​nan​do sem​pre que al​gum re​c an​-
to lhe pa​r e​c ia fa​m i​li​a r, ten​tan​do reen​c on​trar o es​ta​do de es​pí​r i​to em que dei​xa​r a
a ci​da​de. Pa​r ou de​pois à fren​te do pré​dio onde ha​via mo​r a​do, de​m o​r ou-se bom
tem​po olhan​do para sua an​ti​ga ja​ne​la e con​ven​c eu-se de que ja​m ais se​r ia ca​paz
de re​des​c o-brir a ti​m i​dez do Dom Cor​vai​sis que se es​c on​dia na toca do co​e ​lho,
como di​zia Parker. Con​se​guia re​ver aque​les dias, con​se​guia pen​sar em suas re​a ​-
ções, mas as lem​bran​ç as não eram vi​vas. Não se sen​tia como an​tes; ti​nha a im​-
pres​são de re​vi​ver um tem​po que não fa​zia par​te de seu pas​sa​do pes​so​a l. Tal​vez
fos​se um bom si​nal: si​nal de que ja​m ais vol​ta​r ia a ser aque​le Dom da toca de co​-
e​lho.
Já não du​vi​da​va de que al​gu​m a coi​sa se pas​sa​r a na​que​le ve​r ão, o ve​r ão da
mu​dan​ç a. Tal​vez na es​tra​da, du​r an​te a vi​a ​gem. E tam​pou​c o du​vi​da​va de que a
lem​bran​ç a lhe fora rou​ba​da, o que cri​a ​va, ao mes​m o tem​po, um di​le​m a, uma
con​tra​di​ç ão e um mis​té​r io. O mis​té​r io con​sis​tia em que, fos​se qual fos​se o acon​-
te​c i​m en​to fan​tás​ti​c o da​que​le ve​r ão, o re​sul​ta​do ha​via sido po​si​ti​vo. Mas como ex​-
pli​c ar que uma ex​pe​r i​ê n​c ia de hor​r or re​sul​tas​se numa mu​dan​ç a para me​lhor? O
re​sul​ta​do era bom... po​r ém os re​ta​lhos das lem​bran​ç as po​vo​a ​vam seus pe​sa​de​los.
Como era pos​sí​vel que aque​la lou​c u​r a fos​se, ao mes​m o tem​po, bela e ter​r í​vel?
A res​pos​ta, se res​pos​ta hou​ves​se, não es​ta​va em Por​tland, mas em al​gum lu​-
gar da es​tra​da. Dom li​gou o car​r o, en​gre​nou a mar​c ha e par​tiu rumo ao des​c o​-
nhe​c i​do.
O ca​m i​nho mais cur​to de Por​tland a Moun​tain​vi​e w co​m e​ç a​va na Ro​do​via 80
em di​r e​ç ão ao nor​te. Mas, como fi​ze​r a de​zoi​to me​ses an​tes, Dom op​tou por ou​tra
rota e ru​m ou para o sul, to​m an​do a Ro​do​via 5. Pla​ne​j a​r a uma pa​r a​da em Reno,
pen​san​do em pes​qui​sar ma​te​r i​a l para al​guns con​tos so​bre jogo e jo​ga​do​r es, e a
Ro​do​via 5 era o úni​c o ca​m i​nho.
Já re​pe​tia to​dos os pas​sos, di​r i​gin​do de​va​gar, como fi​ze​r a an​tes, por​que cho​-
ve​r a mui​to no ano da pri​m ei​r a vi​a ​gem e a es​tra​da ti​nha tre​c hos di​f í​c eis. Como da
pri​m ei​r a vez, pa​r ou em Eu​ge​ne para al​m o​ç ar.
Sem​pre à pro​c u​r a de qual​quer de​ta​lhe que o aju​das​se a lem​brar-se, ia pa​-
ran​do em to​das as pe​que​nas ci​da​des pe​las quais pas​sa​va. Não viu nada es​tra​nho
ou in​tri​gan​te, e não acon​te​c eu nada até Grand Pass, aon​de che​gou pou​c o an​tes
das seis da tar​de, ri​go​r o​sa​m en​te con​f or​m e o cro​no​gra​m a.
Hos​pe​dou-se no mes​m o ho​tel es​c o​lhi​do na pri​m ei​r a vi​a ​gem; lem​bran​do-se
até do nú​m e​r o do apar​ta​m en​to que fi​c a​va jun​to às ba​r u​lhen​tas má​qui​nas de re​-
fri​ge​r an​te. O apar​ta​m en​to 10 es​ta​va vago, e Dom con​se​guiu que o ge​r en​te o dei​-
xas​se fi​c ar lá, ex​pli​c an​do que ti​nha “mo​ti​vos sen​ti​m en​tais” para es​c o​lhê-lo.
Jan​tou no mes​m o res​tau​r an​te onde jan​ta​r a no pas​sa​do, bem em fren​te ao ho​-
tel, do ou​tro lado da es​tra​da. An​da​va em bus​c a de um sa​to​ri, uma ilu​m i​na​ç ão
zen, uma re​ve​la​ç ão de ver​da​des pro​f un​das, e aca​ba​va de mãos va​zi​a s, às es​c u​-
ras, como an​tes.
Pas​sa​r a o dia com os olhos pre​ga​dos ao es​pe​lho re​tro​vi​sor para sa​ber se al​-
guém o se​guia. Du​r an​te o jan​tar, vol​ta e meia es​pi​a ​va por cima do om​bro, para
os la​dos, ten​tan​do des​c o​brir um ros​to sus​pei​to. Se re​a l​m en​te ha​via al​guém atrás
dele; era o mes​tre dos dis​f ar​c es. As nove da noi​te, sem que​r er usar o te​le​f o​ne do
quar​to, foi até um pos​to te​le​f ô​ni​c o e, usan​do o car​tão de cré​di​to, pe​diu uma li​ga​-
ção para uma ca​bi​ne pú​bli​c a em La​gu​na Be​a ​c h. Con​f or​m e o com​bi​na​do, Parker
es​ta​va à es​pe​r a, com um re​la​tó​r io com​ple​to so​bre a cor​r e​pon​dên​c ia que re​c o​lhe​-
ra da cai​xa pos​tal do ami​go na​que​la ma​nhã. Di​f i​c il​m en​te um dos te​le​f o​nes es​ta​-
ria sen​do vi​gi​a ​do, mas, de​pois de re​c e​ber as fo​to​gra​f i​a s, Dom de​c i​di​r a, e Parker
con​c or​da​r a, que ao tra​tar do as​sun​to dos so​nhos cau​te​la e pa​r a​nóia se​r i​a m si​nô​ni​-
mos.
— Con​tas — dis​se Parker. — E pro​pa​gan​da. Nada de bi​lhe​tes es​tra​nhos ou
fo​to​gra​f i​a s. Como vão as coi​sas por aí?
— Tudo nor​m al até ago​r a. — Dom viu a pró​pria ima​gem re​f le​ti​da no vi​dro
da ca​bi​ne. — Tive pro​ble​m as para dor​m ir a noi​te pas​sa​da.
— Mas você che​gou... a sair para uma ca​m i​nha​da?
— Nem con​se​gui des​m an​c har os nós. Mas tive pe​sa​de​los. A Lua, ou​tra vez.
Tem cer​te​za de que não foi se​gui​do até aí?
— Te​nho. Só se eles co​nhe​c e​r em o se​gre​do da in​vi​si​bi​li​da​de — Parker res​-
pon​deu. — Acho que você pode li​gar para cá ama​nhã à noi​te. E não pre​c i​sa se
pre​o​c u​par com o te​le​f o​ne.
— Es​ta​m os fa​lan​do como dois ma​lu​c os.
— Para mim é mui​to di​ver​ti​do — Parker riu. — Pa​r e​c e fil​m e de mo​c i​nho
e ban​di​do, po​lí​c ia e la​drão, es​pi​ões... Sem​pre fui bom nes​sas coi​sas. Faça o que
tem que fa​zer, ami​go. E, se pre​c i​sar de aju​da, gri​te que eu vou cor​r en​do.
— Eu sei.
Dom vol​tou ao ho​tel, o ven​to úmi​do e frio ba​ten​do-lhe no ros​to. Como em
Por​tland, acor​dou três ve​zes du​r an​te a noi​te, sem​pre sain​do de pe​sa​de​los que não
con​se​guia lem​brar, sem​pre gri​tan​do de medo, fa​lan​do so​bre a Lua.
Na ma​nhã de ter​ç a-fei​r a, dia 7 de ja​nei​r o, Dom le​van​tou-se cedo e to​m ou a
Ro​do​via 80 para Reno. Cho​via mui​to e fa​zia frio. Con​ti​nuou a cho​ver du​r an​te
qua​se toda a vi​a ​gem e, quan​do ele che​gou às Si​e r​ras, co​m e​va a ne​var. Pa​r ou
num pos​to de bei​r a de es​tra​da, com​prou cor​r en​tes an​ti​der​r a​pan​tes para os pneus
e man​dou co​lo​c á-las an​tes de se​guir vi​a ​gem.
No ve​r ão re​tra​sa​do, le​va​r a mais de dez ho​r as para ir de Grant’s Pass a Reno;
ao re​pe​tir o iti​ne​r á​r io, a vi​a ​gem aca​bou sen​do ain​da mais de​m o​r a​da. De​pois de
preen​c her a fi​c ha de en​tra​da no Ho​tel Har​r ah’s, o mes​m o de an​tes, te​le​f o​nou
para Parker Fai​ne de uma ca​bi​ne e en​trou num bar para um lan​c he rá​pi​do. Es​ta​-
va tão can​sa​do que só que​r ia fo​lhe​a r o jor​nal para dis​trair-se um pou​c o e ir logo
dor​m ir. Es​ta​va sen​ta​do na cama, de cu​e ​c as, às oito e meia da noi​te, jor​nal aber​to,
quan​do leu a no​tí​c ia so​bre Ze​be​di​a h Lo​m ack:
HOMEM DA LUA DE IXA HE RANÇA DE ME IO MIL HÃO DE
DÓ​LA​RES
RENO — Ze​be​di​a h Ha​r old Lo​m ack, 50 anos, cujo sui​c í​dio no dia de Na​tal
le​vou à des​c o​ber​ta de uma es​tra​nha ob​ses​são pela ima​gem da Lua, dei​xou uma
he​r an​ç a es​ti​m a​da em mais de meio mi​lhão de dó​la​r es. Se​gun​do do​c u​m en​tos
apre​sen​ta​dos por Ele​a ​nor Wol​sey, irmã do mor​to e sua exe​c u​to​r a tes​ta-men​tá​r ia,
os bens es​tão re​pre​sen​ta​dos por ações de fun​dos de in​ves​ti​m en​to e le​tras do Te​-
sou​r o Na​c i​o​nal. A casa mo​des​ta onde t Lo​m ack vi​via, na Es​tra​da de Wass Val​ley,
nú​m e​r o 1420, foi ava​li​a ​da em ape​nas trin​ta e cin​c o mil dó​la​r es.
Jo​ga​dor pro​f is​si​o​nal, Lo​m ack te​r ia en​r i​que​c i​do nas me​sas de pô​quer. “Ele
era um dos me​lho​r es jo​ga​do​r es de pô​quer que co​nhe​c i”, de​c la​r ou Sid​ney Gar​-
fork, o Si​e r​ra Sid, de Reno, tam​bém jo​ga​dor pro​f is​si​o​nal e cam​pe​ã o mun​di​a l de
pô​quer, tí​tu​lo que con​se​guiu na com​pe​ti​ç ão do Cas​si​no Fer​r a​du​r a, em Las Ve​gas.
“Ele jo​ga​va des​de cri​a n​ç a”, Si​e r​ra Sid con​ti​nua, “por vo​c a​ç ão. Como há cri​a n​-
ças que nas​c em para o es​por​te, a ci​ê n​c ia ou a arte, Lo​m ack nas​c eu para o jogo”.
Ain​da nas pa​la​vras de Gar​f ork e de ou​tros ami​gos de Lo​m ack, o sui​c i​da te​r ia dei​-
xa​do um pa​tri​m ô​nio mais va​li​o​so, não fos​se sua pai​xão pe​los da​dos. “Per​deu
mui​to nas me​sas de da​dos”, de​c la​r ou um de​les, “e boa par​te, é cla​r o, o im​pos​to
de ren​da le​vou”.
Con​f or​m e no​ti​c i​a ​m os na noi​te de Na​tal, aler​ta​dos por vi​zi​nhos que ou​vi​r am
um tiro, po​li​c i​a is de Reno in​va​di​r am a casa de Lo​m ack, en​c on​tra​r am-no mor​to
na co​zi​nha, cer​c a​do de lixo. As pri​m ei​r as in​ves​ti​ga​ç ões, re​a ​li​za​das no lo​c al, re​ve​-
la​r am mi​lha​r es de fo​tos da Lua co​la​das pe​las pa​r e​des, pelo teto e até nos mó​veis.
A no​tí​c ia con​ti​nu​a ​va, dan​do a im​pres​são de ter sido o prin​c i​pal as​sun​to da ci​-
da​de nas duas se​m a​nas an​te​r i​o​r es. Dom leu e re-leu a ma​té​r ia, cada vez mais
fas​c i​na​do e an​si​o​so. Não po​dia ser... Não era pos​sí​vel que a ob​ses​são do tal Ze​be​-
di​a h Lo​m ack ti​ves​se
algo a ver com seus pe​sa​de​los. Co​in​c i​dên​c ia... nada mais! Po​r ém o medo
cres​c ia. O mes​m o medo que o ator​m en​ta​va nos pe​sa​de​los. Um medo fei​to de
ter​r or, que o fa​zia acor​dar aos ber​r os, su​a n​do frio. Um medo que o fa​zia pe​r am​-
bu​lar du​r an​te o sono, ar​m an​do bar​r i​c a​das e pre​gan​do ja​ne​las.
Dom con​ti​nuou com o jor​nal di​a n​te dos olhos até às nove e quin​ze; e en​tão
re​sol​veu ir até a casa de Lo​m ack. Ves​tiu-se, ti​r ou o car​r o do es​ta​c i​o​na​m en​to e in​-
for​m ou-se so​bre o me​lhor ca​m i​nho até a Es​tra​da de Wass Val​ley. Ra​r a​m en​te ne​-
va​va em Reno. A noi​te es​ta​va seca e as es​tra​das de​sim​pe​di​das. No ca​m i​nho, pa​-
rou num su​per​m er​c a​do e com​prou uma lan​ter​na. Pou​c o de​pois das dez ho​r as,
che​ga​va ao nú​m e​r o 1420 da Es​tra​da de Wass Val​ley.
A casa era mo​des​ta, como di​zia o jor​nal. Pou​c o mai​or que um ban​ga​lô, num
ter​r e​no de dois mil me​tros qua​dra​dos. Ha​via res​tos de neve acu​m u​la​da nas ca​-
lhas e nos ga​lhos dos pi​nhei​r os mais al​tos. As ja​ne​las es​ta​vam es​c u​r as.
Pelo que di​zia o jor​nal, a irmã de Ze​be​di​a h che​ga​r a da Fló​r i​da três dias de​-
pois do sui​c í​dio para cui​dar do fu​ne​r al, re​a ​li​za​do no dia 30, e con​ti​nu​a ​va na ci​da​-
de para re​sol​ver os pro​ble​m as re​la​ti​vos à he​r an​ç a. Es​ta​va hos​pe​da​da num ho​tel,
por​que a casa de Zeb pa​r e​c ia-lhe “de​pri​m en​te de​m ais”.
Dom era ci​da​dão res​pei​ta​dor da lei e não lhe agra​da​va a idéia de in​va​dir a
casa de nin​guém. Mas não ti​nha es​c o​lha. O ins​tin​to di​zia-lhe que Ele​a ​nor Wol​sey
não o dei​xa​r ia en​trar lá, ain​da que lhe im​plo​r as​se. Se​gun​do o jor​nal, ela es​ta​va
“can​sa​da da per​se​gui​ç ão des​ses ma​ní​a ​c os” e não per​m i​ti​r ía que a casa de seu ir​-
mão fos​se in​va​di​da “por hor​das de cu​r i​o​sos per​ver​ti​dos”. Di​a n​te dis​so, Dom con​-
tor​nou a cons​tru​ç ão, ex​pe​r i​m en​tan​do as fe​c ha​du​r as de por​tas e ja​ne​las até des​-
co​brir que a ja​ne​la da co​zi​nha não es​ta​va tran​c a​da. Em​pur​r ou-a, sal​tou so​bre o
per​to​r il e pu​lou para den​tro.
Co​brin​do a lan​ter​na com a mão para não cha​m ar a aten​ç ão de quem pas​sas​-
se pela rua, pas​se​ou o fa​c ho de luz pe​las pa​r e​des e pelo teto: tudo lim​po. O jor​nal
di​zia que a irmã de Lo​m ack es​ta​va lim​pan​do a casa para ven​dê-la. Com cer​te​za,
co​m e​ç a​r a pela co-
zi​nha: não ha​via lixo, as pra​te​lei​r as es​ta​vam va​zi​a s, o chão bri​lha​va. O ar
chei​r a​va a tin​ta fres​c a e de​sin​f e​tan​te, e não ha​via uma úni​c a Lua à vis​ta.
E se Ele​a ​nor ti​ves​se ter​m i​na​do a fa​xi​na? E se já não exis​tis​se nem ras​tro das
luas de Ze​be​di​a h Lo​m ack?
Foi ape​nas um ins​tan​te de pre​o​c u​pa​ç ão, pois, acom​pa​nhan​do a luz da lan​ter​-
na, Dom logo che​gou à sala prin​c i​pal, onde viu cen​te​nas de ima​gens co​la​das pe​-
las pa​r e​des. Era como en​trar numa ca​ver​na ou mer​gu​lhar no es​pa​ç o si​de​r al,
cheio de Luas im​pos​sí​veis, cra​te​r as so​bre cra​te​r as, umas ao lado e por cima
das ou​tras. In​c a​paz de ori​e n​tar-se ali, sem sa​ber onde aca​ba​va o chão e co​m e​ç a​-
vam as pa​r e​des, Dom sen​tiu uma ver​ti​gem, a boca seca, e con​ti​nuou an​dan​do
pelo cor​r e​dor. Mais Luas por to​dos os la​dos: al​gu​m as co​lo​r i​das, ou​tras em bran​-
co-e-pre​to; gran​des e pe​que​nas; mui​tas apli​c a​das so​bre fo​tos mais an​ti​gas, pre​ga​-
das com cola, com fita ade​si​va, com eti​que​tas. A mes​m a de​c o​r a​ç ão en​lou​que​c i​-
da con​ti​nu​a ​va pe​los quar​tos, como se a Lua fos​se uma es​pé​c ie de fun​go em re​-
pro​du​ç ão in​c on​tro​lá​vel, co​brin​do tudo.
O jor​nal di​zia que nin​guém, além de Lo​m ack, es​ti​ve​r a na​que​la casa du​r an​te
pelo me​nos um ano an​tes do sui​c í​dio do pro​pri​e ​tá​r io. De​via ser ver​da​de... Quem
quer que vis​se aqui​lo cha​m a​r ia uma am​bu​lân​c ia e fa​r ia in​ter​nar o ho​m em! Os
vi​zi​nhos co​m en​ta​vam so​bre a trans​f or​m a​ç ão de Lo​m ack, mais ta​c i​tur​no a
cada dia, mais tran​c a​do em casa. Ao que tudo in​di​c a​va, a fas​c i​na​ç ão pela Lua
co​m e​ç a​r a no ve​r ão re​tra​sa​do... O mes​m o ve​r ão em que a vida de Dom tam​bém
mu​da​r a.
A cada se​gun​do que pas​sa​va, Dom fi​c a​va mais an​si​o​so. Era im​pos​sí​vel en​-
ten​der qual for​ç a es​tra​nha fa​r ia um ho​m em cri​a r um ce​ná​r io as​sim... En​tre​tan​to,
de al​gum modo as​sus​ta​dor, alu​c i​nan​te, in​c om​preen​sí​vel, con​se​guia en​ten​dê-lo...
en​ten​der o que Lo​m ack fi​ze​r a, o que ten​ta​r a di​zer...
O fa​c ho de luz con​ti​nu​a ​va a cor​r er pe​las pa​r e​des em​pa​pe​la​das, e Dom sen​tia
as go​tas de suor ge​la​do es​c or​r en​do-lhe da nuca e des​c en​do pelo meio das cos​tas.
As luas de pa​pel não o fas​c i​na​vam tan​to como cer​ta​m en​te ha​vi​a m fas​c i​na​do Lo​-
mack, mas o
ins​tin​to di​zia-lhe que o im​pul​so que le​va​r a o sui​c i​da a re​c or​tar e co​lar luas
pe​las pa​r e​des da casa era o mes​m o que o fa​zia so​nhar com a Lua... e acor​dar
gri​tan​do.
Os dois ha​vi​a m vi​vi​do a mes​m a ex​pe​r i​ê n​c ia, e essa ex​pe​r i​ê n​c ia ti​nha algo a
ver com a Lua, per​so​na​gem ou sím​bo​lo. No ve​r ão do ano re​tra​sa​do, os dois ha​vi​-
am es​ta​do no mes​m o lu​gar ao mes​m o tem​po, tal​vez jun​tos. O lu​gar er​r a​do, na
hora er​r a​da. E Lo-mack en​lou​que​c e​r a sob o peso das lem​bran​ç as proi​bi​das.
E Dom? Tam​bém aca​ba​r ia lou​c o? Exa​m i​nan​do as pa​r e​des do quar​to prin​c i​-
pal, ocor​r eu-lhe de re​pen​te uma pos​si​bi​li​da​de nova: e se Lo​m ack não ti​ves​se se
ma​ta​do num aces​so de de​pres​são ou de de​ses​pe​r o? E se o ti​ves​sem im​pe​li​do a
en​f i​a r o cano da es​pin​gar​da na boca e pu​xar o ga​ti​lho... por​que, fi​nal​m en​te, con​-
se​gui​r a lem​brar-se de tudo? E se a lem​bran​ç a fos​se ain​da mais as​sus​ta​do​r a do
que o mis​té​r io? E se as cri​ses de so​nam​bu​lis​m o e os pe​sa​de​los fos​sem nada...
face à ver​da​de so​bre o que acon​te​c e​r a du​r an​te a vi​a ​gem de Por​tland a Moun​-
tain​vi​e w?
As luas pa​r e​c i​a m ga​nhar vida pró​pria. Era cada vez mais di​f í​c il res​pi​r ar...
Como se as ima​gens co​m e​ç as​sem a en​c ar​nar o mal e se apro​xi​m as​sem cada vez
mais, fe​c han​do o cer​c o...
Dom cor​r eu pelo quar​to, apro​xi​m ou-se da por​ta, tro​pe​ç ou numa pi​lha de li​-
vros e caiu ajo​e ​lha​do, zon​zo, como nos pe​sa​de​los. Não con​se​guia mo​ver-se. Aos
pou​c os, acal​m ou-se, vol​tou à nor​m a​li​da​de... e sur​preen​deu-se, de olhos ar​r e​ga​la​-
dos, fren​te ao nome Do​mi​nick, es​c ri​to a ca​ne​ta so​bre uma das in​c on​tá​veis fo​-
tos. Não o vira ao en​trar, por​que não di​r i​gi​r a a lan​ter​na para aque​le lado. Mas
ago​r a a luz ama​r e​la​da in​c i​dia di​r e​ta​m en​te so​bre o pôs​ter onde Lo​m ack es​c re​ve​-
ra... seu nome! E quem mais po​de​r ia tê-lo es​c ri​to?
Pelo que se lem​bra​va, nun​c a en​c on​tra​r a Lo​m ack em qual​quer si​tu​a ​ç ão, e se​-
ria per​da de tem​po ten​tar con​ven​c er-se de que se tra​ta​va de ou​tro Do​m i​nick. Le​-
van​tou-se, apro​xi​m ou-se do pôs​ter e exa​m i​nou-o. De​pois cor​r eu os olhos e o fa​-
cho de luz pe​las fo​tos pró​xi​m as. Qua​tro de​las ti​nham no​m es es​c ri​tos pela mes​m a
mão, com a mes​m a ca​ne​ta: Do​m i​nick, Gin​ger, Fay e, Er​nie. Não eram
ape​nas dois os in​f e​li​zes, Lo​m ack e ele. Ha​via pelo me​nos ou​tras três pes​so​a s,
que Dom nao ima​gi​na​va quem fos​sem.
O tal Er​nie se​r ia o pa​dre da fo​to​gra​f ia que re​c e​be​r a pelo cor​r eio? E quem
se​r ia a loi​r a amar​r a​da à cama? Gin​ger ou Fay e?
A me​di​da que a luz da lan​ter​na ia de um a ou​tro nome, Dom sen​tia que aque​-
las me​m ó​r i​a s so​ter​r a​das co​m e​ç a​vam a mo​ver-se... Um mo​vi​m en​to ain​da im​-
per​c ep​tí​vel, mui​to fra​c o, mas um pri​m ei​r o si​nal de que uma par​te de seu pas​sa​do
não es​ta​va mor​ta para sem​pre. Po​dia vol​tar... Tal​vez ele se lem​bras​se... Ao pri​-
mei​r o es​f or​ç o para lo​c a​li​zar a lem​bran​ç a, con​tu​do, a onda qua​se in​vi​sí​vel se des​-
fez, como o si​nal de um mons​tro ma​r i​nho que mer​gu​lhas​se nas pro​f un​de​zas.
Des​de o mo​m en​to em que en​tra​r a na casa de Lo​m ack, Dom sa​bia que se
apro​xi​m a​va de al​gu​m a coi​sa im​por​tan​te e as​sus​ta​do​r a. Sen​tiu medo, mas ven​do
a lem​bran​ç a es​c a​par-lhe como areia por en​tre os de​dos, de​pois de tê-la sen​ti​do
tão per​to, fi​c ou de​ses​pe​r a​do.
— Por que não con​si​go me lem​brar?! — gri​tou para as pa​r e​des, em​bo​r a co​-
nhe​c es​se a res​pos​ta. Al​guém o in​du​zi​r a a es​que​c er. Al​guém in​va​di​r a o ter​r i​tó​r io
de suas lem​bran​ç as e de lá var​r e​r a o que não de​se​j a​va ver re​ve​la​do. Ain​da as​-
sim ele con​ti​nu​a ​va a gri​tar. — Por quê}\ Eu que​r o, pre​c i​so me lem​brar... — Er​-
gueu o pu​nho cer​r a​do para a foto onde Lo​m ack es​c re​ve​r a seu nome, os olhos bri​-
lhan​do de fú​r ia. — Mal​di​tos! Fi​lhos da puta... Mal​di​tos! Vou me lem​brar, cus​te o
que cus​tar! Vou me lem​brarl Vou ar​r an​c ar isso tudo!
Não to​c a​r a o pôs​ter, ape​nas o ame​a ​ç a​r a de lon​ge com o pu​nho e gri​ta​r a. Era
im​pos​sí​vel, ini​m a​gi​ná​vel... não po​dia es​tar acon​te​c en​do... mas foi como se o ges​-
to ar​r an​c as​se a fota da pa​r e​de. As ti​r as de fita ade​si​va des​pren​de​r am-se com o
ru​í​do seco de um zí-per abrin​do-se... O car​taz sol​tou-se da pa​r e​de e flu​tuou em
sua di​r e​ç ão. Dom re​c uou, tro​pe​ç ou ou​tra vez na pi​lha de li​vros e por pou​c o não
caiu de cos​tas. Con​se​guiu er​guer a lan​ter​na e viu que o pôs​ter es​ta​va pa​r a​do no
ar... pa​ra​do... a um me​tro de sua ca​be​ç a. On​du​lan​do como uma fo​lha ao ven​to,
para fren​te e para atrás, e seu nome, na le​tra de Lo​m ack, tre​m u​lan​do como le​-
gen​da ins​c ri​ta numa ban​dei​r a des​f ral​da​da.
Es​tou lou​c o, pen​sou. Mas sa​bia que não era ver​da​de. Sa​bia que o pa​pel es​ta​-
va ali, a pou​c os pas​sos, sus​pen​so no ar. Mal con​se​guia res​pi​r ar; sen​tia o ar den​so,
car​r e​ga​do de mi​la​gres.
O pôs​ter apro​xi​m ou-se. O fei​xe de luz tre​m eu, re​f le​ti​do no pa​pel es​pe​lha​do.
Du​r an​te se​gun​dos, ou ho​r as, Dom fi​c ou pa​r a​do, de olhos es​bu​ga​lha​dos... e viu as
ou​tras fo​to​gra​f i​a s des​pren​de​r em-se da pa​r e​de, gi​r a​r em pela sala... em or​dem,
com cal​m a, como ca​va​li​nhos de um car​r os​sel. Es​ta​va cer​c a​do de luas, umas
chei​a s, ou​tras cres​c en​tes, al​gu​m as mui​to am​pli​a ​das, ex​pon​do cra​te​r as e pla​ní​c i​-
es... Per​m a​ne​c eu imó​vel, sen​tin​do-se como o apren​diz de fei​ti​c ei​r o, ca​paz de dar
vida a uma vas​sou​r a, mas não fazê-la re​to​m ar a con​di​ç ão de vas​sou​r a.
Os​c i​la​va da sur​pre​sa ao medo, do medo ao des​lum​bra​m en​to. Não se sen​tia
ame​a ​ç a​do. Na ver​da​de, con​si​de​r a​va-se tes​te​m u​nha de um es​pe​tá​c u​lo úni​c o, ma​-
ra​vi​lho​so. Era im​pos​sí​vel ex​pli​c ar o que es​ta​va acon​te​c en​do, mas ele não ti​nha
medo, como se o ins​tin​to lhe dis​ses​se que não ha​via o que te​m er. O po​der que
dava vida a cada pôs​ter era be​nig​no.
Des​lum​bra​do, Dom olhou em vol​ta, viu as fo​tos em sua dan​ç a cal​m a, ele​-
gan​te... e riu. Foi um erro. Num se​gun​do, tudo mu​dou. Os car​ta​zes já não dan​ç a​-
vam se​r e​na​m en​te. Vo​a ​vam so​bre sua ca​be​ç a, como uma le​gi​ã o de mor​c e​gos
en​lou​que​c i​dos. Ba​ti​a m-lhe no ros​to, nos ca​be​los, no pei​to, nas cos​tas. Ain​da não
eram se​r es vi​vos, mas agi​a m como ini​m i​gos.
Dom ten​tou pro​te​ger-se com a mão, er​gueu a lan​ter​na na di​r e​ç ão do teto e
viu as fo​tos agi​tan​do as asas, gol​pe​a n​do as pa​r e​des, co​li​din​do umas con​tra as ou​-
tras. Cada vez mais as​sus​ta​do, pro​c u​r ou a por​ta, mas era di​f í​c il achar a sa​í​da na​-
que​le pan​de​m ô​nio de fo​lhas de pa​pel vo​a n​do em to​das as di​r e​ç ões. Luas ala​das,
em fú​r ia. Não ha​via por​ta ou ja​ne​la por onde es​c a​par.
O zum​bi​do au​m en​ta​va. No cor​r e​dor, nas ou​tras pe​ç as da casa, os car​ta​zes li​-
ber​ta​vam-se das co​las que os pren​di​a m, mer​gu​lha​vam no ar, ar​r as​ta​dos pela
mes​m a for​ç a in​ven​c í​vel e in​c on​tro​lá-
vel, apro​xi​m a​vam-se cia sala. A luz re​f le​tia-se no pa​pel bri​lhan​te. Os re​c or​-
tes flu​tu​a ​vam no ar, como fo​lhas ar​r as​ta​das pelo ven​to quen​te de um in​c ên​dio.
As fo​tos me​no​r es co​la​das an​tes e es​c on​di​das por vá​r i​a s ca​m a​das de no​vas fo​tos,
sol​ta​vam-se tam​bém e vo​a ​vam. Uma de​las co​lou-se aos lá​bi​os de Dom, que a
cus​piu para lon​ge, apa​vo​r a​do.
Ou​tra vez, o ins​tin​to so​prou-lhe uma idéia. Aque​le balé en​lou​que​c i​do po​de​r ia
aju​dá-lo a lem​brar-se. Não sa​bia por quê, não con​se​guia adi​vi​nhar quem es​ta​r ia
por trás da​qui​lo, mas era qua​se como ler nas fo​lhas de pa​pel que o cer​c a​vam.
Bas​ta​va dei​xar-se le​var, mer​gu​lhar fun​do na​que​le mar de luas para en​c on​trar a
res​pos​ta que bus​c a​va e re​des​c o​brir o que des​c o​bri​r a uma vez, dois ve​r ões an​tes,
na Ro​do​via 80. Era um mer​gu​lho ar​r is​c a​do, um sal​to no es​c u​r o, que o fas​c i​na​va
e amen​dron​ta​va ao mes​m o tem​po.
— Não! — gri​tou uma, duas ve​zes, co​brin​do os ou​vi​dos com as mãos, fe​-
chan​do os olhos com for​ç a. — Pa​r em! Pa​r em... Pa​rem, já! — E gri​tou mais, até
fal​tar-lhe a voz.
Como sur​giu, a ci​r an​da de fo​tos pa​r ou de re​pen​te, uma úl​ti​m a nota sus​pen​sa
em ple​na sin​f o​nia. Dom não es​pe​r a​va ser obe​de​c i​do com tan​ta pres​te​za, por​que
ain​da le​va​r ia al​gum tem​po, para des​c o​brir que era ele pró​prio o má​gi​c o da​que​le
es​pe​tá​c u​lo.
Ti​r ou as mãos da ca​be​ç a e abriu os olhos. Va​c i​lan​te, es​ten​deu o bra​ç o e apa​-
nhou um dos car​ta​zes pa​r a​dos em ple​no ar a sua fren​te. To​c ou os dois la​dos do
pa​pel. Nada de es​pe​c i​a l, nem com o pa​pel, nem com a ilus​tra​ç ão, e ain​da as​sim
lá es​ta​va, sus​pen​so.
— Como?! — per​gun​tou em voz alta, ima​gi​nan​do, tal​vez, que luas ca​pa​zes
de flu​tu​a r no quar​to tam​bém pu​des​sem fa​lar. — E por quê?
Como se fos​sem uma só, as luas des​pen​c a​r am e ca​í​r am a seus pés. Como se
o en​c an​to es​ti​ves​se que​bra​do. Sim​ples pa​péis ve​lhos e amon​to​a ​dos no chão.
As​sus​ta​do, à bei​r a de um co​lap​so, Dom cor​r eu para a por​ta. As luas con​ti​nu​-
a​vam no chão, como fo​lhas se​c as no ou​to​no. Ele pa​r ou à por​ta e, com a lan​ter​na,
exa​m i​nou o cor​r e​dor. Não so​bra​va uma úni​c a lua co​la​da. As pa​r e​des es​ta​vam
com​ple​ta​m en​te
lim​pas. Dom vol​tou ao quar​to, ajo​e ​lhou-se en​tre os re​c or​tes, cur​vou-se,
apro​xi​m ou a lan​ter​na e co​m e​ç ou a re​m e​xer nos pa​péis, com mãos trê​m u​las, à
pro​c u​r a de qual​quer ex​pli​c a​ç ão para o epi​só​dio.
Não sa​bia o que pen​sar nem o que sen​tir, por​que ja​m ais lhe ocor​r e​r a nada
pa​r e​c i​do. Qua​se riu, mas an​tes do pri​m ei​r o es​bo​ç o de riso sen​tiu medo. O mes​-
mo medo frio de sem​pre. Sa​bia que es​ti​ve​r a di​a n​te de algo ter​r í​vel, di​a n​te do
mal... o mal além de qual​quer pa​la​vra. O mal em si. Ao mes​m o tem​po, sa​bia
que tes​te​m u​nha​r a um mi​la​gre que tan​gen​c i​a ​va o bem mais puro. O bem e o mal.
Tal​vez os dois, li​ga​dos na mes​m a en​ti​da​de. Tal​vez ou​tra coi​sa, que não era bem
nem mal, ape​nas... ou​tra coi​sa, que exis​tia além dos li​m i​tes das pa​la​vras.
Ou​tra cer​te​za co​m e​ç a​va a bro​tar: o que quer que acon​te​c e​r a no ve​r ão re​tra​-
sa​do, era mil ve​zes mais ina​c re​di​tá​vel do que um ser hu​m a​no po​de​r ia ima​gi​nar.
Ain​da es​ta​va me​xen​do nos re​c or​tes, quan​do per​c e​beu os si​nais nas pal​m as
das mãos. Dois anéis aver​m e​lha​dos, um em cada pal​m a. Dois anéis de pele in​-
cha​da. Dois anéis per​f ei​tos, como que ris​c a​dos a com​pas​so.
En​quan​to Dom olha​va, bo​qui​a ​ber​to, os anéis su​m i​r am.
Era ter​ç a-fei​r a, dia 7 de ja​nei​r o.

6. CHI​CA​G O, IL​LI​NOIS

O pa​dre Ste​f an Wy ​c a​sik dor​m ia em seu quar​to, no se​gun​do an​dar da casa


pa​r o​qui​a l da Igre​j a de San​ta Ber​nar​det​te, quan​do acor​dou de re​pen​te, ou​vin​do
ba​ti​das de tam​bor. Ou ba​ti​das de um enor​m e co​r a​ç ão, às quais al​guém hou​ves​se
acres​c en​ta​do um ter​c ei​r o tem​po: tum-tum-tum... tum-tum-tum...
Ain​da semi-ador​m e​c i​do, es​ten​deu o bra​ç o, acen​deu a lâm​pa​da de ca​be​c ei​-
ra, ofus​c ou-se com a luz e es​pi​ou o re​ló​gio. Eram duas ho​r as da ma​dru​ga​da,
quin​ta-fei​r a, ho​r á​r io mui​to im​pro​vá​vel para um des​f i​le mi​li​tar.
Tum-tum-tum... tum-tum-tum...
A cada três ba​ti​das, uma pau​sa de três se​gun​dos... A ca​dên​c ia per​f ei​ta e imu​-
tá​vel, sem​pre re​pe​ti​da, lem​bra​va um pis​tão de gi​gan​tes​c o mo​tor. O pa​dre Wy ​c a​-
zik afas​tou as co​ber​tas e, mes​m o des​c al​ç o, foi até a ja​ne​la. Es​pi​ou o pá​tio que se​-
pa​r a​va a igre​j a da casa pa​r o​qui​a l e viu ape​nas as ár​vo​r es de ga​lhos nus, co​ber​tas
de neve, ilu​m i​na​das pela lâm​pa​da aci​m a da por​ta da sa​c ris​tia.
As ba​ti​das con​ti​nu​a ​vam, mais al​tas, e a pau​sa era mais bre​ve, tal​vez de dois
se​gun​dos. O ve​lho pá​r o​c o ves​tiu um rou​pão so​bre o pi​j a​m a. As ba​ti​das, cada vez
mais for​tes, co​m e​ç a​vam a as​sus​tá-lo. A cada pan​c a​da, as pa​r e​des es​tre​m e​c i​a m
e a por​ta vi​bra​va nos ba​ten​tes.
. Cor​r eu para o hall do an​dar su​pe​r i​or, ta​te​ou no es​c u​r o à pro​c u​r a do in​ter​-
rup​tor e, afi​nal, con​se​guiu acen​der a luz. Do ou​tro lado, à di​r ei​ta, ou​tra por​ta
abriu-se e apa​r e​c eu o pa​dre Mi​c ha​e l Ger​r a​no, tam​bém cura da igre​j a, lu​tan​do
com uma das man​gas do rou​pão.
— O que é isso? — per​gun​tou
— Não sei.
A ba​ti​da se​guin​te foi duas ve​zes mais for​te que as an​te​r i​o​r es, e a casa in​tei​r a
vi​brou, como se es​ti​ves​se sen​do ata​c a​da por três gi​gan​tes​c os mar​te​los. A luz pis​-
cou. Ago​r a, a pau​sa en​tre duas sé​r i​e s de ba​ti​das era de ape​nas um se​gun​do, e a
cada nova pan​c a​da as lu​zes pis​c a​vam e o chão es​tre​m e​c ia.
Os dois sa​c er​do​tes per​c e​be​r am que o ru​í​do vi​nha do quar​to de Bren​dan Cro​-
nin. E cor​r e​r am para lá. Ina​c re​di​tá​vel... Bren​dan dor​m ia a sono sol​to. Ape​sar dos
es​tron​dos que lem​bra​vam a Ste​f an o dis​pa​r o de mor​tei​r os que ou​vi​r a na guer​r a
do Vi​e t​nã, Bren​dan Cro​nin con​ti​nu​va mer​gu​lha​do no sono dos jus​tos. Na ver​da​-
de, ape​sar da pe​num​bra, era pos​sí​vel per​c e​ber que es​ta​va sor​r in​do.
As ja​ne​las ba​ti​a m. As cor​ti​nas sal​ta​vam nas ar​go​las. So​bre a pen​te​a ​dei​r a,
uma es​c o​va de ca​be​los pu​la​va para cima e para bai​xo, e al​gu​m as mo​e ​das re​ti​ni​-
am, cho​c an​do-se umas con​tra as ou​tras. O bre​vi​á ​r io des​li​za​va de um lado a ou​-
tro. Na pa​r e​de, o cru​c i​f i​xo os​c i​la​va, pen​du​r a​do ao pre​go.
O pa​dre Ger​r a​no gri​tou al​gu​m a coi​sa que Ste​f an não pôde ou​vir, por​que já
não ha​via pau​sa en​tre as ba​ti​das. A cada nova sé​r ie de pan​c a​das, o ru​í​do tor​na​va-
se mais pró​xi​m o, vin​do de al​gu​m a má​qui​na des​c o​m u​nal​m en​te gran​de. Mas...
como era pos​sí​vel? O som pa​r e​c ia ema​nar ao mes​m o tem​po de to​das as di​r e​ç ões
como se a má​qui​na ti​ves​se pe​ç as es​pa​lha​das pe​las pa​r e​des da casa...
Quan​do afi​nal o bre​vi​á ​r io caiu da pen​te​a ​dei​r a e as mo​e ​das es​pa​lha​r am-se
pelo chão, o pa​dre Ger​r a​no cor​r eu para o hall fi​c ou pa​r a​do di​a n​te da por​ta, os
olhos ar​r e​ga​la​dos, pron​to para fu​gir.
Ste​f an apro​xi​m ou-se da cama, in​c li​nou-se so​bre Bren​dan e cha​m ou-o. Não
con​se​guiu fazê-lo acor​dar. En​tão, agar​r ou-o pe​los om​bros e sa​c u​diu-o com for​ç a.
Bren​dan abriu os olhos. E o ru​í​do de​sa​pa​r e​c eu. O re​pen​ti​no si​lên​c io era ain​da
mais es​pan​to​so que as ba​ti​das. O pa​dre Wy ca-zik sol​tou os om​bros de Bren​dan e
olhou ao re​dor, sem acre​di​tar.
— Eu es​ta​va tão per​to... — Bren​dan mur​m u​r ou, como se ain​da so​nhas​se.
— Que pena que o se​nhor me acor​dou. Eu es​ta​va tão per​to...
O ve​lho pá​r o​c o pu​xou as co​ber​tas da cama e exa​m i​nou-lhe as mãos. Ali es​-
ta​vam os anéis aver​m e​lha​dos, um em cada pal​m a.
Não con​se​guiu afas​tar os olhos, por​que era a pri​m ei​r a vez em sua vida que
tes​te​m u​nha​va a apa​r i​ç ão dos si​nais. O que se​r ia aqui​lo?, pen​sou.
Ain​da ofe​gan​te, o pa​dre Ger​r a​no apro​xi​m ou-se e tam​bém viu os anéis.
— Que mar​c as são es​sas? — quis sa​ber.
Sem res​pon​der, Ste​f an le​van​tou a ca​be​ç a e per​gun​tou a Bren​dan:
— Que ru​í​do era aque​le? De onde vi​nha?
— Es​ta​vam me cha​m an​do — sus​pi​r ou o jo​vem, com voz so​no​len​ta e ex​c i​-
ta​da ao mes​m o tem​po. — Es​ta​vam me cha​m an​do de vol​ta.
— Quem es​ta​va cha​m an​do?
Bren​dan sen​tou-se na cama e en​c os​tou-se à ca​be​c ei​r a. Seus olhos mui​to ver​-
des re​to​m a​r am a ex​pres​são ha​bi​tu​a l.
— Tam​bém ou​vi​r am?
— Cla​r o que sim... A casa in​tei​r a vi​bra​va, boi di​ver​ti​do. () que era?
— Um cha​m a​do. Eles me cha​m a​vam... e eu ia.
— Mas quem o cha​m a​va?!
— Nao sei... Eles me cha​m a​vam de vol​ta.
— De vol​ta... p,m ondc}\
— Para a luz. A luz dou​r a​da do so​nho que lhe con​tei.
Cada vez mais sur​pre​so, pois não es​ta​va tão fa​m i​li​a ​r i​za​do
com mi​la​gres como seus dois con​f ra​des, o pa​dre Ger​r a​no per​gun​tou:
— Do que es​tão fa​lan​do? Po​dem me di​zer o que está acon​te​c en​do?
Nin​guém lhe deu aten​ç ão. Ste​f an con​ti​nu​a ​va de olhos fi​xos em Bren​dan:
— Essa luz dou​r a​da... O que era? Deus... cha​m an​do-o de vol​ta à Igre​j a, à
fé?
— Não... Era al​gu​m a coi​sa... que me cha​m a​va de vol​ta. Quem sabe da
pró​xi​m a vez eu con​si​go che​gar mais per​to e des​c o​brir o que é.
— Da pró​xi​m a vez...? Acha que o so​nho po​de​r á se re​pe​tir? Acha que vol​ta​-
rá a ser cha​m a​do?
— Ah, sim! Cla​r o que sim.
Era quin​ta-fei​r a, dia 9 de ja​nei​r o.

7. LAS VE​G AS, NE​VA​DA

Na tar​de de sex​ta-fei​r a, Jor​j a Mo​na​tel​la tra​ba​lha​va no cas​si​no, quan​do foi in​-


for​m a​da de que seu ex-ma​r i​do, Alan Ry koff, sui​c i​da​r a-se. A no​tí​c ia che​gou pelo
te​le​f o​ne. “Pi​m en​ti​nha” Car​r a​f i​e ld li​gou, e Jor​j a aten​deu na sala de jogo ta​pan​do
uma das ore​lhas para ou​vir o que a ou​tra di​zia. O fato cho​c ou-a, mas não lhe
cau​sou tris​te​za. Alan não me​r e​c ia lá​gri​m as, sem​pre fora ego​ís​ta, cru​e l, in​sen​sí​-
vel. Tal​vez ins​pi​r as​se pi​e ​da​de, não so​f ri​m en​to.
— Alan me​teu uma bala nos mi​o​los há me​nos de duas ho​r as
— con​tou-lhe “Pi​m en​ti​nha”, cheia de tato. — A casa está cheia de po​li​c i​a is.
Você tem que vir para cá.
— A po​lí​c ia pre​c i​sa de mim? — Jor​j a per​gun​tou. — E por quê?
— Nâo, não é a po​lí​c ia. Eu é que pre​c i​so que você ve​nha apa​nhar as coi​sas
dele. Que​r o lim​par a casa.
— Mas eu não que​r o as coi​sas dele.
— Você tem obri​ga​ç ão de vir bus​c ar es​sas coi​sas.
— Es​c u​te aqui — Jor​j a res​pi​r ou fun​do —, nos​sa se​pa​r a​ç ão foi di​f í​c il, e o
di​vór​c io foi amar​go. Não te​nho o me​nor in​te​r es​se em...
— Alan re​di​giu um tes​ta​m en​to há uma se​m a​na e no​m e​ou você sua exe​c u​-
to​r a tes​ta​m en​tá​r ia. Você pre​c i​sa vir por​que é seu de​ver, e por​que eu que​ro me li​-
vrar des​sas por​c a​r i​a s.
Alan mo​r a​va no apar​ta​m en​to de “Pi​m en​ti​nha” Car​r a​f i​e ld num con​do​m í​nio
lu​xuo​so, cha​m a​do O Pi​ná​c u​lo, na Ave​ni​da Fla​m in​go. Mo​nó​li​to de con​c re​to bran​-
co e ja​ne​las mar​r ons, o Pi​ná​c u​lo pa​r e​c ia ain​da mais alto do que re​a l​m en​te era,
por​que se er​guia em ple​no de​ser​to. Por isso tam​bém dava a im​pres​são de ser
um mo​nu​m en​to, o mai​or mo​nu​m en​to fu​ne​r á​r io do pla​ne​ta. Era cer​c a​do de gra​-
ma​dos ir​r i​ga​dos ar​ti​f i​c i​a l​m en​te e de can​tei​r os de flo​r es tro​c a​das to​das as se​m a​-
nas. O ven​to frio e lú​gu​bre do de​ser​to sa​c u​dia as po​bres flo​r es de es​tu​f a e co​bria
de po​e i​r a o lu​xuo​so hall de en​tra​da.
Um car​r o fu​ne​r á​r io e duas vi​a ​tu​r as da po​lí​c ia es​ta​vam pa​r a​dos jun​to à en​tra​-
da do pré​dio, mas não se via ne​nhum po​li​c i​a l. Uma jo​vem ocu​pa​va um dos so​f ás
do ves​tí​bu​lo, cem me​tros adi​a n​te da por​ta​r ia. Além dela, ha​via um por​tei​r o de
cal​ç a cin​zen​ta e pa​le​tó azul, pro​va​vel​m en​te en​c ar​r e​ga​do tam​bém da se​gu​r an​ç a.
Am​bos pa​r e​c i​a m des​lo​c a​dos na​que​le ce​ná​r io de pi​sos de már​m o​r e, lus​tres de
cris​tal, ta​pe​tes per​sas, so​f ás de ve​lu​do e pol​tro​nas de es​pal​dar alto, pro​j e​ta​do para
dar a im​pres​são de clas​se e elegân​c ia, e que não dava im​pres​são de nada.
Quan​do Jor​j a pe​diu ao por​tei​r o que a anun​c i​a s​se, a mu​lher le​van​tou-se do
sofá e apro​xi​m ou-se.
— Se​nho​r a Ry koff, sou “Pi​m en​ti​nha” Car​r a​f i​e ld. Des​c ul​pe... Vol​tou a usar
seu nome de sol​tei​r a?
— Sim. Mo​na​tel​la.
Como o pré​dio onde mo​r a​va, “Pi​m en​ti​nha” tam​bém fora pro​j e​ta​da para dar
a im​pres​são de uma elegân​c ia de Quin​ta Ave​ni​da, e os re​sul​ta​dos eram ain​da
mais de​sas​tro​sos. O ca​be​lo loi​r o, sol​to e exa​ge​r a​da​m en​te cres​po, pa​r e​c ia ape​nas
des​gre​nha​do. Mu​lhe​r es como ela, que pas​sam o dia dei​tan​do-se em mui​tas ca​-
mas, cer​ta​m en​te ado​ta​vam aque​le es​ti​lo de ca​be​lo por​que não ti​nham tem​po de
pen​te​a r-se a cada meia hora. Sua blu​sa de seda ver​m e​lha po​de​r ia até ser ele​gan​-
te se ela abo​to​a s​se al​gu​m as ca​sas e es​c on​des​se al​guns pal​m os de bus​to. A cal​ç a
com​pri​da era de bom cor​te, mas fal​ta​vam dois nú​m e​r os para dis​c re​ta​m en​te aco​-
mo​dar o vo​lu​m e do tra​sei​r o. Mes​m o o caro re​ló​gio de mos​tra​dor in​c rus​ta​do de
di​a ​m an​tes fa​r ia me​lhor efei​to se fos​se usa​do sem as pul​sei​r as e os qua​tro anéis
fais​c an​tes que lhe co​bri​a m os de​dos.
— Não con​se​gui fi​c ar no apar​ta​m en​to — con​f es​sou a moça, con​vi​dan​do
Jor​j a a sen​tar-se a seu lado. — Só en​tro lá de​pois que le​va​r em o cor​po. — Es​tre​-
me​c eu como se es​ti​ves​se com frio. — Po​de​m os con​ver​sar aqui, des​de que fa​le​-
mos em voz bai​xa. Mas, se você está pen​san​do em fa​zer uma cena de ci​ú​m e,
subo e não lhe con​to nada. O pes​so​a l não sabe de meu tra​ba​lho e faço ques​tão
ab​so​lu​ta de que con​ti​nu​e m sem sa​ber. Nun​c a tra​to de ne​gó​c i​os em casa. Faço
ques​tão de aten​der os cli​e n​tes em ho​téis ou nos es​c ri​tó​r i​os de​les.
— Não vou fa​zer cena ne​nhu​m a. Pri​m ei​r o, por​que não sou dis​so e, se​gun​-
do, por​que não me sin​to como uma in​f e​liz vi​ú​va so​f re​do​r a — Jor​j a de​c la​r ou. —
Há mui​to tem​po que Alan não sig​ni​f i​c a nada para mim. Mes​m o sa​ben​do que ele
está mor​to, não con​si​go sen​tir nada. Eu o amei há mui​tos anos, ti​ve​m os uma fi​lha
lin​da, e acho que de​ve​r ia sen​tir al​gu​m a coi​sa. Mas não sin​to. Fi​que sos​se​ga​da...
não fa​r ei ce​nas.
— Óti​m o! — Por pou​c o, “Pi​m en​ti​nha” não sal​tou e ba​teu pal​m as. — O
pes​so​a l da​qui é gen​te mui​to fina. Se ou​vi​r em fa​lar que meu na​m o​r a​do se sui​c i​-
dou, vão me tra​tar com fri​e ​za. Gen​te fina não gos​ta de sui​c í​dio. E se des​c o​bri​r em
qual​quer coi​sa so​bre
meu tra​ba​lho, en​tão... aca​bam fa​zen​do com que eu me mude. E eu nao que​-
ro sair da​qui!
Jor​j a exa​m i​nou o ge​ne​r o​so de​c o​te, os de​dos co​ber​tos de di​a ​m an​tes, a cal​ç a
co​la​da ao cor​po.
— E o que você ima​gi​na que eles pen​sam que você faz para vi​ver? — per​-
gun​tou. — Que vive de ren​das? Que é her​dei​r a de uma for​tu​na?
Sem per​c e​ber a iro​nia, a moça sor​r iu:
— E... Como você des​c o​briu? Pago as con​tas do con​do​m í​nio em di​nhei​r o
vivo, não uso che​que, e to​dos pen​sam que mi​nha fa​m í​lia tem mui​to di​nhei​r o.
Jor​j a achou me​lhor não in​f or​m ar que ri​c as her​dei​r as não cos​tu​m am pa​gar
con​tas com de​ze​nas de no​tas de cem dó​la​r es. Mu​dou de as​sun​to:
— Será que você po​de​r ia me con​tar o que hou​ve com Alan? Ele ti​nha al​-
gum pro​ble​m a? Nun​c a ima​gi​nei que fos​se ca​paz de se sui​c i​dar.
Vi​gi​a n​do o por​tei​r o para cer​ti​f i​c ar-se de que ele não po​de​r ia ou​vir, “Pi​m en​ti​-
nha” ba​lan​ç ou a ca​be​ç a e de​sa​ba​f ou:
— Mas nem eu! Nun​c a po​de​r ia ima​gi​nar... Era um ho​m em tão... vi​r il! Foi
por isso que o con​vi​dei para mo​r ar co​m i​go e to​m ar con​ta de mim. Como meu
ge​r en​te, en​ten​de? Era tão for​te... Pelo me​nos até al​guns me​ses atrás. De re​pen​te
co​m e​ç ou a agir como um... co​var​de, sei lá. Pa​r e​c ia as​sus​ta​do! Fi​c ou tão me​dro​-
so e es​qui​si​to que eu já es​ta​va pen​san​do em des​pe​di-lo e ar​r an​j ar ou​tro ge​r en​-
te. Mas nun​c a pen​sei que fos​se ca​paz de fa​zer isso co​mi​gol Ima​gi​ne... um sui​c í​dio
logo em meu apar​ta​m en​to!
— E... Há gen​te que não tem a me​nor con​si​de​r a​ç ão pe​los ou​tros... — Jor​j a
viu os olhos da ou​tra aper​ta​r em-se como os olhos de uma co​bra, mas, an​tes de
dar-lhe tem​po para re​vi​dar o gol​pe, con​ti​nuou: — Ain​da não en​ten​di bem... Alan
es​ta​va tra​ba​lhan​do como seu gi​go​lô?
— Es​c u​te aqui... — “Pi​m en​ti​nha” em​pi​nou o bus​to. — Não pre​c i​so de gi​-
go​lô por​que não sou puta. Puta vai para a cama por cin​qüen​ta dó​la​r es, tre​pa com
o pri​m ei​r o que apa​r e​c e, vive cheia de do​e n​ç as ve​né​r e​a s e mor​r e na mi​sé​r ia. Eu
tra​ba​lho para gen​te de clas​se, sou call girl fi​c ha​da nos me​lho​r es ho​téis da ci​da​de,
e só no ano pas​sa​do con​se​gui eco​no​m i​zar du​zen​tos mil dó​la​r es. Que tal? Te​nho di​-
nhei​r o apli​c a​do... Puta não in​ves​te na Bol​sa de Va​lo​r es... Não, Alan não era meu
gi​go​lô. Era meu ge​r en​te. Na ver​da​de, tra​ba​lha​va tam​bém para al​gu​m as ami​gas
mi​nhas. Con​c or​dei, por​que, no co​m e​ç o, ver​da​de seja dita, não ha​via ou​tro como
ele.
In​tri​ga​da e sur​pre​sa com a se​gu​r an​ç a da moça, Jor​j a per​gun​tou:
— Mas Alan re​c e​bia al​gum... pro la​bo​re pe​los ser​vi​ç os de “ge​r ên​c ia” que
pres​ta​va a você e suas ami​gas?
— Não... — “Pi​m en​ti​nha” sor​r iu, ra​di​a n​te com o es​f or​ç o de Jor​j a para en​-
con​trar pa​la​vras que não a ofen​des​sem. — Essa era a me​lhor par​te dos ne​gó​c i​os.
Alan ga​nha​va di​nhei​r o por cau​sa de seu fan​tás​ti​c o tino co​m er​c i​a l. Ti​nha mui​tos
con​ta​tos, ar​r an​j a​va ex​c e​len​tes en​c on​tros para nós e co​bra​va uma taxa dos cli​e n​-
tes. Nós não lhe pa​ga​va​m os nada. Tudo o que Alan que​r ia da gen​te era... sexo.
Nun​c a vi um ho​m em como ele. Era in​sa​c i​á ​vel! Nos úl​ti​m os me​ses, en​tão, era in​-
crí​vel! Foi as​sim com você, que​r i​da, en​quan​to es​ti​ve​r am ca​sa​dos?
An​tes que Jor​j a a in​ter​r om​pes​se, eno​j a​da pela vi​o​lên​c ia com que ela in​va​dia
sua pri​va​c i​da​de, a ou​tra pros​se​guiu:
— Nas úl​ti​m as se​m a​nas, por exem​plo, ele pas​sa​va dias e noi​tes com ere​-
ção... Dias e noi​tesl Até pen​sei em man​dá-lo em​bo​r a. Alan pa​r e​c ia lou​c o... Tre​-
pa​va sem pa​r ar e, quan​do não agüen​ta​va mais, li​ga​va o ví​deo e fi​c a​va ven​do fil​-
mes por​no​grá​f i​c os.
Mal​di​to Alan! Se não ti​ves​se in​ven​ta​do de no​m eá-la exe​c u​to​r a do tes​ta​m en​-
to, Jor​j a não es​ta​r ia ali, ou​vin​do aque​les hor​r o​r es... E pen​sar que ele ain​da a obri​-
ga​va a in​ven​tar uma his​tó​r ia de​c en​te para con​tar a Ma​r eie... Quan​to a “Pi​m en​ti​-
nha” Car​r a​f i​e ld, o que pen​sar? Qual​quer ho​m em, até mes​m o Alan, me​r e​c ia um
pou​c o de res​pei​to, me​r e​c ia uma ou duas lá​gri​m as da mu​lher com quem vi​ve​r a
du​r an​te me​ses. Um co​r a​ç ão de rép​til... frio... ava​r en​to...
A por​ta de um dos ele​va​do​r es abriu-se, e vá​r i​os po​li​c i​a is uni​f or​m i​za​dos sa​í​-
ram, em​pur​r an​do a maca onde ja​zia um ca​dá​ver num enor​m e saco plás​ti​c o. As
duas mu​lhe​r es le​van​ta​r am-se. En-
quan​to a maca era em​pur​r a​da para fora, o se​gun​do ele​va​dor che​gou ao tér​-
reo, tra​zen​do dois po​li​c i​a is uni​f or​m i​za​dos e al​guns in​ves​ti​ga​do​r es à pai​sa​na. Um
in​ves​ti​ga​dor apro​xi​m ou-se de “Pi​m en​ti​nha” para fa​zer-lhe al​gu​m as per​gun​tas.
Jor​j a fi​c ou pa​r a​da, olhan​do para a maca que trans​por​ta​va o cor​po de seu ex-ma​-
ri​do. Viu-a che​gar à por​ta, as ro​das ran​gen​do so​bre o piso de már​m o​r e, e apro​xi​-
mar-se do car​r o fu​ne​r á​r io, onde os po​li​c i​a is de​po​si​ta​r am o gran​de saco plás​ti​c o.
Nada sen​tia além de uma vaga im​pres​são de me​lan​c o​lia: a es​tra​nha sen​sa​ç ão do
que po​de​r ia ter sido e não foi.
Li​vre do in​ves​ti​ga​dor, “Pi​m en​ti​nha” di​r i​giu-se para um dos ele​va​do​r es, abriu
a por​ta e fez um si​nal a Jor​j a para que a se​guis​se:
— Va​m os até meu apar​ta​m en​to.
Na rua, al​guém fe​c hou a por​ta tra​sei​r a do car​r o fu​ne​r á​r io.
No ele​va​dor, em voz bai​xa, e já no enor​m e li​ving do apar​ta​m en​to, em tom
nor​m al, “Pi​m en​ti​nha” con​ti​nu​a ​va a for​ne​c er de​ta​lhes da in​ten​sa ati​vi​da​de se​xu​a l
de Alan. Já não ha​via dú​vi​das de que, pelo me​nos a par​tir de de​ter​m i​na​do mo​-
men​to, o sexo pas​sa​r a a ser seu prin​c i​pal in​te​r es​se na vida e, nos dois úl​ti​m os me​-
ses, trans​f or​m a​r a-se em ver​da​dei​r a ob​ses​são.
Jor​j a não que​r ia ou​vir mais nada, po​r ém era im​pos​sí​vel fa​zer a ou​tra ca​lar a
boca. Nas úl​ti​m as se​m a​nas, Alan de​di​c a​r a-se ex​c lu​si​va​m en​te a sexo, em​bo​r a, na
opi​ni​ã o de “Pi​m en​ti​nha” pa​r e​c es​se cada vez mais de​ses​pe​r a​do e me​nos sa​tis​f ei​-
to. Pas​sa​va ho​r as e ho​r as na cama, com ela ou com qual​quer ou​tra de suas “pa​-
tro​a s”, às ve​zes com vá​r i​a s jun​tas, ex​pe​r i​m en​tan​do todo tipo de per​ver​são. Mos​-
tra​va-se fas​c i​na​do com os mais es​tra​nhos equi​pa​m en​tos de es​ti​m u​la​ç ão eró​ti​c a:
dro​gas, apa​r e​lhos, ca​m i​sas-de-vê​nus es​pe​c i​a is, anéis para usar no pê​nis, vi​bra​do​-
res, ungüen​tos à base de co​c a​í​na, al​ge​m as...
De re​pen​te, Jor​j a não pôde mais su​por​tar; ain​da ti​nha na lem​bran​ç a a ima​-
gem do saco plás​ti​c o pu​xa​do para den​tro do car​r o fu​ne​r á​r io.
— Pare com isso! — gri​tou. — O que está que​r en​do fa​zer? Será que não
per​c e​be que Alan está mor​to?
“Pi​m en​ti​nha” deu de om​bros:
— Achei que se​r ia bom você sa​ber de tudo... por​que ele gas​tou mui​to di​-
nhei​r o nes​sas brin​c a​dei​r as. E como você vai ter que cui​dar do tes​ta​m en​to, achei
que de​via lhe con​tar tudo.
A “ex​pres​são dos úl​ti​m os de​se​j os e von​ta​des de Alan Ar​thur Ry koff”, dei​xa​-
da por ele sob a guar​da de “Pi​m en​ti​nha” Car​r a-fi​e ld, fora re​gis​tra​da num for​m u​-
lá​r io sim​ples, dis​po​ní​vel em qual​quer pa​pe​la​r ia. Jor​j a leu-a sen​ta​da numa cara
pol​tro​na de ve​lu​do azul, ao lado de uma mesa la​que​a ​da de pre​to, à luz de um mo​-
der​no aba​j ur de aço es​c o​va​do. Alan não ape​nas a no​m e​a ​va sua exe​c u​to​r a tes​ta​-
men​tá​r ia, como dei​xa​va to​dos os seus bens para Ma​r eie... uma fi​lha cuja pa​ter​ni​-
da​de che​ga​r a a pôr em dú​vi​da!
Sen​ta​da em ou​tra cara pol​tro​na, jun​to à pa​r e​de en​vi​dra​ç a​da, “Pi​m en​ti​nha”
ob​ser​va​va-a.
— Não pen​se que so​brou mui​ta coi​sa — dis​se. — Alan gas​ta​va como lou​-
co. Mas dei​xou o car​r o, al​gu​m as jói​a s...
Ao ver que o tes​ta​m en​to fora re​gis​tra​do em car​tó​r io fa​zia ape​nas qua​tro dias,
Jor​j a es​tre​m e​c eu.
— Alan tal​vez já es​ti​ves​se pen​san​do em se ma​tar quan​do fez esse tes​ta​-
men​to — mur​m u​r ou. — Se não, du​vi​do que se pre​o​c u​pas​se co​nos​c o.
— Pode ser...
— Mas você não per​c e​beu que ha​via al​gu​m a coi​sa de er​r a​do com ele?
Não viu que ele es​ta​va com pro​ble​m as?!
— Já lhe dis​se que Alan an​da​va mui​to es​tra​nho... há mais de dois me​ses.
— Deve ter pi​o​r a​do nas úl​ti​m as se​m a​nas... Quan​do ele con​tou que ha​via
fei​to um tes​ta​m en​to e lhe pe​diu para guar​dá-lo no co​f re, você não des​c on​f i​ou de
nada? Não ha​via nada de es​tra​nho nele? Al​gum ges​to, al​gu​m a coi​sa que pos​sa ter
dito... e que a fi​zes​se des​c on​f i​a r de que ele es​ta​va pen​san​do em se ma​tar?
— Não sou psi​qui​a ​tra, que​r i​da... A moça le​van​tou-se, ir​r i​ta​da. — As coi​sas
dele es​tão no quar​to. Se qui​ser, pos​so cha​m ar um des​ses hos​pi​tais de ca​r i​da​de e
man​dar le​var as rou​pas. Mas tra​te
de car​r e​gar o que lhe in​te​r es​sar... as jói​a s, os do​c u​m en​tos do car​r o... Vou
levá-la até o quar​to.
Jor​j a se​guiu-a, ten​tan​do des​c o​brir que par​c e​la de cul​pa lhe ca​be​r ía na de​gra​-
da​ç ão de Alan. O que po​de​r ía ter fei​to para aju​dá-lo? O fato de que ele ti​ves​se se
lem​bra​do de Ma​r eie, nos úl​ti​m os dias de vida, era idi​o​ta, pa​té​ti​c o, in​ú​til... mas co​-
mo​via-a. Para não cho​r ar, ten​tou pen​sar no te​le​f o​ne​m a que re​c e​be​r a pou​c o an​-
tes do Na​tal. A fri​e ​za, a ar​r ogân​c ia, o ego​ís​m o do​e n​tio de sem​pre tal​vez já es​c on​-
des​sem al​gu​m a coi​sa que ela não con​se​guiu per​c e​ber. Tal​vez, já na​que​le dia,
Alan es​ti​ves​se co​m e​ç an​do a des​c o​brir que não po​dia con​tar com mais nin​guém
no mun​do, a não ser com ela e Ma​r eie.
A meio ca​m i​nho do cor​r e​dor, “Pi​m en​ti​nha” pa​r ou e em​pur​r ou uma por​ta à
di​r ei​ta.
— Mas que mer​da! — ex​c la​m ou. — Pen​sei que a po​lí​c ia ia lim​par essa no​-
jei​r a!
Jor​j a acom​pa​nhou o olhar da ou​tra, an​tes de per​c e​ber que es​ta​vam di​a n​te do
ba​nhei​r o onde Alan se ma​ta​r a. Ha​via san​gue por to​das as pa​r e​des, do chão ao
teto: na por​ta do boxe, na pia, nas to​a ​lhas, na lata de lixo, na pri​va​da. A pa​r e​de
atrás do vaso exi​bia uma enor​m e man​c ha de san​gue seco, qual um bor​r ão do tes​-
te de Rors​c ha​c h. Como se Alan qui​ses​se trans​m i​tir uma men​sa​gem ci​f ra​da, que
só se​r ia com​preen​di​da por quem sou​bes​se o quan​to ele es​ta​va so​f ren​do.
— Alan se ma​tou com dois ti​r os — in​f or​m ou a moça, acres​c en​tan​do de​ta​-
lhes que Jor​j a pre​f e​r i​r ía não ou​vir: — O pri​m ei​r o tiro foi nos tes​tí​c u​los. Es​tra​nho,
não é? O ou​tro foi dis​pa​r a​do den​tro da boca e ar​r e​ben​tou os mi​o​los.
O ar ain​da chei​r a​va a san​gue.
— Os po​li​c i​a is po​de​r i​a m pelo me​nos ter pas​sa​do um pa​ni​nho aí... — “Pi​-
men​ti​nha” ba​lan​ç a​va a ca​be​ç a, ima​gi​nan​do tal​vez que, em lu​gar de ar​m as, os
po​li​c i​a is de​ves​sem car​r e​gar bal​des e es​f re​gões. — A fa​xi​nei​r a só vem às se​gun​-
das, e du​vi​do que quei​r a me​ter a mão nes​sa imun​dí​c ie.
Nau​se​a ​da, Jor​j a fe​c hou os olhos e re​c uou al​guns pas​sos.
— Você está bem? — a ou​tra per​gun​tou.
Sem po​der fa​lar, Jor​j a le​vou a mão aos lá​bi​os, cor​r eu para o ou​tro ba​nhei​r o,
no fun​do do cor​r e​dor, e de​bru​ç ou-se so​bre a pia.
— Ah, en​tão você ain​da gos​ta dele... — co​m en​tou “Pi​m en​ti​nha”, pos​tan​do-
se a seu lado.
— Não...
— Ora, mas cla​r o que gos​ta! Sin​to mui​to... — A moça es​ten​deu a mão de
unhas ver​m e​lhas e anéis de bri​lhan​te e to​c ou-lhe o om​bro. — Eu de​ve​r ia ter adi​-
vi​nha​do...
Jor​j a teve von​ta​de de gri​tar: “Sua puta idi​o​ta! Eu não gos​to mais dele, mas
ele era um ser hu​m a​no! Como você pode ser tão fria? O que há de er​r a​do com
você?! Será que não tem co​r a​ç ão?!” Mas não gri​tou e, afas​tan​do-se, li​m i​tou-se a
di​zer:
— Tudo bem. Onde es​tão as coi​sas de Alan? Que​r o re​sol​ver tudo e sair
logo da​qui.
A moça apon​tou-lhe uma por​ta, ao lado do ba​nhei​r o:
— Es​tão ali, nas ga​ve​tas de bai​xo da pen​te​a ​dei​r a e no lado es​quer​do do
guar​da-rou​pa. Há al​gu​m as coi​sas tam​bém no ar​m á​r io do ba​nhei​r o. — Apro​xi​-
mou-se e abriu a úl​ti​m a ga​ve​ta da pen​te​a ​dei​r a.
De re​pen​te, o quar​to co​m e​ç ou a gi​r ar. Jor​j a deu um pas​so à fren​te, para cer​-
ti​f i​c ar-se de que não es​ta​va sen​do ví​ti​m a de alu​c i​na​ç ão, e bai​xou o olhar: me​ta​de
da ga​ve​ta con​ti​nha li​vros so​bre a Lua.
— O que acon​te​c eu? — “Pi​m en​ti​nha” ar​r e​ga​lou os olhos.
Zon​za, apa​vo​r a​da, Jor​j a fe​c hou e abriu os olhos no​va​m en​te para ve​r i​f i​c ar se
o aba​j ur so​bre a pen​te​a ​dei​r a era mes​m o o que te​m ia que fos​se. Per​c e​ben​do va​-
ga​m en​te sua in​te​ç ão, “Pi​m en​ti​nha” acen​deu a lâm​pa​da den​tro do glo​bo es​bran​-
qui​ç a​do. Sim... era um glo​bo como qual​quer um des​ses glo​bos ter​r es​tres usa​dos
na es​c o​la, só que re​pro​du​zia os aci​den​tes ge​o​grá​f i​c os da Lua! Cra​te​r as, pla​ní​c i​-
es... cada um com o nome in​di​c a​do.
A luz do aba​j ur re​ve​lou, jun​to à ja​ne​la, ou​tro ob​j e​to as​sus​ta​dor: um gran​de
te​les​c ó​pio mon​ta​do so​bre um tri​pé. Um te​les​c ó​pio como tan​tos que se vêem nas
vi​tri​nes das lo​j as, mas que pa​r e​c ia re​pre​sen​tar a des​gra​ç a.
— Aí es​tão as coi​sas de Alan — dis​se “Pi​m en​ti​nha”.
— Há... há quan​to tem​po ele se in​te​r es​sa​va por as​tro​no​m ia?
— Há uns dois me​ses.
Como Ma​r eie... A me​ni​na mor​r ia de medo de mé​di​c os. Alan não con​se​guia
con​tro​lar o de​se​j o se​xu​a l. Ca​sos di​f e​r en​tes, sim, mas sem​pre a idéia de uma ob​-
ses​são alu​c i​nan​te. Ma​r eie pa​r e​c ia es​tar cu​r a​da. Alan não ti​ve​r a a mes​m a sor​te.
So​zi​nho, sem nin​guém para aju​dá-lo, aca​ba​r a “ma​tan​do” o pró​prio sexo para li​-
vrar-se de seu do​m í​nio. Uma bala nos mi​o​los... e a paz!
Jor​j a es​tre​m e​c ia, in​c a​paz de de​ter os pen​sa​m en​tos. Eram pai e fi​lha! Que
ter​r í​vel co​in​c i​dên​c ia ado​e ​c e​r em am​bos na mes​m a épo​c a... Mas, e a Lua?! Se​r ia
tam​bém uma co​in​c i​dên​c ia? Por mais de seis me​ses Alan não ti​ve​r a no​tí​c i​a s de
Ma​r eie; fa​la​r a com a fi​lha pela úl​ti​m a vez em se​tem​bro, mui​to an​tes de Ma​r eie
co​m e​ç ar a in​te​r es​sar-se pela Lua. A ob​ses​são sur​gi​r a ne​les ao mes​m o tem​po!
— Você sabe se Alan ti​nha pe​sa​de​los? — Jor​j a per​gun​tou. — Al​gum tipo
de so​nho es​tra​nho, re​la​c i​o​na​do com... a Lua?
— Como é que você adi​vi​nhou? Ele so​nha​va com a Lua, sim, mas de​pois
não con​se​guia se lem​brar de nada. Es​ses so​nhos co​m e​ç a​r am em ou​tu​bro, se bem
me lem​bro. Por quê?
— Eram pe​sa​de​los?
A moça fez um tre​j ei​to de dú​vi​da.
— Não... acho que não. As ve​zes, ele fa​la​va du​r an​te o so​nho. As ve​zes pa​-
re​c ia as​sus​ta​do. Mas em ge​r al sor​r ia.
De re​pen​te, o es​tô​m a​go pe​sa​va-lhe uma to​ne​la​da. Jor​j a olhou no​va​m en​te
para o glo​bo ace​so. O que po​de​r ia es​tar acon​te​c en​do?! O mes​m o so​nho, em duas
pes​so​a s, se​pa​r a​das por qui​lô​m e​tros de dis​tân​c ia? Se​r ia pos​sí​vel? Como? Por quê?!
— Você está bem? — “Pi​m en​ti​nha” per​gun​tou.
Se uma ob​ses​são le​va​r a Alan ao sui​c í​dio, o que acon​te​c e​r ia com Ma​r eie?
8. SÁ​B A​DO, 11 DE JA​NEI​RO
Bos​ton, Mas​sa​c hu​setts
O ser​vi​ç o fú​ne​bre em me​m ó​r ia de Pa​blo Jack​son re​a ​li​zou-se às onze ho​r as
da ma​nhã de sá​ba​do, dia 11 de ja​nei​r o, na pe​que​na ca​pe​la do ce​m i​té​r io onde se​-
ria en​ter​r a​do. O cor​po só foi li​be​r a​do pela po​lí​c ia na quin​ta-fei​r a, e os fu​ne​r ais ti​-
ve​r am que ser adi​a ​dos para cin​c o dias após a mor​te.
Ter​m i​na​da a úl​ti​m a ora​ç ão, os pre​sen​tes apro​xi​m a​r am-se da cova, no lado
da qual es​pe​r a​va o cai​xão com os res​tos de Pa​blo. A neve fora re​m o​vi​da de par​te
da área, para dar lu​gar aos mais de tre​zen​tos ami​gos que acom​pa​nha​vam o se​-
pul​ta​m en​to. Ha​via gen​te de todo tipo, rica, e po​bre, fa​m o​sa e anô​ni​m a. Ali es​ta​-
vam per​so​na​li​da​des pú​bli​c as da ci​da​de, des​c o​nhe​c i​dos ha​bi​tan​tes dos su​búr​bi​os,
má​gi​c os e ar​tis​tas.
De pé ao lado da cova, Gin​ger Weiss apoi​a ​va-se no bra​ç o de Rita Han​naby.
Des​de se​gun​da-fei​r a, pra​ti​c a​m en​te não co​m ia nem dor​m ia. Es​ta​va pá​li​da, ner​-
vo​sa e mui​to can​sa​da.
A prin​c í​pio Ge​or​ge e Rita opu​se​r am-se a sua idéia de com​pa​r e​c er aos fu​ne​-
rais, pre​o​c u​pa​dos com o que pu​des​se acon​te​c er na​que​la cir​c uns​tân​c ia par​ti​c u​lar​-
men​te do​lo​r o​sa e co​m o​ven​te. To​da​via, es​pe​r an​do que ela pu​des​se iden​ti​f i​c ar en​-
tre os pre​sen​tes o as​sas​si​no de Pa​blo, a po​lí​c ia pe​di​r a-lhe que fos​se ao en​ter​r o.
Gin​ger não con​ta​r a a ver​da​de aos po​li​c i​a is e dei​xa​r a que acre​di​tas​sem na hi​pó​te​-
se mais ób​via: as​sal​to se​gui​do de as​sas​si​na​to. Em ca​sos as​sim, dis​se​r a-lhe um dos
ins​pe​to​r es, o cri​m i​no​so às ve​zes é ar​r as​ta​do para o en​ter​r o da ví​ti​m a, obe​de​c en​do
a um im​pul​so cego e in​c on​tro​lá​vel. Gin​ger, no en​tan​to, sa​bia que o as​sas​si​no de
Pa​blo não era um cri​m i​no​so co​m um; ele ja​m ais cor​r e​r ia o ris​c o de ser pre​so,
dei​xan​do-se ar​r as​tar por qual​quer im​pul​so “cego”.
Gin​ger cho​r ou mui​to du​r an​te as ora​ç ões e, ao sair da ca​pe​la em di​r e​ç ão à
se​pul​tu​r a, sen​tiu a dor aper​tan​do-lhe o co​r a​ç ão como mão de fer​r o. Con​tu​do,
man​te​ve-se con​tro​la​da, sem que​r er cha​m ar a aten​ç ão so​bre si e trans​f or​m ar
aque​le mo​m en​to so​le​ne num es​pe​tá​c u​lo de lá​gri​m as e de​ses​pe​r o. Não es​ta​va ali
ape​nas por​que
a po​lí​c ia lhe pe​di​r a. Ti​nha ou​tra coi​sa em vis​ta, um pla​no que exi​gia con​tro​le
ab​so​lu​to, sem som​bra de pâ​ni​c o. Por​que ti​nha cer​te​za de que Ale​xan​der Ch​r is​-
toph​son, ex-em​bai​xa​dor na Grã-Bre​ta​nha, ex-se​na​dor da Re​pú​bli​c a, ex-di​r e​tor
da CIA, não dei​xa​r ia de com​pa​r e​c er ao en​ter​r o de seu ve​lho e que​r i​do ami​go, e
pre​c i​sa​va de​ses​pe​r a​da​m en​te fa​lar com ele. Pa​blo pro​c u​r a​r a-o na noi​te de Na​tal
para con​sul​tá-lo so​bre seu caso. E ou​vi​r a dele a des​c ri​ç ão mi​nu​c i​o​sa do blo​queio
de Az​r a​e l. Gin​ger ti​nha só uma per​gun​ta a fa​zer-lhe, e mui​to medo de ou​vir a
res​pos​ta. Re​c o​nhe​c e​r a-o na ca​pe​la, pois já o ti​nha vis​to mui​tas ve​zes em fo​tos
da im​pren​sa e en​tre​vis​tas da te​le​vi​são. Era um ho​m em in​c on​f un​dí​vel, alto, ma​-
gro, de ca​be​lei​r a bran​c a. Na​que​le ins​tan​te, pos​ta​va-se do ou​tro lado da se​pul​tu​r a,
jun​to ao cai​xão, como se mon​tas​se guar​da. Olha​r a-a vá​r i​a s ve​zes, mas não dera
mos​tras de co​nhe​c ê-la.
Ter​m i​na​da a ce​r i​m ô​nia, for​m a​r am-se gru​pos ao re​dor do tú​m u​lo; al​guns
que​r i​a m fa​zer uma úl​ti​m a ora​ç ão, ou​tros ape​nas se des​pe​di​a m. Ale​xan​der vi​r ou-
se e, a pas​sos rá​pi​dos, di​r i​giu-se para o es​ta​c i​o​na​m en​to.
— Pre​c i​so fa​lar com aque​le ho​m em — Gin​ger sus​sur​r ou para Rita. Vol​to
já.
Sur​pre​sa, Rita ain​da ten​tou detê-la, po​r ém Gin​ger cor​r eu e al​c an​ç ou Ch​r is​-
toph​son an​tes do es​ta​c i​o​na​m en​to. Cha​m ou-o, apre​sen​tou-se e viu-o ar​r e​ga​lar os
olhos, atô​ni​to.
— Não há nada que eu pos​sa fa​zer por você — dis​se Ch​r is​toph​son, sem lhe
dar tem​po para fa​lar.
— Por fa​vor... — ela pe​diu, to​c an​do-lhe o bra​ç o — ... nao me cul​pe pelo
que acon​te​c eu a Pa​blo...
— E por que você se pre​o​c u​pa​r ia pelo que eu pu​des​se pen​sar? Com li​c en​-
ça...
— Es​pe​r e, pelo amor de Deus.
Ch​r is​toph​son cor​r eu os olhos pe​las pes​so​a s que se dis​per​sa​vam. Pa​r e​c ia te​-
mer que o vis​sem com ela e ima​gi​nas​sem que es​ta​va aju​dan​do-a como Pa​blo a
aju​da​r a. Ba​lan​ç a​va a ca​be​ç a li​gei​r a​m en​te, de um lado para ou​tro. O mo​vi​m en​to
po​de​r ia in​di​c ar in​ten​sa
pre​o​c u​pa​ç ão, mas, na ver​da​de, era pro​vo​c a​do pelo mal de Par-kin​son.
— Se a ques​tão de suas cul​pas lhe tira o sono, sos​se​gue — dis​se por fim. —
Pa​blo co​nhe​c ia exa​ta​m en​te o ter​r e​no em que es​ta​va pi​san​do e acei​tou to​dos os
ris​c os que suas ati​tu​des pu​des​sen im​pli​c ar. Foi agen​te do pró​prio des​ti​no.
— En​tão... ele sa​bia... — Gin​ger mur​m u​r ou. — Era isso que eu pre​c i​sa​va
sa​ber.
— Pois se eu mes​m o lhe dis​se que era pe​r i​go​so! — Ch​r is​toph-son pa​r e​c ia
sur​pre​so.
— O se​nhor lhe dis​se... que era pe​ri​go​soV.
— Cla​r o! Con​si​de​r an​do as di​f i​c ul​da​des de um pro​c es​so de la​va​gem ce​r e​-
bral, pa​r e​c eu-me evi​den​te que você tes​te​m u​nha​r a al​gum acon​te​c i​m en​to ter​r i​vel​-
men​te im​por​tan​te... e pe​r i​go​so. Eu mes​m o dis​se a Pa​blo que o caso não era tra​-
ba​lho de ama​dor. E dis​se que, se eles... fos​sem quem fos​sem... des​c on​f i​a s​sem de
que Pa​blo es​ta​va aju​dan​do você a des​m on​tar o blo​queio de Az​r a​e l, am​bos cor​r e​-
ri​a m ris​c o de vida. — Ch​r is​toph​son fran​ziu as so​bran​c e​lhas, olhou-a bem nos
olhos e per​gun​tou: — Ele não lhe con​tou so​bre nos​sa con​ver​sa?
— Sim... Con​tou tudo... me​nos a pos​si​bi​li​da​de de ser as​sas​si​na​do. — Gin​ger
pas​sou a mão nos olhos, ten​tan​do con​ter as lá​gri​m as. — Não me dis​se uma pa​la​-
vra so​bre isso.
Ch​r is​toph​son ti​r ou a mão do bol​so e to​c ou-lhe o bra​ç o com ca​r i​nho:
— Nes​se caso, nin​guém po​de​r á acu​sá-la por sua mor​te.
— Mas eu sei que a cul​pa é mi​nha!
— Não, não é. — Ele abriu o ca​sa​c o, apa​nhou um len​ç o no bol​so do pa​le​tó
e ofe​r e​c eu-o a Gin​ger. — Pa​blo teve uma vida lon​ga e fe​liz, cheia de ale​gri​a s e
emo​ç ões. Sua mor​te foi dra​m á​ti​c a e vi​o​len​ta, mas rá​pi​da, o que tam​bém é uma
bên​ç ão.
— Pa​blo era tão... ma​r a​vi​lho​so...
— Era... E ago​r a co​m e​ç o a en​ten​der por que re​sol​veu fa​zer o que es​ta​va
fa​zen​do. Ele dis​se que você era uma mu​lher ma​r a​vi​lho​sa. Vejo que, como sem​-
pre, es​ta​va ab​so​lu​ta​m en​te cer​to.
Pela pri​m ei​r a vez, em dias, Gin​ger re​c o​m e​ç a​va a acre​di​tar que, tal​vez al​-
gum dia, vol​ta​r ia a sor​r ir.
— Obri​ga​da — mur​m u​r ou e, após bre​ve pau​sa, per​gun​tou bai​xi​nho, mais
para si pró​pria do que para Ale​xan​der. — E ago​r a? O que é que eu vou fa​zer?
— Não pos​so aju​dá-la — ele res​pon​deu, rá​pi​do. — Es​tou afas​ta​do dos ser​-
vi​ç os se​c re​tos há qua​se uma dé​c a​da. Já não sei o que fa​zem, quem são ou onde
tra​ba​lham. Não te​nho idéia de quem pos​sa ser res​pon​sa​bi​li​za​do pelo que fi​ze​r am
a você.
— Nem es​tou lhe pe​din​do que me aju​de. Sei que não pos​so pe​dir aju​da a
nin​guém, por​que não pos​so an​dar por aí ar​r is​c an​do a vida dos ou​tros. Mas pen​sei
que tal​vez o se​nhor ti​ves​se al​gu​m a idéia so​bre o que eu pos​sa fa​zer... para me
aju​dar a mim mes​m a.
— Vá à po​lí​c ia. Eles lá são pa​gos para aju​dar.
— Não... — Gin​ger ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. — A po​lí​c ia é len​ta de​m ais, per​de
mui​to tem​po preen​c hen​do for​m u​lá​r i​os e fa​zen​do re​la​tó​r i​os. Meus pro​ble​m as exi​-
gem so​lu​ç ões ur​gen​tes. Além do mais, não sei se po​de​r ia con​f i​a r na po​lí​c ia.
Quan​do vol​tei ao apar​ta​m en​to de Pa​blo, na se​gun​da-fei​r a, não en​c on​trei as fi​tas
de nos​sas sessões de hip​no​se e re​sol​vi não fa​lar de​las a nin​guém. Isso é cri​m e:
“omis​são vo​lun​tá​r ia de pro​vas re​le​van​tes”. Dis​se à po​lí​c ia que Pa​blo e eu éra​m os
ami​gos e que ía​m os sair para al​m o​ç ar quan​do o as​sal​tan​te che​gou. Fiz com que
acre​di​tas​sem que se tra​ta​va de um sim​ples as​sal​to. Es​tou en​lou​que​c en​do, eu sei,
mas não con​f io na po​lí​c ia.
— En​tão pro​c u​r e ou​tro má​gi​c o e peça que hip​no​ti​ze você e a faça re​gre​-
dir...
— Não. Se​r ia mui​to ar​r is​c a​do.
— E tudo que pos​so acon​se​lhar — Ch​r is​toph​son vol​tou a es​c on​der nos bol​-
sos as mãos trê​m u​las. — Sin​to mui​to.
— Não sin​ta. Obri​ga​da.
— Dou​to​r a... — con​ti​nuou ele, sus​pi​r an​do — ten​te en​ten​der mi​nha po​si​ç ão.
Es​ti​ve na guer​r a, ga​nhei me​da​lhas. Mais tar​de fiz o que pude para ser um bom
em​bai​xa​dor. Como se​na​dor e como di​r e​tor da CIA, en​f ren​tei cri​ses e hou​ve mo​-
men​tos em que
cor​r i, cons​c i​e n​te​m en​te, gra​ves ris​c os de vida. Não te​nho medo de cor​r er ris​-
cos. Mas es​tou ve​lho, com se​ten​ta e seis anos, e me sin​to ain​da mais ve​lho do que
isso. Sou um ho​m em do​e n​te, hi​per​ten​so, com pro​ble​m as car​dí​a ​c os. Além dis​so
te​nho uma es​po​sa que amo e que se al​gu​m a coi​sa me acon​te​c er, será a úni​c a
pes​soa a so​f rer. E fi​c a​r á so​zi​nha. Mi​nha mu​lher não sabe vi​ver só.
— Oh, por fa​vor! O se​nhor não me deve ex​pli​c a​ç ões. — De re​pen​te, Gin​-
ger per​c e​beu que ha​vi​a m tro​c a​do de pa​pel. An​tes, ela pe​dia que Ale​xan​der a ab​-
sol​ves​se; na​que​la mo​m en​to, ele pe​dia-lhe des​c ul​pas. Ja​c ob, seu pai, vi​via di​zen​do
que o ho​m em é ho​m em pela ca​pa​c i​da​de de per​do​a r; que duas pes​so​a s ca​pa​zes
de dar e re​c e​ber per​dão es​ta​r ão li​ga​das para sem​pre por um laço mui​to for​te.
Gin​ger lem​brou-se dis​so ao sen​tir que Ch​r is​toph​son tor​na​va mais leve sua car​ga
de cul​pas por​que ela, em tro​c a, po​dia com​preen​dê-lo e per​doá-lo.
Tal​vez Ale​xan​der sen​tis​se a mes​m a coi​sa, ape​sar de con​ti​nu​a r jus​ti​f i​c an​do-
se, já não fa​la​va como se es​ti​ves​se di​a n​te de uma ame​a ​ç a a ser afas​ta​da a qual​-
quer pre​ç o.
— Na ver​da​de, te​nho medo de me en​vol​ver em seu caso me​nos por​que me
in​te​r es​sa vi​ver mais al​gum tem​po e mais por​que sou um ve​lho co​var​de. — Sem
pa​r ar de fa​lar, ti​r ou do bol​so uma mini-agen​da e ca​ne​ta. Co​m e​ç ou a es​c re​ver, a
mão trê​m u​la. — Fiz vá​r i​a s coi​sas na vida das quais não pos​so me or​gu​lhar. Al​gu​-
mas em nome do de​ver. E ne​c es​sá​r io que exis​ta go​ver​no e é ne​c es​sá​r io que al​-
guém faça o ser​vi​ç o de es​pi​o​na​gem, mas nem um nem ou​tro são ser​vi​ç os lim​-
pos. Quan​do eu tra​ba​lha​va para o go​ver​no, não acre​di​ta​va em Deus. Nem em
céu ou in​f er​no. Ago​r a já não te​nho tan​ta cer​te​za. As ve​zes pen​so que pode ha​ver
in​f er​no... e que, de um modo ou de ou​tro, aca​ba​r e​m os pa​gan​do por nos​sos pe​c a​-
dos. E essa idéia é que me dei​xa lou​c o de medo de mor​r er.
Ar​r an​c ou a pe​que​na fo​lha da agen​da, do​brou-a e en​tre​gou-a a Gin​ger, de​-
pois de vi​r ar-se de modo que al​gum es​pi​ã o oca​si​o​nal não pu​des​se vê-lo.
— Aí está o te​le​f o​ne da loja de an​tigüi​da​des de meu ir​m ão Phi​lip,
em Greenwi​c h, Con​nec​ti​c ut. Você não deve li​gar para mi​nha casa por​que, se
al​guém nos viu aqui, com cer​te​za meu te​le​f o​ne es​ta​r á sob es​c u​ta. Não vou mo​-
ver uma pa​lha para aju​dá-la, nem que​r o me en​vol​ver com seus pro​ble​m as. Mas
te​nho anos de ex​pe​r i​ê n​c ia num ter​r i​tó​r io onde você está so​zi​nha e sem apoio.
Se de re​pen​te pre​c i​sar tro​c ar idéi​a s, pe​dir con​se​lhos, li​gue para Phi​lip. Vou fa​lar
com ele e com​bi​nar al​gum tipo de có​di​go se​c re​to para que se co​m u​ni​que ime​di​-
a​ta​m en​te co​m i​go. Sem​pre que ele me der um si​nal, li​ga​r ei de uma ca​bi​ne para a
loja, ano​ta​r ei o nú​m e​r o que você ti​ver in​di​c a​do e en​tra​r ei em con​ta​to com você
o mais de​pres​sa pos​sí​vel. Es​tou lhe ofe​r e​c en​do ape​nas al​guns anos de ex​pe​r i​ê n​-
cia em as​sun​tos sór​di​dos. Só isso.
— O se​nhor não pre​c i​sa me ofe​r e​c er nada.
— Eu sei. Boa sor​te. — Ch​r is​toph​son gi​r ou so​bre os cal​c a​nha​r es e afas​tou-
se, ar​r a​nhan​do a neve seca com as so​las das bo​tas.
Gin​ger vol​tou para jun​to da se​pul​tu​r a, onde en​c on​trou Rita, quan​do os co​vei​-
ros co​m e​ç a​r am a jo​gar ter​r a so​bre o cai​xão.
— O que acon​te​c eu? — Rita per​gun​tou.
— Con​to-lhe tudo em casa. — Ar​r an​c ou uma rosa de uma das co​r o​a s que
se​r i​a m co​lo​c a​das no tú​m u​lo, bei​j ou-a e lan​ç ou-a so​bre o ataú​de. — Alav ha-sho​-
len. Que seu sono seja bre​ve an​tes de des​per​tar para um mun​do me​lhor. Ba​ru​c h
ha-Shem.
Ao afas​tar-se, acom​pa​nhan​do os pas​sos de Rita, ain​da ou​via o ru​í​do seco dos
tor​r ões de ter​r a cain​do so​bre a ma​dei​r a do cai​xão.
Elko County, Ne​v a​da
Na quin​ta-fei​r a, de​c la​r an​do-se sa​tis​f ei​to com os pro​gres​sos do tra​ta​m en​to, o
dr. Fon​te​lai​ne deu alta a Er​nie Block.
— Foi a cura mais rá​pi​da que já vi — afir​m ou. — Os lo​bos-do-mar são
mais for​tes que o co​m um dos mor​tais.
No sá​ba​do, onze de ja​nei​r o, ape​nas qua​tro se​m a​nas de​pois de te​r em che​ga​do
a Milwaukee, Er​nie e Fay e vol​ta​r am para casa. Vo​a ​r am até Reno e lá to​m a​r am
ou​tro avi​ã o, de uma li​nha es​ta​du​a l, para Elko. As onze e meia da ma​nhã es​ta​vam
no ae​r o​por​to da pe​que​na ci​da​de, onde Sandy Sar​ver os es​pe​r a​va. Ace​nan​do-lhes
do pe​que​no ter​m i​nal de de​sem​bar​que, sob o sol pá​li​do da ma​nhã de in​ver​no,
ela pa​r e​c ia ou​tra mu​lher. Er​guia a ca​be​ç a com se​gu​r an​ç a e, pela pri​m ei​r a vez
des​de que che​ga​r a ao mo​tel, pin​ta​r a os olhos e os lá​bi​os. Já não roía as unhas, e
seus ca​be​los, em ge​r al sem vida, bri​lha​vam ao sol. Quan​do Fay e e Er​nie a elo​gi​-
a​r am pela mu​dan​ç a, Sandy co​r ou como uma ado​les​c en​te. Dis​se que nada da​qui​-
lo ti​nha im​por​tân​c ia, mas deu si​nais de es​tar ma​r a​vi​lha​da.
Não mu​da​r a ape​nas na apa​r ên​c ia. Er​nie não se lem​bra​va de al​gum dia tê-la
ou​vi​do di​zer mais que meia dú​zia de pa​la​vras, em voz qua​se inau​dí​vel e de olhos
bai​xos. Ago​r a, an​dan​do pelo es​ta​c i​o​na​m en​to em di​r e​ç ão ao car​r o, ela não pa​r a​-
va de ta​ga​r e​lar e de per​gun​tar so​bre Lucy, Frank e as cri​a n​ç as. Nada sa​bia so​bre
a fo​bia de Er​nie e acre​di​ta​va que o ca​sal se de​m o​r a​r a em Milwaukee só para fi​-
car mais tem​po com os ne​tos.
Sem​pre fa​lan​do, co​lo​c ou a ba​ga​gem no car​r o, aco​m o​dou-se ao vo​lan​te e ru​-
mou para a Ro​do​via 80. Di​r i​gia com uma se​gu​r an​ç a ja​m ais re​ve​la​da e pa​r e​c ia
trans​pi​r ar ale​gria por to​dos os po​r os. Di​a n​te da nova mu​dan​ç a, Fay e e Er​nie tro​-
ca​r am olha​r es sur​pre​sos e sor​r i​sos de ge​nu​í​na sa​tis​f a​ç ão.
De re​pen​te, acon​te​c eu uma coi​sa es​tra​nha. A me​nos de um qui​lô​m e​tro do
mo​tel, Er​nie es​que​c eu-se da me​ta​m or​f o​se de Sandy, to​m a​do ou​tra vez pela sen​-
sa​ç ão que ti​ve​r a na noi​te de 10 de de​zem​bro, quan​do vol​ta​va de Elko com as
com​pras que Fay e en​c o​m en​da​r a: a sen​sa​ç ão de que aque​le lu​gar o cha​ma​v a. A
sen​sa​ç ão de que já es​ti​ve​r a ali e, exa​ta​m en​te ali, al​gu​m a coi​sa ocor​r e​r a.
Como da ou​tra vez, o lu​gar o atra​ía como um ta​lis​m ã que, num so​nho, ti​ves​se o
po​der de ar​r as​tá-lo em di​r e​ç ão ao des​c o​nhe​c i​do.
Mau si​nal. Sem ne​nhu​m a ra​zão ob​j e​ti​va, sen​tia que a atra​ç ão que aque​le lo​-
cal exer​c ia so​bre ele re​la​c i​o​na​va-se, de al​gum modo, com seus pro​ble​m as de
medo do es​c u​r o. Como o mé​di​c o lhe dis​se​r a que es​ta​va cu​r a​do da nic​to​f o​bia, se​-
ria ra​zo​á ​vel ima​gi​nar que os ou​tros sin​to​m as tam​bém de​sa​pa​r e​c es​sem. Mau si​-
nal. Er​nie não po​dia nem pen​sar na pos​si​bi​li​da​de de uma re​c a​í​da.
Fay e con​ver​sa​va com Sandy, con​tan​do-lhe so​bre as cri​a n​ç as e
os pre​sen​tes de Na​tal. Er​nie, po​r ém, já não a ou​via. Sen​tia-se pos​su​í​do por
es​tra​nho en​tu​si​a s​m o mís​ti​c o, como se es​ti​ves​se pres​tes a pre​sen​c i​a r algo fan​tás​ti​-
co, enor​m e, de trans​c en​den​tal im​por​tân​c ia. Algo que o en​c hia de medo.
Su​bi​ta​m en​te Sandy di​m i​nuiu a ve​lo​c i​da​de para qua​r en​ta qui​lô​m e​tros por
hora, me​nos da me​ta​de da mé​dia que man​ti​ve​r a até ali. Sur​pre​so, Er​nie vol​tou-se
para per​gun​tar-lhe por que ia tão de​va​gar, po​r ém, an​tes que abris​se a boca, ela
vol​tou a pi​sar fun​do no ace​le​r a​dor e riu alto, ou​tra vez aten​ta ao que Fay e lhe
con​ta​va. Uma ex​pres​são mui​to es​tra​nha es​tam​pa​r a-se em seu ros​to na​que​le bre​-
ve es​pa​ç o de tem​po, e Er​nie cap​tou-a. Como era pos​sí​vel que Sandy e ele ex​pe​-
ri​m en​tas​sem a mes​m a fas​c i​na​ç ão ir​r a​c i​o​nal e in​c om​preen​sí​vel por um pe​da​ç o
de ter​r a co​m um, em tudo idên​ti​c o à pai​sa​gem que os cer​c a​va?
— E óti​m o es​tar de vol​ta... — Fay e sor​r iu, quan​do o car​r o en​trou à es​quer​da,
sain​do da ro​do​via em di​r e​ç ão ao es​ta​c i​o​na​m en​to do mo​tel.
Er​nie con​ti​nu​a ​va de olhos fi​xos no ros​to de Sandy, à pro​c u​r a de al​gum si​nal
in​di​c a​ti​vo de que o tal lu​gar tam​bém a atra​ía. Mas a moça não pa​r e​c ia nem as​-
sus​ta​da nem an​si​o​sa, e sor​r ia. Ele de​via ter-se en​ga​na​do: Sandy di​m i​nui​r a a mar​-
cha por aca​so.
Quan​to mais se apro​xi​m a​vam da en​tra​da do mo​tel, mais Er​nie se an​gus​ti​a ​va.
Sen​tia ar​r e​pi​os na es​pi​nha, go​tas de suor ge​la​do cor​r i​a m-lhe pe​las cos​tas. Es​pi​ou
o re​ló​gio, não por​que qui​ses​se ver as ho​r as, mas por​que pre​c i​sa​v a sa​ber quan​to
tem​po lhe res​ta​va an​tes do anoi​te​c er: pou​c o mais de cin​c o ho​r as.
E se o pro​ble​m a fos​se ou​tro? Se não fos​se um sim​ples caso de medo do es​c u​-
ro? Se exis​tis​se al​gum tipo es​pe​c i​a l de es​c u​r i​dão ca​paz de en​lou​que​c ê-lo? E se ti​-
ves​se con​se​gui​do ven​c er a fo​bia em Milwaukee, por que não era a noi​te de lá que
o as​sus​ta​va? Se ti​v es​se medo, ape​nas, das noi​tes do de​ser​to de Ne​v a​da? Exi​si​ti​r i​-
am fo​bi​a s as​sim, com cau​sas es​pe​c í​f i​c as e lo​c a​li​za​das? Cla​r o que não. Er​nie tor​-
nou a es​pi​a r o re​ló​gio.
Sandy es​ta​c i​o​nou o car​r o jun​to à en​tra​da do mo​tel e, quan
do Er​nie e Fay e des​c e​r am para des​c ar​r e​gar a ba​ga​gem, apro​xi​m ou-se e
abra​ç ou-os:
— E óti​m o que vo​c ês es​te​j am de vol​ta. Sen​ti mui​ta fal​ta dos dois! Ago​r a
vou aju​dar Ned, por​que já es​ta​m os atra​sa​dos para o al​m o​ç o.
Er​nie e Fay e pa​r a​r am bo​qui​a ​ber​tos, ven​do-a afas​tar-se.
— O que você ima​gi​na que pos​sa ter acon​te​c i​do aqui du​r an​te nos​sa au​sên​-
cia? — Fay e per​gun​tou.
— Não faço idéia.
— Quan​do a vi, pen​sei que Sandy es​ti​ves​se grá​vi​da. Mas não deve ser isso,
por​que ela nos te​r ia con​ta​do. E al​gu​m a ou​tra coi​sa... O quê?
Er​nie pe​gou duas das qua​tro ma​las e co​lo​c ou-as no chão. Tor​nou a es​pi​a r o
re​ló​gio: es​ta​vam cin​c o mi​nu​tos mais per​to do anoi​te​c er.
— Ora... — Fay e sus​pi​r ou. — Seja lá o que for, ela pa​r e​c e fe​liz, e eu fico
fe​liz por ela.
— Eu tam​bém. — Ti​r ou as ou​tras duas ma​las do car​r o.
— “Eu tam​bém”... — Fay e imi​tou-o — Não se faça de in​sen​sí​vel. Eu sei
que você se pre​o​c u​pa​va com Sandy tan​to quan​to com o fu​tu​r o de Lucy. E vi
mui​to bem que você per​c e​beu toda essa mu​dan​ç a... e que seu co​r a​ç ão de man​-
tei​ga der​r e​teu.
— E isso por aca​so é do​e n​ç a? — Er​nie se​guiu Fay e em di​r e​ç ão à en​tra​da
da casa, car​r e​gan​do as duas ma​las mai​o​r es.
— Deve ser... li​que​f a​ç ão car​dí​a ​c a...
Er​nie riu alto, es​que​c i​do por um mo​m en​to da an​gús​tia que cres​c ia sem​pre.
Fay e sa​bia fazê-lo rir por nada, nos mo​m en​tos em que ele mais pre​c i​sa​va des​-
con​trair. Que​r ia en​trar em casa, abra​ç á-la e levá-la para a cama. Nada me​lhor
para acal​m á-lo e in​f un​dir-lhe co​r a​gem. Pre​c i​sa​va ven​c er o medo que in​c ha​va
no pei​to como um bo​ne​c o de mola pron​to a sal​tar no pri​m ei​r o sus​to.
Fay e co​lo​c ou a bol​sa no de​grau da en​tra​da e abai​xou-se para apa​nhar a cha​-
ve. Quan​do Er​nie co​m e​ç a​r a a me​lho​r ar, de​c i​di​r am não con​tra​tar um ge​r en​te e,
sim​ples​m en​te, man​ter fe​c ha​do o mo​tel pelo tem​po em que es​ti​ves​sem fora.
Ago​r a, vol​tan​do, ti​nham mui​to
tra​ba​lho pela fren​te. Era pre​c i​so lim​par os quar​tos, are​j ar os ar​m á​r i​os, li​gar
a ca​le​f a​ç ão, ti​r ar o pó que se acu​m u​la​va so​bre os mó​veis. Mas todo o tra​ba​lho
po​de​r ia es​pe​r ar um pou​c o, até que Er​nie pos​su​ís​se a es​po​sa em sua ve​lha cama.
Fay e abriu a por​ta e en​trou, des​pre​o​c u​pa​da, fe​liz por es​tar em casa. Não
per​c e​beu que, na​que​le exa​to mo​m en​to, uma nu​vem en​c o​bria o sol bri​lhan​te do
de​ser​to. Er​nie per​deu o fô​le​go e pa​r ou, sem sa​ber o que fa​zer, os olhos ar​r e​ga​la​-
dos. Pou​c o a pou​c o, bai​xou a ca​be​ç a e con​sul​tou o re​ló​gio. De​pois, de​va​gar, vi​-
rou-se para o po​e n​te, para o lado onde o sol aca​ba​r ia es​c on​den​do-se mais cedo
ou mais tar​de.
— Vai dar tudo cer​to — mur​m u​r ou — Es​tou cu​ra​do ...
A ca​mi​nho: de Reno a Elko County
De​pois da ex​pe​r i​ê n​c ia na casa de Lo​m ack, na ter​ç a-fei​r a, com a ci​r an​da de
luas dan​ç an​do a sua vol​ta, Do​m i​nick Cor​vai​sis ain​da fi​c ou em Reno por al​guns
dias. Por oca​si​ã o da pri​m ei​r a vi​a ​gem, de​m o​r a​r a-se lá pes​qui​san​do ma​te​r i​a l para
os con​tos so​bre jo​ga​do​r es. Para man​ter o cro​no​gra​m a, pas​sou a quar​ta, a quin​-
ta e a sex​ta-fei​r as na “mai​or pe​que​na ci​da​de do mun​do”. Vi​si​tou cas​si​nos, ob​ser​-
van​do os ros​tos dos jo​ga​do​r es. Viu ca​sais jo​vens, ve​lhos apo​sen​ta​dos, be​las mu​-
lhe​r es, se​nho​r as ma​du​r as de cal​ç a jus​ta e blusões lar​gos, bron​ze​a ​dos cow​boys
chei​r an​do a es​ter​c o, fa​zen​dei​r os ri​c os e per​f u​m a​dos, se​c re​tá​r i​a s, ca​m i​nho​nei​r os,
exe​c u​ti​vos, ex-pre​si​di​á ​r i​os, ex-po​li​c i​a is. Gen​te de to​das as clas​ses so​c i​a is, atra​í​-
das pela fe​bre do jogo or​ga​ni​za​do: a in​dús​tria mais de​m o​c ra​ti​zan​te do pla​ne​ta.
Como da pri​m ei​r a vez, jo​gou pou​c o, ape​nas para sen​tir o que era um cas​si​no
da óti​c a dos que pas​sa​vam ho​r as sen​ta​dos jun​to ao pano ver​de. De​pois do de​lí​r io
dos pôs​ters vo​a ​do​r es, já não ti​nha dú​vi​das de que al​gu​m a coi​sa acon​te​c e​r a em
Reno. Ali pas​sa​r a por uma ex​pe​r i​ê n​c ia que mu​da​r a para sem​pre a sua vida, e
ali aca​ba​r ia por en​c on​trar a cha​ve que li​ber​ta​r ia sua me​m ó​r ia. Ou​via ri​sa​das,
con​ver​sas, la​m en​tos so​bre a im​pon​de​r a​bi​li​da​de do jogo e a jus​ti​ç a da sor​te, gri​tos
dos que ga​nha​vam uma for​tu​na em
pou​c os mi​nu​tos. E per​m a​ne​c ia frio e aler​ta, mis​tu​r a​do aos jo​ga​do​r es, mas
dis​tan​te de to​dos, sem​pre à pro​c u​r a de al​gum si​nal que o fi​zes​se lem​brar... um
frag​m en​to do pas​sa​do.
Não des​c o​briu nada. Te​le​f o​nou to​das as noi​tes para Parker Fai-ne, em La​gu​-
na Be​a ​c h, es​pe​r an​do que seu cor​r es​pon​den​te anô​ni​m o se ma​ni​f es​tas​se no​va​m en​-
te. Mas tam​bém não re​c e​beu um úni​c o bi​lhe​te.
A noi​te, en​quan​to o sono não vi​nha, re​m o​ía a ex​pe​r i​ê n​c ia da casa de Lo​-
mack. Que​r ia en​c on​trar uma ex​pli​c a​ç ão para os anéis aver​m e​lha​dos que apa​r e​-
ce​r am em suas mãos e de​pois su​m i​r am do mes​m o modo mis​te​r i​o​so. E não acha​-
va ex​pli​c a​ç ão plau​sí​vel.
A me​di​da que os dias pas​sa​vam, di​m i​nu​ía a ne​c es​si​da​de dos com​pri​m i​dos,
mas cres​c ia a an​si​e ​da​de que vi​nha com os pe​sa​de​los. A Lua, sem​pre a Lua. E to​-
das as noi​tes lu​ta​va com as cor​das que o pren​di​a m à cama.
No sá​ba​do, con​ti​nu​a ​va cer​to de que a ex​pli​c a​ç ão para os pe​sa​de​los e para as
cri​ses de so​nam​bu​lis​m o es​ta​va em Reno, po​r ém de​c i​diu man​ter o pla​no ini​c i​a l e
vi​a ​j ar até Mou​tain​vi​e w. Se che​gas​se lá sem des​c o​brir nada, vol​ta​r ia e fi​c a​r ia em
Reno, pelo tem​po que de​se​j as​se.
No ve​r ão re​tra​sa​do, sa​í​r a do Ho​tel Har​r ah’s às dez e meia da ma​nhã do dia 6
de ju​lho, sex​ta-fei​r a de​pois de um lan​c he rá​pi​do. Qua​se dois anos de​pois, no sá​-
ba​do 11 de ja​nei​r o, re​pro​du​ziu o mes​m o cro​no​gra​m a e às dez e qua​r en​ta che​ga​-
va à Ro​do​via 80. To​m ou o rumo do nor​des​te, em di​r e​ç ão de Win​ne​m uc​c a, a ci​-
da​de onde, em eras pas​sa​das, But​c h Cas​sidy e Sun​dan​c e Kid rou​ba​r am um ban​-
co.
A vas​ta ex​ten​são de ter​r a de​sa​bi​ta​da con​ti​nu​a ​va a mes​m a, idên​ti​c a à da​que​le
tem​po. A ro​do​via, as li​nhas de te​lé​gra​f o e os fios de ener​gia elé​tri​c a — por ve​zes
úni​c os si​nais vi​sí​veis de ci​vi​li​za​ç ão — se​gui​a m o tra​ç a​do da ve​lha tri​lha do tem​po
das di​li​gên​c i​a s. Dom via des​f i​a ​r em di​a n​te de seus olhos as in​f in​dá​veis pla​ní​c i​-
es var​r i​das pelo ven​to, os lei​tos se​c os de la​gos e rios, as es​tra​nhas es​c ul​tu​r as fei​tas
de lava so​li​di​f i​c a​da e, ao lon​ge, mui​to ao lon​ge, as mon​ta​nhas. Ao lon​go da ro​do​-
via, es​ten​dia-se o co​lo​r i​do mag-
ní​f i​c o das ter​r as cal​c á​r i​a s, do ama​r e​lo-es​c u​r o ao cin​za. Mais ao nor​te, o rio
Hum​boldt não pas​sa​va de um ris​c o es​ver​de​a ​do na pla​ní​c ie, sor​vi​do pela sede in​-
sa​c i​á ​vel da ter​r a. De lon​ge em lon​ge, jun​to às mar​gens do lei​to do rio ou de al​-
gum de seus aflu​e n​tes, sur​gia uma man​c ha ver​de de ter​r a fér​til, gra​m a e ar​vo​-
res, al​guns sal​guei​r os e chou​pos. Onde ha​via água er​guia-se um vi​la​r e​j o, e to​dos
eles pa​r e​c i​a m per​di​dos en​tre si, dis​tan​tes da ci​vi​li​za​ç ão.
Dom sen​tia-se en​c o​lher na vas​ti​dão do Oes​te ame​r i​c a​no mas a pai​sa​gem,
da​que​la vez, trans​m i​tia-lhe uma es​tra​nha im​pres​são de mis​té​r io, de in​f i​ni​tu​de,
como se es​c on​des​se algo mais... ili​m i​ta​das pos​si​bi​li​da​des. Era fá​c il acre​di​tar que
já pas​sa​r a por ali — a mais sim​ples e pura ver​da​de — e ali vi​ve​r a ex​pe​r i​ê n​c i​a s
ater​r o​r i-zan​tes, o que, com cer​te​za, não pas​sa​va de uma cri​se agu​da de auto-su​-
ges​tão.
Às duas e qua​r en​ta e cin​c o pa​r ou para abas​te​c er e co​m er um san​du​í​c he em
Win​ne​m uc​c a, ci​da​de de ape​nas cin​c o mil ha​bi​tan​tes, a mai​or que ha​via numa
área de vin​te e cin​c o mil qui​lô​m e​tros qua​dra​dos. Ali a Ro​do​via 80 do​bra​va para o
les​te e co​m e​ç a​va a su​bir, no rumo de Gre​a t Ba​sin. Um anel de mon​ta​nhas fe​c ha​-
va o ho​r i​zon​te em to​das as di​r e​ç ões, al​gu​m as com as en​c os​tas co​ber​tas de neve.
Ain​da se viam ar​bus​tos se​c os e tu​f os de gra​m a so​pra​dos pelo ven​to, mas o de​ser​-
to fi​c a​va para trás.
Quan​do o sol se es​c on​dia por trás das mon​ta​nhas, Dom saiu da es​tra​da e ma​-
no​brou para che​gar ao es​ta​c i​o​na​m en​to do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. Ao sair do car​r o
o ven​to so​pra​va frio. O de​ser​to, de al​gum modo, fi​ze​r a-o ima​gi​nar que o ve​r ão
se​r ia eter​no. Po​r ém não es​ta​va no de​ser​to, e nas re​gi​ões mais al​tas já era in​ver​-
no. Vol​tou ao car​r o, apa​nhou um su​é ​ter e ves​tiu-o. Pas​sou a mão pe​los ca​be​los,
vol​tou-se para ca​m i​nhar até a por​ta​r ia do mo​tel... e pa​r ou de re​pen​te, as​sus​ta​do.
Ha​via che​ga​do ao fim da vi​a ​gem. De al​gum modo inex​pli​c á​vel sa​bia que o
lu​gar era aque​le. Fora ali que uma coi​sa mui​to es​tra​nha acon​te​c e​r a.
No ve​r ão re​tra​sa​do, pa​r a​r a na​que​le es​ta​c i​o​na​m en​to na noi​te de 6 de ju​lho,
sex​ta-fei​r a. Gos​ta​r a do lo​c al, iso​la​do, per​di​do num ce-
ná​r io ma​j es​to​so e im​po​nen​te. Cer​to de que es​c re​ve​r ia so​bre aque​la pai​sa​-
gem, re​sol​ve​r a fi​c ar no mo​tel por dois ou três dias, para co​nhe​c er me​lhor os ar​-
re​do​r es e cri​a r uma boa his​tó​r ia. Na ter​ç a-fei​r a, dia 10 de ju​lho, se​gui​r a para
Moun​tain​vi​e w, Utah.
Dom olhou len​ta​m en​te ao re​dor, ob​ser​van​do os de​ta​lhes da pai​sa​gem que
mer​gu​lha​va na es​c u​r i​dão, ten​tan​do lem​brar-se. A me​di​da que olha​va, con​ven​c ia-
se de que ali ocor​r e​r a o fato mais im​por​tan​te de sua vida. O fato que o trans​f or​-
ma​r a para sem​pre e que nun​c a vol​ta​r ia a re​pe​tir-se.
Ao lado do mo​tel, viu o res​tau​r an​te com as am​plas ja​ne​las en-vi​dra​ç a​das e
as le​tras em neon azul; no am​plo es​ta​c i​o​na​m en​to ha​via*três ca​m i​nhões. Lam​bris
de me​tal, pin​ta​dos de ver​de-es​c u​r o, re​ves​ti​a m a pa​r e​de la​te​r al do mo​tel, pro​te​-
gen​do-o do ven​to. Na ala à es​quer​da si​tu​a ​vam-se os dez quar​tos de por​tas ver​des.
En​tre as duas alas, er​guia-se uma cons​r u​ç ão de dois an​da​r es; no tér​r eo, a re​c ep​-
ção do mo​tel; no piso su​pe​r i​or, a re​si​dên​c ia dos pro​pri​e ​tá​r i​os. A ala les​te, em for​-
ma de “L”, abri​ga​va seis quar​tos no se​tor mai​or e qua​tro no me​nor.
Dom vol​tou as cos​tas para o mo​tel e en​c a​r ou a pai​sa​gem es​c u​r a pon​ti​lha​da
pe​los fa​r óis dos ve​í​c u​los que per​c or​r i​a m a Ro​do​via 80. Mais além, a vas​ti​dão in​-
ter​m i​ná​vel da pla​ní​c ie es​ten​dia-se em di​r e​ç ão ao sul. No céu, mui​to ao lon​ge,
jun​to ao ho​r i​zon​te, ain​da bri​lha​va uma nes​ga ala​r an​j a​da.
Cada vez mais as​sus​ta​do, Dom con​tor​nou o mo​tel, e en​c on​trou-se no​va​m en​te
di​a n​te do res​tau​r an​te. Di​r i​giu-se para a en​tra​da, ar​r as​ta​do por um po​der que só
co​nhe​c ia de so​nhos. Quan​do to​c ou a ma​ç a​ne​ta, o co​r a​ç ão pa​r e​c ia pres​tes a sal​-
tar-lhe do pei​to. Ti​nha que fu​girl Com gran​de es​f or​ç o, po​r ém, con​tro​lou-se, abriu
a por​ta e en​trou.
O lu​gar era am​plo, lim​po e ilu​m i​na​do. Os mais de​li​c i​o​sos aro​m as pai​r a​vam
no ar: ce​bo​las, ba​ta​tas fri​tas, pre​sun​to, car​ne. Sem​pre com medo, mas de​c i​di​do a
lu​tar en​quan​to pu​des​se, ele se apro​xi​m ou de uma das me​sas. No cen​tro da to​a ​lha,
viu um açu-ca​r ei​r o, vi​dros de cat​c hup, mos​tar​da e mo​lho de pi​m en​ta, um sa​lei​r o
e um cin​zei​r o. Apa​nhou o sa​lei​r o, sem sa​ber por quê. E de
re​pen​te lem​brou-se de que ocu​pa​r a aque​la mes​m a mesa no ve​r ão re​tra​sa​do,
quan​do che​ga​r a ao mo​tel. Dei​xa​r a cair um pou​c o de sal so​bre a mesa e, qua​se
sem per​c e​ber, jo​ga​r a uma pi​ta​da para trás, por cima do om​bro. E o sal atin​gi​r a o
ros​to da moça que se apro​xi​m a​va às suas cos​tas.
O que po​de​r ia ha​ver de im​por​tan​te em tão ba​na​nal in​c i​den​te? Dom não sa​-
bia, mas ti​nha cer​te​za de que exis​tia uma res​pos​ta. Tal​vez... por cau​sa da moça?
Quem era ela? Uma des​c o​nhe​c i​da. Por mais que ten​tas​se, não con​se​guia lem​-
brar-se de sua apa​r ên​c ia.
O co​r a​ç ão ain​da ba​tia des​c om​pas​sa​do, ace​le​r a​do, como se lhe dis​ses​se que
es​ta​va às por​tas de uma des​c o​ber​ta de​vas​ta​do​r a. Ele dei​xou o sa​lei​r o so​bre a
mesa e, de olhos ar​r e​ga​la​dos, sem en​ten​der a emo​ç ão que mal o dei​xa​va res​pi​-
rar, ca​m i​nhou até a ja​ne​la en​vi​dra​ç a​da. Na​que​la mesa sen​ta​r a-se a moça.
— De​se​j a al​gu​m a coi​sa?
Dom viu a gar​ç o​ne​te apro​xi​m ar-se, no​tou seu su​é ​ter ama​r e​lo, per​c e​beu que
ela lhe di​zia al​gu​m a coi​sa, mas não con​se​guiu res​pon​der. A cada se​gun​do, au​-
men​ta​va a cer​te​za de que po​de​r ia re​c or​dar-se. Ain​da não sa​bia que lem​bran​ç a
es​ta​va ali, ao al​c an​c e da mão, po​r ém sen​tia que a hora se apro​xi​m a​va. A moça
sen​ta​r a-se àque​la mesa... e era lin​da... ilu​m i​na​da pela luz de ouro ve​lho do sol po​-
en​te.
— O se​nhor está bem?
A moça pe​di​r a o jan​tar, e Dom con​ti​nu​a ​r a co​m en​do. O sol es​c on​de​r a-se, a
noi​te ca​í​r a, e... Não\
A lem​bran​ç a es​te​ve a um pal​m o da tona, mui​to pró​xi​m a da su​per​f í​c ie, qua​se
con​se​guiu rom​per a mem​bra​na que a se​pa​r a​va da luz, che​gou qua​se à cons​c i​ê n​-
cia, fu​giu no​va​m en​te para as pro​f un​de​zas ne​gras onde vi​via, acos​sa​da pelo
medo. Como se Dom es​ti​ves​se a um pas​so de en​c a​r ar a face mons​truo​sa do se​-
nhor dos in​f er​nos, já não que​r ia lem​brar-se!
Vi​r ou-se, deu as cos​tas à gar​ç o​ne​te e cor​r eu. Sa​bia que ha​via gen​te olhan​do,
sa​bia que es​ta​va fa​zen​do pa​pel de lou​c o, mas nada im​por​ta​va. Ti​nha que fu​gir...
para fora, para lon​ge. Pas​sou pe-
Ia por​ta, em​pur​r ou-a com for​ç a e viu-se de vol​ta ao es​ta​c i​o​na​m en​to, fren​te
a fren​te com o céu es​c u​r o, mul​ti​c or qua​se ne​gro.
O medo do pas​sa​do. O medo do fu​tu​r o. O medo, prin​c i​pal​m en​te, de não sa​-
ber por que es​ta​v a com medo.
Chi​c a​go, Il​li​nois
Bren​dan Cro​nin adi​ou o que ti​nha a di​zer para de​pois do jan​tar, quan​do o pa​-
dre Wy ​c a​zik, de bar​r i​ga cheia e ante a pers​pec​ti​va de um cá​li​c e de co​nha​que,
atin​gia o pon​to cul​m i​nan​te de bom hu​m or di​á ​r io. Até en​tão, de​di​c ou-se a co​m er:
re​pe​tiu as ba​ta​tas, a va​gem e o pre​sun​to, per​m i​tin​do-se até uma fa​tia ex​tra de
pão fei​to em casa.
Vol​ta​r a-lhe o ape​ti​te, mas a fé con​ti​nu​a ​va dis​tan​te. De iní​c io, de​pois de des​-
co​brir que nao acre​di​ta​va em Deus, vi​ve​r a dias do mais ne​gro de​ses​pe​r o, o co​r a​-
ção como um va​zio gran​de e pe​sa​do den​tro do pei​to. Ul​ti​m a​m en​te, po​r ém, não
se sen​tia de​ses​pe​r a​do, e o va​zio, ape​sar de ain​da exis​tir, pe​sa​va cada vez me​nos.
Co​m e​ç a​va a des​c o​brir que al​gum dia vol​ta​r ia a vi​ver uma nova vida, cheia de
sig​ni​f i​c a​do e va​lor, sem nada a ver com a Igre​j a. Para Bren​dan Cro​nin, cu​j os
pra​ze​r es tem​po​r ais ja​m ais ha​vi​a m su​pe​r a​do a ale​gria es​pi​r i​tu​a l da San​ta Mis​sa,
sim​ples pos​si​bi​li​da​de de uma vida fora da igre​j a era mais do que uma au​tên​ti​c a
re​vo​lu​ç ão.
O fato de que, des​de o Na​tal, ti​ves​se evo​lu​í​do do ate​ís​m o para um ag​nos​ti​c is​-
mo qua​li​f i​c a​do tal​vez ex​pli​c as​se o fim do de​ses​pe​r o. Des​de há al​gum tem​po exa​-
mi​na​va a pos​si​bi​li​da​de de exis​tir um po​der su​pe​r i​or, di​f e​r en​te de Deus e igual​-
men​te so​bre​na​tu​r al.
Ter​m i​na​da a re​f ei​ç ão, o pa​dre Ger​r a​no vol​tou ao quar​to, para re​to​m ar a lei​-
tu​r a do úl​ti​m o li​vro de Ja​m es Blay ​lock, cu​j as his​tó​r i​a s fan​tás​ti​c as, com per​so​na​-
gens ain​da mais fan​tás​ti​c as, agra​da​vam tam​bém a Bren​dan, mas pa​r e​c i​a m in​su​-
por​ta​vel​m en​te ina​c re​di​tá​veis ao re​a ​lis​m o in​des​tru​tí​vel do pa​dre Wy ​c a​zik.
— Blay ​lock es​c re​ve bem, mas, quan​do aca​bo de ler um de seus con​tos, fico
com a sen​sa​ç ão de que nada do que exis​te é o que pa​r e​c e ser... e de​tes​to essa
sen​sa​ç ão — res​m un​gou o ve​lho cura.
— É pos​sí​vel que nada do que exis​te seja exa​ta​m en​te o que pa​r e​c e ser... —
co​m en​tou Bren​dan, se​guin​do-o até o es​c ri​tó​r io.
Ste​f an ba​lan​ç ou a ca​be​ç a sem dei​xar-se co​ven​c er e por um mo​m en​to, à luz
da es​c a​da, seu ca​be​lo pra​te​a ​do bri​lhou como aço.
— Nada dis​so. Quan​do leio para me dis​trair, pre​f i​r o li​vros que me fa​ç am
mer​gu​lhar fun​do, de ca​be​ç a, na re​a​li​da​de da vida.
Bren​dan sol​tou uma gar​ga​lha​da e re​pli​c ou:
— Se exis​te céu, eu gos​ta​r ia de che​gar lá com o se​nhor só para vê-lo en​-
con​trar-se com Walt Dis​ney. Se​r ia ma​r a​vi​lho​so as​sis​tir a uma dis​c us​são en​tre os
dois... Dis​ney de​f en​den​do o di​r ei​to hu​m a​no à fan​ta​sia, e o se​nhor ten​tan​do con​-
ven​c ê-lo de que me​lhor se​r ia pro​du​zir de​se​nhos ani​m a​dos com per​so​na​gens de
Dos​toi​é vs-ki, em vez de per​der tem​po com Mickey Mou​se.
O pá​r o​c o sor​r iu, ser​viu dois cá​li​c es de co​nha​que, aco​m o​dou-se numa pol​tro​-
na e fez si​nal para que Bren​dan tam​bém se sen​tas​se.
Era a hora per​f ei​ta para con​tar-lhe sua de​c i​são.
— Se o se​nhor não ti​ver nada a opor — co​m e​ç ou —, gos​ta​r ia de fa​zer uma
vi​a ​gem. Po​de​r ia par​tir na se​gun​da-fei​r a. Pre​c i​so ir a Ne​va​da.
— Ne​v a​da ? — Ste​f an pro​nun​c i​ou o nome do Es​ta​do como se fos​se o de al​-
gum po​vo​a ​do per​di​do na sel​va. — Por que Ne​va​da?
— E para lá que me cha​m am. On​tem à noi​te, o so​nho re​pe​tiu-se. Vi ape​nas
uma luz mui​to bri​lhan​te, mas adi​vi​nhei que o lu​gar é Elko County, Ne​va​da. Sei
que pre​c i​so vol​tar lá para des​c o​brir o que cu​r ou Emmy e res​sus​c i​tou Win​ton.
— Vol​tar? Mas você já es​te​ve lá?
— No ve​r ão re​tra​sa​do. An​tes de vir para San​ta Ber​nar​det​te.
De Roma, ao dei​xar o pos​to ao lado de Mon​se​nhor Or​bel​la,
Bren​dan fora para San Fran​c is​c o en​tre​gar uma en​c o​m en​da de seu ori​e n​ta​-
dor. Pas​sa​r a duas se​m a​nas com o bis​po John San​te​f i​o​r e, ve​lho ami​go de Or​bel​la.
O bis​po tra​ba​lha​va num li​vro so​bre a his​tó​r ia das elei​ç ões dos pa​pas; o mon​se​-
nhor en​vi​a ​r a-lhe im​por​tan​te ma​te​r i​a l de pes​qui​sa e en​c ar​r e​ga​r a Bren​dan de res​-
pon​der a qual​quer per​gun​ta que o con​f ra​de ti​ves​se. O tem​po vo​a ​r a. Fo​r am
dias de tra​ba​lho e au​tên​ti​c o pra​zer in​te​lec​tu​a l, na com​pa​nhia de John San​te​f i​-
o​r e, ho​m em de hu​m or fino e in​te​li​gen​te.
Mis​são cum​pri​da, Bren​dan de​c i​di​r a ti​r ar duas se​m a​nas de fé​r i​a s an​tes de
apre​sen​tar-se em Chi​c a​go, sua ci​da​de na​tal. Pas​sa​r a al​guns dias em Car​m el, na
pe​nín​su​la de Mon​te​r ey, alu​ga​r a um car​r o e ini​c i​a ​r a lon​ga vi​a ​gem, de um lado a
ou​tro do país.
O pa​dre Wy ​c a​zik se​gu​r ou o cá​li​c e com as duas mãos e in​c li​nou-se.
— Lem​bro-me de que você es​te​ve com o bis​po San​te​f i​o​r e, mas ha​via me
es​que​c i​do da vi​a ​gem de car​r o — de​c la​r ou. — Foi nes​sa vi​a ​gem que você pas​sou
por Elko County, Ne​va​da?
— Foi. Fi​quei hos​pe​da​do no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. Ti​nha idéia de pas​sar só
uma noi​te, mas era tão agra​dá​vel e a pai​sa​gem tão bo​ni​ta, que aca​bei me de​m o​-
ran​do um pou​c o mais. Ago​r a pre​c i​so vol​tar.
— Mas... Por quê? O que acon​te​c eu lá?
Bren​dan deu de om​bros e res​pon​deu:
— Nada. Des​c an​sei, dor​m i, li um ou dois li​vros, vi te​le​vi​são. A te​le​vi​são era
óti​m a por​que o mo​tel ti​nha an​te​na pa​r a​bó​li​c a.
O ve​lho cura re​c os​tou-se na pol​tro​na, so​bran​c e​lhas fran​zi​das.
— Es​tra​nho... — dis​se. — Por um mo​m en​to tive a im​pres​são de que sua
voz mu​dou. Pa​r e​c eu fria... como se re​pe​tis​se um dis​c ur​so de​c o​r a​do.
— Eu es​ta​va fa​lan​do so​bre o mo​tel.
— Mas... se não hou​ve nada de es​pe​c i​a l em Elko County, o que vai fa​zer lá?
O que acon​te​c e​r á quan​do che​gar?
— Não sei. Mas algo me diz que vão acon​te​c er coi​sas... ina​c re​di​tá​veis.
O pa​dre Wy ​c a​zik per​deu a pa​c i​ê n​c ia e foi di​r e​to ao as​sun​to que sem​pre lhe
in​te​r es​sa​va mais que qual​quer ou​tro:
— Você acre​di​ta que Deus... o está cha​m an​do?
— Acho que não, mas pode ser. Que​r o sair da​qui com sua per​m is​são e sua
bên​ç ão... Mas, se ti​ver que ir sem per​m is​são nem bên​ç ão... as​sim será. Pre​c i​so ir.
Es​que​c en​do-se dos há​bi​tos que cul​ti​va​va após o jan​tar, Ste​f an vi​r ou o cá​li​c e
de co​nha​que e qua​se o es​va​zi​ou de um gole só.
— Acho que você deve mes​m o ir — dis​se. — Mas não so​zi​nho.
— O se​nhor... gos​ta​r ia de vi​a ​j ar co​m i​go?
— Mes​m o que qui​ses​se, não po​de​r ia dei​xar a pa​r ó​quia. Mas tal​vez seja in​-
te​r es​san​te que você leve al​guém para tes​te​m u​nhar... o que quer que acon​te​ç a.
Um pa​dre que te​nha tido con​ta​to com mi​la​gres ou apa​r i​ç ões so​bre​na​tu​r ais.
— Re​f e​r e-se a um des​ses fa​ná​ti​c os que re​c e​bem au​to​r i​za​ç ão do car​de​a l
para an​dar por aí in​ves​ti​gan​do ima​gens de san​tas que cho​r am ou cru​c i​f i​xos que
san​gram?
Sem se al​te​r ar, o pa​dre Wy ​c a​zik fez que sim com a ca​be​ç a.
— Acer​tou em cheio. Um pa​dre que co​nhe​ç a o pro​c es​so de au​ten​ti​c a​ç ão
de apa​r i​ç ões. O mon​se​nhor Jan​ney, da ar​qui​di​o​c e​se, tem mui​ta prá​ti​c a.
Bren​dan res​pi​r ou fun​do e con​c luiu que te​r ia de sa​c ri​f i​c ar a fé de seu su​pe​r i​or
para po​der vi​a ​j ar em paz.
— Não há nada de mi​la​gro​so no que acon​te​c eu co​m i​go — de​c la​r ou. —
Não fui agen​te da mão de Deus. Não é ne​c es​sá​r io dar esse tra​ba​lho a mon​se​nhor
Jan​ney. Ga​r an​to-lhe que o que acon​te​c eu lá não foi obra de Deus, nem ve​í​c u​lo
de ma​ni​f es​ta​ç ão da von​ta​de di​vi​na.
— E por que in​sis​te em pen​sar que Deus tem sem​pre que ser ób​vio e sem
ima​gi​na​ç ão? — O ve​lho já sa​bo​r e​a ​va a vi​tó​r ia de seus ar​gu​m en​tos.
— Es​tou en​vol​vi​do em fe​nô​m e​nos psí​qui​c os.
— Bo​ba​gem! Fe​nô​m e​nos psí​qui​c os só ser​vem para ex​pli​c ar aos po​bres
des​c ren​tes as coi​sas que não con​se​guem en​ten​der por​que mos​tram a pre​sen​ç a de
Deus. Pen​se bem! Abra o co​r a​ç ão... e des​c o​bri​r á que Deus o cha​m a de vol​ta a
Seu san​to abri​go. Te​nho cer​te​za de que você será tes​te​m u​nha de uma apa​r i​ç ão
di​vi​na. Uma nova vi​si​ta​ç ão do Al​tís​si​m o!
— E por que o Al​tís​si​m o não me vi​si​ta aqui mes​m o? Por que me faz vi​a ​j ar
até Ne​va​da?
— Tal​vez para tes​tar sua fé... ou sua obe​di​ê n​c ia. — O pa​dre
Wy ​c a​zik cor​r i​giu-se: — Para fa​zer você mes​m o des​c o​brir que de​se​ja reen​-
con​trar a fé per​di​da.
— E por que Ne​va​da? Por que não na Fló​r i​da ou no Te​xas? ou em Is​tam​-
bul...
— “São tor​tuo​sos os ca​m i​nhos do se​nhor”...
— E por que Deus te​r ia tan​to tra​ba​lho, ape​nas para sal​var a alma de um
po​bre como eu?
— Para Ele, que fez a ter​r a e o céu, não é tra​ba​lho al​gum apa​r e​c er em
Ne​va​da. E Deus sabe que a sal​va​ç ão de uma alma é tão im​por​tan​te quan​to a sal​-
va​ç ão de um mi​lhão de al​m as.
— En​tão por que per​m i​tiu que eu per​des​se a fé?
— Para fazê-lo re​f le​tir e ama​du​r e​c er. Tal​vez Deus ain​da ve​nha a pre​c i​sar de
você e o faz pas​sar por essa pro​va​ç ão para que você saia dela for​ta​le​c i​do.
Bren​dan sor​r iu e, ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a, co​m en​tou:
— O se​nhor sem​pre en​c on​tra uma res​pos​ta, não é?
— Deus me deu ca​be​ç a boa e lín​gua rá​pi​da... — re​pli​c ou, en​c os​tan​do-se
na pol​tro​na, sa​tis​f ei​to.
To​dos co​nhe​c i​a m sua re​pu​ta​ç ão de sal​va​dor de pa​dres tres​m a​lha​dos e sa​bi​-
am que ele ja​m ais de​sis​tia. De qual​quer modo, Bren​dan não que​r ia vi​a ​j ar para
Ne​va​da com mon​se​nhor Jan​ney nos cal​c a​nha​r es.
De sua pol​tro​na, Ste​f an olha​va-o com ca​r i​nho, mas com fir​m e e evi​den​te
de​ter​m i​na​ç ão de não se dei​xar en​vol​ver em ar​gu​m en​tos sim​pló​r i​os. Seus olhos
bri​lha​vam, an​te​c i​pan​do o pra​zer de des​truir to​das as fal​sas ver​da​des do jo​vem
con​f ra​de.
Bren​dan sus​pi​r ou... Ti​nha um lon​go se​r ão pela fren​te!
Elko County, Ne​v a​da
Dom saiu cor​r en​do do res​tau​r an​te, pa​r ou por um mo​m en​to na fren​te da re​-
cep​ç ão e en​trou. En​c on​trou uma cena que, à pri​m ei​r a vis​ta, pa​r e​c ia bri​ga de ma​-
ri​do e mu​lher. Era bem mais gra​ve.
O ho​m em, de cal​ç a bege e su​é ​ter mar​r om, es​ta​va pa​r a​do no meio da sala.
Mais alto e mus​c u​lo​so que Dom, pa​r e​c ia fei​to de um tron​c o de ár​vo​r e. O ca​be​lo
gri​sa​lho e as li​nhas mar​c a​das do ros​to in​di​c a​vam que já pas​sa​va dos cin​qüen​ta,
mas es​ta​va con​ser​va​do e em boa for​m a.
Tre​m ia dos pés à ca​be​ç a, como num aces​so de rai​va. A sua fren​te, a mu​lher
pa​r e​c ia es​pe​r ar an​si​o​sa que o aces​so pas​sas​se. Era loi​r a, de olhos azuis, mais jo​-
vem do que ele. Dom apro​xi​m ou-se e per​c e​beu que não se tra​ta​va de um aces​so
de rai​va: o ho​m em tre​m ia de medo!
— Acal​m e-se — di​zia-lhe a mu​lher. — Con​tro​le a res​pi​r a​ç ão.
Ele pa​r e​c ia su​f o​c a​do, a ca​be​ç a ca​í​da so​bre o pei​to, os om​bros
cur​va​dos, os olhos bai​xos.
— Ins​pi​r e de​va​gar... Uma vez... ou​tra... Lem​bre-se do que o dr. Fon​te​lai​ne
fa​lou. Quan​do você es​ti​ver me​lhor, sai​r e​m os para dar uma vol​ta.
— Não! — gri​tou ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a com for​ç a, de um lado para ou​tro.
— Va​m os, sim, cla​r o. — A mu​lher to​c ou-lhe o bra​ç o com ca​r i​nho. — Va​-
mos sair um pou​c o, e você verá que a es​c u​r i​dão aqui é igual à de Milwaukee.
Acal​m e-se, Er​nie...
Er​ni​e l O nome fez Dom es​tre​m e​c er, lem​bran​do-se dos pôs​ters em Reno.
Um dos no​m es que Lo​m ack es​c re​ve​r a, além do seu, era Er​nie!
— Pre​c i​so de um quar​to — Dom apro​xi​m ou-se da mu​lher.
— Lo​ta​ç ão es​go​ta​da.
— Vi o si​nal, lá da es​tra​da... Pen​sei que ti​ves​sem va​gas...
— Sim, sim... está bem... Mas não ago​r a! Vá até o res​tau​r an​te, dê uma vol​-
ta e ve​nha mais tar​de. Por fa​v orl
Nes​se mo​m en​to, o ho​m em ber​r ou, hor​r o​r i​za​do:
— A por​ta! Fe​c he essa por​ta an​tes que a es​c u​r i​dão en​tre!
— Não! — a mu​lher res​pon​deu, a voz fir​m e, mas os olhos cada vez mais
as​sus​ta​dos. — A es​c u​r i​dão não vai lhe fa​zer mal. E não vai en​trar aqui.
— Ela... está che​gan​do... — o ho​m em ge​m eu.
Dom viu de re​pen​te que to​das as lu​zes da sala es​ta​vam ace​sas
a pon​to do ofus​c a​r em a vis​ta: lâm​pa​das so​bre a mesa, no teto, nos aba​j u​r es
do has​te lon​ga.
— Oh, pelo amor de Deus! — ex​c la​m ou a mu​lher. — Fe​c he essa por​ta!
Dom obe​de​c eu e en​trou na sala.
— Nào... Por fa​vor, saiu e fe​c he a por​ta...
Er​nie olha​va, alu​c i​na​do, para o ros​to do ou​tro e para a ja​ne​la en​vi​dra​ç a​da:
~ Ela está aí... — ge​m ia. — Bem aí, do lado de fora... Vai que​brar os vi​dros...
vai en​trar...
Dom fe​c hou os olhos para não ver aque​le ros​to trans​tor​na​do de ,medo. O
mes​m o medo que o en​lou​que​c ia nas cri​ses de so-nam​bu​lis​m o que o le​va​vam a
pre​gar ja​ne​las e es​c on​der-se em ar​m á​r i​os.
A sua fren​te, a mu​lher co​m e​ç a​va a des​c on​tro​lar-se.
— Por fa​vor! Saia! Meu ma​r i​do é nic​tó​f o​bo... So​f re de cri​ses agu​das de
medo do es​c u​r o, e eu pre​c i​so cui​dar dele!
Er​nie... e Fay e!
— Está bem, Fay e... Mas acho que tam​bém pos​so aju​dá-lo.
Ela fi​tou-o in​tri​ga​da e ga​gue​j ou!
— Eu... já o co​nhe​ç o?
— Não sei. Meu nome é Do​m i​nick Cor​vai​sis.
— Nun​c a ouvi esse nome. — Fay e vi​r ou-se e cor​r eu para im​pe​dir que Er​-
nie fu​gis​se para o quar​to.
— Te​nho que su​bir... para fe​c har as cor​ti​nas... Te​nho...
— Não fuja\ Você pre​c i​sa en​f ren​tar esse medo para po​der con​tro​la-lo... —
Se​gu​r ou-o pelo bra​ç o, mas não con​se​guiu detê-lo.
Com um sal​to, Dom plan​tou-se à fren​te da es​c a​da, co​lo​c ou as mãos nos om​-
bros de Er​nie e de​te​ve-o.
— Você tem tido pe​sa​de​los — dis​se. — Quan​do acor​da não con​se​gue se
lem​brar de nada... mas nos pe​sa​de​los você vê... a Lua!
Fay e ta​pou a boca para não gri​tar.
Er​nie le​van​tou a ca​be​ç a e en​go​liu em seco.
— Como é que você sabe?!
— Por​que eu tam​bém te​nho tido pe​sa​de​los... há mais de um
mês. — Dom res​pon​deu, sé​r io. Tdo​a s as noi​tes. E sei de um ho​m em que so​-
freu tan​to com os mes​m os pe​sa​de​los que aca​bou se sui​c i​dan​do.
Er​nie e Fay e não ti​r a​vam os olhos de seu ros​t o.
— Em ou​tu​bro — ele con​ti​nuou ~ co​m e​c ei a sol​r er tle soi​nim bu​lis​m o. Saía
da cama e me es​c on​dia pe​los ar​m á​r i​os, ou reu​nia um ver​da​dei​r o ar​se​nal à vol​ta
da cama para me pro​te​ger. Uma noi​te, ten​tei pre​gar a ja​ne​la do quar​to. Está en​-
ten​den​do? Te​nho medo de al​gu​m a coi​sa que vem da es​c u​r i​dão... Sou capa/, de
apos​tar que te​m os medo da mes​ma coi​sal Não só da es​c u​r i​dão, mas de al​gu​m a
coi​sa que acon​te​c eu lá fora no ve​r ão re​tra​sa​do... num iim de se​m a​na do ve​r ão
re​tra​sa​do!
— Não en​ten​do... — Er​nie vol​tou a ca​be​ç a na di​r e​ç ão da ja​ne​la, mas logo
fe​c hou os olhos.
— Va​m os su​bir para você fe​c har as cor​ti​nas e acal​m ar-se — Dom afas​-
tou-se para dei​xá-los pas​sar e se​guiu-os. — Vou-lhes con​tar o que sei. O mais im​-
por​tan​te, po​r ém, já acon​te​c eu: nós nos en​c on​tra​m os! E não es​ta​m os so​zi​nhos...
nem vo​c ês, nem eu! Gra​ç as a Deus!
New Ha​v en County, Con​nec​ti​c ut
Como um re​ló​gio. Os as​sal​tos pla​ne​j a​dos por Jack Twist fun​c i​o​na​vam como
um re​ló​gio. O caso do car​r o blin​da​do não fu​giu à re​gra. A noi​te es​ta​va nu​bla​da,
sem es​tre​las, sem luar. Não ne​va​va, mas um ven​to frio e úmi​do so​pra​va do su​do​-
es​te. O car​r o da trans​por​ta​do​r a de va​lo​r es atra​ves​sa​va o cam​po de​ser​to, vin​do
de nor​des​te em di​r e​ç ão ao bar​r an​c o de onde Jack o ob​ser​va​r a na vés​pe​r a de Na​-
tal, os fa​r óis cor​tan​do a ne​bli​na cer​r a​da. Nos cam​pos co​ber​tos de neve, a es​tra​da
es​c u​r a de​sen​r o​la​va-se como uma fita de ce​tim ne​gro.
Ves​ti​do num tra​j e bran​c o de es​qui​a ​dor, o ca​puz er​gui​do so​bre a ca​be​ç a, o
cor​po imó​vel so​bre a neve, Jack via-o apro​xi​m ar-se do bar​r an​c o. Do ou​tro lado
da es​tra​da, no mes​m o pon​to onde es​ti​ve​r a de to​c aia, seu com​pa​nhei​r o Chad Zepp
tam​bém es​pe​r a​va. O ter​c ei​r o mem​bro do gru​po, Bran​c h Pol​lard, to​m a​va po​si​ç ão
en​c os​ta​do ao bar​r an​c o, com um pe​sa​do fu​zil.
O ca​m i​nhão es​ta​va a du​zen​tos me​tros, e as lu​zes das lâm​pa​das de car​r o​c e​r ia,
re​f ra​ta​das pela ne​bli​na, cor​ta​vam a es​c u​r i​dão. De re​pen​te, o cano do fu​zil bri​lhou
al​guns can​tí​m e​tros aci​m a do bar​r an​c o. Um tiro eco​ou no va​zio e os pneus ran​ge​-
ram no as​f al​to mo​lha​do.
Aque​le era, tal​vez, o me​lhor fu​zil de com​ba​te ja​m ais fa​bri​c a​do. Po​dia acer​-
tar o alvo à dis​tân​c ia de qua​se um qui​lô​m e​tro, atra​ves​sar o tron​c o de uma ár​vo​r e
ou fu​r ar com seus pro​j é​teis uma pa​r e​de de con​c re​to, ma​tan​do quem se es​c on​-
des​se do ou​tro lado. Na​que​la noi​te, con​tu​do, o pla​no de Jack não pre​via a mor​te
de nin​guém. Com o au​xí​lio da mira te​les​c ó​pi​c a, Pol​lard acer​ta​r a com pre​c i​são o
alvo: o pneu di​r ei​to do car​r o blin​da​do.
O ve​í​c u​lo des​go​ver​nou-se e der​r a​pou. Jack le​van​tou-se e cor​r eu. Sal​tou uma
ra​vi​na e des​li​zou até a es​tra​da, pos​tan​do-se à fren​te do car​r o, gran​de como um
tan​que de guer​r a. No úl​ti​m o mo​m en​to, quan​do já pa​r e​c ia con​de​na​do a es​pa​ti​f ar-
se no acos​ta​m en​to da es​tra​da, o mo​to​r is​ta con​se​guiu con​tro​lar o ve​í​c u​lo e pa​r ou a
me​nos de meio me​tro de Jack.
Na ca​bi​ne, os guar​das afli​tos ten​ta​vam con​ta​to pelo rá​dio. Per​da de tem​po.
No mo​m en​to em que Pol​lard ati​r ou, Chad Zepp, ain​da es​c on​di​do na neve, aci​o​-
nou um trans​m is​sor mo​vi​do a ba-te​r ia cri​a n​do um cam​po de in​ter​f e​r ên​c ia es​tá​ti​-
ca que tor​na​va im​pos​sí​vel qual​quer co​m u​ni​c a​ç ão na​que​la fre​qüên​c ia.
O ven​to le​van​ta​va on​das de né​voa bran​c a e Jack sen​tia-se nu, ali no meio da
es​tra​da, os olhos ain​da ofus​c a​dos pe​los fa​r óis, es​pe​r an​do o me​lhor mo​m en​to para
al​ve​j ar a gra​de do mo​tor. Seu fu​zil, de fa​bri​c a​ç ão in​gle​sa, pro​j e​ta​do a pe​di​do das
for​ç as en​c ar​r e​ga​das de com​ba​ter o ter​r o​r is​m o, pos​su​ía um ca​li​bre su​f i​c i​e n​-
te para lan​ç ar cáp​su​las blin​da​das de gás la​c ri​m o​gê​neo com alto im​pac​to, ca​pa​zes
de atra​ves​sar qual​quer por​ta, ja​ne​la ou bar​r i​c a​da. No mo​m en​to em que Jack aci​-
o​nou o ga​ti​lho, o pro​j é​til va​r ou a gra​de do car​r o, alo​j an​do-se no com​par​ti​m en​to
do mo​tor, e a ca​bi​ne foi in​va​di​da por uma onda de va​por ama​r e​lo, que su​bia pe​-
los ca​nais de ven​ti​la​ç ão.
Os guar​das da em​pre​sa ti​nham ins​tru​ç ões cla​r as para não aban-
do​nar o ve​í​c u​lo, con​si​de​r a​do o abri​go mais se​gu​r o em ho​r as crí​ti​c as, por
cau​sa da la​ta​r ia blin​da​da e dos vi​dros à pro​va de ba​las. Para res​pi​r ar, de​pen​di​a m
dos ca​nais de ven​ti​la​ç ão por onde en​tra​va o gás da bom​ba e, as​sim, aca​ba​r am
for​ç a​dos a sair, tos​sin​do, es​pir​r an​do e pra​ti​c a​m en​te ce​gos pe​las lá​gri​m as. O mo​-
to​r is​ta ain​da sa​c ou o re​vól​ver e ten​tou fa​zer mira, po​r ém Jack de​sar​m ou-o com
um pon​ta​pé, agar​r ou-o pelo ca​sa​c o e ar​r as​tou-o para a fren​te do car​r o, onde o
al​ge​m ou a um dos fer​r os da car​r o​c e​r ia.
De​pois de ati​r ar no pneu, Bran​c h Pol​lard dei​xou seu pos​to e apro​xi​m ou-se do
gru​po. Na​que​le exa​to ins​tan​te, do ou​tro lado da car​r o​c e​r ia, al​ge​m a​va o guar​da.
Os dois ho​m ens pis​c a​vam e pis​c a​vam, pro​c u​r an​do ver os ros​tos dos as​sal​tan​-
tes. Ou​tra per​da de tem​po: os três usa​vam más​c a​r as.
Li​vres dos guar​das, Jack e Pol​lard cor​r e​r am para a tra​sei​r a do car​r o, apres​-
sa​dos, em​bo​r a não hou​ves​se ris​c o de se​r em sur​preen​di​dos por al​gum even​tu​a l
mo​to​r is​ta que pas​sas​se. Até que o ser​vi​ç o es​ti​ves​se con​c lu​í​do, não apa​r e​c e​r ia
nin​guém, por​que dois ou​tros mem​bros do gru​po ha​vi​a m blo​que​a ​do a es​tra​da com
dois ca​m i​nhões rou​ba​dos, equi​pa​dos com apa​r e​lhos de si​na​li​za​ç ão da po​lí​c ia ro​-
do​vi​á ​r ia. Ago​r a, num ce​ná​r io im​pres​si​o​nan​te de lu​zes co​lo​r i​das, ca​va​le​tes e ban​-
dei​r as de si​na​li​za​ç ão, en​c ar​r e​ga​vam-se de des​vi​a r o es​c as​so trân​si​to do ho​r á​r io,
in​f or​m an​do aos mo​to​r is​tas que ocor​r e​r a um gra​ve aci​den​te pou​c os qui​lô​m e​tros
adi​a n​te.
Como um re​ló​gio.
Quan​do Jack e Pol​lard che​ga​r am à tra​sei​r a do ca​m i​nhão, en​c on​tra​r am Zepp
a pos​tos. A luz de uma lan​ter​na que fi​xa​r a à por​ta de aço, ele tra​ba​lha​va para
abrir o com​par​ti​m en​to de car​ga, fe​c ha​do a se​gre​do como um co​f re. Es​ta​vam
equi​pa​dos com ex​plo​si​vos, mas, tra​tan​do-se de um car​r o de trans​por​te de va​lo​r es
tão pro​te​gi​do como aque​le, ha​via o ris​c o de fun​dir todo o me​c a​nis​m o ao ex​plo​dir
a fe​c ha​du​r a. O ide​a l era abrir o co​f re des​tra​van​do a fe​c ha​du​r a.
Os car​r os mais an​ti​gos ti​nham co​f res que ope​r a​vam com duas cha​ves si​m ul​-
tâ​ne​a s; ou​tros ti​nham fe​c ha​du​r a de se​gre​do; mas aque​le era equi​pa​do com um
tipo de co​f re que só po​dia ser aber​to
com uma se​quên​c ia de nú​m e​r os di​gi​ta​dos num mi​ni​ter​m i​nal de com​pu​ta​dor,
pou​c o mai​or que um maço de ci​gar​r os, ins​ta​la​do na ca​bi​ne. Para ati​var o me​c a​-
nis​m o e tran​c ar o co​f re, bas​ta​va o guar​da fe​c har as por​tas tra​sei​r as e di​gi​tar o se​-
gun​do de uma sé​r ie de três nú​m e​r os pre​vi​a ​m en​te pro​gra​m a​dos. Para abri-lo, era
pre​c i​so di​gi​tar os três nú​m e​r os na or​dem cor​r e​ta, num có​di​go tro​c a​do di​a ​r i​a ​m en​-
te e co​nhe​c i​do ape​nas pelo mo​to​r is​ta.
Há mil com​bi​na​ç ões pos​sí​veis de se​qüên​c i​a s de três al​ga​r is​m os es​c o​lhi​dos
en​tre dez. Cada com​bi​na​ç ão exi​gi​r ia de qua​tro a cin​c o se​gun​dos para ser tes​ta​da,
sem fa​lar no tem​po ne​c es​sá​r io para des​c o​brir sua va​li​da​de. No to​tal, ne​c es​si​ta​r i​-
am de uma hora e quin​ze nai​nu​tos para to​das as com​bi​na​ç ões. Ar​r is​c a​do de​m ais.
Chad Zepp re​ti​r ou a tam​pa da fe​c ha​du​r a. As dez te​c las nu​m e​r a​das con​ti​nu​a ​-
vam in​tac​tas, mas, sem a tam​pa, era pos​sí​vel exa​m i​nar me​lhor o me​c a​nis​m o.
Pen​du​r a​da ao om​bro de Zepp, es​ta​va uma pas​ta de exe​c u​ti​vo e, den​tro dela, um
com​pu​ta​dor por​tá​til, ca​paz de ana​li​sar e abrir qual​quer co​f re con​tro​la​do por cir​-
cui​tos ele​trô​ni​c os. Era um apa​r e​lho de uso re​ser​va​do aos ser​vi​ç os de in​f or​m a​ç ão
do Exér​c i​to, o que tor​na​va cri​m e de​f e​r al o sim​ples fato de um ci​da​dão co​m um
pos​suí-lo. Para com​prar seu apa​r e​lho, Jack vi​a ​j a​r a à Ci​da​de do Mé​xi​c o e pa​ga​r a
vin​te e cin​c o mil dó​la​r es a um tra​f i​c an​te de ar​m as, o qual man​ti​nha con​ta​to ul-
tra-se​c re​to com um dos en​ge​nhei​r os da em​pre​sa fa​bri​c an​te do com​pu​ta​dor.
Zepp abriu a mala e li​gou o apa​r e​lho, apoi​a n​do-se de modo que Jack e Pol​-
lard pu​des​sem ver o pe​que​no mo​ni​tor, ain​da es​c u​r o. O com​pu​ta​dor ope​r a​va com
três ca​bos re​trá​teis, um dos quais Jack re​ti​r ou do com​par​ti​m en​to onde es​ta​va
guar​da​do; pa​r e​c ia um ter​m ô​m e​tro de mer​c ú​r io, li​ga​do ao apa​r e​lho por me​tro e
meio de fio. Jack apro​xi​m ou-se da fe​c ha​du​r a e exa​m i​nou de​ti​da​m en​te os fios
que se ema​r a​nha​vam, sob as te​c las nu​m e​r a​das. To​m ou o “ter​m ô​m e​tro” e in​se​-
riu-o en​tre duas te​c las, jun​to à base da do nú​m e​r o um. O mo​ni​tor per​m a​ne​c eu
es​c u​r o. Ten​tou en​tão a te​c la dois, tam​bém sem re​sul​ta​do. E a três. Ao to​c ar a
base do bo​tão qua​tro, con​tu​do, a pa​la​vra LI​GA​DO apa​r e​c eu no mo​ni​tor,
se​gui​da de vá​r i​os nú​m e​r os que in​di​c a​vam a in​ten​si​da​de da cor​r en​te elé​tri​c a
do con​ta​to.
Sa​bi​a m, ago​r a, que o se​gun​do al​ga​r is​m o da se​qüên​c ia de três, pro​gra​m a​da
pela se​gu​r an​ç a para aque​le dia, era qua​tro. De​pois de guar​dar no co​f re os sa​c os
con​ten​do di​nhei​r o e che​ques re​c o​lhi​dos no úl​ti​m o pon​to em que pa​r a​r am, o guar​-
da aper​ta​r a a te​c la qua​tro e tran​c a​r a o co​f re. O con​ta​to per​m a​ne​c e​r ia aci​o​na​do
até que todo o có​di​go fos​se di​gi​ta​do no mo​ni​tor, e só en​tão se​r ia pos​sí​vel abrir o
co​f re.
Sem co​nhe​c er ne​nhum dos três al​ga​r is​m os, Jack pre​c i​sa​r ia en​c on​trar uma
com​bi​na​ç ão, en​tre mil pos​sí​veis. Ten​do já des​c o​ber​to o se​gun​do des​ses três al​ga​-
ris​m os, a pro​ba​bi​li​da​de de des​c o​brir os ou​tros dois cres​c i​a m para uma em cem.
In​di​f e​r en​te ao ven​to que con​ti​nu​a ​va a so​prar for​te, ti​r ou ou​tro dos ins​tru​m en​-
tos li​ga​dos ao com​pu​ta​dor: um cabo se​m e​lhan​te ao pri​m ei​r o, com uma pon​ta
fina pa​r e​c i​da com um pin​c el de aqua​r e​la de uma úni​c a cer​da, que bri​lha​va, re​-
sis​ten​te e fle​xí​vel. Com a “cer​da” lu​m i​no​sa, Jack foi to​c an​do os con​ta​tos à base
dos bo​tões, até que o mo​ni​tor mos​trou o di​a ​gra​m a de um con​j un​to de cir​c ui​tos in​-
te​gra​dos.
A “cer​da” era a ex​tre​m i​da​de de um equi​pa​m en​to la​ser de lei​tu​r a de cir​c ui​tos
in​te​gra​dos, pri​m o so​f is​ti​c a​do de ou​tro sis​te​m a de lei​tu​r a, usa​do nos su​per​m er​c a​-
dos para de​c o​di​f i​c ar os pre​ç os im​pres​sos no co​nhe​c i​do có​di​go de bar​r as. No caso
do com​pu​ta​dor de Jack, a pro​gra​m a​ç ão fora fei​ta para de​c o​di​f i​c ar cir​c ui​tos li​ga​-
dos e mos​trá-los no mo​ni​tor, em di​a ​gra​m a. O mo​ni​tor per​m a​ne​c ia es​c u​r o até a
“cer​da” to​c ar to​dos os pon​tos in​ter​li​ga​dos pelo cir​c ui​to. Nes​se mo​m en​to, pro​c es​-
sa​das to​das as in​f or​m a​ç ões ne​c es​sá​r i​a s, o apa​r e​lho re​pro​du​zia fi​e l​m en​te o cir​c ui​-
to.
Jack re​pe​tiu a ope​r a​ç ão três ve​zes, co​lo​c an​do a “cer​da” em con​ta​to com três
pon​tos di​f e​r en​tes, até o com​pu​ta​dor ar​m a​ze​nar in​f or​m a​ç ões su​f i​c i​e n​tes para
rees​tru​tu​r ar e re​pro​du​zir orga-ni​za​da​m en​te as in​f or​m a​ç ões par​c i​a is que che​ga​-
vam a sua me​m ó​r ia. O di​a ​gra​m a bri​lhou no mi​n​ús​c u​lo mo​ni​tor. De​pois de três
se​gun​dos de aná​li​se de pro​ba​bi​li​da​des, o com​pu​ta​dor tra​ç ou cír​c u​los de luz ver​de
à vol​ta de dois pe​que​nos pon​tos do di​a ​gra​m a, in​di​c an​do que ali ha​via má​xi​m a
pro​ba​bi​li​da​de de cor​r en​te aci​o​na​da. A se​guir, apa​r e​c eu no ví​deo a ima​gem do
mi​ni​te​c la​do, su​per​pos​ta ao di​a ​gra​m a que aca​ba​va de ser de​se​nha​do. Um dos cír​-
cu​los co​bria a te​c la qua​tro.
— Aí está — dis​se Jack. — Nú​m e​r o qua​tro.
— Quer que eu aju​de? — Pol​lard per​gun​tou.
— Nao é ne​c es​sá​r io.
Jack guar​dou a “cer​da” de lei​tu​r a óp​ti​c a e pu​xou um ter​c ei​r o cabo que apre​-
sen​ta​va na ex​tre​m i​da​de li​vre uma es​pé​c ie de teia es​pon​j o​sa, de ma​te​r i​a l im​pos​-
sí​vel de de​ter​m i​nar, que os fa​bri​c an​tes iden​ti​f i​c a​vam com uma pe​que​na eti​que​ta
onde se lia “cabo de In​ter​ven​ç ão”. Jack co​lo​c ou sua pon​ta em con​ta​to com a
base da te​c la qua​tro, mo​ven​do-a de​va​gar para a fren​te e para trás, até que o
com​pu​ta​dor deu si​nal e a pa​la​vra IN​TER​VEN​ÇÃO bri​lhou no ví​deo. En​quan​to
Jack man​ti​nha o cabo em con​ta​to com os fios do ter​m i​nal da fe​c ha​du​r a, Chad
Zepp se​gu​r a​va o apa​r e​lho e Pol​lard usa​va o te​c la​do para trans​m i​tir ins​tru​ç ões. A
pa​la​vra IN​TER​VEN​ÇÃO apa​gou-se e sur​giu uma nova in​f or​m a​ç ão: SIS​TE​MA
SOB CON​TRO​LE. A par​tir des​se mo​m en​to, o com​pu​ta​dor po​dia en​vi​a r ins​tru​-
ções di​r e​ta​m en​te ao mi​c ro​c ir​c ui​to que guar​da​va o có​di​go do co​f re. Pol​lard con​ti​-
nuou a di​gi​tar ins​tru​ç ões ao te​c la​do do apa​r e​lho, que as trans​f or​m a​va em se​qüên​-
ci​a s de três nú​m e​r os com o al​ga​r is​m o qua​tro na po​si​ç ão cen​tral, à ve​lo​c i​da​de de
uma com​bi​na​ç ão a cada seis cen​té​si​m os de se​gun​do. Nove se​gun​dos de​pois, o
com​pu​ta​dor des​c o​bria que a com​bi​na​ç ão cin​c o-qua​tro-cin​c o abria o co​f re. Qua​-
tro es​ta​li​dos de lin-güe​tas de aço des​li​zan​do... e o co​f re, con​f or​m e o pre​vis​to, es​-
can​c a​r ou-se.
Jack guar​dou o “cabo de in​ter​ven​ç ão” e des​li​gou o sis​te​m a. Ha​vi​a m-se pas​-
sa​do ape​nas qua​tro mi​nu​tos des​de o mo​m en​to em que o tiro de fu​zil fu​r a​r a o
pneu di​a n​tei​r o do car​r o blin​da​do, rom​pen​do a tran​qüi​li​da​de da noi​te.
Como um re​ló​gio.
En​quan​to Zepp pen​du​r a​va ao om​bro a alça de cou​r o da pas​ta
que guar​da​va o com​pu​ta​dor, Pol​lard en​tra​va no co​f re. Bas​ta​va apa​nhar e
car​r e​gar o di​nhei​r o.
Zepp ria de pura fe​li​c i​da​de. As​so​bi​a n​do, Pol​lard pu​xa​va os ma​lo​tes de lona.
Jack con​ti​nu​a ​va como sem​pre, nos úl​ti​m os tem​pos: de co​r a​ç ão frio e oco.
Al​guns pe​que​nos flo​c os de neve vo​a ​r am com a ne​bli​na.
A mu​dan​ç a que Jack vi​nha des​c o​brin​do em si mes​m o des​de al​gu​m as se​m a​-
nas pa​r e​c ia ter-se com​ple​ta​do. A sen​sa​ç ão de vin​gar-se do mun​do ou da so​c i​e ​da​-
de já não o emo​c i​o​na​va. Sen​tia-se sem raiz, sol​to, des​gar​r a​do e sem sen​ti​do,
como o flo​c o de neve ar​r as​ta​do pelo ven​to que via flu​tu​a r ao aca​so.
Elko County, Ne​v a​da
Para ter cer​te​za de que po​de​r i​a m fa​lar em paz, Fay e acen​deu o lu​m i​no​so de
LO​TA​ÇÃO ES​GO​TA​DA.
Sen​ta​dos à vol​ta da mesa da co​zi​nha do apar​ta​m en​to, no an​dar su​pe​r i​or do
mo​tel, com as ja​ne​las bem fe​c ha​das, os Block to​m a​vam café e ou​vi​a m, qua​se
sem po​der res​pi​r ar, o que Dom lhes con​ta​va.
Ape​nas uma vez fran​zi​r am as so​bran​c e​lhas, não acre​di​tan​do no re​la​to. Foi
quan​do Dom lhes con​tou da ci​r an​da de re​c or​tes de Lua na casa de Lo​m ack, em
Reno. Mas ele fa​la​va com tan​ta se​gu​r an​ç a, com tais de​ta​lhes, com a pele dos
bra​ç os tão ar​r e​pi​a ​da que, de um pon​to em di​a n​te, sua emo​ç ão pas​sou a con​ta​giá-
los.
As duas fo​tos re​c e​bi​das pelo cor​r eio pou​c o an​tes de Dom vi​a ​j ar tam​bém os
dei​xa​r am mui​to im​pres​si​o​na​dos. Exa​m i​na​r am aten​ta​m en​te o ros​to do pa​dre sen​-
ta​do jun​to à mesa e afir​m a​r am que não ha​via dú​vi​das de que a foto fora ti​r a​da
num dos quar​tos do mo​tel. A ou​tra foto, da loi​r a dei​ta​da com a agu​lha in​tra​ve​no​-
sa es​pe​ta​da no bra​ç o, não mos​tra​va de​ta​lhes do am​bi​e n​te, mas Fay e re​c o​nhe​c eu
a es​tam​pa da col​c ha, cuja pon​ta apa​r e​c ia a um can​to. Era uma das col​c has usa​-
das no mo​tel até pou​c os me​ses an​tes.
Para sur​pre​sa de Dom, os Block ti​nham uma foto a mos​trar. Er​nie lem​brou-
se de tê-la re​c e​bi​do num en​ve​lo​pe bran​c o, aos 10 de de​zem​bro, cin​c o dias an​tes
de par​ti​r em para Milwaukee. Fay e
le​van​tou-se, foi apa​nhá-la na ga​ve​ta do bal​c ão da re​c ep​ç ão, co​lo​c ou-a so​bre
a mesa, e os três apro​xi​m a​r am-se aten​tos. Três pes​so​a s, cer​ta​m en​te pai, mãe e
fi​lha, pa​r a​dos di​a n​te do quar​to nú​m e​r o 9, ves​ti​dos de short e ca​m i​se​ta, cal​ç an​do
san​dá​li​a s.
— Sa​bem quem são? — Per​gun​tou Dom.
— Não. — Fay e res​pon​deu por ela e pelo ma​r i​do.
— Mas te​nho a im​pres​são de que de​v e​ria me lem​brar... — Er-nie ba​lan​ç ou
a ca​be​ç a.
— Há sol... Eles es​tão ves​tin​do rou​pa de ve​r ão... As​sim, é ra​zo​á ​vel su​por
que a foto foi ti​r a​da no ve​r ão re​tra​sa​do... — Dom pen​sou em voz alta. — Na​que​-
le fim de se​m a​na, eles es​ta​vam aqui. De​vem fa​zer par​te do que acon​te​c eu. De​-
vem ser ví​ti​m as, como nós.‘E nos​so cor​r es​pon​den​te anô​ni​m o quer que pen​se​m os
ne​les... que nos lem​bre​m os...
— Seja lá quem for que está man​dan​do es​sas fo​tos, deve ter sido um dos
que apa​ga​r am nos​sas lem​bran​ç as. Nes​se caso... por que nos fa​r ia lem​brar, de​-
pois de tan​to tra​ba​lho para nos fa​zer es​que​c er?
Dom er​gueu os om​bros e re​pli​c ou:
— Tal​vez não es​ti​ves​se de acor​do com o que fi​ze​r am co​nos​c o. Tal​vez te​nha
sido obri​ga​do a agir con​tra von​ta​de... Tal​vez ande de cons​c i​ê n​c ia pe​sa​da. Seja
como for, é evi​den​te que tem medo de apa​r e​c er e iden​ti​f i​c ar-se. Mas está ten​-
tan​do nos al​c an​ç ar por vias in​di​r e​tas.
De re​pen​te, Fay e sal​tou da ca​dei​r a e di​r i​giu-se para a es​c a​da.
— Pas​sa​m os cin​c o se​m a​nas fora de casa! — ex​la​m ou. — Há to​ne​la​das de
cor​r es​pon​dên​c ia que ain​da não exa​m i​na​m os... Tal​vez haja mais fo​tos!
Ou​vin​do os pas​sos da es​po​sa pela es​c a​da abai​xo, Er​nie ex​pli​c ou:
— Sandy, a gar​ç o​ne​te do res​tau​r an​te, se​pa​r a a cor​r es​pon​dên​c ia e paga as
con​tas. Nos​sa cor​r es​pon​dên​c ia pes​so​a l é dei​xa​da na cai​xa. Che​ga​m os hoje e pas​-
sa​m os o dia ar​r u​m an​do o mo​tel. Es​que​c e​m os de ver a cai​xa!
Fay e vol​tou com dois en​ve​lo​pes bran​c os. Ex​c i​ta​dos, abri​r am o pri​m ei​r o e lá
es​ta​va: ou​tra foto, des​sa vez mos​tran​do um ho​m em dei​ta​do de cos​tas com agu​lha
in​tra​ve​no​sa no bra​ç o. Com cer​c a
de cin​qüen​ta anos, co​m e​ç an​do a per​der os ca​be​los, se​r ia um tipo sim​pá​ti​c o
em cir​c uns​tân​c i​a s nor​m ais. Na​que​la si​tu​ç ão, po​r ém, en​c a​r a​va a câ​m a​r a com
olhos va​zi​os, como um zum​bi.
— Meu Deus! — Fay e mur​m u​r ou — E Cal​vin!
— Sim... — Er​nie con​f ir​m ou. — Cal Shark​le! E ca​m i​nho​nei​r o. Vive de fre​-
tes de Chi​c a​go para San Fran​c is​c o.
— Sem​pre que pas​sa por aqui, vem co​m er no res​tau​r an​te. As ve​zes, quan​-
do está mui​to can​sa​do, toma um quar​to para pas​sar a noi​te. E uma ex​c e​len​te pes​-
soa!
— Ele tra​ba​lha para al​gu​m a em​pre​sa? — Dom per​gun​tou.
— Não. Cal é dono do ca​m i​nhão.
— Po​de​r i​a m en​trar em con​ta​to com ele?
— Ora... — Er​nie pas​sou a mão pela ca​be​ç a. — To​dos os hós​pe​des preen​-
chem uma fi​c ha com en​de​r e​ç o. Acho que ele mora em Chi​c a​go.
— De​pois po​de​m os ve​r i​f i​c ar as fi​c has. Va​m os ver o con​te​ú​do do ou​tro en​-
ve​lo​pe.
Fay e abriu o se​gun​do en​ve​lo​pe e lá es​ta​va ou​tra foto, com ou​tro ho​m em dei​-
ta​do numa das ca​m as do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de com agu​lha in​tra​ve​no​sa no bra​ç o.
Seu ros​to tam​bém era va​zio, au​sen​te e os olhos lem​bra​vam os mor​tos-vi​vos dos
fil​m es de ter​r or. Esse, po​r ém, os três re​c o​nhe​c e​r am ins​tan​ta​ne​a ​m en​te: era Dom.
Las Ve​gas, Ne​v a​da
Quan​do che​gou sua hora de ir para a cama, Ma​r eie ain​da es​ta​va sen​ta​da à
me​si​nha do quar​to, às vol​tas com a co​le​ç ão de luas. Jor​j a ob​ser​va​va-a de lon​ge e
viu-a co​lo​r ir um dos re​c or​tes. No​vi​da​de...
No es​pa​ç o de uma se​m a​na, des​de que ini​c i​a ​r a a co​le​ç ão, a me​ni​na en​c he​r a
o ál​bum. Como não dis​pu​nha de mui​tas fon​tes para ar​r an​j ar re​c or​tes, de​se​nha​va
luas para preen​c her os va​zi​os do ál​bum, usan​do mol​des de to​dos os ti​pos e ta​m a​-
nhos: tam​pi​nhas de gar​r a​f a, mo​e ​das, pi​r es, va​sos, co​pos, la​tas. E os mais di​ver​-
sos ma​te​r i​a is: em​ba​la​gem de bala, sa​c os de su​per​m er​c a​do, en​ve​lo​pes, pa​pel de
em​bru​lho. Não pas​sa​va mui​to tem​po ocu​pa​da com o
ál​bum, mas Jor​j a co​m e​ç a​va a per​c e​ber que, dia a dia, o tem​po de de​se​nhar
luas au​m en​ta​va.
Na opi​ni​ã o do dr. Ted Co​verly, o psi​c ó​lo​go que tra​ta​va dela, Ma​r eie não te​r ia
con​se​gui​do su​pe​r ar com​ple​ta​m en​te a an​si​e ​da​de em re​la​ç ão aos mé​di​c os. A di​f e​-
ren​ç a ago​r a era que a ex​pres​sa​va pela pre​o​c u​pa​ç ão com​pul​si​va com o ál​bum.
Quan​do Jor​j a ob​ser​vou que Ma​r eie não lhe dava a im​pres​são de ter medo da
Lua, o mé​di​c o res​pon​deu:
— Bem, há vá​r i​a s ma​nei​r as de ma​ni​f es​tar an​si​e ​da​de. A fo​bia é uma des​sas
ma​ni​f es​ta​ç ões. Há ou​tras, como, por exem​plo, as ob​sessões.
Por mais que ele fa​las​se, po​r ém, Jor​j a não con​se​guia acal​m ar-se. Nem en​-
ten​der.
— A te​r a​pia tem esse ob​j e​ti​vo — di​zia Co​verly — Exis​te pre​c i​sa​m en​te
para fa​zer com que as pes​so​a s en​ten​dam. Não se pre​o​c u​pe...
Mas ela con​ti​nu​a ​va cada vez mais pre​o​c u​pa​da. Ti​nha de es​tar, por​que Alan
sui​c i​da​r a-se na vés​pe​r a, e ela ain​da não con​ta​r a nada à fi​lha. Ao sair do apar​ta​-
men​to de “Pi​m en​ti​nha” Car​r a​f i​e ld, te​le​f o​na​r a ao dr. Co​verly para pe​dir-lhe con​-
se​lho. O mé​di​c o não acre​di​ta​va que Alan tam​bém an​das​se ten​do pe​sa​de​los com
a Lua; dis​se​r a que pre​c i​sa​va de tem​po para pen​sar, mas acha​va que, en​quan​to
isso, pelo me​nos até se​gun​da-fei​r a, se​r ia con​ve​ni​e n​te pou​par Ma​r eie de no​vas
emo​ç ões.
— Ve​nha com ela — re​c o​m en​da​r a-lhe. — Va​m os fa​lar jun​tos com Ma​-
reie.
Jor​j a te​m ia que, ape​sar da in​di​f e​r en​ç a de Alan, a me​ni​na so​f res​se ter​r i​vel​-
men​te com a mor​te do pai. Pa​r a​da jun​to ao quar​to de Ma​r eie, ven​do-a pin​tar
uma de suas luas, sen​tiu, de re​pen​te, o quan​to sua fi​lha era frá​gil e vul​ne​r á​vel. Ti​-
nha só sete anos, es​ta​va na se​gun​da sé​r ie, mal to​c a​va com a pon​ta dos pés no
chão quan​do se sen​ta​va nas ca​dei​r as da sala. Era um mi​la​gre que con​ti​nu​a s​se
viva... quan​do tan​tos ho​m ens for​tes, de mús​c u​los po​de​r o​sos, mor​r i​a m a todo ins​-
tan​te. Como se​r ia fá​c il, para um anjo mau, ar​r e​ba​tar-lhe aque​la cri​a n​ç a! Jor​j a
sen​tia o co​r a​ç ão doer de an​si​e ​da​de e amor.
— É hora de dor​m ir, que​r i​da... — dis​se afi​nal. — Vá ves​tir o pi​j a​m a e es​-
co​var os den​tes.
Ma​r eie er​gueu o olhar como se não a vis​se. Ou como se não a re​c o​nhe​c es​se.
Num ins​tan​te, po​r ém, os olhos cla​r e​a ​r am e ela sor​r iu, um sor​r i​so de der​r e​ter pe​-
dras.
— Oi, ma​m ãe... Es​tou co​lo​r in​do umas luas...
— Mas já é hora de dor​m ir.
— Só mais um pou​qui​nho... — Ma​r eie pa​r e​c ia tran​qüi​la e cal​m a, po​r ém
se​gu​r a​va o lá​pis com tan​ta for​ç a que as jun​tas dos de​dos es​ta​vam es​bran​qui​ç a​-
das. — Que​r o pin​tar mais al​gu​m as.
Jor​j a pen​sou em sal​tar so​bre o mal​di​to ál​bum, ras​gá-lo, fazê-lo em pe​da​ç os.
Mas o dr. Co​verly dis​se​r a que não era acon​se​lhá​vel dis​c u​tir com a me​ni​na so​bre
“suas” luas, nem proi​bi-la de de​se​nhar, por​que isso a tor​na​r ia ain​da mais ten​sa e
an​si​o​sa. Jor​j a não fi​c ou mui​to con​ven​c i​da, po​r ém con​tro​lou-se.
— Ama​nhã você con​ti​nua a de​se​nhar.
Ain​da re​lu​tan​te, Ma​r eie fe​c hou o ál​bum, guar​dou os lá​pis e foi para o ba​-
nhei​r o es​c o​var os den​tes.
So​zi​nha no quar​to, Jor​j a es​ta​va a pon​to de des​m ai​a r de can​sa​ç o. Tra​ba​lha​r a
como sem​pre, tra​ta​r a do en​ter​r o de Alan, en​c o​m en​da​r a flo​r es e acer​ta​r a os de​-
ta​lhes do fu​ne​r al, mar​c a​do para se​gun​da-fei​r a. Lem​bra​r a-se até de te​le​f o​nar
para o pai de Alan, em Mi​a ​m i, co​m u​ni​c an​do-lhe a mor​te do fi​lho. Es​ta​va exaus​-
ta. Qua​se sem pen​sar, apro​xi​m ou-se da me​si​nha e abriu o ál​bum.
Ver​me​lho. As luas es​ta​vam pin​ta​das de ver​m e​lho, tan​to as que Ma​r eie re​c or​-
ta​r a de jor​nais e re​vis​tas, como as de pró​prio pu​nho. Eram mais de cin​qüen​ta, to​-
das pin​ta​das de ver​m e​lho. A an​si​e ​da​de da me​ni​na evi​den​c i​a ​va-se no cui​da​do que
ti​ve​r a para não dei​xar o lá​pis ul​tra​pas​sar os con​tor​nos. De de​se​nho a de​se​nho, o
lá​pis era apli​c a​do cada vez com mais for​ç a. Al​gu​m as luas fo​r am pin​ta​das mais
de uma vez e es​ta​vam tão ver​m e​lhas que pa​r e​c i​a m úmi​das.
O pior era a cor. Ver​m e​lho, sem​pre ver​m e​lho. Como se Ma​r eie mer​gu​lhas​se
aos pou​c os num mar es​c u​r o, pres​sen​tin​do san​gue.
Elko County, Ne​v a​da
Fay e des​c e​r a para apa​nhar o li​vro de re​gis​tro de hós​pe​des do ve​r ão re​tra​sa​-
do. Ao vol​tar, co​lo​c ou-o so​bre a mesa, à fren​te de Dom, e abriu nas fo​lhas dos
dias 6 e 7 de ju​lho, sex​ta-fei​r a e sá​ba​do.
— Como pen​sa​m os — dis​se. — Na​que​la sex​ta-fei​r a a ro​do​via foi in​ter​di​ta​-
da por cau​sa do va​za​m en​to de um gás tó​xi​c o. Uma car​ga de pro​du​tos quí​m i​c os
era trans​por​ta​da para Shenk​f i​e ld, uma ins​ta​la​ç ão mi​li​tar per​to dali, a su​do​e s​te. Ti​-
ve​m os que fe​c har o mo​tel até a ter​ç a-fei​r a se​guin​te, quan​do lim​pa​r am a área.
— Shenk​f i​e ld é uma base mi​li​tar onde são tes​ta​das ar​m as quí​m i​c as e bi​o​ló​-
gi​c as. Foi um aci​den​te mui​to feio — Er​nie acres​c en​tou.
Fay e con​ti​nuou a fa​lar, mas numa voz es​tra​nha, fria, como se re​pe​tis​se um
dis​c ur​so de​c o​r a​do:
— A es​tra​da foi blo​que​a ​da e ti​ve​m os que eva​c u​a r a área de ris​c o. Nos​sos
hós​pe​des sa​í​r am nos pró​pri​os car​r os. — O ros​to sem ex​pres​são, au​sen​te. Ned e
Sandy Sar​ver fo​r am au​to​r i​za​dos a vol​tar para seu trai​ler, per​to de Be​owawe, por​-
que a ci​da​de es​ta​va fora da área sob qua​r en​te​na.
— Mas... — Dom ar​r e​ga​lou os olhos, con​f u​so e atô​ni​to. — Não me lem​bro
de nada dis​so! E eu es​ta​va aquil Lem​bro que li mui​to, con​ti​nu​e i mi​nhas pes​qui​sas
so​bre a re​gi​ã o para uma sé​r ie de con​tos... Mas são lem​bran​ç as tão tê​nu​e s que,
com cer​te​za, de​vem ser fal​sas. De qual​quer modo, eu es​ta​va aqui! Bem aqui, e
em ne​nhum ou​tro lu​gar. E foi aqui que al​gu​m a coi​sa acon​te​c eu. Apon​tou a foto
so​bre a mesa: — Essa é a pro​va.
Quan​do Fay e vol​tou a fa​lar, a voz so​a ​va ain​da mais es​tra​nha, e Dom ob​ser​-
vou que seus olhos es​ta​vam pa​r a​dos, como se não vis​sem os ros​tos ao re​dor.
— Até li​be​r a​r em a área, Er​nie e eu fi​c a​m os em casa de El​r oy e Nancy
Ja​m i​son, um ca​sal ami​go. Uma fa​zen​da nas mon​ta​nhas, a de​zes​seis qui​lô​m e​tros
da​qui. Foi um gran​de va​za​m en​to. O Exér​c i​to tra​ba​lhou mais de três dias para
lim​par tudo. Não nos dei​xa​r am vol​tar an​tes da ter​ç a-fei​r a.
— O que há com você? — Dom per​gun​tou-lhe.
— O quê? — Fay e es​tre​m e​c eu.
— Você está es​qui​si​ta, fa​lan​do de um modo es​tra​nho! Como um pa​pa​gaio,
re​pe​tin​do fra​ses de​c o​r a​das.
— Mas... como?! — Ela pa​r e​c ia sin​c e​r a​m en​te sur​pre​sa. — O que você
acha que...
— Sua voz es​ta​va mui​to es​tra​nha — con​f ir​m ou Er​nie, fran​zin​do a tes​ta.
Sem vida.
— Mas eu só es​ta​va con​tan​do o que acon​te​c eu... — Fay e in​c li​nou-se so​bre
a mesa e mos​trou com o dedo a pá​gi​na do li​vro de re​gis​tro. — Aqui está. Tí​nha​-
mos onze quar​tos ocu​pa​dos quan​do a ro​do​via foi in​ter​di​ta​da. Mas nin​guém pa​gou
a hos​pe​da​gem, por​que to​dos fo​r am obri​ga​dos a sair. Fo​r am eva​c u​a ​dos.
— Aí está seu nome — dis​se Er​nie, olhan​do para Dom. — Você é o sé​ti​m o
da lis​ta.
Dom viu sua as​si​na​tu​r a ao lado do en​de​r e​ç o em Moun​tain​vi​e w, Utah, para
onde se mu​da​r a na​que​la épo​c a. Lem​bra​va-se de ter se re​gis​tra​do no mo​tel, mas
não de pe​gar o car​r o e se​guir vi​a ​gem na mes​m a noi​te por cau​sa de uma or​dem
de eva​c u​a ​ç ão da área.
— Vo​c ês che​ga​r am a ver o aci​den​te? — per​gun​tou.
— Não — Er​nie res​pon​deu. — Acon​te​c eu a al​guns qui​lô​m e​tros da​qui. Os
es​pe​c i​a ​lis​tas de Shenk​f i​e ld te​m i​a m que os pro​du​tos quí​m i​c os fos​sem le​va​dos pelo
ven​to e de​c i​di​r am eva​c u​a r uma gran​de área em tor​no do lo​c al do aci​den​te.
Com um ca​la​f rio, Dom per​c e​beu que Er​nie fa​la​va no mes​m o tom mo​no​c ór​-
di​c o e inex​pres​si​vo de Fay e. Vi​r ou-se para ela e viu-a es​tu​pe​f a​ta.
— Foi as​sim que você fa​lou — dis​se, apon​tan​do para Er​nie. — Vo​c ês dois
fo​r am pro​gra​m a​dos para re​pe​tir sem​pre a mes​m a his​tó​r ia.
— Você... acha que o va​za​m en​to não acon​te​c eu? — ela in​da​gou.
— Mas é cla​ro que acon​te​c eu — Er​nie vi​r ou-se para Dom. — Che​ga​m os a
guar​dar re​c or​tes de jor​nal so​bre o as​sun​to. O Elko Sen​ti​ne​la fa​lou mui​to so​bre o
va​za​m en​to, mas acho que já não te​m os os re​c or​tes. Até hoje as pes​so​a s ain​da
co​m en​tam o aci​den​te, com medo do que po​de​r ia ter acon​te​c i​do se a or​dem de
eva​c u​a ​ç ão da área não che​gas​se a tem​po. Não, não... nem pen​se que in​ven​ta​m os
essa his​tó​r ia!
— Se qui​ser, per​gun​te a El​r oy e Nancy Ja​m i​son — Fay e con​ti​nuou. — Vi​-
e​r am nos vi​si​tar na​que​la noi​te. Quan​do che​gou a or​dem de eva​c u​a ​ç ão, os dois se
ofe​r e​c e​r am para nos hos​pe​dar até po​der​m os vol​tar para casa.
Dom sor​r iu, mas não se deu por ven​c i​do.
— O de​poi​m en​to de​les vale tan​to quan​to o de vo​c ês... ou o meu. Se es​ta​-
vam aquiu, en​tão vi​r am tam​bém o que vi​m os. E fo​r am obri​ga​dos, como nós, a
es​que​c er tudo. Vão di​zer que se lem​bram de ter le​va​do vo​c ês para casa por​que
isso é o que fo​r am pro​gra​m a​dos para lem​brar. Sou ca​paz de apos​tar que fo​r am
man​ti​dos aqui no mo​tel, como nós, so​f ren​do o mes​m o pro​c es​so de la​va​gem ce​-
re​bral que so​f re​m os.
— Al​guém está elou​que​c en​do... — Fay e sus​pi​r ou. — Tal​vez seja eu...
— Mas, que​r i​da! — Er​nie abriu os bra​ç os. — E cla​ro que o va​za​m en​to
acon​te​c eu! Le​m os os jor​nais!
Dom pen​sou numa pos​si​bi​li​da​de que o fa​zia ar​r e​pi​a r-se da ca​be​ç a aos pés:
— E se to​dos nós, que es​tá​va​m os aqui na​que​la noi​te, ti​vés​se​m os sido... con​-
ta​m i​na​dos? Por uma des​sas ar​m as tes​ta​das em Shenk​f i​e ld... por uma des​sas “coi​-
sas” quí​m i​c as ou bi​o​ló​gi​c as? E se o Exér​c i​to e o go​ver​no mon​ta​r am uma en​c e​na​-
ção para evi​tar pressões de opi​ni​ã o pú​bli​c a, crí​ti​c as da im​pren​sa, mi​lhões de dó​-
la​r es de in​de​ni​za​ç ões... e a di​vul​ga​ç ão de al​gu​m a no​tí​c ia en​vol​ven​do a se​gu​r an​ç a
na​c i​o​nal? E se re​sol​ve​r am in​ter​di​tar a ro​do​via e di​vul​gar que to​dos fo​r am eva​c u​-
a​dos em se​gu​r an​ç a quan​do, na ver​da​de, hou​ve gen​te que não foi eva​c u​a ​da? Po​-
de​r i​a m ter usa​do o mo​tel como uma es​pé​c ie de hos​pi​tal... Po​de​r i​a m ter tra​ta​do
de fa​zer com que es​que​c és​se​m os o que vi​m os, re​pro​gra​m an​do nos​sa me​m ó​r ia
de modo que ja​m ais vol​tás​se​m os a pen​sar no que acon​te​c eu...
Em si​lên​c io, os três en​tre​o​lha​r am-se, as​sus​ta​dos. Não por​que a ex​pli​c a​ç ão
pa​r e​c es​se pos​sí​vel ou ra​zo​á ​vel, mas por​que, pela pri​m ei​r a vez, ocor​r ia-lhes um
modo de ex​pli​c ar os pro​ble​m as psi​c o​ló​gi​c os que es​ta​vam en​f ren​tan​do... e as es​-
tra​nhas fo​tos de pes​so​a s dro​ga​das.
Um se​gun​do de per​ple​xi​da​de, e Er​nie e Fay e co​m e​ç a​r am a pen​sar. O ho​-
mem foi o pri​m ei​r o a fa​lar:
— Nes​se caso, se​r ia ló​gi​c o que nos lem​brás​se​m os da eva​c u​a ​ç ão e do va​za​-
men​to. Como fi​ze​r am com Fay e, co​m i​go, com Ned e Sandy, com os Ja​m i​son.
Por que não fa​r i​a m o mes​m o com você, por exem​plo? Por que te​r i​a m cor​r i​do o
ris​c o de pro​gra​m ar-nos para ter​m os lem​bran​ç as di​f e​r en​tes? Lem​bran​ç as que
nada têm a ver com a eva​c u​a ​ç ão e com o va​za​m en​to? Não faz sen​ti​do e pa​r e​c e
ar​r is​c a​do de​m ais... O que es​tou ten​tan​do di​zer é que o fato de ter​m os lem​bran​ç as
di​f e​r en​tes é a pro​va de​f i​ni​ti​va de que ou nós dois, ou ape​nas você, ou to​dos pas​sa​-
mos mes​m o por uma la​va​gem ce​r e​bral.
— Não sei — Dom res​pi​r ou fun​do. — E mais um mis​té​r io para de​c i​f rar.
— Ou​tra per​gun​ta. Se fo​m os con​ta​m i​na​dos por al​gu​m a arma quí​m i​c a ou
bi​o​ló​gi​c a, por que te​r i​a m per​m i​ti​do que vol​tás​se​m os à vida nor​m al, três dias mais
tar​de? — Er​nie con​ti​nuou. — Não ha​ve​r ia o ris​c o de es​pa​lhar​m os a epi​de​m ia en​-
tre a po​pu​la​ç ão?
— Não, se o agen​te da con​ta​m i​na​ç ão fos​se quí​m i​c o e não bi​o​ló​gi​c o. Um
des​ses pro​du​tos que po​dem ser neu​tra​li​za​dos por um an​tí​do​to — Dom res​pon​deu.
— Des​sas dro​gas que vão per​den​do o efei​to à me​di​da que o tem​po pas​sa.
— Não faz sen​ti​do — Fay e ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. — Shenk​f i​e ld é uma base
de ex​pe​r i​ê n​c i​a s de ar​m as de guer​r a. Ga​ses que ma​tam, ga​ses que en​lou​que​-
cem... es​sas coi​sas ter​r í​veis que o ho​m em anda in​ven​tan​do. Se ti​vés​se​m os sido
con​ta​m i​na​dos por uma des​sas dro​gas, já es​ta​r í​a ​m os mor​tos, ou à bei​r a da mor​-
te... ou à bei​r a da lou​c u​r a.
— Pode ser uma dro​ga de ação len​ta — Dom pon​de​r ou. — Des​sas que
cau​sam cân​c er, leu​c e​m ia. Le​vam anos até pro​vo​c ar a mor​te.
Ou​tra pos​si​bi​li​da​de as​sus​ta​do​r a que ain​da não lhes ocor​r e​r a.
Em si​lên​c io, ou​vi​r am o re​ló​gio dar as ho​r as, o ven​to so​prar en​tre as fres​tas
das ja​ne​las, pen​san​do no tipo de des​gra​ç a que po​de​r ia es​tar ger​m i​nan​do em suas
vei​a s. Por fim, Er​nie fa​lou:
— E pos​sí​vel que es​te​j a​m os con​ta​m i​na​dos e con​de​na​dos... Mas al​gu​m a
coi​sa me diz que não é essa a ex​pli​c a​ç ão fi​nal. De um modo ou de ou​tro, Shenk​f i​-
eld é uma base mi​li​tar... Eles tes​tam ar​mas lá! E para que ser​vi​r ia uma arma que
leve anos para aca​bar com o ini​m i​go?!
— Para nada — dis​se Dom.
— E como se en​c ai​xa​r ia aí a ex​pe​r i​ê n​c ia es​tra​nhís​si​m a da casa de Lo​m ack
em Reno?
— Não te​nho idéia, são... pos​si​bi​li​da​des — de​c la​r ou Dom. — De qual​quer
modo, ago​r a sa​be​m os que es​ti​ve​m os jun​tos numa área eva​c u​a ​da pelo Exér​c i​to
sob pre​tex​to de um va​za​m en​to de subs​tân​c ia tó​xi​c a. Seja isso ver​da​de ou não, a
te​o​r ia da la​va​gem ce​r e​bral é me​nos ab​sur​da. An​tes de sa​ber do va​za​m en​to, eu
não con​se​gui en​ten​der como al​guém po​de​r ia ter nos de​ti​do, con​tra nos​sa von​ta​de,
du​r an​te o tem​po ne​c es​sá​r io para fa​zer a la​va​gem ce​r e​bral. Mas o pe​r í​o​do de
qua​r en​te​na ex​pli​c a tudo... e ser​viu, in​c lu​si​ve, para man​ter a im​pren​sa e os cu​r i​o​-
sos a dis​tân​c ia. As​sim, já co​m e​ç a​m os a des​c o​brir con​tra quem es​ta​m os lu​tan​do:
o Exér​c i​to dos Es​ta​dos Uni​dos, pro​va​vel​m en​te em con​luio com o go​ver​no, mas
tal​vez so​zi​nho. São eles que es​tão ten​tan​do es​c on​der o que acon​te​c eu aqui, al​gu​-
ma ex​pe​r i​ê n​c ia que fi​ze​r am e não de​ve​r i​a m ter fei​to. Não sei, ami​gos... a idéia
de en​f ren​tar ini​m i​gos tão po​de​r o​sos e cru​é is me faz ge​lar até os os​sos.
— Nós, da Ma​r i​nha, sem​pre des​c on​f i​a ​m os do Exér​c i​to — dis​se Er​nie —,
mas eles não são as​sim tão maus. Não po​de​m os co​m e​ç ar a de​li​r ar, ima​gi​nan​do
que fo​m os ví​ti​m as de um com​plô de di​r ei​ta. Esse tipo de pa​r a​nóia ren​de mi​lhões
em Holly wo​od, po​r ém na vida real as coi​sas são mais su​tis. Se o Exér​c i​to e o go​-
ver​no es​tão mes​m o por trás do que nos acon​te​c eu, tal​vez seus mo​ti​vos não se​j am
imo​r ais. Tal​vez te​nham até agi​do do modo mais acer​ta​do, con​si​de​r a​das as cir​-
cuns​tân​c i​a s.
— Não es​tou in​te​r es​sa​da nos mo​ti​vos de​les — Fay e re​pli​c ou.
— Mas te​m os de sa​ber o que hou​ve, por​que se não essa nic​to​f o-bia vai dei​-
xar você lou​c o, e o so​nam​bu​lis​m o de Dom agra​va​r á cada vez mais... O que fa​r e​-
mos en​tão?
“Sem​pre po​de​r e​m os dar um tiro na boca, como Lo​m ack”, era uma das res​-
pos​tas pos​sí​veis.
Dom de​bru​ç ou-se so​bre o li​vro de re​gis​tro de hós​pe​des e, qua​tro li​nhas aci​-
ma de seu nome, viu uma as​si​na​tu​r a que o fez es​tre​m e​c er: Gin​ger Weiss.
— Gin​ger... — mur​m u​r ou. — O quar​to nome es​c ri​to nas fo​tos da casa de
Lo​m ack...
Além des​se, apa​r e​c ia tam​bém o nome de Cal Shark​le, o ca​m i​nho​nei​r o ami​-
go dos Block, o ho​m em de olhos de zum​bi que fi​gu​r a​va numa das fo​tos en​vi​a ​das
pelo cor​r eio. Re​gis​tra​r a-se como hós​pe​de ime​di​a ​ta​m en​te an​tes de Gin​ger. Os pri​-
mei​r os re​gis​tros do dia cor​r es​pon​di​a m à fa​m í​lia Ry koff, ma​r i​do, mu​lher e fi​lha,
de Las Ve​gas. Dom po​dia ju​r ar que eram os três da foto ti​r a​da em fren​te ao
quar​to nú​m e​r o 9. O nome de Ze​be​di​a h Lo​m ack não cons​ta​va no li​vro, quem sabe
não se hos​pe​da​r a no mo​tel, ape​nas es​ta​va jan​tan​do no res​tau​r an​te em meio à vi​-
a​gem de Elko a Reno, ou vice-ver​sa. Um dos ou​tros no​m es po​dia ser o do pa​dre
da ou​tra foto, que, nes​se caso, não de​c la​r a​r a sua con​di​ç ão de ecle​si​á s​ti​c o.
— Va​m os en​trar em con​ta​to com es​sas pes​so​a s — Dom de​c la​r ou, mui​to
agi​ta​do. — Ama​nhã cedo co​m e​ç a​r e​m os a te​le​f o​nar para ver se al​guém se lem​-
bra de al​gu​m a coi​sa so​bre aque​la se​m a​na de ju​lho.
Chi​c a​go, Il​li​nois
Fir​m e em sua de​c i​são, Bren​dan aca​bou con​se​guin​do per​m is​são do pa​dre
para vi​a ​j ar so​zi​nho. No do​m in​go, às dez e dez da noi​te, já es​ta​va dei​ta​do no quar​-
to es​c u​r o, ob​ser​van​do o pá​li​do re​f le​xo da Lua no gelo que se for​m a​va do lado de
fora das vi​dra​ç as. De​via ser um re​f le​xo, por​que a Lua nas​c ia do ou​tro lado da
casa, vi​sí​vel do es​c ri​tó​r io do pa​dre Wy ​c a​zik, e não po​dia bri​lhar ali, a me​nos que
mu​das​se de tra​j e​tó​r ia, o que era im​pos​sí​vel. Es​pe​r an​do o sono che​gar, Bren​dan
con​c en​trou-se nas es​tra​nhas fi​gu​r as que se cru​za​vam e re​f le​ti​a m na su​per​f í​c ie
ge​la​da.
— A Lua! — ou​viu-se mur​m u​r ar, sur​pre​so. — A Lua!
Aos pou​c os, per​c e​beu que uma for​m a ní​ti​da se de​li​ne​a ​va à fren​te da ja​ne​la.
No co​m e​ç o, ape​nas o bri​lho o atra​ía. De​pois a fas​c i​na​ç ão tor​nou-se mais in​ten​sa,
como se an​te​c i​pas​se um gran​de acon​te​c i​m en​to, e cha​m a​va-o como can​to de se​-
rei​a s. Sem en​ten​der por quê, Bren​dan afas​tou as co​ber​tas e es​ten​deu o bra​ç o na
di​r e​ç ão da ja​ne​la, dis​tan​te de​m ais para po​der al​c an​ç á-la. O con​tor​no dos de​dos
apa​r e​c eu, mui​to vi​sí​vel, con​tra o bri​lho pra​te​a ​do da vi​dra​ç a. Ele que​r ia che​gar à
luz. Não à luz es​bran​qui​ç a​da que via na ja​ne​la, mas à dou​r a​da que ilu​m i​na​va
seus so​nhos.
— A Lua — re​pe​tiu. Sen​tiu o co​r a​ç ão ba​ter ace​le​r a​do e pôs-se a tre​m er.
De re​pen​te, o gelo co​m e​ç ou a der​r e​ter, a par​tir dos cai​xi​lhos de ma​dei​r a em
di​r e​ç ão ao cen​tro, como se uma cal​da açu​c a​r a​da es​c or​r es​se pelo vi​dro, até for​-
mar um cír​c u​lo per​f ei​to.
A Lua.
Era um si​nal. Mas de onde vi​nha? O que sig​ni​f i​c a​va? Bren​dan sa​bia que na
noi​te de Na​tal, quan​do dor​m i​r a em casa dos pais em Brid​ge​port, so​nha​r a com a
Lua, pois acor​da​r a a fa​m í​lia in​tei​r a com seus gri​tos as​sus​ta​dos. Mas não con​se​-
guia re​c or​dar qual​quer de​ta​lhe do so​nho. Des​de aque​la noi​te, po​r ém, tan​to quan​to
po​dia lem​brar, não vol​ta​r a a so​nhar com a Lua. Apa​r e​c ia sem​pre um mes​m o lu​-
gar mis​te​r i​o​so, inun​da​do de luz dou​r a​da, para o qual se sen​tia cha​m a​do, como se
lá o es​pe​r as​se uma fan​tás​ti​c a des​c o​ber​ta.
No quar​to, ain​da com a mão es​ten​di​da para a ja​ne​la, viu o cír​c u​lo es​bran​qui​-
ça​do tor​nan​do-se cada vez mais bri​lhan​te... iri​des​c en​te... até trans​f or​m ar-se em
pura pra​ta, cin​ti​lan​do con​tra o vi​dro.
O co​r a​ç ão aos pu​los, cer​to de que se apro​xi​m a​va o mo​m en​to da re​ve​la​ç ão,
Bren​dan man​te​ve a mão apon​ta​da para a ja​ne​la e sal​tou de sus​to ao ver que o
cír​c u​lo de pra​ta emi​tia um fei​xe de luz em di​r e​ç ão à cama. Um fa​c ho como o de
uma lan​ter​na, mui​to cla​r o. Os olhos ar​r e​ga​la​dos, ten​tan​do en​ten​der como um pe​-
da​ç o de gelo co​la​do à vi​dra​ç a po​dia emi​tir luz, per​c e​beu que a luz se aver​m e​lha​-
va.
As co​ber​tas pe​sa​vam-lhe como chum​bo, e a mão, ain​da es​ten​di​da, pa​r e​c ia
mo​lha​da de san​gue. Ago​r a ele sa​bia que es​ti​ve​r a fren​te a uma Lua es​c ar​la​te, ba​-
nha​do em sua luz ver​m e​lha como san​gue.
Que​r ia en​ten​der o que via, des​c o​brir a pos​sí​vel re​la​ç ão en​tre aque​le es​tra​nho
bri​lho es​c ar​la​te e a des​lum​bran​te luz dou​r a​da dos so​nhos, mas sen​tia-se ar​r as​ta​do
para o des​c o​nhe​c i​do que o es​pe​r a​va além do fei​xe de luz... e tre​m ia de medo.
Cada vez mais in​ten​sa, a luz aca​bou por trans​f or​m ar o quar​to num in​f er​no de
fogo, ca​lor e som​bras ru​bras. O medo cres​c en​te fa​zia-o suar frio.
Rá​pi​do, es​c on​deu a mão sob as co​ber​tas. A luz ver​m e​lha ime​di​a ​ta​m en​te vol​-
tou ao tom pra​te​a ​do e logo, em se​gun​dos, ao bri​lho co​m um de uma fina ca​m a​da
de gelo co​la​da ao vi​dro e ilu​m i​na​da por uma pro​sai​c a lua de ja​nei​r o.
De vol​ta à es​c u​r i​dão, Bren​dan sen​tou-se na cama e acen​deu a lâm​pa​da de
ca​be​c ei​r a. Em​pa​pa​do de suor, tre​m en​do como uma cri​a n​ç a as​sus​ta​da, cor​r eu
para a ja​ne​la. O cír​c u​lo de gelo lá es​ta​va: uma Lua cheia, co​la​da à vi​dra​ç a.
Po​de​r ia ter sido um so​nho, uma alu​c i​na​ç ão... Mas não: a Lua con​ge​la​da es​ta​-
va ali, pal​pá​vel, real, es​c ar​la​te.
As​sus​ta​do, ele to​c ou o vi​dro com a pon​ta dos de​dos. Nada de anor​m al, além
da vi​bra​ç ão fria do ven​to no​tur​no. Sur​pre​so, viu que os anéis re​a ​pa​r e​c e​r am nas
pal​m as de suas mãos... e su​m i​a m na​que​le ins​tan​te, en​quan​to os exa​m i​na​va.
Vol​tou para per​to da cama e fi​c ou pa​r a​do por mui​to tem​po, en​c os​ta​do à ca​-
be​c ei​r a, os olhos aber​tos, sem co​r a​gem de se dei​tar para dor​m ir.
Elko County, Ne​v a​da
Er​nie pa​r ou ao lado da ba​nhei​r a, ten​tan​do lem​brar-se do que acon​te​c e​r a na
ma​dru​ga​da do sá​ba​do, 14 de de​zem​bro, quan​do ce​de​r a ao im​pul​so de abrir a ja​-
ne​la e so​f re​r á aque​la alu​c i​na​ç ão ater​r a​do​r a. Dom Cor​vai​sis es​ta​va jun​to à pia, e
Fay e es​pi​a ​va, pa​r a​da à por​ta.
A lâm​pa​da do teto bri​lha​va no piso de la​j o​tas, nas tor​nei​r as cro-
ma​das e no cano do chu​vei​r o, co​brin​do de re​f le​xos co​lo​r i​dos a cor​ti​na plás​ti​-
ca da ba​nhei​r a. Aos pou​c os, Er​nie lem​brou-se.
— Uma luz... vim até aqui por cau​sa da luz. Es​ta​va no auge de uma cri​se
de nic​to​f o​bia e ain​da ten​ta​va evi​tar que Fay e per​c e​bes​se. Não con​se​guia dor​m ir.
En​tão, saí da cama e vim para cá. Fe​c hei a por​ta e... foi como se re​nas​c es​se, no
mo​m en​to em que acen​di a luz.
Con​tou que a ja​ne​la pa​r e​c ia atraí-lo e que, de re​pen​te, ele sen​ti​r a uma ne​-
ces​si​da​de de​ses​pe​r a​da de fu​gir.
— E di​f í​c il de ex​pli​c ar... sem mais nem me​nos, mi​nha ca​be​ç a co​m e​ç ou a
gi​r ar, as idéi​a s mais ab​sur​das dan​do vol​tas e vol​tas... En​trei em pâ​ni​c o e pen​sei
que era mi​nha úni​c a chan​c e de fu​gir. Eu pre​c i​sa​va es​c a​par por aque​la ja​ne​la,
che​gar às co​li​nas, pro​c u​r ar so​c or​r o em al​gu​m a casa, pe​dir aju​da...
— Aju​da? — Dom per​gun​tou. — Por que pre​c i​sa​va de aju​da? E por que
pre​c i​sa​va fu​gir de sua pró​pria casa?
Er​nie ba​lan​ç ou a ca​be​ç a:
— Não faço a me​nor idéia. — Lem​brou como se sen​ti​r a es​tra​nho, com
uma sen​sa​ç ão de ur​gên​c ia e, ao mes​m o tem​po, de des​lum​bra​m en​to. — Che​guei
a abrir a ja​ne​la... E te​r ia sal​ta​do, se não ti​ves​se apa​r e​c i​do aque​le ho​m em... Bem
ali, so​bre o te​lha​do.
— Quem era? — Dom o in​ter​r om​peu.
— Pa​r e​c e lou​c u​r a. Era um mo​to​c i​c lis​ta de ca​pa​c e​te bran​c o, com o vi​sor
bai​xa​do so​bre o ros​to. Usa​va lu​vas pre​tas. Che​gou a en​f i​a r a mão pela ja​ne​la,
como se qui​ses​se me pe​gar. Ten​tei es​c a​par, aca​bei es​c or​r e​gan​do e caí.
— Foi quan​do eu en​trei — Fay e acres​c en​tou.
— Le​van​tei-me — con​ti​nuou Er​nie —, vol​tei à ja​ne​la e olhei para fora, na
di​r e​ç ão do te​lha​do. Não ha​via nin​guém. Deve ter sido uma alu​c i​na​ç ão.
— Em ca​sos agu​dos de fo​bia, quan​do o do​e n​te vive em es​ta​do de per​m a​-
nen​te an​si​e ​da​de, é co​m um ha​ver alu​c i​na​ç ões des​se tipo — in​f or​m ou Fay e.
Dom man​ti​nha os olhos fi​xos na ja​ne​la, como se es​pe​r as​se que a ver​da​de lhe
fos​se re​ve​la​da por al​gu​m a apa​r i​ç ão no vi​dro fos​c o.
— Não acho que te​nha sido uma alu​c i​na​ç ão — de​c la​r ou. — Acho que
você pas​sou, di​ga​m os, por uma cri​se de lem​bran​ç as. Al​gu​m a coi​sa da​qui​lo que
foi apa​ga​do de sua me​m ó​r ia, par​te do que você viu no ve​r ão re​tra​sa​do, ten​ta​va
vol​tar à tona. Por um mo​m en​to, no dia ca​tor​ze de de​zem​bro, você qua​se se lem​-
brou do que re​al​men​te acon​te​c e​r a, dos dias em que fora mes​mo apri​si​o​na​do em
sua pró​pria casa, da oca​si​ã o em que ten​ta​r a es​c a​par pela ja​ne​la do ba​nhei​r o.
— E ha​ve​r ia um ho​m em no te​lha​do? O que es​ta​r ia fa​zen​do lá ves​ti​do de
mo​to​c i​c lis​ta? E mui​to es​tra​nho...
— Po​dia ser um guar​da num des​ses tra​j es de la​bo​r a​tó​r io usa​dos pelo pes​-
so​a l que tra​ba​lha em am​bi​e n​te con​ta​m i​na​do, e com ca​pa​c e​te à pro​va de ar.
— Am​bi​e n​te con​ta​m i​na​do... — Er​nie re​pe​tiu — Isso com​pro​va​r ia a idéia
do va​za​m en​to de gás.
— Tal​vez. Ain​da não po​de​m os ter cer​te​za de nada.
— E quan​to a mim? — Fay e per​gun​tou de re​pen​te. — Se nós to​dos pas​sa​-
mos pela mes​m a ex​pe​r i​ê n​c ia, como você está di​zen​do, por que você, Er​nie e Lo​-
mack fo​r am afe​ta​dos... e eu não? Não te​nho pe​sa​de​los, nem pro​ble​m as psi​c o​ló​gi​-
cos...
Dom ba​lan​ç ou a ca​be​ç a.
— Não sei... Mas não te​nho dú​vi​das de que pre​c i​sa​m os en​c on​trar res​pos​ta
para essa e mui​tas ou​tras per​gun​tas, se qui​ser​m os al​gum dia vol​tar a vi​ver como
gen​te nor​m al.
De Con​nec​ti​c ut a Nova York
De​pois de ti​r ar o di​nhei​r o do car​r o blin​da​do, Jack e os com​pa​nhei​r os vi​a ​j a​-
ram ape​nas dez qui​lô​m e​tros ao en​c on​tro dos ca​m i​nhões que blo​que​a ​vam a es​tra​-
da. To​dos reu​ni​dos, di​r i​gi​r am-se a uma ga​r a​gem alu​ga​da com do​c u​m en​tos fal​-
sos, onde ha​vi​a m dei​xa​do seus car​r os. A ga​r a​gem lo​c a​li​za​va-se num bair​r o cu​j as
leis de zo​ne​a ​m en​to per​m i​ti​a m a ins​ta​la​ç ão de pe​que​nas lo​j as ao lado das re​si​dên​-
ci​a s. Era uma área feia, de ca​sas ve​lhas, lâm​pa​das quei​m a​das nos pos​tes, vi​tri​nes
va​zi​a s e cães ma​gros pe​las sar​j e​tas.
Es​va​zi​a ​r am os ma​lo​tes no chão sujo de óleo e gra​xa, e con​ta-
ram o di​nhei​r o, di​vi​din​do-o em cin​c o pi​lhas, cada uma com cer​c a de tre​zen​-
tos e cin​qüen​ta mil dó​la​r es em no​tas ve​lhas e usa​das, que ja​m ais po​de​r i​a ​a m ser
iden​ti​f i​c a​das. Jack não sen​tia emo​ç ão nem ale​gria, só va​zio.
Em cin​c o mi​nu​tos, cada um dos ho​m ens to​m a​va seu rumo, dis​per​san​do-se. A
neve co​m e​ç ou a cair, ain​da leve, sem atra​pa​lhar a vi​si​bi​li​da​de. Vol​tan​do para
Ma​nhat​tan, a cada mi​nu​to Jack per​c e​bia que algo mui​to es​tra​nho ocor​r ia. Já não
se sen​tia va​zio. Não se sur​preen​de​r ia se o in​va​dis​se uma re​pen​ti​na onda de tris​te​-
za ou de​ses​pe​r o, pois fa​zia ape​nas de​zes​se​te dias que Jenny ha​via mor​r i​do. Mas
não era tris​te​za ou de​ses​pe​r o « a emo​ç ão que cres​c ia em §eu ín​ti​m o. Era cul​pai
Os tre​zen​tos e cin​qüen​ta mil dó​la​r es que le​va​va no por​ta-ma​las pe​sa​vam-lhe na
cons​c i​ê n​c ia como uma to​ne​la​da de cul​pas. Em oito anos de ati​vi​da​des cri​m i​no​-
sas, pla​ne​j a​das e exe​c u​ta​das sem fa​lha mui​tas de​las mais ou​sa​das e ren​do​sas que
o as​sal​to ao car​r o blin​da​do, nun​c a sen​ti​r a o me​nor ves​tí​gio de cul​pa. Até aque​le
mo​m en​to, ali​m en​ta​r a-se do pra​zer da vin​gan​ç a. Mas isso fora no pas​sa​do.
Na noi​te de Ma​nhat​tan, var​r i​da de ven​to frio, co​m e​ç a​va a se sen​tir um la​-
drão​zi​nho ba​r a​to. A cul​pa gru​da​va-se nele qual uma mor​ta​lha. Por vá​r i​a s ve​zes
ten​tou con​c en​trar-se e reen​c on​trar o sen​ti​m en​to de exal​ta​ç ão que o in​va​dia ao
con​c luir um tra​ba​lho. In​ú​til. A mor​ta​lha de cul​pa era já uma se​gun​da pele, de​-
sen​vol​vi​da du​r an​te me​ses... Des​de o as​sal​to à jo​a ​lhe​r ia, em ou​tu​bro, ele co​m e​ç a​-
ra a sen​tir-se cada vez mais de​si​lu​di​do. As mu​dan​ç as tal​vez ti​ves​sem co​m e​ç a​do
na​que​la épo​c a. No en​tan​to, quan​to mais pen​sa​va, mais se con​ven​c ia de que os
pro​ble​m as se ori​gi​na​r am mui​to an​tes...
Qual fora o úl​ti​m o tra​ba​lho a dar-lhe real ale​gria? O as​sal​to a McAl​lis​ter, em
Ma​r in County, ao nor​te de San Fran​c is​c o! No ve​r ão re​tra​sa​do.
Ra​r a​m en​te acei​ta​va tra​ba​lhar em ci​da​des dis​tan​tes, pois não que​r ia afas​tar-
se de Jenny. Mas Bran​c h Pol​lard, um de seus cúm​pli​c es no re​c en​te as​sal​to ao
car​r o blin​da​do, pas​sa​va fé​r i​a s na Ca​li​f ór​nia e lá, à bei​r a do Pa​c í​f i​c o, des​c o​bri​r a
que Avril McAl​lis​ter era um
per​f ei​to cor​dei​r o para ser tos​qui​a ​do: um in​dus​tri​a l corn du​zen​tos mi​lhões de
dó​la​r es à es​pe​r a do la​drão cer​to. Mo​r a​va numa vas​ta pro​pri​e ​da​de em Ma​r in
County, pro​te​gi​do por mu​r os de pe​dra e um com​ple​xo sis​te​m a de se​gu​r an​ç a ele​-
trô​ni​c o — sem fa​lar nos ca​c hor​r os. A par​tir de con​ta​tos os mais va​r i​a ​dos, Bran​c h
des​c o​bri​r a que McAl​lis​ter co​le​c i​o​na​va se​los e mo​e ​das ra​r as, ob​j e​tos fá​c eis de
ne​go​c i​a r. Não bas​tas​se isso, cos​tu​m a​va vi​si​tar Las Ve​gas três ve​zes por se​m a​na;
qua​se sem​pre, lá dei​xa​va um quar​to de mi​lhão de dó​la​r es, mas even​tu​a l​m en​te
vol​ta​va para casa car​r e​ga​do de di​nhei​r o. Quan​do ga​nha​va, guar​da​va o di​nhei​r o
em casa para fu​gir ao im​pos​to de ren​da, Bran​c h pre​c i​sa​va da ex​pe​r i​ê n​c ia e
da ha​bi​li​da​de de Jack, e este an​da​va que​r en​do mu​dar de ce​ná​r io. Bas​ta​va en​c on​-
trar um ter​c ei​r o ho​m em.
O pla​no fun​c i​o​na​r a como re​ló​gio. En​tra​r am na man​são sem a me​nor di​f i​c ul​-
da​de. Equi​pa​dos com apa​r e​lhos de es​c u​ta ele​trô​ni​c a ca​pa​zes de am​pli​f i​c ar o es​-
ta​li​do de cada nú​m e​r o de com​bi​na​ç ão do co​f re, trans​f or​m a​r am a ope​r a​ç ão em
brin​c a​dei​r a de cri​a n​ç a. Por via das dú​vi​das, con​tu​do, le​va​r am um con​j un​to
de fer​r a​m en​tas de ar​r om​ba​m en​to e car​gas de ex​plo​si​vo plás​ti​c o. 0 pro​ble​m a foi
que McAl​lis​ter não ti​nha co​f re, mas cai​xa-for​te. E pa​r e​c ia con​f i​a r tan​to nela que
nem se dera ao tra​ba​lho de es​c on​dê-la ou dis​f ar​ç á-la. Mal en​tra​r am, vi​r am a
por​ta de aço ma​c i​ç o, ocu​pan​do toda a pa​r e​de da sala de jo​gos. O apa​r e​lho de es​-
cu​ta ele​trô​ni​c o en​sur​de​c eu com sua es​pes​su​r a. O ex​plo​si​vo plás​ti​c o, que fa​r ia
voar qual​quer co​f re, mal con​se​guiu des​c as​c ar a pin​tu​r a da​que​le mons​tro. O con​-
jun​to de fer​r a​m en​tas vi​r ou pi​a ​da...
Aca​ba​r am sain​do da man​são sem mo​e ​das nem se​los, car​r e​gan​do ape​nas al​-
gu​m as pe​ç as da bai​xe​la de pra​ta, uma co​le​ç ão de li​vros, as pou​c as jói​a s que a
sra. McAl​lis​ter dei​xa​r a fora da cai​xa-for​te e umas bu​gi​gan​gas, que ven​de​r am
para três re​c ep​ta​do​r es por ape​nas ses​sen​ta mil dó​la​r es. Não que fos​se pou​c o,
mas fi​c a​va lon​ge do que es​pe​r a​vam con​se​guir e mal dera para co​brir os cus​tos
ope​r a​c i​o​nais e com​pen​sar os ris​c os.
Ape​sar de tudo, Jack di​ver​ti​r a-se mui​to. De​pois que sa​í​r am da man​são, ele e
Bran​c h de​r am boas ri​sa​das do re​tum​ban​te fra​c as​so.
Pas​sa​r am ain​da dois dias des​c an​san​do na Ca​li​f ór​nia até que, num re​pen​te,
Jack re​sol​ve​r a ir a Reno, com seus vin​te mil dó​la​r es, ten​tar a sor​te no pano ver​de.
Um dia de​pois de re​gis​trar-se no ho​tel, os vin​te mil dó​la​r es ren​de​r am-lhe mag​ní​-
fi​c os cen​to e sete mil. Ou​tra vez, rira mui​to. Dis​pos​to a en​c om​pri​dar as fé​r i​a s,
de​c i​di​r a vol​tar de car​r o para Nova York.
Mais de de​zoi​to me​ses de​pois, re​tor​nan​do de Con​nec​ti​c ut, des​c o​bri​r a que o
fra​c as​sa​do as​sal​to à man​são McAl​lis​ter fora o úl​ti​m o tra​ba​lho a lhe dar ale​gria.
De​pois da​que​le dia, cada vez mais se afas​ta​va da amo​r a​li​da​de va​zia dos pri​m ei​-
ros tem​pos. Per​c or​r e​r a um lon​go ca​m i​nho até que, por fim, vol​ta​va a ser um ho​-
mem ca​paz de sen​tir cul​pa. E a cul​pa re​a ​li​za​va o mi​la​gre de tor​ná-lo hu​m a​no.
Mas... por quê? Por que te​r ia mu​da​do tan​to? Por que, de re​pen​te, aque​la cul​-
pa es​tra​nha e sur​preen​den​te?! Não ti​nha res​pos​tas. Sa​bia ape​nas que já não se via
como um ban​di​do me​lan​c ó​li​c o e român​ti​c o, en​c ar​r e​ga​do de vin​gar-se do mun​do
que tan​to o mal​tra​ta​r a e que des​trui​r a sua ama​da.
Não pas​sa​va de um la​drão vul​gar. Du​r an​te oito anos ilu​di​r a-se a si mes​m o!
De re​pen​te, via-se fren​te a fren​te com seu ver​da​dei​r o ros​to, um ros​to que o as​-
sus​ta​va. Des​c o​bri​r a-se vi​ven​do uma vida sem sen​ti​do.
Con​ti​nuou di​r i​gin​do pe​las ruas de Ma​nhat​tan, sem rumo cer​to, sem von​ta​de
de vol​tar para o apar​ta​m en​to. Che​gou à Quin​ta Ave​ni​da, pró​xi​m o à Ca​te​dral de
St. Pa​trick e, sem en​ten​der o mo​ti​vo, pi​sou no freio e es​ta​c i​o​nou o car​r o em lo​c al
proi​bi​do. Des​c eu, abriu o por​ta-ma​las e apa​nhou meia dú​zia de ma​ç os de no​-
tas de vin​te dó​la​r es.
Era lou​c u​r a dei​xar o car​r o ali com mais de um ter​ç o de mi​lhão de dó​la​r es
rou​ba​dos, além da pas​ta com o com​put​dor e as ar​m as. Um guar​da po​de​r ia apa​-
re​c er para mul​tá-lo, des​c on​f i​a r de qual​quer coi​sa e re​vis​tar o ve​í​c u​lo; nes​se caso,
Jack es​ta​r ia con​de​na​do a aca​bar seus dias numa pri​são fe​de​r al. Mas isso já não
im​por​ta​va. Sen​tia-se como um mor​to-vivo. Como Jenny... que ain​da res​pi​r a​va
quan​do já ha​via mor​r i​do.
Jack em​pur​r ou uma das imen​sas por​tas de bron​ze da ca​te​dral, en​trou e apro​-
xi​m ou-se da nave onde meia dú​zia de pes​so​a s re​za​vam ajo​e ​lha​das e um ho​m em
acen​dia uma vela vo​ti​va, in​di​f e​r en​tes ao adi​a n​ta​do da hora.
Pa​r ou um mo​m en​to, ad​m i​r an​do o rico púl​pi​to de ma​dei​r a jun​to ao al​tar prin​-
ci​pal. Lo​c a​li​zou a cai​xa de es​m o​las e ca​m i​nhou para ela. En​tão, ti​r ou o di​nhei​r o
de den​tro do ca​sa​c o, ras​gou as ti​r as de pa​pel que pren​di​a m os ma​ç os e en​f i​ou as
no​tas de vin​te dó​la​r es na cai​xa de es​m o​las como se jo​gas​se lixo na li​xei​r a.
De vol​ta à cal​ç a​da, pa​r ou de re​pen​te, ofus​c a​do pela be​le​za da ci​da​de que se
re​c or​ta​va con​tra o céu es​c u​r o. Ha​via algo de novo na Quin​ta Ave​ni​da. Com os
flo​c os de neve bri​lhan​do à luz dos pos​tes ou dos fa​r óis dos car​r os, Nova York pa​-
re​c eu-lhe des​lum​bran​te. Era as​sim que a via an​tes de em​bar​c ar para a Amé​r i​c a
Cen​tral: bela, cheia de en​c an​tos, rica de atra​ti​vos e opor​tu​ni​da​des. De​pois que
vol​ta​r a da​que​le in​f er​no, pas​sa​r a a odi​a r a ci​da​de, por​que odi​a ​va os ho​m ens que
nela vi​vi​a m.
Re​tor​nou ao car​r o e to​m ou o rumo oes​te, se​guin​do pela Ave​ni​da das Amé​r i​-
cas, pas​sou pelo Cen​tral Park, en​trou à di​r ei​ta, ou​tra vez à di​r ei​ta, e vol​tou à Quin​-
ta Ave​ni​da na pis​ta sul, sem sa​ber ao cer​to seu des​ti​no. En​tão apro​xi​m ou-se da
Igre​j a Pres​bi​te​r i​a ​na. Como an​tes, es​ta​c i​o​nou em lo​c al proi​bi​do, ti​r ou al​gum di​-
nhei​r o do por​ta-ma​las e en​trou no tem​plo. Não viu cai​xa de es​m o​las, como na
ca​te​dral, mas en​c on​trou um jo​vem as​sis​ten​te do pas​tor e, sem se im​pres​si​o​nar
com seus olhos ar​r e​ga​la​dos de es​pan​to, en​tre​gou-lhe ma​ç os e ma​ç os de no​tas de
dez e vin​te dó​la​r es. Como o jo​vem con​ti​nu​a s​se à es​pe​r a de al​gu​m a ex​pli​c a​-
ção, Jack re​sol​veu di​zer que o di​nhei​r o lhe quei​m a​va as mãos por​que o ga​nha​r a
nos cas​si​nos de Atlan​tic City.
Com es​sas duas pa​r a​das gas​ta​r a trin​ta mil dó​la​r es — me​nos de um dé​c i​m o
de seu qui​nhão no as​sal​to, mui​to pou​c o para ex​pi​a r sua cul​pa. Na ver​da​de, sen​tia-
se cada vez mais cul​pa​do. Os ma​lo​tes de di​nhei​r o no por​ta-ma​las ge​m i​a m-lhe
aos ou​vi​dos como o co​r a​ç ão ocul​to sob o as​so​a ​lho, no con​to de Ed​gar Alan Poe,
tes-
te​m u​nha eter​na de um cri​m e sem ex​pi​a ​ç ão. Es​ta​va tão an​si​o​so para li​vrar-se
da​que​le di​nhei​r o como o nar​r a​dor do con​to para si​len​c i​a r o co​r a​ç ão de sua ví​ti​-
ma es​quar​te​j a​da.
Ain​da so​bra​vam-lhe tre​zen​tos e trin​ta mil dó​la​r es. Para al​guns ha​bi​tan​tes de
Nova York, o Na​tal che​ga​r ia com mais de duas se​m a​nas de atra​so.
Elko County, Ne​v a​da
No ve​r ão re​tra​sa​do, Dom hos​pe​da​r a-se no quar​to 20; lem​bra​va bem, por​que
era o úl​ti​m o da ala les​te. Ago​r a, es​pe​r a​va que o am​bi​e n​te co​nhe​c i​do lhe es​ti​m u​-
las​se a me​m ó​r ia, fa​zen​do-o re​c or​dar-se de al​gu​m a coi​sa: sua es​pe​r an​ç a con​ta​gi​-
ou Er​nie Block, que, do​m i​nan​do o medo do es​c u​r o, de​c i​diu acom​pa​nhá-lo até o
quar​to; no en​tan​to, re​a ​li​zou o per​c ur​so de olhos fe​c ha​dos, fir​m e​m en​te apoi​a ​do no
bra​ç o da es​po​sa.
Fay e acen​deu as lu​zes e fe​c hou as cor​ti​nas an​tes que os dois ho​m ens en​tras​-
sem no apo​sen​to. Er​nie só abriu os olhos quan​do ou​viu o ru​í​do da por​ta sen​do fe​-
cha​da. Dom es​ta​va apreen​si​vo. Ro​de​ou a cama de ca​sal, os olhos fi​xos na ca​be​-
cei​r a, es​f or​ç an​do-se para re​c or​dar. Quan​do es​ti​ve​r a dei​ta​do ali, dro​ga​do e in​de​-
fe​so?
— A col​c ha não é a mes​m a — dis​se Fay e.
A foto re​c e​bi​da pelo cor​r eio mos​tra​va uma pon​ta de col​c ha em te​c i​do es​-
tam​pa​do de flo​r es, mas so​bre a cama via-se uma col​c ha lis​tra​da de azul e mar​-
rom.
— Os mó​veis não fo​r am tro​c a​dos; a cama é a mes​m a — Er​nie com​ple​tou.
A ca​be​c ei​r a da cama era es​to​f a​da em te​c i​do mar​r om, li​gei​r a​m en​te des​bo​ta​-
do e gas​to nos can​tos. So​bre as me​si​nhas la​te​r ais bri​lha​vam duas lu​m i​ná​r i​a s, cuja
base lem​bra​va lan​ter​nas de si​na​li​za​ç ão: uma pe​que​na gra​de de fer​r o ba​ti​do, en​-
co​brin​do duas lâ​m i​nas de vi​dro fos​c o cor de âm​bar. Cada lu​m i​ná​r ia con​ti​nha
lâm​pa​das; uma mai​or, pro​te​gi​da pela cú​pu​la de te​c i​do tam​bém cor de âm​bar,
que for​ne​c ia qua​se toda a luz, e ou​tra bem mais fra​c a na for​m a de uma cha​m a
de vela, que fa​zia a base de vi​dro fos​c o bri​lhar como um lam​pi​ã o.
Aos pou​c os, os de​ta​lhes do quar​to tor​na​vam-se fa​m i​li​a ​r es. Dom sen​tia-se
como que en​tran​do numa ca​ver​na po​vo​a ​da de fan​tas​m as ame​a ​ç a​do​r es, in​vi​sí​-
veis, es​c on​di​dos en​tre as som​bras do pas​sa​do. Não são fan​tas​m as, pen​sou, mas
lem​bran​ç as ocul​tas den​tro de mim...
— Lem​bra-se de al​gu​m a coi​sa? — per​gun​tou Er​nie.
— Que​r o ir até o ba​nhei​r o — Dom li​m i​tou-se a res​pon​der. Sim​ples e fun​c i​-
o​nal, o pe​que​no ba​nhei​r o ti​nha um chu​vei​r o, piso de la​j o​tas, um ar​m á​r io re​ves​ti​-
do de fór​m i​c a e uma pia. Não era, po​r ém, a pia que fi​gu​r a​va nos pe​sa​de​los de
Dom; ao in​vés de ralo, ti​nha um mo​der​no dre​no que es​c on​dia o ori​f í​c io ne​gro do
cano.
— Não é essa pia — mur​m u​r ou ele. — A ou​tra é an​ti​ga, com um furo no
cen​tro e uma tam​pa de bor​r a​c ha pre​sa numa cor​r en-ti​nha que sai do lado da tor​-
nei​r a de água fria.
— Re​f or​m a​m os os ba​nhei​r os — Er​nie in​f or​m ou.
— Tro​c a​m os a pia ve​lha há uns oito ou nove me​ses — acres​c en​tou Fay e.
— Tam​bém tro​c a​m os o re​ves​ti​m en​to dos ar​m á​r i​os, mas man​ti​ve​m os a
mes​m a cor.
Dom ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, de​c ep​c i​o​na​do. Ti​nha cer​te​za de que tudo vol​ta​r ia
tão logo re​c o​nhe​c es​se a pia. Sa​bia que al​gu​m a coi​sa ter​r í​vel lhe acon​te​c e​r a na​-
que​le ba​nhei​r o e, a par​tir da lem​bran​ç a da pia, es​pe​r a​va que ou​tras aflo​r as​sem.
Apoi​ou-se nela mas nada sen​tiu além do con​ta​to frio da por​c e​la​na nas mãos.
— E en​tão?
— Não me lem​bro de nada — dis​se Dom. — Mas sin​to que há al​gu​m a coi​-
sa aqui. Se ti​ver​m os pa​c i​ê n​c ia, é pos​sí​vel que esse quar​to me des​per​te a me​m ó​-
ria. Vou dor​m ir e dar tem​po ao tem​po. Pode ser?
— Cla​r o — Fay e sor​r iu. — O quar​to é todo seu.
— Te​nho o pres​sen​ti​m en​to de que esta vai ser a pior noi​te de mi​nha vida.
La​gu​na Be​a​c h, Ca​li​f ór​nia
Ape​sar de ser um dos mais res​pei​ta​dos ar​tis​tas ame​r i​c a​nos vi-
vos, com suas te​las dis​pu​ta​das a peso de ouro pe​los mais im​por​tan​tes mu​seus
e co​le​c i​o​na​do​r es, ape​sar de ter ela​bo​r a​do re​tra​tos de per​so​na​li​da​des tão im​por​-
tan​tes como o pre​si​den​te dos Es​ta​dos Uni​dos, Parker Fai​ne não era nem tão ve​lho
nem tão sé​r io que não se en​tu​si​a s​m as​se com a in​tri​ga ar​m a​da ao re​dor de
seu me​lhor ami​go. Além da per​c ep​ç ão e da dis​c i​pli​na dos adul​tos, todo gran​de
ar​tis​ta pre​c i​sa de um pou​c o da ino​c ên​c ia, do des​lum​bra​m en​to e do sen​so de hu​-
mor das cri​a n​ç as. Para Fai​ne, acom​pa​nhar Dom, ain​da que a dis​tân​c ia, era
como par​ti​c i​par de uma gran​de brin​c a​dei​r a que, de re​pen​te, po​dia vi​r ar uma
aven​tu​r a de ver​da​de.
Toda ma​nhã, ao apa​nhar a cor​r es​pon​dên​c ia, ten​ta​va con​ven​c er-se de que
não o pre​o​c u​pa​va a pos​si​bi​li​da​de de ser se​gui​do. Ain​da as​sim, olha​va de um lado
para ou​tro, à pro​c u​r a de po​li​c i​a is ou ban​di​dos, fos​se quem fos​se que pu​des​se es​-
tar ob​ser​van​do seus pas​sos. À noi​te, ao sair de casa para es​pe​r ar a cha​m a​da de
Dom, dava vol​tas e vol​tas, sem ti​r ar os olhos do es​pe​lho re​tro​vi​sor, sem​pre à pro​-
cu​r a de al​guém. Nun​c a viu nada.
Pou​c o an​tes das nove da noi​te de sá​ba​do, de​pois de usar de mil ar​ti​f í​c i​os para
des​pis​tar al​gum even​tu​a l per​se​gui​dor in​vi​sí​vel, Parker che​gou a uma das ca​bi​nes
pú​bli​c as pró​xi​m as à es​ta​ç ão fer​r o​vi​á ​r ia. Cho​via mui​to, e a água es​c or​r en​do pe​las
pa​r e​des trans​pa​r en​tes da ca​bi​ne dis​tor​c ia as ima​gens do mun​do ex​te​r i​or, es​c on​-
dia seu ros​to dos olhos que, por aca​so, o ob​ser​vas​sem. Parker sen​tia-se per​so​na​-
gem de um ro​m an​c e de es​pi​o​na​gem, com o im​per​m e​á ​vel de gola le​van​ta​da e o
cha​péu de abas ca​í​das pin​gan​do água, en​f i​a ​do numa ca​bi​ne de te​le​f o​ne pú​bli​c o.
E es​ta​va ado​r an​do a brin​c a​dei​r a.
As nove em pon​to, o te​le​f o​ne to​c ou. Era Dom.
— Con​f or​m e o pre​vis​to, já es​tou no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. Não há dú​vi​da de
que tudo acon​te​c eu aqui.
Dom con​tou-lhe tudo: des​de a nic​to​f o​bia de Er​nie até as fo​tos en​vi​a ​das aos
Block, fa​lan​do a lín​gua mais ci​f ra​da e in​c om​preen​sí​vel a ou​vi​dos es​tra​nhos que
con​se​guiu.
Ser dis​c re​to tor​na​r a-se vi​tal. Se o mo​tel fora ce​ná​r io do que ele
não se lem​bra​va de ter vis​to no ve​r ão re​tra​sa​do, os te​le​f o​ne​m as cer​ta​m en​te
eram vi​gi​a ​dos. Se al​gum in​dis​c re​to ou​vis​se fa​lar das fo​tos, por exem​plo, des​c o​-
bri​r ia que ha​via um trai​dor em seu pró​prio time. Pas​sa​r ia a in​ves​ti​gar, aca​ba​r ia
des​c o​brin​do e, en​tão... adeus bi​lhe​tes, pis​tas ou fo​tos.
— Tam​bém te​m os no​vi​da​des por aqui — dis​se Parker. — Sua edi​to​r a, uma
tal de se​nho​r i​ta Wy ​c om​be, dei​xou re​c a​do na se​c re​tá​r ia-ele​trô​ni​c a. O Cre​pús​c u​lo
está em se​gun​da edi​ç ão e já ven​deu mais de cem mil exem​pla​r es.
— O Cre​pús​c u​lol — Dom gri​tou. — Ti​nha me es​que​c i​do! Des​de a lou​c u​r a
dos pôs​ters na casa de Lo​m ack, não pen​so em nada afo​r a o ve​r ão re​tra​sa​do.
— Essa tal de Wy ​c om​be diz que tem ou​tras no​vi​da​des e es​pe​r a que você
lhe te​le​f o​ne o mais rá​pi​do pos​sí​vel.
— Vou te​le​f o​nar. Você tem vis​to al​gu​m as foto in​te​r es​san​te? — Era o có​di​go
com​bi​na​do, para sa​ber se ha​vi​a m che​ga​do mais en​ve​lo​pes com fo​tos.
— Não. Nem fo​tos, nem bi​lhe​tes. — Parker sor​r iu para o re​f le​xo bri​lhan​te
dos fa​r óis que pas​sa​vam na pa​r e​de mo​lha​da. — Mas re​c e​be​m os uma car​ta, com
en​de​r e​ç o e nome do re​m e​ten​te, cla​r o... Você, que já iden​ti​f i​c ou três per​so​na​gens
da his​tó​r ia de Lo​m ack, es​ta​r ia in​te​r es​sa​do em iden​ti​f i​c ar a quar​ta?
— Gin​ger? Es​que​c i de con​tar que o nome dela está no re​gis​tro do mo​tel.
Gin​ger Weiss, de Bos​ton. Vou li​gar para ela ama​nhã cedo.
— Ora! Mas você es​tra​gou o show! De qual​quer modo, será que tam​bém
já sabe que ela lhe man​dou uma car​ta? Foi en​vi​a ​da à edi​to​r a de seu li​vro, com
ca​r im​bo do dia vin​te e seis de de​zem​bro. A car​ta an​dou por lá, ro​lan​do de mão
em mão, e afi​nal che​gou à cai​xa pos​tal. Ela diz que leu o li​vro, viu sua fo​to​gra​f ia
na con​tra​c a​pa e fi​c ou en​c an​ta​da por seus be​los olhos cas​ta​nhos. Diz tam​bém
que tem a im​pres​são de co​nhe​c er você de al​gum lu​gar... de que você faz par​te
das des​gra​ç as que a ator​m en​tam há al​guns me​ses.
— A car​ta está aí com você? — Dom per​gun​tou an​si​o​so.
Parker riu e leu a car​ta, sem dei​xar de olhar em vol​ta, exa​m i​nan​do a rua.
— Pre​c i​so fa​lar com ela — Dom gri​tou, no ins​tan​te em que o ami​go ter​m i​-
nou a lei​tu​r a. — Vou li​gar para Bos​ton ago​r a mes​m o! Até ama​nhã, no mes​m o lo​-
cal, mes​m o ho​r á​r io.
— Já que você me liga do mo​tel, onde os te​le​f o​nes po​dem es​tar vi​gi​a ​dos,
nao en​ten​do por que eu te​nho que to​m ar chu​va to​das as noi​tes para pro​c u​r ar ca​-
bi​nes te​le​f ô​ni​c as pe​las es​qui​nas.
— Cer​to. Te​le​f o​no para sua casa. Tome cui​da​do.
— Você tam​bém. — Parker des​li​gou, sa​tis​f ei​to por não ter mais que sair de
casa à noi​te, mas, ao mes​m o tem​po, sen​tin​do que a brin​c a​dei​r a de es​pi​o​na​gem
co​m e​ç a​va a per​der a gra​ç a.
Saiu da ca​bi​ne, bai​xou a ca​be​ç a para en​f ren​tar a chu​va e o ven​to, e sus​pi​r ou
de​sa​pon​ta​do, ao ver que nin​guém o es​pe​r a​va na es​c u​r i​dão com uma arma apon​-
ta​da para sua bar​r i​ga.
Bos​ton, Mas​sa​c hu​setts
En​ter​r a​do de ma​nhã, Pa​blo Jack​son ain​da acom​pa​nhou Gin-ger du​r an​te a
tar​de e a noi​te, como um fan​tas​na sor​r i​den​te, ele​gan​te e bon​do​so, que in​sis​tia em
não dei​xá-la so​zi​nha.
Sen​ta​da em seu quar​to no Mi​r an​te, ela ten​tou ler, mas não con​se​guiu con​c en​-
trar-se. Ora eram as lem​bran​ç as do má​gi​c o que in​sis​ti​a m em dan​ç ar-lhe di​a n​te
dos olhos, ora era a pre​o​c u​pa​ç ão com o que fa​zer no dia se​guin​te.
Pou​c o de​pois da meia-noi​te, quan​do já se pre​pa​r a​va para dei​tar-se, Rita
Han​naby apa​r e​c eu à por​ta do quar​to; dis​se-lhe que Domi-nick Cor​vai​sis es​ta​va
ao te​le​f o​ne e que ela po​de​r ia aten​der ao cha​m a​do no es​c ri​tó​r io, ao lado do quar​to
de Ge​or​ge. Gin​ger sal​tou para o robe ati​r a​do à pol​tro​na, ves​tiu-o e dis​pa​r ou pelo
cor​r e​dor.
O es​c ri​tó​r io, ain​da aque​c i​do e mer​gu​lha​do em pe​num​bra, pa​r e​c eu-lhe mais
acon​c he​gan​te do que nun​c a, com as pa​r e​des re​ves​ti​das de ma​dei​r a es​c u​r a, o ta​-
pe​te chi​nês es​tam​pa​do em ver​de e bege, e o mag​ní​f i​c o lus​tre de cris​tal. Ge​or​ge
es​pe​r a​va-a, com olhos de quem aca​ba​va de ser ar​r an​c a​do da cama, onde já es​-
ta​va des​de as nove e meia, ten​tan​do dor​m ir logo para che​gar cedo ao hos​pi​tal.
— Oh... Des​c ul​pe!
— Não se pre​o​c u​pe — ele sor​r iu. — Não era isso que você es​ta​va es​pe​r an​-
do?
— Ain​da não sei...
— Ve​nha — Rita cha​m ou o ma​r i​do. — Va​m os dei​xá-la em paz para fa​lar
com ele.
— Não, por fa​vor! — Gin​ger de​te​ve-a com um ges​to. — Que​r o que vo​c ês
fi​quem. — Cor​r eu para o te​le​f o​ne e sen​tou-se. — Alô?
— Gin​ger Weiss? — Uma voz for​te, mas agra​dá​vel. — A me​lhor idéia que
você po​dia ter era es​c re​ver para mim. Cla​r o que você não está lou​c a... E, se es​ti​-
ver, não é a úni​c a. Há vá​r i​a s pes​so​a s com pro​ble​m as se​m e​lhan​tes aos seus.
Gin​ger quis res​pon​der, mas a voz não saiu, pre​sa à gar​gan​ta. Tos​siu, pis​c ou,
res​pi​r ou fun​do an​tes de con​se​guir fa​lar:
— Des​c ul​pe, é que... Des​c ul​pe, não sou de cho​r ar, mas...
— Cho​r e à von​ta​de. En​quan​to isso vou-lhe con​tar so​bre meus pro​ble​m as.
Vi​r ei so​nâm​bu​lo de re​pen​te. E so​bre meus pe​sa​de​los... so​nho com a Lua e acor​do
aos ber​r os.
— A Lua... — ela re​pe​tiu bai​xi​nho, um ca​la​f rio ge​lan​do-lhe o cor​po. —
Tam​bém te​nho tido pe​sa​de​los, mas não me lem​bro de nada. Os ami​gos com
quem es​tou mo​r an​do é que me dis​se​r am que falo so​bre a Lua. E, tam​bém, que
gri​to...
Dom con​tou-lhe so​bre Lo​m ack, o sui​c i​da de Reno, ob​c e​c a​do com a Lua.
Gin​ger sen​tiu que um pu​nho ne​gro e for​te se fe​c ha​va so​bre seu co​r a​ç ão. Um
medo novo, cada vez mai​or.
— Fo​m os sub​m e​ti​dos a... la​va​gem ce​r e​bral — gri​tou de re​pen​te. — Nos​sos
pro​ble​m as são a con​se​qüên​c ia des​se pro​c es​so! Vi​m os al​gu​m a coi​sa que... não
de​ve​r i​a ​m os ter vis​to! E ago​r a es​sas lem​bran​ç as que​r em vir à tona!
Por um ins​tan​te, fez-se si​lên​c io do ou​tro lado da li​nha. Até que, qua​se sem
po​der fa​lar, Dom res​pon​deu:
— Tam​bém tive essa idéia... mas você pa​r e​c e ter cer​te​za de que...
— Eu te​nho cer​te​za! Pas​sei por mui​tas sessões de hip​no​se. Fiz re​gres​são
hip​nó​ti​c a e as​sim re​vi​vi al​guns mo​m en​tos bem pró​xi​m os des​se epi​só​dio que es​-
que​c e​m os... Isso acon​te​c eu de​pois da
car​ta que lhe es​c re​vi! Te​nho pro​vas de que fo​m os sub​m e​ti​dos a um blo​queio
ce​r e​bral... Nos​sas lem​bran​ç as fo​r am la​va​das...
— Lem​bran​ç as de algo que vi​m os no ve​r ão re​tra​sa​do — Dom pen​sou em
voz alta.
— Isso! No ve​r ão re​tra​sa​do, no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, em Ne​va​da.
— E de onde es​tou li​gan​do.
— Você está... no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de?
— Sim. E acho que você tam​bém deve vir para cá. Te​m os mui​to o que
con​ver​sar, mas não po​de​m os con​f i​a r nos te​le​f o​nes. Al​guém pode es​tar nos vi​gi​-
an​do.
— Mas... quem? O que eles que​r em? O que fi​ze​r am co​nos​c o... e por quê?
—Nos​sa úni​c a chan​c e é ten​tar lem​brar. E pre​c i​sa​m os es​tar jun​tos.
Gin​ger le​van​tou-se de um sal​to e de​c i​diu:
— Es​ta​r ei aí... ama​nhã mes​m o! O mais cedo pos​sí​vel!
Rita fez men​ç ão de pro​tes​tar e Ge​or​ge fran​ziu as so​bran​c e​lhas, ba​lan​ç an​do a
ca​be​ç a. Ain​da ao te​le​f o​ne, Gin​ger des​pe​diu-se de Dom:
— Te​le​f o​no logo que sou​ber a que ho​r as po​de​r ei che​gar. Até ama​nhã.
Ain​da não aca​ba​r a de des​li​gar o te​le​f o​ne, e Ge​or​ge co​m e​ç a​va a le​van​tar ob​-
je​ç ões:
— Você não está em con​di​ç ões de vi​a ​j ar!
— E se so​f rer uma cri​se no avi​ã o? — Rita deu um pas​so em di​r e​ç ão à es​-
cri​va​ni​nha. — E se qui​ser fu​gir... do avi​ã o?!
— Não ha​ve​r á pro​ble​m a ne​nhum.
— Que​r i​da... Você so​f reu três cri​ses se​gui​das na se​gun​da-fei​r a... Já es​que​-
ceu?
Ela res​pi​r ou fun​do, sen​tou-se numa pol​tro​na e re​tru​c ou:
— Vo​c ês sem​pre fo​r am, são e se​r ão duas pes​so​a s ma​r a​vi​lho​sas. Acho que
nun​c a po​de​r ei re​tri​buir o que fi​ze​r am por mim. Eu os amo mui​to... Mas já es​tou
aqui há cin​c o se​m a​nas... cin​c o se​m a​nas an​gus​ti​a n​tes... re​du​zi​da à con​di​ç ão mi​se​-
rá​vel de não sa-
ber o que fa​zer da vida. Não pos​so con​ti​nu​a r as​sim! Pre​c i​so ir a Ne​va​da.
Não te​nho ou​tra sa​í​da.
Nova York, Nova York
Dois quar​tei​r ões adi​a n​te da Igre​j a Pres​bi​te​r i​a ​na, Jack es​ta​c i​o​nou o car​r o pela
ter​c ei​r a vez, ago​r a di​a n​te da Igre​j a Epis​c o​pal de San​to To​m ás. Pa​r a​do a meio
ca​m i​nho do al​tar, er​gueu o olhar para as ima​gens de pe​dra que pa​r e​c i​a m cha​-
má-lo de lon​ge, en​vol​tas em pe​num​bra! San​tos, após​to​los, a Vir​gem Ma​r ia, Je​sus
Cris​to... Como numa re​ve​la​ç ão, des​c o​briu que as re​li​gi​ões exis​tem para per​m i​tir
aos ho​m ens a ex​pi​a ​ç ão de suas cul​pas e para per​doá-los por se​r em me​nos do que
gos​ta​r i​a m de ser. In​f e​liz es​pé​c ie hu​m a​na con​de​na​da a nun​c a atin​gir a per​f ei​ç ão
com a qual, ain​da as​sim, não dei​xa de so​nhar. Para su​por​tar a pró​pria im​po​tên​c ia
é pre​c i​so acre​di​tar fir​m e​m en​te que Deus ama essa po​bre hu​m a​ni​da​de, ape​sar
das im​per​f ei​ç ões e das mi​sé​r i​a s.
Mas nem essa re​ve​la​ç ão con​se​guiu que Jack se sen​tis​se ab​sol​vi​do de seus pe​-
ca​dos. Nem a re​ve​la​ç ão, nem os vin​te mil dó​la​r es que dei​xou na cai​xa de es​m o​-
las.
De vol​ta ao car​r o, se​guiu adi​a n​te, de​c i​di​do a des​f a​zer-se de todo o pro​du​to do
rou​bo, não por​que es​pe​r as​se li​ber​ta​ç ão de seu tor​m en​to, gran​de de​m ais para ser
pur​ga​do numa só noi​te, mas sim​ples​m en​te por​que já não que​r ia o di​nhei​r o, e não
fa​zia sen​ti​do jogá-lo à li​xei​r a. Era pre​c i​so dis​tri​buí-lo de al​gum modo... em cen​-
te​nas e cen​te​nas de es​m o​las.
Pa​r ou ain​da em vá​r i​a s ou​tras igre​j as, al​gu​m as aber​tas, ou​tras fe​c ha​das. Na​-
que​las em que não con​se​guia en​trar, dei​xa​va um ma​lo​te re​c he​a ​do jun​to à por​ta.
Na mis​são do Exér​c i​to da Sal​va​ç ão, en​tre​gou qua​r en​ta mil dó​la​r es ao “ofi​c i​a l”
de plan​tão.
Na Rua Bay ard, já che​gan​do ao Bair​r o Chi​nês, viu uma vi​dra​ç a pin​ta​da com
ca​r ac​te​r es ori​e n​tais, no se​gun​do an​dar de um pré​dio; na ja​ne​la ao lado, ilu​m i​na​-
da, leu a tra​du​ç ão: Ali​an​ç a Con​tra a Opres​são das Mi​no​ri​as Chi​ne​sas. No an​dar
tér​r eo, ha​via uma far​m á​c ia ar​te​sa​nal, es​pe​c i​a ​li​za​da em re​m é​di​os na​tu​r ais. Jack
es​ta​c i​o​nou, apro​xi​m ou-se da far​m á​c ia fe​c ha​da e to​c ou vá​r i​a s ve​zes
a cam​pai​nha, até que um ve​lho es​pi​ou pelo pos​ti​go gra​de​a ​do. Em res​pos​ta às
per​gun​tas de Jack, in​f or​m ou-lhe que a Ali​a n​ç a de​di​c a​va-se ao res​ga​te de fa​m í​li​-
as de per​se​gui​dos po​lí​ti​c os na Chi​na e no Vi​e t​nã, en​c ar​r e​gan​do-se tam​bém de
con​se​guir tra​ba​lho e aco​m o​da​ç ões para os re​f u​gi​a ​dos. Sem di​zer pa​la​vra, Jack
en​f i​ou três ma​ç os de di​nhei​r o pe​las gra​des: vin​te mil dó​la​r es. Atur​di​do, o chi​-
nês es​que​c eu o pou​c o in​glês que co​nhe​c ia e, por ins​tan​tes, per​deu-se em agra​de​-
ci​m en​tos in​c om​preen​sí​veis. De​pois, re​c om​pon​do-se, abriu a por​ta e saiu, in​di​f e​-
ren​te ao ven​to ge​la​do.
— Ami​go — dis​se —, não ava​lia o quan​to esse di​nhei​r o vai aju​dar. São cen​-
te​nas de cri​a n​ç as, de ve​lhos...
— Ami​go... — Jack re​pe​tiu, como se não co​nhe​c es​se a pa​la​vra. Uma sim​ples
pa​la​vra, e um aper​to de mão fir​m e o bas​tan​te para ope​r ar o mi​la​gre de de​vol​vê-
lo à co​m u​ni​da​de hu​m a​na.
No car​r o, pi​sou fun​do no ace​le​r a​dor, mas logo foi obri​ga​do a pa​r ar, pois as
lá​gri​m as tur​ba​vam-lhe a vi​são, es​c or​r i​a m-lhe pelo ros​to, qua​se o as​sus​ta​vam. As
pri​m ei​r as lá​gri​m as, em tan​tos anos...
Cho​r a​va de cul​pa, sim, mas tam​bém por es​tar con​f u​so e ame​dron​ta​do. Cho​-
ra​va de ale​gria por re​tor​nar à com​pa​nhia hu​m a​na, de​pois de qua​se uma dé​c a​da
de exí​lio. Só ago​r a, des​de que vol​ta​r a da Amé​r i​c a Cen​tral, via-se afi​nal como
gen​te de car​ne e osso, ca​paz de olhar e per​c e​ber o pró​xi​m o; ca​paz até de abrir-
se e ofe​r e​c er aju​da. E ti​nha mui​to para ofe​r e​c er...
De que lhe ha​vi​a m ser​vi​do os anos de de​gre​do e amar​gu​r a? O ódio fere mais
quem odeia do quem é odi​a ​do. E é da ali​e ​na​ç ão que nas​c e a so​li​dão.
Em oito anos, lem​bra​va-se de ter cho​r a​do al​gu​m as ve​zes por Jenny e ra​r a​-
men​te por si pró​prio. Mas aque​las eram as pri​m ei​r as e ver​da​dei​r as lá​gri​m as de
ex​pi​a ​ç ão ca​pa​zes de lavá-lo das man​c has do pas​sa​do, dos res​sen​ti​m en​tos, de to​-
das as do​r es.
Ain​da não en​ten​dia bem o que se pas​sa​va, não per​c e​bia di​r ei​to a mu​dan​ç a
tão re​pen​ti​na e ra​di​c al. Sen​tia ape​nas que co​m e​ç a​va a ser ou​tro ho​m em e es​pe​-
ra​va mui​tas sur​pre​sas nes​se pro​c es​so. Gos​ta​r ia de adi​vi​nhar até onde o le​va​r ia
aque​la es​tra​da e, so​bre​tu​do, se ha​via mes​mo uma es​tra​da con​du​zin​do-o...
Uma noi​te fria no Bair​r o Chi​nês. E Jack Twist vol​ta​va a ter es​pe​r an​ç as, que
so​pra​vam so​bre sua vida como um ven​to quen​te de ve​r ão, fa​zen​do dan​ç ar as pás
de gran​des mo​i​nhos.
Elko County, Ne​v a​da
Ned e Sandy Sar​ver con​se​gui​a m cui​dar so​zi​nhos do res​tau​r an​te não só por​-
que es​ta​vam acos​tu​m a​dos a tra​ba​lhar duro, mas tam​bém por​que o car​dá​pio era
mui​to sim​ples e Ned ti​nha gran​de ex​pe​r i​ê n​c ia de co​zi​nha; des​de os tem​pos do
Exér​c i​to, sa​bia usar mil e um tru​ques para pre​pa​r ar tudo ra​pi​da​m en​te, a con​ten​to
e com o me​nor dis​pên​dio de ener​gia pos​sí​vel. De qual​quer modo, uma das van​ta​-
gens da​que​le em​pre​go era a pos​si​bi​li​da​de de dor​m i​r em até mais tar​de, por​que
Er​nie e Fay e pre​f e​r i​a m fa​zer o des-je​j um dos hós​pe​des e ser​vi-lo nos quar​tos.
Sá​ba​do à tar​de, en​quan​to pre​pa​r a​va san​du​í​c hes e fri​ta​va ba​ta​tas, Ned não
des​vi​a ​va os olhos de Sandy. Ain​da não con​se​gui​r a ha​bi​tu​a r-se às mu​dan​ç as que
es​ta​vam ocor​r en​do. Ela en​gor​da​r a mais de cin​c o qui​los, ga​nha​r a cur​vas mui​to
fe​m i​ni​nas e, como se não bas​tas​se, já não se ar​r as​ta​va en​tre as me​sas, en​c o​lhi​da
e ca​bis​bai​xa. Não, Sandy ago​r a sal​ti​ta​va, sor​r i​den​te, ca​be​ç a er​gui​da, bo​ni​ta
como nun​c a. Ned sa​bia não ser o úni​c o a apre​c i​a r aque​la trans​f or​m a​ç ão. Os ca​-
mi​nho​nei​r os vi​r a​vam a ca​be​ç a ao vê-la pas​sar e acom​pa​nha​vam-na com o
olhar, sor​r in​do-lhe sem​pre que se apro​xi​m a​va.
An​tes, Sandy não cos​tu​m a​va pa​r ar nas me​sas para con​ver​sar. Ago​r a, sem
per​der sua gra​ç a tí​m i​da, de​ti​nha-se para ex​pli​c ar um ou ou​tro item do car​dá​pio e
ria dos gra​c e​j os dos fre​gue​ses. Sem​pre com um bri​lho novo nos olhos.
Pela pri​m ei​r a vez em oito anos de ca​sa​m en​to, Ned teve medo de per​dê-la.
Sa​bia que ela o ama​va, po​r ém por mais que ten​tas​se não con​se​guia ti​r ar da ca​be​-
ça a idéia de que tan​tas mu​dan​ç as de apa​r ên​c ia e com​por​ta​m en​to aca​ba​r i​a m por
fazê-la in​te​r es​sar-se por ou​tro ho​m em. E essa era sua mai​or pre​o​c u​pa​ç ão.
De ma​nhã, ao vê-la sair para ir ao ae​r o​por​to bus​c ar Er​nie e Fay e, Ned sur​-
preen​de​r a-se pen​san​do que tal​vez ela nun​c a mais vol​tas​se para casa. E se re​sol​-
ves​se se​guir es​tra​da adi​a n​te até en​c on​trar um lu​gar me​lhor que Ne​va​da, ou um
ho​m em me​lhor que ele, mais bo​ni​to, mais rico, mais in​te​li​gen​te? Ned sa​bia que
não es​ta​va sen​do jus​to com a mu​lher, sa​bia que ela ja​m ais o trai​r ia. Mas, en​tão,
por que ti​nha tan​to medo? Será que já não se sen​tia à al​tu​r a de Sandy ?
As nove e meia, quan​do as me​sas es​ta​vam pra​ti​c a​m en​te va​zi​a s, os Block
apa​r e​c e​r am com o tal ra​paz alto e mo​r e​no que sa​í​r a cor​r en​do do res​tau​r an​te. Ao
vê-los, Ned ten​tou adi​vi​nhar se aque​le ho​m em era ami​go de Er​nie... E se Er​nie
sa​bia que ele não re​gu​la​va bem da ca​be​ç a. De lon​ge, teve a im​pres​são de que
Er​nie mal se agüen​ta​va nas per​nas; quan​do ace​nou, res​pon​den​do-lhe ao cum​pri​-
men​to, pa​r e​c ia trê​m u​lo, pá​li​do como um de​f un​to.
Fay e sen​tou-se ao lado do ma​r i​do, de fren​te para o es​tra​nho, a pre​o​c u​pa​ç ão
es​tam​pa​da nos olhos. O tal su​j ei​to mo​r e​no tam​bém se mos​tra​va ten​so. O que es​-
ta​r ia acon​te​c en​do? In​tri​ga​do, Ned es​que​c eu-se por al​guns in​tan​tes de Sandy e do
medo de per​dê-la. Mas o re​c eio vol​tou ao vê-la apro​xi​m ar-se da mesa para ano​-
tar os pe​di​dos. A dis​tân​c ia e o ru​í​do do óleo na fri​gi​dei​r a não lhe per​m i​tia ouvi-
los, mas Ned per​c e​beu que o fo​r as​tei​r o olha​va mui​to para sua mu​lher e que
Sandy in​c li​na​va-se para ele com idên​ti​c o in​te​r es​se. E que mal ha​via nis​so? Bo​ba​-
gem sen​tir ci​ú​m e... Mas o es​tra​nho era bo​ni​tão, mais jo​vem do que Ned, pou​c o
mais ve​lho do que Sandy, bem ves​ti​do...
Não sou gran​de coi​sa, me​di​ta​va Ned. Nem bo​ni​to nem feio, mais feio do que
bo​ni​to... Tes​ta alta, para não di​zer “ca​be​lo ralo”, “gran​des en​tra​das” ou coi​sa que
o va​lha... No pla​ne​ta só exis​te um ho​m em sexy com es​sas en​tra​das, e ele se cha​-
ma Jack Ni​c hol-son... Ned sus​pi​r ou. Não gos​ta​va de seus olhos acin​zen​ta​dos, mui​-
to cla​r os, bri​lhan​tes na ju​ven​tu​de e ago​r a fos​c os e agua​dos. Não gos​ta​va de sua
ina​bi​li​da​de para ga​nhar di​nhei​r o. Não gos​ta​va de ter qua​r en​ta e dois anos, dez
mais que Sandy.
Cada vez mais amar​gu​r a​do, viu a es​po​sa afas​tar-se da mesa dos Block e di​r i​-
gir-se para o bal​c ão. De tes​ta fran​zi​da, ela er​gueu os olhos e per​gun​tou:
— A que ho​r as va​m os fe​c har? Dez ou dez e meia?
— As dez. Já não há nin​guém. Não pre​c i​sa​m os dei​xar o res​tau​r an​te aber​to
até tar​de.
Sandy deu-lhe as cos​tas e vol​tou à mesa de Fay e, Er​nie e do es​tra​nho. Ned
res​pi​r ou fun​do, mais pre​o​c u​pa​do que an​tes. Ha​via ape​nas três ra​zões para ex​pli​-
car a es​ta​bi​li​da​de de seu ca​sa​m en​to. Em pri​m ei​r o lu​gar, ele dava à es​po​sa uma
vida bem ra​zo​á ​vel, por​que era bom co​zi​nhei​r o, e bons co​zi​nhei​r os são cada vez
mais ra​r os. Em se​gun​do lu​gar, ti​nha um dom es​pe​c i​a l para con​ser​tar coi​sas que​-
bra​das: tor​r a​dei​r as elé​tri​c as, pa​ne​las, rá​di​os, gra​va​do​r es... até pás​sa​r os de asa
que​bra​da. Cer​ta vez en​c on​tra​r am uma ave fe​r i​da, con​ver​sou com ela até acal​-
má-la, le​vou-a para casa, apli​c ou-lhe uma tala na asa e, de​pois de curá-la, sol​-
tou-a. Era seu gran​de ta​len​to, mui​to útil. Em ter​c ei​r o lu​gar, ama​va Sandy como
ja​m ais ama​r a qual​quer mu​lher, de cor​po, co​r a​ç ão e alma.
En​quan​to pre​pa​r a​va o jan​tar dos três, Ned não ti​r a​va os olhos da es​po​sa e
sur​preen​deu-se ao vê-la fe​c har to​das as ja​ne​las, aju​da​da por Fay e. Algo es​ta​va
er​r a​do. De vol​ta à mesa, lá es​ta​va Sandy con​ver​san​do ou​tra vez com o de​c o​nhe​-
ci​do. Não pos​so per​dê-la, pen​sou. E im​pos​sí​vel... Eu sou o ho​m em dos pe​que​nos
e gran​des con​ser​tos... Eu a aju​dei a se trans​f or​m ar em cis​ne...
Quan​do a co​nhe​c e​r a no res​tau​r an​te onde am​bos tra​ba​lha​vam, em Tuc​son,
Sandy era ca​la​da como um pos​te, feia, tí​m i​da e en​c o​lhi​da. Tra​ba​lha​va como
mula de car​ga e ain​da se ofe​r e​c ia para aju​dar as ou​tras gar​ç o​ne​tes, mas não fa​-
la​va com nin​guém, ho​m em ou mu​lher, como se fos​se muda, sur​da ou do​e n​te.
Pa​r e​c ia uma me​ni​na as​sus​ta​da, ape​sar de seus vin​te e três anos, e não se
abria com nin​guém, tal​vez por puro medo. A vida fora mui​to dura com ela... fe​-
rin​do, es​f o​lan​do, dei​xan​do-a em ca​c os... E fora gra​ç as a seu ta​len​to para con​ser​-
tos que Ned se in​te​r es​sa​r a por Sandy. Como sem​pre, com in​f i​ni​ta pa​c i​ê n​c ia, pu​-
se​r a-se a tra​ba​lhar, pas​so a pas​so, eta​pa a eta​pa, su​til​m en​te.
Nove me​ses de​pois es​ta​vam ca​sa​dos, mas Ned sa​bia que o con​ser​to ape​nas
co​m e​ç a​r a. Sua mu​lher era o ser hu​m a​no mais in​f e​liz e so​f ri​do que co​nhe​c ia e,
não pou​c as ve​zes, se​m i​m or​to de frus​tra​ç ão e de​ses​pe​r o, ele che​ga​r a a ima​gi​nar
que, mes​m o sen ao o con​ser​ta​dor não con​se​gui​r ia dar vida àque​la bo​ne​c a que​-
bra​da. Tal​vez mor​r es​se an​tes de vê-la sor​r ir.
Após seis anos de ca​sa​dos, Sandy co​m e​ç a​va a me​lho​r ar, mui​to len​ta​m en​te.
Ape​sar de in​te​li​gen​te, sem​pre fora emo​c i​o​nal​m en​te mu​ti​la​da. Para ela, não ha​-
via nada mais de​f í​c il do que dar e re​c e​ber ca​r i​nho... E Ned en​si​na​va-lhe essa li​-
ção com a pa​c i​ê n​c ia de um pro​f es​sor de pri​m ei​r as le​tras. A pri​m ei​r a in​di​c a​ç ão
se​gu​r a de que ob​ti​nha bons re​sul​ta​dos sur​giu quan​do Sandy co​m e​ç ou a des​per​tar
para a vida se​xu​a l. Um de​sa​bro​c har que se ini​c i​a ​r a em agos​to... no ve​r ão re​tra​-
sa​do.
* Sandy pa​r e​c ia ex​pe​r i​e n​te, mas fa​zia amor como uma má​qui​na, sem ale​-
gria nem pra​zer. Ned nun​c a ha​via vis​to uma mu​lher tão si​len​c i​o​sa na cama. Com
cer​te​za, pen​sa​va, é al​gum trau​m a de infân​c ia. Mui​tas e mui​tas ve​zes ten​ta​r a
fazê-la fa​lar so​bre o pas​sa​do, até des​c o​brir que, se ha​via al​gu​m a coi​sa ca​paz de
afas​tá-la para sem​pre, era per​gun​tar-lhe so​bre a infân​c ia. A par​tir daí não to​c a​r a
mais no as​sun​to. E di​f í​c il fa​zer um con​ser​to sem sa​ber mui​to bem o que está que​-
bra​do...
Aos pou​c os, no ve​r ão re​tra​sa​do, Sandy pas​sa​r a a ir para a cama com al​gu​-
ma ale​gria. A prin​c í​pio era uma di​f e​r en​ç a qua​se im​per​c ep​tí​vel, sem nada de
dra​m á​ti​c o ou re​pen​ti​no: al​guns ins​tan​tes de des​c on​tra​ç ão, o cor​po um pou​c o mais
sol​to, às ve​zes um sus​pi​r o, um sor​r i​so... Even​tu​a l​m en​te, Ned a ou​via di​zer seu
nome, de olhos fe​c ha​dos.
Fora des​per​tan​do aos pou​c os. No Na​tal, qua​tro me​ses de​pois dos pri​m ei​r os
si​nais, ela já não per​m a​ne​c ia no col​c hão como uma bo​ne​c a in​f lá​vel. Que​r ia
acom​pa​nhá-lo, es​f or​ç a​va-se para en​c on​trar o rit​m o que mais os apro​xi​m a​va,
par​tia em bus​c a do pra​zer, que ain​da tei​m a​va em não che​gar.
Li​ber​ta​va-se de​va​gar, bem de​va​gar. Até que em abril, dia sete... uma noi​te
que Ned nun​c a es​que​c e​r ia em mil anos... teve o pri​m ei​r o or​gas​m o. De​pois cho​-
rou de pura fe​li​c i​da​de, agar​r a​da ao ma​r i​do, tão gra​ta, apai​xo​na​da e fe​liz que Ned
tam​bém cho​r ou como um bebê. Ele ima​gi​na​va que, a par​tir do or​gas​m o, se​r ia
mais fá​c il fazê-la fa​lar do pas​sa​do, e vol​tou às per​gun​tas.
— O pas​sa​do é o pas​sa​do — dis​se-lhe Sandy mui​to sé​r ia. — De que adi​a n​-
ta​r ia fi​c ar​m os re​vi​r an​do esse lixo? Te​nho medo de co​m e​ç ar a fa​lar e... vol​tar a
ser como an​tes.
Pas​sou a pri​m a​ve​r a, pas​sou o ve​r ão. No ou​to​no, ela já dava si​nais de ple​na e
in​te​gral sa​tis​f a​ç ão. No Na​tal, fa​zia me​nos de três se​m a​nas, Ned per​c e​beu ou​tros
pro​gres​sos. Sandy le​van​ta​va a ca​be​ç a, en​di​r ei​ta​va as cos​tas, olha​va a vida com
no​vos olhos, com novo or​gu​lho, com mais res​pei​to por si mes​m a.
Ago​r a gos​ta​va de fa​zer amor e, ou​tra no​vi​da​de, gos​ta​va de di​r i​gir. Nos pri​-
mei​r os tem​pos, mal acha​va co​r a​gem para di​zer que que​r ia gui​a r a ca​m i​o​ne​ta até
o res​tau​r an​te, sem​pre com o ma​r i​do ao lado. De​pois co​m e​ç ou a que​r er an​dar so​-
zi​nha. As ve​zes, da ja​ne​la do trai​ler, Ned via-a ex​pe​r i​m en​tar as asas, com o
medo e a ale​gria de um pas​sa​r i​nho que, após anos de gai​o​la, vê o mun​do abrir-se
à fren​te. Nes​ses mo​m en​tos, con​ten​te por vê-la voar, sen​tia o co​r a​ç ão aper​ta​do,
um frio na pele, um medo in​c om​preen​sí​vel.
Quan​do che​gou o Ano-novo, o medo já era pâ​ni​c o e per​se​guia-o vin​te e qua​-
tro ho​r as por dia. Até que ele en​ten​deu: ti​nha medo de que Sandy vo​a s​se do ni​nho
para sem​pre. E ago​r a aque​le es​tra​nho pa​r e​c ia po​de​r o​so o bas​tan​te para ar​r e​ba​tá-
la.
— Es​tou exa​ge​r an​do — res​m un​gou, co​lo​c an​do os bi​f es na cha​pa. — E cla​-
ro que es​tou exa​ge​r an​do!
Mas, ain​da as​sim con​ti​nu​a ​va pre​o​c u​pa​do.
Quan​do aca​bou de pre​pa​r ar o pe​di​do da mesa de Er​nie e Fay e, o res​tau​r an​te
es​ta​va de​ser​to. Sandy le​vou a ban​de​j a. Fay e le​van​tou-se, tran​c ou a por​ta de en​-
tra​da e acen​deu o avi​so lu​m i​no​so de Fe​c ha​do, vi​sí​vel da es​tra​da... Es​tra​nho: não
eram nem dez da noi​te!
Bal​c ão ar​r u​m a​do, cha​pa des​li​ga​da e pra​tos lim​pos, Ned apro​xi​m ou-se da
mesa para dar uma olha​da no ami​go de Er​nie e des​c o​brir que pla​nos es​ta​r ia fa​-
zen​do. Viu Sandy com uma cer​ve​j a aber​ta à fren​te e, mais es​tra​nho que isso, ou​-
tra cer​ve​j a o es​pe​r a​va ao lado dela, di​a n​te da ca​dei​r a va​zia.
— Sen​te-se e não re​c la​m e da cer​ve​j a — or​de​nou-lhe Sandy, le​van​tan​do os
olhos. — Você vai pre​c i​sar de mais meia dú​zia para ou​vir o que Er​nie e Fay e
têm a nos con​tar.
O ho​m em cha​m a​va-se Do​m i​nick Cor​vai​sis e a his​tó​r ia dele era mes​m o tão
es​tra​nha que Ned es​que​c eu o pe​r i​go ima​gi​ná​r io de Sandy fu​gir com ele. Quan​do
Cor​vai​sis ter​m i​nou, Er​nie e Fay e con​ta​r am tudo que sa​bi​a m.
— Mas nós fo​m os re​a l​m en​te eva​c u​a ​dos — Ned co​m en​tou. — Não é pos​sí​-
vel que te​nha​m os fi​c a​do pre​sos no mo​tel por três dias... por​que eu me lem​bro
per​f ei​ta​m en​te de ter apro​vei​ta​do aque​la fol​ga para des​c an​sar, ler e ver te​le​vi​são.
— Acho que essa é a ver​são que lhe pu​se​r am na ca​be​ç a — re​pli​c ou Dom.
— Vo​c ês re​c e​be​r am al​gu​m a vi​si​ta du​r an​te aque​les dias? Al​guém que pos​sa pro​-
var que vo​c ês es​ta​vam lá?
— Ra​r a​m en​te apa​r e​c e al​guém no trai​ler. Não, acho que nin​guém po​de​r ia
pro​var que es​tá​va​m os lá...
— O que eles que​r em sa​ber é se hou​ve al​gu​m a mu​dan​ç a em nos​sa vida —
Sandy ex​pli​c ou ao ma​r i​do. —■ Se al​gu​m a coi​sa di​f e​r en​te está acon​te​c en​do co​-
nos​c o...
Sem fa​lar, ele fi​tou-a nos olhos. Sem uma pa​la​vra, di​zia-lhe que de​pen​de​r ia
dela con​tar-lhes ou não. Dom ten​tou aju​dar:
— Vo​c ês es​ta​vam aqui na​que​la noi​te. Seja lá o que for que acon​te​c eu, co​-
me​ç ou en​quan​to eu es​ta​va jan​tan​do. Vo​c ês dois tam​bém tes​te​m u​nha​r am e,
como to​dos nós, fo​r am in​du​zi​dos a es​que​c er.
Que idéia hor​r í​vel, Ned pen​sou, sen​tin​do um ca​la​f rio. Como é que gen​te des​-
co​nhe​c i​da pode nos en​si​nar o que de​ve​m os re​c or​dar e o que de​ve​m os es​que​c er?
Ca​la​do, exa​m i​nou as fo​tos es​pa​lha​das por Fay e so​bre a mesa, es​pe​c i​a l​m en​te a
que mos​tra​va Dom com ar de zum​bi.
Fay e vi​r ou-se para Sandy e co​m en​tou:
— Er​nie e eu co​nhe​c e​m os você há al​gum tem​po, e não so​m os ce​gos. E
mais do que evi​den​te que você pa​r e​c e ou​tra pes​soa de uns tem​pos para cá. Não
que​r o ser in​dis​c re​ta, nem me me​ter em sua vida, mas se hou​ve al​gu​m a mu​dan​ç a
que pos​sa es​tar re​la​c i​o​na​da com o que aca​ba de ou​vir, é mui​to im​por​tan​te que
nos con​te.
Por bai​xo da mesa, Sandy aper​tou a mão de Ned e fi​tou-o com olhos bri​-
lhan​tes de amor. De​pois, pen​sou um ins​tan​te, to​m ou um gole de cer​ve​j a e co​m e​-
çou:
— Pas​sei toda a mi​nha vida achan​do que eu não era gen​te. E im​por​tan​te
que vo​c ês sai​bam de tudo, para en​ten​de​r em o que acon​te​c eu co​m i​go. Pre​c i​sam
sa​ber como foi hor​r í​vel mi​nha infân​c ia para en​ten​de​r em como foi ma​r a​vi​lho​so
eu vol​tar a me res​pei​tar como pes​soa. Foi mais do que um mi​la​gre! Ned foi a
pri​m ei​r a pes​soa que me tra​tou com ca​r i​nho, me aju​dou e me deu a chan​c e de
ser al​guém. — Ela aper​tou os de​dos do ma​r i​do. — Ned me co​nhe​c eu há nove
anos, e foi o pri​m ei​r o ho​m em que me res​pei​tou. Ca​sou-se co​m i​go, mes​m o sa​-
ben​do que eu era uma mu​lher do​e n​te por den​tro e ator​m en​ta​da... como se meu
co​r a​ç ão vi​ves​se amar​r a​do numa cor​da dura e cheia de nós. Pas​sou sete anos
se de​di​c an​do a me li​ber​tar des​sa cor​da. Ele pen​sa que eu não sei o quan​to teve de
lu​tar, mas eu sei...
Pa​r ou um ins​tan​te, emo​c i​o​na​da, to​m ou mais um gole de cer​ve​j a e con​ti​-
nuou:
— O que eu que​r ia di​zer é que... Bem, eu acho que, seja lá o que for que
acon​te​c eu por aqui, foi mui​to im​por​tan​te para mim e me aju​dou a ver o mun​do
com ou​tros olhos, e a mim mes​m a... Mas, se Ned não es​ti​ves​se a meu lado há
tan​tos anos, me aju​dan​do a vi​ver, eu tal​vez nem es​ti​ves​se mais aqui para ver...
não sei o quê...
Ned en​go​liu em seco, a gar​gan​ta aper​ta​da, os olhos ma​r e​j a​dos de lá​gri​m as.
Sandy sor​r iu-lhe, fi​xou os olhos no copo de cer​ve​j a e, do co​m e​ç o ao fim, con​tou
o cal​vá​r io que ha​via sido sua infân​c ia. Não en​trou em de​ta​lhes quan​to aos ata​-
ques se​xu​a is que so​f ria do pai, mas fa​lou mui​to so​bre o tem​po em que ele a le​va​-
va a um bor​del de cri​a n​ç as em Las Ve​gas. Na voz cal​m a, sem dra​m a​ti​zar nada,
o hor​r or da​que​las ce​nas pa​r e​c ia ain​da mais avas​sa,-la​dor. Em vol​ta da mesa, to​-
dos a ou​vi​a m em res​pei​to​so e so​li​dá​r io si​lên​c io. A cada pa​la​vra, mais sen​ti​do fa​-
zia o que ela dis​se​r a no iní​c io; que ha​via acon​te​c i​do mais do que um mi​la​gre em
sua vida...
Quan​do ter​m i​nou, Ned abra​ç ou-a ca​la​do, es​trei​tan​do-a con​tra
o pei​to. Sandy era uma mu​lher for​te, a mu​lher mais es​pe​c i​a l e co​r a​j o​sa do
mun​do. E o que aca​ba​va de di​zer tor​na​va-a ain​da mais es​pe​c i​a l aos olhos do ma​-
ri​do.
Por mais tris​te que fos​se sua his​tó​r ia, Ned sa​bia que, mais dia me​nos dia, ela
te​r ia de fa​lar... e só fa​la​r ia quan​do se sen​tis​se mais for​te que seu pas​sa​do.
Ned le​van​tou-se, foi até a ge​la​dei​r a e vol​tou com mais cin​c o gar​r a​f as de
cer​ve​j a. Quan​do se sen​tou no​va​m en​te, Dom rom​peu o si​lên​c io que, após o re​la​to
de Sandy, ins​ta​la​r a-se ao re​dor da mesa.
— Isso muda tudo — co​m e​ç ou. — Que​r o di​zer... To​dos nós, até ago​r a, tí​-
nha​m os ra​zões para acre​di​tar que a ex​pe​r i​ê n​c ia pela qual pas​sa​m os foi ter​r í​vel e
só cau​sou efei​tos ne​ga​ti​vos, como mi​nhas cri​ses de so​nam​bu​lis​m o ou a nic​to​f o​bia
de Er​nie. Cla​r o que, em cer​to sen​ti​do, eu tam​bém re​c e​bi al​gum efei​to po​si​ti​vo:
con​se​gui sair do ca​su​lo em que vi​via. Mas Sandy só re​c e​beu efei​tos po​si​ti​vos! To​-
dos nós es​ta​m os pas​san​do por uma fase te​ne​bro​sa, e Sandy está fe​liz pela pri​m ei​-
ra vez na vida. Como a mes​m a cau​sa pode de​sen​c a​de​a r efei​tos tão di​f e​r en​tes?
Você não sen​te um mí​ni​m o de medo... quan​do dor​m e, por exem​plo?
— Não — Sandy res​pon​deu.
Des​de que en​tra​r a no res​tau​r an​te, Er​nie man​ti​nha-se en​c o​lhi​do na ca​dei​r a,
si​len​c i​o​so e ca​bis​bai​xo. De re​pen​te, po​r ém, er​gueu a ca​be​ç a, re​c os​tou-se con​f or​-
ta​vel​m en​te e re​la​xou.
— Não há dú​vi​das de que o medo está pre​sen​te em to​dos nós, me​nos em
Sandy, tal​vez — de​c la​r ou, vol​tan​do-se em se​gui​da para a es​po​sa:
— Lem​bra-se da​que​le lu​gar, jun​to à ro​do​via, a pou​c os qui​lô​m e​tros da​qui?
O lu​gar onde con​tei que es​ti​ve. E es​tra​nho, mas te​nho cer​te​za ab​so​lu​ta de que al​-
gu​m a coi​sa acon​te​c eu lá... uma coi​sa que é par​te das lem​bran​ç as que nos fo​r am
ti​r a​das. Mas a ver​da​de é que sen​ti lá algo que não foi ape​nas medo. Meu co​r a​ç ão
dis​pa​r ou, fi​quei emo​c i​o​na​do... um tipo de sen​sa​ç ão que não era ape​nas de​sa​gra​-
dá​vel. Ha​via medo, sim... mas ou​tras emo​ç ões, tam​bém.
— Tal​vez seja o lu​gar para onde eu sem​pre aca​bo indo quan​do
saio com a ca​m i​o​ne​ta — dis​se Sandy. — É como se eu fos​se atra​í​da para lá.
— Eu vi! — Er​nie re​m e​xeu-se na ca​dei​r a. — Hoje cedo, quan​do vol​ta​va​-
mos do ae​r o​por​to, per​c e​bi que você di​m i​nuiu a mar​c ha. E achei que es​ta​va sen​-
tin​do a mes​m a coi​sa que eu.
— E o que é que você sen​te lá? — Fay e per​gun​tou a Sandy.
Com um sor​r i​so novo e lu​m i​no​so dan​ç an​do-lhe no ros​to, ela
res​pon​deu:
— Paz. Sim​ples e com​ple​ta paz. E di​f í​c il ex​pli​c ar, mas é como se as pe​-
dras, as ár​vo​r es, a po​e i​r a... tudo ali ir​r a​di​a s​se har​m o​nia, tran​qui​li​da​de...
— Não... Nao é paz o que eu sin​to lá — Er​nie sus​pi​r ou. — Medo sem dú​vi​-
da, uma es​pé​c ie de an​si​e ​da​de. A sen​sa​ç ão de que vai acon​te​c er al​gu​m a coi​sa
ter​r í​vel. Uma coi​sa que de​se​j o de​ses​pe​r a​da​m en​te ver, mas que, ao mes​m o tem​-
po, me dei​xa mor​to de medo.
— Pois eu não sin​to medo ne​nhum — de​c la​r ou a moça.
— E se fôs​se​m os até lá? — Ned per​gun​tou. — Para ver o que acon​te​c e
com os ou​tros?
— Va​m os ama​nhã cedo — dis​se Dom —, quan​do es​ti​ver dia cla​r o.
— Há ou​tra coi​sa que me in​tri​ga — Fay e fran​ziu a tes​ta. — Cada um de
vo​c ês está so​f ren​do um tipo de al​te​r a​ç ão de com​por​ta​m en​to. A de Sandy pa​r e​c e
ser para me​lhor. Mas o coi​ta​do do se​nhor Lo​m ack se sui​c i​dou, Er​nie pas​sa por
cri​ses de fo​bia agu​da, Dom tem pe​sa​de​los e cri​ses de so​nam​bu​lis​m o, Gin​ger
Weiss apre​sen​ta gra​ves pro​ble​m as psi​c o​ló​gi​c os... E eu? E Ned? Por que não te​-
mos pro​ble​m as se​m e​lhan​tes?
— Tal​vez por​que o pes​so​a l en​c ar​r e​ga​do da la​va​gem ce​r e​bral se de​di​c ou
mais a vo​c ês... — su​ge​r iu Dom.
To​dos ca​la​r am-se, sem sa​ber o que di​zer. Ned foi o pri​m ei​r o a re​c u​pe​r ar-se.
— E se você ten​tas​se re​c ons​ti​tuir to​dos os seus pas​sos na​que​la noi​te? — su​-
ge​r iu, vi​r an​do-se para Dom. — Des​de o mo​m en​to da che​ga​da até o pon​to em
que as lem​bran​ç as fo​r am apa​ga​das. Pa​r e​c e que, pelo me​nos até cer​to pon​to,
você se lem​bra do que acon-
te​c eu aqui no res​tau​r an​te. Hoje mes​m o, quan​do saiu cor​r en​do, es​ta​va a pon​-
to de se lem​brar de al​gu​m a coi​sa... e por isso fu​giu.
— É... — Dom con​c or​dou. — Che​guei bem per​to de uma lem​bran​ç a, mas
veio o medo e dis​pa​r ei por​ta afo​r a como lou​c o. Es​ta​va alu​c i​na​do de medo. Um
medo vis​c e​r al, ins​tin​ti​vo, in-con​tro​lá​vel... Acho que vol​ta​r á, se eu re​pe​tir o es​f or​-
ço.
— Ain​da as​sim, vale a pena cor​r er o ris​c o — Ned in​sis​tiu.
— E ago​r a es​ta​m os aqui para aju​dá-lo — dis​se Fay e.
Ned per​c e​beu que se​r ia pre​c i​so in​sis​tir mui​to para ani​m ar Dom a re​pe​tir a
ex​pe​r i​ê n​c ia, o que sig​ni​f i​c a​va que o ter​r or do mo​m en​to da che​ga​da tal​vez su​pe​-
ras​se o que ele di​zia. Dom, po​r ém, le​van​tou-se com a gar​r a​f a de cer​ve​j a na mão
e foi até a por​ta de en​tra​da; vol​tou-se, pa​r ou e be​beu um lon​go gole. De​pois, len​-
ta​m en​te, cor​r eu os olhos ao re​dor, como que ten​tan​do re​m e​m o​r ar quais pes​so​a s
es​ta​vam nas me​sas na​que​la noi​te, 6 de ju​lho, do ano re​tra​sa​do.
— Ha​via três ou qua​tro ho​m ens jun​to ao bal​c ão — co​m e​ç ou. — Mas não
lem​bro quem eram. — Afas​tou-se da por​ta, pas​sou pe​los qua​tro com​pa​nhei​r os,
apro​xi​m ou-se da mesa que ocu​pa​r a no pas​sa​do e pu​xou uma ca​dei​r a. — Eu me
sen​tei aqui. Sandy veio aten​der. To​m ei uma cer​ve​j a en​quan​to olha​va o car​dá​pio.
Pedi um san​du​í​c he de ovos e pre​sun​to, ba​ta​tas fri​tas e sa​la​da de re​po​lho. Es​ta​va
co​lo​c an​do sal nas ba​ta​tas quan​do o sa​lei​r o me es​c a​pou da mão e der​r a​m ou so​bre
a to​a ​lha. Pe​guei um pou​c o de sal e jo​guei para trás, por cima do om​bro es​quer​-
do. Uma bo​ba​gem. Aca​bei jo​gan​do mais do que que​r ia e o sal atin​giu... Gin​-
ger Weiss! Era ela! Ago​r a es​tou lem​bran​do... Sim\ A moça que es​ta​va atrás de
mim e aca​bou atin​gi​da pelo sal era a loi​r a da foto!
Em si​lên​c io, Fay e apon​tou a foto de Gin​ger so​bre a mesa. Dom con​ti​nuou
fa​lan​do:
— Mui​to bo​ni​ta... Ros​ti​nho de bo​ne​c a, mas um ar so​f is​ti​c a​do e in​te​li​gen​te.
Uma mis​tu​r a mui​to atra​e n​te. Eu não con​se​guia ti​r ar os olhos dela.
Ned de​bru​ç ou-se para exa​m i​nar a foto. Po​dia mes​m o ser bo​ni​ta... se não es​-
ti​ves​se tão pá​li​da, de olhos pa​r a​dos e va​zi​os, como
mor​ta. Numa voz cada vez mais dis​tan​te, como se vi​e s​se do pas​sa​do, Dom
pros​se​guiu:
— Ela está sen​ta​da na mesa do can​to, per​to da ja​ne​la, olhan​do para fora. O
sol se põe como uma bola de fogo, e todo o res​tau​r an​te está ba​nha​do de luz aver​-
me​lha​da. Pa​r e​c e que há um in​c ên​dio lá fora, mas é só o cre​pús​c u​lo. Gin​ger
Weiss é mui​to bo​ni​ta... tem ca​be​los lu​m i​no​sos... Não con​si​go pa​r ar de olhar para
ela... Vou pe​dir ou​tra cer​ve​j a. — Le​vou a gar​r a​f a aos lá​bi​os e be​beu. — A pai​sa​-
gem está inun​da​da de ver​m e​lho... vai es​c u​r e​c en​do... já é qua​se noi​te...
Afli​tos, os qua​tro acom​pa​nha​vam a luta de​ses​pe​r a​da de Dom, re​zan​do para
que se lem​bras​se. Pe​que​nos de​ta​lhes da​que​la noi​te sur​gi​r am na me​m ó​r ia de
Ned: o pa​dre rui​vo es​ta​va no res​tau​r an​te, o ca​sal com a ga​r o​ti​nha tam​bém.
— Já es​c u​r e​c eu... e con​ti​nuo a be​ber mi​nha cer​ve​j a bem de​va​gar, para fi​-
car olhan​do para Gin​ger Weiss. — De re​pen​te, Dom re​te​sou-se na ca​dei​r a, olhou
para os la​dos, le​vou a mão di​r ei​ta à ore​lha, como que ten​tan​do lo​c a​li​zar al​gum
som. — Es​tou ou​vin​do uma coi​sa... Um ru​í​do es​tra​nho. Um mo​tor mui​to dis​tan​-
te... cada vez mais for​te. — Ca​lou-se e res​pi​r ou fun​do. — Não sei de mais nada.
Al​gu​m a coi​sa acon​te​c eu... mas não con​si​go lem​brar.
Quan​do ele fa​lou do ru​í​do, Ned teve a vaga sen​sa​ç ão de que tam​bém ou​vi​r a
um ba​r u​lho es​tra​nho, mui​to dis​tan​te, va​ga​m en​te as​sus​ta​dor. Mas foi tudo. Era
como se as pa​la​vras de Dom o fi​zes​sem apro​xi​m ar-se de um pân​ta​no ne​gro e
pe​r i​go​so, para o qual pre​c i​sa​va olhar, mes​m o não que​r en​do. De qual​quer modo,
por mais que ten​tas​se, já não con​se​guia ver nada. Com o co​r a​ç ão aos sal​tos, in​-
sis​tiu:
— O ru​í​do... Con​c en​tre-se nes​se ru​í​do. Ten​te se lem​brar de onde vi​nha, se
era agu​do, gra​ve... Tal​vez isso aju​de você a se lem​brar do res​to da cena.
Dom le​van​tou-se da ca​dei​r a.
— Um ru​í​do... como um tro​vão mui​to dis​tan​te... que se apro​xi​m a ra​pi​da​-
men​te. — Pa​r a​do jun​to à mesa, vol​ta​va-se de um lado
para ou​tro, olhan​do para o teto e para o chão, como se qui​ses​se lo​c a​li​zar a
ori​gem do som.
De re​pen​te, Ned ou​viu. Não no pas​sa​do, mas no pre​sen​te, ali, na​que​le ins​tan​-
te, um só ru​í​do, cons​tan​te, uni​f or​m e, cada vez mais pró​xi​m o... Olhou em tor​no e
per​c e​beu que não es​ta​va ima​gi​nan​do coi​sas: to​dos ou​vi​a m o mes​m o ru​í​do.
Mais alto. Mais alto. O som fa​zia vi​brar a mesa, o chão, os seus pró​pri​os os​-
sos.
Ned ain​da não ati​na​va com nada do que ocor​r e​r a na​que​la noi​te, mas já ti​nha
cer​te​za de que tudo co​m e​ç a​r a com aque​le ru​í​do. Afas​tou a ca​dei​r a e le​van​tou-
se. Com o som, cres​c ia o medo. Von​ta​de de fu​gir... de cor​r er.
Sàndy le​van​tou-se tam​bém, o medo es​tam​pa​do no ros​to. Ain​da que a ex​pe​r i​-
ên​c ia a ti​ves​se trans​f or​m a​do em ou​tra mu​lher, me​lhor e mais fe​liz, o ru​í​do en​-
chia-a de medo. To​c ou o bra​ç o do ma​r i​do, pro​c u​r an​do apoio.
Er​nie e Fay e va​ga​vam o olhar, ten​tan​do lo​c a​li​zar a ori​gem do ba​r u​lho. Ain​da
não es​ta​vam as​sus​ta​dos. Tal​vez lhes res​tas​sem ape​nas frag​m en​tos de lem​bran​ç a,
des​li​ga​dos uns dos ou​tros e dos even​tos da noi​te de 6 de ju​lho.
Um se​gun​do ru​í​do, como um as​so​bio mui​to for​te, mis​tu​r ou-se ao tro​vão. Um
som fa​m i​li​a r e de​sa​gra​dá​vel aos ou​vi​dos de Ned.
Ia acon​te​c er ou​tra vez! Não im​por​ta o que ocor​r e​r a na​que​le res​tau​r an​te e
na​que​la noi​te, há mais de de​zoi​to me​ses, ia acon​te​c er ou​tra vez. Como an​tes\ Ned
ou​viu-se ber​r ar, apa​vo​r a​do:
— Não! Nãol
Cor​vai​sis re​c uou dois pas​sos, afas​tan​do-se da mesa, e vi​r ou-se para os ou​tros.
Es​ta​va lí​vi​do.
O ru​í​do de tro​vão fa​zia vi​bra​r em as vi​dra​ç as do res​tau​r an​te. Uma das per​si​a ​-
nas ba​tia con​tra o cai​xi​lho de ma​dei​r a. As cor​ti​nas agi​ta​r am-se fu​r i​o​sa​m en​te nas
rol​da​nas que as pren​di​a m.
Os de​dos de Sandy, pou​sa​dos no bra​ç o de Ned, cris​pa​r am-se de ter​r or. Er​nie
e Fay e pu​se​r am-se de pé, tão apa​vo​r a​dos quan​to os ou​tros.
O as​so​bio apro​xi​m a​va-se, cada vez mais es​tri​den​te, fa​zen​do co-
ro ao tro​vão, e trans​f or​m an​do-se num zum​bi​do mui​to agu​do, como o pro​du​-
zi​do por uma ser​r a elé​tri​c a de alta ro​ta​ç ão.
— Mas... o que é isso?! — Sandy gri​tou. E sua voz per​deu-se no ru​í​do que
es​tre​m e​c ia as pa​r e​des.
A gar​r a​f a de cer​ve​j a caiu da mesa de Dom e que​brou-se, es​pa​lhan​do ca​c os
e res​tos de be​bi​da para to​dos os la​dos. Ned olhou para uma das me​sas a seu lado
e viu que os ob​j e​tos sal​ta​vam so​bre a to​a ​lha, ba​ten​do uns nos ou​tros; os vi​dros de
tem​pe​r os, os co​pos, o cin​zei​r o, os pra​tos e ta​lhe​r es. Um copo caiu e ro​lou so​bre a
to​a ​lha. Um se​gun​do copo foi ao chão, se​gui​do pelo fras​c o de cat​c hup. A cena re​-
pe​tia-se em to​das as ou​tras me​sas. Na pa​r e​de, o enor​m e re​ló​gio com o lo​go​ti​po
de uma fá​bri​c a de cer​ve​j a sol​tou-se do gan​c ho e es​pa​ti​f ou-se no chão.
Exa​ta​m en​te o que acon​te​c e​r a na​que​la noi​te de ju​lho. Até aí Ned não ti​nha
dú​vi​das... mas era tudo. Não con​se​guia lem​brar-se do que po​de​r ia ter acon​te​c i​do
de​pois.
— Pare com isso! — Er​nie gri​tou com a con​vic​ç ão e au​to​r i​da​de de um ofi​-
ci​a l da Ma​r i​nha, ha​bi​tu​a ​do a ser abe​de​c i​do... e sem o me​nor re​sul​ta​do.
Tal​vez fos​se um ter​r e​m o​to. Mas um ter​r e​m o​to não ex​pli​c a​r ia o zum​bi​do es​-
tri​den​te que so​a ​va jun​to com o tro​vão, como se vi​e s​se do es​ta​c i​o​na​m en​to, em
fren​te ao res​tau​r an​te.
As ca​dei​r as des​li​za​vam pelo as​so​a ​lho, co​li​din​do umas con​tra as ou​tras. Uma
ca​dei​r a apro​xi​m ou-se de Dom, fa​zen​do-o sal​tar, as​sus​ta​do. O chão es​tre​m e​c eu.
O ru​í​do era in​su​por​tá​vel, o tro​vão ron​c a​va so​bre o te​lha​do... E en​tão, como
uma bom​ba, o gran​de vi​dro da ja​ne​la da fren​te ex​plo​diu, ar​r e​m es​san​do ca​c os
por to​dos os la​dos. Fay e gri​tou, co​brin​do o ros​to com os bra​ç os do​bra​dos. Er​nie
pu​lou para trás e qua​se caiu so​bre uma ca​dei​r a der​r u​ba​da. Sandy re​f u​gi​ou-se
nos bra​ç os de Ned.
Se as per​si​a ​nas não es​ti​ves​sem fe​c ha​das, o es​tra​go te​r ia sido con​si​de​r a​vel​-
men​te mai​or, por​que to​dos os ca​c os de vi​dro te​r i​a m vo​a ​do para den​tro como
uma sa​r ai​va​da de ba​las. Ain​da as​sim, a vio-
lên​c ia da ex​plo​são fez as per​si​a ​nas vo​a ​r em, ar​r an​c ou uma das cor​ti​nas e jo​-
gou uma chu​va de es​ti​lha​ç os so​bre as cos​tas de Ned.
De​pois da ex​plo​são, o si​lên​c io.
Uma vez ou ou​tra, como vin​do de mui​to lon​ge, ou​via-se cair um pe​que​no
caco ain​da pen​du​r a​do às per​si​a ​nas.
No ve​r ão re​tra​sa​do acon​te​c e​r am ou​tras coi​sas além do zum​bi​do, po​r ém Ned
não se lem​bra​va de mais nada. De qual​quer modo, na​que​le ins​tan​te, nada mais
acon​te​c e​r ia. Por hora, vol​ta​va a rei​nar a paz.
Dom ti​nha um pe​que​no cor​te no ros​to, como um ta​lho de lâ​m i​na de bar​be​a r.
Er​nie ha​via fe​r i​do a tes​ta e o dor​so de uma das mãos, sem mai​or gra​vi​da​de. Ned
exa​m i​nou o ros​to de Sandy e per​gun​tou-lhe se es​ta​va bem; ven​do-a sor​r ir ali​vi​a ​-
da, cor​r eu a abrir a por​ta e foi até o meio do es​ta​c i​o​na​m en​to pro​c u​r an​do al​-
gum in​dí​c io do que acon​te​c eu. En​c on​trou ape​nas a noi​te, a es​c u​r i​dão so​le​ne, pro​-
fun​da e si​len​c i​o​sa das pla​ní​c i​e s. Não ha​via si​nais de fogo ou fu​m a​ç a, nem qual​-
quer in​dí​c io de ex​plo​são. Pela ro​do​via, de lon​ge, tra​f e​ga​vam os car​r os e os ca​m i​-
nhões de to​das as noi​tes.
Em fren​te à re​c ep​ç ão do mo​tel ha​via cer​ta agi​ta​ç ão. Ain​da em tra​j es de
dor​m ir, os hós​pe​des reu​ni​a m-se em gru​pos, olhan​do para os la​dos do res​tau​r an​te,
in​tri​ga​dos, que​r en​do sa​ber o que po-de​r ia ter acon​te​c i​do lá. Mas não pa​r e​c i​a m
ame​dron​ta​dos.
O céu bri​lha​va, pon​ti​lha​do de es​tre​las. No ar ge​la​do, so​pra​va uma bri​sa
leve... como um úl​ti​m o sus​pi​r o. Nada por ali po​de​r ia ter cau​sa​do o ru​í​do de tro​-
vão ou o zum​bi​do de ser​r a elé​tri​c a, ou o tre​m or de ter​r a, ou a ex​plo​são das vi​dra​-
ças.
Dom Cor​vai​sis apa​r e​c eu à por​ta do res​tau​r an​te, per​gun​tan​do:
— Mas o que acon​te​c eu?
— Eu ia fa​zer a mes​m a per​gun​ta... — re​pli​c ou Ned.
— Acon​te​c eu... o mes​m o no ve​r ão re​tra​sa​do...
— E... eu sei.
— Mas foi só o co​m e​ç o. Dro​ga! Nao con​si​go lem​brar o que hou​ve de​pois
que a vi​dra​ç a ex​plo​diu...
— Nem eu.
Dom es​f re​gou as mãos, afli​to, e en​tão per​c e​beu, à luz azu​la​da
do le​trei​r o de neon, que as mar​c as aver​m e​lha​das ha​vi​a m vol​ta​do. Mos​trou-
as a Ned, que se in​c li​nou para ver os dois ní​ti​dos anéis.
— Mas... o que pode ter acon​te​c i​do? — Dom mur​m u​r ou.
Sandy es​pe​r a​va à en​tra​da do res​tau​r an​te. Ned cor​r eu para ela
e abra​ç ou-a com for​ç a. Sen​tiu-a es​tre​m e​c er jun​to ao pei​to, mas nao per​c e​-
beu o quan​to ele mes​m o es​ta​va as​sus​ta​do, até ouvi-la di​zer:
— Que​r i​do, você está tre​m en​do...
O medo... Tam​bém para ele, afi​nal, che​ga​r a a hora do pa​vor. Ned tam​bém
se en​vol​via em algo gran​di​o​so, mui​to im​por​tan​te, ter​r i​vel​m en​te pe​r i​go​so, que tal​-
vez acar​r e​tas​se a mor​te de um de​les ou de to​dos... O ho​m em dos con​ser​tos im​-
pos​sí​veis, ca​paz de fa​zer fun​c i​o​nar qual​quer coi​sa viva ou ina​ni​m a​da, des​c o​bria
uma en​ti​da​de con​tra a qual nada po​di​a m suas fer​r a​m en​tas, nem sua ina​ba​lá​vel
ca​pa​c i​da​de de amar. E se Sandy lhe fos​se rou​ba​da? O que po​de​r ia fa​zer para re​-
pa​r ar os ir​r e​m e​di​á ​veis da​nos da mor​te?
Pela pri​m ei​r a vez, des​de o dia em que a co​nhe​c e​r a em Tuc​son, Ned sen​tiu-
se im​po​ten​te para pro​te​ger sua mu​lher.
No ho​r i​zon​te, a Lua co​m e​ç a​va a sur​gir.

CIN​CO________

12 - 14 de ja​nei​r o
1. DO​M IN​G O, 12 DE JA​NEI​RO

O ar pe​sa​va como chum​bo der​r e​ti​do.


No so​nho, Dom não con​se​guia res​pi​r ar. Al​gu​m a coi​sa es​ta​va pres​tes a ex​plo​-
dir-lhe no pei​to. Tre​m ia. Es​ta​va mor​r en​do.
Não via nada ao re​dor, os olhos per​di​dos na es​c u​r i​dão. Dois ho​m ens apro​xi​-
ma​r am-se ves​ti​dos em tra​j es de la​bo​r a​tó​r io, ma​c a​c ões de plás​ti​c o bran​c o co​-
brin​do-os dos pés à ca​be​ç a, os ros​tos ocul​tos pe​los al​vos ca​pu​zes com vi​so​r es
trans​pa​r en​tes e bri​lhan​tes.
Um dos ho​m ens acer​c ou-se da cama de Dom e, como que de​ses​pe​r a​do, ar​-
ran​c ou-lhe do bra​ç o a agu​lha in​tra​ve​no​sa. O ou​tro exa​m i​nou os grá​f i​c os do ele​-
tro​e n​c e​f a​ló​gra​f o; de​pois cor​r eu para a cama e ar​r an​c ou os ele​tro​dos co​la​dos ao
tó​r ax de Dom. Jun​tos, os dois er​gue​r am-no, fa​zen​do-o sen​tar-se. De​r am-lhe al​-
gu​m a coi​sa para be​ber, mas a gar​gan​ta cer​r a​da re​c u​sou-se a en​go​lir... En​tão, um
dos ho​m ens pu​xou-lhe a ca​be​ç a para trás, en​quan​to o ou​tro lhe jo​gou na boca um
lí​qui​do amar​go e nau​se​a n​te.
Os dois fa​la​vam en​tre si atra​vés dos ra​di​o​trans​m is​so​r es ins​ta​la​dos nos ca​pa​-
ce​tes, mas es​ta​vam tão pró​xi​m os que Dom po​dia ouvi-los atra​vés dos vi​so​r es.
Um de​les mos​tra​va-se afli​to:
— E quan​tos pri​si​o​nei​r os fo​r am en​ve​ne​na​dos? — per​gun​tou.
— Nin​guém sabe com pre​c i​são — res​pon​deu o ou​tro. — No mí​ni​m o, uma
dú​zia.
— Mas... e quem te​r ia man​da​do en​ve​ne​ná-los...?
— Ora... é fá​c il. Adi​vi​nhe.
— O co​r o​nel Falkirk... — res​m un​gou o pri​m ei​r o. — Aque​le fi​lho da puta...
— Você sabe que ja​m ais con​se​gui​r e​m os pro​var nada con​tra ele.
Cor​te rá​pi​do.
No ba​nhei​r o do mo​tel. Os dois ho​m ens man​ti​nham Dom em pé se​gu​r an​do-o
pe​las axi​las. Ten​ta​vam fazê-lo vo​m i​tar. Em​pur​r a​vam-lhe a ca​be​ç a para den​tro
da pia. O co​r o​nel Falkirk, aque​le fi​lho da puta, ten​ta​r a en​ve​ne​ná-lo, e os dois mas​-
ca​r a​dos que​r i​a m obri​gá-lo a vo​m i​tar o ve​ne​no. Mas Dom não con​se​guia... O es​-
tô​m a​go quei​m a​va-lhe, o suor cor​r ia-lhe pela tes​ta... E não con​se​guia vo​m i​tar.
— Pre​c i​sa​m os de uma son​da de la​va​gem es​to​m a​c al — dis​se um dos mas​-
ca​r a​dos.
— Você sabe que não te​m os tem​po...
O ou​tro pres​si​o​na​va-lhe a ca​be​ç a para den​tro da pia. Dom já não con​se​guia
res​pi​r ar, o co​r a​ç ão pa​r e​c ia a pon​to de re​ben​tar... Des​m ai​ou, vol​tou a si, viu a sala
gi​r ar... e, afi​nal, vo​m i​tou.
Cor​te rá​pi​do.
De vol​ta à cama, fra​c o como um bebê, Dom pelo me​nos já res​pi​r a​va me​-
lhor. Os ho​m ens de uni​f or​m es lim​pa​r am-no, ti​r a​r am-lhe a rou​pa e amar​r a​r am-
no de novo. O da di​r ei​ta pre​pa​r ou uma in​j e​ç ão e apli​c ou-a — com cer​te​za al​gu​-
ma dro​ga para neu​tra​li​zar os efei​tos re​m a​nes​c en​tes do ve​ne​no. O da es​quer​da
ins​ta​lou-lhe no bra​ç o o equi​pa​m en​to in​tra​ve​no​so. Dom mal con​se​guia man​ter os
olhos aber​tos. O ele​tro​c ar​di​ó​gra​f o es​ta​va li​ga​do. En​quan​to tra​ba​lha​vam, os dois
ho​m ens con​ti​nu​a ​vam a con​ver​sar:
— Falkirk é um idi​o​ta. Não há a me​nor pos​si​bi​li​da​de de es​c on​der o que
acon​te​c eu aqui.
— Ele tem medo de que o blo​queio de me​m ó​r ia não seja su​f i​c i​e n​te e que,
de re​pen​te, al​gum de​les se lem​bre do que viu.
— E pode até es​tar cer​to... Mas como é que ele ex​pli​c a​r ia tan​tos ca​dá​ve​-
res?! As​sas​si​na​to em mas​sa! Isso atrai​r ia cen​te​nas de re​pór​te​r es... e a no​tí​c ia se
es​pa​lha​r ia como po​e i​r a. Bas​ta uma la​va​gem ce​r e​bral!
— E por que não ten​tar con​ven​c er o im​be​c il do Falkirk? Eu es​tou do seu
lado, cer​to?
As duas fi​gu​r as bran​c as de​sa​pa​r e​c e​r am à me​di​da que suas vo​zes se tor​na​-
vam cada vez mais fra​c as e dis​tan​tes. O pe​sa​de​lo era ou​tro. Apa​vo​r a​do, Dom
ten​tou fu​gir, mas os pés não des​gru​da​vam do chão. E ele pre​c i​sa​va sair dali por​-
que al​gu​m a coi​sa o per​se​guia. Uma ame​a ​ç a so​bre-hu​m a​na... inu​m a​na... apro​xi​-
man​do-se cada vez mais. Não ha​via fuga pos​sí​vel. Só lhe res​ta​va en​c a​r ar o fan​-
tas​m a. Dom pa​r ou de se de​ba​ter, er​gueu os olhos para o céu, e gri​tou:
- A Lua!
Acor​dou com o som dos pró​pri​os gri​tos. Es​ta​va no Mo​tel Tran-qüi​li​da​de, no
quar​to 20, ca​í​do ao lado da cama, ten​tan​do sol​tar-se da cor​da que o man​ti​nha
pre​so à ca​be​c ei​r a. Na me​si​nha, o re​ló​gio mar​c a​va três ho​r as e sete mi​nu​tos da
ma​dru​ga​da.
Como ele pre​vi​r a, o fato de dor​m ir no mes​m o quar​to ace​le​r a​r a o pro​c es​so
das lem​bran​ç as. Os pe​sa​de​los tor​na​r am-se mui​to mais vi​vi​dos, co​e ​r en​tes e far​tos
em de​ta​lhes. Já não eram ape​nas fan​ta​si​a s ela​bo​r a​das so​bre uma re​a ​li​da​de so​ter​-
ra​da na me​m ó​r ia, mas as pró​pri​a s lem​bran​ç as vol​tan​do à tona. Ago​r a eram fa​tos
que ele co​m e​ç a​va a re​c or​dar.
Es​ti​ve​r a re​a l​m en​te pre​so na​que​le mo​tel. Al​guém o dro​ga​r a e o fi​ze​r a pas​sar
por um pro​c es​so de la​va​gem ce​r e​bral. Du​r an​te aque​les dias de cal​vá​r io, um co​-
ro​nel cha​m a​do Falkirk ten​ta​r a en​ve​ne​ná-lo para im​pe​di-lo de fa​lar so​bre o que
vira...
Falkirk es​ta​va cer​to, pen​sou Dom. A la​va​gem ce​r e​bral não foi su​f i​c i​e n​te para
nos fa​zer es​que​c er tudo, para sem​pre. Tal​vez o me​lhor fos​se ter usa​do ve​ne​no.
No do​m in​go de ma​nhã, Er​nie com​prou al​gu​m as fo​lhas de com​pen​sa​do para
ve​dar as ja​ne​las do res​tau​r an​te. Me​diu os qua​dra​dos ne​c es​sá​r i​os, ser​r ou-os e,
com a aju​da de Ned e Dom, pre​gou-os nas ja​ne​las. Ao meio-dia o ser​vi​ç o es​ta​va
pron​to. Ha​vi​a m pen​sa​do em cha​m ar um vi​dra​c ei​r o para ins​ta​lar no​vos vi​dros,
mas, afi​nal, pre​f e​r i​r am o com​pen​sa​do, pon​de​r an​do que os fe​nô​m e​nos da noi​te
an​te​r i​or po​de​r i​a m re​pe​tir-se. Até que des​c o​bris​sem o que acon​te​c e​r a ali, as ja​-
ne​las con​ti​nu​a ​r i​a m bem ve​da​das e o res​tau​r an​te nao abri​r ia para nin​guém. Não
que​r i​a m que nada atra​pa​lhas​se suas pes​qui​sas so​bre o tal “va​za​m en​to de subs​tân​-
cia tó​xi​c a”.
De​pois da par​ti​da do úl​ti​m o hós​pe​de, che​ga​do na vés​pe​r a, só fi​c a​r i​a m no
mo​tel Er​nie, Fay e, Dom e quais​quer ou​tras ví​ti​m as que fos​sem lo​c a​li​za​das ou
que de​c i​dis​sem ir a Elko County par​ti​c i​par das in​ves​ti​ga​ç ões. Er​nie não sa​bia
quan​tos quar​tos se​r i​a m ne​c es​sá​r i​os e, por via das dú​vi​das, de​c i​diu dei​xar va​gos
to​dos os vin​te. Da​que​le mo​m en​to em di​a n​te, o mo​tel era quar​tel-ge​ne​r al e abri​go
das tro​pas ali​a ​das. Ali per​m a​ne​c e​r i​a m os sol​da​dos, até o fi​nal da​que​la guer​r a
con​tra um ini​m i​go des​c o​nhe​c i​do.
Con​c lu​í​do o con​ser​to das ja​ne​las, en​tra​r am to​dos no car​r o, e Fay e con​du​ziu-
os ao lo​c al que Er​nie e Sandy con​si​de​r a​vam tão es​pe​c i​a l. Lá che​gan​do, des​c e​-
ram e fi​c a​r am pa​r a​dos no acos​ta​m en​to da ro​do​via, os olhos vol​ta​dos para o sul.
Ten​ta​vam es​ta​be​le​c er al​gum tipo de co​m u​ni​c a​ç ão com o pas​sa​do e avis​tar o fa​-
tor in​vi​sí​vel que tal​vez se es​c on​des​se ali.
O sols​tí​c io de in​ver​no ocor​r e​r a três se​m a​nas an​tes, e o sol bri​lha​va pá​li​do,
dis​tan​te e frio. Em ple​no ja​nei​r o, pla​ní​c i​e s, mon​ta​nhas, ar​r oi​os e pe​que​nas for​-
ma​ç ões ro​c ho​sas tin​gi​a m-se de es​c u​r os tons mar​r ons, cin​zen​tos e ver​m e​lhos,
com pou​c as e dis​tan​tes man​c has de neve bran​c a. As ve​zes, quan​do uma das nu​-
vens pe​sa​das apro​xi​m a​va-se e en​c o​bria o sol, a pai​sa​gem tor​na​va-se ain​da
mais som​bria, sem nada per​der em ma​j es​ta​de e gran​de​za.
Fay e que​r ia ter al​gu​m a emo​ç ão es​pe​c i​a l e par​ti​lhá-la com Er​nie e os ou​tros,
mas não sen​tia ab​so​lu​ta​m en​te nada. O que sig​ni​f i​c a​va ape​nas que seu cé​r e​bro
fora la​va​do com mais efi​c i​ê n​c ia e cui​da​do que qual​quer ou​tro. E a sen​sa​ç ão de
ter sido vi​o​len​ta​da nos se​gre​dos mais ín​ti​m os fa​zia-a es​tre​m e​c er de fú​r ia. Era
uma mu​lher or​gu​lho​sa, se​gu​r a, para quem a idéia de sub​m is​são a quem
quer que fos​se so​a ​va qua​se como pe​c a​do mor​tal. Ali, onde seu ma​r i​do tal​vez
sen​tis​se as emo​ç ões mais vi​o​len​tas, res​ta​va-lhe ape​nas a sen​sa​ç ão do ven​to frio
nos ca​be​los.
Dom e Ned não da​vam si​nais de lem​brar-se de nada. Sandy e Er​nie, en​tre​-
tan​to, pa​r e​c i​a m ler nas pe​dras da pai​sa​gem di​f e​r en​tes men​sa​gens ci​f ra​das.
Sandy sor​r ia como a Vir​gem Ma​r ia no mo​m en​to da Anun​c i​a ​ç ão. Er​nie, mui​to
pá​li​do, os olhos es​bu​ga​lha-dos, en​c o​lhia-se como se es​ti​ves​se à bei​r a de uma cri​-
se fó​bi​c a.
— Va​m os che​gar mais per​to — su​ge​r iu Sandy.
Jun​tos, os cin​c o sal​ta​r am a gra​de de pro​te​ç ão, des​li​za​r am pelo bar​r an​c o e
an​da​r am na di​r e​ç ão da pla​ní​c ie, cin​qüen​ta ou cem me​tros à fren​te, pi​san​do cau​-
te​lo​sa​m en​te no mato de es​pi​nhos se​c os. Em al​guns pon​tos, o mato mar​r om e es​-
pi​nhen​to ce​dia lu​gar a tu​f os de ca​pim ma​c io, ain​da ver​de, si​nal de que ali co​m e​-
ça​vam as fér​teis pas​ta​gens do nor​te.
A cer​c a de du​zen​tos me​tros da es​tra​da, Er​nie pa​r ou num pon​to que não pa​r e​-
cia di​f e​r en​te de qual​quer ou​tro me​tro qua​dra​do ao re​dor:
— E aqui — dis​se, com as mãos en​f i​a ​das nos bol​sos do ca​sa​c o.
— E... — Sandy sor​r iu. — Aqui mes​m o.
Os cin​c o es​pa​lha​r am-se pela área, an​dan​do a esmo, de um lado para ou​tro.
Não fos​sem as pe​que​nas man​c has de neve, ou uma e ou​tra flor do cam​po bro​-
tan​do fora de es​ta​ç ão, a pai​sa​gem se​r ia a mes​m a do ve​r ão re​tra​sa​do.
Um ins​tan​te de​pois de ou​vir a voz da es​po​sa, Ned es​tre​m e​c eu, sur​preen​di​do
por uma onda de medo. Sem di​zer uma pa​la​vra, deu as cos​tas ao gru​po e afas​-
tou-se. Nada ali su​ge​r ia-lhe a paz de que Sandy fa​la​r a. Ela cor​r eu atrás do ma​r i​-
do.
De​pois foi a vez de Dom. Não sen​tia paz... mas tam​bém não sen​tia pa​vor.
Sua emo​ç ão apro​xi​m a​va-se mais da que Er​nie des​c re​ve​r a: medo, sim, mas tem​-
pe​r a​do com a inex​pli​c á​vel sen​sa​ç ão de es​tar tes​te​m u​nhan​do um acon​te​c i​m en​to
fan​tás​ti​c o, des​lum​bran​te, di​vi​no, epifâ​ni​c o.
Fay e era a úni​c a a não dar si​nal de qual​quer lem​bran​ç a.
Pa​r a​do de fren​te para o ho​r i​zon​te, Dom vi​r ou-se de​va​gar e per​gun​tou num
mur​m ú​r io:
— O que acon​te​c eu? O que pode ter acon​te​c i​do aqui?
O céu já es​ta​va fe​c ha​do, o sol en​c o​ber​to pe​las nu​vens. Ven​ta​va mui​to.
Fay e es​tre​m e​c eu. Cres​c ia nela, a cada ins​tan​te, a sen​sa​ç ão de ter sido rou​ba​-
da. Quan​do che​gas​se a hora de vin​gar-se dos ho​m ens que lhe rou​ba​r am par​te da
alma, os fi​ta​r ia bem nos olhos e lhes per​gun​ta​r ia como po​di​a m ter per​di​do os úl​ti​-
mos res​quí​c i​os de hu​m a​ni​da​de, res​pei​to e amor ao pró​xi​m o! Na​que​le mo​m en​to,
sa​ben​do que par​tes de seu pas​sa​do já não lhe per​ten​c i​a m, des​c o​bria que ja​m ais
vol​ta​r ia a ser a mes​m a mu​lher de an​tes.
Ar​r as​ta​dos pelo ven​to, tu​f os de ca​pim seco es​ta​la​vam nas pe​dras, pro​vo​c an​-
do um ru​í​do pa​vo​r o​so, que fa​zia pen​sar nos es​que​le​tos dos pe​que​nos ani​m ais da
pla​ní​c ie de re​pen​te des​per​ta​dos de seu re​pou​so eter​no.
De vol​ta ao mo​tel, no apar​ta​m en​to dos Block, con​ver​sa​vam Er-nie, Sandy e
Ned à vol​ta da mesa da co​zi​nha, en​quan​to Fay e pre​pa​r a​va café e cho​c o​la​te
quen​te.
Dom, ao te​le​f o​ne, ten​ta​va fa​zer con​ta​to com as ou​tras oito pes​so​a s cu​j os no​-
mes apa​r e​c i​a m na lis​ta de hós​pe​des do dia 6 de ju​lho do ano re​tra​sa​do. Uma de​-
las era Ge​r ald Sal​c oe, de Mon​te​r ey, Ca​li​f ór​nia, que ocu​pa​r a dois quar​tos, hos​pe​-
dan​do-se com a mu​lher e as fi​lhas; dei​xa​r a re​gis​tra​do o en​de​r e​ç o, mas não o te​-
le​f o​ne. A te​le​f o​nis​ta da re​gi​ã o de Mon​te​r ey in​f or​m ou a Dom que o nome não
cons​ta​va do ca​tá​lo​go.
Com um sus​pi​r o de re​sig​na​ç ão, ele pas​sou ao nome se​guin​te, Cal Shark​le, o
ca​m i​nho​nei​r o ami​go dos Block. Tam​bém não con​se​guiu nada, pois a te​le​f o​nis​ta
de Evans​ton, su​búr​bio de Chi​c a​go, Il​li​nois, in​f or​m ou que aque​le apa​r e​lho fora
des​li​ga​do.
— Po​de​m os pro​c u​r ar ou​tro li​vro mais re​c en​te, onde Cal te​nha dei​xa​do o
novo nú​m e​r o — Er​nie pro​pôs.
Fay e pou​sou uma xí​c a​r a de café ao lado do te​le​f o​ne e foi para a mesa.
Na ter​c ei​r a ten​ta​ti​va, Dom fez-lhes si​nal po​si​ti​vo. Es​ta​va li​gan​do paia Alan
Ry koff, em Las Ve​gas. Aten​deu-o uma voz de mu​lher.
— Se​nho​r a Ry koff? — Dom per​gun​tou.
Um ins​tan​te de he​si​ta​ç ão no ou​tro lado da li​nha, e a voz in​f or​m ou:
— Esse era meu nome de ca​sa​da. De​pois do di​vór​c io vol​tei a usar meu
nome de sol​tei​r a, Mo​na​tel​la.
— Sim... Bem, eu me cha​m o Do​m i​nick Cor​vai​sis. Es​tou te​le​f o​nan​do do
Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, em Elko County, Ne​va​da. A se​nho​r a, sua fi​lha e seu ex-ma​-
ri​do es​ti​ve​r am hos​pe​da​dos aqui no mês de ju​lho, há dois anos, não é ver​da​de?
— Sim, é... é ver​da​de.
— Pre​c i​sa​m os mui​to sa​ber se por aca​so al​gum de vo​c ês está en​f ren​tan​do
pro​ble​m as... psi​c o​ló​gi​c os, tal​vez... com​pli​c a​ç ões ner​vo​sas...
A he​si​ta​ç ão, ago​r a, era qua​se uma res​pos​ta, que Jor​j a não con​f ir​m ou.
— O que sig​ni​f i​c a isso? — es​bra​ve​j ou. — Uma pi​a ​da de mau gos​to? Não
sabe do que hou​ve com Alan?
— Por fa​vor, acre​di​te em mim. Não sei de nada so​bre seu ma​r i​do. Mas
sei, com cer​te​za, que pos​si​vel​m en​te ele, a se​nho​r a e sua fi​lha fo​r am afe​ta​dos
por... um fe​nô​m e​no que ocor​r eu aqui du​r an​te sua es​ta​dia. Nes​se caso, po​de​r i​a m
es​tar so​f ren​do de dis​túr​bi​os psi​c o​ló​gi​c os... pe​sa​de​los que não con​se​guem re​c or​-
dar... cri​ses ner​vo​sas... so​nhos com... a Lua...
— Do ou​tro lado do fio, o som de um gri​to aba​f a​do. Gri​to de sur​pre​sa e de
medo. A mu​lher pôs-se a cho​r ar.
— Ain​da não sei o que pode es​tar ha​ven​do com a se​nho​r a ou sua fa​m í​lia
— dis​se Dom. — Mas pos​so ga​r an​tir-lhe que o pior já pas​sou. Acon​te​ç a o que
acon​te​c er, da​qui para a fren​te a se​nho​r a já não está so​zi​nha.
Mui​to lon​ge de Elko County, em Ma​nhat​tan, Jack Twist pas​sa​r a a noi​te dis​tri​-
bu​in​do di​nhei​r o. Ao vol​tar do as​sal​to ao car​r o blin​da​do, em Con​nec​ti​c ut, de​m o​r a​-
ra ho​r as pro​c u​r an​do quem pre​c i​sas​se de mui​to di​nhei​r o e me​r e​c es​se ga​nhá-lo de
pre​sen​te. Às cin​c o ho​r as da ma​dru​ga​da, afi​nal, con​se​guiu li​vrar-se do úl​ti​-
mo maço de no​tas rou​ba​das. À bei​r a de um co​lap​so fí​si​c o e emo​c i​o​nal, vol​tou ao
apar​ta​m en​to na Quin​ta Ave​ni​da, caiu na cama e dor​m iu de ime​di​a ​to.
No​va​m en​te so​nhou com a ro​do​via de​ser​ta, ba​nha​da pelo luar, onde um des​-
co​nhe​c i​do o per​se​guia, o ros​to es​c on​di​do atrás de um ca​pa​c e​te. Acor​dou em pâ​-
ni​c o, à uma da tar​de, quan​do no pe​sa​de​lo a Lua co​m e​ç a​va a tin​gir-se de ver​m e​-
lho in​ten​so como san​gue... O que po​de​r ia sig​ni​f i​c ar aqui​lo?
Saiu da cama, to​m ou um ba​nho e bar​be​ou-se; de​pois ves​tiu-se, co​m eu al​gu​-
ma coi​sa e vol​tou para o quar​to. Abriu a por​ta que co​bria toda a pa​r e​de, re​m o​veu
o fun​do fal​so de três ou qua​tro pra​te​lei​r as e re​ti​r ou tudo que lá ha​via. As jói​a s do
as​sal​to de ou​tu​bro ha​vi​a m sido ven​di​das e boa par​te do di​nhei​r o da Má​f ia con​ver​-
te​r a-se em che​ques que, por sua vez, fo​r am pa​r ar em três con​tas nu​m e​r a​das em
ban​c os su​í​ç os. Res​ta​vam ape​nas cen​to e vin​te e cin​c o mil dó​la​r es, uma re​ser​va
que sem​pre man​ti​nha ao al​c an​c e da mão para a even​tu​a ​li​da​de de pre​c i​sar fu​gir
do país.
Pas​sou boa par​te do di​nhei​r o para uma ma​le​ta: nove ma​ç os, e cada qual
com cem no​tas de cem dó​la​r es. Dei​xou no ar​m á​r io vin​te e cin​c o mil dó​la​r es,
quan​tia mais que su​f i​c i​e n​te para vi​ver du​r an​te al​gum tem​po. Em​bo​r a es​ti​ves​se
dis​pos​to a dis​tri​buir uma fa​tia con​si​de​r á​vel da for​tu​na que acu​m u​la​r a em anos de
rou​bos, não ti​nha a in​ten​ç ão de doar todo o di​nhei​r o do qual de​pen​dia sua so​bre​vi​-
vên​c ia ime​di​a ​ta. Esse tipo de es​m o​la tal​vez fi​zes​se bem às al​m as cul​pa​das, mas
cons​ti​tu​ía re​m a​ta​da lou​c u​r a em re​la​ç ão ao fu​tu​r o. De qual​quer modo, Jack ti​nha
ain​da onze co​f res alu​ga​dos em di​f e​r en​tes ban​c os da ci​da​de, nos quais guar​da​va
mais de du​zen​tos mil dó​la​r es. E suas três con​tas na Su​í​ç a to​ta​li​za​vam mais de
qua​tro mi​lhões... Nun​c a pre​c i​sa​r ia de tan​to di​nhei​r o, por isso pla​ne​j a​va dis​tri​buir
me​ta​de des​sa for​tu​na ao lon​go das duas ou três se​m a​nas se​guin​tes. De​pois, po​de​-
ria pa​r ar e de​c i​dir o que fa​zer da vida. Se fos​se o caso, sem​pre po​de​r ia doar ain​-
da mais al​guns mi​lha​r es de dó​la​r es.
Às três e meia da tar​de, par​tiu em di​r e​ç ão à ci​da​de, le​van​do a ma​le​ta com
di​nhei​r o. Cada um dos ros​tos que via, ros​tos hos​tis até a vés​pe​r a, pa​r e​c ia sor​r ir-
lhe, com a pro​m es​sa das pri​m ei​r as lu​zes de uma nova es​pe​r an​ç a.
A co​zi​nha dos Block chei​r a​va a café e cho​c o​la​te quen​te. Pou​c o de​pois, quan​-
do Fay e co​m e​ç ou a as​sar bo​li​nhos, per​f u​m ou-se de ca​ne​la e açú​c ar quei​m a​do.
Dom con​ti​nu​a ​va ao te​le​f o​ne e os ou​tros per​m a​ne​c i​a m reu​ni​dos à vol​ta da mesa.
Dom con​se​guiu fa​lar com Jim Ges​tron, um fo​tó​gra​f o que na​que​le ve​r ão vi​a ​-
ja​r a pela re​gi​ã o a ser​vi​ç o de uma re​vis​ta. De iní​c io Jim pa​r e​c eu in​te​r es​sa​do, mas
à me​di​da que se in​tei​r a​va dos de​ta​lhes, tor​nou-se cada vez me​nos cor​di​a l. Não,
não es​ta​va so​f ren​do de qual​quer tipo de dis​túr​bio, nem ti​nha pe​sa​de​los. Tal​vez
fos​se ou​tro caso de la​va​gem ce​r e​bral bem-su​c e​di​da. O fo​tó​gra​f o ou​viu a des​c ri​-
ção da nic​to​f o​bia de Er​nie, do so​nam​bu​lis​m o de Dom, da ob​ses​são pela Lua e até
mes​m o o do sui​c í​dio de Lo​m ack, com a mes​m a aten​ç ão que da​r ia ao pa​la​vre​a ​do
de um doi​do de hos​pí​c io. Foi o que dis​se a Dom, se​gun​dos an​tes de ba​ter o te​le​f o​-
ne.
Har​r i​e t Bel​lot, em Sa​c ra​m en​to, tam​bém não apre​sen​ta​va pro​ble​m as. Era
sol​tei​r a, ti​nha cin​qüen​ta anos e le​c i​o​na​va numa es​c o​la de su​búr​bio. Apai​xo​na​da
pelo Oes​te ame​r i​c a​no, não per​dia chan​c e de vi​a ​j ar para lá nas fé​r i​a s. Fa​la​va e
pen​sa​va como pro​f es​so​r a, mui​to se​gu​r a da su​pe​r i​o​r i​da​de de sua in​te​li​gên​c ia e de
sua es​pan​to​sa quan​ti​da​de de co​nhe​c i​m en​tos. Não es​pe​r ou a des​c ri​ç ão da se​gun​da
sé​r ie de pro​ble​m as pos​sí​veis para pe​dir des​c ul​pas e des​li​gar o te​le​f o​ne.
— Está ven​do? — Er​nie di​r i​giu-se à es​po​sa. — Você não é a úni​c a que não
se lem​bra de nada e está bem.
— Es​tou bem... — ela res​m un​gou. — Da​r ia qual​quer coi​sa para ter medo
de es​c u​r o, ou ser so​nâm​bu​la... Não há nada pior do que a sen​sa​ç ão de ter sido
mu​ti​la​da. E pior do que se ti​ves​sem am​pu​ta​do uma de mi​nhas mãos... Eles am​-
pu​ta​r am três dias de mi​nha vida!
Tal​vez te​nha ra​zão, pen​sou Dom. Tal​vez os pe​sa​de​los, as cri​ses, os me​dos se​-
jam me​nos ter​r í​veis do que a sen​sa​ç ão de va​zio no co​r a​ç ão. Um oco to​tal, ne​gro,
si​len​c i​o​so. Como uma fa​tia de mor​te na alma, pe​san​do in​ter​m i​na​vel​m en​te.
Quan​do Do​m i​nick Cor​vai​sis li​gou para a Igre​j a de San​ta Ber-nar​det​te, às
qua​tro e vin​te e seis da tar​de de do​m in​go, o pa​dre Wy ​c a​zik re​a ​li​za​va com um
gru​po de pa​r o​qui​a ​nos a pri​m ei​r a de mui​tas reu​ni​ões pre​pa​r a​tó​r i​a s da quer​m es​se
de pri​m a​ve​r a.
As qua​tro e meia, o pa​dre Mi​c ha​e l Ger​r a​no en​trou na sala com a no​tí​c ia de
que um pri​m o do ve​lho cura es​ta​va li​gan​do de Elko, Ne​va​da, à sua pro​c u​r a. Pou​-
cas ho​r as an​tes, Bren​dan con​se​gui​r a um lu​gar no voo para Reno, apro​vei​tan​do
uma de​sis​tên​c ia de úl​ti​m a hora. Na​que​le exa​to mo​m en​to, um dia an​tes da data
pre​vis​ta, es​ta​va num avi​ã o mui​to aci​m a de qual​quer ca​bi​ne te​le​f ô​ni​c a... Quem
es​ta​r ia li​gan​do de Ne​va​da?!
Ste​f an in​c um​biu o con​f ra​de de dar pros​se​gui​m en​to à reu​ni​ã o e cor​r eu a
aten​der. Em pou​c os mi​nu​tos, Dom ma​r a​vi​lha​va-se com as fan​tás​ti​c as his​tó​r i​c as
das cu​r as mi​la​gro​sas que o ve​lho ti​nha para lhe con​tar, e Ste​f an ar​r e​ga​la​va os
olhos, ao sa​ber dos es​tra​nhos fe​nô​m e​nos que ocor​r i​a m em Ne​va​da.
— Será que pos​so ali​m en​tar al​gu​m a es​pe​r an​ç a de que as cu​r as que Bren​-
dan con​se​guiu se​j am... di​ga​m os... de ori​gem di​vi​na? — per​gun​tou o pa​dre, afi​nal.
— Para ser sin​c e​r o, ape​sar da cura da me​ni​na e do po​li​c i​a l, que o se​nhor
aca​ba de con​tar... não. Não con​si​go ver a in​ter​f e​r ên​c ia de Deus em nada do que
está acon​te​c en​do. Há, isso sim, pes​so​a s, pro​va​vel​m en​te mal-in​ten​c i​o​na​das, mo​-
ven​do os cor​dões. So​m os ape​nas seus fan​to​c hes.
— Acho que você está cer​to... — Ste​f an sus​pi​r ou. — Mas te​nho o di​r ei​to de
es​pe​r ar que Bren​dan foi cha​m a​do a tes​te​m u​nhar um acon​te​c i​m en​to que o fará
vol​tar para o ca​m i​nho de Cris​to. Dis​so não abro mão!
Dom riu.
— Pelo que ouvi até ago​r a, e mes​m o sem co​nhe​c ê-lo, acho que o se​nhor
nun​c a abre mão da es​pe​r an​ç a de con​quis​tar uma alma
de​sen​c a​m i​nha​da... Sou ca​paz de apos​tar que tem mé​to​dos pró​pri​os para isso.
Com o se​nhor, nada de con​ver​sa man​sa e de pa​c i​ê n​c ia. O se​nhor me pa​r e​c e
um... es​ti​va​dor de Deus... mús​c u​los e co​r a​ç ão a ser​vi​ç o do Se​nhor. E, por fa​vor,
não me in​ter​pre​te mal... Es​tou fa​zen​do um elo​gio!
— Sei que é um elo​gio... — Ste​f an tam​bém riu. — Vivo com a fir​m e con​-
vic​ç ão de que as di​f i​c ul​da​des for​ta​le​c em a fé. Um es​ti​va​dor... a ima​gem me pa​-
re​c e boa.
— Va​m os to​m ar con​ta de seu pa​dre Cro​nin. Se ele for pa​r e​c i​do com o se​-
nhor, será um con​f or​to tê-lo como ali​a ​do.
— Eu tam​bém sou seu ali​a ​do. Se achar que pos​so fa​zer al​gu​m a * coi​sa
para aju​dá-los nas in​ves​ti​ga​ç ões, bas​ta me te​le​f o​nar. Se hou​ver a mais re​m o​ta
pos​si​bi​li​da​de de que ocor​r a um mi​la​gre, não vou per​der o es​pe​tá​c u​lo, por nada
des​te mun​do!
O nome se​guin​te no li​vro de re​gis​tro era o de Bru​c e Ca​ble, de Fi​la​dél​f ia, que
se hos​pe​da​r a no mo​tel com a es​po​sa. Ne​nhum dos dois en​f ren​ta​va pro​ble​m as se​-
me​lhan​tes aos que Dom des​c re​veu. De iní​c io, até se mos​tra​r am in​te​r es​sa​dos nos
de​ta​lhes da his​tó​r ia, mas aos pou​c os tor​na​r am-se es​qui​vos e aca​ba​r am por des​li​-
gar o te​le​f o​ne, como os pri​m ei​r os da lis​ta.
O úl​ti​m o nome da pá​gi​na era o de Thorn​ton Wainw​r ight, com en​de​r e​ç o e te​-
le​f o​ne de Nova York. Uma sra. Neil Kar​poly aten​deu à li​ga​ç ão e de​c la​r ou, sem
ro​dei​os, que aque​le nú​m e​r o lhe per​ten​c ia há mais de qua​tor​ze anos e que ja​m ais
ou​vi​r a fa​lar em Thorn​ton Wainw​r ight. Dom per​gun​tou-lhe se mo​r a​va no en​de​r e​-
ço que cons​ta​va do li​vro de hós​pe​des e a ou​viu rir:
— Cla​r o que não moro! E se Wainw​r ight lhe dis​se que mora aí... co​m e​c e a
es​c o​lher me​lhor seus ami​gos. Pos​so lhe as​se​gu​r ar que nin​guém mora nes​se en​-
de​r e​ç o, em​bo​r a mui​ta gen​te so​nhe em mu​dar-se para lá... E o en​de​r e​ç o da Blo​o​-
ming​da​le’s, a gran​de loja de de​par​ta​m en​tos.
Quan​do Dom vol​tou à mesa com a no​vi​da​de, Sandy ar​r e​ga​lou os olhos:
— Ora, te​le​f o​ne e en​de​r e​ç o fal​sos? Será que ele só quis fa​zer uma brin​c a​-
dei​r a ou... há al​gu​m a coi​sa por trás dis​so?
Jack ti​nha um es​to​j o cheio de cé​du​las de iden​ti​da​de, car​tei​r as de mo​to​r is​ta,
cer​ti​dões de nas​c i​m en​to, car​tões de cré​di​to, pas​sa​por​tes e até ins​c ri​ç ões em bi​bli​-
o​te​c as pú​bli​c as em nome de oito ci​da​dãos di​f e​r en​tes, um dos quais era Thorn​ton
Bains Wainw​r ight. E es​c o​lhia um nome para cada as​sal​to.
Na​que​la tar​de de do​m in​go, po​r ém, tra​ba​lha​va no ano​ni​m a​to, dis​tri​bu​in​do
mais cem mil dó​la​r es pe​las cai​xas de es​m o​la de Ma​nhat​tan, ou onde quer que
en​c on​tras​se al​guém com cara de me​r e​c er um pre​sen​te.
O mai​or do​na​ti​vo do dia cou​be a um ma​r i​nhei​r o e sua na​m o​r a​da de do​m in​-
go, cujo ve​lho car​r o, amas​sa​dís​si​m o, es​ta​va pa​r a​do com pro​ble​m as mecâ​ni​c os
per​to do Cen​tral Park, jun​to à es​tá​tua de Si​m ón Bo​lí​var.
— Com​pre um car​r o novo — dis​se-lhe Jack, en​f i​a n​do ma​ç os e ma​ç os de
di​nhei​r o nos bol​sos do ho​m em. — E, se é es​per​to, não con​te a nin​guém so​bre
esse pre​sen​te. Não diga uma pa​la​vra aos jor​nais... por​que o im​pos​to de ren​da
cai​r ia so​bre você como abe​lhas no mel. Não ten​te des​c o​brir quem sou e não pre​-
ci​sa agra​de​c er. Cui​de bem de sua na​m o​r a​da... por​que nin​guém sabe quan​to tem​-
po de fe​li​c i​da​de ain​da lhe res​ta.
Em me​nos de uma hora, Jack dis​tri​buiu os cem mil dó​la​r es ti​r a​dos do com​-
par​ti​m en​to se​c re​to do ar​m á​r io. Com boa par​te ain​da pela fren​te, com​prou um
bu​quê de ro​sas ver​m e​lhas e ru​m ou para o ce​m i​té​r io onde Jenny fora en​ter​r a​da
duas se​m a​nas an​tes. De​c i​di​r a que a es​po​sa des​c an​sa​r ia para sem​pre num lu​gar
bo​ni​to, com mui​ta gra​m a, flo​r es na pri​m a​ve​r a e co​li​nas ne​va​das no in​ver​no, bem
lon​ge dos hor​r o​r o​sos ce​m i​té​r i​os cin​zen​tos e su​per-po​vo​a ​dos do cen​tro da ci​da​de.
Che​gou ao lu​gar pou​c o an​tes do cre​pús​c u​lo e di​r i​giu-se à pe​que​na cruz bran​-
ca, idên​ti​c a a to​das as ou​tras mas in​c on​f un​dí​vel para ele, por​que mar​c a​va o lu​gar
onde Jenny re​pou​sa​va. De​po​si​tou as ro​sas so​bre o tú​m u​lo, co​lo​c an​do na pai​sa​-
gem es​bran​qui​ç a-
da um úni​c o to​que co​lo​r i​do, e sen​tou-se na neve, in​di​f e​r en​te ao frio e à umi​-
da​de. En​tão, pôs-se a con​ver​sar com a es​po​sa, como sem​pre fi​ze​r a no hos​pi​tal.
Con​tou so​bre o as​sal​to ao car​r o blin​da​do e so​bre os pre​sen​tes que an​da​va dis​tri​bu​-
in​do pela ci​da​de. Con​c lu​ía o re​la​to, quan​do um vi​gia se apro​xi​m ou para avi​sar
que era hora de fe​c har o ce​m i​té​r io.
— Es​tou mu​dan​do — mur​m u​r ou já de pé, olhos pos​tos na pe​que​na lá​pi​de
com o nome de Jenny ins​c ri​to em bron​ze, ilu​m i​na​do pela luz di​f u​sa de um dos
pos​tes —, mas ain​da não en​ten​do por quê. E bom, sin​to-me bem... mas não dei​xa
de ser es​tra​nho.
O que dis​se a se​guir sur​preen​deu até a si mes​m o:
— Sin​to que vai acon​te​c er al​gu​m a coi​sa mui​to im​por​tan​te. — Co​m e​ç a​va a
pres​sen​tir que a re​c on​c i​li​a ​ç ão com o mun​do de seus se​m e​lhan​tes era ape​nas o
pri​m ei​r o pas​so de uma jor​na​da que o le​va​r ia a lu​ga​r es dis​tan​tes. — Vai acon​te​-
cer al​gu​m a coi​sa mui​to im​por​tan​te... — re​pe​tiu. — E é uma pena que você já
não es​te​j a co​m i​go.
Des​de cedo, en​quan​to con​ser​ta​vam as ja​ne​las, a tem​pes​ta​de co​m e​ç a​r a a se
ar​m ar para os la​dos do ho​r i​zon​te. Ho​r as mais tar​de, quan​do Dom saiu para ir ao
ae​r o​por​to de Elko apa​nhar Gin​ger Weiss, o mun​do ja​zia sob nu​vens cin​zen​tas.
Im​pa​c i​e n​te de​m ais para es​pe​r ar no car​r o, Dom plan​tou-se na pis​ta de pou​so, o
ca​sa​c o fe​c ha​do até o pes​c o​ç o, e ou​viu o ron​c o do pe​que​no avi​ã o de dez lu​ga​r es
an​tes mes​m o de vê-lo atra​ves​sar as nu​vens para pou​sar.
Mo​to​r es ron​c an​do, céu cin​zen​to, tudo con​tri​bu​ía para cri​a r um cli​m a de
guer​r a pró​xi​m a. Dom sen​tiu que, de cer​to modo, es​ta​va mes​m o ar​r e​gi​m en​tan​do
suas tro​pas. Ape​nas o ini​m i​go con​ti​nu​a ​va ocul​to, po​r ém tor​nan​do-se mais pró​xi​-
mo a cada ins​tan​te.
Gin​ger foi o quar​to ros​to a apa​r e​c er na por​ta do avi​ã o. Ape​sar do ca​sa​c o de
vi​a ​gem, lar​go e dis​f or​m e, pa​r e​c eu-lhe lin​da, com os ca​be​los on​du​lan​do ao ven​to
como uma ban​dei​r a dou​r a​da. Dom cor​r eu em sua di​r e​ç ão. Gin​ger des​c eu a es​-
ca​da, pôs as ma​las no chão e er​gueu o ros​to. Es​pe​r a​r am um ins​tan​te, um fren​te
ao ou​tro, sem di​zer pa​la​vra, com a mes​m a e idên​ti​c a sen​sa​ç ão de alí-
vio, ale​gria, pra​zer e medo. En​tão, obe​de​c en​do a um im​pul​so ir​r e​sis​tí​vel que
sur​preen​deu a am​bos, abra​ç a​r am-se como ve​lhos ami​gos que du​r an​te anos não
se viam. Dom es​trei​tou-a con​tra o pei​to, e Gin​ger pen​du​r ou-se a seu pes​c o​ç o
com for​ç a e emo​ç ão, cada qual ou​vin​do a pul​sa​ç ão ace​le​r a​da do co​r a​ç ão do ou​-
tro. Dom ain​da ten​tou en​c on​trar a ra​zão de tão es​tra​nha ati​tu​de, mas logo de​sis​tiu.
Aque​le era mo​m en​to de sen​tir, não de pen​sar, e ele dei​xou-se le​var pela emo​-
ção.
Ne​nhum dos dois que​r ia se​pa​r ar-se e quan​do, afi​nal, Gin​ger deu um pas​so
atrás ain​da não sa​bi​a m o que di​zer. Ela ga​gue​j a​va, sem emi​tir qual​quer som ar​ti​-
cu​la​do, e Dom di​zia coi​sas sem nexo. Ela apa​nhou uma das ma​las, Dom en​c ar​-
re​gou-se da ou​tra e, sem fa​lar, in​di​c ou-lhe o ca​m i​nho do es​ta​c i​o​na​m en​to.
Afi​nal, no car​r o, com o aque​c i​m en​to li​ga​do, Gin​ger mur​m u​r ou:
— Mas... o que terá acon​te​c i​do?!
Ain​da im​pres​si​o​na​do, mas nem um pou​c o em​ba​r a​ç a​do pelo abra​ç o que os
uni​r a, Dom pi​gar​r e​ou.
— Para di​zer a ver​da​de, não sei. Mas acho que vi​ve​m os al​gu​m a gran​de
emo​ç ão jun​tos... Uma emo​ç ão que cri​ou la​ç os de afe​to e con​f i​a n​ç a en​tre nós.
Não dava para sa​ber dis​so até nos en​c on​trar, ou me​lhor, nos reen​c on​trar​m os, em
car​ne e osso.
— Eu ti​nha sen​ti​do uma emo​ç ão mui​to es​tra​nha quan​do vi sua foto na con​-
tra​c a​pa do li​vro... Mas ago​r a, ao sair do avi​ã o e dar com os olhos em você... foi
como se o co​nhe​c es​se a anos! — Gin​ger ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. — Não, foi mais do
que isso. Foi como um co​nhe​c i​m en​to mais for​te, como se ti​vés​se​m os vi​vi​do ex​-
pe​r i​ê n​c i​a s que nin​guém ja​m ais vi​veu, como se hou​ves​se en​tre nós um se​gre​do...
que po​de​r ia mu​dar o mun​do! Pa​r e​c e lou​c u​r a?
— Não... — Dom res​pi​r ou fun​do. — Não pa​r e​c e lou​c u​r a... E você des​c re​-
veu exa​ta​m en​te o que eu sen​ti...
— Foi as​sim tam​bém com os ou​tros?
— Não. Sen​ti que éra​m os um gru​po uni​do... que ha​via um laço de afe​to en​-
tre to​dos, mas foi di​f e​r en​te. Todo o gru​po pas​sou pela mes​m a ex​pe​r i​ê n​c ia es​tra​-
nha, mas você e eu vi​ve​m os ex​pe​r i​ê n​c i​a s ain​da mais es​tra​nhas... que nos mar​c a​-
ram mais fun​do e
nos apro​xi​m a​r am um do ou​tro. Quan​to mais se pen​sa, mais mis​té​r i​os apa​r e​-
cem!
Por mais de meia hora fi​c a​r am pa​r a​dos no car​r o, con​ver​san​do. Car​r os e ca​-
mi​nhões iam e vi​nham a seu re​dor, o ven​to so​pra​va cada vez mais for​te e ge​la​do,
mas eles nem per​c e​bi​a m. Só ti​nham olhos e ou​vi​dos um para o ou​tro.
Gin​ger fa​lou-lhe das cri​ses de fuga, dos pe​r í​o​dos de in​c ons​c i​ê n​c ia, das
sessões de re​gres​são hip​nó​ti​c a, do blo​queio de Az​r a​e l. Con​tou-lhe so​bre o as​sas​si​-
na​to de Pa​blo Jack​son e de sua fuga. Ela não men​tia nem exa​ge​r a​va para ga​nhar
sim​pa​tia ou pi​e ​da​de; ain​da as​sim, Dom olha​va-a cada vez mais fas​c i​na​do. Uma
mu​lher pe​que​ni​na, ma​gra, frá​gil... e for​te como um leão, lu​tan​do pela pró​pria
vida!
En​tão foi sua vez de in​f or​m ar-lhe os acon​te​c i​m en​tos das úl​ti​m as vin​te e qua​-
tro ho​r as. Quan​do ela o ou​viu con​tar o so​nho da vés​pe​r a, so​bre as pri​m ei​r as lem​-
bran​ç as que co​m e​ç a​vam a emer​gir, ela sor​r iu, ali​vi​a ​da. Ali es​ta​va a pro​va de
que Pa​blo ti​nha ra​zão: as cri​ses de medo, as fu​gas, os pe​r í​o​dos de in​c ons​c i​ê n​c ia
nada ti​nham a ver com pro​ble​m as psi​c o​ló​gi​c os. Eram cri​ses dis​pa​r a​das por ob​j e​-
tos que, de al​gum modo, as​so​c i​a ​vam-se ao pe​r í​o​do em que es​ti​ve​r a no Mo​tel
Tran​qüi​li​da​de, como hós​pe​de ou como pri​si​o​nei​r a. As lu​vas pre​tas e o ca​pa​c e​te
com vi​sor pin​ta​do a as​sus​ta​vam por​que lhe lem​bra​vam fa​tos já var​r i​dos de sua
me​m ó​r ia... de​ta​lhes do tra​j e de la​bo​r a​tó​r io usa​do pelo pes​so​a l en​c ar​r e​ga​do de
aten​dê-la du​r an​te o tem​po em que so​f re​r á a la​va​gem ce​r e​bral. A pia a fa​zia cor​-
rer por​que, com cer​te​za, re​c e​be​r a o mes​m o tra​ta​m en​to que Dom. Fora en​ve​ne​-
na​da pelo tal co​r o​nel Fal-kirk... e obri​ga​r am-na a vo​m i​tar o ve​ne​no numa pia. En​-
quan​to per​m a​ne​c e​r a amar​r a​da à cama, sub​m e​te​r am-na a fre​qüen​tes exa​m es de
fun​do de olho para ava​li​a r a ação das dro​gas que lhe mi​nis​tra​vam... e daí o pa​vor
que o of​tal​m os​c ó​pio lhe cau​sa​va. Não... não es​ta​va en​lou​que​c en​do! Con​ti​nu​a ​va a
mes​m a, sau​dá​vel como sem​pre... lu​tan​do de​ses​pe​r a​da​m en​te para se lem​brar
do pas​sa​do.
— E os bo​tões do im​per​m e​á ​vel do ho​m em que ma​tou Pa​blo?
E os bo​tões da tú​ni​c a do guar​da? — per​gun​tou de re​pen​te. — Por que me as​-
sus​ta​r am tan​to?
— Sa​be​m os que o Exér​c i​to par​ti​c i​pou da... ope​r a​ç ão. Ver​da​de que os uni​-
for​m es mi​li​ta​r es não têm bo​tões com le​ões ram​pan​tes. Mas águi​a s ame​r i​c a​nas e
le​ões in​gle​ses são meio pa​r e​c i​dos, você pode tê-los con​f un​di​do. Ha​via mi​li​ta​r es
no mo​tel.
— Você fa​lou em gen​te com tra​j e de la​bo​r a​tó​r io, não em mi​li​ta​r es far​da​-
dos.
— E pos​sí​vel que te​nham ti​r a​do o tra​j e de la​bo​r a​tó​r io de​pois dos pri​m ei​r os
dias e vol​ta​do à far​da.
— Res​ta ape​nas a lâm​pa​da ex​ter​na da casa da Rua New​bury... — Gin​ger
sus​pi​r ou. — Já lhe con​tei... uma lan​ter​na de fer​r o ba​ti​do com vi​dro cor de âm​bar.
Uma luz co​m um, sem nada de es​pe​c i​a l... mas me fez fi​c ar in​c ons​c i​e n​te por vá​r i​-
os mi​nu​tos.
— Nos quar​tos do mo​tel há lu​m i​ná​r i​a s pa​r e​c i​das com essa que você viu.
Os aba​j u​r es das me​sas-de-ca​be​c ei​r a são exa​ta​m en​te as​sim: fer​r o ba​ti​do e vi​dro
cor de âm​bar.
— Deus do céu! En​tão não há dú​vi​da! Cada uma de mi​nhas cri​ses foi dis​-
pa​r a​da por um ob​j e​to que vi du​r an​te a la​va​gem ce​r e​bral.
— Se ain​da ti​ver al​gu​m a dú​vi​da, isto vai con​ven​c ê-la de que não es​ta​m os
lou​c os — dis​se Dom, mos​tran​do-lhe a foto onde ela apa​r ên​c ia dei​ta​da, amar​r a​da
à cama.
Gin​ger em​pa​li​de​c eu de sus​to ao ver-se en​c o​lhi​da en​tre os len​ç óis, olhos de
zum​bi. De​pois des​vi​ou o olhar e mur​m u​r ou:
— Ge​v alt... E uma lou​c u​r a! O que pode ter acon​te​c i​do co​nos​c o para jus​ti​-
fi​c ar tudo isso?l Equi​pa​m en​to e pes​so​a l mé​di​c o, gen​te trei​na​da, tem​po, mui​to di​-
nhei​r o... Uma ver​da​dei​r a cons​pi​r a​ç ão... or​ga​ni​za​da e ar​r is​c a​dís​si​m a! O que será
que des​c o​bri​m os... ou vi​m os?!
— Logo va​m os sa​ber.
— Será que con​se​gui​r e​m os? Não es​que​ç a que eles ma​ta​r am Pa-blo... E se
ma​ta​r am um, por​que não li​qui​dar mais al​guns?
— Creio que há duas fac​ç ões em luta. O gru​po de​les está di​vi​di​do... —•
Dom re​gu​lou o ter​m os​ta​to do aque​c i​m en​to do car​r o.
— De um lado, os “du​r ões”, re​pre​sen​ta​dos ou co​m an​da​dos pelo co​r o​nel
Falkirk. De ou​tro, os “mo​c i​nhos”... ou, pelo me​nos, os “me​nos du​r ões”, re​pre​sen​-
ta​dos por quem nos tem man​da​do fo​tos e bi​lhe​tes. Os mes​m os que apa​r e​c e​r am
em meu so​nho, à noi​te pas​sa​da. Os “du​r ões” de​c i​di​r am nos en​ve​ne​nar para ter
cer​te​za de que ja​m ais fa​la​r í​a ​m os. E os “mo​c i​nhos” vo​ta​r am pela la​va​gem ce​r e​-
bral... por mé​to​dos me​nos vi​o​len​tos que nos per​m i​ti-riam vol​tar à vida nor​m al.
Con​si​de​r an​do que aqui es​ta​m os, é ra​zo​á ​vel con​c luir que os “mo​c i​nhos” são a
mai​o​r ia.
— Mas o as​sas​si​no de Pa​blo era da tur​m a dos “du​r ões’”.
— Pro​va​vel​m en​te a ser​vi​ç o de Falkirk. O as​sas​si​na​to de seu ami​go pro​va
que Falkirk ain​da não de​sis​tiu de ma​tar qual​quer um que po​nha em ris​c o seu se​-
gre​do. E uma ame​a ​ç a que ain​da pesa so​bre nós. De qual​quer modo, os “mo​c i​-
nhos” es​tão ten​tan​do nos aju​dar... o que au​m en​ta nos​sas chan​c es. Não faz sen​ti​do
nos es​c on​der​m os numa toca de co​e ​lho por​que o ini​m i​go pa​r e​c e pe​r i​go​so...
— Você tem ra​zão — Gin​ger le​van​tou o quei​xo. — Pre​c i​sa​m os des​c o​brir
tudo... por​que não con​se​gui​r e​m os vi​ver en​quan​to não sou​ber​m os o que re​a l​m en​te
acon​te​c eu. — Cor​r eu os olhos pelo es​ta​c i​o​na​m en​to. — Eles já de​vem sa​ber que
es​ta​m os nos reu​nin​do aqui, que co​m e​ç a​m os a nos or​ga​ni​zar. Acha que es​tão nos
ob​ser​van​do?
— É pos​sí​vel que es​te​j am vi​gi​a n​do o mo​tel — res​pon​deu Dom.
— Mas te​nho cer​te​za de que não fui se​gui​do ao vir para o ae​r o​por​to. Não
ti​r ei os olhos do re​tro​vi​sor.
— Não pre​c i​sa​r i​a m se​gui-lo, se já sou​bes​sem para onde você ia... e quem
ia en​c on​trar...
— ... como se fôs​se​m os duas pul​gui​nhas pu​lan​do na pal​m a da mão de um
gi​gan​te que tudo vê e tudo sabe?
— Pode ser... Mas juro que esse gi​gan​te ain​da vai se co​ç ar mui​to... an​tes de
me es​m a​gar!
Dom sol​tou um gar​ga​lha​da. A ima​gem era per​f ei​ta para ela: loi​r a, pe​que​ni​-
na... e fe​r oz! Mas não ser​via para Er​nie, por exem​plo, o ve​lho lobo-do-mar,
— O que é que você está pen​san​do? — Gin​ger per​gun​tou. •— Sou “dura na
que​da”... Vou en​c her esse gi​gan​te de co​c ei​r as e dei​xá-lo pu​lan​do num pé só... an​-
tes que me re​du​za a uma man​c hi​nha de san​gue.
Ao vê-la rir da pró​pria tra​gé​dia, cheia de co​r a​gem, Dom achou-a ain​da mais
bo​ni​ta. Ela o fas​c i​na​r ia mes​m o que não par​ti​lhas​sem se​gre​do al​gum, mes​m o que
fos​sem es​tra​nhos um para o ou​tro. Uma mu​lher mui​to es​pe​c i​a l!
— Va​m os nos reu​nir às tro​pas?
— Cla​r o! Es​tou lou​c a para co​nhe​c er os re​c ru​tas... As ou​tras “pul​gas” do
ba​ta​lhão.
Meia hora an​tes de o sol se pôr, as som​bras es​ten​di​a m-se so​bre as pla​ní​c i​e s e
o ven​to le​van​ta​va nu​vens de po​e i​r a. An​tes de che​gar ao mo​tel, Dom le​vou Gin​-
ger ao “lu​gar es​pe​c i​a l” que ha​vi​a m vi​si​ta​do, o pon​to que en​c an​ta​va Sandy e fa​zia
Er​nie tre​m er de medo. A ge​a ​da bri​lha​va so​bre o ca​pim seco e cres​ta​do de
frio. Dom man​te​ve-se a dis​tân​c ia, as mãos me​ti​das nos bol​sos do ca​sa​c o, em si​-
lên​c io. No ca​m i​nho, dis​se​r a a Gin​ger que não lhe con​ta​r ia nada an​tes de mos​trar-
lhe o lu​gar, para não in​f lu​e n​c iá-la.
Pou​c os pas​sos a sua fren​te, ela an​da​va, para a fren​te e para trás, como num
des​ses shows de te​le​vi​são que exi​bem pa​r a​nor​m ais de fim de se​m a​na, à pro​c u​r a
de qual​quer sen​sa​ç ão “di​f e​r en​te”. De re​pen​te, quan​do a pri​m ei​r a im​pres​são a
atin​giu como um raio es​que​c eu-se de tudo, de onde es​ta​va, da te​le​vi​são, de
Dom... e só pen​sou em es​c a​par das som​bras, como se, en​tre o ca​pim, apa​r e​c es​se
um de​m ô​nio. O co​r a​ç ão dis​pa​r ou, e ela sen​tiu a res​pi​r a​ç ão cada vez mais ace​le​-
ra​da.
— Está den​tro de mim. Está den​tro de mim.
Gin​ger vi​r ou-se, ten​tan​do lo​c a​li​zar a voz. Era a voz de Dom, mas não era ele
quem fa​la​va, pelo me​nos não na​que​le mo​m en​to. A voz vi​nha de trás dela... onde
não ha​via nada além de ca​pim seco e uma pe​que​na man​c ha de neve bri​lhan​do à
luz cin​zen​ta.
— O que acon​te​c eu? — Dom apro​xi​m ou-se.
Não po​dia ser. Aca​ba​va de ou​vir sua voz... do ou​tro lado! Ou​vi​r a-o fa​lar, na
ver​da​de, como se a voz es​ti​ves​se... den​tro dela!
Aos pou​c os, co​m e​ç a​va a en​ten​der. Uma lem​bran​ç a. Um frag​m en​to de re​-
cor​da​ç ão... Ou​vi​r a a voz de Dom, as pa​la​vras que ele dis​se​r a na​que​la ou​tra noi​te,
dia 6 de ju​lho do ve​r ão re​tra​sa​do. Pa​la​vras pro​nun​c i​a ​das na​que​le mes​m o lo​c al,
re​pe​ti​das duas ve​zes, com an​gús​tia e sur​pre​sa: “Está den​tro de mim”.
Gin​ger vi​r ou-se e co​m e​ç ou a vol​tar para a ro​do​via. Dom se​guiu-a, cha​m ou-
a duas ou três ve​zes, mas ela dis​pa​r ou a cor​r er, como lou​c a, até che​gar ao car​r o.
Mal po​dia fa​lar, tre​m ia dos pés à ca​be​ç a e com mui​to es​f or​ç o con​se​guiu con​tar-
lhe o que ou​viu.
— “Está den​tro de mim”... — ele re​pe​tiu, a tes​ta fran​zi​da. — Tem cer​te​za
de que eu lhe dis​se isso na​que​la noi​te?
— Te​nho.
— Mas... que di​a ​bo sig​ni​f i​c a?
— Não sei, mas me ar​r e​pia.
Um ins​tan​te de si​lên​c io e Dom fe​c hou os olhos:
— E... é de dar ar​r e​pi​os.
A noi​te, no mo​tel, Gin​ger sen​tia-se num dia de fes​ta. Ape​sar das di​f i​c ul​da​des,
to​dos mos​tra​vam-se fe​li​zes por es​tar reu​ni​dos. Tra​ba​lha​r am jun​tos no pre​pa​r o do
jan​tar, e, aos pou​c os, ela se dei​xou con​ta​gi​a r pela so​li​da​r i​e ​da​de que os li​ga​va.
Co​zi​nhei​r o pro​f is​si​o​nal, Ned en​c ar​r e​gou-se do pra​to prin​c i​pal; pei​to de fran​-
go as​sa​do, com mo​lho de to​m a​te e cre​m e de lei​te. Aos pou​c os, im​pôs sua sim​pa​-
tia a Gin​ger. Se​r ia im​pos​sí​vel não gos​tar de al​guém tão afe​tuo​so: cada ges​to, cada
pa​la​vra de​no​ta​vam seu amor pela es​po​sa. Quan​to a Sandy, a úni​c a be​ne​f i​c i​a ​-
da pe​los efei​tos do “fe​nô​m e​no de ju​lho”, era uma moça mei​ga, com os olhos
bri​lhan​tes de fe​li​c i​da​de, da ale​gria de re​nas​c er. Ta​ga​r e​lan​do como boas e ve​lhas
ami​gas, Gin​ger e Sandy cui​da​r am dos le​gu​m es e da sa​la​da.
Fay e en​c ar​r e​gou-se das so​bre​m e​sas: tor​ta fria de cho​c o​la​te e cre​m e de ba​-
na​nas. Gin​ger ob​ser​va​va-a, des​c o​brin​do a cada ins​tan​te no​vas e sur​preen​den​tes
se​m e​lhan​ç as en​tre ela e Rita Han​naby.
Só eram di​f e​r en​tes nos de​ta​lhes su​per​f i​c i​a is; quan​to ao es​sen​c i​a l, con​tu​do,
po​de​r i​a m ser ir​m ãs gê​m e​a s: efi​c i​e n​tes, for​tes e chei​a s de ca​lor hu​m a​no.
Dom e Er​nie cui​da​vam de jun​tar as me​sas pe​que​nas, ar​r u​m an​do to​a ​lhas,
pra​tos e ta​lhe​r es para to​dos. A prin​c í​pio as​sus​ta​do, Er​nie ago​r a se mos​tra​va gen​til
e cheio de aten​ç ões. Era di​f í​c il não se co​m o​ver com a tra​gé​dia que era para ele
o medo do es​c u​r o... Um ho​m em for​te como um tou​r o, re​du​zi​do à mi​sé​r ia de
cho​r ar de medo, como um bebê.
De to​dos, ape​nas Dom to​c a​va-a de modo es​pe​c i​a l. A mes​m a sen​sa​ç ão de so​-
li​da​r i​e ​da​de que a li​ga​va aos ou​tros tam​bém os apro​xi​m a​va, po​r ém, ha​via algo
mais. O pas​sa​do, sem dú​vi​da. Al​gu​m a coi​sa mui​to es​pe​c i​a l, que ape​nas os dois
ha​vi​a m par​ti​lha​do. Mas não era só isso. Dom a atra​ía como ho​m em, no pre​sen​te,
em car​ne e osso. Ou​tra sur​pre​sa, por​que Gin​ger ja​m ais se sen​ti​r a se​xu​a l​m en​te
atra​í​da por al​guém que não co​nhe​c es​se bem. As​sus​ta​da com o rumo que to​m a​-
vam seus sen​ti​m en​tos, ela tra​tou de con​ven​c er-se de que Dom não lhe dava a
mí​ni​m a im​por​tân​c ia. O que era bo​ba​gem... a jul​gar pelo modo como a olha​va.
Du​r an​te o jan​tar, con​ti​nu​a ​r am a dis​c u​tir idéi​a s, pos​si​bi​li​da​des e pla​nos de
ação, ten​tan​do ali​nha​var os re​ta​lhos de lem​bran​ç as que cada um ti​nha a ofe​r e​c er.
Como Dom, Gin​ger tam​bém não se lem​bra​va de ter ou​vi​do fa​lar em “va​za​m en​-
to de subs​tân​c ia tó​xi​c a”, coi​sa que os Block e os Sar​ver re​c or​da​vam com de​ta​-
lhes. Dom afi​nal con​se​guiu con​ven​c ê-los de que tam​bém o “va​za​m en​to” era fal​-
so. Com cer​te​za os dois e o ca​sal ami​go que os vi​si​ta​va na​que​la noi​te ha​vi​a m fi​-
ca​do no mo​tel. Fay e e Er​nie ga​r an​ti​r am que os Ja​m i​son não ti​nham pe​sa​de​los,
so​nhos ou al​te​r a​ç ões de com​por​ta​m en​to — si​nal de que o blo​queio de me​m ó​r ia,
no caso de​les, como no de Fay e, con​ti​nu​a ​va in​ta​to. De qual​quer modo, mais dia
me​nos dia, se​r ia ne​c es​sá​r io pro​c u​r á-los para con​ver​sar so​bre o as​sun​to.
Não foi fá​c il, mas Dom tam​bém con​se​guiu con​ven​c er Ned e Sandy de que
não ha​vi​a m pas​sa​do três dias de fol​ga no trai​ler, len​do e ven​do te​le​vi​são, por​que,
como os ou​tros, es​ta​vam amar-
ra​dos às ca​m as, com agu​lhas no bra​ç o, to​m an​do dro​gas para es​que​c er.
— Não é es​tra​nho — Fay e per​gun​tou — que cada um de nós se lem​bre de
de​ta​lhes di​f e​r en​tes? Não se​r ia mais fá​c il, para eles, fa​zer-nos acre​di​tar na mes​-
ma men​ti​r a?
— No caso de vo​c ês — Gin​ger ten​tou ex​pli​c ar —, que vi​vem aqui, era im​-
por​tan​te fa​zer com que se lem​bras​sem do “va​za​m en​to” e do blo​queio da ro​do​via,
por​que o as​sun​to es​ta​r ia nos jor​nais, as pes​so​a s co​m en​ta​r i​a m, e vo​c ês aca​ba​r i​a m
sa​ben​do de al​guns de​ta​lhes do caso. Mas Dom e eu, que es​tá​va​m os de pas​sa​gem
e, com mui​ta pro​ba​bi​li​da​de, ja​m ais nos en​c on​tra​r í​a ​m os ou vol​ta-rí​a f​nos a fa​lar
do as​sun​to, nao pre​c i​sa​va​m os nos “lem​brar” des​sa his​tó​r ia. Por isso, nao in​c lu​í​-
ram isso em nos​sa me​m ó​r ia.
— Não se​r ia mais se​gu​r o se to​dos sou​bés​se​m os das mes​m as coi​sas? —
per​gun​tou Sandy, le​van​tan​do os olhos de um pe​da​ç o de fran​go es​pe​ta​do no gar​f o.
— Li tudo que en​c on​trei so​bre la​va​gem ce​r e​bral — de​c la​r ou Gin​ger —,
des​de que Pa​blo Jack​son des​c o​briu que fui ví​ti​m a de um blo​queio de me​m ó​r ia.
Pelo que en​ten​di, a úni​c a ex​pli​c a​ç ão pos​sí​vel para o fato de ter​m os lem​bran​ç as
di​f e​r en​tes é a mai​or fa​c i​li​da​de em im​plan​tar um blo​c o com​ple​to de lem​bran​ç as
fal​sas, sem qual​quer re​la​ç ão com a re​a ​li​da​de. Eles não ti​nham mui​to tem​po para
im​plan​tar em nos​sa me​m ó​r ia pe​que​nos de​ta​lhes que dão ve​r os​si​m i​lhan​ç a às
men​ti​r as, en​ten​de? Você pode men​tir a al​guém e di​zer, por exem​plo, que foi ao
ci​ne​m a. Se fi​c ar nis​so, a men​ti​r a pode pas​sar por ver​da​de. Mas se ten​tar en​trar
em de​ta​lhes, como hora, lo​c al, dia, nome do ci​ne​m a, do fil​m e, dos ato​r es, cor​r e​-
rá o ris​c o de en​trar em con​tra​di​ç ão e ver sua men​ti​r a des​m as​c a​r a​da. Por essa
ra​zão, eles de​r am “tra​ta​m en​to de luxo” só para vo​c ês, que vi​vem por aqui. Dom
e eu re​c e​be​m os “tra​ta​m en​to co​m um”...
— Faz sen​ti​do... — Er​nie con​c or​dou.
— Mas, afi​nal — Fay e le​van​tou a voz —, hou​ve ou não hou​ve o tal va​za​-
men​to? E o blo​queio da ro​do​via?
— Acho que hou​ve al​gum tipo de con​ta​m i​na​ç ão — Gin​ger de-
cla​r ou cru​zan​do os ta​lhe​r es. — No so​nho de Dom, que na ver​da​de não é so​-
nho mas lem​bran​ç a, os dois ho​m ens que o fa​zem vo​m i​tar usam es​ses tra​j es pró​-
pri​os para áre​a s con​ta​m i​na​das. Se o va​za​m en​to fos​se ver​da​dei​r o, se​r ia nor​m al
que os sol​da​dos en​c ar​r e​ga​dos de eva​c u​a r a área usas​sem es​ses uni​f or​m es na
rua, ao ar li​vre, para pro​te​ger-se. Se fos​se fal​so, te​r i​a m ves​ti​do tais tra​j es para
des​pis​tar a im​pren​sa, por exem​plo. Mas por que os usa​r i​a m aqui, den​tro do mo​-
tel, onde só nós po​de​r i​a ​m os vê-los? Mi​nha res​pos​ta é sim​ples: por​que era ab​so​lu​-
ta​m en​te in​dis​pen​sá​vel.
Er​nie olhou em vol​ta, como se vis​se uma nes​ga de noi​te es​guei​r an​do-se pe​las
ja​ne​las fe​c ha​das com com​pen​sa​do, pi​gar​r e​ou e ba​lan​ç ou a ca​be​ç a.
— Ora... E que tipo de con​ta​m i​na​ç ão po​de​r ia ser? — co​m en​tou. — Você,
que é mé​di​c a, tem al​gu​m a idéia? Po​de​r ia ser con​ta​m i​na​ç ão por gás ou por al​gu​-
ma bac​té​r ia? Os jor​nais fa​la​vam em pro​du​tos quí​m i​c os que es​ta​r i​a m sen​do en​-
tre​gues na base de Shenk​f i​e ld.
Gin​ger pen​sa​va no as​sun​to mui​to an​tes da per​gun​ta. E che​gou a uma con​c lu​-
são que a dei​xou pre​o​c u​pa​da.
— De modo ge​r al, os tra​j es usa​dos em ca​sos de va​za​m en​to de subs​tân​c ia
tó​xi​c a são ve​da​dos... In​c lu​e m um res​pi​r a​dor que im​pe​de a ina​la​ç ão de subs​tân​c i​-
as vo​lá​teis, e uma rou​pa de te​c i​do es​pe​c i​a l que pro​te​ge o cor​po da ca​be​ç a aos
pés, im​pe​din​do que qual​quer pro​du​to quí​m i​c o en​tre em con​ta​to com a pele. Em
al​guns ca​sos, jun​tam-se os dois equi​pa​m en​tos. Dom des​c re​veu um tra​j e es​pe​c i​a l
de te​c i​do gros​so e im​per​m e​á ​vel, com man​gas e lu​vas numa só peça, e um pe​sa​-
do ca​pa​c e​te à pro​va de ar, com res​pi​r a​dor au​tô​no​m o. Nós, mé​di​c os, co​nhe​c e​-
mos esse... é usa​do nos la​bo​r a​tó​r i​os de pes​qui​sa de agen​tes bi​o​ló​gi​c os, como bac​-
té​r i​a s ou mi​c ró​bi​os.
Fez-se si​lên​c io à vol​ta da mesa. Ned le​vou aos lá​bi​os o copo de cer​ve​j a e be​-
beu como se es​ti​ves​se pres​tes a co​m e​ç ar o com​ba​te às bac​té​r i​a s.
— En​tão fo​m os con​ta​m i​na​dos por um mi​c ró​bio... — dis​se.
— Um des​ses mi​c ró​bi​os “in​ven​ta​dos”... Guer​r a bac​te​r i​o​ló​gi​c a — Fay e
pen​sou em voz alta, os olhos fi​xos no pra​to.
— Um des​ses “bi​c hos” que eles cri​a m em Shenk​f i​e ld... — Er-nie com​ple​-
tou. — Um des​ses “bi​c hos” no​j en​tos...
— Mas não es​ta​m os do​e n​tes. Nem mor​r e​m os — Sandy ob​ser​vou, sor​r in​do.
— Só por​que fo​m os aten​di​dos e tra​ta​dos a tem​po — ex​pli​c ou Gin​ger. — As
ar​m as bi​o​ló​gi​c as tes​ta​das em todo o mun​do são cri​a ​das ao mes​m o tem​po que se
cria o an​tí​do​to, pre​ven​do-se ca​sos de aci​den​te ou a pos​si​bi​li​da​de de que a ex​pe​r i​-
ên​c ia fuja ao con​tro​le do pes​qui​sa​dor. Se fo​m os con​ta​m i​na​dos, ti​ve​m os a sor​te de
re​c e​ber o an​tí​do​to a tem​po...
— Aos pou​c os as coi​sas se es​c la​r e​c em, não é? Logo va​m os lem​brar de tudo
e...
— Não — Dom in​ter​r om​peu o dis​c ur​so as​sus​ta​do de Er​nie. — A te​o​r ia de
Gin​ger é boa, mas não ex​pli​c a o que acon​te​c eu aqui na​que​la sex​ta-fei​r a. Não ex​-
pli​c a o que vi​m os. Não ex​pli​c a o “ter​r e​m o​to” no res​tau​r an​te. Não ex​pli​c a a ex​-
plo​são das ja​ne​las... nem a de on​tem, nem a do ve​r ão re​tra​sa​do.
— E não ex​pli​c a os fe​nô​m e​nos es​tra​nhos — Fay e com​ple​tou. — As fo​tos
da Lua dan​ç an​do na casa de Lo​m ack, as “mi​la​gro​sas” cu​r as do pa​dre Cro​nin...
Os seis en​tre​o​lha​r am-se, cada qual es​pe​r an​do que o ou​tro achas​se um modo
de ex​pli​c ar. Nin​guém dis​se pa​la​vra.
A me​nos de qui​nhen​tos qui​lô​m e​tros a oes​te do Mo​tel Tran​qüi-li​da​de, Bren​dan
Cro​nin dei​tou-se e apa​gou a luz. Eram nove ho​r as da noi​te, mas ele ain​da vi​via o
ho​r á​r io de Chi​c a​go, onde já pas​sa​va das onze.
Ape​sar do can​sa​ç o, não con​se​guia dor​m ir. De​pois de achar um mo​tel onde
pas​sar a noi​te, em Reno, e de jan​tar numa lan​c ho​ne​te pelo ca​m i​nho, te​le​f o​na​r a
para o pa​dre Wy ​c a​zik. Foi a pri​m ei​r a vez que ou​viu pro​nun​c i​a r o nome de Do​m i​-
nick Cor​vai​sis, com no​tí​c i​a s su​f i​c i​e n​tes para ti​r ar-lhe o sono. Não era o úni​c o a
ter pro​ble​m as. O mis​té​r io era mai​or e con​ti​nu​a ​va a cres​c er. Che​gou
a pen​sar em te​le​f o​nar para o Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, mas pre​f e​r iu es​pe​r ar até
a ma​nhã se​guin​te.
Já es​ta​va dei​ta​do fa​zia qua​se uma hora, pen​san​do no que acon​te​c e​r a duas
noi​tes an​tes na casa pa​r o​qui​a l, quan​do a lou​c u​r a re​c o​m e​ç ou. Des​sa vez não ha​via
luar, nem qual​quer ou​tra fon​te lu​m i​no​sa. A luz bri​lhou de re​pen​te, por cima da
cama, vin​do de to​dos os la​dos, como se casa áto​m o de ar se trans​f or​m as​se de re​-
pen​te num pe​que​no sol, a prin​c í​pio bem es​bran​qui​ç a​do, de​pois mais bri​lhan​te a
cada se​gun​do, pas​san​do do bran​c o ao pra​ta... Bren-dan sen​tiu-se dei​ta​do em
cam​po aber​to, ba​nha​do de luar.
Não era a mag​ní​f i​c a luz dou​r a​da que lhe apa​r e​c ia em so​nhos. De re​pen​te, a
luz es​bran​qui​ç a​da que bri​lha​va na ca​be​c ei​r a da cama tor​nou-se ver​m e​lha, cada
vez mais ver​m e​lha... e fi​c ou sus​pen​sa no ar, como uma gi​gan​tes​c a bo​lha de san​-
gue.
Está den​tro de mim, Bren​dan pen​sou, sem en​ten​der. E o medo aba​teu-se so​-
bre ele como uma onda ge​la​da.
O co​r a​ç ão ba​tia, dis​pa​r a​do, a pon​to de ex​plo​dir. Ele mal res​pi​r a​va. Nas pal​-
mas das mãos, os anéis re​a ​pa​r e​c e​r am, la​te​j an​tes como ver​m es vi​vos.

2. SE​G UN​DA-FEI​RA, 13 DE JA​NEI​RO


Na ma​nhã se​guin​te, quan​do se reu​ni​r am na co​zi​nha para o café da ma​nhã,
Dom des​c o​briu que, como pre​via, a noi​te fora in​f er​nal para to​dos.
— Co​m e​ç a​m os a nos lem​brar — dis​se. — O fato de es​tar​m os jun​tos... o fato
de fa​lar​m os de nos​sas lem​bran​ç as está pres​si​o​nan​do os me​c a​nis​m os do blo​queio.
Aos pou​c os con​se​gui​r e​m os der​r u​bá-lo.
Dom, Gin​ger, Er​nie e Ned ti​ve​r am so​nhos mui​to re​a is e idên​ti​c os en​tre si,
como có​pi​a s do mes​m o fil​m e. Vi​r am-se amar​r a​dos em ca​m as do mo​tel, aten​di​-
dos por ho​m ens em tra​j es “ve​da​dos”, como ex​pli​c a​r a a dra. Weiss. Sandy so​nha​-
ra com uma cena agra​dá​vel, da qual, en​tre​tan​to, não con​se​guia lem​brar-se. E
Fay e dor​m i​r a um sono sem so​nhos, até acor​dar.
Ned des​per​ta​r a tão as​sus​ta​do que, ao che​gar de Be​owawe para o café, de​-
cla​r ou que pas​sa​r ia a per​noi​tar num dos quar​tos va​gos.
— Acor​dei com um pe​sa​de​lo e não con​se​gui dor​m ir mais — dis​se. —
Acho que es​ta​m os mui​to iso​la​dos na​que​le trai​ler. Se o tal co​r o​nel Falkirk co​m e​ç ar
a nos ma​tar, Sandy e eu so​m os al​vos fá​c eis.
Dom sor​r iu, so​li​dá​r io com sua afli​ç ão, sa​ben​do que os so​nhos eram com​ple​ta
no​vi​da​de para ele. Aos pou​c os, ao lon​go de se​m a​nas e se​m a​nas de su​plí​c io,
apren​de​r a a con​vi​ver com as cri​ses de medo. A no​vi​da​de, no caso de Ned, era
um agra​van​te. Sem fa​lar, é cla​r o, que o medo ge​ne​r a​li​za​do de um even​tu​a l ata​-
que das for-ça$ do mal, che​f i​a ​das por Falkirk, era jus​ti​f i​c a​do. Quan​to mais se
acer​c a​vam da ver​da​de, mais se ex​pu​nham à ira do ma​lé​vo​lo co​r o​nel. De qual​-
quer modo, Dom pres​sen​tia que não se​r i​a m ata​c a​dos até a che​ga​da do pa​dre
Cro​nin, de Jor​j a Mo​na​tel​la e, tal​vez, de al​gu​m a ou​tra ví​ti​m a. Quan​do es​ti​ves​sem
reu​ni​dos no mes​m o lo​c al, en​tão sim, de​ve​r i​a m or​ga​ni​zar-se para a guer​r a.
Ned be​lis​c a​va uma fa​tia de pão, sem ape​ti​te nem en​tu​si​a s​m o, fa​lan​do do que
vira em so​nho. Pri​m ei​r o, fo​r am os ho​m ens no tra​j e “ve​da​do”... De​pois, os mes​-
mos ho​m ens em tra​j es co​m uns, si​nal de que o ris​c o de con​tá​gio fora su​pe​r a​do.
Um de​les era o co​r o​nel Falkirk, em pes​soa.
— Ti​nha uns cin​qüen​ta anos — des​c re​veu-o —, ca​be​los es​c u​r os, têm​po​r as
gri​sa​lhas, olhos cin​zen​tos e fri​os como aço, na​r iz fino, lá​bi​os es​trei​tos.
Como Falkirk tam​bém era per​so​na​gem de seus pe​sa​de​los, Er-nie con​f ir​m ou
os de​ta​lhes com ace​nos de ca​be​ç a. O so​nho, idên​ti​c o nos me​no​r es de​ta​lhes, con​-
fir​m a​va o que to​dos já sa​bi​a m: as re​c or​da​ç ões co​m e​ç a​vam a bro​tar, apro​xi​m an​-
do-se cada vez mais da noi​te de 6 de ju​lho do ve​r ão re​tra​sa​do!
— Em meu so​nho — dis​se Er​nie —, al​guém cha​m a​va Falkirk pelo pri​m ei​r o
nome... Le​land. Co​r o​nel Le​land Falkirk.
— Deve tra​ba​lhar em Shenk​f i​e ld — acres​c en​tou Gin​ger.
— Va​m os des​c o​brir — pro​m e​teu Dom, sor​r in​do para ela.
No seu so​nho, Gin​ger vira-se no quar​to nú​m e​r o 5, mas não es​ta​va so​zi​nha.
— Ha​via uma mu​lher rui​va na cama hos​pi​ta​lar, ao lado da mi​nha — con​-
tou. — Apa​r en​ta​va uns qua​r en​ta anos; ti​nha uma agu​lha in​tra​ve​no​sa es​pe​ta​da no
bra​ç o, ele​tro​dos pre​sos no tó​r ax e o mes​m o olhar va​zio das fo​tos.
— Eu tam​bém não es​ta​va so​zi​nho — Dom lem​brou-se. — Um ho​m em es​-
ta​va na cama ao lado. Era jo​vem, com pou​c o mais de vin​te anos, pá​li​do, bi​go​de
cres​c i​do e olhos de zum​bi...
— Mas... o que sig​ni​f i​c a isso? — Fay e vi​r ou-se de cos​tas para a pia. —
Será que ha​via tan​ta gen​te aqui? Vin​te quar​tos ocu​pa​dos com zum​bis sub​m e​ti​dos
a la​va​gem ce​r e​bral?!
— O li​vro da re​c ep​ç ão re​gis​tra ape​nas onze hós​pe​des — Sandy ob​ser​vou.
— Com cer​te​za, ha​via gen​te na es​tra​da, em vi​a ​gem... gen​te que deve ter
vis​to o que vi​m os — Gin​ger sus​pi​r ou. — O Exér​c i​to deve ter pro​vi​den​c i​a ​do para
que to​dos se reu​nis​sem aqui, sem exi​gir que as​si​nas​sem o li​vro...
— Mas... quan​tos se​r i​a m? — Fay e ar​r e​ga​lou os olhos.
— Tal​vez nun​c a des​c o​bri​r e​m os — res​pon​deu Dom. — Na ver​da​de, não os
co​nhe​c e​m os. Ape​nas fi​c a​m os no mes​m o quar​to com al​guns de​les... dor​m in​do
sob o efei​to de dro​gas. Tal​vez nos lem​bre​m os de um ou ou​tro ros​to, mas não des​-
co​bri​r e​m os seus no​m es ou en​de​r e​ç os.
De qual​quer modo, as lem​bran​ç as co​m e​ç a​vam a aflo​r ar. Mais dia, me​nos
dia, a ver​da​de aca​ba​r ia apa​r e​c en​do. Para Dom, já era mais do que po​dia es​pe​-
rar. Quan​do re​c u​pe​r as​sem ple​na​m en​te a me​m ó​r ia, es​ta​r i​a m li​vres dos pe​sa​de​los,
do so​nam​bu​lis​m o, do medo, e vol​ta​r i​a m a vi​ver. A me​nos que, an​tes dis​so, che​-
gas​sem as tro​pas do co​r o​nel Falkirk e os ani​qui​las​sem com ar​ti​lha​r ia pe​sa​da.
Na se​gun​da-fei​r a de ma​nhã, en​quan​to o gru​po se reu​nia para to​m ar o café
da ma​nhã no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, Jack Twist en​tra​va num ban​c o da Quin​ta Ave​-
ni​da e, acom​pa​nha​do de uma fun​c i​o​ná​r ia, di​r i​gia-se ao com​par​ti​m en​to dos co​-
fres par​ti​c u​la​r es.
A moça, mui​to atra​e n​te, in​di​c ou-lhe um dos co​f res, onde se lia
o nome do pro​pri​e ​tá​r io: sr. Far​nham, ou​tra iden​ti​da​de fal​sa. Am​bos in​tro​du​zi​-
ram as duas pe​que​nas cha​ves na fe​c ha​du​r a, re​m o​ve​r am jun​tos a cai​xa de me​tal,
e Jack fi​c ou so​zi​nho no cu​bí​c u​lo re​ser​va​do aos cli​e n​tes. Le​van​tou a tam​pa do co​-
fre e ar​r e​ga​lou os olhos, sur​pre​so. Ali es​ta​va um car​tão-pos​tal que ja​m ais vira.
Não era pos​sí​vel... nin​guém, no pla​ne​ta, sa​bia da exis​tên​c ia da​que​le co​f re!
Os cin​c o en​ve​lo​pes bran​c os lá es​ta​vam, apa​r en​te​m en​te in​ta​tos, cada qual
com cin​c o mil dó​la​r es em no​tas de cem e vin​te. Aque​le era o pri​m ei​r o dos onze
co​f res que alu​ga​va em di​f e​r en​tes ban​c os e dos quais pre​ten​dia re​ti​r ar cen​to e
ses​sen​ta mil dó​la​r es, quin​ze mil de cada um, para doar aos ne​c es​si​ta​dos. Abriu os
en​ve​lo​pes e con​f e​r iu o di​nhei​r o: não fal​ta​va um cen​ta​vo.
A des​c o​ber​ta não o tran​qüi​li​zou, por​que a sim​ples pre​sen​ç a do car​tão-pos​tal
era pro​va su​f i​c i​e n​te de que al​guém des​c o​bri​r a pelo me​nos uma de suas iden​ti​da​-
des se​c re​tas. A par​tir daí, sua li​ber​da​de já não va​lia um vin​tém. Al​guém sa​bia
que Gre​gory Far​nham era um nome fal​so.
Um car​tão-pos​tal... Sem pa​la​vra, sem en​de​r e​ç o, ali, den​tro de um co​f re que
só ele co​nhe​c ia. Mo​tel Tran​qüi​li​da​de...
No ve​r ão re​tra​sa​do, de​pois do as​sal​to à man​são de Avril McAl-lis​ter em Ma​-
rin County e da pro​vei​to​sa pas​sa​gem por Reno, Jack alu​ga​r a um car​r o e vi​a ​j a​r a
para o les​te. Pas​sa​r a a pri​m ei​r a noi​te de vi​a ​gem na​que​le mo​tel, jun​to à Ro​do​via
80. Es​que​c e​r a-se do fato, mas bas​tou-lhe pôr os olhos no pos​tal para re​c o​nhe​c er
o lu​gar.
Quem po​de​r ia sa​ber que es​ti​ve​r a lá? Bran​c h Pol​lard? Não, im​pos​sí​vel. Jack
ti​nha cer​te​za de que nem lhe fa​la​r a so​bre a idéia de vol​tar de car​r o a Nova York.
O ter​c ei​r o ho​m em, um ra​paz de Los An​ge​les cha​m a​do Sal Fin​r ow, con​tra​ta​do es​-
pe​c i​a l​m en​te para o as​sal​to à man​são McAl​lis​ter, tam​bém não po​de​r ia sa​ber; e
Jack nun​c a mais o vira de​pois da par​ti​lha dos ma​gros fru​tos da ope​r a​ç ão.
De re​pen​te, num lam​pe​j o, en​ten​deu que a pre​sen​ç a do car​tão sig​ni​f i​c a​va
que três de suas iden​ti​da​des se​c re​tas ha​vi​a m sido des​c o​ber​tas. O co​f re es​ta​va
alu​ga​do em nome de Far​nham, mas ele
se re​gis​tra​r a no mo​tel como Thorn​ton Wainw​r ight. Pro​va de que al​guém sa​-
bia que as duas iden​ti​da​des cor​r es​pon​di​a m ao mes​m o ho​m em, Jack Twist, ou
seja, Phi​lip​pe Deon, o pro​pri​e ​tá​r io do apar​ta​m en​to da Quin​ta Ave​ni​da.
Deus do céu!
Jack sen​tou-se na ban​que​ta do cu​bí​c u​lo, as​sus​ta​do, ten​tan​do de​du​zir quem te​-
ria pro​vo​c a​do ta​m a​nho es​tra​go em sua vida. Não era nin​guém da po​lí​c ia ou do
FBI, por​que qual​quer um des​ses o pren​de​r ía sem pen​sar duas ve​zes; nem a po​lí​-
cia nem o FBI per​de​r í​a m tem​po e di​nhei​r o brin​c an​do de gato e rato. Tam​bém
não po​dia ser um de seus cúm​pli​c es, por​que ne​nhum de​les co​nhe​c ia de​ta​lhes da
fa​c ha​da le​gal de sua vida ou o en​de​r e​ç o onde mo​r a​va. Até ali, o es​que​m a mon​-
ta​do para man​tê-los afas​ta​dos do apar​ta​m en​to da Quin​ta Ave​ni​da fun​c i​o​na​r a à
per​f ei​ç ão. Além dis​so, se um de​les con​se​guis​se che​gar ao co​f re por que per​de​r ia
tem​po com car​tões-pos​tais e dei​xa​r ia os dó​la​r es in​ta​tos?
En​tão... quem es​ta​va atrás dele?
Pen​sou na Má​f ia, no as​sal​to ao ar​m a​zém, com Mort e Tommy Sung, dia 3 de
de​zem​bro. Se​r ia a Má​f ia? Tal​vez... por​que essa, sim, ti​nha tem​po, di​nhei​r o e mo​-
ti​vos de so​bra para aca​bar com ele. Bem ins​tru​í​dos so​bre o que fa​zer e como
agir, os ra​pa​zes de qual​quer das “fa​m í​li​a s” atin​gi​das pelo rou​bo po​de​r í​a m ter dei​-
xa​do o car​tão jun​to ao di​nhei​r o para avi​sar-lhe de que não lhes in​te​r es​sa​vam os
dó​la​r es... que que​r i​a m mes​m o era es​f o​lá-lo vivo, como exem​plo para ou​tros “es​-
per​ti​nhos” au​da​c i​o​sos. O car​tão po​dia ser idéia dos ra​pa​zes... Eles gos​ta​vam de
le​var suas ví​ti​m as ao de​ses​pe​r o, ten​tan​do adi​vi​nhar de onde vi​r ía o gol​pe que os
des​trui​r ía.
Por ou​tro lado, ain​da que ti​ves​se des​c o​ber​to as iden​ti​da​des se​c re​tas, por que
a Má​f ia se da​r ia ao tra​ba​lho de vi​a ​j ar qui​lô​m e​tros e qui​lô​m e​tros para com​prar
um car​tão-pos​tal de um mo​tel em Ne​va​da?! Não bas​ta​r ia dei​xar uma foto do ar​-
ma​zém as​sal​ta​do? Não... Não era a Má​f ia. Mas... quem po​de​r ía ser?
Guar​dou os vin​te e cin​c o mil dó​la​r es no bol​so do ca​sa​c o; já não po​dia pen​sar
em doar o di​nhei​r o do qual de​pen​dia para fu​gir. Co​lo​c ou o pos​tal na car​tei​r a e to​-
cou a cam​pai​nha, cha​m am do a fun​c i​o​ná​r ia. Dois mi​nu​tos de​pois es​ta​va na rua,
res​pi​r an​do fun​do o ar frio de ja​nei​r o, ten​tan​do des​c o​brir se al​guém o es​prei​ta​va.
Nao viu nin​guém que lhe pa​r e​c es​se sus​pei​to.
Pa​r ou um ins​tan​te, à mar​gem da mul​ti​dão que an​da​va apres​sa​da pe​las cal​-
ça​das. Pre​c i​sa​va sair da ci​da​de o mais ra​pi​da​m en​te pos​sí​vel e es​c on​der-se por
al​gum tem​po. Con​tu​do, por mais for​te que fos​se o im​pul​so de fu​gir, de​c i​diu pen​-
sar um pou​c o. Apren​de​r a no Exér​c i​to que não é se​gu​r o to​m ar qual​quer de​c i​são
im​por​tan​te an​tes de ana​li​sar bem os mo​ti​vos e as pos​sí​veis con​se​qüên​c i​a s. Além
dis​so, ti​nha que en​c on​trar res​pos​ta para mui​tas per​gun​tas, como, por exem​plo:
quem o per​se​guia? Como essa ‘pes​soa des​c o​bri​r a as iden​ti​da​des se​c re​tas? O que
que​r ia com ele?
Fez si​nal para um táxi que pas​sa​va e man​dou-o se​guir até a es​qui​na de Wall
Street com Wil​li​a m, no co​r a​ç ão do cen​tro fi​nan​c ei​r o da ci​da​de. Na​que​la área, ti​-
nha ou​tros seis co​f res alu​ga​dos em ban​c os di​f e​r en​tes e co​m e​ç ou a vi​si​tá-los. Dos
qua​tro pri​m ei​r os re​c o​lheu cem mil dó​la​r es e no​vos car​tões do Mo​tel Tran​qüi-li​-
da​de.
An​tes do quin​to co​f re, re​sol​veu pa​r ar. Já não ti​nha bol​sos onde co​lo​c ar di​-
nhei​r o, nem dú​vi​das de que os ou​tros co​f res, to​dos alu​ga​dos sob di​f e​r en​tes iden​ti​-
da​des, ha​vi​a m sido igual​m en​te vi​o​la​dos. Já re​c o​lhe​r a di​nhei​r o su​f i​c i​e n​te para vi​-
a​j ar, e sem​pre po​de​r ia con​tar com os qua​tro mi​lhões da Su​í​ç a... se o des​c o​nhe​c i​-
do que o per​se​guia es​ti​ves​se in​te​r es​sa​do em lim​par os co​f res.
Era hora de pen​sar no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, em Ne​va​da. Ha​via algo es​tra​nho
nas lem​bran​ç as que co​m e​ç a​vam a sur​gir.
Fi​c a​r a lá três dias, apro​vei​tan​do o sos​se​go do lo​c al para ler e des​c an​sar. Na​-
que​le mo​m en​to, pela pri​m ei​r a vez, ocor​r ia-lhe a idéia de que ja​m ais de​via ter
fei​to isso. Cla​r o que não! Es​ta​va num car​r o alu​ga​do, com o por​ta-ma​las re​c he​a ​-
do de di​nhei​r o... e fa​zia duas se​m a​nas que não via Jenny ! Sa​í​r a de Reno com a
fir​m e de​c i​são de ir logo para casa... Que sen​ti​do fa​zia mu​dar de idéia, no
meio do ca​m i​nho?
Um se​gun​do táxi le​vou-o de vol​ta ao apar​ta​m en​to da Quin​ta Ave​ni​da, onde
che​gou pou​c o an​tes das onze da ma​nhã. Cor​r eu
ao te​le​f o​ne, li​gou para uma pe​que​na lo​c a​do​r a de avi​ões com a qual fi​ze​r a
ne​gó​c i​os an​tes, e res​pi​r ou ali​vi​a ​do ao ser in​f or​m a​do de que po​dia con​tar com um
ja​ti​nho pron​to para de​c o​lar no ins​tan​te em que che​gas​se ao ae​r o​por​to.
Re​ti​r ou o di​nhei​r o dei​xa​do no com​par​ti​m en​to se​c re​to do fun​do do ar​m á​r io.
So​m a​do ao que trou​xe​r a dos co​f res, dis​pu​nha de cen​to e cin​qüen​ta mil dó​la​r es
para co​m e​ç ar a agir. Se​gu​r a​m en​te, uma soma su​f i​c i​e n​te para en​f ren​tar qual​quer
emer​gên​c ia.
Sem​pre apres​sa​do, mas com pre​c i​são mi​li​tar, apa​nhou três ma​las, abriu-as
so​bre a cama e em cada uma co​lo​c ou al​gu​m as pe​ç as de rou​pa, dei​xan​do es​pa​ç o
su​f i​c i​e n​te para aco​m o​dar um re​vól​ver, um fu​zil e uma sub​m e​tra​lha​do​r a, com as
res​pec​ti​vas mu​ni​ç ões, além de dois si​len​c i​a ​do​r es que re​ti​r ou do ar​m á​r io.
A ca​pa​c i​da​de de sen​tir-se cul​pa​do — con​quis​ta re​c en​te e dra​m á​ti​c a que nas
úl​ti​m as vin​te e qua​tro ho​r as al​te​r a​r a pro​f un​da​m en​te o que pen​sa​va so​bre os ho​-
mens e o mun​do — não o im​pe​dia de lu​tar pela vida. Qual​quer ci​da​dão, por mais
hon​r a​do e ho​nes​to que seja ou es​te​j a dis​pos​to a ser, não pode per​der o ins​tin​to de
so​bre​vi​vên​c ia. E pou​c os ci​da​dãos hon​r a​dos no pla​ne​ta pode-riam or​gu​lhar-se de
ser tão efi​c i​e n​tes quan​to Jack Twist quan​do se tra​ta​va de de​f en​der a pró​pria pele.
Além do mais, de​pois de oito anos de so​li​dão, ele já co​m e​ç a​va a so​nhar com
uma vida nor​m al. E não per​m i​ti​r ia que nin​guém lhe rou​bas​se a úl​ti​m a chan​c e de
ser fe​liz.
Em ou​tra mala, aco​m o​dou o uti​lís​si​m o com​pu​ta​dor por​tá​til usa​do no as​sal​to
ao car​r o blin​da​do. De​c i​diu le​var um bi​nó​c u​lo de vi​são no​tur​na, com adap​ta​dor
para fu​zil, uma de​ze​na de itens me​no​r es, e um apa​r e​lho pri​va​ti​vo da po​lí​c ia que
abria qual​quer fe​c ha​du​r a sem cau​sar o me​nor dano ao se​gre​do.
Em​bo​r a o ar​m a​m en​to es​ti​ves​se dis​tri​bu​í​do en​tre as três ma​las, ne​nhu​m a de​-
las pa​r e​c ia leve quan​do Jack as fe​c hou. Se al​gum car​r e​ga​dor as es​tra​nhas​se, tra​-
ta​r ia de ser dis​c re​to, mas nin​guém se atre​ve​r ia a in​ter​r o​gar o pas​sa​gei​r o de um
jato alu​ga​do... Uma das van​ta​gens de ter di​nhei​r o era bur​lar a se​gu​r an​ç a e evi​tar
as lon​gas fi​las de es​pe​r a.
Jack des​c eu com as ma​las, cha​m ou um táxi e ru​m ou para o ae​r o​por​to La
Guar​dia. O ja​ti​nho o le​va​r ia até o ae​r o​por​to de Salt Lake City, Utah, o mai​or na
área de Elko, mais pró​xi​m o da ci​da​de do que o ter​m i​nal de Reno. A com​pa​nhia
in​f or​m a​r a que es​ta​vam pre​vis​tas tem​pes​ta​des de neve nas pró​xi​m as ho​r as, con​-
cen​tra​das na re​gi​ã o de Reno — ou​tro bom mo​ti​vo para es​c o​lher a rota de Salt
Lake City, onde po​de​r ia con​se​guir um avi​ã o que o le​vas​se a Elko. Com isso, Jack
te​r ia três ho​r as de van​ta​gem, che​gan​do a seu des​ti​no pou​c o an​tes de es​c u​r e​c er.
Per​f ei​to. Era im​por​tan​te que es​ti​ves​se es​c u​r o para exe​c u​tar o pla​no que aca​-
ba​va de ela​bo​r ar.
Ha​via um úni​c o sig​ni​f i​c a​do pos​sí​vel para os car​tões-pos​tais: al​guém em Ne​-
va​da, in​f or​m a​do de to​dos os de​ta​lhes im​por​tan​tes de sua vida cri​m i​no​sa, de​c i​di​r a
con​vi​dá-lo para uma vi​si​ta... tal​vez no pró​prio Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. Con​vi​te ou in​-
ti​m a​ç ão, o pos​tal cons​ti​tu​ía es​sen​c i​a l​m en​te um avi​so, que se​r ia es​tu​pi​dez ig​no​r ar.
Jack não sa​bia se es​ta​va sen​do se​gui​do até o ae​r o​por​to... e não se deu ao tra​-
ba​lho de ten​tar des​c o​brir. Se es​ti​ves​sem vi​gi​a n​do o te​le​f o​ne do apar​ta​m en​to, sa​-
be​r i​a m de to​dos os seus pas​sos. Par​te do su​c es​so do pla​no de​pen​dia exa​ta​m en​te
de que to​dos o vis​sem par​tir e nin​guém o vis​se che​gar a Elko.
Na se​gun​da-fei​r a de ma​nhã, de​pois do café, Dom e Gin​ger fo​r am vi​si​tar a
re​da​ç ão do úni​c o jor​nal de Elko, que, como era pre​vi​sí​vel, fun​c i​o​na​va numa casa
tér​r ea si​tu​a ​da em rua tran​qüi​la e, como qual​quer ou​tro jor​nal, não im​por​ta o ta​-
ma​nho, proi​bia o aces​so do pú​bli​c o aos ar​qui​vos.
Ocu​pa​do com ou​tro tipo de tra​ba​lho, Dom ain​da não ti​ve​r a tem​po de ha​bi​tu​-
ar-se à fama de es​c ri​tor, que já cres​c ia por todo o país. A pa​la​vra “es​c ri​tor” so​a ​-
va pre​ten​si​o​sa e pe​dan​te a seus ou​vi​dos.
A en​tra​da do jor​nal, a re​c ep​c i​o​nis​ta, Bren​da Hen​ner​ling, não o re​c o​nhe​c eu
até que Gin​ger fa​lou no Cre​pús​c u​lo, que aca​ba​va de ser lan​ç a​do.
— Mas... é “o li​vro do mês”! — ex​c la​m ou Bren​da, ar​r e​ga​lan​do
os olhos. — Você é o au​tor? Ver​da​de, mes​m o?! Aca​bei de re​c e​ber o vo​lu​m e
do Clu​be de lei​tu​r a. Gos​to mui​to de ler. Puxa, é uma hon​r a co​nhe​c er um au​tor de
su​c es​so.
Quan​to mais a moça fa​la​va, mais Dom se en​c o​lhia, re​lem​bran​do a fra​se de
Ro​bert Ste​ven​son: “O que im​por​ta é a his​tó​r ia, a his​tó​r ia bem con​ta​da, e não
quem a con​ta”. Pelo sim, pelo não, foi a fama do “au​tor de su​c es​so” que lhes
abriu as por​tas do ar​qui​vo do Sen​ti​ne​la de Elko. Não pas​sa​va de uma sala pe​que​-
na e sem ja​ne​las, duas me​sas, duas má​qui​nas de es​c re​ver, um pro​j e​tor, um ar​-
má​r io na qual se com​pri​m i​a m cai​xas de mi​c ro​f il​m es e seis es​tan​tes al​tas com as
edi​ç ões do jor​nal ain​da não mi​c ro​f il​m a​das.
— E eu que es​que​c i que você é mes​m o um “au​tor de su​c es​so”! — Gin​ger
riu, quan​do Bren​da Hen​ner​ling os dei​xou a sós, de​pois de mos​tar-lhes como de​vi​-
am ope​r ar o pro​j e​tor de mi​c ro​f il​m es.
— Pois eu tam​bém es​que​c i... Mas isso é bo​ba​gem. Não sou um “au​tor de
su​c es​so”.
— Se ain​da não é... vai ser, mui​to em bre​ve. E uma pena... que os pro​ble​-
mas que nos ator​m en​tam não lhe per​m i​tam sa​bo​r e​a r a pu​bli​c a​ç ão de seu pri​m ei​-
ro ro​m an​c e!
— Re​a l​m en​te... — ele con​c or​dou, per​gun​tan​do em se​gui​da: — E você? E
sua car​r ei​r a?
— A si​tu​a ​ç ão já foi pior... Ago​r a sei que vol​ta​r ei a tra​ba​lhar al​gum dia,
quan​do tudo es​ti​ver re​sol​vi​do — de​c la​r ou, a voz fir​m e e se​gu​r a ex​pri​m in​do, me​-
lhor que as pa​la​vras, sua con​f i​a n​ç a na vida. — Mas o pri​m ei​r o li​vro... é o pri​m ei​-
ro li​vro! Você está per​den​do um mo​m en​to que nun​c a se re​pe​ti​r á.
Sur​pre​sa das sur​pre​sas, Dom sen​tiu o ros​to quen​te, ver​m e​lho como pi​m en​tão
ma​du​r o. Par​te pe​los elo​gi​os ao li​vro, par​te pela re​f e​r ên​c ia à fama do “au​tor de
su​c es​so”, mas prin​c i​pal​m en​te pelo in​te​r es​se e pela com​preen​são de Gin​ger. Mu​-
lher ne​nhu​m a, de​pois dos trin​ta anos, o fi​ze​r a co​r ar como um ado​les​c en​te.
Ca​la​r am-se, apro​xi​m a​r am-se das es​tan​tes e co​m e​ç a​r am a pro​c u​r ar as edi​-
ções de ju​lho do ve​r ão re​tra​sa​do, que ain​da não ha​vi​a m
sido mi​c ro​f il​m a​das. Gin​ger re​ti​r ou os jor​nais de duas se​m a​nas, a par​tir de
sá​ba​do, dia 7 de ju​lho.
O even​to mis​te​r i​o​so que to​dos ha​vi​a m pre​sen​c i​a ​do e do qual nin​guém se
lem​bra​va ocor​r e​r a na noi​te de sex​ta-fei​r a, 6 de ju​lho, mas o Sen​ti​ne​la do dia se​-
guin​te não tra​zia uma li​nha so​bre tal “va​za​m en​to tó​xi​c o” e o con​se​qüen​te blo​-
queio da ro​do​via. To​das as ma​té​r i​a s se​gui​a m o es​ti​lo tí​pi​c o de um pe​que​no jor​nal
de in​te​r i​or, onde não acon​te​c ia nada de tão ex​tra​or​di​ná​r io que fi​zes​se o re​da​tor
cor​r er para as sa​las de im​pres​são e or​de​nar que pa​r as​sem as má​qui​nas para es​-
tam​par nova man​c he​te na pri​m ei​r a pá​gi​na. Como o Sen​ti​ne​la não cir​c u​la​va aos
do​m in​gos, as pri​m ei​r as man​c he​tes co​m e​ç a​r am a apa​r e​c er na edi​ç ão de se​gun​-
da-fei​r a, dia 9 de ju​lho. Se​gun​da e ter​ç a, as man​c he​tes di​zi​a m: VA​ZA​MEN​-
TO DE SUBS​TÂN​CIA TÓ​XI​CA PRO​VO​CA IN​TER​DI​ÇÃO DA RO​DO​VIA 80.
O EXÉR​CI​TO IN​TER​DI​TA A RE​GI​ÃO.
GÁS VE​NE​NO​SO VA​ZOU DO CA​MI​NHÃO? O EXÉR​CI​TO EVA​CUA A
ÁREA CON​TA​MI​NA​DA. ONDE ESTÁ A PO​P U​LA​ÇÃO? CAM​P O DE TES​TES
DE SHENK​FI​ELD: VER​DA​DES E MEN​TI​RAS! IN​TER​DI​ÇÃO DA ES​TRA​DA
EN​TRA NO QUAR​TO DIA! E de​pois: CON​CLU​Í ​DA A LIM​P E​ZA DA ÁREA
CON​TA​MI​NA​DA.
Dom e Gin​ger ex​pe​r i​m en​ta​vam uma sen​sa​ç ão es​tra​nha ao to​m ar co​nhe​c i​-
men​to de fa​tos que am​bos su​pos​ta​m en​te pre​sen​c i​a ​r am e dos quais não se lem​-
bra​vam. No en​tan​to, à me​di​da que lia, Dom des​c o​briu que a te​o​r ia de Gin​ger es​-
ta​va cer​ta: era evi​den​te que os téc​ni​c os en​c ar​r e​ga​dos da la​va​gem ce​r e​bral te​r i​-
am pre​c i​sa​do de mais tem​po, duas ou três se​m a​nas, para im​plan​tar to​das as lem​-
bran​ç as, in​c lu​si​ve as re​f e​r en​tes ao “va​za​m en​to”. As​sim, re​sol​ve​r am tra​ba​lhar de
modo es​pe​c i​a l com os ha​bi​tan​tes lo​c ais e li​m i​ta​r am-se a apli​c ar uma la​va​gem
su​per​f i​c i​a l nos fo​r as​tei​r os em trân​si​to. Para dis​pen​sar igual tra​ta​m en​to a to​dos,
te​r ia sido ne​c es​sá​r io in​ter​di​tar por mais tem​po a ro​do​via, o que cha​m a​r ia mui​-
ta aten​ç ão.
Na edi​ç ão de ter​ç a-fei​r a, 11 de ju​lho, o jor​nal con​ti​nu​a ​va: RE​A​BER​TA A
RO​DO​VIA. IN​TER​DI​ÇÃO LE​VAN​TA​DA. PO​P U​LA​ÇÃO EVA​CU​A​DA RE​A​-
PA​RE​CE: NIN​GUÉM VIU NADA.
Em edi​ç ões nor​m ais, o Sen​ti​ne​la cir​c u​la​va com ape​nas um ca​der​no de trin​ta
e duas pá​gi​nas no má​xi​m o. Du​r an​te aque​la se​m a​na de ju​lho, todo o es​pa​ç o dis​-
po​ní​vel des​ti​na​va-se à co​ber​tu​r a do “va​za​m en​to”, pois ha​via re​pór​te​r es vin​dos de
ou​tras ci​da​des e, pela pri​m ei​r a vez em sua exis​tên​c ia, o pe​que​no jor​nal vi​via
dias de gló​r ia. Dom e Gin​ger liam aten​ta​m en​te, à pro​c u​r a de ex​pli​c a​ç ões so​bre o
pas​sa​do ou de idéi​a s so​bre como agir no fu​tu​r o.
Uma pri​m ei​r a in​f or​m a​ç ão, que sal​ta​va das en​tre​li​nhas, era im​por​tan​te por​-
que per​m i​tia ava​li​a r até que pon​to o Exér​c i​to es​ta​va dis​pos​to a men​tir para en​c o​-
brir a ver​da​de. Na​que​la noi​te au​to​r i​da​des mi​li​ta​r es in​ter​di​ta​r am mais de quin​ze
qui​lô​m e​tros de es​tra​da — sem no​ti​f i​c ar nem o de​le​ga​do de Elko, nem a po​lí​-
cia es​ta​du​a l de Ne​va​da — e as​su​m i​r am o con​tro​le de toda a re​gi​ã o. A “qua​r en​te​-
na” de que Fay e e Er​nie fa​la​vam. Pro​c e​di​m en​to fora de ro​ti​na e mui​to es​tra​nho.
Du​r an​te a in​ter​di​ç ão, to​das as edi​ç ões do Sen​ti​ne​la es​tam​pa​r am de​c la​r a​ç ões in​-
dig​na​das do de​le​ga​do lo​c al e das au​to​r i​da​des es​ta​du​a is, que es​bra​ve​j a​vam con​tra
a “in​ter​ven​ç ão in​de​vi​da das for​ç as fe​de​r ais em nos​sa ju​r is​di​ç ão”. Nem a po​lí​c ia
lo​c al, nem a es​ta​du​a l fo​r am cha​m a​das a par​ti​c i​par da ope​r a​ç ão de eva​c u​a ​ç ão da
área. Em mo​m en​to al​gum co​gi​tou-se de con​sul​tar os di​r i​gen​tes dali so​bre como
agir no caso de ocor​r ên​c ia de ven​tos ou tem​pes​ta​des que pu​des​sem car​r e​gar a
“nu​vem tó​xi​c a” para ou​tras re​gi​ões. Em to​das as no​tí​c i​a s fi​c a​va evi​den​te que o
Exér​c i​to se re​ser​va​r a os di​r ei​tos de úni​c a au​to​r i​da​de com ju​r is​di​ç ão so​bre a área
atin​gi​da.
Dois dias de​pois do “va​za​m en​to”, o de​le​ga​do de Elko County, Fos​ter Hanks,
ain​da se las​ti​m a​va em de​c la​r a​ç ão ex​c lu​si​va: “É mi​nha ci​da​de... o povo da​qui me
ele​geu... sou res​pon​sá​vel pela se​gu​r an​ç a da re​gi​ã o! E não pos​so con​c or​dar com
essa di​ta​du​r a do Exér​c i​to, que in​sis​te em nos dei​xar à mar​gem das de​c isões. A
me​nos que os co​m an​dan​tes mi​li​ta​r es se​j am mais re​c ep​ti​vos a nos​sas exi​gên​c i​a s
e nos in​f or​m em exa​ta​m en​te o que está acon​te​c en​do, se​r e​m os obri​ga​dos a pro​c u​-
rar a Jus​ti​ç a e exi​gir, pe​los ca​m i​nhos le​gais, que o di​r ei​to dos ci​da​dãos seja res​-
pei​ta​do”.
No dia se​guin​te, o Sen​ti​ne​la in​f or​m a​va que o ho​m em cum​pri​r a a ame​ç a,
mas, como a cri​se já pa​r e​c ia su​pe​r a​da, a re​c la​m a​ç ão que apre​sen​tou ao tri​bu​nal
tor​na​r a-se sem efei​to.
— Bom si​nal... — Dom co​m en​tou, apon​tan​do a no​tí​c ia. — Nem to​das as
au​to​r i​da​des es​tão uni​das con​tra nós. Nos​so ini​m i​go é, ape​nas...
— ... o Exér​c i​to dos Es​ta​dos Uni​dos da Amé​r i​c a... — com​ple​tou Gin​ger,
rin​do; não con​se​guia ima​gi​nar um ini​m i​go mais te​m í​vel.
— Nós... con​tra o Exér​c i​to! — Dom sus​pi​r ou. — Não vai ser fá​c il...
De acor​do com o jor​nal, os mi​li​ta​r es blo​que​a ​r am a Ro​do​via 80, úni​c o aces​so
à área sob qua​r en​te​na, e fe​c ha​r a tam​bém um tre​c ho de oito qui​lô​m e​tros de uma
li​ga​ç ão com a ro​do​via. To​das as ae​r o​na​ves co​m er​c i​a is e ci​vis fo​r am proi​bi​das de
so​bre​vo​a r a re​gi​ã o, pa​tru​lha​da por he​li​c óp​te​r os mi​li​ta​r es. Um gran​de con​tin​gen​te
de sol​da​dos fora mo​bi​li​za​do para o con​tro​le da área. A jul​gar pe​las no​tí​c i​a s, o
Exér​c i​to não pou​pa​r a pes​so​a l, tem​po e di​nhei​r o para blo​que​a r to​dos os ca​m i​nhos
para o lo​c al. Ha​via gen​te que afir​m a​va ter vis​to, à noi​te, sol​da​dos equi​pa​dos com
bi​nó​c u​los de len​tes sen​sí​veis e rai​os in​f ra​ver​m e​lhos pa​tru​lhan​do a pla​ní​c ie, à cata
de even​tu​a is in​va​so​r es.
— O jor​nal fala da pos​si​bi​li​da​de de “va​za​m en​to de um gás que ata​c a​r ia os
te​c i​dos ner​vo​sos’’ — Gin​ger pen​sou em voz alta. — Es​sas são as subs​tân​c i​a s tó​xi​-
cas mais ter​r í​veis que exis​tem... Ain​da as​sim... te​nho a im​pres​são de que o Exér​-
ci​to exa​ge​r ou na se​gu​r an​ç a. Além dis​so, em​bo​r a não seja es​pe​c i​a ​lis​ta em guer​-
ra quí​m i​c a... não pos​so acre​di​tar que qual​quer gás... seja lá qual for e vaze o
quan​to qui​ser... re​pre​sen​te ta​m a​nha ame​a ​ç a... A área é ex​ten​sa de​m ais! Ora... se
o Exér​c i​to afir​m a que ape​nas um ci​lin​dro de gás foi da​ni​f i​c a​do... que pe​r i​go po​-
der ia ha​ver? Os ga​ses são vo​lá​teis... ten​dem a dis​per​sar-se no ar... Dois qui​lô​m e​-
tros além do lo​c al do aci​den​te, a con​c en​tra​ç ão de gás tó​xi​c o na at​m os​f e​r a já se​-
ria pra​ti​c a​m en​te in​sig​ni​f i​c an​te! E ain​da mais dis​per​so es​ta​r ia a três qui​lô​m e​tros
do pon​to de va​za​m en​to...
— O que nos traz de vol​ta a sua idéia ini​c i​a l: con​ta​m i​na​ç ão por bac​té​r ia.
— É pos​sí​vel — Gin​ger con​c or​dou. — Mas nos fal​tam ele​m en​tos para ter​-
mos cer​te​za. De qual​quer modo, o que acon​te​c eu aqui foi mais gra​ve que um
sim​ples va​za​m en​to de gás.
Já no sá​ba​do, 7 de ju​lho, um dia após a in​ter​di​ç ão da ro​do​via, um dos re​pór​-
te​r es do Sen​ti​ne​la ob​ser​vou que os sol​da​dos que ti​nham aces​so à re​gi​ã o de qua​-
ren​te​na usa​vam um dis​tin​ti​vo es​pe​c i​a l nos uni​f or​m es, um cír​c u​lo ne​gro com uma
es​tre​la ver​de no cen​tro.
“Con​vo​c a​m os equi​pes dos ba​ta​lhões de de​f e​sa ci​vil”, di​zia o jor​nal, ci​tan​do o
por​ta-voz do co​m an​do mi​li​tar. “São co​nhe​c i​dos como os ho​m ens da DERO, uma
es​pé​c ie de nome em có​di​go. São sol​da​dos ex​c ep​c i​o​nal​m en​te bem trei​na​dos, com
gran​de ex​pe​r i​ê n​c ia de com​ba​te, com sal​vo-con​du​to para cir​c u​lar em quais​quer
ins​ta​la​ç ões do Exér​c i​to, mes​m o as de se​gu​r an​ç a má​xi​m a.”
— Isso deve sig​ni​f i​c ar que os bru​ta​m on​tes são pa​gos para fi​c ar de boca fe​-
cha​da — Dom tra​du​ziu.
O por​ta-voz con​ti​nu​a ​va: “São trei​na​dos para com​por uma tro​pa de eli​te, ca​-
paz de en​f ren​tar qual​quer tipo de cri​se que pos​sa aba​ter-se so​bre a po​pu​la​ç ão ci​-
vil, como ata​ques ter​r o​r is​tas a ins​ta​la​ç ões mi​li​ta​r es ou aci​den​tes em ba​ses de
mís​seis nu​c le​a ​r es. Não que haja qual​quer pos​si​bi​li​da​de de en​vol​vi​m en​to de ter​r o​-
ris​tas na cri​se que ora en​f ren​ta​m os, ou pro​ble​m as re​la​c i​o​na​dos a ris​c o de ex​plo​-
são nu​c le​a r. Mas, como há uma base da DERO lo​c a​li​za​da em área pró​xi​m a da
base de Shenk​f i​e ld, pa​r e​c eu-nos in​te​r es​san​te cha​m á-los para as​se​gu​r ar a tran​qüi​-
li​da​de da po​pu​la​ç ão”.
Por mais que o re​pór​ter in​sis​tis​se, o por​ta-voz re​c u​sa​r a-se a in​f or​m ar a lo​c a​-
li​za​ç ão de tal base da DERO: “Não es​tou au​to​r i​za​do a for​ne​c er esse tipo de in​f or​-
ma​ç ão à im​pren​sa”, dis​se​r a. E se o por​ta-voz não fa​la​va, me​nos ain​da os ho​m ens
da DERO.
— Shmont​sesl — Gin​ger es​m ur​r ou a mesa.
— O quê?!
— Essa his​tó​r ia toda... — Ela aco​m o​dou-se na ca​dei​r a e cru​zou os bra​ç os.
— Isso é shmont​sesl
— Mas o que quer di​zer?
— Oh! Des​c ul​pe... É uma pa​la​vra em ídi​c he. Meu pai a usa​va mui​to. Sig​ni​-
fi​c a al​gu​m a coi​sa que é... ab​sur​da, im​pos​sí​vel, que nao me​r e​c e aten​ç ão. Con​ver​-
sa fi​a ​da, di​ga​m os. Essa his​tó​r ia do por​ta-voz é shmont​ses do co​m e​ç o ao fim —
con​c luiu, le​van​do a mão ao pes​c o​ç o para mas​sa​ge​a r os mús​c u​los do​lo​r i​dos. —
Você quer que eu acre​di​te que os tais sol​da​dos da DERO es​ta​vam nes​te fim de
mun​do por aca​so?!
— Pelo que diz o jor​nal, o Exér​c i​to blo​que​ou a ro​do​via e o pes​so​a l da
DERO apa​r e​c eu pou​c o de​pois de uma hora. As​sim, se não es​ta​vam por aqui...
es​ta​r i​a m vin​do para cá por​que sa​bi​a m o que ia acon​te​c er?!
— E a úni​c a ex​pli​c a​ç ão ra​zo​á ​vel.
— Está que​r en​do di​zer que o Exér​c i​to sa​bia que ha​ve​r ia um va​za​m en​to?!
— Dom le​van​tou os olhos e fran​ziu as so​bran​c e​lhas.
— Ah, já nem sei o que pen​sar... O má​xi​m o que mi​nha in​te​li​gên​c ia ad​m i​te
é que exis​ta uma base de​les em Utah, ou ao sul do Ida​ho. Ain​da as​sim, é lon​ge
de​m ais para que che​gas​sem aqui em ape​nas uma hora, mes​m o que sa​ís​sem vo​-
an​do sem ba​ga​gem. Não é pos​sí​vel que es​ti​ves​sem co​m an​dan​do o blo​queio uma
hora de​pois do “va​za​m en​to”. Se quer mes​m o sa​ber, mi​nha res​pos​ta é siml Os ho​-
mens da DERO es​ta​vam aqui por​que sa​bi​a m que al​gu​m a coi​sa ia acon​te​c er em
Elko. Não pre​c i​sa​vam sa​ber com mui​ta an​te​c e​dên​c ia... Uma ou duas ho​r as já se​-
ri​a m su​f i​c i​e n​tes.
— Nes​se caso, o “va​za​m en​to” dei​xa​r ia de ser um aci​den​te. Tal​vez até a
pre​sen​ç a dos ca​r as da DERO seja uma pro​va de que não hou​ve va​za​m en​to ne​-
nhum... Mas en​tão... por que os ho​m ens an​da​r i​a m com aque​les tra​j es “ve​da​dos”?
— Dom pen​sa​va em voz alta, de​sa​ni​m a​do. Cada avan​ç o rumo a uma ex​pli​c a​ç ão
aca​ba​va le​van​do-os a um novo beco sem sa​í​da. Mais um mi​nu​to e ele ras​ga​r ia a
pi​lha de jor​nais que cres​c ia a sua fren​te, como se com isso pu​des​se des​m as​c a​r ar
a far​sa em que se sen​tia afun​dar cada vez mais.
Gin​ger re​f le​tiu por al​guns ins​tan​tes e ex​pres​sou sua opi​ni​ã o:
— Só vejo uma ex​pli​c a​ç ão para a pre​sen​ç a da DERO em Elko na​que​la se​-
ma​na... O Exér​c i​to não con​f i​a ​va nos sol​da​dos re​gu​la-
res. Tal​vez por​que o caso fos​se gra​ve de​m ais... tal​vez por​que hou​ves​se aqui
al​gu​m a coi​sa que não de​vi​a m ver. Por isso con​vo​c ou o pes​so​a l da DERO que,
como você mes​m o dis​se, deve ga​nhar para fi​c ar de boca fe​c ha​da.
— Faz sen​ti​do.
— Eu sei. Mas, se fos​se um sim​ples caso de va​za​m en​to de gás, não se​r ia
ne​c es​sá​r io con​vo​c á-los. Que mal ha​ve​r ia em per​m i​tir que os sol​da​dos re​gu​la​r es
vis​sem um ca​m i​nhão que​bra​do e um ci​lin​dro de gás par​ti​do ao meio?
Em si​lên​c io, os dois vol​ta​r am a de​bru​ç ar-se so​bre os jor​nais. E logo en​c on​-
tra​r am ou​tra pro​va de que o Exér​c i​to sa​bia que al​gu​m a coi​sa es​tra​nha es​ta​va
para acon​te​c er em Elko. Era ra​zo​a ​vel​m en​te fá​c il re​c ons​ti​tuir a se​qüên​c ia de
acon​te​c i​m en​tos da​que​la noi​te de ju​lho, até o mo​m en​to do ru​í​do de tro​vão e do
zum​bi​do es​tri​den​te que re​ben​ta​r a as vi​dra​ç as do res​tau​r an​te do mo​tel. Ain​da não
es​c u​r e​c e​r a com​ple​ta​m en​te, pois o sol se põe mais tar​de no ve​r ão. Com cer​te​za
pas​sa​va de oito ho​r as da noi​te quan​do o ter​r e​m o​to co​m e​ç a​r a, com o ru​í​do de tro​-
vão e o zum​bi​do.
— Olhe aqui — dis​se Dom, as​si​na​lan​do com o dedo al​gu​m as li​nhas do tex​-
to. — Uma tes​te​m u​nha afir​m a que às oito ho​r as da noi​te a ro​do​via já es​ta​va blo​-
que​a ​da.
— En​tão você acha que a ro​do​via foi blo​que​a ​da cin​c o ou dez mi​nu​tos an​tes
de ocor​r er o “va​za​m en​to”? — Gin​ger per​gun​tou.
— Acho. A me​nos que nós es​te​j a​m os mui​to en​ga​na​dos quan​to à hora do
pôr-do-sol.
Sem di​zer nada, vol​ta​r am à edi​ç ão do Sen​ti​ne​la de 6 de ju​lho, à pro​c u​r a de
in​f or​m a​ç ões da co​lu​na me​te​o​r o​ló​gi​c a: Tem​pe​r a​tu​r a em ele​va​ç ão du​r an​te o dia,
pe​que​no de​c lí​nio à noi​te. Umi​da​de re​la​ti​va do ar, cer​c a de vin​te e cin​c o por cen​-
to. Céu cla​r o, pou​c a ne​bu​lo​si​da​de. Ven​tos de fra​c os a mo​de​r a​dos. Pôr-do-sol às
sete e trin​ta e um”.
— Se o sol se pôs às sete e trin​ta e um, às sete e qua​r en​ta e cin​c o, di​ga​m os,
já es​ta​va es​c u​r o. Noi​te fe​c ha​da. Ain​da que es​te​j a​m os en​ga​na​dos quan​to ao tem​-
po de​c or​r i​do en​tre o sol de​sa​pa​r e-
cer com​ple​ta​m en​te e o mo​m en​to em que co​m e​ç a​m os a ou​vir o tro​vão e o
zum​bi​do... a es​tra​da foi blo​que​a ​da an​tes!
— O que pro​va que eles sa​bi​a m que algo es​ta​va para acon​te​c er... — Gin​-
ger de​du​ziu.
— Mas não fi​ze​r am nada para im​pe​dir que acon​te​c es​se — com​ple​tou
Dom.
— O que sig​ni​f i​c a que foi um pro​c es​so, uma se​qüên​c ia de even​tos so​bre a
qual o Exér​c i​to não ti​nha con​tro​le.
Dom res​pi​r ou fun​do.
— Pode ser que sim, pode ser que não — dis​se. — E pos​sí​vel que os mi​li​ta​-
res te​nham ten​ta​do im​pe​dir, fa​zen​do todo o pos​sí​vel... e não te​nham con​se​gui​do.
Tra​ba​lha​m os com hi​pó​te​ses que não po​de​m os pro​var. Pre​c i​sa​m os de mais in​f or​-
ma​ç ões.
Gin​ger bai​xou a ca​be​ç a e con​c en​trou-se na lei​tu​r a. Ao vi​r ar uma pá​gi​na da
edi​ç ão do dia 11 de ju​lho, gri​tou, sur​pre​sa e as​sus​ta​da. Dom vi​r ou-se, rá​pi​do.
A per​so​na​gem dos so​nhos de al​guns hós​pe​des do Mo​tel Tran-qüi​li​da​de ali es​-
ta​va, em uni​f or​m e de ofi​c i​a l do Exér​c i​to, com boné e di​vi​sas: o co​r o​nel Le​land
Falkirk, exa​ta​m en​te como Er​nie e Ned o ha​vi​a m vis​to. Ca​be​lo es​c u​r o, têm​po​r as
gri​sa​lhas, olhos cin​zen​tos e fri​os como aço, na​r iz fino, lá​bi​os es​trei​tos. Dom
leu em voz alta a le​gen​da que acom​pa​nha​va a foto:
— “O co​r o​nel Le​land Falkirk, co​m an​dan​te dos pe​lo​tões da DE-RO, en​c ar​-
re​ga​do de man​ter a in​ter​di​ç ão da área atin​gi​da pelo va​za​m en​to de gás tó​xi​c o, re​-
cu​sou-se a con​c e​der en​tre​vis​tas à im​pren​sa. A foto aci​m a, ob​ti​da por Greg Lun​-
de, do Sen​ti​ne​la, dei​xou-o mui​to ir​r i​ta​do e tor​nou ain​da mais la​c ô​ni​c as suas res​-
pos​tas, já li​m i​ta​das pelo co​nhe​c i​do: ‘Nada a de​c la​r ar’.”
Um olhar ge​la​do como a mor​te, que Dom já co​nhe​c ia. Não de pe​sa​de​los,
mas das noi​tes que pas​sa​r a no mo​tel, no ve​r ão re​tra​sa​do. Um olhar de fera, de
ave de ra​pi​na, de ho​m em acos​tu​m a​do a con​se​guir o que que​r ia. O ho​m em que
os ti​ve​r a, a to​dos, à sua mer​c ê e os con​de​na​r a à mor​te por en​ve​ne​na​m en​to.
Sem ti​r ar os olhos da foto, Gin​ger mur​m u​r ou bai​xi​nho:
— Kayn ayn hore... Tam​bém é ídi​c he... Uma es​pé​c ie de exor​c is​m o... para
afas​tar o mal — ex​pli​c ou e re​pe​tiu: — Kayn ayn hore... Ele me​r e​c e.
Dom con​ti​nu​a ​va a fi​tar a fo​to​gra​f ia como que hip​no​ti​za​do:
— Sim... me​r e​c e.
Da pá​gi​na ama​r e​la​da do jor​nal, os olhos de aço do co​r o​nel Fal-kirk pa​r e​c i​a m
de​sa​f iá-lo.
En​quan​to Dom e Gin​ger exa​m i​na​vam os ar​qui​vos do jor​nal de Elko, Er​nie e
Fay e Block tra​ba​lha​vam no es​c ri​tó​r io do mo​tel, ten​tan​do es​ta​be​le​c er con​ta​to com
os de​m ais hós​pe​des da noi​te em ques​tão. Es​ta​vam jun​to ao bal​c ão, um de cada
lado, com uma ca​f e​tei​r a elé​tri​c a ao al​c an​c e da mão.
Er​nie re​di​gia um te​le​gra​m a para Ge​r ald Sal​c oe, o ho​m em que alu​ga​r a dois
quar​tos para a fa​m í​lia, es​po​sa e duas fi​lhas, no ve​r ão re​tra​sa​do, que até en​tão não
fora lo​c a​li​za​do por​que seu te​le​f o​ne em Mon​te​r ey, Ca​li​f ór​nia, não cons​ta​va da lis​-
ta. Fay e ten​ta​va lo​c a​li​zar ou​tros re​gis​tros de Cal Shark​le para en​c on​trar seu
novo en​de​r e​ç o.
Con​c en​tra​do no tra​ba​lho, Er​nie pen​sa​va nas in​ú​m e​r as ve​zes, ao lon​go dos
trin​ta e um anos de ca​sa​m en​to, em que ha​vi​a m es​ta​do as​sim, um fren​te ao ou​tro,
ali mes​m o, ou na co​zi​nha, na​que​la casa ou em qual​quer uma das tan​tas em que
ha​vi​a m mo​r a​do. De re​pen​te, ines​pe​r a​da​m en​te, sen​tiu sau​da​de de ou​tras noi​tes,
os dois rin​do jun​tos, pre​o​c u​pan​do-se jun​tos, fa​zen​do pla​nos jun​tos. A vida não fa​-
ria sen​ti​do sem Fay e a seu lado. Se al​gu​m a coi​sa lhe acon​te​c es​se... por obra ou
não do mal​di​to co​r o​nel Falkirk... não sa​be​r ia como con​ti​nu​a r vi​ven​do.
De​pois de re​di​gir o te​le​gra​m a para Sal​c oe, li​gou para a Wes​tern Uni​on e di​-
tou o tex​to, pe​din​do à com​pa​nhia de te​lé​gra​f os que a men​sa​gem fos​se en​tre​gue
com ur​gên​c ia ao des​ti​na​tá​r io.
Fay e en​c on​trou cin​c o da​tas, ao lon​go do ano an​te​r i​or, em que Cal Shark​le se
hos​pe​da​r a no mo​tel, to​das com o mes​m o te​le​f o​ne de Evans​ton, Il​li​nois, e o mes​-
mo en​de​r e​ç o que in​di​c a​va na noi​te de 6 de ju​lho. Não pa​r e​c ia ter-se mu​da​do.
Fay e ain​da ten​tou lo​c a​li​zá-lo, atra​vés da te​le​f o​nis​ta de Chi​c a​go, li​gan​do sem re​-
sul​ta​do, para vá​r i​os
cen​tros de in​f or​m a​ç ões de di​f e​r en​tes bair​r os da ci​da​de: Whi​ting, Ham​m ond,
Ca​lu​m et City, Mark​ham, Dow​ner’s Gro​ve, Oak Park, Oak​bro​ok, Elm​hurst, Des
Plai​nes, Rol​ling Me​a ​dows, Glen​c oe... Ou Cal Shark​le dei​xa​r a Chi​c a​go, mu​dan​do-
se para lo​c al ig​no​r a​do, ou de​sa​pa​r e​c e​r a da su​per​f í​c ie da Ter​r a.
En​quan​to Fay e e Er​nie tra​ba​lha​vam no es​c ri​tó​r io, Ned e Sandy en​c ar​r e​ga​-
vam-se do jan​tar, na co​zi​nha do piso su​pe​r i​or. A noi​te, de​pois que Bren​dan Cro​nin
che​gas​se de Chi​c a​go e Jor​j a Mona-tel​la, com a fi​lha, vi​e s​se de Las Ve​gas, se​r i​-
am nove à mesa, e Ned não que​r ia dei​xar nada para úl​ti​m a hora. Na vés​pe​r a, to​-
dos fo​r am con​ta​gi​a ​dos pelo es​pí​r i​to de fra​ter​ni​da​de e ami​za​de que os apro​xi​m a​-
va como se fos​sem uma gran​de fa​m í​lia. Cer​tos de que, quan​to mais pró​xi​m os e
uni​dos es​ti​ves​sem para en​f ren​tar os pro​ble​m as, mai​o​r es se​r i​a m suas chan​c es,
Ned e Sandy de​c i​di​r am pre​pa​r ar um jan​tar es​pe​c i​a l, uma ver​da​dei​r a fes​ta de
Ação de Gra​ç as. E lá es​ta​vam, as​san​do um enor​m e peru, des​c as​c an​do ba​ta​tas,
as​san​do mi​lho, tem​pe​r an​do ce​nou​r as, re​c he​a n​do pi​m en​tões e fa​zen​do tor​tas para
a so​bre​m e​sa.
Des​c as​c an​do ce​bo​las ou pi​c an​do le​gu​m es, Ned ten​ta​va não pen​sar que, tal​-
vez, em lu​gar de um gran​de jan​tar fes​ti​vo, po​de​r i​a m es​tar pre​pa​r an​do a úl​ti​m a
ceia dos con​de​na​dos. Cada vez que a idéia lhe ocor​r ia, vol​ta​va os olhos para
Sandy e via-a tran​qüi​la, can​ta​r o​lan​do. Como ima​gi​nar que qual​quer coi​sa ca​paz
de fazê-la re​nas​c er, de​sa​bro​c har, vol​tar à vida, pu​des​se le​var al​guém à des​gra​-
ça? Es​ta​va en​lou​que​c en​do... Era im​pos​sí​vel!
De​pois de três ho​r as de pes​qui​sa nos ar​qui​vos do Sen​ti​ne​la, Gin-ger e Dom
al​m o​ç a​r am num res​tau​r an​te da Rua Ida​ho e vol​ta​r am ao Mo​tel Tran​qüi​li​da​de às
duas e meia da tar​de. Fay e e Er​nie ain​da tra​ba​lha​vam no es​c ri​tó​r io, e a re​c ep​ç ão
es​ta​va im​preg​na​da de de​li​c i​o​sos per​f u​m es que vi​nham da co​zi​nha.
— E vo​c ês ain​da não chei​r a​r am o peru — co​m en​tou Fay e. — Ned aca​ba
de co​lo​c á-lo no for​no.
— O jan​tar está mar​c a​do para as oito — in​f or​m ou Er​nie —,
mas acho que não agüen​ta​r e​m os es​pe​r ar até lá, com esse chei​r o no ar. Vou
mor​r er de fome.
— O que des​c o​bri​r am no jor​nal? — Fay e per​gun​tou.
An​tes que Gin​ger pu​des​se res​pon​der, a por​ta abriu-se, e en​trou
um ho​m em rui​vo e gor​do, meio em​pur​r a​do pelo ven​to ge​la​do. Ti​nha o ca​sa​-
co pen​du​r a​do no bra​ç o e usa​va cal​ç a cin​zen​ta de lã e su​é ​ter azul-cla​r o. To​dos o
re​c o​nhe​c e​r am. Os mes​m os olhos ver​des, a face re​don​da, o ca​be​lo rui​vo e as sar​-
das da foto. Des​sa vez, po​r ém, o pa​dre Bren​dan Cro​nin pa​r e​c ia... vivo!
— Seja bem-vin​do — dis​se-lhe Gin​ger, sor​r in​do.
E ou​tra vez, como acon​te​c e​r a com Dom, sen​tiu-se ar​r as​ta​da para ele como
se, de​pois de mui​tos anos, re​vis​se um ve​lho e que​r i​do ami​go. O pas​sa​do, al​gu​m a
coi​sa no pas​sa​do tor​na​va-os ir​m ãos, unia-os para sem​pre. Al​gu​m a coi​sa que só
ela, Dom e o pa​dre Bren​dan co​nhe​c i​a m e nin​guém mais pre​sen​c i​a ​r a. Sem se
im​por​tar com o que os ou​tros pu​des​sem pen​sar, cor​r eu para ele e abra​ç ou-o.
Co​m o​vi​do, o sa​c er​do​te re​tri​buiu a sau​da​ç ão sem he​si​tar, abra​ç an​do-a com
for​ç a, e por um ins​tan​te os dois per​m a​ne​c e​r am jun​tos, como irmã e ir​m ão que
não se vis​sem há anos. Gin​ger só se afas​tou ao ou​vir Dom ex​c la​m ar:
— Pa​dre Cro​nin!
— Não pre​c i​sam me cha​m ar as​sim. Há al​gum tem​po não me​r e​ç o nem
que​r o ser tra​ta​do de pa​dre. Meu nome é Bren​dan.
Er​nie gri​tou para que Ned e Sandy vi​e s​sem se jun​tar a eles e, acom​pa​nhan​-
do Fay e, apro​xi​m ou-se do re​c ém-che​ga​do. Bren​dan cum​pri​m en​tou-os um a um,
sen​tin​do-se li​ga​do a to​dos, como se fos​sem pa​r en​tes pró​xi​m os ou ami​gos mui​to
que​r i​dos. Gin​ger e Dom, no en​tan​to, ins​pi​r a​vam-lhe algo mais, mais do que ami​-
za​de fra​ter​na ou ca​lor hu​m a​no. Era como se um po​der imen​sa​m en​te for​te os
atra​ís​se.
Qua​se re​pe​tin​do as mes​m as pa​la​vras que Gin​ger dis​se​r a ao che​gar, co​m en​-
tou:
— E como se es​ti​vés​se​m os em fa​m í​lia. To​dos sen​ti​m os a mes​m a coi​sa,
não é? Como se ti​vés​se​m os vi​vi​do jun​tos os mo​m en​tos
mais im​por​tan​tes de nos​sas vi​das... Como se nos ti​ves​se acon​te​c i​do algo que
nos trans​f or​m ou em se​r es es​pe​c i​a is... para sem​pre.
Por mais que in​sis​tis​se em ser tra​ta​do de Bren​dan, en​vol​via-o uma aura es​pi​-
ri​tu​a l. Ha​via em seu ca​be​lo rui​vo, nos olhos mui​to ver​des, no ros​to re​c hon​c hu​do,
no sor​r i​so am​plo e cla​r o, al​gu​m a coi​sa que fa​zia com que to​dos qui​ses​sem ouvi-
lo, apro​xi​m ar-se dele, tocá-lo.
— O que sin​to ao lado de vo​c ês é a pro​va de​f i​ni​ti​va de que agi bem quan​do
re​sol​vi vir para cá. Eu pre​c i​sa​va es​tar com vo​c ês. Al​gu​m a coi​sa vai acon​te​c er...
e vai nos mo​di​f i​c ar para sem​pre... já co​m e​ç ou a nos mo​di​f i​c ar. Vo​c ês sen​tem o
mes​m o que eu? Sen​tem?
Sua voz pro​vo​c ou em Gin​ger um ca​la​f rio de medo e, ao mes​m o tem​po, uma
fan​tás​ti​c a sen​sa​ç ão de pra​zer. Como quan​do, pela pri​m ei​r a vez, ain​da es​tu​dan​te,
en​tra​r a na sala de ci​r ur​gia e vira, num tó​r ax aber​to, a mis​te​r i​o​sa be​le​za de um
co​r a​ç ão hu​m a​no, ro​sa​do, pul​san​do, vivo!
— Fo​m os cha​ma​dos... — Bren​dan con​ti​nuou. — To​dos nós. Fo​m os cha​m a​-
dos para cá...
— Ve​jaml
Era Dom, os olhos ar​r e​ga​la​dos, olhan​do as pal​m as das pró​pri​a s mãos. Quan​-
do as er​gueu to​dos vi​r am os anéis de pele aver​m e​lha​da, mui​to ní​ti​dos.
Sem di​zer nada, an​tes mes​m o de exa​m i​ná-las, Bren​dan sa​bia que o mes​m o
si​nal apa​r e​c ia em suas mãos. Mos​trou-as a Dom, os olhos fi​xos no ros​to dele.
Seus olha​r es, atrain​do-se um ao ou​tro, cri​a ​r am um cam​po mag​né​ti​c o na sala. Na
vés​pe​r a, ao fa​lar com Ste-fan Wy ​c a​zik, Dom ou​vi​r a-o di​zer que Bren​dan pa​r e​c ia
cer​to de não ha​ver nada de so​bre​na​tu​r al nos acon​te​c i​m en​tos que es​ta​vam trans​-
for​m an​do sua vida. Mas ali, no mo​tel, Gin​ger sen​tia a sala cheia de for​ç a... uma
for​ç a que tal​vez não fos​se di​vi​na, nem so​bre​na​tu​r al... mas que era su​pe​r i​or a
qual​quer po​der hu​m a​no, ci​e n​tí​f i​c o ou ra​c i​o​nal.
— Fo​m os cha​m a​dos... — Bren​dan re​pe​tia, à es​pe​r a.
O que po​de​r ia ser? O que es​ta​r ia para acon​te​c er ali, na​que​le ins​tan​te? Gin​ger
olhou em vol​ta, viu Er​nie com a mão no om​bro de Fay e, Ned e Sandy de mãos
da​das, jun​to ao dis​play de car​tões-pos​tais. To​dos à es​pe​r a...
— Vai acon​te​c er al​gu​m a coi​sa... — dis​se ela em voz bai​xa. E an​tes que
aca​bas​se de fa​lar, acon​te​c eu.
As lâm​pa​das ace​sas pis​c a​r am uma, duas ve​zes... e a sala en​c heu-se de luz,
mais cla​r a do que an​tes, do que em mo​m en​to al​gum. Uma luz es​bran​qui​ç a​da,
lei​to​sa, que não vi​nha das lâm​pa​das, mas de to​dos os can​tos, como se cada pe​-
que​no áto​m o de ar se ma​ni​f es​tas​se como ener​gia. Gin​ger re​c o​nhe​c eu-a: era a
luz pra​te​a ​da que via em seus so​nhos... luz de luar, po​r ém mais for​te, mais cla​r a.
De​va​gar, gi​r ou so​bre os cal​c a​nha​r es, olhan​do em tor​no da sala, já sem que​-
rer iden​ti​f i​c ar a fon​te de luz, mas pro​c u​r an​do lem​brar-se dos so​nhos... em bus​c a
das per​di​das lem​bran​ç as da​que​la noi​te de ve​r ão, tão dis​tan​te e ao mes​m o tem​po
tão pró​xi​m a.
Ao lado do dis​play de pos​tais, Sandy er​gueu a mão, que​r en​do to​c ar a luz.
Ned vi​bra​va, ma​r a​vi​lha​do. Fay e ape​nas sor​r ia, Er​nie olha​va para tudo com olhos
de cri​a n​ç a des​lum​bra​da, rin​do como um bebê fren​te a um fan​tás​ti​c o brin​que​do
de lu​zes e sons.
— A Lua... — sus​sur​r ou.
— A Lua... — Dom re​pe​tiu, os si​nais aver​m e​lha​dos bri​lhan​do nas mãos er​-
gui​das.
En​tão, a Lua co​m e​ç ou a mu​dar de cor. Uma mu​dan​ç a rá​pi​da, qua​se ins​tan​-
tâ​nea: de bran​c o-pra​te​a ​da tor​nou-se ver​m e​lha. Ver​m e​lha e bri​lhan​te, como que
en​c har​c a​da de san​gue. O des​lum​bra​m en​to vi​r ou medo. As qua​se lem​bran​ç as
onde to​dos flu​tu​a ​vam trans​f or​m a​r am-se em hor​r or.
Gin​ger cor​r eu para a por​ta, mas não con​se​guiu abri-la. Do ou​tro lado, por
trás de Dom e Bren​dan, Sandy já não sor​r ia, agar​r a​da ao bra​ç o de Ned, que
olha​va para o alto com um es​gar de nojo. Er​nie e Fay e en​c os​ta​vam-se, apa​vo​r a​-
dos, no bal​c ão da re​c ep​ç ão.
A luz ver​m e​lha inun​da​va a sala de can​to a can​to... e ou​viu-se um ru​í​do como
de um tam​bor lon​gín​quo. Gin​ger es​tre​m e​c eu e sal​tou para trás às pri​m ei​r as pan​-
ca​das. Sal​tou ou​tra vez quan​do as pan​c a​das se re​pe​ti​r am, mas não se mo​veu
quan​do as ou​viu pela ter​c ei​r a vez. Pul​sa​va... como um co​r a​ç ão ba​ten​do, rit​m a​do:
três ba​ti​das, um si​lên​c io... três ba​ti​das, um si​lên​c io. Tum-tum-tum... Tum-tum-
tum... Tum-tum-tum...
O mes​m o fe​nô​m e​no da casa pa​r o​qui​a l que o pa​dre Wy ​c a​zik re​la​ta​r a a Dom.
O ru​í​do que acor​da​r a a to​dos, mas não per​tur​ba​r a o sono do pa​dre Cro​nin...
Vol​ta​vam as lem​bran​ç as. Gin​ger sa​bia que já vira a luz ver​m e​lha e ou​vi​r a as
pan​c a​das. Tudo aqui​lo acon​te​c e​r a an​tes... na noi​te de 6 de ju​lho. Ha​via sido o co​-
me​ç o.
Tum-tum-tum... Tum-tum-tum... Tum-tum-tum...
As ja​ne​las ba​ti​a m, as pa​r e​des tre​m i​a m. A luz aver​m e​lha​da e as lâm​pa​das da
sala pis​c a​vam ao rit​m o das pul​sa​ç ões.
Gin​ger ia lem​brar. Es​ta​va mui​to pró​xi​m a de lem​brar. A ver​da​de es​ta​va ao al​-
can​c e da mão, es​c on​di​da ape​nas por uma cor​ti​na mui​to leve, trans​pa​r en​te.
Mas o medo foi mai​or. Ines​pe​r a​da, re​pen​ti​na, a onda de pâ​ni​c o sur​giu, cres​-
ceu e es​c on​deu a ver​da​de. Não ia lem​brar. Ia fu​gir, de​sa​tar a cor​r er para lon​ge
dali, sem sa​ber para onde, sem sa​ber quem era ou onde es​ta​va. Ou​tra cri​se... a
pri​m ei​r a des​de o dia em que Pa​blo fora as​sas​si​na​do, fa​zia já uma se​m a​na. Os
sin​to​m as de sem​pre: di​f i​c ul​da​de para res​pi​r ar, o mun​do em vol​ta su​m in​do como
en​vol​to em ne​bli​na o co​r a​ç ão aos pu​los. E a de​ses​pe​r a​da ur​gên​c ia de es​c a​par. De
cor​r er para sal​var a vida. Fu​gir!
Gin​ger deu as cos​tas à sala e agar​r ou-se à ma​ç a​ne​ta da por​ta como se fos​se
uma ân​c o​r a ca​paz de man​tê-la à tona, sem afun​dar na in​c ons​c i​ê n​c ia e no es​que​-
ci​m en​to. Le​van​tou os olhos e, um pou​c o aci​m a pela por​ta en​vi​dra​ç a​da, a úni​c a a
re​sis​tir à ex​plo​são, viu a pai​sa​gem da pla​ní​c ie. Imen​sa, in​f in​dá​vel... O medo au​-
men​tou. Cres​c eu até qua​se o im​pos​sí​vel. Tal​vez fos​se pre​f e​r í​vel não ver, não
lem​brar, não exis​tir, fu​gir para sem​pre, mer​gu​lhar para sem​pre na es​c u​r i​dão.
Mas ela ain​da lu​ta​va. Agar​r a​da à por​ta, lu​ta​va para não se dei​xar ar​r as​tar, para
não afun​dar no mar de es​c u​r i​dão que se fe​c ha​va ao re​dor. Na sala, a luz aver​m e​-
lha​da co​m e​ç ou a su​m ir e o ru​í​do das pan​c a​das foi si​len​c i​a n​do aos pou​c os.
Gin​ger res​pi​r ou fun​do. Ven​c e​r a a cri​se. Pela pri​m ei​r a vez, re​sis​ti​r a ao medo.
Tal​vez co​m e​ç as​se a apren​der a con​tro​lar-se me​lhor.
Tal​vez o sim​ples fato de es​tar ali, de já não es​tar so​zi​nha e po​der pen​sar no
que acon​te​c e​r a, sem o medo de sen​tir-se só, sem a sen​sa​ç ão de es​tar en​lou​que​-
cen​do... tal​vez al​gum des​ses fa​to​r es, ou um pou​c o de to​dos, lhe des​se for​ç as para
re​sis​tir. Tal​vez sua nova fa​m í​lia a aju​das​se. De qual​quer modo, ven​c i​da a pri​m ei​-
ra cri​se, se​r ia mais fá​c il en​f ren​tar ou​tras que pu​des​sem sur​gir. O medo de nun​c a
po​der lem​brar-se era, ago​r a, uma ame​a ​ç a mais se​r ia do que o medo de of​tal​-
mos​c ó​pi​os, pias ou lu​vas pre​tas. Por​que ago​r a sa​bia: que​r ia lem​brar, e ti​nha de
con​se​guir!
Ain​da trê​m u​la, vi​r ou-se de novo para o cen​tro da sala.
Zon​zo, Cro​nin di​r i​gia-se para o sofá, aos tro​pe​ç ões, mui​to pá​li​do. Já não se
viam os anéis, nem em suas mãos nem nas de Dom. Er​nie rom​peu o si​lên​c io:
— Foi a mes​m a luz, pa​dre? — per​gun​tou. — A mes​m a que o se​nhor viu em
seu quar​to?
— A mes​m a. E a se​gun​da vez que a vejo.
— Mas o se​nhor dis​se que era uma vi​são... agra​dá​vel...
— Do modo como fa​lou, pa​r e​c ia lin​da! — re​f or​ç ou Fay e.
— E lin​da... até fi​c ar ver​m e​lha — Bren​dan ex​pli​c ou. — En​tão me faz es​-
tre​m e​c er de medo. Mas como é bela no co​m e​ç o! Eu me sin​to fe​liz, mui​to fe​liz.
Uma es​pé​c ie de fe​li​c i​da​de que nun​c a sen​ti an​tes.
O medo da luz ver​m e​lha e o hor​r or das pan​c a​das qua​se fi​ze​r am Gin​ger es​-
que​c er a pri​m ei​r a luz, es​bran​qui​ç a​da, des​lum​bran​te.
Es​f re​gan​do as mãos na cal​ç a, como se qui​ses​se apa​gar os úl​ti​m os ves​tí​gi​os
dos anéis, Dom res​pi​r ou fun​do e de​c la​r ou:
— O que acon​te​c eu na​que​la noi​te teve duas par​tes, di​ga​m os... Como o pri​-
mei​r o e o se​gun​do ato de uma peça te​a ​tral. Um é bom, bo​ni​to; o ou​tro é ter​r í​vel e
nos en​c he de medo. Que​r e​m os nos lem​brar ape​nas da par​te boa, por​que a ou​tra
nos dei​xa apa​vo​r a​dos...
— ... bor​r a​dos de medo! — Er​nie ajun​tou.
Ao fun​do, Sandy ain​da tre​m ia. Ela, que até aque​le mo​m en​to pen​sa​r a ape​nas
no pri​m ei​r o ato, na par​te boa...
Ao fim do en​ter​r o de Alan Ry koff, às onze ho​r as da ma​nhã de se​gun​da-fei​r a,
em Las Ve​gas, o sol co​m e​ç a​va a atra​ves​sar as pe​sa​das nu​vens de chu​va que se
acu​m u​la​vam des​de cedo. De lon​ge, viam-se pon​tos de luz so​lar so​bre a ci​da​de e
mes​m o no ce​m i​té​r io já bri​lha​vam os pri​m ei​r os e tí​m i​dos rai​os ama​r e​la​dos.
Quan​do o cai​xão bai​xou à se​pul​tu​r a, uma ou ou​tra flor pa​r e​c ia mais co​lo​r i​da,
como uma pe​que​na cin​ti​la​ç ão nas som​bras da ma​nhã.
Jun​to ao tú​m u​lo, além de Jor​j a e de Paul Ry koff, pai do mor​to, ha​via mais
cin​c o pes​so​a s. Os pais de Jor​j a não qui​se​r am ir ao en​ter​r o. Ego​ís​ta, in​di​f e​r en​te a
tudo e a to​dos, Alan con​se​gui​r a ape​nas uma min​gua​da meia dú​zia de pes​so​a s in​-
te​r es​sa​das em vê-lo par​tir do mun​do dos vi​vos. Pa​r e​c i​do com o fi​lho em mui​tos
as​pec​tos, Paul Ry koff cul​pa​va a ex-nora pela des​gra​ç a de Alan e des​pe​dia-se do
mor​to sem der​r a​m ar uma lá​gri​m a.
Jor​j a ain​da não con​se​gui​r a cho​r ar, até dei​xar o ce​m i​té​r io, to​m ar o car​r o e
di​r i​gir qua​se um qui​lô​m e​tro. En​tão, sim, afi​nal dei​xou ro​la​r em as pou​c as lá​gri​-
mas que guar​da​va. Não por Alan, pelo so​f ri​m en​to dele, por si mes​m a ou por Ma​-
reie, mas pe​los so​nhos que aca​len​ta​r a, tan​to tem​po an​tes, pe​las es​pe​r an​ç as man​-
ti​das, pe​las pro​m es​sas de fe​li​c i​da​de tro​c a​das. Ja​m ais de​se​j a​r a que Alan mor​r es​-
se... Mas, na​que​le ins​tan​te, co​m e​ç a​va a des​c o​brir que era me​lhor as​sim. Me​lhor
para ela, por re​c o​m e​ç ar a vi​ver, e me​lhor para Ma​r eie, que não se​r ia obri​ga​da a
con​vi​ver com um pai frio e au​sen​te. Um pai mor​to é me​lhor que um mau pai,
pen​sou, sem se sen​tir cul​pa​da. Sen​tia-se, isso sim, tris​te como nun​c a.
Na vés​pe​r a, con​ta​r a a Ma​r eie que Alan es​ta​va mor​to, po​r ém omi​tiu o de​ta​-
lhe do sui​c í​dio. De​c i​di​r a dar-lhe a no​tí​c ia à tar​de, na pre​sen​ç a do dr. Co​verly,
mas em fun​ç ão da vi​a ​gem can​c e​la​r a a con​sul​ta e, por con​se​guin​te, an​te​c i​pa​r a a
re​ve​la​ç ão. A tar​de, na​que​le mes​m o dia, ela e a fi​lha em​bar​c a​r i​a m para Elko, ao
en​c on​tro de Do​m i​nick Cor​vai​sis, de Gin​ger Weiss e dos ou​tros.
Ma​r eie re​a ​gi​r a sem mui​tas lá​gri​m as. Aos sete anos, pa​r e​c ia ma​du​r a o su​f i​c i​-
en​te para en​ten​der a mor​te, mas era ain​da mui​to jo​vem para sa​ber o que ha​via
de ir​r e​ver​sí​vel e trá​gi​c o por trás dela. Ao aban​do​ná-la sem des​pe​dir-se, Alan fi​-
ze​r a um gran​de fa​vor à fi​lha... pois, ao re​c e​ber a no​tí​c ia, Ma​r eie sen​tiu-se como
se ti​ves​se per​di​do al​guém que já não exis​tia há mui​to tem​po. Um mor​to pelo qual
já cho​r a​r a bas​tan​te.
Ou​tro de​ta​lhe aju​da​r a-a a su​pe​r ar a tris​te​za: o ál​bum de luas. Me​nos de uma
hora de​pois de sa​ber que Alan es​ta​va mor​to, Ma​r eie sen​tou-se à mesa da co​zi​-
nha, os olhos se​c os, a pon​ti​nha da lín​gua ro​sa​da apa​r e​c en​do en​tre os den​tes, con​-
cen​tra​dís​si​m a em pin​tar suas luas ver​m e​lhas. Des​de sex​ta-fei​r a não fa​zia ou​tra
coi​sa se​não pin​tar luas, ta​r e​f a que lhe ocu​pou tam​bém o fim de se​m a​na. Na ma​-
nhã de se​gun​da, ti​nha mais de cin​qüen​ta luas pin​ta​das.
A ob​ses​são de Ma​r eie pre​o​c u​pa​r ia Jor​j a mes​m o que ela não sou​bes​se de ou​-
tros na mes​m a si​tu​a ​ç ão, mes​m o que ig​no​r as​se que dois ho​m ens co​m e​te​r am sui​-
cí​dio de​pois de se​m a​nas de fi​xa​ç ão do​e n​tia na Lua, co​le​c i​o​nan​do fo​tos e so​nhan​-
do com ela. Nem se fos​se cega dei​xa​r ia de ver que a fi​lha cada dia mais se dis​-
tan​c i​a ​va da re​a ​li​da​de, des​li​gan​do-se do mun​do real, apro​xi​m an​do-se da ali​e ​na​-
ção to​tal, da lou​c u​r a ou da in​c ons​c i​ê n​c ia.
A lem​bran​ç a de Ma​r eie, como sem​pre, a fez se​c ar as úl​ti​m as lá​gri​m as que
cho​r a​r ia por Alan. Deu par​ti​da no car​r o, vol​tou à es​tra​da e ru​m ou para a casa
dos pais, onde a fi​lha a es​pe​r a​va. En​c on​trou-a na co​zi​nha, di​a n​te do ál​bum, co​lo​-
rin​do luas como sem​pre. À sua che​ga​da, a me​ni​na mal le​van​tou os olhos, sor​-
riu sem en​tu​si​a s​m o e vol​tou a con​c en​trar-se nos de​se​nhos.
Em fren​te à neta, do ou​tro lado da mesa, Pete fran​zia as so​bran​c e​lhas. Jor​j a
foi até o quar​to da mãe para tro​c ar de rou​pa e pre​pa​r ar-se para a vi​a ​gem. Mary
se​guiu-a.
— O que está es​pe​r an​do para ti​r ar esse li​vro de Ma​r eie? — per​gun​tou. —
Pre​f e​r e que eu mes​m a me en​c ar​r e​gue dis​so?
— Ma​m ãe... já lhe con​tei o que o dou​tor Co​verly dis​se... se in​sis​tir​m os em
ti​r ar-lhe o li​vro, o re​sul​ta​do pode ser mui​to pe​r i​go​so.
— Bo​ba​gem!
— O dou​tor Co​verly dis​se que não de​ve​m os dar ex​c es​si​va im​por​tân​c ia ao
li​vro, nem dei​xar Ma​r eie per​c e​ber que es​ta​m os pre​o​c u​pa​das. Ele...
— Bo​ba​gens e mais bo​ba​gens. Quan​tos fi​lhos tem o dou​tor Co​verly ?
— Não sei.
— Apos​to que não tem fi​lhos. Se ti​ves​se, não di​r ia ta​m a​nha as​nei​r a.
Sem o ves​ti​do do en​ter​r o, ape​nas de cal​c i​nha e su​tiã, Jor​j a sen​tia-se tão vul​-
ne​r á​vel como nos tem​pos em que a mãe ia para seu quar​to fis​c a​li​zar cada de​ta​-
lhe da rou​pa que ela es​c o​lhia para sair com al​gum ra​paz que nun​c a es​ta​va “à sua
al​tu​r a”. Mary não gos​ta​va de ne​nhum de seus na​m o​r a​dos, e isso se tor​nou um
dos prin​c i​pais mo​ti​vos que le​va​r am Jor​j a a ca​sar com Alan. Ca​sa​r a só para vin​-
gar-se da mãe... Que lou​c u​r a! Como lhe cus​ta​r a caro... Tudo por cul​pa de Mary,
por cul​pa da​que​le amor opres​si​vo e su​f o​c an​te. Com ges​tos rá​pi​dos, ves​tiu o je​a ns
que es​ta​va so​bre a cama.
— Ma​r eie não quer di​zer por que co​le​c i​o​na es​ses re​c or​tes — Mary in​sis​tiu.
— Ela não sabe. Se exis​te al​gu​m a ra​zão, Ma​r eie a co​nhe​c e tan​to quan​to
nós. E al​gu​m a coi​sa com​pul​si​va, in​c ons​c i​e n​te, es​c on​di​da.
— A me​lhor so​lu​ç ão é ti​r ar-lhe aque​le li​vro.
— Tal​vez... Mais tar​de. Um pas​so de cada vez...
— Se de​pen​des​se de mim, tra​ta​r í​a ​m os dis​so ago​r a.
Duas ma​las de vi​a ​gem es​pe​r a​vam so​bre a cama, qua​se pron​tas. Jor​j a aco​-
mo​dou al​guns úl​ti​m os itens, fe​c hou-as e le​vou-as para o car​r o. Pete di​r i​gia; sen​-
ta​da a seu lado, Mary in​sis​tia sem​pre no mes​m o as​sun​to; no ban​c o de trás, Jor​j a
e Ma​r eie ape​nas ou​vi​a m. De casa ao ae​r o​por​to, a me​ni​na não dis​se pa​la​vra, con​-
cen​tra​da em fo​lhe​a r, da fren​te para trás e de trás para a fren​te, o ál​bum de luas.
Al​guns quar​tei​r ões adi​a n​te de casa, Mary re​sol​veu ata​c ar por ou​tro flan​c o e
pas​sou a fa​lar da re​pen​ti​na vi​a ​gem a Elko. Acha​va a idéia ab​so​lu​ta​m en​te in​c om​-
preen​sí​vel, ab​sur​da, como re​pe​tiu vá​r i​a s ve​zes. Um avi​ã o​zi​nho pe​que​no?! Doze
pas​sa​gei​r os?! Era pe​r i​go​so vi​a ​j ar por es​sas com​pa​nhi​a s pe​que​nas, de pou​c os re​-
cur​sos, com avi​ões ve​lhos e mal​c ui​da​dos! E para que pre​c i​sa​va ir? O fato de ha​-
ver pes​so​a s em Elko com pro​ble​m as se​m e​lhan​tes não que​r ia di​zer nada! Só por​-
que se hos​pe​da​r am no mes​m o mo​tel, vi​vi​a m so​nhan​do com luas? Lou​c u​r a!
— Não gos​tei do que você me con​tou so​bre esse tal Cor​vai​sis. — Pete vi​-
rou-se para trás, pa​r an​do no si​nal ver​m e​lho. — Não que​r o que se en​vol​va com
gen​te des​sa laia.
— Mas... você nem sabe quem é ele! — ar​gu​m en​tou Jor​j a.
— Ah... co​nhe​ç o es​ses es​c ri​to​r es! São to​dos iguais... Li, cer​ta vez, que Nor​-
man Mai​ler pen​du​r ou a mu​lher do lado de fora da ja​ne​la e se​gu​r ou-a pe​los cal​-
ca​nha​r es. E He​m ingway ? Sem​pre me​ti​do em bri​gas de rua...
— Pa​pai... — Jor​j a sus​pi​r ou. — He​m ingway mor​r eu!
— E como po​de​r ia es​tar vivo? Ele ca​vou a pró​pria se​pul​tu​r a, com tan​tas
bri​gas e be​be​dei​r as e dro​gas. Gen​te que es​c re​ve é sem​pre as​sim... Nao que​r o
mi​nha fi​lha en​vol​vi​da nes​sa de​gra​da​ç ão!
— Uma vi​a ​gem des​ne​c es​sá​r ia. Um erro que vai lhe cus​tar caro. — Mary
era in​c an​sá​vel.
Ao des​pe​di​r em-se no ae​r o​por​to, Mary e Pete dis​se​r am-lhe que a ama​vam, e
Jor​j a res​pon​deu do mes​m o modo. In​c rí​vel, ina​c re​di​tá​vel, mas pura ver​da​de. Por
mais que a ator​m en​tas​sem, Jor​j a os ama​va e sa​bia que eles tam​bém não men​ti​-
am so​bre o afe​to que lhe de​di​c a​vam. Era em nome des​se amor que vi​vi​a m cri​ti​-
can​do-a. Que es​pan​to​so mis​té​r io, a re​la​ç ão en​tre pais e fi​lhos! Mais es​pan​to​so,
tal​vez, que o se​gre​do do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de.
O avi​ã o era bem mais con​f or​tá​vel do que Mary ima​gi​na​va, com seis fi​lei​r as
de as​sen​tos es​to​f a​dos de cada lado, to​dos equi​pa​dos com fo​nes para ou​vir mú​si​-
ca. O pi​lo​to ma​no​bra​va o apa​r e​lho com ca​r i​nho, como se con​du​zis​se um car​r i​-
nho de bebê.
Trin​ta mi​nu​tos de​pois da de​c o​la​gem, Ma​r eie fe​c hou o ál​bum e aco​m o​dou-se
para dor​m ir, em​ba​la​da pelo ron​c o su​a ​ve dos mo​to​r es. Jor​j a mer​gu​lhou em pen​-
sa​m en​tos so​bre o fu​tu​r o: a uni​ver​si​da​de, a es​pe​r an​ç a de mon​tar sua pró​pria bu​ti​-
que, o mui​to que ain​da te​r ia de tra​ba​lhar para che​gar lá... e a so​li​dão. Pre​c i​sa​va
de um ho​m em, e não ape​nas se​xu​a l​m en​te. De​pois da se​pa​r a​ç ão, ti​ve​r a al​guns
en​c on​tros, mas to​dos dis​tan​tes da cama. Sen​tia-se só, sen​tia von​ta​de de ter um
ho​m em em casa, à noi​te. Que​r ia um
com​pa​nhei​r o, um par​c ei​r o com que pu​des​se di​vi​dir os so​nhos, as vi​tó​r i​a s e os
fra​c as​sos.
Ao som da or​ques​tra de Man​to​va​ni que lhe che​ga​va pe​los fo​nes, dei​xou-se
em​ba​lar pela fan​ta​sia. Lá, no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, en​c on​tra​r ia um ho​m em mui​to
es​pe​c i​a l, que a fa​r ia re​vi​ver. Lem​brou-se da voz gen​til de Do​m i​nick Cor​vai​sis, e o
ho​m em de sua fan​ta​sia as​su​m iu um ros​to ima​gi​ná​r io, que bem po​de​r ia ser o
dele. E se Dom fos​se o “ho​m em de sua vida”, o que di​r ia Pete? Um es​c ri​tor, um
de​pra​va​do que bri​ga, bebe, toma dro​gas... e pen​du​r a mu​lhe​r es pe​los cal​c a​nha​r es
do alto dos ar​r a​nha-céus...
O avi​ã o pou​sou su​a ​ve​m en​te. E pou​c o de​pois Jor​j a foi obri​ga​da a fa​zer al​te​-
ra​ç ões drás​ti​c as nos so​nhos que aca​len​ta​r a du​r an​te a vi​a ​gem, pois bas​tou olhar
para Do​m i​nick Cor​vai​sis para per​c e​ber que o co​r a​ç ão dele já ti​nha dona.
Ás qua​tro e trin​ta, meia hora an​tes do cre​pús​c u​lo, o céu es​ta​va en​c o​ber​to de
nu​vens es​c u​r as, com um dis​tan​te to​que aver​m e​lha​do so​bre os mon​tes de Ruby,
mui​to ao lon​ge. Um ven​to frio so​pra​va com for​ç a, ge​lan​do os os​sos, pro​van​do
que Las Ve​gas fi​c a​r a para trás, como se fos​se par​te de ou​tro mun​do.
Cor​vai​sis e Gin​ger Weiss es​pe​r a​vam-na jun​to à pis​ta do pe​que​no ae​r o​por​to.
As​sim que o viu, Jor​j a sen​tiu-se como se, afi​nal, en​c on​tras​se sua ver​da​dei​r a fa​-
mí​lia. Al​gu​m a coi​sa pa​r e​c i​da com o que Cor​vai​sis lhe dis​se​r a ao te​le​f o​ne, mas
que só en​ten​deu per-fei​ta​m en​te ao de​sem​bar​c ar do avi​ã o.
Até Ma​r eie pa​r e​c ia en​vol​vi​da no cli​m a de so​li​da​r i​e ​da​de que cer​c a​va o gru​-
po, ain​da reu​ni​do na pis​ta. Os olhos ver​m e​lhos e in​c ha​dos de sono, o ros​to es​c on​-
di​do pelo ca​c he​c ol, o gor​r o de lã en​f i​a ​do até as ore​lhas, a me​ni​na pa​r e​c ia des​-
per​tar de um tran​se. Sor​r iu para Gin​ger e res​pon​deu a tudo que ela lhe dis​se com
um en​tu​si​a s​m o que Jor​j a não via des​de há al​guns dias. Ofe​r e​c eu-se para mos​-
trar-lhe o ál​bum de luas e riu, fe​liz, quan​do Do​m i​nick pe​gou-a no colo para levá-
la até o car​r o.
Foi óti​m o ter vin​do, Jor​j a pen​sou. Gra​ç as a Deus!
Do​m i​nick ia à fren​te, com Ma​r eie nos bra​ç os, e as duas mu​lhe​r es se​gui​a m-
no a al​guns pas​sos de dis​tân​c ia.
— Tal​vez não se lem​bre — Jor​j a co​m en​tou, sor​r in​do —, mas você so​c or​-
reu Ma​r eie na​que​la sex​ta-fei​r a de ju​lho, an​tes de che​gar​m os ao mo​tel.
— Sim? — Gin​ger per​gun​tou, sur​pre​sa. — Não me lem​bro... — Ca​lou-se,
for​ç an​do a me​m ó​r ia, e, ao fim de al​guns ins​tan​tes, ex​c la​m ou: — Cla​r o! Era
você, seu ex-ma​r i​do e Ma​r eie. Sim, ago​r a me lem​bro...
— Es​tá​va​m os pa​r a​dos na ro​do​via, a uns dez qui​lô​m e​tros do mo​tel. — Jor​j a
con​ti​nuou. — A vis​ta era tão bo​ni​ta que re​sol​ve​m os ti​r ar umas fo​tos.
— Eu vi​nha do les​te. Vi vo​c ês lá. Você se​gu​r a​va a má​qui​na, seu ma​r i​do e
Ma​r eie es​ta​vam de pé na gra​de de pro​te​ç ão, dan​do as cos​tas para o bar​r an​c o.
— Eu pedi a Alan que não su​bis​se, nem dei​xas​se a me​ni​na su​bir. Mas ele
era tei​m o​so... quan​do re​sol​via uma coi​sa, não vol​ta​va atrás.
An​tes que Jor​j a ba​tes​se a foto, Ma​r eie es​c or​r e​ga​r a e ca​í​r a de cos​tas, ro​lan​do
pelo bar​r an​c o. Jor​j a e Alan gri​ta​r am e cor​r e​r am para acu​dir a fi​lha, quan​do uma
voz des​c o​nhe​c i​da os de​te​ve:
— Não to​que nela! Sou mé​di​c a!
Era Gin​ger, des​c en​do o bar​r an​c o ain​da mais de​pres​sa que os pais da me​ni​na.
Ma​r eie es​ta​va ca​í​da, e Gin​ger ajo​e ​lha​r a-se no chão para exa​m i​nar-lhe a ca​be​ç a.
As​sus​ta​da, a ga​r o​ta pu​se​r a-se a cho​r ar, di​zen​do que a per​na doía e a ca​be​ç a es​ta​-
va bem. Gin​ger apal​pa​r a-lhe a per​na di​r ei​ta, de​pois a ou​tra, e sor​r i​r a: “Caso gra​-
ve de jo​e ​lho es​f o​la​do. Com um pou​c o de mer​c u​r o​c ro​m o você es​ta​r á óti​m a!”
Re​c or​dan​do o epi​só​dio, Jor​j a de​c la​r ou que, na oca​si​ã o, an​da​va pre​c i​san​do de
um bom exem​plo.
—- Quan​do vi você, jo​vem, bo​ni​ta, ele​gan​te... e mé​di​c a... mé​di​c a de​di​c a​-
da... foi como uma re​ve​la​ç ão! Sem​pre achei que eu nun​c a se​r ia nada além de
gar​ç o​ne​te... Mais tar​de, quan​do Alan me aban​do​nou, lem​brei-me de você... e re​-
sol​vi que que​r ia ser como você. Que​r ia lu​tar como você para fa​zer de mim mes​-
ma o que bem de​se​j as​se. E o pri​m ei​r o pas​so foi en​trar na fa​c ul​da​de. Veja que,
de cer​to modo, você mu​dou mi​nha vida.
Jor​j a co​lo​c ou a ba​ga​gem no car​r o. Gin​ger fe​c hou o por​ta-ma​las, es​pe​r ou
que Dom aco​m o​das​se Ma​r eie e en​tre​gou-lhe as cha​ves.
— Fico mui​to or​gu​lho​sa, mas não acre​di​to — de​c la​r ou. — Nin​guém muda
a vida de nin​guém. Foi você que re​sol​veu lu​tar... e está ven​c en​do. O mé​r i​to é todo
seu.
— Nao, se​nho​r a, foi o que você fez por Ma​r eie na​que​le dia. O que mu​dou
mi​nha vida foi ver uma mu​lher como você. Por​que eu pre​c i​sa​va só de um bom
exem​plo. E você apa​r e​c eu na hora exa​ta.
— Não me​r e​ç o isso! Não diga bo​ba​gens... — Gin​ger dis​f ar​ç ou o em​ba​r a​ç o
com uma gar​ga​lha​da.
— Não li​gue — dis​se Dom, vol​tan​do-se para Jor​j a. Ela é o me​lhor exem​-
plo para qual​quer mu​lher. O que está di​zen​do são shmont​ses !
— Shmont​ses}\ — Gin​ger re​pe​tiu, sem​pre rin​do.
— Nós, es​c ri​to​r es, te​m os um ví​c io pro​f is​si​o​nal: nun​c a es​que​c e​m os uma
boa pa​la​vra; pode ser em ídi​c he, em gre​go, em chi​nês...
Nes​te exa​to mo​m en​to Jor​j a des​c o​briu que não po​dia in​c luir Do​m i​nick em
suas fan​ta​si​a s, pois ele só ti​nha olhos para Gin​ger. E a lin​da dou​to​r a pa​r e​c ia en​-
can​ta​da... Mas nem um nem ou​tro dava si​nais de per​c e​ber que es​ta​vam apai​xo​-
na​dos. Tal​vez ain​da fos​se cedo. Com o tem​po...
Par​ti​r am na di​r e​ç ão de Elko, rumo ao Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, me​nos de cin​-
qüen​ta qui​lô​m e​tros adi​a n​te. Pelo ca​m i​nho, Gin​ger e Dom fo​r am con​tan​do a Jor​-
ja os úl​ti​m os acon​te​c i​m en​tos, e a cada fato o bom hu​m or da che​ga​da di​m i​nu​ía.
En​quan​to o car​r o per​c or​r ia a pai​sa​gem es​c u​r a, Jor​j a via dis​si​par-se ra​pi​da​m en​te
a es​pe​r an​ç a de en​c on​trar no mo​tel o ho​m em de sua vida; cada vez mais pa​r e​c ia-
lhe que se apro​xi​m a​va de uma imen​sa cova rasa, vala co​m um dos so​nhos de vá​-
ri​os ami​gos.
Logo que che​gou a Salt Lake City, Utah, Jack Twist to​m ou ou​tro avi​ã o pi​lo​ta​-
do por um ho​m em ca​la​do, de enor​m e bi​go​de es​c u​r o. Às qua​tro e cin​qüen​ta e
três, mi​nu​tos an​tes de anoi​te​c er, de​sem​bar​c ou no pe​que​no ae​r o​por​to de Elko.
Con​f or​m e pre​vi​r a, não en​c on​trou ali ne​nhu​m a lo​c a​do​r a de au​to​m ó​veis e to​m ou
um táxi, pe​din​do ao mo​to​r is​ta que o le​vas​se a um re​ven​de​dor de ve​í​c u​los usa​dos.
Se​gun​dos an​tes de a loja fe​c har, con​se​guiu com​prar, pa​gan​do a vis​ta, um pos​san​-
te jipe com tra​ç ão nas qua​tro ro​das.
Até aque​le mo​m en​to, não se mos​tra​r a pre​o​c u​pa​do com a pos​si​bi​li​da​de de
que al​guém o es​ti​ves​se se​guin​do. Não es​que​c e​r a, po​r ém, que en​f ren​ta​va gen​te
po​de​r o​sa, de re​c ur​sos qua​se in​f i​ni​tos, a quem não se​r ia fá​c il en​ga​nar, prin​c i​pal​-
men​te nos li​m i​tes de uma ci​da​de pe​que​na como Elko. As​sim, mal se afas​tou da
loja, pela pri​m ei​r a vez con​c en​trou-se em ob​ser​var os ar​r e​do​r es. Sem​pre olhan​do
pelo es​pe​lho re​tro​vi​sor, ro​dou vá​r i​os qui​lô​m e​tros até ter cer​te​za de que não ha​via
nin​guém em seus cal​c a​nha​r es.
Na vi​a ​gem de táxi do ae​r o​por​to até o re​ven​de​dor de car​r os, vira um su​per​-
mer​c a​do, e di​r i​giu-se para lá. Pa​r ou num dos can​tos me​nos ilu​m i​na​dos do es​ta​c i​-
o​na​m en​to, des​c eu e olhou em vol​ta, exa​m i​nan​do a rua es​c u​r a que se es​ten​dia a
sua fren​te. Não viu nin​guém. En​trou no su​per​m er​c a​do, meio ofus​c a​do pelo mar
de lâm​pa​das fluo​r es​c en​tes e pe​los dis​plays de neon co​lo​r i​do, e ba​lan​ç ou a ca​be​-
ça, sau​do​so dos bons tem​pos da pe​que​na con​f ei​ta​r ia da es​qui​na, da pro​pri​e ​tá​r ia
gor​da, atrás do bal​c ão, ven​den​do às cri​a n​ç as os bo​li​nhos que ela mes​m a fa​zia, ou
gri​tan​do para o ma​r i​do, com so​ta​que es​tran​gei​r o, para que ser​vis​se um dos san​-
du​í​c hes que ele in​ven​ta​va. Sen​tin​do chei​r o de de​sin​f e​tan​te, Jack sus​pi​r ou. Adeus
con​f ei​ta​r ia da es​qui​na; o país es​ta​va inun​da​do de su​per​m er​c a​dos, lâm​pa​das fluo​-
res​c en​tes, neon, de​sin​f e​tan​te...
Com​prou um mapa da re​gi​ã o, uma lan​ter​na, lei​te, car​ne de​si​dra​ta​da, cho​c o​-
la​te em bar​r a, ba​las e, ce​den​do a um im​pul​so mór​bi​do e in​c on​tro​lá​vel, um pa​c o​-
te de hamwi​c h. O tex​to im​pres​so na em​ba​la​gem de​f i​nia o pro​du​to como “San​du​í​-
che sin​té​ti​c o, fei​to com pão de fôr​m a, tem​pe​r os e pas​ta de car​ne de​si​dra​ta​da e
vi​ta​m i​na​da, es​pe​c i​a l​m en​te in​di​c a​do para al​pi​nis​tas, aman​tes do cam​ping e es​por​-
tis​tas em ge​r al”. Num qua​dra​do ama​r e​lo meio en​c o​ber​to pela eti​que​ta do pre​ç o,
o fa​bri​c an​te ga​r an​tia: “Car​ne au​tên​ti​c a”!
Jack riu. Eram obri​ga​dos a de​c la​r ar que se tra​ta​va de “car​ne au​tên​ti​c a” por​-
que, olhan​do para o con​te​ú​do do pa​c o​te de plás​ti​c o, qual​quer um ju​r a​r ia que a tal
pas​ta não in​c lu​ía um gra​m a se​quer de car​ne. Hamwi​c h... sím​bo​lo das ver​da​des
na​c i​o​nais pe​las quais lu​ta​r a na Amé​r i​c a Cen​tral! Se Jenny es​ti​ves​se ali, os
dois ha​ve​r i​a m de dar boas ri​sa​das!
Ao sair do su​per​m er​c a​do, no​va​m en​te exa​m i​nou os ar​r e​do​r es e ou​tra vez não
per​c e​beu si​nal de que al​guém o se​guis​se. Vol​tou para o jipe, abriu uma das ma​las
e re​ti​r ou uma sa​c o​la de plás​ti​c o, com uma das ar​m as, um car​tu​c ho de ba​las,
mais uma cai​xa de ba​las ca​li​bre 32 e um si​len​c i​a ​dor. Com ges​tos pre​c i​sos, trans​-
fe​r iu as com​pras do su​per​m er​c a​do para a sa​c o​la de plás​ti​c o e dis​tri​buiu as ba​las
pe​los vá​r i​os bol​sos da ja​que​ta. En​tão aco​m o​dou-se ao vo​lan​te, car​r e​gou a arma e
aco​plou-lhe o si​len​c i​a ​dor; co​lo​c ou-a en​tão so​bre o ban​c o e co​briu-a com a sa​c o​-
la. Sen​tin​do-se mais se​gu​r o, acen​deu a lan​ter​na para exa​m i​nar o mapa que com​-
pra​r a. Mi​nu​tos de​pois, es​ta​va pron​to para en​trar em com​ba​te.
O pri​m ei​r o pas​so era des​pis​tar qual​quer ser vivo que por aca​so es​ti​ves​se no
seu en​c al​ç o, e para tan​to Jack ro​dou du​r an​te mais de cin​c o mi​nu​tos pe​las ruas de
Elko, usan​do to​dos os tru​ques que co​nhe​c ia. Um dos mais efi​c i​e n​tes con​sis​tia em
es​ta​c i​o​nar em lo​c al de pou​c o mo​vi​m en​to e es​pe​r ar. Nin​guém, nem o mais es​per​-
to po​li​c i​a l, es​pi​ã o ou con​tra​ven​tor da Má​f ia, con​se​gui​r ia man​ter-se, ao mes​m o
tem​po, pró​xi​m o o bas​tan​te para vê-lo e lon​ge o bas​tan​te para não ser vis​to. Não
apa​r e​c eu vi​val​m a.
O se​gun​do pas​so era co​lo​c ar em ação os re​c ur​sos tec​no​ló​gi​c os. Es​ta​c i​o​nou
numa rua es​c u​r a, des​lo​c ou-se para a par​te tra​sei​r a do Jipe e de uma das ma​las
re​ti​r ou o re​c ep​tor de rá​dio usa​do para var​r e​du​r a ele​trô​ni​c a. Pou​c o mai​or que
dois ma​ç os de ci​gar​r os, o apa​r e​lho con​se​guia cap​tar qual​quer emis​são de rá​dio,
em fre-qüên​c ia al​ter​na​da ou mo​du​la​da. Na hi​pó​te​se pou​c o pro​vá​vel, mas não
im​pos​sí​vel, de que al​guém hou​ves​se ins​ta​la​do no jipe um equi​pa​m en​to de trans​-
mis​são que lhe per​m i​tis​se se​guir o ve​í​c u​lo a dis​tân​c ia, o apa​r e​lho de Jack de​tec​ta​-
ria a fre​qüên​c ia da emis​são e fa​r ia dis​pa​r ar um si​nal de aler​ta. Ele pu​xou a an​te​-
na do rá​dio e
ro​de​ou o jipe, an​dan​do de​va​gar, os olhos e os ou​vi​dos aten​tos. Nada. O ve​í​-
cu​lo es​ta​va lim​po.
Guar​dou o apa​r e​lho e vol​tou ao vo​lan​te. Nin​guém o se​guia, nem de per​to,
nem de lon​ge. Ob​ser​va​ç ão vi​su​a l: “ne​ga​ti​vo”. Var​r e​du​r a: “ne​ga​ti​vo”. E isso sig​-
ni​f i​c a​va que o ini​m i​go, que se dera ao tra​ba​lho de re​c he​a r seus co​f res se​c re​tos
com car​tões-pos​tais do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, de​via sa​ber que ele iria a Ne​va​da.
De​via co​nhe​c er suas ha​bi​li​da​des, seus mil e um re​c ur​sos... Por que o dei​xa​va
pro​gre​dir li​vre​m en​te, dan​do-lhe tem​po para um per​f ei​to re​c o​nhe​c i​m en​to do ter​-
re​no onde o com​ba​te se tra​va​r ia? Não ha​via ex​pli​c a​ç ão ra​zo​á ​vel, e Jack fran​ziu
as so​bran​c e​lhas, o ins​tin​to di​zen​do-lhe para to​m ar cui​da​do.
Des​de que sa​í​r a de Nova York, ti​ve​r a tem​po para ana​li​sar a si​tu​a ​ç ão e che​-
ga​r a a al​gu​m as con​c lusões quan​to à iden​ti​da​de do ini​m i​go. Ago​r a, ao vo​lan​te do
jipe, che​gan​do à toca da onça, as coi​sas pa​r e​c i​a m-lhe cada vez mais es​tra​nhas.
Item um: era inex​pli​c á​vel que nin​guém o se​guis​se. Item dois: ele fora trei​na​-
do para sem​pre des​c on​f i​a r de fa​tos inex​pli​c á​veis. Pela sim​ples e boa ra​zão de
que, quan​do uma si​tu​a ​ç ão pa​r e​c e inex​pli​c á​vel, o mí​ni​m o que se pode di​zer é que
al​gum de​ta​lhe im​por​tan​te — ge​r al​m en​te o mais im​por​tan​te — foi dei​xa​do de
lado. E quan​do es​c a​pa o de​ta​lhe mais im​por​tan​te de uma si​tu​a ​ç ão de com​ba​te
co​m e​ç a-se a com​ba​ter no es​c u​r o... Cor​r e-se o ris​c o de le​var um tiro pe​las cos​tas.
Cada vez mais aler​ta, Jack to​m ou o rumo nor​te, sain​do de El-ko na di​r e​ç ão da
Ro​do​via 51. Pou​c o adi​a n​te, do​brou à es​quer​da, saiu da es​tra​da e se​guiu por uma
tri​lha es​trei​ta e pe​dre​go​sa que ia dar nos fun​dos do mo​tel. Quan​do a Lua sur​giu,
des​li​gou os fa​r óis e gui​ou-se ape​nas pelo bran​c o-pra​te​a ​do do luar.
Ao al​c an​ç ar o topo de uma co​li​na, viu o bri​lho de três ou qua​tro ja​ne​las ilu​-
mi​na​das, per​di​das na vas​ta es​c u​r i​dão da noi​te. Do ou​tro lado, à sua fren​te, a Ro​-
do​via 80. Pou​c as lu​zes... O Mo​tel Tran​qüi​li​da​de es​ta​va sem mo​vi​m en​to, ou fe​-
cha​do. Dali em di​a n​te, Jack se​guiu a pé, in​vi​sí​vel e si​len​c i​o​so bi​c ho da noi​te.
Dei​xou a pri​m ei​r a arma no jipe e le​vou a sub​m e​tra​lha​do​r a. Na ver​da​de, não
acha​va que pre​c i​sa​r ia dela, pelo me​nos por en​quan​to. Fos​se quem fos​se seu ini​-
mi​go, não o te​r ia atra​í​do para tão lon​ge ape​nas para matá-lo. Se o qui​ses​se mor​-
to, uma úni​c a bala em Nova York des​per​ta​r ia me​nos aten​ç ão que um ca​dá​ver ali,
ex​pos​to ao sol de Ne​va​da. Pelo sim, pelo não, a sub​m e​tra​lha​do​r a era como que
uma ex​ten​são de sua mão di​r ei​ta.
Além da arma e de uma car​tu​c hei​r a car​r e​ga​da, Jack apa​nhou a sa​c o​la de
co​m i​da, o mi​c ro​f o​ne di​r e​c i​o​nal por​tá​til e o bi​nó​c u​lo de vi​são in​f ra​ver​m e​lha. Co​-
lo​c ou as lu​vas e ves​tiu um ca​sa​c o com ca​puz.
A ca​m i​nha​da lhe fez bem. O frio e o ven​to re​vi​go​r a​r am-lhe as for​ç as. Mi​li​tar
me​tó​di​c o, ele se pre​pa​r a​r a para an​dar. Já sa​í​r a de Nova York com as bo​tas de
cano alto e sola de bor​r a​c ha, per​nei-ras e je​a ns, su​é ​ter gros​so e ja​que​ta de cou​r o
for​r a​da. Os tri​pu​lan​tes do avi​ã o ar​r e​ga​la​r am os olhos ao vê-lo apa​r e​c er ves​ti​do
da​que​le modo, mas tra​ta​r am-no como se ele es​ti​ves​se de ter​no, gra​va​ta e cha​-
péu. Cla​r o! Mes​m o os ho​m ens fei​os, ves​gos, ves​ti​dos como es​ti​va​do​r es si​be​r i​a ​nos
me​r e​c i​a m tra​ta​m en​to de pri​m ei​r a clas​se quan​do eram ri​c os o bas​tan​te para alu​-
gar um jato par​ti​c u​lar...
Jack con​ti​nuou an​dan​do. As ve​zes, as nu​vens en​c o​bri​a m a Lua. As ve​zes, ela
bri​lha​va com todo es​plen​dor, ilu​m i​nan​do as man​c has de neve que se acu​m u​la​-
vam no chão como os​sos de al​gu​m a gi​gan​tes​c a car​c a​ç a ca​í​da das mon​ta​nhas. A
ter​r a cres​ta​da, as pe​dras, os ar​bus​tos se​c os, tudo se trans​f i​gu​r a​va à luz pra​te​a ​da.
Até que ou​tras nu​vens vol​ta​vam a en​c o​brir a Lua, e o mun​do mer​gu​lha​va de
novo na es​c u​r i​dão den​sa e pe​sa​da.
Por fim, Jack che​gou a um pon​to que lhe pa​r e​c eu per​f ei​to. Uma ele​va​ç ão de
ter​r e​no, a pou​c o mais de qua​tro​c en​tos me​tros dos fun​dos do mo​tel. Sen​tou-se, co​-
lo​c ou a sub​m e​tra​lha​do​r a e a sa​c o​la so​bre os jo​e ​lhos.
O bi​nó​c u​lo en​trou em ação, am​pli​f i​c an​do a luz lo​c al oi​ten​ta e cin​c o mil ve​-
zes, de modo que Jack en​xer​ga​va tudo ni​ti​da​m en​te como se fos​se ple​no dia. Com
os co​to​ve​los apoi​a ​dos nos jo​e ​lhos, o bi​nó​c u​lo jun​to ao ros​to, vi​r ou-se na di​r e​ç ão
das ja​ne​las do mo​tel. Pri​m ei​r a ques​tão: guar​das, vi​gi​a s, se​gu​r an​ç a ex​ter​na, ar​-
ma​da ou não. Pri​m ei​r a res​pos​ta: ne​ga​ti​vo. Não ha​via ja​ne​las nos fun​dos do pré​-
dio, nem can​tos es​c u​r os onde al​guém pu​des​se es​c on​der-se. Na par​te cen​tral, lo​-
ca​li​zou o que pro​va​vel​m en​te era a casa dos pro​pri​e ​tá​r i​os. Ali, sim, ha​via luz. Mas
as cor​ti​nas fe​c ha​das im​pe​di​a m-no de ver o in​te​r i​or.
Jack dei​xou o bi​nó​c u​lo de lado e apa​nhou o mi​c ro​f o​ne di​r e​c i​o​nal, es​tra​nho e
ele​gan​te como uma arma de guer​r ei​r os es​pa​c i​a is. Até pou​c os anos an​tes, mi​c ro​-
fo​nes des​se tipo ti​nham al​c an​c e de pou​c os me​tros; o pro​gres​so re​c en​te tor​na​va-
os ca​pa​zes de am​pli​f i​c ar, a pon​to de tor​nar ple​na​m en​te au​dí​vel, qual​quer som
emi​ti​do por uma fon​te lo​c a​li​za​da à dis​tân​c ia de qui​nhen​tos me​tros ou mais, no
caso de per​f ei​tas con​di​ç ões de ope​r a​ç ão. O apa​r e​lho in​c lu​ía dois gran​des fo​nes
de ou​vi​do, que Jack pren​deu à ca​be​ç a. Di​r e​c i​o​nou o mi​c ro​f o​ne para uma das ja​-
ne​las, aci​o​nou um bo​tão e logo co​m e​ç ou a ou​vir vo​zes ani​m a​das. Mas o som
che​ga​va-lhe com mui​ta in​ter​f e​r ên​c ia, por​que ha​via as cor​ti​nas, o ven​to for​te e os
qua​se qui​nhen​tos me​tros de dis​tân​c ia. Ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a, Jack le​van​tou-se,
apa​nhou a sa​c o​la e a sub​m e​tra​lha​do​r a e apro​xi​m ou-se do mo​tel, es​c o​lhen​do ou​-
tro pon​to de es​c u​ta, du​zen​tos me​tros à fren​te. Des​sa vez, pôde ou​vir tudo que se
di​zia no pri​m ei​r o an​dar da par​te cen​tral. Cin​c o vo​zes di​f e​r en​tes... tal​vez mais. Es​-
ta​vam jan​tan​do, elo​gi​a n​do o co​zi​nhei​r o, al​guém cha​m a​do Ned e sua au​xi​li​a r,
Sandy. Fa​la​vam de peru, do re​c hei​r o de pas​sas.
— Des​gra​ç a​dos... — res​m un​gou. — Não é jan​tar... Es​tão ten​do um ban​que​-
te!
Co​m e​r a bem no avi​ã o, mas, ain​da con​di​c i​o​na​do ao fuso ho​r á​r io do Les​te,
seu es​tô​m a​go mar​c a​va onze da noi​te e ron​c a​va de fome. Com cer​te​za pre​c i​sa​r ia
fi​c ar ali mui​to tem​po até des​c o​brir tudo que pu​des​se so​bre aque​las pes​so​a s, e não
pre​ten​dia es​pe​r ar fa​m in​to en​quan​to os ou​tros se em​pan​tur​r a​vam.
Com duas pe​dras, apoi​a ​das uma na ou​tra, Jack cons​truiu um apoio para man​-
ter o mi​c ro​f o​ne di​r e​c i​o​na​do para o mo​tel e apa​nhou o hamwi​c h, “car​ne au​tên​ti​-
ca”. Foi mor​der e cus​pir: ti​nha gos​to de “au​tên​ti​c a” areia fri​ta em ba​c on ran​ç o​so.
Re​sol​veu fi​c ar
com a car​ne de​si​dra​ta​da e o cho​c o​la​te, que lhe pa​r e​c e​r í​a m bem ra​zo​á ​veis se
não ou​vis​se os ras​ga​dos elo​gi​os do ban​que​te.
Três bo​c a​dos mais tar​de, já sa​bia que os co​m ilões não eram os ini​m i​gos que
es​ta​va ten​tan​do lo​c a​li​zar. Es​tra​nho: to​dos fa​la​vam como se ti​ves​sem sido atra​í​dos
para o mo​tel. Como ele. Aos pou​c os, as vo​zes tor​na​vam-se fa​m i​li​a ​r es... Pa​r e​c ia
que Jack co​nhe​c ia aque​las pes​so​a s fa​zia mui​to tem​po... Ti​nha a sen​sa​ç ão de que
o aguar​da​vam...
Uma mu​lher cha​m a​da Gin​ger e um ho​m em de nome Dom fa​la​vam do que
ha​vi​a m des​c o​ber​to nos ar​qui​vos do jor​nal Sen​ti​ne​la. Não... “Va​za​m en​to tó​xi​c o”,
“Blo​queio da ro​do​via”, “Ho​m ens da DERO”... O su​f i​c i​e n​te para ti​r ar o ape​ti​te de
qual​quer um! Jack ba​lan​ç a​va a ca​be​ç a, sem en​ten​der o que sig​ni​f i​c a​r ia aqui​-
lo, até que de re​pen​te pa​r ou.
— DERO! — per​gun​tou a si pró​prio. — DERO! Mas... que mer​da é essa?! —
Co​nhe​c ia os ho​m ens da DERO. Cla​r o! Ver​da​dei​r as fe​r as, ca​pa​zes de lu​tar até
com ur​sos e tran​f or​m á-los em sal​si​c ha. Di​zia-se no sub​m un​do do cri​m e que, se
al​guém ti​ves​se que es​c o​lher en​tre sal​tar da ja​ne​la do dé​c i​m o quin​to an​dar e en​-
fren​tar um cara da DERO, o me​lhor se​r ia pe​dir li​c en​ç a, en​tre​gar a alma a
Deus... e sal​tar. Mor​te rá​pi​da, in​do​lor...
Aos pou​c os, Jack per​c e​bia que se me​te​r a em algo mai​or e mais pe​r i​go​so que
a Má​f ia. Ain​da ti​nha mui​to a des​c o​brir an​tes de en​ten​der com pre​c i​são no que
con​sis​tia aque​la lou​c u​r a, por que to​das as vo​zes cap​ta​das pa​r e​c i​a m con​tar a mes​-
ma his​tó​r ia... To​dos que​r i​a m des​c o​brir o que acon​te​c e​r a num fim de se​m a​na de
ju​lho... do ano re​tra​sa​do! O mes​m o fim de se​m a​na em que ele, Jack, tam​bém
es​ti​ve​r a no mo​tel. Tra​ba​lha​vam jun​tos para des​c o​brir... Mas eram mui​to in​gê​-
nuos! Não po​di​a m con​ti​nu​a r fa​lan​do. Jack teve von​ta​de de gri​tar-lhes que ca​las​-
sem a boca, pois, se es​ta​va ou​vin​do tudo, o ini​m i​go tam​bém po​dia es​tar à es​c u​ta.
E os ca​r as da DERO? Di​f í​c il de en​go​lir. Mais di​f í​c il que meia dú​zia de
hamwi​c hs de “car​ne au​tên​ti​c a”.
Na sala, as vo​zes con​ti​nu​a ​vam ta​ga​r e​lan​do, alhei​a s ao pe​r i​go. Jack le​van​tou-
se de um sal​to, ar​r an​c ou os fo​nes da ca​be​ç a, me​teu o equi​pa​m en​to na sa​c o​la de
nái​lon e dis​pa​r ou a cor​r er pela noi​te, rumo ao Mo​tel Tran​qüi​li​da​de.
O apar​ta​m en​to dos Block não ti​nha sala de jan​tar e a copa era pe​que​na de​-
mais para nove pes​so​a s. As​sim afas​ta​r am para os can​tos a mo​bí​lia, le​va​r am para
lá a mesa da co​zi​nha, abrin​do-a na ca​pa​c i​da​de má​xi​m a. Dom sen​tia-se em casa,
uma casa que nun​c a ti​ve​r a, jan​tan​do com a fa​m í​lia que ja​m ais co​nhe​c e​r a.
Para não ter de re​pe​tir a mes​m a his​tó​r ia vá​r i​a s ve​zes, Gin​ger e Dom de​c i​di​-
ram es​pe​r ar o jan​tar para con​tar ao gru​po as no​vi​da​des do Sen​ti​ne​la. E, ao som
de co​pos e ta​lhe​r es, con​ta​r am que na​que​la sex​ta-fei​r a à noi​te o Exér​c i​to blo​que​a ​-
ra a ro​do​via pelo me​nos al​guns mi​nu​tos an​tes do “va​za​m en​to”; isso sig​ni​f i​c a​va
que os he​li​c óp​te​r os car​r e​ga​dos de mem​bros da DERO ha​vi​a m par​ti​do de suas
ba​ses pelo me​nos meia hora mais cedo. Pro​va de que o Exér​c i​to sa​bia que ia
acon​te​c er um “aci​den​te”.
Par​tin​do o pão, Dom di​zia:
— Se Falkirk e seus ami​gos es​ta​vam bem pró​xi​m os e pu​de​r am as​su​m ir o
con​tro​le da si​tu​a ​ç ão logo que tudo co​m e​ç ou, é cla​r o que o Exér​c i​to sa​bia de tudo.
— E não fez nada?! — Jor​j a le​van​tou os olhos do pra​to em que cor​ta​va o
peru para Ma​r eie.
— Tudo in​di​c a que não pôde fa​zer nada.
— Um ata​que de ter​r o​r is​tas... As​sal​ta​r am o ca​m i​nhão que trans​por​ta​va o
gás, e o avi​so che​gou tar​de de​m ais... — ar​r is​c ou Er​nie.
— Pode ser. Mas um ata​que de ter​r o​r is​tas não jus​ti​f i​c a​r ia o se​gre​do ab​so​lu​-
to que cer​c ou a ope​r a​ç ão — ob​ser​vou Dom, sem se con​ven​c er. — Deve ter sido
ou​tra coi​sa. Ope​r a​ç ões mi​li​ta​r es se​c re​tas, por exem​plo, às quais só os ele​m en​tos
da DERO te​r i​a m aces​so.
Bren​dan co​m ia com o ape​ti​te de seus me​lho​r es dias de fé. En​go​liu o mi​lho
que mas​ti​ga​va e dis​se:
— O fato de o Exér​c i​to es​tar à es​pe​r a de al​gum “aci​den​te” ex​pli​c a por que
ha​via tão pou​c a gen​te na ro​do​via. A es​tra​da foi blo​que​a ​da, para des​vi​a r o trá​f e​go
pe​sa​do, mes​m o an​tes de al​gu​m a coi​sa acon​te​c er.
— Os que es​ta​vam aqui vi​r am o que não era para ver, fo​r am pre​sos e sub​-
me​ti​dos a la​va​gem ce​r e​bral. Nós e ou​tros que não apa​r e​c e​r am ain​da. E que tal​-
vez nun​c a apa​r e​ç am.
Por fim, Dom con​tou-lhes so​bre a des​c o​ber​ta que fi​ze​r am quan​do, de​pois de
mui​to pro​c u​r ar, re​sol​ve​r am exa​m i​nar as edi​ç ões do jor​nal pu​bli​c a​das nos dias
se​guin​tes ao “va​za​m en​to”.
— Há um lu​gar que é ci​ta​do a todo o mo​m en​to — in​f or​m ou.
— Thun​der Hill. Acho que foi lá que tudo acon​te​c eu. O Exér​c i​to usou a
base de Shenk​f i​e ld para des​vi​a r a aten​ç ão do ver​da​dei​r o lo​c al onde os pro​ble​m as
ocor​r e​r am. Esse lo​c al é Thun​der Hill.
Fay e e Er​nie le​van​ta​r am a ca​be​ç a, en​tre​o​lha​r am-se e olha​r am ao re​dor sur​-
pre​sos.
— Thun​der Hill fica aqui per​to — dis​se Fay e. — Uns dez, doze qui​lô​m e​tros
a nor​des​te, nas mon​ta​nhas. O Exérçi​to man​tém uma base lá, uma es​pé​c ie de de​-
pó​si​to ou ar​qui​vo se​c re​to. Do​c u​m en​tos, fi​c has de pes​so​a l... coi​sas as​sim. O que se
diz é que lá es​tão guar​da​das có​pi​a s de to​dos os do​c u​m en​tos mi​li​ta​r es se​c re​tos.
As​sim, no caso de guer​r a nu​c le​a r, por exem​plo, os pa​péis es​ta​r ão pro​te​gi​dos.
— Esse de​pó​si​to, como o cha​m a​m os, já exis​tia quan​do mu​da​m os para cá
— acres​c en​tou Er​nie. — Deve ter mais de vin​te anos. Di​zem os bo​a ​tos que há
ou​tras coi​sas guar​da​das lá, além de sim​ples do​c u​m en​tos. Di​zem que há es​to​ques
de co​m i​da, me​di​c a​m en​tos, ar​m as. Es​to​ques gi​gan​tes​c os, su​f i​c i​e n​tes para man​ter
o Exér​c i​to abas​te​c i​do por mui​to tem​po, mes​m o que as ba​ses mi​li​ta​r es es​pa​lha​das
pelo mun​do se​j am bom​bar​de​a ​das.
— Aí está um lu​gar onde... tudo pode acon​te​c er — Jor​j a es​tre​m e​c eu.
— Tudo... — Ned re​pe​tiu.
— E se​r ia pos​sí​vel que usas​sem esse de​pó​si​to para ou​tros fins?
— Sandy per​gun​tou. — Para... ex​pe​r i​ê n​c i​a s com al​gu​m a nova arma, por
exem​plo?
— E pos​sí​vel. Tam​bém pen​sei nis​so — de​c la​r ou Dom.
— Mas se não hou​ve va​za​m en​to na ro​do​via, se al​gu​m a coi​sa
acon​te​c eu em Thun​der Hill, como e por que fo​m os atin​gi​dos? Es​tá​va​m os a
mais de dez qui​lô​m e​tros de dis​tân​c ia...
Essa per​gun​ta, de Gin​ger, tam​bém não ti​nha res​pos​ta.
Ma​r eie, que nada dis​se​r a du​r an​te o jan​tar, des​c an​sou o gar​f o ao lado do pra​-
to e, sor​r in​do, ob​ser​vou:
— Thun​der Hill quer di​zer “Mor​r o do Tro​vão”. Por quê?
— Viva! Essa eu sei! — ex​c la​m ou Fay e, ba​ten​do pal​m as. — Thun​der Hill
fica num vale en​tre duas mon​ta​nhas; é uma re​gi​ã o de pas​ta​gens, cer​c a​da de
mor​r os al​tos. Quan​do ven​ta for​te, o eco pro​duz ru​í​do in​ten​so, que se re​pe​te en​tre
as mon​ta​nhas e che​ga aqui como se fos​se um tro​vão, des​ses que se ou​vem quan​-
do vai cho​ver. Mas mui​to mais for​te, como se es​ti​ves​se nas​c en​do do chão, não do
céu.
— Puxa! — A me​ni​na fez uma ca​r e​ta. — Eu se​r ia ca​paz de fa​zer pipi na
cal​ç a.
— Ma​r eie! — Jor​j a ten​tou man​ter a dis​c i​pli​na, ape​sar das ri​sa​das ge​r ais.
— Mas é ver​da​de, ma​m ãe! — pro​tes​tou a ga​r o​ta; sem​pre sé​r ia. — Você se
lem​bra do dia em que vovô e vovó fo​r am jan​tar co​nos​c o, e es​ta​va cho​ven​do, e
caiu um raio na ár​vo​r e do quin​tal? E... bum\ Um ba​r u​lhão! E eu fiz pipi na cal​ç a!
— Olhou em vol​ta da mesa, à von​ta​de em sua nova fa​m í​lia. — Foi hor​r í​vel...
— Isso já faz mui​to tem​po — dis​se Jor​j a, rin​do. — Você era pe​que​na...
— Dom... — cha​m ou Er​nie. — Você ain​da não nos con​tou por que acha
que o lo​c al é Thun​der Hill e não Shenk​f i​e ld. O que des​c o​briu no jor​nal?
No Sen​ti​ne​la de sex​ta-fei​r a, dia 13 de ju​lho, uma se​m a​na de​pois do blo​queio
da ro​do​via, três dias de​pois da re​a ​ber​tu​r a da es​tra​da, ha​via uma en​tre​vis​ta com
dois fa​zen​dei​r os lo​c ais, Nor​vil Brust e Jake Dirk​son. Con​f or​m e Dom re​la​tou, am​-
bos fa​la​vam dos pro​ble​m as que en​f ren​ta​vam, acos​sa​dos pe​los bu​r o​c ra​tas do Mi​-
nis​té​r io da Agri​c ul​tu​r a.
Con​f li​tos en​tre fa​zen​dei​r os e o mi​nis​té​r io não eram ra​r os. Me​ta​de do ter​r i​tó​-
rio de Ne​va​da era pro​pri​e ​da​de do Es​ta​do, não ape​nas as áre​a s de​sér​ti​c as, mas
mui​tas das me​lho​r es áre​a s de pas​ta​gens, vá​r i​a s de​las en​tre​gues aos fa​zen​dei​r os
sob ar​r en​da​m en​to. Os fa​zen​dei​r os acu​sa​vam o mi​nis​té​r io de re​ser​var para si as
me​lho​r es ter​r as e ofe​r e​c er-lhes as que não in​te​r es​sa​vam a nin​guém; quei​xa​vam-
se tam​bém dos im​pos​tos e das al​tas ta​xas de ar​r en​da​m en​to. Mas Brust e Dirk​son
ti​nham no​vas quei​xas. Du​r an​te anos, di​zi​a m, ha​vi​a m ar​r en​da​do as ter​r as pró​xi​-
mas à base mi​li​tar de Thun​der Hill. Brust ar​r en​da​va tre​zen​tos hec​ta​r es, a oes​te e
ao sul da base, e Dirk​son, du​zen​tos hec​ta​r es, ao sul. De re​pen​te, na ma​nhã do dia
7 de ju​lho, sá​ba​do, em​bo​r a ain​da ti​ves​sem di​r ei​to a qua​tro anos de ar​r en​da​m en​-
to, o mi​nis​té​r io to​m a​r a-lhes mais da me​ta​de das res​pec​ti​vas ter​r as.
— Jus​ta​m en​te na ma​nhã se​guin​te ao va​za​m en​to e ao blo​queio da es​tra​da
— co​m en​tou Fay e.
— Brust e Dirk​son fo​r am ver os re​ba​nhos na ma​nhã de sá​ba​do, como fa​zi​-
am sem​pre — Dom con​ti​nuou —, e des​c o​bri​r am que o gado fora afas​ta​do. Já
ha​via até uma cer​c a de ara​m e far​pa​do de​li​m i​tan​do o novo pe​r í​m e​tro da área de
se​gu​r an​ç a, em tor​no de Thun​der Hill.
Gin​ger aca​bou de co​m er, afas​tou o pra​to, cru​zou os bra​ç os e acres​c en​tou:
— O mi​nis​té​r io li​m i​tou-se a in​f or​m ar a Brust e Dirk​son que os con​tra​tos de
ar​r en​da​m en​to fo​r am “de​nun​c i​a ​dos uni​la​te​r al​m en​te, sem di​r ei​to a in​de​ni​za​ç ão”.
E isso ver​bal​m en​te, sem qual​quer do​c u​m en​to es​c ri​to. Pa​r e​c e que, em ge​r al,
quan​do um con​tra​to des​se é de​nun​c i​a ​do, os fa​zen​dei​r os são in​f or​m a​dos an​te​c i​pa​-
da​m en​te, com ses​sen​ta dias de pra​zo para de​so​c u​par a área.
— E isso é le​gal? — per​gun​tou Bren​dan.
— Aí é que está. — Fez Er​nie, ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a. — O pro​ble​m a de ter
ne​gó​c i​os com o Es​ta​do é esse... nun​c a se sabe o que é ou não é le​gal, por​que eles
fa​zem as leis e de​c i​dem. E como jo​gar pô​quer com um fan​tas​m a.
— O pes​so​a l de mi​nis​té​r io anda sem​pre por aqui, de na​r iz
em​pi​na​do e pas​ti​nha em​bai​xo do bra​ç o. Man​dam e des​m an​dam.
— Fay e abriu os bra​ç os num ges​to de im​po​tên​c ia e can​sa​ç o.
— É o que diz o jor​nal — Dom con​c or​dou. — E é mui​to sus​pei​to que o mi​-
nis​té​r io te​nha de​c i​di​do re​to​m ar a pos​se das ter​r as jus​ta​m en​te na oca​si​ã o do va​za​-
men​to e do pro​ble​m a da ro​do​via. Mui​to mais sus​pei​to, po​r ém, é o modo como o
mi​nis​té​r io agiu com os dois fa​zen​dei​r os. De​pois que am​bos con​tra​ta​r am ad​vo​ga​-
dos para rei​vin​di​c ar seus di​r ei​tos e fo​r am aos jor​nais... o mi​nis​té​r io vol​tou atrás e
con​c or​dou em in​de​ni​zá-los.
De so​bran​c e​lhas fran​zi​das, Er​nie ob​ser​vou:
— Aí tem coi​sa... Nun​c a sou​be de um úni​c o caso em que o mi​nis​té​r io te​-
nha vol​ta​do atrás em ques​tões de ter​r as com os fa​zen​dei​r os. O que eles fa​zem é
exa​ta​m en​te o con​trá​r io... es​pe​r am que a ví​ti​m a os aci​o​ne e con​tam com o tem​po
do pro​c es​so. Mais dia, me​nos dia, os fa​zen​dei​r os aca​bam de​sis​tin​do... ou por​que
a ação já não in​te​r es​sa a nin​guém ou por​que já não têm di​nhei​r o para con​ti​nu​a r
pa​gan​do ad​vo​ga​dos, cus​tas e ou​tras coi​sas.
— E qual foi a in​de​ni​za​ç ão que pa​ga​r am a Brust e Dirk​son?
— per​gun​tou Fay e.
— Não foi di​vul​ga​da — Gin​ger res​pon​deu —, mas não deve ter sido pe​-
que​na, por​que os fa​zen​dei​r os se de​r am por mui​to sa​tis​f ei​tos e não fa​la​r am mais
no as​sun​to.
— O mi​nis​té​r io con​se​guiu com​prá-los — Jor​j a co​m en​tou.
— O mi​nis​té​r io... ou o Exér​c i​to por trás dele — dis​se Dom.
— E evi​den​te que, para o Exér​c i​to, quan​to mais tem​po o as​sun​to con​ti​nu​a s​-
se nas man​c he​tes, pior. Por​que, a qual​quer mo​m en​to, al​guém po​de​r ia li​gar os
dois fa​tos... a ocu​pa​ç ão das ter​r as e o pro​ble​m a da ro​do​via... ape​sar da dis​tân​c ia
en​tre a es​tra​da e Thun​der Hill.
Foi a vez de Jor​j a fran​zir as so​bran​c e​lhas.
— Pois é... — mur​m u​r ou. — Não é es​tra​nho que nin​guém, até ago​r a, te​nha
fei​to essa li​ga​ç ão? Se vo​c ês dois, tan​to tem​po de​pois, per​c e​be​r am que aí po​de​r ia
ha​ver mais do que uma sim​ples co​in​c i​dên​c ia, por que nin​guém mais viu?
— Por uma sim​ples ra​zão — re​pli​c ou Gin​ger, vi​r an​do-se para
ela. — Por​que pro​c u​r a​va​m os uma li​ga​ç ão qual​quer en​tre to​dos os acon​te​c i​-
men​tos que ti​ves​sem ocor​r i​do aqui. Para quem vive nes​ta ci​da​de, aque​les dias
fo​r am atí​pi​c os. Nin​guém pen​sa​va em ou​tra coi​sa a não ser no va​za​m en​to. Além
dis​so, pa​r e​c e que as dis​pu​tas en​tre fa​zen​dei​r os e mi​nis​té​r io são mui​to co​m uns.
Uma das edi​ç ões do Sen​ti​ne​la traz até um edi​to​r i​a l elo​gi​a n​do a mu​dan​ç a de ati​tu​-
de do go​ver​no, fa​zen​do vo​tos de que, dali por di​a n​te, o pa​ga​m en​to de in​de​ni​za​ç ão
se tor​nas​se ro​ti​na, e coi​sas as​sim.
— Pelo que le​m os — Dom acres​c en​tou, cru​zan​do os bra​ç os —, e pelo que
vo​c ês di​zem, aque​la foi a pri​m ei​r a vez que o mi​nis​té​r io pa​gou in​de​ni​za​ç ão pe​las
ter​r as que que​r ia de vol​ta. Pri​m ei​r a e úni​c a vez. Não acre​di​to que esse pa​ga​m en​-
to in​di​que uma mu​dan​ç a de po​lí​ti​c a em re​la​ç ão aos fa​zen​dei​r os. É mui​ta co​in​c i​-
dên​c ia... — Ca​lou-se, pen​sou du​r an​te al​guns mo​m en​tos e ex​c la​m ou: — Não! E
cla​r o que há li​ga​ç ão en​tre a cri​se que le​vou ao blo​queio da ro​do​via e a ques​tão
das ter​r as pró​xi​m as a Thun​der Hill!
— Há ou​tro mo​ti​vo para pen​sar que hou​ve al​gu​m a coi​sa em Thun​der Hill
— acres​c en​tou Gin​ger. — Se o “pro​ble​m a” ti​ves​se ocor​r i​do em Shenk​f i​e ld, não
ha​ve​r ia ne​c es​si​da​de de cha​m ar o pes​so​a l da DERO. Há sol​da​dos em Shenk​f i​e ld,
e não é pos​sí​vel que não te​nham con​di​ç ões de de​f en​der ou pro​te​ger uma base
onde vi​vem e tra​ba​lham. Que alto se​gre​do mi​li​tar exis​ti​r ia numa base onde vi​-
vem e tra​ba​lham. Que alto se​gre​do mi​li​tar exis​ti​r ia numa base que não pu​des​se
ser do co​nhe​c i​m en​to do ser​vi​ç o de se​gu​r an​ç a lo​c al? Por que con​vo​c ar uma tro​pa
de eli​te, trei​na​da es​pe​c i​a l​m en​te para cui​dar da de​f e​sa ci​vil em mo​m en​tos de ca​-
tás​tro​f e? Não bas​ta​r ia dei​xar a se​gu​r an​ç a en​tre​gue aos mes​m os sol​da​dos que já
es​ta​vam en​vol​vi​dos no as​sun​to? Mas... se o pro​ble​m a foi em Thun​der Hill, en​tão
sim... po​de​r ia ter ocor​r i​do um pro​ble​m a mais sé​r io, que os sol​da​dos co​m uns não
de​vi​a m co​nhe​c er e que exi​gia a con​vo​c a​ç ão de pes​so​a l trei​na​do pelo ser​vi​ç o se​-
cre​to, dos tais que não abrem o bico...
— Nes​se caso — dis​se Bren​dan pre​c i​sa​m os nos con​c en​trar em Thun​der
Hill, se é que exis​tem res​pos​tas para nos​sas per​gun​tas.
— E pos​sí​vel, até, que nada te​nha acon​te​c i​do em Shenk​f i​e ld.
Que tudo te​nha sido in​ven​ta​do, ou, tal​vez, “trans​f e​r i​do” de Thun-der Hill.
Para que nin​guém pen​sas​se em exa​m i​nar o lo​c al.
Er​nie tam​bém aca​ba​r a de co​m er. A sua fren​te, o pra​to e os ta​lhe​r es es​ta​vam
pron​tos para ir para a pia, pro​va de que a rí​gi​da dis​c i​pli​na da Ma​r i​nha ain​da não
fora es​que​c i​da.
— Faz sen​ti​do — con​c or​dou. — Vo​c ês sa​bem que tra​ba​lhei na Ma​r i​nha du​-
ran​te anos. Al​guns de​les fo​r am de​di​c a​dos ao ser​vi​ç o se​c re​to, e é com cer​to co​-
nhe​c i​m en​to de cau​sa que co​m e​ç o a achar que Dom pode ter ra​zão. E bem pos​sí​-
vel que Shenk​f i​e ld seja ape​nas uma cor​ti​na de fu​m a​ç a. Mui​to bem ela​bo​r a​da.
— Mas há coi​sas que não en​ten​do — dis​se Ned, de tes​ta fran​zi​da. — Por
exem​plo... a ro​do​via foi blo​que​a ​da, mas en​tre Thun-der Hill e o lo​c al do blo​queio
há vá​r i​os qui​lô​m e​tros que fi​c a​r am fora da área de qua​r en​te​na. Como é pos​sí​vel
que te​nha acon​te​c i​do al​gu​m a coi​sa em Thun​der Hill... e que essa “coi​sa” te​nha
nos afe​ta​do aqui no mo​tel... sem cau​sar o me​nor dano na área en​tre o mo​tel e o
de​pó​si​to mi​li​tar nas mon​ta​nhas?
— Boa per​gun​ta — afir​m ou Dom. — Mais uma que ain​da não po​de​m os
res​pon​der.
— E há ou​tra — Ned con​ti​nuou. — Pelo que sa​be​m os, o de​pó​si​to de Thun​-
der Hill é sub​terrâ​neo. Há aque​las enor​m es por​tas de fer​r o no ca​m i​nho e há a es​-
tra​da que as se​pa​r a do pos​to da guar​da... Para que pre​c i​sam de tan​ta ter​r a? Essa
ter​r a que to​m a​r am dos fa​zen​dei​r os, por exem​plo... para que pre​c i​sa​r i​a m dela?
— Não faço idéia. — Dom re​pli​c ou. — Mas, na​que​la sex​ta-fei​r a, seis de
ju​lho, o Exér​c i​to teve de to​m ar me​di​das de emer​gên​c ia. Pri​m ei​r o, de​c re​tou a
qua​r en​te​na aqui no mo​tel, a mais de dez qui​lô​m e​tros de dis​tân​c ia, para fa​zer a la​-
va​gem ce​r e​bral das tes​te​m u​nhas ocu​la​r es. Se​gun​do, re​sol​veu am​pli​a r a área de
se​gu​r an​ç a à vol​ta do de​pó​si​to, lá nas mon​ta​nhas, e cri​a r uma se​gun​da zona de
qua​r en​te​na. Pos​so es​tar en​ga​na​do, mas co​m e​ç o a achar que, se al​gum dia con​se​-
guir​m os des​c o​brir o que acon​te​c eu... des​c o​bri​r e​m os em Thun​der Hill. Pre​c i​sa​-
mos nos apro​xi​m ar da​que​la mon​ta​nha.
Si​lên​c io. O jan​tar es​ta​va en​c er​r a​do, mas nin​guém pa​r e​c ia inte-
res​sa​do na so​bre​m e​sa. Dis​tra​í​da, Ma​r eie de​se​nha​va pe​que​nas luas ama​r e​la​-
das na gor​du​r a do pra​to. Os ou​tros, à vol​ta da mesa, con​c en​tra​vam-se nos pró​pri​-
os pen​sa​m en​tos. Ha​vi​a m che​ga​do ao âma​go do pro​ble​m a: como en​f ren​tar tal
ini​m i​go, o go​ver​no dos Es​ta​dos Uni​dos, o Exér​c i​to ame​r i​c a​no? Como se apro​xi​-
ma​r i​a m de uma mon​ta​nha fe​c ha​da por gi​gan​tes​c os por​tões que es​c on​di​a m se​-
gre​dos pro​te​gi​dos pelo Es​ta​do?
— Já sa​be​m os o su​f i​c i​e n​te para ir aos jor​nais — dis​se Jor​j a. — Te​m os os
sui​c í​di​os de Ze​be​di​a h Lo​m ack e de Alan. Te​m os o as​sas​si​na​to de Pa​blo Jack​son.
Te​m os os pe​sa​de​los de vo​c ês. Te​m os as fo​tos. A im​pren​sa ado​r a esse tipo de mis​-
té​r io. Po​de​m os con​vo​c ar os jor​na​lis​tas e co​m e​ç ar a fa​lar... con​tar-lhes o que nos
está acon​te​c en​do e o que pen​sa​m os que pode ter acon​te​c i​do. Te​r ía-mos a opi​ni​ã o
pú​bli​c a de nos​so lado. Não es​ta​r í​a ​m os so​zi​nhos.
— Não fun​c i​o​na — de​c la​r ou Er​nie, ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a. — Se co​m e​ç ar​-
mos a pres​si​o​nar o Exér​c i​to, não con​se​gui​r e​m os nada... a não ser dar tem​po a
eles para in​ven​ta​r em ou​tras his​tó​r i​a s, ou​tras men​ti​r as. O Exér​c i​to não é como o
Con​gres​so, por exem​plo, que re​a ​ge às pressões da im​pren​sa. Mi​li​tar não pre​c i​sa
de voto... Acho que de​ve​m os con​ti​nu​a r como es​ta​m os, pes​qui​san​do, per​gun​tan​do,
in​ves​ti​gan​do por con​ta pró​pria... dan​do ao ini​m i​go a im​pres​são de que não sa​be​-
mos de nada que pos​sa ame​a ​ç á-lo. E ga​nhar tem​po até des​c o​brir​m os o pon​to
fra​c o de​les.
— E que nin​guém es​que​ç a — pre​ve​niu Gin​ger — que o co​r o​nel Falkirk
que​r ia nos ma​tar. Nada in​di​c a que pos​sa ter mu​da​do de idéia. Pa​r e​c e cla​r o que
foi voto ven​c i​do quan​do tudo acon​te​c eu. Mas ago​r a, con​si​de​r an​do-se que ele es​-
ta​va cer​to quan​to à ine​f i​c á​c ia da la​va​gem ce​r e​bral, tal​vez seus su​pe​r i​o​r es con​-
cor​dem com o ho​lo​c aus​to.
— De qual​quer modo — Sandy acres​c en​tou —, mes​m o que seja pe​r i​go​so,
acho que Jor​j a tem ra​zão. Não há como en​trar em Thun​der Hill para des​c o​brir o
que exis​te lá. E um lu​gar de se​gu​r an​ç a má​xi​m a... à pro​va até de ata​ques nu​c le​a ​-
res.
— Acho que Er​nie está cer​to — opi​nou Dom, re​c os​tan​do-se
na ca​dei​r a. — O me​lhor é dar tem​po ao tem​po e in​ves​ti​gar... Tal​vez des​c u​-
bra​m os o pon​to fra​c o do ini​m i​go.
— Mas... e se ele não ti​ver pon​to fra​c o? — Sandy ar​r e​ga​lou os olhos.
— Des​de o dia em que nos man​da​r am para casa, o pla​no de​les co​m e​ç ou a
ruir — ob​ser​vou Gin​ger. — Cada dia, quan​do acor​da​m os, des​c o​bri​m os um de​ta​-
lhe novo... O ini​m i​go co​m e​ç a a per​der a guer​r a. Es​ta​m os fu​r an​do o cer​c o...
— É... Mas eles têm mais tem​po para re​c om​por o cer​c o do que nós para
con​ti​nu​a r fu​r an​do — co​m en​tou Ned, com um sus​pi​r o de​sa​ni​m a​do.
—- Nada de pen​sa​m en​to ne​ga​ti​vo — Er​nie res​m un​gou.
Do ou​tro lado da mesa, Bren​dan sor​r iu seu sor​r i​so lu​m i​no​so, qua​se so​bre​na​-
tu​r al, e dis​se:
— Er​nie tem ra​zão. Nada de pen​sa​m en​to ne​ga​ti​vo... por​que é bo​ba​gem!
Es​ta​m os des​ti​na​dos à vi​tó​r ia. Va​m os ven​c er.
Em sua voz vi​bra​va, ou​tra vez, a cer​te​za cal​m a dos ilu​m i​na​dos, como se
Deus lhe hou​ves​se re​ve​la​do o fu​tu​r o... um fu​tu​r o es​pe​c i​a l, ine​vi​tá​vel. Mas, em
mo​m en​tos como aque​le, a cer​te​za da vi​tó​r ia não ser​via para re​c on​f or​tar Dom. A
cer​te​za ain​da lhe vi​nha car​r e​ga​da de medo e an​si​e ​da​de.
— Quan​tos sol​da​dos es​tão reu​ni​dos em Thun​der Hill? — Jor-ja per​gun​tou.
An​tes que Gin​ger ou Dom pu​des​se in​f or​m ar-lhes o que ha​vi​a m des​c o​ber​to
no jor​nal, a por​ta do cor​r e​dor abriu-se. Apa​r e​c eu um ho​m em, en​tre trin​ta e qua​-
ren​ta anos, ma​gro, de olhar duro, ca​be​lo es​c u​r o e om​bros for​tes, que os fi​ta​va de
lado, com o olho ves​go. A por​ta da fren​te es​ta​va fe​c ha​da a cha​ve e era im​pos​sí​-
vel su​bir a es​c a​da sem fa​zer es​ta​lar o li​nó​leo en​c e​r a​do dos de​graus; além dis​so, a
por​ta da sala de es​tar do apar​ta​m en​to dos Block tam​bém es​ta​va tran​c a​da. Mas o
ho​m em ali se en​c on​tra​va, aten​to como um gato.
— Pelo amor de Deus — dis​se ele —, ca​lem a boca. Se pen​sam que es​tão
se​gu​r os aqui... vo​c ês es​tão doi​dos!
Trin​ta qui​lô​m e​tros a su​do​e s​te do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, no cam​po de pro​vas
da base mi​li​tar de Shenk​f i​e ld, as ins​ta​la​ç ões eram sub​terrâ​ne​a s: la​bo​r a​tó​r i​os, es​-
cri​tó​r i​os da ad​m i​nis​tra​ç ão, cen​tro de con​tro​le de se​gu​r an​ç a, lan​c ho​ne​te, áre​a s de
la​zer e con​vi​vên​c ia, apar​ta​m en​tos dos ofi​c i​a is. Ao sol ar​den​te do ve​r ão à bei​r a do
de​ser​to, e nos ra​r os in​ver​nos ri​go​r o​sos da re​gi​ã o, era mais fá​c il e eco​nô​m i​c o
man​ter os con​tro​les em ní​veis con​f or​tá​veis de tem​pe​r a​tu​r a e umi​da​de em cons​-
tru​ç ões sub​terrâ​ne​a s. Mas não era essa a prin​c i​pal ra​zão de o Exér​c i​to obri​gar
seus sol​da​dos a vi​ve​r em en​ter​r a​dos como tou​pei​r as. A base ocu​pa​va-se de tes​tes
com ar​m as quí​m i​c as e bi​o​ló​gi​c as que não po​di​a m ser ex​pe​r i​m en​ta​das a
céu aber​to, sob pena de trans​f or​m ar a po​pu​la​ç ão ci​vil em co​bai​a s in​de​f e​sas e ba​-
ru​lhen​tas.
Por mais que o tra​ba​lho os apai​xo​nas​se, por mais que o la​zer os fi​zes​se des​-
con​trair-se, os téc​ni​c os de Shenk​f i​e ld nun​c a es​que​c i​a m que vi​vi​a m en​ter​r a​dos,
me​tros abai​xo do solo. Ti​nham duas ra​zões para isso: pas​sa​vam os dias pen​san​do
nas ja​ne​las que não viam, e os apa​r e​lhos de ar con​di​c i​o​na​do nun​c a pa​r a​vam
de zum​bir.
So​zi​nho, sen​ta​do em fren​te à mesa de aço da sala que ocu​pa​va tem​po​r a​r i​a ​-
men​te, pre​o​c u​pa​do e an​si​o​so à es​pe​r a de um te​le​f o​ne​m a que não vi​nha, o co​r o​-
nel Le​land Falkirk pen​sa​va no quan​to odi​a ​va aque​le lu​gar.
O zum​bi​do do ar con​di​c i​o​na​do nos ou​vi​dos, dia e noi​te, dava-lhe dor de ca​be​-
ça. Des​de sá​ba​do, quan​do che​ga​r a, de​vo​r a​va as​pi​r i​nas como se fos​sem ba​las.
Abriu o vi​dro, ti​r ou mais dois com​pri​m i​dos e co​lo​c ou-os so​bre a mesa. Apa​nhou
um copo, en​c heu-o de água no be​be​dou​r o de me​tal, po​r ém não usou a água para
en​go​lir os com​pri​m i​dos: en​f i​ou as as​pi​r i​nas na boca e mas​ti​gou-as a seco. O gos​-
to amar​go deu-lhe náu​se​a s, mas ele ain​da não to​c ou no copo, nem cus​piu o re​-
mé​dio. In​sis​tiu, ven​c eu o en​j oo e a sa​li​va áci​da des​c eu-lhe pela gar​gan​ta.
A mi​se​r á​vel infân​c ia de in​c er​te​zas e do​r es e a ado​les​c ên​c ia ain​da mais de​-
ses​pe​r a​da en​si​na​r am-lhe que a vida é cru​e l, ter​r i​vel​m en​te in​j us​ta; que os im​be​c is
têm es​pe​r an​ç as de sal​va​ç ão, mas só os mais
for​tes têm chan​c e. Des​de mui​to jo​vem obri​ga​va-se a exer​c í​c i​os que lhe cau​-
sa​vam dor emo​c i​o​nal, men​tal ou fí​si​c a, por​que acre​di​ta​va pi​a ​m en​te que a au​to​-
fla​ge​la​ç ão o tor​na​r ia mais re​sis​ten​te e, por​tan​to, me​nos vul​ne​r á​vel. Os exer​c í​c i​os
iam de mas​ti​gar as​pi​r i​nas se​c as à prá​ti​c a dos mais ra​di​c ais tes​tes de so​bre​vi​vên​-
cia, que cha​m a​va de “pas​seio ao in​f er​no”. Eram ex​c ursões de duas se​m a​nas ou
mais, nas quais se ex​pu​nha a ris​c os de vida cons​tan​tes. Sal​ta​va de pára-que​das na
sel​va, sem pos​si​bi​li​da​de de con​ta​to com a ci​vi​li​za​ç ão, de​sar​m a​do e sem ali​m en​-
tos, ves​ti​do só com o uni​f or​m e. Nao ti​nha bús​so​la, nem fós​f o​r os, mas ape​nas o
di​r ei​to de usar as duas mãos e o que con​se​guis​se in​ven​tar com elas. A meta: re​-
gres​sar são e sal​vo. Pas​sa​va as fé​r i​a s nes​ses “pas​sei​os ao in​f er​no”, e sem​pre vol​-
ta​va cer​to de que a luta pela vida tor​na​va-o mais for​te e con​f i​a n​te.
O pó áci​do das as​pi​r i​nas quei​m a​va-lhe a lín​gua.
— To​que, mal​di​to... to​que... — dis​se, olhos no te​le​f o​ne, à es​pe​r a das no​tí​c i​a s
que lhe per​m i​ti​r i​a m dei​xar aque​la toca de bi​c ho.
Um co​r o​nel da DERO que odi​a ​va ga​bi​ne​tes. A base de Falkirk, onde es​ta​va
ser​vin​do, não era em Shenk​f i​e lf, e sim Grand Junc-tion, Co​lo​r a​do. Lá ele pas​sa​va
pou​c o tem​po no es​c ri​tó​r io, pre​f e​r in​do sem​pre a in​ten​sa ati​vi​da​de fí​si​c a dos trei​-
na​m en​tos tá​ti​c os. Em Shenk​f i​e ld, sem ja​ne​las e sem ar, sen​tia-se en​ter​r a​do vivo
num cai​xão de mui​tas sa​las e in​ter​m i​ná​veis cor​r e​do​r es.
Se ti​ves​se qual​quer ou​tra mis​são a cum​prir em Ne​va​da, es​c o​lhe​r ía os alo​j a​-
men​tos de Thun​der Hill, que, em​bo​r a igual​m en​te sub​terrâ​ne​os, eram mais cla​r os
e es​pa​ç o​sos... Nada de ca​ta​c um​bas es​c u​r as, as​f i​xi​a n​tes, zum​bin​do sem pa​r ar.
De qual​quer modo, era im​pos​sí​vel pen​sar em Thun​der Hill. Ti​nha pelo me​-
nos duas ra​zões para man​ter os ho​m ens lon​ge de lá: em pri​m ei​r o lu​gar, cla​r o, por
cau​sa do se​gre​do. Se os fa​zen​dei​r os en​c on​tras​sem sol​da​dos da DERO na re​gi​ã o
das mon​ta​nhas, fi​c a​r i​a m cu​r i​o​sos; era pre​c i​so man​tê-los a dis​tân​c ia, cus​tas​se o
que cus​tas​se. No ve​r ão re​tra​sa​do, ele pró​prio es​c o​lhe​r a Shenk​f i​e ld como base de
ope​r a​ç ões para não atrair aten​ç ão so​bre Thun​der Hill. Na​que​le mo​m en​to, com
as no​vas com​pli​c a​ç ões que sur​gi​r am, era
ain​da mais im​por​tan​te per​m a​ne​c er ali, para con​f ir​m ar o que de​c la​r a​r a à im​-
pren​sa. Em se​gun​do lu​gar, ti​nha de fi​c ar em Shenk​f i​e ld por​que nao con​f i​a ​va no
pes​so​a l de Thun​der Hill... em nin​guém, Vi​ver lá era vi​ver cer​c a​do de ini​m i​gos. E
se to​dos em Thun​der Hill es​ti​ves​sem con​ta​m i​na​dos? Se já nao fos​sem os mes​-
mos?
As as​pi​r i​nas per​di​a m o gos​to, ro​lan​do na lín​gua. Já não sen​tia náu​se​a s, já nao
pre​c i​sa​va en​go​lir gol​f a​das de suco gás​tri​c o que lhe su​bi​a m á boca. Era hora de
to​m ar um gole de água. Qua​tro go​les, até es​va​zi​a r o copo.
Le​land Falkirk per​gun​tou-se de re​pen​te se ul​tra​pas​sa​r a o li​m i​te en​tre dor e
pra​zer, en​tre o uso cons​tru​ti​vo da dor e o pra​zer de ‘ so​f rer. Per​gun​tou-se e, ao
mes​m o tem​po, des​c o​briu a res​pos​ta: sim, de cer​to modo, era ma​so​quis​ta. Um
ma​so​quis​ta dis​c i​pli​na​do e va​len​te, que apren​dia com a dor, que con​tro​la​va a dor
e não per​m i​tia que o pra​zer o do​m i​nas​se... mas, sem dú​vi​da, um ma​so​quis​ta. De
iní​c io, obri​ga​va-se a so​f rer para for​ta​le​c er a von​ta​de. Até que, aos pou​c os, co​-
me​ç ou a gos​tar... A des​c o​ber​ta o fez ar​r e​ga​lar os olhos.
Pen​sou no fu​tu​r o. Al​guns anos mais, e se​r ia um ve​lho per​ver​ti​do, ob​c e​c a​do,
en​f i​a n​do agu​lhas de bam​bu por bai​xo das unhas pelo sim​ples pra​zer de sen​tir os
olhos ar​de​r em e o co​r a​ç ão dis​pa​r ar. Uma ima​gem gro​tes​c a, som​bria... e en​gra​-
ça​da. Le​land riu.
No ano an​te​r i​or, ain​da não era ca​paz de rir de si mes​m o. Ul​ti​m a​m en​te, po​-
rém, vi​nha des​c o​brin​do no​vos e es​tra​nhos tra​ç os de sua per​so​na​li​da​de e di​ver​tia-
se mui​to. Sa​bia, por exem​plo, que po​dia e de​via mu​dar um pou​c o, tor​nar-se me​-
lhor, ser mais fe​liz, sem per​der a du​r e​za e a in​vul​ne​r a​bi​li​da​de que tan​to lhe cus​ta​-
ra al​c an​ç ar. Era no​vi​da​de, es​tra​nha no​vi​da​de num ho​m em como ele, mas não
che​ga​va a sur​preen​dê-lo. De​pois do que vira no ve​r ão re​tra​sa​do, de​pois de tudo
que lhe acon​te​c e​r a e con​si​de​r an​do o que ain​da ocor​r ia em Thun​der Hill, era di​f í​-
cil ima​gi​nar que a vida con​ti​nu​a ​r ia a mes​m a.
O te​le​f o​ne to​c ou. Falkirk aten​deu, rá​pi​do, cer​to de que che​ga​vam no​tí​c i​a s so​-
bre a si​tu​a ​ç ão em Chi​c a​go. Mas não. Era Cory
Hen​der​son, de Mon​te​r ey, Ca​li​f ór​nia, que in​f or​m a​va so​bre a ope​r a​ç ão na
casa dos Sal​c oe. Sem no​vi​da​des.
No ve​r ão re​tra​sa​do, Ge​r ald Sal​c oe hos​pe​da​r a-se com a es​po​sa e duas fi​lhas
no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, na​que​la noi​te. Se​gun​do fon​te se​gu​r a, uma des​sas qua​tro
pes​so​a s dava si​nais de es​tar ven​c en​do o blo​queio de me​m ó​r ia.
Os es​pe​c i​a ​lis​tas da CIA, qua​se sem​pre usa​dos em ope​r a​ç ões no ex​te​r i​or, fo​-
ram con​vo​c a​dos para o mo​tel por​que ga​r an​ti​a m que os blo​quei​os eram se​gu​r os,
à pro​va de fa​lha; mas, nos úl​ti​m os tem​pos, an​da​vam per​den​do o sono com os
fre​qüen​tes re​la​tó​r i​os so​bre ca​sos de pes​so​a s que co​m e​ç a​vam a lem​brar-se. Ten​-
ta​vam ex​pli​c ar-se di​zen​do que a ex​pe​r i​ê n​c ia vi​vi​da por aque​las pes​so​a s era pro​-
fun​da de​m ais para ser fa​c il​m en​te re​m o​vi​da da me​m ó​r ia. Pro​m e​ti​a m, po​r ém,
que com ou​tra ses​são, com mais três dias de tra​ta​m en​to, con​se​gui​r i​a m o si​lên​c io
eter​no.
Na​que​le exa​to mo​m en​to, ho​m ens da CIA e do FBI, em ope​r a​ç ão con​j un​ta,
man​ti​nham os Sal​c oe em cár​c e​r e pri​va​do, fa​zen​do-os pas​sar por um se​gun​do
pro​gra​m a de la​va​gem ce​r e​bral. Ape​sar de Cory Hen​der​son ju​r ar que tudo es​ta​-
va cor​r en​do con​f or​m e o pre​vis​to, Le​land não ti​nha mais dú​vi​das de que era tem​-
po per​di​do. O se​gre​do aca​ba​r ia va​zan​do. Era gran​de de​m ais para per​m a​ne​c er
en​ter​r a​do por tan​to tem​po.
O pro​ble​m a era que ha​via gen​te de​m ais en​vol​vi​da na ope​r a​ç ão: FBI, CIA,
uma com​pa​nhia in​tei​r a da DERO, o pes​so​a l de se​gun​do es​c a​lão. Mui​to ca​c i​que...
e pou​c o ín​dio.
Le​land, con​tu​do, era bom sol​da​do. Ca​bia-lhe o co​m an​do mi​li​tar da ope​r a​ç ão,
e ele cum​pri​r ia a mis​são exa​ta​m en​te como se es​pe​r a​va que fi​zes​se. Ain​da que
lhe cus​tas​se a vida.
De Mon​te​r ey, Hen​der​son per​gun​ta​va:
— E o pes​so​a l do mo​tel? Quan​do é que você vai agir?
As “tes​te​m u​nhas”. As​sim eles cha​m a​vam os ho​m ens e mu​lhe​r es que ha​vi​-
am pas​sa​do pela la​va​gem ce​r e​bral em ju​lho, no ve​r ão re​tra​sa​do. Le​land gos​ta​va
do ter​m o. Além de ób​vio e cor​r e​to, su​ge​r ia um halo mís​ti​c o, qua​se re​li​gi​o​so.
Lem​bra​va-se de cul​tos re​li​gi​o​sos que vira quan​do cri​a n​ç a: os fa​ná​ti​c os ro​la​vam
pelo chão,
aos gri​tos, en​quan​to o lí​der es​bra​ve​j a​va: “Ve​j am! Se​j am tes​te​m u​nhas do mi​-
la​gre... Se​j am tes​te​m u​nhas do Se​nhor!” Ora... as “tes​te​m u​nhas” do Mo​tel Tran​-
qüi​li​da​de ha​vi​a m vis​to algo es​pan​to​so, ater​r o​r i​zan​te, ina​c re​di​tá​vel — mui​to mais
ina​c re​di​tá​vel do que a vi​são da​que​le lí​der en​lou​que​c i​do de al​guns fa​ná​ti​c os.
— Es​ta​m os a pos​tos — Le​land in​f or​m ou Hen​der​son. — Po​de​m os en​trar
em ação a qual​quer mo​m en​to. Mas não vou agir an​tes de ter no​tí​c i​a s de Chi​c a​go.
Falo de Cal​vin Shark​le.
— Que con​f u​são! Como pôde acon​te​c er? Bas​ta​va tê-lo re​c o​lhi​do para um
se​gun​do pro​gra​m a, como fi​ze​m os com os Sal​c oe, aqui na Ca​li​f ór​nia!
— A con​f u​são não é pro​ble​m a meu — re​pli​c ou o co​r o​nel. — Cabe a vo​c ês
vi​gi​a r as “tes​te​m u​nhas”. Meu de​ver é agir.
— Não es​tou que​r en​do cul​pá-lo, nem a seus ho​m ens — emen​dou Hen​der​-
son, com um sus​pi​r o de​sa​ni​m a​do. — Mas a cul​pa tam​bém não é nos​sa. E gen​te
de​m ais para vi​gi​a r! Só para se​guir as tes​te​m u​nhas qua​tro dias por mês e ou​vir a
me​ta​de das fi​tas gra​va​das nos te​le​f o​nes de cada uma, por mês, e ou​vir a me​ta​de
das fi​tas gra​va​das nos te​le​f o​nes de cada uma, pre​c i​sa​r í​a ​m os de vin​te e cin​c o
agen​tes em tem​po in​te​gral. Te​m os vin​te! E há tam​bém a ques​tão da se​gu​r an​ç a.
Ape​nas três de nos​sos agen​tes mais gra​du​a ​dos po​dem sa​ber por que de​vem vi​gi​-
ar esse pes​so​a l. E nin​guém gos​ta de tra​ba​lhar no es​c u​r o... Os ra​pa​zes fi​c am in​se​-
gu​r os, acham que não con​f i​a ​m os ne​les e per​dem o in​te​r es​se. Até que acon​te​c e o
que acon​te​c eu com Shark​le... o blo​queio co​m e​ç ou a ce​der, e nós nem per​c e​be​-
mos! Mas como fo​m os cair nes​sa?! Como acre​di​ta​m os que se​r ia pos​sí​vel man​ter
o blo​queio por tem​po in​de​f i​ni​do? Sabe qual foi nos​so erro? Eu lhe digo... não de​-
ve​r i​a ​m os ter con​f i​a ​do na​que​les fi​lhos da puta da CIA. La​va​gem ce​r e​bral... Bes​-
tei​r a!
— Mi​nha opi​ni​ã o foi sem​pre essa. A so​lu​ç ão se​r ia tão sim​ples! — Le​land
res​pi​r ou fun​do.
— Matá-los? A to​dos?! Ma​tar trin​ta e um ci​da​dãos ino​c en​tes só por​que ti​ve​-
ram o azar de es​tar no lu​gar er​r a​do na hora er​r a​da?
— Não che​guei a pen​sar se​r i​a ​m en​te em matá-los. Que​r ia di​zer é que esse
se​r ia o úni​c o modo efi​c i​e n​te de re​sol​ver o pro​ble​m a.
O si​lên​c io de Hen​der​son foi elo​qüen​te. Como to​dos, ele tam​bém não acre​di​-
ta​va nas ex​pli​c a​ç ões de Falkirk.
— Vo​c ês vão agir hoje à noi​te? — per​gun​tou.
— Tal​vez. Se re​c e​ber​m os no​tí​c i​a s de Chi​c a​go... se sou​ber​m os o que es​tão
fa​zen​do no mo​tel... Ain​da há al​gu​m as ques​tões para se​r em es​c la​r e​c i​das. Os fe​-
nô​m e​nos pa​r a​nor​m ais, por exem​plo. 0 que são? Nós dois te​m os al​gu​m as idéi​a s,
não é? Pre​c i​sa​m os ser cau​te​lo​sos. Não, não... Não vou agir, nem ar​r is​c ar a vida
de meus ho​m ens an​tes de sa​ber o que está re​a l​m en​te acon​te​c en​do com aque​las
tes​te​m u​nhas — Le​land con​c luiu, des​li​gan​do o te​le​f o​ne.
Thun​der Hill. A vida se​r ia mais fá​c il, se pu​des​se acre​di​tar que o se​gre​do na​-
que​la mon​ta​nha re​pre​sen​ta​va o fu​tu​r o fe​liz que a hu​m a​ni​da​de es​pe​r a​va! Mas
não... Não po​dia ser! No fun​do da alma, al​gu​m a coi​sa lhe di​zia que não ha​ve​r ia
fu​tu​r o se o se​gre​do fos​se di​vul​ga​do. A re​ve​la​ç ão equi​va​lia ao fim do mun​do.
Quan​do Jack apa​r e​c eu na im​pro​vi​sa​da sala de jan​tar, al​guns le​van​ta​r am-se
para sal​tar so​bre ele, ou​tros ape​nas ar​r e​ga​la​r am os olhos, e Er​nie qua​se vi​r ou a
mesa ao vol​tar-se num ges​to brus​c o. Jack dei​xa​r a a sub​m e​tra​lha​do​r a na re​c ep​-
ção para evi​tar que se as​sus​tas​sem de​m ais. Mas a sur​pre​sa da che​ga​da era ne​-
ces​sá​r ia para fazê-los en​ten​der, de uma vez por to​das, o ris​c o que cor​r i​a m. Ma​-
reie, de​se​nhan​do luas no pra​to, foi a úni​c a que não re​a ​giu.
— Tudo bem... Cal​m a... Sen​tem-se e acal​m em-se — dis​se Jack, fi​tan​do os
ros​tos atô​ni​tos. — Sou um de vo​c ês. Na​que​la noi​te es​ti​ve hos​pe​da​do aqui sob o
nome de Thorn​ton Wainw​r ight. E um nome fal​so, por isso vo​c ês não me lo​c a​li​za​-
ram. So​bre isso, fa​la​r e​m os mais tar​de. Ago​r a...
Es​tou​r a​r am per​gun​tas de to​dos os la​dos, os nove fa​lan​do ao mes​m o tem​po.
Jack ou​viu ape​nas pe​da​ç os de fra​ses — “nos mata de medo”, “como foi que
abriu”... — até que ba​teu pal​m as for​te​m en​te e ele​vou a voz:
— Não po​de​m os fa​lar aqui — dis​se. — Esta sala não é se​gu​r a.
Há mais de uma hora es​tou lá fora, ou​vin​do tudo que vo​c ês di​zi​a m. E se eu
pude ou​vir, o pes​so​a l que está atrás de nós tam​bém pode.
Nove pa​r es de olhos ar​r e​ga​la​r am-se ao re​dor da mesa. Por fim Er​nie fran​ziu
as so​bran​c e​lhas, des​c on​f i​a ​do:
— Você está que​r en​do di​zer que há es​c u​ta por aqui? Es​c u​ta clan​des​ti​na?
Não acre​di​to. Eu mes​m o re​vis​tei todo o apar​ta​m en​to e não en​c on​trei nada. Te​nho
cer​ta ex​pe​r i​ê n​c ia no as​sun​to...
— Você deve ser Er​nie — Jack vi​r ou-se para ele, a voz fria e dura como
lâ​m i​na afi​a ​da, sa​ben​do que era pre​c i​so man​tê-los de guar​da alta para que en​ten​-
des​sem que nin​guém es​ta​va brin​c an​do.
‘Ti​nha pou​c o tem​po... su​f i​c i​e n​te para uma úni​c a li​ç ão. — Es​ta​va fa​lan​do so​-
bre sua ex​pe​r i​ê n​c ia na Ma​r i​nha. Mas não dis​se há quan​to tem​po está apo​sen​ta​do.
Apos​to que faz qua​se dez anos. De lá para cá as coi​sas mu​da​r am mui​to. Não ou​-
viu fa​lar em re​vo​lu​ç ão tec​no​ló​gi​c a? Mer​da! Ain​da pen​sa que eles têm de en​trar
aqui para ins​ta​lar mi​c ro​f o​nes no pé do aba​j ur?! Eu trou​xe um am​pli​f i​c a​dor de
vo​zes, um mi​c ro​f o​ne es​pe​c i​a l, e ouvi tudo. Com este ou ou​tro re​c ur​so mais mo​-
der​no, eles tam​bém po​dem ou​vir; só pre​c i​sam li​gar um pe​que​no am​pli​f i​c a​dor ao
te​le​f o​ne e dis​c ar o nú​m e​r o de vo​c ês. Não é im​pos​sí​vel... ao con​trá​r io, é fa​c í​li​m o!
— Atra​ves​sou a sala, pas​sou por Er​nie e apro​xi​m ou-se do te​le​f o​ne, ao lado do
sofá. — Sa​bem como essa es​c u​ta fun​c i​o​na? Quan​do eles li​gam seu nú​m e​r o, um
pe​que​no apa​r e​lho... um os​c i​los​c ó​pio ele​trô​ni​c o, para ser mais exa​to... des​li​ga a
cam​pai​nha de seu apa​r e​lho e, ao mes​m o tem​po, aci​o​na o mi​c ro​f o​ne que está
den​tro des​ta peça. — Apon​tou o bo​c al. — Vo​c ês não ou​vem nada, o te​le​f o​ne pa​-
re​c e des​li​ga​do, como ago​r a, e eles lá, ou​vin​do o que vo​c ês di​zem em qual​quer
cô​m o​do da casa onde haja ex​ten​são te​le​f ô​ni​c a. — Sor​r iu, irô​ni​c o, in​di​c an​do o
apa​r e​lho so​bre a me​si​nha. — Aí está seu mi​c ro​f o​ne es​c on​di​do! Vo​c ês mes​m os o
co​lo​c a​r am aí e pa​gam as con​tas ri​go​r o​sa​m en​te em dia, para que ele não
seja cor​ta​do. Não há dú​vi​da de que eles sa​bem tudo que está acon​te​c en​do por
aqui. De​vem ter ou​vi​do a lon​ga reu​ni​ã o de hoje. Se
vo​c ês que​r em mor​r er, me​tam uma bala nos mi​o​los. Vão eco​no​m i​zar tem​po
e mu​ni​ç ão do ini​m i​go. E rá​pi​do* in​do​lor...
Deu cer​to. A iro​nia afas​tou qual​quer dú​vi​da que ain​da ti​ves​sem. Jack olhou
em tor​no e per​gun​tou.
Há al​gu​m a sala sem ja​ne​las, gran​de o bas​tan​te para mon​tar​m os nos​so con​-
se​lho de guer​r a? Se hou​ver te​le​f o​ne, bas​ta des​li​gá-lo da pa​r e​de.
Fay e fez que sim com a ca​be​ç a. Jack lem​bra​va-se va​ga​m en​te dela: a loi​r a
ma​du​r a, atra​e n​te e gen​til que o fi​ze​r a preen​c her uma fi​c ha na re​c ep​ç ão do mo​tel
no ve​r ão re​tra​sa​do. Com cer​te​za, mu​lher de Er​nie.
— O res​tau​r an​te. Ao lado do mo​tel — dis​se ela.
— Um res​tau​r an​te... sem ja​ne​las? — Jack es​tra​nhou.
— As vi​dra​ç as se que​bra​r am — ex​pli​c ou Er​nie. — Ve​da​m os as ja​ne​las
com fo​lhas de com​pen​sa​do.
— En​tão va​m os para lá, dis​c u​tir a es​tra​té​gia que se​gui​r e​m os de hoje em
di​a n​te. E quan​do tudo es​ti​ver re​sol​vi​do ve​nho co​m er um pe​da​ç o des​se peru de
que vo​c ês fa​la​r am tan​to. Meu jan​tar foi um de​sas​tre!
Jack vi​r ou-se e des​c eu, sem es​pe​r ar res​pos​ta, sa​ben​do que to​dos o se​guir
iam.
Du​r an​te cin​c o mi​nu​tos, usan​do os re​c ur​sos de seu pa​la​vre​a ​do de bei​r a de
cais, Er​nie es​bra​ve​j ou con​tra aque​le “ves​go fi​lho da puta”, mas aos pou​c os, sem
ao me​nos per​c e​ber, bai​xou a voz e a cris​ta.
Ves​go, sim, e tal​vez até fi​lho de al​gu​m a puta, po​r ém sem dú​vi​da um ho​m em
para se res​pei​tar. Di​f e​r en​te de to​dos os ou​tros do gru​po. Tam​bém fora “cha​m a​-
do”, como os de​m ais. No en​tan​to, che​gou de sur​pre​sa, atra​ves​sou duas por​tas
tran​c a​das... tra​zen​do uma sub​m e​tra​lha​do​r a car​r e​ga​da! Mas an​tes de sen​tir ad​m i​-
ra​ç ão, Er​nie tre​m ia de fú​r ia, ven​do o fal​so Thorn​ton Wainw​r ight pen​du​r ar a
arma no om​bro e an​dar fir​m e em di​r e​ç ão à por​ta. A per​gun​ta de Jack ain​da eco​-
a​va-lhe nos ou​vi​dos: “Você não ou​viu fa​lar em re​vo​lu​ç ão tec​no​ló​gi​c a?” Des​gra​-
ça​do! Er​nie es​ta​va tão fu​r i​o​so
que se es​que​c eu de apa​nhar o ca​sa​c o, como os ou​tros; se​guiu o ho​m em, pi​-
sou no ci​m en​to da en​tra​da e apres​sou o pas​so para apro​xi​m ar-se dele. Pre​c i​sa​va
lhe di​zer duas ou três coi​si​nhas para co​lo​c á-lo em seu de​vi​do lu​gar!
— O que é que você está pen​san​do? Po​dia ter fa​la​do da mer​da do mi​c ro​f o​-
ne sem ser tão gros​sei​r o!
— Tal​vez... — Jack sor​r iu com o can​to dos lá​bi​os. — Mas le​va​r ia mui​to
tem​po. Não va​lia a pena.
Er​nie abriu a boca para re​pli​c ar e... deu-se con​ta de que es​ta​va fora... a meio
ca​m i​nho en​tre o mo​tel e o res​tau​r an​te., vul​ne​r á​vel, ex​pos​to à es​c u​ri​dão. Os
pulmões fe​c ha​r am-se de re​pen​te, gru​da​dos como balões va​zi​os. Não con​se​guia
res​pi​r ar. Ge​m eu bai​xi​nho, de​ses​pe​r a​do, mor​to de medo e de ver​go​nha.
Para sua sur​pre​sa, o re​c ém-che​ga​do am​pa​r ou-o an​tes de per​gun​tar o que es​-
ta​va acon​te​c en​do. Um abra​ç o for​te se​gu​r ou-o. Um bra​ç o so​li​dá​r io.
— Es​ta​m os che​gan​do. Apóie-se em mim.
Além de hu​m i​lhá-lo com a con​ver​sa de re​vo​lu​ç ão tec​no​ló​gi​c a, se fa​zia de
bom sa​m a​r i​ta​no! Mais fu​r i​o​so ain​da, Er​nie afas​tou-se, em​pur​r an​do para lon​ge o
bra​ç o que o am​pa​r a​va.
— Ouvi tudo — re​ve​lou Jack, sem per​der a cal​m a. — Vo​c ês fa​la​r am de
seus pro​ble​m as de medo de es​c u​r o. Não es​tou com pena de você, mas não vejo
nada en​gra​ç a​do num ho​m em as​sus​ta​do. A fo​bia deve ter algo a ver com o que
nos acon​te​c eu... não é cul​pa sua. To​dos nós pre​c i​sa​m os uns dos ou​tros para sair
des​sa. Apóie-se em mim, e va​m os até o res​tau​r an​te. Lá, com lu​zes ace​sas, dis​c u​-
ti​r e​m os o as​sun​to, está bem?
Quan​do o ho​m em co​m e​ç ou a fa​lar, Er​nie mal con​se​guia as​pi​r ar. Quan​do
aca​bou, o pro​ble​m a era in​ver​so: seus pulmões in​c ha​vam-se de ar, ele não con​se​-
guia ex​pi​r ar. Como que ar​r as​ta​do por uma for​ç a in​c on​tro​lá​vel, vi​r ou-se para a di​-
re​ç ão su​des​te e mer​gu​lhou os olhos na es​c u​r i​dão imen​sa. E de re​pen​te, como se
uma pe​que​na luz co​m e​ç as​se a bri​lhar, per​c e​beu que não ti​nha medo da noi​te... O
que o en​c hia de medo não era a noi​te, nem a es​c u​r i​dão, mas a lem​bran​ç a de al​-
gu​m a coi​sa que vira ali adi​a n​te
na​que​la mal​di​ta noi​te de 6 de ju​lho, no ve​r ão re​tra​sa​do. Não con​se​guia ti​r ar
os olhos da​que​le pon​to, o lu​gar es​pe​c i​a l onde es​ti​ve​r am na vés​pe​r a, à pro​c u​r a de
pis​tas. O es​tra​nho lu​gar ao qual to​dos pa​r e​c i​a m ir como que ar​r as​ta​dos.
Fay e apro​xi​m a​r a-se e Er​nie en​c o​lheu-se a seu lado, acei​tan​do a aju​da que
lhe ofe​r e​c ia. Quan​do Jack no​va​m en​te ten​tou am​pa​r á-lo, ele ou​tra vez o em​pur​-
rou.
— Faça como qui​ser, ma​r i​nhei​r o idi​o​ta — es​bra​ve​j ou o fal​so Thorn​ton. —
Você ain​da não apren​deu a pe​dir so​c or​r o. Vai apren​der, mais dia me​nos dia, por​-
que to​dos aca​bam apren​den​do. Se qui​ser, fi​que aí, mor​r en​do de medo... Você só
saiu por​que es​ta​va com rai​va, não por​que tem co​r a​gem. Pois que fi​que aí, com
seu medo, e foda-se! Ou seja ma​c ho e ande até o res​tau​r an​te!
Er​nie en​go​liu em seco. O ves​go o pro​vo​c a​va... que​r ia en​f u​r e​c ê-lo até que a
rai​va ven​c es​se o medo e o fi​zes​se an​dar. De ho​m em para ho​m em... como nos
tem​pos da Ma​r i​nha! Era como se lhe dis​ses​se: “Me odeie. Me odeie até cri​a r co​-
ra​gem. Me odeie até ven​c er o medo. Guie-se por mim e pelo ódio. E vá de​va​gar,
um pas​so atrás do ou​tro...” Es​ta​va mu​dan​do de tá​ti​c a. Nada de so​li​da​r i​e ​da​de fá​-
cil, nada de om​bro ami​go. Ago​r a as coi​sas pa​r e​c i​a m mais sim​ples, e se Er​nie
não es​ti​ves​se ain​da mui​to pró​xi​m o do pâ​ni​c o, ri​r ia da​que​le atre​vi​do. Jack es​ta​va
cer​to: gui​a r-se pela rai​va era mais efi​c az e me​nos hu​m i​lhan​te. Er​nie fe​c hou os
olhos, dei​xou a rai​va cres​c er até cegá-lo e se​guiu o ou​tro em di​r e​ç ão ao res​tau​-
ran​te.
— Está ge​la​do aqui! — Fay e cor​r eu para li​gar o aque​c e​dor.
Er​nie jo​gou-se numa ca​dei​r a, per​nas aber​tas, os bra​ç os ca​í​dos
ao lon​go do cor​po, bu​f an​do como um tou​r o, e co​m e​ç ou a acal​m ar-se. Viu
Jack ca​m i​nhar pela sala, ve​r i​f i​c an​do os pai​néis de com​pen​sa​do que co​bri​a m as
ja​ne​las. Para sua sur​pre​sa, des​c o​briu que já não odi​a ​va aque​le “ves​go fi​lho da
puta”, nem que​r ia par​ti-lo ao meio... ape​nas não gos​ta​va dele.
O ho​m em exa​m i​nou o te​le​f o​ne pú​bli​c o ins​ta​la​do jun​to à por​ta. Aci​o​na​do a
mo​e ​das, era im​pos​sí​vel des​li​gá-lo da pa​r e​de. Sem di​zer pa​la​vra, le​van​tou o fone,
e, com um sa​f a​não, re​ben​tou o fio.
— Há ou​tro te​le​f o​ne atrás do bal​c ão — dis​se Ned.
— Des​li​gue.
Ned obe​de​c eu em si​lên​c io. Com a mes​m a se​gu​r an​ç a de quem está ha​bi​tu​a ​-
do a dar or​dens e ser obe​de​c i​do, Jack man​dou Bren-dan e Gin​ger ar​r u​m a​r em as
ca​dei​r as ao re​dor de uma das me​sas mai​o​r es.
Cada vez mais in​te​r es​sa​do, Er​nie ob​ser​va​va-o de lon​ge. Ago​r a o ves​go exa​-
mi​na​va a por​ta da fren​te, cujo vi​dro, mais re​sis​ten​te, não se que​bra​r a du​r an​te o
“ter​r e​m o​to” da noi​te de sá​ba​do. Não fora re​c o​ber​ta de com​pen​sa​do e, as​sim,
cons​ti​tu​ía o úni​c o pon​to trans​pa​r en​te e vul​ne​r á​vel em todo o res​tau​r an​te. Sem se
vi​r ar, Jack per​gun​tou se so​bra​r a al​gum com​pen​sa​do. Dom res​pon​deu-lhe
que sim. Sem​pre de cos​tas, o ou​tro dis​se-lhe que en​c ar​r e​gas​se “um dos ho​m ens”
de bus​c ar uma fo​lha, su​f i​c i​e n​te para re​ves​tir a por​ta. Dom fez si​nal a Bren​dan,
que pou​c o de​pois re​a ​pa​r e​c ia com uma pla​c a li​gei​r a​m en​te mais lar​ga que a por​-
ta. O ves​go en​c ar​r e​gou-se de co​lo​c á-la no lu​gar.
— Não está per​f ei​to, mas ser​ve — co​m en​tou. — Pre​c i​sa​m os só de um an​-
te​pa​r o que blo​queie a sa​í​da do som. Onde você pe​gou o com​pen​sa​do?
— No de​pó​si​to, atrás do res​tau​r an​te. — Bren​dan res​pon​deu.
— Que​r o ver esse de​pó​si​to — de​c i​diu Jack, ca​m i​nhan​do para os fun​dos da
sala. De pas​sa​gem, man​dou Sandy li​gar o apa​r e​lho de som, es​c o​lher al​guns dis​-
cos e dei​xar o vo​lu​m e alto. — Quan​to mais ba​r u​lho, me​lhor — ex​pli​c ou, afas​tan​-
do-se. Mas Sandy já obe​de​c ia, mes​m o an​tes da ex​pli​c a​ç ão.
Foi en​tão que Er​nie en​ten​deu por que o ves​go o fas​c i​na​va. Por​que era um
sol​da​do! Dos me​lho​r es que já vira: rá​pi​do nas de​c isões, pre​c i​so e cla​r o nas or​-
dens, exa​to nos mo​vi​m en​tos. Não, não era um sol​da​do, mas um ofi​c i​a l ha​bi​tu​a ​do
a co​m an​dar. Um ofi​c i​a l de cor​po​r a​ç ão de eli​te... Um “ho​m em de ouro” do Exér​-
ci​to! Da​na​do de bom!
— Mer​da... — mur​m u​r ou, rin​do para si mes​m o. — Ele é igual​zi​nho a mim,
nos bons tem​pos...
O que ex​pli​c a​va por que o fi​ze​r a an​dar até o res​tau​r an​te. Por
que, olho no olho, o ves​go tam​bém per​c e​be​r a a ver​da​de: eram am​bos da
mes​m a raça!
— Sou uma bes​ta... — Er​nie riu ou​tra vez. — Uma gran​de bes​ta!
Quan​do Jack vol​tou da ins​pe​ç ão ao de​pó​si​to, to​dos es​ta​vam aco​m o​da​dos à
vol​ta da mesa que Gin​ger e Bren​dan ha​vi​a m pre​pa​r a​do. Ele sor​r iu, rá​pi​do, mais
com os olhos que com os lá​bi​os, e per​gun​tou a Er​nie:
— Tudo bem?
— Cla​r o, com​pa​nhei​r o... — Er​nie ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. — E mui​to obri​ga​do!
Sem res​pon​der, o ho​m em apro​xi​m ou-se da ca​be​c ei​r a da mesa, onde ha​via
uma ca​dei​r a à sua es​pe​r a e, ao som de El​vis Pres​ley, co​m e​ç ou:
— Meu nome é Jack Twist e não sei nada so​bre o que está acon​te​c en​do co​-
nos​c o, além do que ouvi hoje, sen​ta​do lá fora. Acho que al​guém nos me​teu numa
ter​r í​vel en​r as​c a​da, mas é bom que vo​c ês sai​bam des​de já que essa é a pri​m ei​r a
vez, em oito anos, que te​nho a cer​te​za de es​tar en​tran​do do lado cer​to da bri​ga.
Es​tou com os “mo​c i​nhos” pela pri​m ei​r a vez, em oito anos... Meu Deus! Não po​-
dem ima​gi​nar como eu pre​c i​sa​va mu​dar de lado!
O te​nen​te Tom Hor​ner, or​de​nan​ç a do co​r o​nel Falkirk, ti​nha mãos imen​sas. O
pe​que​no gra​va​dor qua​se de​sa​pa​r e​c ia na sua pal​m a di​r ei​ta, quan​do ele en​trou no
es​c ri​tó​r io sem ja​ne​las. Com de​dos tão lar​gos, era di​f í​c il ima​gi​ná-lo li​gan​do o gra​-
va​dor sem o au​xí​lio de um lá​pis. Mas era há​bil como pou​c os. O apa​r e​lho apa​r e​-
ceu de re​pen​te, como sa​í​do da man​ga, foi pos​to so​bre a mesa e li​ga​do sem pro​-
ble​m as.
A fita fora co​pi​a ​da do mo​ni​tor que, fa​zia meia hora, re​gis​tra​va as con​ver​sas
das tes​te​m u​nhas reu​ni​das no mo​tel. Pri​m ei​r o, a des​c o​ber​ta de que Shenk​f i​e ld era
ape​nas uma cor​ti​na de fu​m a​ç a. Thun​der Hill... Le​land ba​lan​ç ou a ca​be​ç a ao ou​-
vir a re​f e​r ên​c ia ao de​pó​si​to das mon​ta​nhas. Nun​c a ima​gi​nou que des​c o​bris​-
sem. Mui​to es​per​tos... o que os tor​na​va ain​da mais pe​r i​go​sos.
A fita ro​da​va: “Não po​de​m os fa​lar aqui. Esta sala não é se​gu​r a”.
— É Twist — dis​se o te​nen​te Hor​ner, con​tro​lan​do a voz for​te e gra​ve com a
mes​m a ha​bi​li​da​de com que con​tro​la​va as mãos. Des​li​gou o gra​va​dor. — Sa​bí​a ​-
mos que ele es​ta​va a ca​m i​nho. É um ho​m em pe​r i​go​so... Era pre​vi​sí​vel que fos​se
mais cui​da​do​so que os ou​tros, cla​r o... mas che​gou ar​m a​do até os den​tes! Pa​r e​c e
que veio para um com​ba​te!
Tan​to quan​to sa​bi​a m, o blo​queio de me​m ó​r ia de Jack Twist não apre​sen​ta​va
si​nais de de​te​r i​o​r a​ç ão. Ele não ti​nha pe​sa​de​los, nem cri​ses de fuga ou in​c ons​c i​ê n​-
cia, nem so​nam​bu​lis​m o, nem fo​bia. Por​tan​to, ha​via só uma ex​pli​c a​ç ão para sua
re​pen​ti​na apa​r i​ç ão em Elko a bor​do de um ja​ti​nho fre​ta​do: o trai​dor que en​vi​a ​r a
as fo​tos para o en​de​r e​ç o de Cor​vai​sis e para a casa dos Block.
Le​land Falkirk es​tre​m e​c ia de fu​r ia ao lem​brar que ha​via um trai​dor en​vol​vi​-
do na ope​r a​ç ão. Um de seus ho​m ens, tal​vez al​guém em Thun​der Hill. A pri​m ei​r a
no​tí​c ia de suas ati​vi​da​des só lhe che​ga​r a com as fi​tas da reu​ni​ã o en​tre Do​m i​nick
Cor​vai​sis e os Block, na noi​te do sá​ba​do an​te​r i​or. Pela pri​m ei​r a vez, ou​vi​r a fa​lar
das fo​tos en​vi​a ​das, sem re​m e​ten​te, pelo cor​r eio. No se​gun​do se​guin​te, ini​c i​a ​r am-
se as in​ves​ti​ga​ç ões so​bre to​dos os en​c ar​r e​ga​dos de Thun​der Hill, mas ain​da não
pos​su​í​a m re​sul​ta​dos pal​pá​veis.
— O pior está por vir — co​m en​tou Hor​ner, fa​zen​do uma ca​r e​ta, e no​va​-
men​te li​gou o gra​va​dor.
Le​land ou​viu a aula que Twist deu às tes​te​m u​nhas so​bre es​c u​ta ele​trô​ni​c a; de
re​pen​te, fez-se si​lên​c io. O te​nen​te des​li​gou o apa​r e​lho.
— Es​tão reu​ni​dos no res​tau​r an​te — dis​se. — Des​li​ga​r am os te​le​f o​nes.
Man​ti​ve con​ta​to por rá​dio com os agen​tes do pos​to de ob​ser​va​ç ão jun​to à ro​do​-
via. In​f or​m a​r am que to​dos sa​í​r am do mo​tel e en​tra​r am no res​tau​r an​te, mas, pelo
me​nos até ago​r a, nos​sos ho​m ens não con​se​gui​r am ou​vir pa​la​vra do que di​zem.
Nos​sos am​pli​f i​c a​do​r es es​tão com in​ter​f e​r ên​c ia.
— Po​dem des​li​gar os am​pli​f i​c a​do​r es — res​m un​gou Le​land, es​m ur​r an​do a
mesa. — Twist é um pro​f is​si​o​nal.
— E eles já sa​bem so​bre Thun​der Hill. Pre​c i​sa​m os agir.
— Es​tou es​pe​r an​do no​tí​c i​a s de Chi​c a​go.
— Shark​le ain​da está lá? Con​ti​nua en​trin​c hei​r a​do em casa?
— Sim, pelo que di​zem as úl​ti​m as no​tí​c i​a s. Te​m os de che​gar até ele para
des​c o​brir se é ver​da​de que se lem​brou de tudo. Se isso se con​f ir​m ar, se ele con​-
tou a al​guém o que viu aqui no ve​r ão re​tra​sa​do, será um erro in​va​dir o mo​tel
para pren​der as “tes​te​m u​nhas”. Te​r e​m os de pen​sar em ou​tro pla​no.
Ma​r eie dor​m ia no colo da mãe quan​do Jack Twist se apre​sen​tou. Jor​j a tam​-
bém es​ta​va exaus​ta, mas a pre​sen​ç a da​que​le ho​m em fa​zia-a es​que​c er o can​sa​ç o
e o sono, e ela es​pe​r a​va, os olhos mui​to aber​tos.
Pri​m ei​r o, Jack fa​lou-lhes da pri​são na Amé​r i​c a Cen​tral e do fim de sua car​-
rei​r a mi​li​tar. Pa​r e​c ia con​tar a his​tó​r ia dis​tan​te e im​pes​so​a l de ou​tro ho​m em, do
qual, en​tre​tan​to, co​nhe​c ia bem a se​gu​r an​ç a, as li​m i​ta​ç ões e a for​ç a. Não se pre​o​-
cu​pa​va em ga​nhar a so​li​da​r i​e ​da​de fá​c il dos ou​vin​tes, nem te​m ia ser jul​ga​do.
Con​tu​do, ao fa​lar de Jenny, a voz e o ros​to al​te​r a​r am-se, Jor​j a viu-o frá​gil e
vul​ne​r á​vel como qual​quer ho​m em in​f e​liz, sau​do​so e só; um rio de dor e de amor,
cor​r en​do sem​pre, mal​c on​ti​do por trás dos olhos fri​os e du​r os. Jenny e aque​le ho​-
mem fo​r am fe​li​zes e ama​r am-se mui​to; hou​ve ne​c es​si​da​de de mui​to amor para
man​tê-los uni​dos, ape​sar dos lon​gos anos de coma. Jor​j a ten​tou ima​gi​nar o que
po​de​r ia ser um ca​sa​m en​to como o de​les... um ca​sa​m en​to raro, es​pe​c i​a l. Mas o
ho​m em sen​ta​do à ca​be​c ei​r a da mesa, con​tan​do a his​tó​r ia de sua pró​pria vida, co​-
me​ç a​va a pa​r e​c er-lhe ain​da mais raro e mui​to es​pe​c i​a l. Jor​j a ou​via-o com cres​-
cen​te in​te​r es​se.
Jack não foi mui​to pre​c i​so quan​do se re​f e​r iu a sua pro​f is​são. Nem ex​pli​c ou
di​r ei​to a pro​c e​dên​c ia do di​nhei​r o com que pa​ga​r a a clí​ni​c a onde Jenny es​ti​ve​r a
in​ter​na​da. Dis​se ape​nas, com mui​ta fran​que​za, que seu tra​ba​lho não era le​gal,
que já não se or​gu​lha​va dele e sen​tia-se fe​liz, afi​nal, por es​tar de vol​ta à tur​m a
dos “mo​c i​nhos”.
— Nun​c a ma​tei nin​guém — in​f or​m ou —, ex​c e​to em com​ba​te. Gra​ç as a
Deus! E bom vo​c ês não co​nhe​c e​r em mui​tos de​ta​lhes, por​que po​de​r i​a m ter pro​-
ble​m as no fu​tu​r o.
Os acon​te​c i​m en​tos de ju​lho, no ve​r ão re​tra​sa​do, afe​ta​r am-lhe
a vida, mas, como no caso de Sandy, mu​da​r am-no para me​lhor.
— Pelo que en​ten​di, você aca​ba de con​f es​sar, in​di​r e​ta​m en​te, que ga​nha​va
a vida como la​drão pro​f is​si​o​nal — dis​se Er​nie; es​pe​r ou que Jack res​pon​des​se e,
como este per​m a​ne​c eu ca​la​do, con​ti​nuou:
— Es​tou pen​san​do... Com cer​te​za, você fa​lou so​bre isso com o pes​so​a l que
nos fez a la​va​gem ce​r e​bral. Você nos con​tou so​bre os co​f res dos ban​c os onde
guar​da​va o di​nhei​r o que pro​va​vel​m en​te rou​ba​va... dis​se que cada um fora alu​ga​-
do sob iden​ti​da​de fal​sa... E cla​r o, en​tão que, pelo me​nos des​de ju​lho do ano re​tra​-
sa​do, o Exér​c i​to co​nhe​c e a na​tu​r e​za de seu tra​ba​lho.
jack ou​via em si​lên​c io, sem con​f ir​m ar nem des​m en​tir. E o si​lên​c io era mais
cla​r o que uma con​f is​são com​ple​ta.
— Ain​da as​sim — Er​nie pros​se​guiu —, eles apa​ga​r am de sua me​m ó​r ia a
lem​bran​ç a do que acon​te​c eu aqui e o man​da​r am para casa... Por que di​a ​bos agi​-
ram as​sim? Bas​ta​r ia um te​le​f o​ne​m a anô​ni​m o para a po​lí​c ia de Nova York, por
exem​plo, e você es​ta​r ia pre​so.
— Tal​vez — su​ge​r iu Jor​j a — não es​ti​ves​sem mui​to se​gu​r os quan​to à efi​c á​-
cia do blo​queio. Dei​xa​r am-nos ir para fi​c ar de olho em nós... e es​pe​r ar. Caso fos​-
se ne​c es​sá​r io, nos se​qües​tra​r i​a m em qual​quer es​qui​na para nos sub​m e​ter a ou​tras
sessões de la​va​gem ce​r e​bral. Como po​de​r i​a m se​guir ou se​qües​trar Jack se ele es​-
ti​ves​se na pri​são?
— Per​f ei​to — con​c or​dou Jack, sor​r in​do-lhe. Acer​tou na mos​c a.
Jor​j a bai​xou os olhos, fin​giu que aca​r i​c i​a ​va os ca​be​los de Ma​r eie e es​c on​deu
o pra​zer que lhe dava o pri​m ei​r o sor​r i​so de Jack Twist. Um sor​r i​so cla​r o, ca​lo​r o​-
so, fran​c o.
— Eles têm um se​gre​do — Jack con​ti​nuou —, um se​gre​do tão im​por​tan​te
que os obri​gou a me dei​xar li​vre.
— Ou não — ob​ser​vou Gin​ger. — Eles te​r i​a m con​di​ç ões de pro​gra​m ar
você para que se re​ge​ne​r as​se.
— Con​di​ç ões, tal​vez. Tem​po, não.
— Com toda aque​la gen​te pre​c i​san​do de tra​ta​m en​to rá​pi​do, cla​r o que não
ti​nham tem​po para pen​sar na sal​va​ç ão de mi​nha alma. Não... Co​m e​c ei a me re​-
ge​ne​r ar quan​do vol​tei a me sen​tir cul​pa​do pelo que fa​zia, por vi​ver à mar​gem da
lei. Acho que essa mu-
dan​ç a acon​te​c eu, de al​gum modo, mo​ti​va​da pela ex​pe​r i​ê n​c ia que ti​ve​m os
aqui. Vi​m os al​gu​m a coi​sa que ain​da não sa​be​m os iden​ti​f i​c ar, mas que foi mui​to
im​por​tan​te, mui​to pro​f un​da. Algo que me obri​gou a re​a ​va​li​a r mi​nha vida pas​sa​-
da. Algo que me obri​gou a ver que, por ter​r í​vel que te​nha sido a dor de per​der
Jenny, nada, nem mes​m o a dor, jus​ti​f i​c a​r ia a vida sem es​pe​r an​ç a que eu le​va​va.
— E isso! — Sandy sor​r iu. — E o mes​m o que acon​te​c eu co​m i​go! Nada mais
ti​nha im​por​tân​c ia... nem mi​nha infân​c ia mi​se​r á​vel... de​pois do que acon​te​c eu na​-
que​le ve​r ão.
To​dos se en​tre​o​lha​r am, ca​la​dos. Que ex​pe​r i​ê n​c ia se​r ia tão pro​f un​da a pon​to
de con​ver​ter um ho​m em como Jack, ou de fa​zer re​vi​ver a alma des​pe​da​ç a​da da
po​bre Sandy ? Mis​té​r io.
Jack se​pa​r ou mais al​guns dis​c os e li​gou ou​tra vez o apa​r e​lho. De​pois, fez
mui​tas per​gun​tas, co​m e​ç an​do a mon​tar um qua​dro com​ple​to das des​c o​ber​tas ou
lem​bran​ç as com as quais po​di​a m ope​r ar até aque​le mo​m en​to.
Cada vez mais, Jor​j a ad​m i​r a​va sua ca​pa​c i​da​de de li​de​r an​ç a. Quan​do ele os
es​c a​lou para as vá​r i​a s ta​r e​f as que ocu​pa​r i​a m os dias se​guin​tes, nin​guém à vol​ta
da mesa con​tes​tou suas de​c isões. E nin​guém, tam​pou​c o, pa​r e​c ia sen​tir-se ma​ni​-
pu​la​do. Não. To​dos re​c o​nhe​c i​a m nele o lí​der que es​pe​r a​vam.
Para Jor​j a, Jack era ou​tro tipo de exem​plo, mais ou me​nos como Gin​ger. A
seu modo, era um pou​c o o ho​m em que ela gos​ta​r ia de ser. Ou de ter. Um ho​m em
como Alan nun​c a po​de​r ia ter sido.
Por fim, che​ga​r am ao pro​ble​m a mais ime​di​a ​to: a pos​si​bi​li​da​de de um ata​que
da DERO. A me​di​da que se evi​den​c i​a ​vam os si​nais de que os blo​quei​os men​tais
co​m e​ç a​vam a ce​der, cres​c ia o ris​c o de Falkirk or​de​nar o as​sal​to ao mo​tel. E o
ris​c o evi​den​te​m en​te se​r ia mai​or se con​ti​nu​a s​sem reu​ni​dos. A par​tir da ma​nhã se​-
guin​te man​te​r i​a m-se di​vi​di​dos em gru​pos, como Jack su​ge​r iu. Quan​to àque​la noi​-
te, con​c or​da​r am em que a mai​o​r ia iria dor​m ir, en​quan​to dois ou três se​gui​r i​a m
para Elko, de car​r o, sem pa​r ar em ne​nhum lo​c al em es​pe​c i​a l, aten​tos a qual​quer
mo​vi​m en​to sus-
pei​to. Às qua​tro da ma​nha, os dois ou três se​r i​a m subs​ti​tu​í​dos e vol​ta​r i​a m ao
mo​tel para des​c an​sar.
— Pre​f i​r o sair no pri​m ei​r o gru​po — dis​se Jack. — Mas pre​c i​so an​dar até o
lu​gar onde dei​xei o jipe. Quem vai co​m i​go?
— Eu — ofe​r e​c eu-se Jor​j a, mas, lem​bran​do-se da fi​lha, emen​dou: —
Que​r o di​zer... se al​guém to​m ar con​ta de Ma​r eie até ama​nhã.
— Cla​r o! Fay e le​van​tou-se. — Ela dor​m e co​nos​c o.
Bren​dan pron​ti​f i​c ou-se tam​bém a sair com o pri​m ei​r o gru​po.
Jor​j a sor​r iu. Era cedo, ain​da, para sen​tir-se tão frus​tra​da por não ter Jack só
para si...
C©mo to​dos ti​nham ta​r e​f as pre​vis​tas para a ma​nhã se​guin​te, o se​gun​do gru​-
po in​c luiu ape​nas Ned e Sandy. Os que iam sair com​bi​na​r am en​c on​trar-se às
qua​tro ho​r as em fren​te ao su​per​m er​c a​do.
— Se vo​c ês che​ga​r em an​tes — re​c o​m en​dou Jack —, pelo amor de Deus
não com​prem hamwi​c h. E ve​ne​no. Ago​r a, va​m os nos me​xer.
— Só um ins​tan​te, por fa​vor — pe​diu Gin​ger, os bra​ç os cru​za​dos so​bre a
mesa. — Es​tou re​m o​e n​do uma idéia des​de hoje à tar​de, quan​do Bren​dan che​gou,
e as mar​c as aver​m e​lha​das apa​r e​c e​r am nas mãos dele e nas de Dom... e ou​vi​-
mos aque​le ru​í​do es​tra​nho... e a luz... Es​tou ten​tan​do en​ten​der o que acon​te​c eu.
Acho que des​c o​bri, pelo me​nos, par​te da ex​pli​c a​ç ão.
— Pois fale... — Jack aco​m o​dou-se na ca​dei​r a.
— Há um ele​m en​to co​m um em to​dos os nos​sos so​nhos — ela co​m e​ç ou. —
Por mais di​f e​r en​te que se​j am, têm algo a ver com a Lua. Tudo bem. Os ou​tros
de​ta​lhes que ve​m os em so​nhos... os quar​tos, as ca​m as, os apa​r e​lhos mé​di​c os, as
agu​lhas in​tra​ve​no​sas... não são, na ver​da​de, ir​r e​a is... Per​ten​c em a fa​tos que efe​ti​-
va​m en​te vi​ve​m os. São lem​bran​ç as que​r en​do vir à tona. A par​tir daí, po​de​m os
con​c luir que a Lua tam​bém é par​te im​por​tan​te do que hou​ve co​nos​c o. Ou​tra
lem​bran​ç a, como as lu​vas que me as​sus​ta​vam. Até aqui, tudo en​ten​di​do?
— Per​f ei​to — Dom res​pon​deu por to​dos.
— As luas de Ma​r eie fo​r am se aver​m e​lhan​do. Jack nos con​tou que tam​-
bém so​nhou com uma lua ver​m e​lha. Nin​guém mais, até o mo​m en​to, pelo me​-
nos, so​nhou com luas ver​m e​lhas, po​r ém o fato de a mes​m a ima​gem apa​r e​c er
nos so​nhos de duas pes​so​a s é pro​va de que a Lua ver​m e​lha faz par​te de al​gu​m a
coi​sa que re​a l​m en​te acon​te​c eu. Para sim​pli​f i​c ar... acho que na​que​la sex​ta-fei​-
ra, dia seis de ju​lho, vi​m os al​gu​m a coi​sa que fez a Lua pa​r e​c er ver​m e​lha. A luz
que Bren​dan viu em seu quar​to, e que to​dos vi​m os aqui no mo​tel quan​do ele che​-
gou, é como... uma re​pe​ti​ç ão do mes​m o fe​nô​m e​no. Uma ima​gem que sur​ge
para nos aju​dar a lem​brar.
— Tudo bem... — Jack co​ç ou a ca​be​ç a. — Mas... su​pon​do que al​guém es​-
te​j a in​te​r es​sa​do em nos aju​dar a lem​brar... como fa​r ia es​sas ima​gens sur​gi​r em
por aí, no ar? Que luz é essa? De onde vem?
— Tam​bém te​nho res​pos​ta para isso, mas va​m os por par​tes. Para co​m e​-
çar, pre​c i​sa​m os des​c o​brir o que acon​te​c eu para a Lua fi​c ar ver​m e​lha.
Nin​guém ti​r a​va os olhos dela. As​sus​ta​da com o que ia di​zen​do, Gin​ger agi​-
tou-se na ca​dei​r a, er​gueu-se, co​m e​ç ou a an​dar pelo res​tau​r an​te.
Ela acre​di​ta​va na ci​ê n​c ia. Acre​di​ta​va que o uni​ver​so era re​gi​do por leis ló​gi​-
cas e cla​r as, não ha​ven​do mis​té​r io que re​sis​tis​se ao as​sal​to da in​te​li​gên​c ia hu​m a​-
na. Mas, ao con​trá​r io da mai​o​r ia dos ci​e n​tis​tas e da gran​de mai​o​r ia dos mé​di​c os,
não via por que dei​xar de lado os fan​tás​ti​c os po​de​r es da ima​gi​na​ç ão, sem​pre que
fos​sem ne​c es​sá​r i​os para es​ti​m u​lar a in​te​li​gên​c ia ou a ló​gi​c a. Sem isso, ja​m ais te​-
ria mon​ta​do a fá​bu​la que, na​que​le ins​tan​te, ex​pu​nha aos com​pa​nhei​r os.
Uma hi​pó​te​se es​tra​nha, que ela não ima​gi​na​va como se​r ia re​c e​bi​da. Por
isso, an​da​va de um lado para ou​tro, cru​zan​do e des-cru​zan​do os de​dos.
— Os ho​m ens que to​m a​r am con​ta de nós nos dois pri​m ei​r os dias usa​vam tra​-
jes “ve​da​dos”, uma es​pé​c ie de pro​te​ç ão de​se​nha​da es​pe​c i​f i​c a​m en​te con​tra o ris​-
co de con​ta​m i​na​ç ão por agen​te bio-
ló​gi​c o. Com cer​te​za, pen​sa​vam que es​ti​vés​se​m os con​ta​m i​na​dos por al​gum
tipo de bac​té​r ia. Nes​se caso, po​de​r i​a ​m os ter sido ex​pos​tos a uma nu​vem de agen​-
te tó​xi​c o. Uma nu​vem aver​m e​lha​da... que ti​ves​se en​c o​ber​to a Lua.
— E te​r í​a ​m os sido con​ta​m i​na​dos por um des​ses... mi​c ró​bi​os...
— Jor​j a pen​sou em voz alta.
— E isso ex​pli​c a​r ia o que acon​te​c eu on​tem, jun​to à ro​do​via. Eu me lem​-
brei de Dom, na​que​la noi​te, gri​tan​do que “está den​tro de mim!” Faz sen​ti​do... se
ele ti​ves​se res​pi​r a​do uma nu​vem de agen​tes bac​te​r i​o​ló​gi​c os. As mes​m as pa​la​-
vras que lhe ocor​r e​r am em Reno, quan​do es​ta​va no mo​tel e viu a tal luz.
— E por que não es​ta​m os do​e n​tes? — Bren​dan per​gun​tou.
— Por​que fo​m os tra​ta​dos com mui​ta ra​pi​dez. — Dom aju​dou Gin​ger. — Já
dis​c u​ti​m os essa hi​pó​te​se. Mas... a luz que vi​m os hoje era mui​to bri​lhan​te. Não pa​-
re​c ia fil​tra​da por uma nu​vem de gás, nem por agen​tes bac​te​r i​o​ló​gi​c os...
— Eu sei... — Gin​ger con​ti​nu​a ​va a ca​m i​nhar pelo res​tau​r an​te.
— Pre​c i​so pen​sar mais e ver como se en​c ai​xam al​guns pe​que​nos de​ta​lhes,
como os anéis aver​m e​lha​dos nas mãos de vo​c ês, por exem​plo. Mas já é um co​-
me​ç o, uma hi​pó​te​se de tra​ba​lho que só po​de​r á ser des​c ar​ta​da quan​do con​se​guir​-
mos pro​var que não ex​pli​c a nada. Pelo me​nos mi​nha te​o​r ia ex​pli​c a par​te dos
mis​té​r i​os.
— Que par​te?! — Ned ar​r e​ga​lou os olhos.
— Os mi​la​gres que Bren​dan fez em Chi​c a​go; os pôs​te​r es da casa de Lo​-
mack dan​ç an​do ao re​dor de Dom; o ter​re​mo​to que que​brou as vi​dra​ç as do res​tau​-
ran​te na noi​te de sá​ba​do, quan​do Dom ten​ta​va lem​brar o que hou​ve no ve​r ão re​-
tra​sa​do. E tal​vez ex​pli​que a luz ver​m e​lha que vi​m os hoje.
O úl​ti​m o dis​c o ca​lou-se sem que nin​guém per​c e​bes​se. Que im​por​tân​c ia te​r ia
isso, se ali es​ta​va Gin​ger pro​m e​ten​do ex​pli​c ar-lhes o inex​pli​c á​vel?
— Até aqui, mi​nha te​o​r ia é sim​ples — pros​se​guiu ela. — Não tem nada
de... in​c rí​vel ou fan​tás​ti​c o. Uma nu​vem de agen​te tó​xi​c o. Nada de ex​tra​or​di​ná​r io.
Mas, des​te pon​to em di​a n​te, vo​c ês te​r ão que em​bar​c ar numa vi​a ​gem de ima​gi​-
na​ç ão. Até ago​r a, ten-
ta​m os acre​di​tar que a luz que al​guns ha​vi​a m vis​to e que to​dos vi​m os hoje é
um tipo de fe​nô​m e​no so​bre​na​tu​r al. O pa​dre Wy ca-zik, ami​go de Bren​dan, in​sis​te
em fa​lar na “mão de Deus”. Mas nem Bren​dan, que é pa​dre, pa​r e​c e con​ven​c i​do
de que haja al​gu​m a coi​sa de so​bre​na​tu​r al en​vol​vi​da nes​ses... mis​té​r i​os. Mi​nha
idéia é... ora, é sim​ples! Tal​vez o po​der que cria lu​zes e ru​í​dos, faz vo​a ​r em fo​tos e
cura do​e n​tes seja... men​tal! Al​gu​m a ener​gia pa​r a​nor-mal que Bren​dan e Dom
pos​su​e m. Tal​vez a te​nham de​sen​vol​vi​do... ou tal​vez a te​nham re​c e​bi​do... por cau​-
sa do que acon​te​c eu aqui na noi​te da Lua ver​m e​lha. Tec​ni​c a​m en​te, a ha​bi​li​da​de
de mo​ver cor​pos só​li​dos com a for​ç a do pen​sa​m en​to cha​m a-se te​le​c i​ne​se. Há
pes​so​a s que nas​c em com esse po​der... ou​tras o de​sen​vol​vem com exer​c í​c i​os. Há
ci​e n​tis​tas, em todo o mun​do, pes​qui​san​do e...
Os ros​tos vol​ta​r am-se para Dom e Bren​dan, uns sor​r i​den​tes, ou​tros mui​to sé​-
ri​os. Mas eles dois, os olhos ar​r e​ga​la​dos, vi​r a​r am-se para Gin​ger.
— Mas... você en​lou​que​c eu! — Dom gri​tou. — Quer lar​gar a me​di​c i​na e
abrir um cir​c o para nos exi​bir? Eu?! Na te​le​vi​são?!
— E eu? — Bren​dan per​gun​tou bai​xi​nho, sem co​r a​gem de se me​xer.
Sé​r ia, Gin​ger fez que não com a ca​be​ç a e pros​se​guiu:
— O que es​tou di​zen​do é que vo​c ês po​dem ter uma es​pé​c ie de po​der te​le​-
ci​né​ti​c o. In​c ons​c i​e n​te, é cla​r o. Nem vo​c ês mes​m os o co​nhe​c em. Ve​j a​m os os fa​-
tos. Você, Bren​dan, con​tou que, na pri​m ei​r a vez que os anéis apa​r e​c e​r am em
suas mãos, você es​ta​va no hos​pi​tal, pen​te​a n​do o ca​be​lo de uma me​ni​na do​e n​te.
Dis​se que es​ta​va mor​to de pena da me​ni​na, in​dig​na​do, re​vol​ta​do con​tra o des​ti​no,
frus​tra​do por não po​der aju​dá-la. É pos​sí​vel que essa frus​tra​ç ão, essa in​dig​na​ç ão
te​nham dis​pa​r a​do o po​der... que, em seu caso, se​r ia uma cer​ta ca​pa​c i​da​de de cu​-
rar fe​r i​das, re​ge​ne​r ar te​c i​dos, es​ti​m u​lar o nas​c i​m en​to de cé​lu​las sa​di​a s. Mas
você não sabe de nada. Nem po​de​r ia sa​ber! O modo como de​sen​vol​veu esse po​-
der é par​te do que foi apa​ga​do de sua me​m ó​r ia. Os fa​tos são se​m e​lhan​tes à his​tó​-
ria do po​li​c i​a l de quem você fa​lou... Hor​r o​r i​za​do com a in​j us​ti​ç a da mor​te de um
ho​m em bom, as-
sas​si​na​do no cum​pri​m en​to do de​ver, você con​se​guiu es​tan​c ar a he​m or​r a​gia
e sal​vou-o.
Sem pa​r ar de an​dar, Gin​ger pros​se​guiu:
— E você, Dom, nos dis​se que an​dou pela casa de Lo​m ack, cada vez mais
frus​tra​do por​que não con​se​guia des​c o​brir nada, por​que o mis​té​r io lhe pa​r e​c ia
cada vez mais in​de​c i​f rá​vel, e de re​pen​te sen​tiu von​ta​de de ar​r an​c ar os pôs​ters da
pa​r e​de. E foi exa​ta​m en​te o que acon​te​c eu! Você não os ar​r an​c ou com as mãos,
mas com esse... poc/er. E lem​bra-se de que tudo pa​r ou quan​do você gri​tou “Pa​-
rem!”?
Dom, Bren​dan e al​guns ou​tros, à vol​ta da mesa, ba​lan​ç a​vam afir​m a​ti​va​m en​-
te a ca​be​ç a, pa​r e​c en​do con​ven​c i​dos. Sandy, po​r ém, le​van​tou-se, os olhos bri​lhan​-
tes, e de​c la​r ou:
— Cla​r o que faz sen​ti​do! Pen​sem no que acon​te​c eu aqui no res​tau​r an​te, no
sá​ba​do pas​sa​do. Dom ten​ta​va se lem​brar do que te​r ia acon​te​c i​do na​que​la sex​ta-
fei​r a. E en​quan​to ten​ta​va... a coi​sa co​m e​ç ou. O “ter​r e​m o​to”, os sons... Sem sa​-
ber, ele re​pro​du​ziu a cena que ten​ta​va lem​brar.
— Es​tão ven​do? — Gin​ger riu, fe​liz. — Bas​ta co​m e​ç ar a pen​sar, e tudo se
en​c ai​xa.
— Mas... e a luz? Quer di​zer que... cri​a ​m os aque​la luz? — Dom fran​ziu as
so​bran​c e​lhas.
— Não é im​pos​sí​vel. Cha​m a-se pi​r o​c i​ne​se, ou pi​r o​gi​nia, ou fo-to​c i​ne​se.
Ca​pa​c i​da​de de pro​du​zir luz ou ca​lor com o po​der das on​das ce​r e​brais.
— Luz?!
— Sim, luz. Acho que, quan​do vo​c ês dois se vi​r am pela pri​m ei​r a vez, de
cer​to modo re​c o​nhe​c e​r am-se. Um viu a aura do ou​tro. Em al​gum ní​vel do in​-
cons​c i​e n​te pro​f un​do, am​bos “lem​bra​r am-se” do que hou​ve. E um quis aju​dar o
ou​tro. Jun​tos, vo​c ês cri​a ​r am a luz que to​dos nós vi​m os.
— Es​pe​r e! — Er​nie er​gueu a mão, sé​r io. — Vá com cal​m a. Sua te​o​r ia
par​tiu da idéia de que te​r í​a ​m os sido con​ta​m i​na​dos por uma nu​vem de bac​té​r i​a s,
que en​c o​briu a Lua e tor​nou-a ver​m e​lha. Daí pu​lou para essa idéia ma​lu​c a de
que Dom e Bren​dan têm po​de​r es
que ar​r an​c am coi​sas da pa​r e​de e cu​r am do​e n​tes e fa​zem apa​r e​c er lu​zes... e
re​ben​tam mi​nhas ja​ne​las. O que a luz ver​m e​lha tem a ver com isso?
Gin​ger fe​c hou os olhos, res​pi​r ou fun​do. Ali es​ta​va o pon​to cru​c i​a l da te​o​r ia, a
par​te mais es​pan​to​sa e ina​c re​di​tá​vel:
— Su​po​nha​m os que... o agen​te bac​te​r i​o​ló​gi​c o que nos con​ta​m i​nou ti​ves​se
um efei​to co​la​te​r al, ca​paz de pro​vo​c ar uma es​pé​c ie de sin​to​m a que nin​guém ha​-
via de​tec​ta​do. Um sin​to​m a que cri​ou os po​de​r es de Dom e Bren​dan... O agen​te
po​de​r ia, por exem​plo, pro​vo​c ar for​te al​te​r a​ç ão hor​m o​nal ou ge​né​ti​c a. Como po​-
de​r ia es​ti​m u​lar a ati​vi​da​de de de​ter​m i​na​das áre​a s cor​ti​c ais, ce​r e​brais... sei lá!
Um efei​to co​la​te​r al que não foi eli​m i​na​do pelo tra​ta​m en​to a que os dois fo​r am
sub​m e​ti​dos.
A vol​ta da mesa, si​lên​c io. Uns olha​vam para os la​dos, ou​tros bai​xa​vam a ca​-
be​ç a, con​c en​tra​dos em di​ge​r ir o que Gin​ger di​zia. Não ocor​r ia a nin​guém que ela
es​ti​ves​se lou​c a. Não. O que os es​pan​ta​va era exa​ta​m en​te o con​trá​r io: a co​r a​gem
com que se dei​xa​r a le​var pela ra​zão, par​tin​do de uma hi​pó​te​se ini​c i​a l, per​f ei​ta-
men​te ló​gi​c a, para che​gar à con​c lu​são, tam​bém ló​gi​c a, em​bo​r a ina​c re​di​tá​vel.
— Deus do céu... — Dom res​pi​r ou fun​do. — Ain​da não sei se en​ten​do ou
não o que você está di​zen​do, mas... que idéia fan​tás​ti​c a! Que his​tó​r ia ma​r a​vi​lho​-
sa... para um ro​m an​c e! Um ví​r us, cri​a ​do pela en​ge​nha​r ia ge​né​ti​c a, que, en​tre
ou​tros efei​tos, ace​le​r a a evo​lu​ç ão do cé​r e​bro hu​m a​no e dá aos ho​m ens po​de​res
es​pe​c i​a is! E a pri​m ei​r a vez, em mui​tas se​m a​nas, que sin​to von​ta​de de cor​r er
para a má​qui​na de es​c re​ver. Ali​á s, fica com​bi​na​do... se sair​m os vi​vos des​te mo​-
tel, você re​c e​be uma par​c e​la dos di​r ei​tos au​to​r ais do li​vro que vou es​c re​ver.
Em​ba​lan​do Ma​r eie, Jor​j a le​van​tou os olhos e per​gun​tou:
— Mas... por que não pode ser ver​da​de? Por que te​m os que trans​f or​m ar a
te​o​r ia em ro​tei​r o de ro​m an​c e? E se as coi​sas ti​ves​sem acon​te​c i​do bem as​sim...
como ela con​tou?
— Pos​so pen​sar em, pelo me​nos, um mo​ti​vo — dis​se Jack Twist. — Por
que ape​nas Dom e Bren​dan con​se​guem cu​r ar gen​te e ar-
ran​ç ar pôs​ters... e que​brar vi​dra​ç as, se to​dos nós fo​m os ex​pos​tos ao tal ví​r us?
— Tal​vez não te​nha​m os to​dos sido con​ta​m i​na​dos, mas ape​nas eles. Ou tal​-
vez al​guns de nós se​j a​m os re​sis​ten​tes a esse tipo de ví​r us — Gin​ger res​pon​deu.
E Fay e con​ti​nuou:
— Ou tal​vez esse efei​to co​la​te​r al do ví​r us não se ma​ni​f es​te em to​dos os que
fo​r am con​ta​m i​na​dos.
— Sem dú​vi​da. E pos​sí​vel. — Gin​ger vol​tou a an​dar pela sala; as pos​si​bi​li​-
da​des de ex​plo​r a​ç ão de sua idéia ex​c i​ta​vam-na de​m ais para per​m i​tir-lhe sen​tar-
se.
Necl pas​sou as mãos pelo ca​be​lo, olhou em vol​ta, ba​lan​ç ou a ca​be​ç a e per​-
gun​tou:
— Será que o Exér​c i​to sabe des​se... efei​to co​la​te​r al?
— Tal​vez — dis​se Gin​ger.
— Acho que não sa​bem de nada — re​pli​c ou Er​nie, cru​zan​do os bra​ç os. —
Pelo que vo​c ês le​r am no Sen​ti​ne​la, a ro​do​via foi blo​que​a ​da an​tes de acon​te​c er o
“aci​den​te”, o que pro​va que nem aci​den​te foi... Res​ta a hi​pó​te​se de que o pró​prio
Exér​c i​to ti​ves​se dei​xa​do va​zar uma nu​vem de gás tó​xi​c o, com o pro​pó​si​to de​li​be​-
ra​do de nos con​ta​m i​nar. Isso é im​pos​sí​vel. Não pos​so acre​di​tar que nos usas​sem
como co​bai​a s de uma arma bi​o​ló​gi​c a tão... es​tra​nha. Mas, ain​da que fos​se pos​sí​-
vel, não se​r ia ló​gi​c o! Que in​te​r es​se te​r ia o Exér​c i​to em cri​a r ho​m ens e mu​lhe​r es
que nem mes​m o eles po​de​r i​a m con​tro​lar? Sim, ami​gos... E isso mes​m o... se a te​-
o​r ia de Gin​ger está cor​r e​ta, esse ví​r us cria ou​tra es​pé​c ie de hu​m a​ni​da​de... su​pe​ri​-
or a tudo que co​nhe​c e​m os. Po​der psí​qui​c o gera po​der mi​li​tar, po​der po​lí​ti​c o e po​-
der eco​nô​m i​c o. As​sim, se o Exér​c i​to sou​bes​se que esse ví​r us cau​sa​r ia tal trans​-
for​m a​ç ão nas pes​so​a s, ja​m ais o tes​ta​r ia sem con​tro​le. O que que​r o di​zer é que
não es​c o​lhe​r i​a m pes​so​a s como nós, sem nada de ex​c ep​c i​o​nal, que só es​ta​vam
aqui por aca​so. Nem pen​sar! Eles es​c o​lhe​r i​a m a dedo! Meia dú​zia de gran​des
em​pre​sá​r i​os, ou o pre​si​den​te da Re​pú​bli​c a, ou o di​r e​tor da CIA... qual​quer gran​de
fi​gu​r ão! Con​c or​do com Dom... a te​o​r ia de nu​vem de gás que co​bre a Lua de ver​-
me​lho e nos dá po​der para cu​r ar do​e n​tes e que​brar vi​dra​ç as é ma​r a​vi​lho​sa
para um ro​m an​c e, mas não é ra​zo​á ​vel. De qual​quer modo, o go​ver​no não sabe
des​se tal efei​to co​la​te​r al que vo​c ês es​tão in​ven​tan​do.
Dom e Bren​dan me​xi​a m-se nas ca​dei​r as, afli​tos com os olha​r es de es​pan​to,
medo, ad​m i​r a​ç ão e res​pei​to. Gin​ger, po​r ém, sen​tiu que, ao me​nos para eles, o
im​pos​sí​vel co​m e​ç a​va a ga​nhar ares de pos​si​bi​li​da​de... a fan​tás​ti​c a, ma​r a​vi​lho​sa,
des​lum​bran​te e as​sus​ta​do​r a pos​si​bi​li​da​de de al​gum dia des​c o​brir que eram úni​-
cos. Só os dois... fren​te a toda a hu​m a​ni​da​de.
— Não! — Dom le​van​tou-se de um sal​to e vol​tou a cair so​bre a ca​dei​r a, os
jo​e ​lhos frou​xos. — Não e não! Isso não é pos​sí​vel, não sou su​per-ho​m em, não
sou ex​tra​ter​r es​tre, nem te​nho po​de​r es... — Não! Se fos​se as​sim... eu sen​ti​r ia. Eu
sen​ti​ría.!
— Já pen​sei na pos​si​bi​li​da​de de ter sido o ve​í​c u​lo da cura de Emmy — dis​-
se Bren​dan em voz bai​xa e su​a ​ve. — Já pen​sei na pos​si​bi​li​da​de de que al​gu​m a
for​ç a... Deus ou qual​quer ou​tra... es​ti​ves​se agin​do atra​vés de mim, no caso de
Emmy, no caso de Tolk... Mas nun​c a pen​sei em ser eu mes​m o o agen​te des​ses...
mi​la​gres. De qual​quer modo, ain​da não en​ten​do... até pou​c o tem​po atrás, es​tá​va​-
mos des​c o​brin​do que a his​tó​r ia do va​za​m en​to de gás tó​xi​c o era fal​sa, que não
hou​ve va​za​m en​to, que a his​tó​r ia foi in​ven​ta​da para en​c o​brir a ver​da​de. E ago​r a...
Jack, Jor​j a, Fay e e Ned fa​la​r am ao mes​m o tem​po. Gin​ger pe​diu si​lên​c io:
— Cal​m a, cal​m a! E bo​ba​gem per​der​m os tem​po dis​c u​tin​do se hou​ve ou
não hou​ve va​za​m en​to, por​que não po​de​m os pro​var nada. Não sa​be​m os se va​zou
um gás, se o tal ví​r us exis​te e foi li​be​r a​do por aci​den​te ou não... Mas po​de​m os
tes​tar a se​gun​da par​te de mi​nha te​o​r ia.
— C...como? — Sandy ar​r e​ga​lou os olhos.
— Po​de​m os tes​tar os po​de​r es de Dom e Bren​dan — pro​pôs ela, sor​r in​do.
— Não sa​be​m os como os con​se​gui​r am, mas po​de​m os des​c o​brir se eles os têm
ou não.
Sa​bia que era bo​ba​gem, pura per​da de tem​po. Po​r ém, ao mes​m o tem​po, te​-
mia o que pu​des​se acon​te​c er. E se des​se cer​to? O que se​r ia a vida de um ho​m em,
en​tre ho​m ens di​f e​r en​tes, o pri​m ei​r o, tal​vez o úl​ti​m o, de sua es​pé​c ie? Quem olha​-
ria sem medo para al​guém ca​paz de cri​a r lu​zes, ar​r an​c ar fo​tos, Deus sabe
que mais? Como sen​tar-se com um ami​go? Dei​tar-se com uma mu​lher? Como
con​vi​ver com o des​lum​bra​m en​to de al​guns e, cer​ta​m en​te, com a in​ve​j a de mui​-
tos ou​tros?!
Um des​ti​no bem in​j us​to o seu! Trin​ta e cin​c o anos de vida, es​c on​di​do na toca
de co​e ​lho, tí​m i​do, me​dro​so. De re​pen​te, tudo mu​dou e, du​r an​te quin​ze me​ses, a
vida pa​r e​c eu en​trar nos ei​xos... até co​m e​ç a​r em as cri​ses de so​nam​bu​lis​m o. Se o
tes​te de Gin​ger des​se cer​to, se con​se​guis​sem pro​var que ti​nha po​de​r es qua​se im​-
pos​sí​veis de des​c re​ver ou ava​li​a r, vol​ta​r ia à so​li​dão de an​tes. Não mais por medo
ou ti​m i​dez... mas por​que já não ha​ve​r ia lu​gar para ele no mun​do dos ho​m ens co​-
muns.
O tes​te... Dom pe​dia a Deus que fos​se um fra​c as​so!
Ele e Bren​dan sen​ta​r am-se fren​te a fren​te, um em cada ca​be​c ei​r a da mesa,
Jor​j a dei​ta​r a Ma​r eie num dos ban​c os, e a me​ni​na con​ti​nu​a ​va dor​m in​do. Os sete
adul​tos es​pe​r a​vam, sen​ta​dos ao re​dor da mesa, mas dis​tan​tes, dei​xan​do dois ou
três es​pa​ç os va​gos jun​to a Bren​dan e Dom.
A fren​te de Dom, Gin​ger co​lo​c ou um sa​lei​r o. O tes​te era sim​ples: bas​ta​va
que ele con​se​guis​se mo​ver o sa​lei​r o sem tocá-lo.
— O sa​lei​r o não pre​c i​sa dan​ç ar — ex​pli​c ou ela. — Bas​ta que se mova um
pou​c o e mi​nha te​o​r ia es​ta​r á com​pro​va​da.
Na ou​tra ca​be​c ei​r a, fren​te a Bren​dan, co​lo​c ou um vi​dro de mo​lho de pi​m en​-
ta. Dom olha​va o sa​lei​r o com a mes​m a in​ten​si​da​de com que Bren​dan fi​ta​va o
pe​que​no ci​lin​dro de vi​dro fos​c o. Por mais que re​pe​tis​se que não acre​di​ta​va na in​-
ter​f e​r ên​c ia di​vi​na em ne​nhum dos “mi​la​gres” de que ha​via par​ti​c i​pa​do, era cla​-
ro, para Dom, que o pa​dre que​r ia e es​pe​r a​va en​c on​trar um si​nal da mão de
Deus. Que​r ia reen​c on​trar a fé per​di​da, que​r ia vol​tar à sua pa​r ó​quia. Mas, se
aque​la lou​c u​r a que Gin​ger ar​qui​te​ta​r a des​se cer​to, se fos​se pos​sí​vel pro​var que
Bren​dan cu​r a​va os do​e n​tes e era
ca​paz de sal​var vi​das... por obra e gra​ç a de uma bac​té​ria... o que acon​te​c e​r ia
com sua fé em Deus?!
O sa​lei​r o.
Dom fi​xou os olhos e con​c en​trou-se em nada. Nada, a não ser o sa​lei​r o. Até
para des​c o​brir que não era ca​paz de movê-lo, sa​bia que pre​c i​sa​va ten​tar. Se o po​-
der fos​se real, nem Gin​ger nem nin​guém ti​nha a me​nor idéia de como con​tro​lá-
lo.
— Mas — ela ar​gu​m en​tou —, se o po​der apa​r e​c e em mo​m en​tos de má​xi​m o
stress, é cla​r o que você mes​m o vai des​c o​brir como con​tro​lá-lo quan​do e como
qui​ser... Como um mú​si​c o, por exem​plo, que pode usar seu ta​len​to. Como um es​-
cri​tor di​a n​te de uma fo​lha de pa​pel em bran​c o.
E ali es​ta​va o sa​lei​r o, imó​vel.
Dom con​c en​trou-se no ob​j e​to que via: um ci​lin​dro de vi​dro fos​c o, com tam​-
pi​nha de me​tal, fu​r i​nhos, sal, como se fos​se o úni​c o ob​j e​to na sala. Fe​c hou os
olhos, tor​nou a abri-los, obri​gan​do-se a não pen​sar em mais nada... O sa​lei​r o.
Não pen​sar... O sa​lei​r o... Até sen​tir os den​tes do​e ​r em, cer​r a​dos com vi​o​lên​c ia, os
pul​sos re​te​sa​dos.
Nada.
Mu​dou de tá​ti​c a. Em vez de ati​r ar-se ao sa​lei​r o como se qui​ses​se fazê-lo ex​-
plo​dir, re​sol​veu re​la​xar, des​c on​trair as mãos, ten​tar apro​xi​m ar-se como se qui​-
ses​se des​c o​brir-lhe a alma, até re​c ri​a r uma ima​gem e apos​sar-se dele. Tal​vez o
ca​m i​nho fos​se a empa-tia... Isso: em​pa​tia ho​m em-ob​j e​to. Não po​dia or​de​nar ao
sa​lei​r o que se mo​vi​m en​tas​se, mas tal​vez pu​des​se con​vi​dá-lo para um pas​seio,
como se fos​sem bons e ve​lhos ami​gos. Só um pas​so...
De​bru​ç ou-se para olhar mais de per​to as cin​c o fa​c es de vi​dro fos​c o, cri​a n​do
uma su​per​f í​c ie aces​sí​vel a qual​quer mão. A base de vi​dro mais gros​so e pe​sa​do
per​m i​tia que o sa​lei​r o se man​ti​ves​se em equi​lí​brio es​tá​vel so​bre a to​a ​lha. A tam​-
pa de me​tal...
Nada. O sa​lei​r o con​ti​nu​a ​va imó​vel, como um mo​nu​m en​to eter​no, ime​m o​r i​-
al, mais den​so que o ar, in​te​gra​do à to​a ​lha, for​m an​do par​te da mes​m a ma​té​r ia,
in​se​pa​r á​vel.
A ma​té​r ia do mun​do... em per​pé​tua agi​ta​ç ão... os áto​m os que
não pa​r am nun​c a, sem​pre os mes​m os, no ho​m em e no vi​dro, gi​r an​do uns por
cima dos ou​tros, numa or​dem im​pe​c á​vel, in​c or​r up​tí​vel, do áto​m o aos pla​ne​tas...
a dan​ç a eter​na das es​tru​tu​r as, das me​no​r es às mai​o​r es. Tão fá​c il... tão sim​ples...
O sa​lei​r o não era iner​te. Os áto​m os con​ti​nu​a ​vam a gi​r ar, como an​tes, como des​-
de o co​m e​ç o dos tem​pos, nada es​ta​va pa​r a​do. Mas os ho​m ens nada viam. Para
que vis​sem e acre​di​tas​sem, era pre​c i​so ace​le​r ar o rit​m o da dan​ç a dos áto​m os.
Tor​nar vi​sí​vel o in​vi​sí​vel. Um pas​so... só um pas​si​nho...
Dom sen​tiu-se li​vre, como se es​ti​ves​se se li​ber​tan​do de peso e mas​sa, in​te​-
gra​do à na​tu​r e​za das for​ç as es​sen​c i​a is, ar​que​tí​pi​c as.
E en​tão o sa​lei​r o an​dou. Em sua con​c en​tra​ç ão, Dom es​que​c e​r a-se de to​dos.
Mas per​c e​beu que não es​ta​va só ao ou​vir um gri​to aba​f a​do, de sur​pre​sa e sus​to.
O sa​lei​r o con​ti​nu​a ​va a se mo​ver. Er​gueu-se da mesa e flu​tu​a ​va bem pró​xi​m o
ao ros​to de Dom, como se a gra​vi​da​de não pu​des​se man​tê-lo co​la​do à to​a ​lha.
Con​ti​nuou para cima, como um pe​que​no ba​lão fos​c o, e pa​r ou me​tro e meio aci​-
ma da mesa. Lá fi​c ou, à vis​ta de to​dos, pou​c o aci​m a da li​nha de vi​são.
Na ou​tra ca​be​c ei​r a, o vi​dro de mo​lho de pi​m en​ta tam​bém flu​tuou até al​c an​-
çar a al​tu​r a onde o es​pe​r a​va o sa​lei​r o. Só en​tão Bren-dan con​se​guiu ti​r ar os olhos
do vi​dro de mo​lho e vi​r ou-se para Dom. Foi um ins​tan​te, e tor​nou a fi​xar-se no
vi​dro, com medo de vê-lo es​pa​ti​f ar-se como se seu olhar o sus​ten​tas​se no ar.
Os olhos de Bren​dan bri​lha​vam de emo​ç ão, medo, des​lum​bra​m en​to e amor.
Che​ga​r a à des​c o​ber​ta da fra​ter​ni​da​de pro​f un​da que o li​ga​va a Dom, à cer​te​za de
que, a par​tir da​que​le mo​m en​to, ha​vi​a m par​ti​lha​do a ex​pe​r i​ê n​c ia úni​c a de um po​-
der qua​se tão gran​de quan​to o de Deus.
Dom pa​r e​c ia in​tri​ga​do. Não acre​di​ta​va que fos​se obra sua o es​pan​to​so voo
do sa​lei​r o. Não se sen​tia au​tor de nada, res​pon​sá​vel por nada, ve​í​c u​lo de nada.
Po​der te​le​c i​né​ti​c o? Sim, tal​vez... Mas sim​ples e ób​vio como res​pi​r ar ou sen​tir o
pul​sar do co​r a​ç ão.
Bren​dan er​gueu as mãos: lá es​ta​vam os anéis aver​m e​lha​dos.
Dom cur​vou a ca​be​ç a e exa​m i​nou as suas: os mes​m os si​nais, in​c om​preen​sí​-
veis, mas pre​sen​tes e vi​vos.
— É ina​c re​di​tá​vel — mur​m u​r ou Gin​ger. — Será que vo​c ês po​dem fazê-los
an​dar para a fren​te e para trás, num mo​vi​m en​to ho​r i​zon​tal?
— Po​dem er​guer ob​j e​tos mais pe​sa​dos? — Sandy per​gun​tou.
— E a luz? — lem​brou Er​nie. — Po​dem fa​zer sur​gir aque​la luz ver​m e​lha?
Me​tó​di​c o, Dom de​c i​diu ir por par​tes. Fa​zer o sa​lei​r o gi​r ar no ar. Mal pen​sou e
lá es​ta​va o sa​lei​r o, dan​ç an​do como uma bola de ár​vo​r e de Na​tal. Na ou​tra ca​be​-
cei​r a, o vi​dro de mo​lho de to​m a​tes o acom​pa​nhou. De​va​gar, sa​lei​r o e vi​dro de
mo​lho apro​xi​m a​r am-se um do ou​tro: o tal mo​vi​m en​to ho​r i​zon​tal que Gin​ger pe​-
di​r a, em​bo​r a Dom não ti​ves​se cons​c i​ê n​c ia de ter or​de​na​do ao sa​lei​r o que an​das​-
se para a fren​te. A voz de Gin​ger com cer​te​za fora su​f i​c i​e n​te para que, in​c ons​c i​-
en​te​m en​te, ele cri​a s​se a nova pos​si​bi​li​da​de de mo​vi​m en​to. Es​tra​nho... sa​bia que
con​tro​la​va o sa​lei​r o, mas des​c o​nhe​c ia como.
O sa​lei​r o e o vi​dro de mo​lho de pi​m en​ta pa​r a​r am no ar, a um pal​m o de dis​-
tân​c ia um do ou​tro, sem​pre gi​r an​do; de​pois mo​vi​m en​ta​r am-se para a fren​te, um
à vol​ta do ou​tro, ro​dan​do em ór​bi​tas re​gu​la​r es, per​f ei​tas e sin​c ro​ni​za​das. Após
um ins​tan​te, co​m e​ç a​r am a gi​r ar cada vez mais de​pres​sa, em ór​bi​tas cada vez
mais com​ple​xas.
Ma​r a​vi​lha​dos, to​dos ri​r am e ba​te​r am pal​m as. Dom olhou para Gin​ger e viu-
a ra​di​a n​te, o ros​to como que ilu​m i​na​do de fe​li​c i​da​de, mais bo​ni​ta do que nun​c a.
Ela sen​tiu o olhar, vi​r ou-se para ele, sor​r iu e ace​nou-lhe. Jack Twist e Er​nie Block,
bo​qui​a ​ber​tos, se​gui​a m a dan​ç a dos vi​dros ilu​m i​na​dos, não como dois sol​da​-
dos ma​du​r os e en​du​r e​c i​dos pela guer​r a, mas como dois ga​r o​tos, pela pri​m ei​r a
vez na vida des​c o​brin​do a ma​r a​vi​lha dos fo​gos de ar​ti​f í​c io. Rin​do, Fay e acom​pa​-
nha​va os vi​dros com as mãos, como se qui​ses​se su​bir com eles e en​trar no bai​le.
Ned ria de ore​lha a ore​lha, e Sandy cho​r a​va as pri​m ei​r as lá​gri​m as de ale​gria.
— Oh... — Sandy sor​r iu para Dom, o ros​to la​va​do de lá​gri​m as.
— Não é lin​do? Sei lá o que os faz dan​ç ar, mas é lin​do... A li​ber​da​de! O mo​-
vi​m en​to dos vi​dri​nhos... sol​tos, li​vres... dan​ç an​do por aí, para lá e para cá...
Dom sen​tia a mes​m a emo​ç ão, uma emo​ç ão que, por um ins​tan​te, o fez es​-
que​c er o medo da so​li​dão, o ter​r or de se des​c o​brir úni​c o, sem par e sem ir​m ão.
Sen​tia-se li​ber​to, como os vi​dros que dan​ç a​vam; trans​c en​den​te, sem ca​dei​a s li​-
mi​tan​do o po​der e a fe​li​c i​da​de.
To​dos, na sala, dei​xa​vam-se le​var pela exal​ta​ç ão de ver que a es​pé​c ie se
trans​f or​m a​va, bem ali, di​a n​te de seus olhos. De​pois da​que​la noi​te, o mun​do ja​-
mais vol​ta​r ia a ser o mes​m o.
— Faça mais! — Gin​ger pe​diu.
Pelo sa​lão do res​tau​r an​te os sa​lei​r os er​gue​r am-se no ar... sete, oito, dez... um
de cada mesa. Pa​r a​r am no es​pa​ç o e logo, como que se​du​zi​dos, gi​r a​vam ao rit​m o
e à ve​lo​c i​da​de do pri​m ei​r o. De​pois, fo​r am os vi​dros de mo​lho de to​m a​te.
Dom con​ti​nu​a ​va não en​ten​den​do como aqui​lo tudo po​dia acon​te​c er e sen​tia
que Bren​dan sa​bia tão pou​c o quan​to ele.
A cai​xa de mú​si​c a, de re​pen​te, co​m e​ç ou a fun​c i​o​nar. Uma can​ç ão inex​pli​c á​-
vel e re​pen​ti​na, como o balé dos vi​dros.
Fui eu?, pen​sou Dom. Ou foi Bren​dan?
— Meu Deus! — Gin​ger gri​tou. — Es​tou... acho que vou... plotzl
— Plotz ! — Dom riu. — O que é isso?
— Es​tou​r ar, ex​plo​dir.... Es​tou tão emo​c i​o​na​da que acho que vou ex​plo​dir!
Os sa​lei​r os, os vi​dros de mo​lho, e ago​r a as pe​que​nas ban​de​j as de lou​ç a bran​-
ca vo​a ​vam pelo ar, cada vez mais rá​pi​das, com um zum​bi​do sem​pre mais agu​do,
até que as ca​dei​r as sol​ta​r am-se do chão.
Mas as ca​dei​r as não se er​gue​r am de​va​gar, com a cal​m a e a elegân​c ia dos
vi​dros: fo​r am como que atra​í​das para o teto, com vi​o​lên​c ia, com for​ç a. Ba​te​r am
no es​tu​que, que​bra​r am duas das lu​m i​ná​r i​a s, apa​ga​r am lâm​pa​das. Uma das lu​m i​-
ná​r i​a s des​pre​gou-se do teto e es​pa​ti​f ou-se no chão, a al​guns cen​tí​m e​tros da ca​-
dei​r a de Dom. No teto, as ca​dei​r as vi​bra​vam, ba​ten​do umas nas ou​tras
como mor​c e​gos api​nha​dos numa ca​ver​na. Os sa​lei​r os já não dan​ç a​vam em
har​m o​nia e equi​lí​brio, mas vo​a ​vam como pro​j é​teis en​lou​que​c i​dos, es​tou​r an​do
con​tra as ca​dei​r as, o teto, as pa​r e​des. Um, vo​a n​do bai​xo, fe​r iu o om​bro de Er​nie.
O fe​nô​m e​no fu​gia de con​tro​le. E, as​sim como não ima​gi​na​vam o que fi​ze​r a
os ob​j e​tos se mo​ve​r em, Bren​dan e Dom tam​bém não sa​bi​a m com detê-los.
Já nin​guém ria ou aplau​dia. Es​ta​vam to​dos ca​la​dos, as​sus​ta​dos, que​r en​do
pro​te​ger ros​tos e olhos. As ca​dei​r as, ba​ten​do con​tra o es​tu​que, cons​ti​tu​í​a m ou​tra
ame​a ​ç a. O ba​r u​lho aca​bou acor​dan​do Ma​r eie, que se sen​tou, es​f re​gou os olhos,
co​m e​ç ou a cho​r ar e cha​m ou a mãe.
Jor​j a cor​r eu para ela, abra​ç ou-a e pu​xou-a para bai​xo de uma das me​sas. A
vol​ta, o gru​po abri​ga​va-se como po​dia. As ca​dei​r as pe​sa​vam ain​da so​bre as ca​-
be​ç as de Dom e Bren​dan, sen​ta​dos à mesa mai​or.
Dom sen​tia-se como se al​guém lhe ti​ves​se jo​ga​do no colo uma gra​na​da de
es​to​pim ace​so. A di​r ei​ta, três ou qua​tro sa​lei​r os ca​í​r am ao chão, es​pa​lhan​do ca​-
cos. Dom olhou para Bren​dan, sem sa​ber o que fa​zer: bus​c ar abri​go ou ten​tar
con​tro​lar o pe​r i​go que os ame​a ​ç a​va. De olhos ar​r e​ga​la​dos, Bren​dan tam​bém pa​-
re​c ia per​di​do.
Uma das lu​m i​ná​r i​a s que ain​da re​sis​tia ce​deu ao ata​que das ca​dei​r as, des​-
pren​deu-se e lá fi​c ou, pen​du​r a​da pe​los fios, cri​a n​do som​bras que gi​r a​vam pe​las
pa​r e​des. Ou​tro sa​lei​r o caiu so​bre a mesa, bem em fren​te de Dom, e ex​plo​diu
como um tiro, jo​gan​do sal em seu ros​to.
Dom, en​tão, lem​brou-se dos pôs​te​r es de Lo​m ack: le​van​tou as mãos para o
teto, cer​r ou os pu​nhos para es​c on​der os anéis aver​m e​lha​dos e gri​tou:
— Pa​r em! Pa​r em já!
Fez-se um ins​tan​te de si​lên​c io. As ca​dei​r as pa​r a​r am de ba​ter, os sa​lei​r os, vi​-
dros de mo​lho e ban​de​j as pa​r a​r am de voar, sus​pen​sos no ar, onde es​ta​vam. E foi
como se a casa de​sa​bas​se: doze ca​dei​r as e meia dú​zia de sa​lei​r os ca​í​r am jun​tos,
num só mo​vi​m en​to, co-
mo se al​guém hou​ves​se des​li​ga​do o ímã que os man​ti​nha no ar.
Quan​do o úl​ti​m o caco de vi​dro pa​r ou de re​ti​nir e es​ta​lou o úl​ti​m o pé de ca​-
dei​r a que​bra​da, Dom e Bren​dan es​ta​vam tão apa​vo​r a​dos como to​dos os ou​tros,
que es​pi​a ​vam de lon​ge, em seus es​c on​de​r i​j os por bai​xo do bal​c ão ou das me​sas.
Dom pis​c ou, pas​sou a mão pelo ca​be​lo, viu Bren​dan co​brir o ros​to com as
mãos e no​tou o es​pan​to​so si​lên​c io do sa​lão. Até que a vo​zi​nha de Ma​r eie e a voz
ain​da trê​m u​la de Jor​j a, ten​tan​do acal​m á-la, cha​m a​r am-nos de vol​ta à re​a ​li​da​de.
Er​nie ain​da es​f re​ga​va o om​bro, mas o fe​r i​m en​to era su​per​f i​c i​a l. Não ha​via
ou​tros fe​r i​dos, em​bo​r a to​dos tre​m es​sem dos pés à ca​be​ç a, tsem ti​r ar os olhos dos
ros​tos de Dom e Bren​dam e sem achar o que di​zer. O olhar que Dom te​m ia.
Mer​da! Exa​ta​m en​te o olhar que adi​vi​nha​va.
Gin​ger era a úni​c a que não pa​r e​c ia as​sus​ta​da. Mal saiu do es​c on​de​r i​j o sob a
mesa, cor​r eu para Dom e abra​ç ou-o, rin​do.
— O que im​por​ta é que nós des​c o​bri​m os! — ex​c la​m ou. — Vo​c ês têm o
po​der de mo​ver ob​j e​tos. E isso é ma​r a​vi​lho​so! Com o tem​po, aos pou​c os, apren​-
de​r ão a con​tro​lar isso.
— Não sei... — Dom ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, olhan​do os ca​c os de vi​dro, as ca​-
dei​r as que​bra​das, a lu​m i​ná​r ia pen​du​r a​da por um fio. Viu Jack lim​pan​do a ca​m i​sa
suja de mo​lho de to​m a​te, Jor​j a con​ver​san​do em voz bai​xa com Ma​r eie, que cho​-
ra​va bai​xi​nho, Fay e exa​m i​nan​do o om​bro de Er​nie e ti​r an​do ca​c os dos ca​be​los,
Ned ava​li​a n​do o ris​c o de a lu​m i​ná​r ia sol​tar-se e cair so​bre al​guém. — Não sei
como co​m e​ç ou — mur​m u​r ou. — Não sei como aca​bou. Mas sei que to​dos cor​-
re​m os um ris​c o mui​to gra​ve.
— A ver​da​de é que você con​se​guiu des​c er as ca​dei​r as — dis​se Gin​ger,
sem ti​r ar a mão da cin​tu​r a dele, sen​tin​do que Dom pre​c i​sa​va de​ses​pe​r a​da​m en​te
de con​ta​to hu​m a​no. — Você des​c o​briu um modo de fa​zer essa coi​sa pa​r ar.
— Mas... e se eu não con​se​guis​se pará-la. Se acon​te​c er ou​tra vez? — Dom
es​tre​m e​c eu. — Veja como está o sa​lão! Al​guém po​de​r ia ter se fe​r i​do!
— Não há mor​tos nem fe​r i​dos. Olhe só!
— Mas...
— A pri​m ei​r a vez é sem​pre di​f í​c il. Da pró​xi​m a será me​lhor. Bren​dan apro​-
xi​m ou-se e dis​se:
— Dê tem​po ao tem​po. Dom pre​c i​sa ha​bi​tu​a r-se à idéia. Quan​to a mim,
sei que vou ten​tar ou​tra vez. Da​qui a dois ou três dias, de​pois de pen​sar so​bre o
que acon​te​c eu. Saio, vou para um lu​gar onde não haja pe​r i​go de fe​r ir nin​guém, e
ten​to ou​tra vez. Acho que não será fá​c il apren​der a con​tro​lar essa... ener​gia. Vai
dar tra​ba​lho, tal​vez de​m o​r e mui​to tem​po... Mas, que​r o ten​tar, e acho que con​si​go.
Dom aca​ba​r á des​c o​brin​do que é a úni​c a al​ter​na​ti​va pos​sí​vel.
— Mas não que​r o esse mal​di​to po​der! — ex​c la​m ou, sa​c u​din​do a ca​be​ç a.
— Não que​r o ser di​f e​r en​te de todo mun​do!
— Você já é — Bren​dan de​c la​r ou, cal​m o. — Você e eu...
— Con​ver​sa de pa​dre!
— Cla​r o. Mes​m o es​tan​do em cri​se, ain​da sou pa​dre, ain​da acre​di​to em
des​ti​no e pre​des​ti​na​ç ão. A van​ta​gem que le​va​m os so​bre vo​c ês é que sa​be​m os
como con​c i​li​a r fé e li​vre ar​bí​trio, des​ti​no e es​c o​lha. Sa​be​m os que o ho​m em é fei​-
to des​ses dois me​te​r i​a is, igual​m en​te no​bres.
In​c a​paz de en​ten​der ta​m a​nha ani​m a​ç ão e bom hu​m or, Dom mu​dou de as​-
sun​to:
— Tudo bem, dou​to​r a. Pro​va​m os me​ta​de de sua te​o​r ia. Por sor​te, pro​va​-
mos tam​bém que a ou​tra me​ta​de é fal​sa.
— O que quer di​zer? — Gin​ger fran​ziu a tes​ta.
— Que​r o di​zer que, du​r an​te essa... lou​c u​r a, des​c o​bri uma coi​sa. Quan​do vi
os anéis apa​r e​c e​r em em mi​nhas mãos, des​c o​bri, com ab​so​lu​ta cer​te​za, que essa
ener​gia não é efei​to co​la​te​r al de ne​nhum mi​c ró​bio. Ago​r a sei que a cau​sa é ou​-
tra, em​bo​r a ain​da não sai​ba qual é. Es​tou sen​do cla​r o?
— Não sei. O que quer di​zer com “sei”?
— Que sei... Sei com cer​te​za... sin​to, no fun​do de mim.
— E eu tam​bém sei — Bren​dan con​f ir​m ou, a voz ale​gre e des​pre​o​c u​pa​da.
— Você acer​tou quan​do su​ge​r iu que a ener​gia pode-ria es​tar em nós. E tam​bém
é ver​da​de que a re​c e​be​m os, de al​gum
modo, na​que​la sex​ta-fei​r a de ju​lho, no ve​r ão re​tra​sa​do. Mas não acer​tou
quan​to ao modo como a re​c e​be​m os. Co​m i​go acon​te​c eu o mes​m o que Dom aca​-
ba de con​tar. No meio da​que​le caos, tam​bém des​c o​bri que não há mi​c ró​bio al​-
gum en​vol​vi​do nes​se fe​nô​m e​no. Não sei ex​pli​c ar o que acon​te​c eu, mas sei que
será per​da de tem​po in​sis​tir na idéia da con​ta​m i​na​ç ão.
Dom en​ten​deu en​tão pelo me​nos par​te do alí​vio que per​c e​bia em Bren​dan,
ape​sar do sus​to pelo qual aca​ba​vam de pas​sar. Por mais que de​c la​r as​se não acre​-
di​tar na in​ter​f e​r ên​c ia di​vi​na para ex​pli​c ar os fe​nô​m e​nos de que era agen​te, Bren​-
dan ain​da aca​r i​c i​a ​va a es​pe​r an​ç a de reen​c on​trar a fé per​di​da. E nada po​de​r ia ser
pior, para ele, do que des​c o​brir que, em lu​gar da fé, ha​via em seu co​r a​ç ão um
mi​c ró​bio... um sub​pro​du​to da en​ge​nha​r ia ge​né​ti​c a... ou, pior ain​da, uma arma
cri​a ​da pelo ho​m em. Para ele, era um gran​de alí​vio des​c ar​tar a hi​pó​te​se da nu​-
vem de bac​té​r i​a s e dei​xar em seu lu​gar, por im​pro​vá​vel que fos​se, a pos​si​bi​li​da​-
de da ação de Deus.
Dom tam​bém gos​ta​r ia de en​c on​trar o ar​r i​m o de uma fé só​li​da que o aju​das​-
se a en​f ren​tar a vida. Na​que​le mo​m en​to, po​r ém, não via nada além de medo e
mor​te, bo​c ar​r as aber​tas, pron​tas para en​go​li-lo. Em com​pa​r a​ç ão com o que
ocor​r ia, nada eram as mu​dan​ç as que acon​te​c e​r am em sua vida, a al​te​r a​ç ão de
per​so​na​li​da​de, em al​gum mo​m en​to da vi​a ​gem en​tre Por​tland e Moun​tain​vi​e w, no
ve​r ão re​tra​sa​do — coi​sas que lhe pa​r e​c e​r am tão im​por​tan​tes, no pas​sa​do. O tal
po​der... Dom sen​tia-o vivo, den​tro de si. Um pa​r a​si​ta que aca​ba​r ia por de​vo​r ar o
ve​lho Do​m i​nick Cor​vai​sis, as​su​m i​r ia seu cor​po e se mos​tra​r ia ao mun​do como
um ver​da​dei​r o mons​tro, mas​c a​r a​do de ser hu​m a​no.
Que lou​c u​r a! Tal​vez... sim, tal​vez lou​c u​r a. De qual​quer modo, algo que o as​-
sus​ta​va e pre​o​c u​pa​va. Fi​tou os ros​tos de to​dos, que se apro​xi​m a​r am. Al​guns des​-
vi​a ​vam o olhar, in​ti​m i​da​dos ou as​sus​ta​dos. Ou​tros, como Jack Twist, Er​nie e Jor​-
ja, não bai​xa​vam os olhos, mas não con​se​gui​a m es​c on​der cer​to mal-es​tar. Ape​-
nas Gin​ger e Bren​dan pa​r e​c i​a m os mes​m os de an​tes.
— Bem... — Jack foi o pri​m ei​r o a fa​lar —, nin​guém pode re​c la​m ar de uma
noi​te sem emo​ç ões... Mas te​m os mui​to tra​ba​lho pela fren​te. É hora de nos me​-
xer​m os.
— Ama​nhã da​r e​m os ou​tro pas​so adi​a n​te — dis​se Gin​ger. — E de​pois ou​tro,
e ou​tro. Es​ta​m os pro​gre​din​do.
— Ama​nhã... — Bren​dan sor​r iu, os olhos bri​lhan​tes de emo​ç ão — será um
dia de gran​des re​ve​la​ç ões. Eu sei... eu sin​to.
Ama​nhã, pen​sou Dom, po​de​r e​m os es​tar mor​tos. Ou de​se​j an​do ter mor​r i​do
hoje.
A ca​be​ç a do co​r o​nel Le​land Falkirk re​ben​ta​va de dor. Des​de o ve​r ão re​tra​sa​-
do, com o novo há​bi​to de pen​sar em si, em sua vida, em seus pro​ble​m as, co​m e​-
ça​va a des​c o​brir que, em cer​to sen​ti​do, até gos​ta​va que a as​pi​r i​na não o fi​zes​se
sen​tir-se me​lhor. Como se es​pe​r as​se a dor de ca​be​ç a com a mes​m a emo​ç ão
com que es​pe​r a​va ou​tras do​r es, an​te​c i​pan​do o pra​zer per​ver​so de sen​tir a tes​ta
la​te​j ar.
O te​nen​te Hor​ner já se fora, dei​xan​do-o so​zi​nho no es​c ri​tó​r io sem ja​ne​las,
en​ter​r a​do no solo. De qual​quer modo, não es​pe​r a​va no​vas no​tí​c i​a s de Chi​c a​go.
Sa​bia o que pre​c i​sa​va sa​ber, e as no​vi​da​des eram as pi​o​r es pos​sí​veis.
Cal​vin Shark​le con​ti​nu​a ​va re​sis​tin​do ao cer​c o, en​trin​c hei​r a​do em casa, em
Evans​ton, e a ex​plo​si​va si​tu​a ​ç ão não se al​te​r a​r ia du​r an​te pelo me​nos doze ho​r as.
Falkirk não ar​r is​c a​r ia seus ho​m ens na in​va​são do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, an​tes de
sa​ber o que Shark​le po​de​r ia ter fei​to, con​ta​do ou dito. E odi​a ​va es​pe​r ar. O pior
era que as tes​te​m u​nhas con​se​gui​r am es​c on​der-se dos ob​ser​va​do​r es. Nada lhe
res​ta​va se​não es​pe​r ar um dia in​tei​r o. De qual​quer modo, mes​m o que a si​tu​a ​ç ão
em Chi​c a​go per​m a​ne​c es​se inal​te​r a​da, or​de​na​r ia o ata​que ao mo​tel no dia se​guin​-
te.
Ou​tras no​tí​c i​a s, tam​bém de Chi​c a​go, fa​la​vam das cu​r as mis​te​r i​o​sas de Em​-
me​li​ne Hal​bourg e Win​ton Tolk — ca​sos que nem mé​di​c os nem po​li​c i​a is po​di​a m
ex​pli​c ar. O re​la​tó​r io so​bre os pas​sos do pa​dre Wy ​c a​zik, no dia de Na​tal, in​c lu​in​do
vi​si​tas à me​ni​na e ao po​li​c i​a l, com uma pa​r a​da no de​par​ta​m en​to de po​lí​c ia téc​ni​-
ca e uma en​tre​vis​ta com o pe​r i​to em ba​lís​ti​c a, con​f ir​m a​va
a sus​pei​ta de que o sa​c er​do​te con​si​de​r a​va Bren​dan Cro​nin res​pon​sá​vel pe​los
“mi​la​gres”.
Le​land ou​vi​r a fa​lar pela pri​m ei​r a vez dos po​de​r es de Cro​nin na vés​pe​r a, do​-
min​go, ao ou​vir a gra​va​ç ão do te​le​f o​ne​m a en​tre o pa​dre Wy ​c a​zik e Do​m i​nick
Cor​vai​sis. A sur​pre​sa se​r ia mai​or se os acon​te​c i​m en​tos do sá​ba​do não o ti​ves​sem
aler​ta​do.
No sá​ba​do, Le​land Falkirk ou​viu o en​c on​tro de Dom e os Block, sem po​der
acre​di​tar. As fo​tos da Lua na casa de Lo​m ack des​gru​dan​do-se das pa​r e​des... O
es​c ri​tor fa​lan​do como um lou​c o, sem con​se​guir se​pa​r ar re​a ​li​da​de e fan​ta​sia.
Mais tar​de, de​pois do jan​tar, Dom e os Block ten​ta​r am lem​brar-se dos acon​te​c i​-
men​tos de ju​lho. E, ou​tra vez, acon​te​c eu algo es​pan​to​so, con​f ir​m a​do pe​los re​la​tó​-
ri​os dos agen​tes de vi​gi​lân​c ia vi​su​a l e pe​las fi​tas gra​va​das. O chão tre​m eu no res​-
tau​r an​te, ou​vi​r am-se ru​í​dos... zum​bi​dos... e as vi​dra​ç as ex​plo​di​r am.
Sur​pre​sa to​tal, e não só para Le​land e seus ho​m ens: os ci​e n​tis​tas en​vol​vi​dos
na ope​r a​ç ão tam​bém es​ta​vam ex​c i​ta​dís​si​m os. No dia se​guin​te, a des​c o​ber​ta de
que Bren​dan Cro​m in era ca​paz de fa​zer mi​la​gres foi a gota d’água que fal​ta​va
para en​lou​que​c ê-los. De iní​c io, eram fe​nô​m e​nos es​tra​nhos, cu​r i​o​sos, que es​pi​c a​-
ça​vam a ima​gi​na​ç ão de to​dos. Mas Le​land co​m e​ç ou a pen​sar, os ci​e n​tis​tas tam​-
bém, e logo che​ga​r am a uma con​c lu​são que os dei​xa​va ater​r a​dos. Dali em di​a n​-
te, tudo era pos​sí​vel.
— E nós que pen​sa​m os que a si​tu​a ​ç ão es​ta​va sob con​tro​le — Le​land sus​pi​-
rou. — Fo​m os con​vo​c a​dos tar​de de​m ais, quan​do já não ha​via o que fa​zer...
Seu úni​c o con​so​lo era que, tan​to quan​to sa​bia, ape​nas Cor​vai​sis e o pa​dre da​-
vam si​nas de te​r em sido... con​ta​m i​na​dos. “Con​ta​m i​na​dos” não era uma boa pa​la​-
vra. “Pos​su​í​dos”, sim, che​ga​va mais per​to da ver​da​de. Ou tal​vez não exis​tis​se um
ter​m o cer​to, por​que o que lhes acon​te​c eu ja​m ais acon​te​c e​r a a qual​quer ou​tro
ser hu​m a​no, nun​c a, em tem​po al​gum...
Mes​m o que Shark​le se ren​des​se no dia se​guin​te, mes​m o que não ti​ves​se fa​la​-
do com nin​guém, Le​land não se sen​ti​r ia se​gu​r o.
No mo​tel es​ta​vam Bren​dan e Cor​vai​sis... tal​vez mais al​guém, tal​vez to​dos...
con​ta​m i​na​dos, pos​su​í​dos, o di​a ​bo que fos​se! Po​de​r i​a m ofe​r e​c er re​sis​tên​c ia... po​-
de​r i​a m ter-se trans​f or​m a​do em su​per​ho​m ens... ou em qual​quer su​per​c oi​sa di​f í​c il
— ou im​pos​sí​vel — de pren​der.
A ca​be​ç a doía-lhe cada vez mais.
Re​la​xe e dei​xe que a dor ve​nha, pen​sou. Dei​xe que ve​nha e cres​ç a, como
você faz há tan​to tem​po, seu des​gra​ç a​do fi​lho da puta... Dei​xe que a dor tome
con​ta de tudo. Mais um dia ou dois, até que tudo es​te​j a ex​pli​c a​do. Ou que você
es​te​j a mor​to. Uma res​pos​ta ou a mor​te, qual​quer uma, a que che​gar pri​m ei​r o.
Saiu do es​c ri​tó​r io sem ja​ne​las, atra​ves​sou a ante-sala sem ja​ne​las, per​c or​r eu
o cor​r e​dor sem ja​ne​las e che​gou à sala sem ja​ne​las
o cen​tro de co​m u​ni​c a​ç ões, onde tra​ba​lha​vam o te​nen​te Hor​ner
o sar​gen​to Fixx.
— In​f or​m e aos ho​m ens que não sai​r e​m os hoje — dis​se. — Pre​c i​sa​m os es​-
pe​r ar mais um dia, para sa​ber o que acon​te​c e em Chi​c a​go.
— Já ia pro​c u​r á-lo, co​r o​nel — Hor​ner le​van​tou-se. — Te​m os no​vi​da​des no
mo​tel. As “tes​te​m u​nhas” aca​bam de sair do res​tau​r an​te. Jack Twist se​pa​r ou-se do
gru​po e vol​tou pou​c o de​pois, com um jipe que es​ta​va es​c on​di​do per​to da ro​do​via.
Ele, Jor​j a Mona-tel​la e o pa​dre sa​í​r am para Elko.
—- O que vão fa​zer em Elko, a essa hora da noi​te?! — Le​land sen​tiu um ca​-
la​f rio na es​pi​nha, des​c o​brin​do que, caso o ata​que ao mo​tel es​ti​ves​se em cur​so, os
três te​r i​a m con​se​gui​do es​c a​par. Seu pri​m ei​r o erro gra​ve fora con​f i​a r ce​ga​m en​te
na in​f or​m a​ç ão de que to​dos es​ta​vam reu​ni​dos no mo​tel.
Hor​ner apon​tou Fixx, que con​ti​nu​a ​va sen​ta​do, os fo​nes nos ou​vi​dos, aten​to
aos sons do mo​tel.
— Pelo que ou​vi​m os, os ou​tros vão dor​m ir — de​c la​r ou o sar​gen​to. Twist,
Mo​na​tel​la e o pa​dre sa​í​r am, como uma es​pé​c ie de “se​gu​r o de vida” para os que
fi​c am. Adi​vi​nha​r am que não po​de​m os ata​c á-los a me​nos que es​te​j am to​dos reu​-
ni​dos. Só pode ter sido idéia de Twist...
— Mer​da — res​m un​gou Le​land, mas​sa​ge​a n​do o pes​c o​ç o. — Tudo bem.
Não faz di​f e​r en​ç a. Ama​nhã os pe​ga​m os.
— E se eles se es​pa​lha​r em des​de cedo?
— Que​r o que se​j am se​gui​dos vin​te e qua​tro ho​r as por dia. Um agen​te para
cada tes​te​m u​nha.
Até aque​le mo​m en​to não fora ne​c es​sá​r io se​gui-los, por​que tri​lha​vam ca​m i​-
nho co​nhe​c i​do; mais dia me​nos dia, to​dos aca​ba​r i​a m che​gan​do ao Mo​tel Tran​-
qüi​li​da​de. Mas dali em di​a n​te era di​f e​r en​te. Se Twist que​r ia di​vi​di-los em gru​pos
ima​gi​nan​do que Le​land não os en​c on​tra​r ia... te​r ia uma sur​pre​sa.
— Não é fá​c il se​gui-lo aqui, em cam​po aber​to. Eles po​dem des​c on​f i​a r.
— Que des​c on​f i​e m! E bom sa​be​r em que es​tão sen​do se​gui​dos. Va​m os
man​tê-los sob pres​são, em es​ta​do de ten​são má​xi​m a. Tal​vez se as​sus​tem ao des​-
co​brir que po​de​m os en​c on​trá-los a qual​quer mo​m en​to, tal​vez cor​r am de vol​ta ao
mo​tel, onde se sen​tem mais se​gu​r os. Vol​tam para a ra​to​e i​r a... e os apa​nha​m os
reu​ni​dos.
— O me​lhor, mes​m o, é apa​nhá-los no mo​tel — pon​de​r ou Hor-ner, fran​zin​-
do as so​bran​c e​lhas. — Uma pri​são em pú​bli​c o cha​m a​r ia a aten​ç ão.
— Te​m os que pegá-los. Se não pu​der​m os pren​dê-los, va​m os matá-los. —
Le​land apa​nhou uma ca​dei​r a e sen​tou-se. — Que​r o ver os de​ta​lhes do pla​no de
vi​gi​lân​c ia para ama​nhã e de​f i​nir os agen​tes en​c ar​r e​ga​dos de se​gui-los. Que​r o to​-
dos a pos​tos an​tes dê o sol nas​c er.

3. TER​ÇA-FEI​RA, 14 DE JA​NEI​RO
As sete e meia da ma​nhã de ter​ç a-fei​r a, aten​den​do ao pe​di​do que Bren​dan
Cro​nin lhe fi​ze​r a por te​le​f o​ne na vés​pe​r a, tar​de da noi​te, o pa​dre Ste​f an Wy ​c a​zik
pre​pa​r a​va-se para ir a Evans​ton, Chi​c a​go. De​ve​r ia pro​c u​r ar Cal​vin Shark​le, o ca​-
mi​nho​nei​r o que se hos​pe​da​r a no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de em ju​lho do ano re​tra​sa​do
e que, fa​zia se​m a​nas, pa​r e​c ia ter-se eva​po​r a​do do pla​ne​ta. De​pois do que ocor​r e​-
ra em Ne​va​da, na noi​te an​te​r i​or, não ha​via dú​vi​da de que to​das as ví​ti​m as pre​c i​-
sa​vam ser lo​c a​li​za​das a qual​quer cus​to. Na co​zi​nha da casa pa​r o​qui​a l, Ste​f an pu​-
nha ca​sa​c o e cha​péu.
Ain​da sen​ta​do para o café da ma​nha, de​pois de ce​le​brar a pri​m ei​r a mis​sa do
dia, o pa​dre Ger​r a​no le​van​tou a ca​be​ç a:
— O se​nhor de​ve​r ia me con​tar o que sabe so​bre Bren​dan. Se acon​te​c er al​-
gu​m a coi​sa...
— Não vai acon​te​c er nada — Wy ​c a​zik res​pon​deu de​pres​sa. — Deus não
per​de​r ia cin​c o dé​c a​das me en​si​nan​do os se​gre​dos do mun​do, se qui​ses​se que eu
mor​r es​se ago​r a, jus​ta​m en​te quan​do es​tou pró​xi​m o de pres​tar um gran​de ser​vi​ç o
à Igre​j a.
— Ah... — fez o ou​tro, ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a. — O se​nhor é tão...
— ... se​gu​r o de mi​nha fé? — com​ple​tou o ve​lho cura. — Cla​r o que sou.
Con​f ie em Deus, e Ele não lhe fal​ta​r á.
— Na ver​da​de, eu ia di​zer — con​ti​nuou o pa​dre Ger​r a​no — que o se​nhor é
tão... tei​m o​so...
— Gran​de atre​vi​m en​to o seu — Ste​f an en​r o​lou o ca​c he​c ol no pes​c o​ç o. —
Um sim​ples cura! “Per​do​a i, Pai... Eles não sa​bem o que di​zem!” O cura per​f ei​to
deve ser hu​m il​de e tra​ba​lhar como uma mula, com ener​gia de um ca​va​lo do​pa​-
do. Além, é cla​r o, de ser sub​m is​so e res​pei​to​so para com os su​pe​r i​o​r es...
— Des​de que o su​pe​r i​or ime​di​a ​to seja um ve​lhi​nho pi​e ​do​so, sos​se​ga​do, de​-
di​c a​do de cor​po e alma ao dia-a-dia de seus paro-qui​a ​nos — con​c luiu o ou​tro.
O te​le​f o​ne to​c ou.
— Se for para mim, diga que já saí. — O pa​dre Wy ​c a​zik cor​r eu para a
por​ta, cal​ç an​do as lu​vas, e pa​r ou, por​que Ger​r a​no, co​brin​do o fone, sus​sur​r ou-lhe
que Win​ton Tolk que​r ia fa​lar. E dis​se que pa​r e​c ia his​té​r i​c o, aos ber​r os, à pro​c u​r a
de Bren​dan.
Ste​f an vol​tou, apa​nhou o te​le​f o​ne e iden​ti​f i​c ou-se.
— Pelo amor de Deus — Tolk mal con​se​guia fa​lar —, o se​nhor tem de en​-
con​trar Bren​dan Cro​nin. Não pos​so es​pe​r ar!
— Bren​dan vi​a ​j ou. Será que não pos​so aju​dá-lo?
— Vi​a ​j ou... Oh, não... — Uma pau​sa, e Tolk con​ti​nuou, fa​lan-
do aos ar​r an​c os: — Acon​te​c e uma coi​sa es​tra​nha... a coi​sa mais es​tra​nha
que já vi! E te​nho cer​te​za de que en​vol​ve Bren​dan.
— Pre​c i​sa​m os con​ver​sar. Onde está você?
— Es​tou de ser​vi​ç o, no cen​tro da ci​da​de. Hou​ve um ti​r o​teio, agres​são a
faca. Foi hor​r í​vel. E en​tão... Por fa​vor, o se​nhor pre​c i​sa me aju​dar a en​c on​trar
Bren​dan por​que ele é a úni​c a pes​soa ca​paz de ex​pli​c ar o que hou​ve.
Ste​f an con​se​guiu ar​r an​c ar um en​de​r e​ç o de Win​ton, saiu cor​r en​do da casa
pa​r o​qui​a l, di​r i​giu como um lou​c o até o cen​tro da ci​da​de e me​nos de meia hora
de​pois che​ga​va a um quar​tei​r ão de pré​di​os cin​zen​tos, to​dos de seis an​da​r es, su​j os
e ve​lhos. Foi obri​ga​do a es​ta​c i​o​nar lon​ge do nú​m e​r o que Tolk lhe dera, por​que a
rua es​ta​va to​m a​da por vi​a ​tu​r as da po​lí​c ia, pelo car​r o do Ins​ti​tu​to Mé​di​c o-Le​gal e
por de​ze​nas de guar​das que an​da​vam de um lado para o ou​tro com rá​di​os co​la​-
dos à ore​lha. E foi a um de​les que Ste​f an per​gun​tou:
— O que hou​ve?
— Con​f u​são no ter​c ei​r o an​dar. No apar​ta​m en​to da fa​m í​lia Men-doza —
res​pon​deu-lhe o po​li​c i​a l.
O vi​dro da por​ta do pré​dio es​ta​va que​bra​do, co​la​do com fita iso​lan​te pre​ta, e
o hall es​ta​va mui​to sujo. A um can​to, duas me​ni​nas brin​c a​vam de en​ter​r o com
uma bo​ne​c a ve​lha e uma cai​xa de sa​pa​tos. Ao en​trar no apar​ta​m en​to dos Men​-
do​za, o pa​dre Wy ca-zik viu o sofá bege en​c har​c a​do de san​gue. Era tan​to san​gue
que, em al​guns pon​tos, o as​sen​to pa​r e​c ia pin​ta​do de pre​to. Ha​via san​gue res​pin​-
ga​do pe​las pa​r e​des ama​r e​lo-cla​r as, à vol​ta de uma gran​de man​c ha cen​tral, mar​-
can​do o pon​to onde al​guém fora fu​zi​la​do. Qua​tro ti​r os, no mí​ni​m o, fu​r a​r am o re​-
bo​c o, de​pois de atra​ves​sar o cor​po. E ha​via mais san​gue no aba​j ur, na mesa do
cen​tro, na es​tan​te de li​vros, no chão. A cena pa​r e​c ia mais cho​c an​te por cau​sa do
con​tras​te com o apar​ta​m en​to po​bre, po​r ém lim​po e bem ar​r u​m a​do, mais do que
se po​de​r ia es​pe​r ar num pré​dio como aque​le. Mes​m o obri​ga​dos a vi​ver num cor​-
ti​ç o, os Men​do​za re​j ei​ta​r am a ren​di​ç ão com​ple​ta e lu​ta​r am para con​ser​var ao
me​nos os res​tos da dig​ni​da​de pas​sa​da. A su​j ei​r a das ruas e do sa​guão ter​m i-
nava na por​ta do apar​ta​m en​to, como se ali vi​ves​se o úl​ti​m o des​c en​den​te de
uma tri​bo em ex​tin​ç ão, gen​te ci​vi​li​za​da e or​dei​r a. Não fos​se o san​gue, a sala es​-
ta​r ia bri​lhan​do de lim​pa.
Ste​f an ti​r ou o cha​péu e en​trou na úni​c a peça do apar​ta​m en​to, di​vi​di​da em
três por um bi​om​bo de um lado e um pe​que​no apa-ra​dor de ou​tro: para lá o quar​-
to, para cá a co​zi​nha. Ha​via qua​se uma dú​zia de po​li​c i​a is ali: in​ves​ti​ga​do​r es,
guar​das far​da​dos, agen​tes da po​lí​c ia téc​ni​c a. Ape​nas dois ou três pa​r e​c i​a m tra​ba​-
lhar; os ou​tros olha​vam em vol​ta, sem que​r er sair, ape​sar de não ter o que fa​zer,
reu​nin​do-se em gru​pos e fa​lan​do em voz bai​xa, como se es​ti​ves​sem num en​ter​r o.
Um dos ra​r os de​te​ti​ves ata​r e​f a​dos es​ta​va sen​ta​do à mesa, fa​zen​do per​gun​tas
a uma mu​lher mo​r e​na de ros​to co​m um, com pou​c o me​nos de qua​r en​ta anos.
Cha​m a​va-a de sra. Men​do​za e ano​ta​va cui​da​do​sa​m en​te o que ela di​zia. A mu​lher
pa​r e​c ia dis​pos​ta a aju​dá-lo, mas não ti​r a​va os olhos de um ho​m em, pro​va​vel​-
men​te o ma​r i​do, que an​da​va jun​to à cama, de um lado para o ou​tro, com
uma cri​a n​ç a no colo, um me​ni​no de mais ou me​nos seis anos. O ho​m em car​r e​-
ga​va-o num bra​ç o e com o ou​tro aca​r i​c i​a ​va-lhe os ca​be​los, to​c a​va-lhe o ros​to,
as​se​gu​r an​do-se de que es​ta​va mes​m o ali, são e sal​vo. O sr. Men​do​za olha​va o fi​-
lho com olhos de quem aca​ba​va de ver a mor​te de per​to.
Um dos po​li​c i​a is apro​xi​m ou-se de Ste​f an.
— O se​nhor é o pa​dre Wy ​c a​zik? — per​gun​tou. Ape​sar do tom de voz dis​-
cre​to e cal​m o, a men​ç ão do nome fez com que as ca​be​ç as se vol​tas​sem na di​r e​-
ção de Ste​f an.
Mas... o que terá acon​te​c i​do aqui? O ve​lho cura res​pi​r ou fun​do, tam​bém à
es​pe​r a.
— Por fa​vor — pe​diu o po​li​c i​a l — Ve​nha por aqui.
O pa​dre Wy ​c a​zik ti​r ou as lu​vas e se​gui-o até o pe​que​no quar​to, o úni​c o do
apar​ta​m en​to, onde Win​ton Tolk e ou​tro po​li​c i​a l es​pe​r a​vam, sen​ta​dos na bor​da da
cama. Tolk es​ta​va cur​va​do, o ros​to es​c on​di​do nas mãos, e não se mo​veu quan​do o
co​le​ga que con​du​zia o sa​c er​do​te en​trou no quar​to.
— Sou Paul Ar​m es — de​c la​r ou o po​li​c i​a l que es​ta​va com Tolk.
— Tra​ba​lha​m os jun​tos no pa​tru​lha​m en​to. Vou sair ago​r a para vo​c ês po​de​-
rem con​ver​sar.
Ste​f an pe​gou uma ca​dei​r a e apro​xi​m ou-a da cama, onde Tolk con​ti​nu​a ​va
imó​vel. O quar​to era mi​n​ús​c u​lo, dei​xa​va pou​c o es​pa​ç o en​tre a cama e a ca​dei​r a;
as​sim, ao sen​tar-se, o pa​dre qua​se to​c a​va os jo​e ​lhos do pa​tru​lhei​r o.
— Mui​to bem — dis​se, ti​r an​do o ca​c he​c ol. — O que acon​te​c eu?
Tolk le​van​tou os olhos, e Ste​f an as​sus​tou-se. O ros​to do po​li​c i​a l ex​pri​m ia uma
mis​tu​r a de emo​ç ões qua​se im​pos​sí​vel de des​c re​ver. Es​ta​va as​sus​ta​do, sim, mas
não em pâ​ni​c o. Ter​r i​vel​m en​te agi​ta​do, à bei​r a de uma ex​plo​são — que tan​to po​-
de​r ia ser de hor​r or como de des​lum​bra​m en​to.
Pelo amor de Deus... — Tolk pe​diu. — Quem é Bren​dan Cro-nin? — E logo,
com voz trê​m u​la: — Ou... o que é ele?!
Ste​f an va​c i​lou um ins​tan​te, mas aca​bou de​c i​din​do-se pela ver​da​de:
— E um pa​dre.
— Não foi o que nos dis​se​r am na de​le​ga​c ia...
Com um sus​pi​r o, o ve​lho pá​r o​c o fez que sim com a ca​be​ç a e con​tou-lhe a
his​tó​r ia da cri​se de fé de Bren​dan. Fa​lou-lhe do tra​ta​m en​to que ele mes​m o in​ven​-
ta​r a para fazê-lo co​nhe​c er de per​to um pou​c o das gran​des tra​gé​di​a s do co​ti​di​a ​no.
Por isso, aca​ba​r a na ron​da do cen​tro da ci​da​de.
— Achei que se​r ia me​lhor nin​guém sa​ber que Bren​dan é pa​dre, as​sim to​-
dos o tra​ta​r i​a m como um ci​da​dão qual​quer, e ele se​r ia pou​pa​do de di​f i​c ul​da​des
ain​da mai​o​r es.
— Um pa​dre... re​ne​ga​do... — Win​ton fez uma ca​r e​ta de de​sam​pa​r o.
— Não. Ape​nas um pa​dre em cri​se. Ele aca​ba​r á reen​c on​tran​do sua ver​da​-
de.
O pe​que​no quar​to, lim​pís​si​m o como todo o apar​ta​m en​to, es​ta​va mer​gu​lha​do
em pe​num​bra, ilu​m i​na​do ape​nas pela pe​que​na lâm​pa​da da mesa-de-ca​be​c ei​r a.
A luz in​c i​dia de lado no ros​to de Tolk, fa​zen​do bri​lha​r em os gran​des olhos es​c u​r os
e lu​m i​no​sos.
— O se​nhor sabe como Bren​dan me sal​vou? Como ele fez aque​le... mi​la​-
gre?
— Por que pen​sa que foi um mi​la​gre?
— Dois ti​r os à quei​m a-rou​pa no tó​r ax... e três dias de​pois eu es​ta​va em
casa. Três dias... Por mim, te​r ia vol​ta​do a tra​ba​lhar no dia se​guin​te. O mé​di​c o fa​-
la​va de mi​nhas con​di​ç ões fí​si​c as, di​zia que a ci​c a​tri​za​ç ao rá​pi​da acon​te​c eu por​-
que eu es​ta​va em for​m a... Só fa​la​va nis​so... En​tão en​ten​di que ten​ta​va ex​pli​c ar a
si mes​m o o que me acon​te​c e​r a... Até aí eu ain​da pen​sa​va que era sor​te... sor​te
mi​nha, uma boa es​tre​la, um anjo da guar​da. En​tão, na se​m a​na pas​sa​da, quan​do
vol​tei a tra​ba​lhar... acon​te​c eu isto. — Tolk abriu a ca​m i​sa do uni​f or​m e, er​gueu a
ca​m i​se​ta e mos​trou o pei​to. — As ci​c a​tri​zes su​m i​r am.
Ste​f an es​tre​m e​c eu. Es​ta​va bem pró​xi​m o do po​li​c i​a l, mas ain​da se de​bru​ç ou
para ver me​lhor. Nada, pra​ti​c a​m en​te nada, além de duas pe​que​nas mar​c as, um
pou​c o mais cla​r as que a pele ao re​dor. Os si​nais da su​tu​r a eram me​no​r es que os
de um ar​r a​nhão, e só se po​dia vê-los bem de per​to. Den​tro de dois ou três dias,
com a pele nor​m al​m en​te pig​m en​ta​da, já não se ve​r ia nada.
— Vi de​ze​nas de ci​c a​tri​zes de fe​r i​m en​to à bala — de​c la​r ou Tolk, ba​lan​ç an​-
do a ca​be​ç a, in​de​c i​so en​tre o medo e a eu​f o​r ia. — E uma coi​sa bem feia, nun​c a
de​sa​pa​r e​c e. Nin​guém leva dois ti​r os no pei​to e fica as​sim como es​tou... Ci​c a​tri​zes
de bala não so​m em nun​c a.
— O que dis​se o mé​di​c o?
Tolk abo​to​ou a ca​m i​sa com mãos trê​m u​las.
— Es​ti​ve com o dou​tor Son​ne​f ord há uma se​m a​na, e as ci​c a​tri​zes ain​da es​-
ta​vam aqui. Faz ape​nas qua​tro dias que co​m e​ç a​r am a su​m ir. Vejo-as su​m in​do!
Bas​ta-me fi​c ar meia hora di​a n​te do es​pe​lho.
O pa​tru​lhei​r o ca​lou-se por um ins​tan​te e logo re​c o​m e​ç ou:
— Te​nho pen​sa​do na vi​si​ta que o se​nhor fez ao hos​pi​tal, no dia de Na​tal...
Quan​to mais pen​so, mais me con​ven​ç o de que o se​nhor sa​bia de al​gu​m a coi​sa
que não quis di​zer... Per​gun​tou so​bre Bren​dan, lem​bra-se? Mas há algo que pre​c i​-
so sa​ber... Bren​dan cu​r ou mais al​guém? Há ou​tros ca​sos?
— Sim, há. Um caso di​f e​r en​te do seu, mas... sim, há ou​tro caso. Não pos​so
di​zer-lhe quem é — afir​m ou Ste​f an, res​pi​r an​do fun​do. — De qual​quer modo,
você não li​gou para a igre​j a por cau​sa das ci​c a​tri​zes. O que acon​te​c eu aqui?
Você es​ta​va em pâ​ni​c o... o apar​ta​m en​to está cheio de po​li​c i​a is... O que acon​te​-
ceu?
O po​li​c i​a l le​van​tou os olhos, sor​r iu, bai​xou a ca​be​ç a, co​briu o ros​to com a
mão, tor​nou a sor​r ir, os olhos ma​r e​j a​dos de lá​gri​m as. Res​pi​r ou fun​do al​gu​m as
ve​zes e co​m e​ç ou a con​tar:
— Es​tá​va​m os fa​zen​do a ron​da, Paul e eu. Coi​sa de ro​ti​na. Re​c e​be​m os um
cha​m a​do pelo rá​dio e vi​e ​m os para cá. Pa​r e​c ia um caso de be​be​dei​r a. Um ra​paz
fa​zen​do ar​r u​a ​ç a. Não era só isso. Q ra​paz es​ta​va dro​ga​do, com dro​ga pe​sa​da... O
se​nhor já viu um des​ses vi​c i​a ​dos? Pa​r e​c em ani​m ais. O pó come o cé​r e​bro, eles
en​lou​que​c em. De​pois que tudo pas​sou, dis​se​r am-me que o des​gra​ç a​do se cha​m a
Er​nes​to e é fi​lho de uma irmã da se​nho​r a Men​do​za. Mu​dou-se para cá na se​m a​-
na pas​sa​da por​que a mãe o ex​pul​sou de casa. Os Men​do​za são boa gen​te... O se​-
nhor viu só como a casa é lim​pa e ar​r u​m a​da?
Ste​f an fez que sim com a ca​be​ç a e es​pe​r ou.
— Gen​te boa — Win​ton con​ti​nuou —, do tipo que aju​da os pa​r en​tes. Quan​-
do o so​bri​nho co​m e​ç ou a dar tra​ba​lho, ofe​r e​c e​r am-se para fi​c ar com ele até que
me​lho​r as​se. Mas es​ses vi​c i​a ​dos não têm sal​va​ç ão... A gen​te mor​r e ten​tan​do aju​-
dá-los e não con​se​gue nada. Esse tal Er​nes​to tem fi​c ha na po​lí​c ia des​de os sete
anos: agres​são, as​sal​to a mão ar​m a​da, rou​bo... Quan​do che​ga​m os es​ta​va nu, os
olhos sal​tan​do do ros​to, ber​r an​do como lou​c o.
Tolk olhou para a pa​r e​de, cer​r ou as pál​pe​bras que​r en​do apa​gar da lem​bran​ç a
aque​la vi​são de pe​sa​de​lo. Mas con​ti​nuou a fa​lar:
— Er​nes​to pe​gou Héc​tor, o me​ni​no que o se​nhor viu no colo do pai. Jo​gou-
o no sofá, sal​tou so​bre ele e en​c os​tou-lhe uma na​va​lha de vin​te cen​tí​m e​tros no
pes​c o​ç o. A se​nho​r a Men​do​za fi​c ou lou​c a. Que​r ia pu​lar so​bre ele e sal​var o fi​lho,
mas ti​nha medo de que Er​nes​to o fe​r is​se. Er​nes​to ber​r a​va e ba​ba​va como um bi​-
cho. En​tra​m os no apar​ta​m en​to de ar​m as em pu​nho, por​que o cara es​ta​va lou​c o...
e é im​pos​sí​vel ar​gu​m en​tar com gen​te as​sim,
mas não po​dí​a ​m os fa​zer nada por cau​sa da na​va​lha no pes​c o​ç o do ga​r o​to...
O me​ni​no cho​r a​va e nem se me​xia, coi​ta​do, de tan​to medo. Co​m e​ç a​m os a fa​lar
com Er​nes​to, de​va​gar, com cal​m a, ten​tan​do ga​nhar tem​po... E en​tão... Oh!
Deus... — Win​ton bai​xou a ca​be​ç a, sa​c u​di​do por um so​lu​ç o. — En​tão... ele... de​-
go​lou o ga​r o​to. Ele cor​tou mes​m o, de ore​lha a ore​lha, um ta​lho só, fun​do, hor​r í​-
vel... Quan​do le​van​tou a na​va​lha para cor​tar de novo, nós o fu​zi​la​m os. Não sei
quan​tos ti​r os le​vou. Gru​dou na pa​r e​de e caiu duro, por cima do me​ni​no. Cor​r e​-
mos até o sofá, pu​xa​m os o ca​dá​ver do cara, e lá es​ta​va o me​ni​no... com a mão
na gar​gan​ta, como se qui​ses​se fe​c har o cor​te. O san​gue bor​bu​lha​va en​tre seus
de​dos e ele já não via nada, o bran​c o dos olhos apa​r e​c en​do.
O pa​tru​lhei​r o ca​lou-se, ou​tra vez bai​xou a ca​be​ç a e co​briu o ros​to com as
mãos, ten​tan​do acal​m ar-se para con​ti​nu​a r. Le​van​tou-se, foi até a ja​ne​la, afas​tou
uma pon​ta de cor​ti​na e es​pi​ou para fora, olhan​do sem ver o dia cin​zen​to e tris​te
como tan​tos ou​tros.
O co​r a​ç ão de Ste​f an ba​tia for​te. Não ape​nas pelo hor​r or da his​tó​r ia que aca​-
ba​va de ou​vir, mas tam​bém pela ma​r a​vi​lha que co​m e​ç a​va a adi​vi​nhar.
Ain​da pa​r a​do jun​to à ja​ne​la, os olhos per​di​dos na ma​nhã, Tolk re​to​m ou a
nar​r a​ti​va:
— Não há o que fa​zer para es​tan​c ar uma he​m or​r a​gia como aque​la. Não há
pri​m ei​r os so​c or​r os, nem pro​c e​di​m en​to de emer​gên​c ia, nada que re​sol​va. O pes​-
co​ç o es​ta​va cor​ta​do... ar​té​r i​a s, vei​a s, ner​vos... O san​gue jor​r a​va como água da
tor​nei​r a. No pes​c o​ç o, não é pos​sí​vel fa​zer tor​ni​que​te, nem pres​si​o​nar ar​té​r i​a s,
por​que o san​gue cor​r e com alta pres​são. Não ha​via o que fa​zer, e o me​ni​no es​ta​-
va mor​r en​do. Eu me ajo​e ​lhei ao lado do sofá... Uma cri​a n​ç a, tão pe​que​na, tão
bo​ni​ta... mor​r en​do ali, à mi​nha fren​te. Eu sa​bia que não ia adi​a n​tar, mas pus a
mão no pes​c o​ç o dele, como se qui​ses​se es​tan​c ar o san​gue, im​pe​dir que a vida
con​ti​nu​a s​se a es​c a​par, ta​par o bu​r a​c o... e fin​gir que nada acon​te​c e​r a. Eu es​ta​va
lou​c o de rai​va, de dor, de de​ses​pe​r o, por​que não é jus​to que uma cri​a n​ç a mor​r a
da​que​le jei​to, não é jus​to que uma cri​a n​ç a mor​r a
nun​c a, em lu​gar ne​nhum... não é jus​ta a mor​te, nem a vida, nem nada... E
en​tão... en​tão... de re​pen​te...
— ... o cor​te co​m e​ç ou a fe​c har — Ste​f an com​ple​tou em voz bai​xa. Tolk vi​-
rou-se para ele, de​va​gar, mui​to sé​r io, e pa​r ou, a dois pas​sos da ca​dei​r a, olhos nos
olhos do ve​lho pá​r o​c o. Fez que sim com a ca​be​ç a e pros​se​guiu:
— Isso mes​m o... O me​ni​no es​ta​va lí​vi​do, en​c har​c a​do de san​gue, mas o
cor​te co​m e​ç ou a fe​c har. Nem per​c e​bi o que acon​te​c ia, até que o ga​r o​to se me​-
xeu, abriu os olhos, res​pi​r ou fun​do, uma, duas ve​zes... En​tão vi que o san​gue já
não jor​r a​va en​tre meus de​dos, como an​tes. Ti​r ei a mão... e vi que o cor​te se fe​-
cha​va. O me​ni​no cer​r ou os olhos, e eu pen​sei que es​ta​va fi​c an​do ma​lu​c o, que èle
ti​nha mor​r i​do mes​m o, e eu... Co​m e​c ei a gri​tar, e to​quei-o no pes​c o​ç o, e ele já
não es​ta​va tão pá​li​do... Afas​tei a mão e olhei a fe​r i​da... já não ha​via fe​r i​da. Ha​-
via o si​nal do cor​te, um si​nal feio, a car​ne ain​da in​c ha​da... mas não fe​r i​da.
O po​li​c i​a l ca​lou-se, imó​vel di​a n​te da ca​dei​r a de Ste​f an, e dei​xou as lá​gri​m as
cor​r e​r em pelo ros​to. Era pos​sí​vel es​c on​der, e fa​zia sen​ti​do es​c on​der o medo, o
hor​r or... mas a ale​gria era mais for​te que ele. Era uma ale​gria im​pos​sí​vel, ina​-
cre​di​tá​vel. O pa​tru-lhei​r o Win​ton Tolk, ain​da mais alto na cal​ç a jus​ta do uni​f or​-
me, so​lu​ç ou alto, sem for​ç as nem von​ta​de de ocul​tar as lá​gri​m as. Ste​f an es​ten​-
deu-lhe as mãos, que o po​li​c i​a l se​gu​r ou fir​m e​m en​te, e con​ti​nuou a se​gu​r á-las en​-
quan​to di​zia:
— Paul Ar​m es, que es​ta​va co​m i​go, viu tudo. E os pais do me​ni​no tam​bém.
E dois po​li​c i​a is que che​ga​r am co​nos​c o. Quan​do vi que o cor​te es​ta​va ci​c a​tri​zan​-
do, achei que de​via con​ti​nu​a r com as mãos no pes​c o​ç o de Héc​tor, para com​ple​-
tar a ci​c a​tri​za​ç ão. E foi o que fiz... con​c en​trei-me em sal​var o me​ni​no. Ti​r ei da
ca​be​ç a tudo que não fos​se ape​nas pen​sar que ele ia fi​c ar bom, que o fe​r i​m en​to
ci​c a​tri​za​r ia. En​tão me lem​brei de Bren​dan e do que hou​ve co​m i​go no as​sal​to ao
bar, das ci​c a​tri​zes que su​m i​a m de meu pei​to. Te​nho cer​te​za de que há uma ex​pli​-
ca​ç ão para as duas coi​sas... para o que Bren​dan fez co​m i​go e para o que eu fiz
com Héc​tor. Daí em di​a n​te foi sim​ples... o me​ni​no re​c u​pe​r ou a cor,
co​m e​ç ou a res​pi​r ar bem e, de re​pen​te abriu os olhos, sor​r in​do para mim. —
O Po​li​c i​a l riu, um riso am​plo e cla​r o. — O se​nhor pre​c i​sa​va ter vis​to aque​le sor​-
ri​so. Cha​m ou a mãe.... En​tão, eu des​m ai​e i. A se​nho​r a Men​do​za cor​r eu para o fi​-
lho, le​vou-o para den​tro, deu-lhe um ba​nho, tro​c ou suas rou​pas. O apar​ta​m en​to
fi​c ou cheio de po​li​c i​a is por​que a no​tí​c ia se es​pa​lhou. Por sor​te, a im​pren​sa não ti​-
nha che​ga​do.
O pa​dre Wy ​c a​zik sol​tou as mãos de Tolk, re​c os​tou-se na ca​dei​r a e res​pi​r ou
fun​do.
— Você ten​tou res​sus​c i​tar Er​nes​to? — per​gun​tou.
— Ten​tei. Ape​sar do que ele ha​via fei​to. De​pois que me re​c u​pe​r ei, meu
pri​m ei​r o pen​sa​m en​to foi... que eu de​via ten​tar. Ten​tei, mas não deu cer​to. Tal​vez
por​que ele já es​ti​ves​se mor​to. Que​r o di​zer... com​ple​ta​m en​te mor​to.
— Por aca​so per​c e​beu mar​c as nas pal​m as de suas mãos? Anéis aver​m e​-
lha​dos?
— Não ha​via nada em mi​nhas mãos. Que anéis são es​ses?
— Não sei. Mas es​ses anéis apa​r e​c e​r am nas mãos de Bren​dan na​que​le dia,
no bar, quan​do ele o sal​vou.
Ou​tra lon​ga pau​sa, até que Tolk per​gun​tou, em voz bai​xa:
— Bren​dan é al​gum tipo de... san​to?
— Não — res​pon​deu Ste​f an, sor​r in​do. — Bren​dan é um bom pa​dre, mas
não é san​to.
— En​tão... como pôde me sal​var?
— Ain​da não sei. Mas, o que quer que te​nha acon​te​c i​do, foi obra de Deus.
Não sei como, nem por quê.
— E como te​r ia pas​sa​do para mim... o po​der de cu​r ar?
— Nem mes​m o sa​be​m os se foi isso que acon​te​c eu. Tal​vez você te​nha re​-
ce​bi​do a gra​ç a de Deus, do mes​m o modo como Bren​dan.
Win​ton bai​xou a ca​be​ç a, exa​m i​nou as pal​m as das mãos, sem si​nais de anéis,
li​sas como sem​pre, e pen​sou em voz alta:
— O po​der de cu​r ar ain​da está em mim... Sin​to que está aqui. E nao é só o
po​der de cu​r ar. Há mais.
— O que quer di​zer? Como as​sim... “há mais”?
— Ain​da não sei — Tolk ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. — Sin​to que pos​so fa​zer
mais... Com o tem​po, ou​tros po​de​r es vão apa​r e​c er. Ou mes​m o esse, de cu​r ar,
vai-se de​sen​vol​ver. Oh! — ex​c la​m ou de re​pen​te, os olhos bri​lhan​do, de medo e
fe​li​c i​da​de, es​pe​r an​ç a e hor​r or — O que Bren​dan... fez de mim?!
Ste​f an apru​m ou as cos​tas na ca​dei​r a e res​pon​deu ris​pi​da​m en​te:
— Tire da ca​be​ç a a idéia de que pode ha​ver algo de mau no que acon​te​c eu
a vo​c ês. Seja o que for, é uma for​ç a de luz, para o bem, não para o mal. Pen​se
no me​ni​no que você sal​vou. Pen​se na mãe dele, em sua emo​ç ão. Pen​se em
você, na fe​li​c i​da​de de ser​vir ao pró​xi​m o. So​m os pe​ões num jogo... Mai​o​r es são
os po​de​r es de Deus. Quan​do Deus qui​ser, en​ten​de​r e​m os es​ses mis​té​r i​os, e mui​tos
ou​tros... Eu gos​ta​r ia de ver o ga​r o​to... — de​c la​r ou, le​van​tan​do-se.
— Tudo bem. Des​c ul​pe não acom​pa​nhá-lo. Ain​da não te​nho co​r a​gem para
sair da​qui e en​f ren​tar os ra​pa​zes. Sabe-se lá o que es​ta​r ão pen​san​do! Vá. Eu fico
aqui. Se pu​der, por fa​vor, ve​nha me di​zer como ele está.
— Não pos​so vol​tar, por​que te​nho com​pro​m is​sos mui​to im​por​tan​tes. Mas
fi​que tran​qüi​lo, pois não va​m os nos per​der de vis​ta. Se pre​c i​sar de al​gu​m a coi​sa,
te​le​f o​ne para a casa pa​r o​qui​a l da Igre​j a de San​ta Ber​nar​det​te. Lá sa​be​r ão onde
me en​c on​trar.
Ste​f an saiu, atra​ves​sou a sala ain​da cheia de po​li​c i​a is, sen​tin​do os olha​r es re​-
ve​r en​tes que o acom​pa​nha​vam, e apro​xi​m ou-se da mesa atrás do bal​c ão da co​zi​-
nha. Héc​tor es​ta​va no colo da mãe, co​m en​do uma bar​r a de cho​c o​la​te.
Era um me​ni​no fran​zi​no, ma​gro, de tra​ç os fi​nos e de​li​c a​dos, mui​to pa​r e​c i​do
com a mãe. Ti​nha olhos bri​lhan​tes e in​te​li​gen​tes e fa​c es ro​sa​das, si​nal evi​den​te
de que re​c u​pe​r a​r a, tam​bém, o san​gue per​di​do — em me​nos tem​po que Win​ton.
Tal​vez o po​der de Win​ton fos​se mai​or que o de Bren​dan.
Ste​f an ajo​e ​lhou-se para olhá-lo de fren​te:
— Como se sen​te? — per​gun​tou.
— Óti​m o.
— Lem​bra-se do que acon​te​c eu?
Héc​tor pas​sou a lín​gua nos lá​bi​os, mais su​j ou-se que lim​pou o cho​c o​la​te, e
fez que não com a ca​be​ç a.
— E o cho​c o​la​te? Está bom?
— Quer um pe​da​ç o? Pode co​m er... Mas não dei​xe cair no chão, se​não ma​-
mãe bri​ga.
— Obri​ga​do — res​pon​deu o ve​lho, rin​do. — Coma seu cho​c o​la​te e não
faça su​j ei​r a. — Le​van​tou-se e per​gun​tou à sra. Men​do-za: — Tem cer​te​za de que
ele não se lem​bra de nada?
— Te​nho. Gra​ç as a Deus!
— A se​nho​r a é ca​tó​li​c a, não é? Co​nhe​c e o pa​dre Nilo, da pa​r ó​quia de Nos​-
sa Se​nho​r a do So​c or​r o? — A mu​lher fez que sim com a ca​be​ç a. — Óti​m o. Já te​-
le​f o​nou para ele?
— Não... Ain​da não con​si​go pen​sar di​r ei​to e...
An​tes que ela ter​m i​nas​se de fa​lar, o pai de Héc​tor cor​r eu para o te​le​f o​ne.
Ste​f an se​guiu-o, di​zen​do:
— Isso mes​m o. Con​te o que acon​te​c eu, peça ao pa​dre Nilo que ve​nha vi​si​-
tá-los. Diga que es​tou aqui, mas não pos​so es​pe​r á-lo; en​tra​r ei em con​ta​to com ele
mais tar​de. Diga que te​nho mui​to o que con​ver​sar, e que ele vai en​c on​trar aqui
ape​nas uma pe​que​na par​te de uma lon​ga his​tó​r ia.
En​quan​to Men​do​za te​le​f o​na​va, o ve​lho pá​r o​c o di​r i​giu-se a um dos po​li​c i​a is:
— O fe​r i​m en​to no pes​c o​ç o do me​ni​no foi fo​to​gra​f a​do?
— Sim. Nós o fo​to​gra​f a​m os en​quan​to Tolk... es​ta​va com ele. Pro​c e​di​m en​to
de ro​ti​na. — De re​pen​te o po​li​c i​a l riu, ner​vo​so. — Mas que lou​c u​r a! O que es​tou
di​zen​do? Como se pode fa​lar em “ro​ti​na” num caso como esse?!
— As fo​tos são im​por​tan​tes para pro​var o que hou​ve — ob​ser​vou Ste​f an,
res​pi​r an​do fun​do. — Acho que, mui​to em bre​ve, não res​ta​r á nem si​nal da ci​c a​-
triz. — Vi​r ou-se ou​tra vez para Héc​tor e sor​r iu. — Ago​r a, seja bon​zi​nho e me
dei​xe exa​m i​nar seu pes​c o​ç o.
O me​ni​no lar​gou o cho​c o​la​te so​bre a mesa e le​van​tou o quei​xo. Com a mão
trê​m u​la, o pa​dre to​c ou o fino tra​ç o ro​sa​do que, como Tolk dis​se​r a, es​ten​dia-se de
uma ore​lha à ou​tra. Sen​tiu a pul​sa​ç ão for​te da co​r ó​ti​da e es​tre​m e​c eu, com a sen​-
sa​ç ão de que to​c a​va o pró​prio mis​té​r io da vida. A vida ven​c en​do a mor​te, a vida
eter​na, para sem​pre, con​f or​m e a pro​m es​sa de Deus. Fez men-são de sair, mas
um dos po​li​c i​a is apro​xi​m ou-se e in​ter​pe​lou:
— O que está acon​te​c en​do? Ouvi o se​nhor di​zer que vi​m os ape​nas uma
par​te de uma lon​ga his​tó​r ia. Que his​tó​r ia é essa?
Ste​f an pa​r ou e olhou ao re​dor. Vin​te ros​tos vol​ta​vam-se para ele, an​si​o​sos,
aguar​dan​do seu re​la​to como se fos​se uma re​ve​la​ç ão. Aque​les ho​m ens cur​ti​dos
pelo con​ta​to di​á ​r io com a bru​ta​li​da​de hu​m a​na ain​da não ha​vi​a m per​di​do a es​pe​-
ran​ç a de acre​di​tar em algo me​lhor que eles mes​m os, me​lhor que o mun​do.
— Al​gu​m a coi​sa está acon​te​c en​do — dis​se o pa​dre. — Aqui e tal​vez em
ou​tros lu​ga​r es tam​bém. Uma coi​sa gran​di​o​sa... Esse me​ni​no que foi sal​vo hoje
faz par​te dis​so. Mas ain​da sei pou​c o so​bre o as​sun​to. Não pos​so di​zer-lhes, com
cer​te​za, que pre​sen​c i​a ​r am um mi​la​gre. Con​tu​do, olhem para Héc​tor, no colo da
mãe, e pen​sem na pro​m es​sa de Deus... “Não ha​ve​r á mor​te, nem so​f ri​m en​to,
nem lá​gri​m as, nem dor; pois o que foi, nun​c a mais será.” No fun​do do co​r a​ç ão,
acre​di​to que nada, nun​c a mais, será como an​tes... — com​ple​tou e, após uma
pau​sa emo​c i​o​na​da, de​c la​r ou: — Ago​r a pre​c i​so ir. Te​nho ne​gó​c i​os ur​gen​tes.
Sur​preen​di​dos com aque​le pa​dre, ca​paz de ci​tar uma das mais con​f or​ta​do​r as
pro​m es​sas da fé cris​tã e, em se​gui​da, fa​lar de ne​gó​c i​os ur​gen​tes, os ho​m ens
afas​ta​r am-se e dei​xa​r am-no pas​sar. Tal​vez por​que ha​vi​a m pre​sen​c i​a ​do um ver​-
da​dei​r o mi​la​gre, ope​r a​do bem ali, di​a n​te de seus olhos, pe​las mãos co​nhe​c i​das do
pa​tru-lhei​r o Tolk, al​guns po​li​c i​a is sor​r i​r am para o ve​lho pá​r o​c o, ou​tros es​ten​de​-
ram-lhe a mão, que​r en​do tocá-lo, numa es​pé​c ie de ele​va​da ca​m a​r a​da​gem es​pi​-
ri​tu​a l, Ste​f an tam​bém sen​tiu von​ta​de de abra​ç á-los, de co​m e​m o​r ar com eles a
ex​pe​r i​ê n​c ia pro​f un​da que es​ta​vam vi​ven​do. Em to​dos, na​que​le mo​m en​to, re​nas​-
cia a es​pe​r an​ç a de um fu​tu​r o lu​m i​no​so para a hu​m a​ni​da​de.
Em Bos​ton, às dez ho​r as da ma​nhã, Ale​xan​der Ch​r is​toph​son, ex-se​na​dor
ame​r i​c a​no, ex-em​bai​xa​dor ame​r i​c a​no na In​gla​ter​r a, ex-di​r e​tor da CIA, apo​sen​-
ta​do há uma dé​c a​da, lia o jor​nal, quan​do foi in​ter​r om​pi​do pelo te​le​f o​ne​m a de seu
ir​m ão, Phi​lip, an​ti​quá-rio re​si​den​te em Greenwi​c h, Con​nec​ti​c ut. Fa​la​r am pou​c o,
pois man​ti​nham fre​qüen​te con​ta​to e nun​c a fi​c a​vam sem no​tí​c i​a s um do ou​tro.
An​tes de se des​pe​dir, Phi​lip ob​ser​vou:
— Oh... ia me es​que​c en​do. Fa​lei com Di​a ​na hoje de ma​nhã. Você se lem​-
bra dela?
— Cla​r o que sim — res​pon​deu Alex. — Como vai ela?
— Como sem​pre... um dia me​lhor, ou​tro pior. Man​dou-lhe lem​bran​ç as.
— Quan​do a en​c on​trar, diga-lhe que agra​de​ç o e re​tri​buo.
Phi​lip fa​lou um pou​c o so​bre um li​vro que es​ta​va len​do, e mi​nu​tos de​pois am​-
bos des​li​ga​r am.
Di​a ​na era o nome de có​di​go de Gin​ger Weiss. Aque​la con​ver​sa sig​ni​f i​c a​va
ape​nas que ela te​le​f o​na​r a para Phi​lip e pre​c i​sa​va fa​lar com Alex. Um co​di​no​m e
bem es​c o​lhi​do, pen​sou o ex-se​na​dor. Na pri​m ei​r a vez que a vira, no fu​ne​r al de
Pa​blo Jack​son, lem​bra​r a-se de Di​a ​na, a co​r a​j o​sa ca​ç a​do​r a e deu​sa da Lua dos
ro​m a​nos an​ti​gos.
Alex dis​se à es​po​sa que ia até a li​vra​r ia ver se en​c on​tra​va o li​vro de que Phi​-
lip lhe fa​la​r a. Foi mes​m o e com​prou o li​vro, mas, an​tes de vol​tar para casa, pa​-
rou numa ca​bi​ne te​le​f ô​ni​c a. Li​gou no​va​m en​te para o ir​m ão e pe​diu-lhe o nú​m e​-
ro de con​ta​to que Gin​ger dei​xa​r a.
— Ela dis​se que é o nú​m e​r o de uma ca​bi​ne pú​bli​c a em Elko, Ne​va​da — in​-
for​m ou o an​ti​quá​r io.
O te​le​f o​ne to​c ou cin​c o ve​zes an​tes de Alex ou​vir a voz de Gin​ger.
— Des​c ul​pe — dis​se ela. — De​m o​r ei por​que es​ta​va es​pe​r an​do no car​r o.
Está mui​to frio para fi​c ar na ca​bi​ne.
— O que está fa​zen​do em Ne​va​da?
— Se en​ten​di bem o que você dis​se no dia do en​ter​r o de Pa​blo, você não
pode que​r er que eu res​pon​da essa per​gun​ta.
— Tem ra​zão. Quan​to me​nos eu sou​ber, me​lhor. O que você quer de mim?
Por que te​le​f o​nou?
O mais re​su​m i​da​m en​te pos​sí​vel, Gin​ger con​tou-lhe que en​c on​tra​r a ou​tras
pes​so​a s que, como ela, ti​nham sido sub​m e​ti​das a la​va​gem ce​r e​bral. Em se​gui​da
per​gun​tou ao úni​c o es​pe​c i​a ​lis​ta em la​va​gem ce​r e​bral que co​nhe​c ia:
— O que é mais fá​c il: im​plan​tar um con​j un​to de lem​bran​ç as fal​sas ou pe​-
que​nos frag​m en​tos de men​ti​r a num con​j un​to de lem​bran​ç as au​tên​ti​c as?
— Quan​to mais com​ple​ta a men​ti​r a, mais fá​c il o im​plan​te. E qua​se im​pos​-
sí​vel im​plan​tar uma pe​que​na men​ti​r a num con​j un​to de lem​bran​ç as au​tên​ti​c as —
Alex con​f ir​m ou.
— Foi o que pen​sa​m os, mas é óti​m o ou​vir a con​f ir​m a​ç ão de um es​pe​c i​a ​lis​-
ta. Há ou​tra coi​sa... Pre​c i​so de um fa​vor. E mui​to im​por​tan​te que nos con​si​ga to​-
das as in​f or​m a​ç ões pos​sí​veis so​bre um cer​to co​r o​nel Le​land Falkirk, co​m an​dan​te
de um ba​ta​lhão da DERO. E, tam​bém...
—• Cal​m a! — Alex in​ter​r om​peu. — Você sabe per​f ei​ta​m en​te que eu não lhe
pro​m e​ti con​se​guir in​f or​m a​ç ões so​bre nada e nin​guém. Ex​pli​quei bem que...
— Cla​r o, eu sei. Mas pen​sei que, mes​m o não que​r en​do se en​vol​ver com
nos​sos pro​ble​m as, tal​vez você co​nhe​ç a al​guém que...
— Não que​r o. E não co​nhe​ç o nin​guém. E não vou me com​pro​m e​ter com
isso.
— Acha tão com​pro​m e​te​dor as​sim o fato de con​se​guir al​gu​m as in​f or​m a​-
ções so​bre Falkirk? — Gin​ger con​ti​nuou, im​per​tur​bá​vel. — Pre​c i​sa​m os sa​ber
com quem es​ta​m os li​dan​do.
— Dou​to​r a Weiss... sin​to mui​to, mas...
— Pre​c i​sa​m os tam​bém de in​f or​m a​ç ões so​bre Thun​der Hill. E uma base
mi​li​tar, uma es​pé​c ie de de​pó​si​to de mu​ni​ç ão... al​m o​xa-ri​f a​do... sei lá. Fica aqui,
em Elko County.
— Dou​to​r a... Não vou fa​zer nada dis​so! Não vou pes​qui​sar nada!
Suas ne​ga​ti​vas ape​nas re​f or​ç a​vam a cer​te​za de Gin​ger: ele re​c la​m a​r ia mui​-
to, mas aca​ba​r ia aju​dan​do.
— Não se es​que​ç a — pre​ve​niu-o. — Le​land Falkirk e Thun​der Hill, em
Elko County, Ne​va​da. Não pre​c i​sa se ex​por. Bas​ta te​le​f o​nar para um ou dois de
seus ex-co​le​gas de Se​na​do, por exem​plo. E, quan​do ti​ver algo in​te​r es​san​te, te​le​-
fo​ne para o dou​tor Ge​or​ge Han​naby, aí em Bos​ton, ou ao pa​dre Ste​f an Wy ​c a​zik,
em
Chi​c a​go. — Deu-lhe os dois nú​m e​r os de te​le​f o​ne. — São ami​gos e es​tão ins​-
tru​í​dos para não men​c i​o​nar seu nome quan​do eu li​gar.
— Já lhe dis​se que es​tou ve​lho e te​nho medo de mor​r er.
— Mas dis​se tam​bém que tem medo de ir para o in​f er​no por cau​sa das
mal​da​des que fez, no “es​tri​to cum​pri​m en​to do de​ver”. Aju​de a gen​te e... con​te
com a ab​sol​vi​ç ão eter​na. Não se es​que​ç a!
— E re​pe​tiu os nú​m e​r os de te​le​f o​ne de Ge​or​ge Han​naby e do pa​dre Wy ​-
ca​zik.
— Quan​do você for pre​sa e es​ti​ver sen​do in​ter​r o​ga​da pela KGB, lem​bre-se
de di​zer que mi​nha res​pos​ta foi “não”.
— Se​r ia ma​r a​vi​lho​so se você nos des​se al​gu​m a in​f or​m a​ç ão nas pró​xi​m as
seis ou oito ho​r as — Gin​ger con​ti​nu​a ​va, sem se al​te​r ar.
— Es​ta​m os in​te​r es​sa​dos em qual​quer tipo de in​f or​m a​ç ão. Por fa​vor. Mui​to
obri​ga​da. — Des​li​gou, sem dar-lhe tem​po para re​pe​tir o “não” pre​vis​to.
Que pena... Uma mu​lher tão bo​ni​ta, in​te​li​gen​te, in​te​r es​san​te sob mui​tos as​-
pec​tos, pre​j u​di​c a​da por aque​la cer​te​za ina​ba​lá​vel de que sem​pre con​se​gui​r ia o
que de​se​j a​va. Alex ad​m i​r a​va ta​m a​nha au​to​c on​f i​a n​ç a nos ho​m ens, mas de​tes​ta​-
va-a nas mu​lhe​r es, e des​li​gou o te​le​f o​ne com uma ca​r e​ta de de​sa​gra​do. Ima​gi​-
ne... Pen​sar que ele vol​ta​r ia a se en​vol​ver num as​sun​to ex​plo​si​vo como aque​le.
Que es​pe​r as​se sen​ta​da! Pelo sim, pelo não, tal​vez ape​nas por for​ç a do há​bi​to,
ano​ta​r a os dois nú​m e​r os. Guar​dou a ca​ne​ta no bol​so in​ter​no do pa​le​tó e saiu da
ca​bi​ne de​m ons​tran​do con​tra​r i​e ​da​de.
Na ma​nhã de ter​ç a-fei​r a, Dom e Er​nie sa​í​r am cedo, no jipe de Jack, para
fa​zer um re​c o​nhe​c i​m en​to pré​vio dos ar​r e​do​r es do de​pó​si​to de Thun​der Hill. Jack
fi​c ou no mo​tel para dor​m ir um pou​c o, de​pois de ter pas​sa​do a noi​te ro​dan​do por
Elko, com Bren​dan e Jor​j a.
O céu nu​bla​do en​c o​bria o topo das mon​ta​nhas e pro​m e​tia neve, a pri​m ei​r a
gran​de ne​vas​c a do ano. En​tre​tan​to, nem o céu ame​a ​ç a​dor con​se​guia ti​r ar o en​tu​-
si​a s​m o de Dom e Er​nie, por​que, pela pri​m ei​r a vez, es​ta​vam fa​zen​do al​gu​m a coi​-
sa con​c re​ta. Fi​nal​m en-
te en​tra​vam em ação, de​pois de tan​tos dias de an​si​e ​da​de e fal​ta de pers​pec​ti​-
va. Além dis​so, ha​vi​a m dor​m i​do mui​to bem, sem pe​sa​de​los. Dom so​nha​r a com
uma sala mui​to cla​r a, ilu​m i​na​da por uma luz dou​r a​da e bri​lhan​te — com cer​te​za
a mes​m a sala que apa​r e​c ia nos so​nhos de Bren​dan. E Er​nie dor​m i​r a como um
jus​to des​de o ins​tan​te em que se dei​ta​r a, sem pen​sar, nem por um mi​nu​to, que a
noi​te en​tra​r ia pela ja​ne​la para apa​nhá-lo.
Os ou​tros tam​bém ti​ve​r am uma ex​c e​len​te noi​te de sono. E, já no café da
ma​nhã, Gin​ger brin​dou-os com nova idéia lu​m i​no​sa, se​gun​do a qual os pe​sa​de​los
e as cri​ses de fuga, medo ou so​nam-bu​lis​m o nada ti​nham a ver com a ver​da​dei​r a
ex​pe​r i​ê n​c ia pela qual pas​sa​r am em ju​lho, mas eram sim​ples se​qüe​las da la​va​-
gem ce​r e​bral. Como a pres​são sub​c ons​c i​e n​te di​m i​nui​r a mui​to, ago​r a que po​di​a m
fa​lar li​vre​m en​te so​bre suas lem​bran​ç as, era ra​zo​á ​vel su​por que não vol​ta​r i​a m a
ser ator​m en​ta​dos por pe​sa​de​los ou cri​ses.
Quan​to a Dom, ti​nha ain​da ou​tra ra​zão para sen​tir-se tão leve e bem-hu​m o​-
ra​do: nin​guém mais o olha​va como se fos​se um ex​tra​ter​r es​tre. A ra​zão pa​r e​c ia
sim​ples: como seus po​de​r es te-le​c i​né​ti​c os re​la​c i​o​na​vam-se de al​gum modo com
a ex​pe​r i​ê n​c ia de ju​lho, qual​quer um de seus com​pa​nhei​r os po​de​r ia, mais dia,
me​nos dia, fa​zer voar sa​lei​r os ou ca​dei​r as. Tal​vez a si​tu​a ​ç ão se com​pli​c as​se no​-
va​m en​te, caso ne​nhum dos ou​tros de​sen​vol​ves​se tais po​de​r es, mas, pelo me​nos
por ora, Dom sen​tia-se gra​to e se​gu​r o.
Can​ta​r o​lan​do bai​xi​nho, Er​nie di​r i​gia, rumo ao nor​te, pela es​tra​da es​ta​du​a l,
dei​xan​do para trás o mo​tel e a ro​do​via; era o mes​m o ca​m i​nho que Jack se​gui​r a
na vés​pe​r a, ao che​gar pe​los fun​dos. A pai​sa​gem co​m e​ç a​va a al​te​r ar-se, cada vez
me​nos ver​de e mais ro​c ho​sa, exi​bin​do, à flor da ter​r a, as for​m a​ç ões de gra​ni​to. A
me​di​da que a es​tra​da su​bia para re​gi​ões de tem​pe​r a​tu​r as mais fri​a s, a ve​ge​ta​ç ão
tor​na​va-se mais es​c u​r a e cer​r a​da, como que ten​tan​do pro​te​ger o solo dos ri​go​r es
do cli​m a. Pi​nhei​r os, ce​dros, um ou ou​tro raro tufo de gra​m a er​gui​a m-se pe​los
cam​pos.
Ha​vi​a m per​c or​r i​do pou​c o mais de cin​c o qui​lô​m e​tros quan​do pela pri​m ei​r a
vez vi​r am neve acu​m u​la​da no acos​ta​m en​to. De iní-
cio, ape​nas uma ca​m a​da fina, que se es​pes​sa​va à me​di​da que avan​ç a​vam.
— Pode ne​var uma se​m a​na sem pa​r ar, que essa es​tra​da está sem​pre de​-
sim​pe​di​da — Er​nie ex​pli​c ou —, pelo me​nos até Thun​der Hill. De​pois do de​pó​si​to,
po​r ém, o pes​so​a l já não se pre​o​c u​pa mui​to com a lim​pe​za.
Pas​sa​r am por al​guns ran​c hos iso​la​dos e, a de​zes​seis qui​lô​m e​tros do pon​to de
par​ti​da, che​ga​r am à en​tra​da do de​pó​si​to, à di​r ei​ta da es​tra​da.
— Não pas​so por aqui há mui​tos anos — dis​se Er​nie. — Eles an​da​r am re​-
for​ç an​do essa es​tra​da. Te​nho lem​bran​ç a de que era me​nor, me​nos... im​po​nen​te.
A al​guns me​tros da es​tra​da, uma pla​c a in​f or​m a​va que o lo​c al cons​ti​tu​ía
“área de se​gu​r an​ç a”. A par​tir dali, co​m e​ç a​va uma ala​m e​da de pi​nhei​r os, de um
ver​de tão es​c u​r o que pa​r e​c ia pre​to à luz da ma​nhã. Cin​c o me​tros adi​a n​te, nova
pla​c a aler​ta​va que a pas​sa​gem es​ta​va proi​bi​da. Re​f or​ç an​do o avi​so, uma fai​xa de
aço fi​xa​da no as​f al​to exi​bia fi​lei​r as de pre​gos al​tos e pon​ti​a ​gu​dos, com o cla​r o
ob​j e​ti​vo de fu​r ar os pneus de qual​quer ve​í​c u​lo que se atre​ves​se a de​so​be​de​c er as
ins​tru​ç ões. De​pois dos pre​gos, uma cer​c a de tela de aço, pin​ta​da de ver​m e​lho,
im​pe​dia o aces​so à enor​m e gua​r i​ta, fe​c ha​da com por​ta de aço à pro​va de ba​las.
Er​nie di​m i​nuiu a mar​c ha e pas​sou fren​te à en​tra​da do de​pó​si​to, apon​tan​do
para um dos la​dos da cer​c a.
— Veja, ali no chão, an​tes da-casa da guar​da... deve ser uma es​pé​c ie de
sen​sor ele​trô​ni​c o... Com cer​te​za, eles têm câ​m a​r as de te​le​vi​são es​pa​lha​das por
todo can​to... Só se pode en​trar de​pois que re​c o​lhem a fai​xa de pre​gos e abrem o
por​tão. E mes​m o de​pois de toda essa ope​r a​ç ão, pode apos​tar que há guar​das ar​-
ma​dos na por​ta​r ia.
A cons​tru​ç ão era pro​te​gi​da por uma alta cer​c a de ara​m e far​pa​do, jun​to à
qual ha​via uma pla​c a ama​r e​la.
— “Aten​ç ão! Cer​c a ele​tri​f i​c a​da” — Dom leu em voz alta, e ne​nhum dos
dois fez qual​quer co​m en​tá​r io.
A cer​c a ro​de​a ​va todo o pe​r í​m e​tro do de​pó​si​to, até a li​nha de ár​vo​r es no co​-
me​ç o da flo​r es​ta, mas não ha​via ve​ge​ta​ç ão ne​nhu​m a na área onde es​ta​va ins​ta​-
la​da; de cada lado do ara​m e, es​ten​dia-se uma es​pé​c ie de ter​r a de nin​guém, com
mais de cin​c o me​tros de lar​gu​r a.
O bom hu​m or de Dom apa​gou-se como vela so​pra​da. Es​ta​va cer​to de en​-
con​trar pou​c a se​gu​r an​ç a à en​tra​da do de​pó​si​to. Afi​nal de con​tas, mes​m o de​pois
de pas​sar pela gua​r i​ta, o que se avis​ta​va à fren​te era um vas​to gra​m a​do, já que a
ver​da​dei​r a en​tra​da para o de​pó​si​to de Thun​der Hill es​ta​va pro​te​gi​da pe​las des​c o​-
mu​nais por​tas de aço, com mais de dois me​tros de es​pes​su​r a, na pró​pria en​c os​ta
da mon​ta​nha. Com a pro​te​ç ão das duas por​tas, pa​r e​c ia des​ne​c es​sá​r io man​ter
con​tro​le tão rí​gi​do so​bre quem se apro​xi​m a​va. Tal​vez fos​se des​ne​c es​sá​r io... mas
era exa​ta​m en​te o que fora mon​ta​do ali, jun​to à es​tra​da. Isso sig​ni​f i​c a​va que o se​-
gre​do es​c on​di​do por trás de todo aque​le apa​r a​to era ain​da mais im​por​tan​te do
que ha​vi​a m ima​gi​na​do'e pre​vis​to. Mais im​por​tan​te, mais ex​plo​si​vo, mais ame​a ​-
ça​dor do que um ata​que nu​c le​a r ca​paz de var​r er a vida da su​per​f í​c ie ter​r es​tre.
— A fai​xa de pre​gos é no​vi​da​de — in​f or​m ou Er​nie. — O por​tão de aço foi
re​f or​ç a​do. A cer​c a exis​te há anos, mas não era ele​tri​f i​c a​da.
— Não há me​nor chan​c e de en​trar​m os
Em​bo​r a ne​nhum de​les con​f es​sas​se, os dois ti​nham es​pe​r an​ç as de apro​xi​m ar-
se, pelo me​nos das duas por​tas de aço e, es​pi​a r as ter​r as que aca​ba​vam de ser
ane​xa​das à area do de​pó​si​to, gle​ba que o mi​nis​té​r io com​pra​r a de Brust e Dirk​son.
Com sor​te, tal​vez des​c o​bris​sem uma ou ou​tra no​vi​da​de que os aju​das​se a en​ten​-
der ta​m a​nho mis​té​r io. Dom não ima​gi​na​va que pu​des​sem en​trar no de​pó​si​to sub​-
terrâ​neo, o que se​r ia pra​ti​c a​m en​te im​pos​sí​vel sem um sal​vo-con​du​to. De qual​-
quer modo, olhan​do para Thun​der Hill a par​tir do pon​to de vis​ta se​gu​r o de sua
cama no mo​tel, a idéia não lhe pa​r e​c e​r a com​ple​ta​m en​te des​c a​bi​da. Ali, fren​te à
en​tra​da, sim, era lou​c u​r a to​tal.
Dom pen​sou que seus po​de​r es te​le​c i​né​ti​c os po​de​r i​a m ser úteis
para abrir-lhes ca​m i​nho, mas des​c ar​tou a idéia tão de​pres​sa como a ti​ve​r a.
Até que apren​des​se a con​tro​lar os po​de​r es, não vol​ta​r ia a tes​tá-los. Ti​nha
medo. Pres​sen​tia que eram mui​to for​tes, ca​pa​zes de cau​sar mor​te e des​trui​ç ão
em lar​ga es​c a​la, caso não con​se​guis​se detê-los no mo​m en​to cer​to.
— Ora... — Er​nie er​gueu as so​bran​c e​lhas —, nem você nem eu ima​gi​na​-
va​m os que pu​dés​se​m os en​trar dan​ç an​do pela por​ta da fren​te, não é? Va​m os
apro​vei​tar e dar uma olha​da nes​sa cer​c a. — Pi​sou no ace​le​r a​dor e, ao pas​sar os
olhos pelo es​pe​lho re​tro​vi​sor, as​so​bi​ou bai​xi​nho. — Para seu go​ver​no... es​tão nos
se​guin​do.
Dom sal​tou no as​sen​to e olhou para trás. A me​nos de cem me​tros, apro​xi​m a​-
va-se um car​r o es​tra​nho, de ro​das mui​to mais lar​gas que as co​m uns. Ti​nha so​bre
a ca​bi​ne uma sé​r ie com​ple​ta de fa​r óis de mi​lha, os do cen​tro mai​o​r es que os la​-
te​r ais, na​que​le mo​m en​to apa​ga​dos. A fren​te do mo​tor, uma lar​ga pá lim​pa-neve,
tam​bém des​li​ga​da, er​guia-se um pal​m o aci​m a da es​tra​da. Não era im​pos​sí​vel
que o car​r o per​ten​c es​se a al​gum fa​zen​dei​r o da re​gi​ã o, mas al​gu​m a coi​sa di​zia a
Dom que era um ve​í​c u​lo mi​li​tar. Nao se via o mo​to​r is​ta nem o in​te​r i​or da ca​bi​ne,
pro​te​gi​dos pe​los vi​dros es​c u​r os.
— Mas, se es​tão nos se​guin​do — co​m en​tou, vol​tan​do-se para Er​nie —, por
que fi​c am tão à vis​ta, aí no meio da es​tra​da?
— Es​tão atrás de nós des​de o mo​m en​to em que sa​í​m os do mo​tel — dis​se
Er​nie. — Quan​do di​m i​nuo a mar​c ha, eles di​m i​nu​e m; quan​do ace​le​r o, eles ace​le​-
ram.
— Será que vão nos fa​zer pa​r ar?
— Se que​r em bri​ga, que ve​nham. Mas acho que só que​r em nos as​sus​tar.
— Es​pe​r o que você não os dei​xe zan​ga​dos, só para pro​var que o pes​so​a l da
Ma​r i​nha é me​lhor de bri​ga que a tur​m a do Exér​c i​to... Eu apos​to na Ma​r i​nha!
A es​tra​da tor​na​va-se cada vez mais ín​gre​m e, o céu mais cin​zen​to, as ár​vo​r es
cada vez mais es​c u​r as. E o es​tra​nho car​r o não se afas​ta​va de​les.
A mãe de Emmy cor​r eu a abrir a por​ta ao pri​m ei​r o to​que de cam​pai​nha, es​-
tre​m e​c en​do à gol​f a​da de ar ge​la​do.
— Des​c ul​pe vir sem te​le​f o​nar — dis​se o pa​dre Wy ​c a​zik, en​tran​do na sala.
— Mas es​tão acon​te​c en​do coi​sas mui​to es​tra​nhas, e eu pre​c i​sa​va sa​ber se
Emmy...
Pa​r ou de re​pen​te, no meio da fra​se, por​que per​c e​beu que a sra. Hal​bourg ti​-
nha os ca​be​los des​pen​te​a ​dos, o ros​to afli​to, os olhos ar​r e​ga​la​dos.
— C... como foi que o se​nhor des​c o​briu?! — per​gun​tou, a voz trê​m u​la. —
Não con​ta​m os a nin​guém... Como foi que o se​nhor sou​be?!
— Sou​be... o quê?
Sem res​pon​der, a mu​lher cor​r eu para a es​c a​da, fa​zen​do um si​nal para que
Ste​f an a se​guis​se:
— Ve​nha... ve​nha de​pres​sa!
De​pois do que vira e sou​be​r a no apar​ta​m en​to dos Men​do​za, o ve​lho cura es​-
pe​r a​va en​c on​trar sur​pre​sas na casa de Emmy Hal​bourg, mas não es​ta​va pre​pa​-
ra​do para o cli​m a de ca​tás​tro​f e to​tal que im​pe​r a​va ali. No topo da es​c a​da, no hall
de dis​tri​bui​ç ão dos quar​tos, o pai da me​ni​na es​pe​r a​va a mu​lher, se​gu​r an​do a
mão de uma das ou​tras fi​lhas. Es​ta​vam di​a n​te de uma por​ta aber​ta e, como se
não ti​ves​sem co​r a​gem para en​trar, olha​vam es​tu​pe​f a​tos para o quar​to, ten​tan​do
de​c i​dir se o que viam era obra de Deus ou do de​m ô​nio. De den​tro do quar​to vi​-
nha um som ca​den​c i​a ​do, como o de um ob​j e​to sen​do ar​r as​ta​do, pa​r a​do, em​pur​-
ra​do para trás, pa​r a​do, ar​r as​ta​do no​va​m en​te. E o riso cris​ta​li​no de Emmy.
O sr. Hal​bourg vol​tou-se, o ros​to lí​vi​do.
— Gra​ç as a Deus que o se​nhor está aqui! — ex​c la​m ou. — Não sa​be​m os o
que fa​zer. Não po​de​m os pe​dir so​c or​r o, por​que de re​pen​te isso pas​sa e, quan​do as
pes​so​a s che​ga​r em fa​r e​m os pa​pel de lou​c os. Ago​r a que o se​nhor che​gou, es​tou
mais tran​qüi​lo.
No quar​to, Ste​f an viu o que era nor​m al em quar​tos de me​ni​nas em tran​si​ç ão
para a ado​les​c ên​c ia: meia dú​zia de ur​si​nhos de pe​lú​c ia; enor​m es fo​tos au​to​gra​f a​-
das de can​to​r es dos quais ja​m ais ou​vi​r a fa​lar; um ca​bi​dei​r o com os mais es​tra​-
nhos ti​pos de cha​péu; um par de pa​tins; um gra​va​dor; uma flau​ta es​que​c i​da no
es​to​j o aber​to. Ou​tra das ir​m ãs de Emmy es​ta​va de pé no meio do quar​to, pa​r a​li​-
sa​da de sus​to.
Pu​lan​do na cama, ain​da de pi​j a​m a, Emmy pa​r e​c ia ple​na​m en​te sau​dá​vel;
sa​c u​dia um tra​ves​sei​r o e ria sem pa​r ar. A sua fren​te, dois ur​si​nhos de pe​lú​c ia
dan​ç a​vam, sus​pen​sos no ar. Era uma val​sa, e eles gi​r a​vam, abra​ç a​dos, como
gen​te de car​ne e osso.
Não eram os úni​c os bai​la​r i​nos em ação. Pelo as​so​a ​lho, um par de pa​tins
tam​bém dan​ç a​va, o pé di​r ei​to ro​dan​do jun​to à por​ta do ba​nhei​r o, o es​quer​do dan​-
do vol​tas ao re​dor do ban​qui​nho da pen​te​a ​dei​r a. No ca​bi​dei​r o, os cha​péus agi​ta​-
vam-se ao rit​m o da val​sa. Na es​tan​te de li​vros, um ur​si​nho so​li​tá​r io sal​ta​va e ba​-
tia pal​m as.
Ste​f an en​trou e, des​vi​a n​do-se dos dan​ç a​r i​nos, apro​xi​m ou-se da cama.
— Emmy ? — cha​m ou.
— Oh! — a me​ni​na ex​c la​m ou, vol​tan​do-se para ele. — E o pa​dre ami​go
do “Bo​lo​ta”! Tudo bem? Isto aqui não está lin​do? Não é... uma ma​r a​vi​lha?
— E você que está fa​zen​do isso? — Ste​f an fez um ges​to na di​r e​ç ão dos ur​-
si​nhos.
— Eu?! — Emmy fran​ziu as so​bran​c e​lhas. — Não, cla​r o que não.
O pá​r o​c o per​c e​beu, no en​tan​to, que, quan​do a ga​r o​ta olhou para
ele, os ur​si​nhos de​se​qui​li​bra​r am-se no ar e, em​bo​r a não ca​ís​sem, per​de​r am
o rit​m o. Per​c e​beu tam​bém que o fe​nô​m e​no cau​sa​r a al​guns es​tra​gos: um aba​j ur
que​bra​do ja​zia so​bre o ta​pe​te, uma foto pen​du​r a​da jun​to à ca​be​c ei​r a da cama
es​ta​va ras​ga​da e o es​pe​lho da pen​te​a ​dei​r a exi​bia feia ra​c ha​du​r a. Emmy acom​-
pa​nhou-lhe o olhar e ex​pli​c ou:
— No co​m e​ç o eu me as​sus​tei, mas ago​r a está tudo cal​m o. E en​gra​ç a​do...
os ur​si​nhos não são en​gra​ç a​dos?!
En​quan​to a me​ni​na fa​la​va, a flau​ta er​gueu-se do es​to​j o e pa​r ou, flu​tu​a n​do à
es​quer​da do ca​sal de bai​la​r i​nos. En​tão co​m e​ç ou a to​c ar... não no​tas es​par​sas ou
de​sa​f i​na​das, mas uma mú​si​c a com​ple​ta, su​a ​ve e bo​ni​ta. Emmy pu​lou de ale​gria,
ex​c la​m an​do:
— Mi​nha mú​si​c a! É a mú​si​c a que eu to​c a​va sem​pre!
— E você está to​c an​do ago​r a — Ste​f an dis​se.
— Não — re​pli​c ou ela, sem ti​r ar os olhos da flau​ta —, não toco flau​ta há
mais de um ano, des​de que meus de​dos co​m e​ç a​r am a doer. Já es​tou boa, mas
ain​da não pe​guei na flau​ta.
— Você está to​c an​do sem pre​c i​sar das mãos — in​sis​tiu o pa​dre. A ga​r o​ta
vol​tou-se de​va​gar, co​m e​ç an​do a en​ten​der.
— Eu...? — mur​m u​r ou.
No ins​tan​te em que des​vi​ou a aten​ç ão, a flau​ta de​sa​f i​nou e os ur​si​nhos pa​r a​-
ram de dan​ç ar. Ela tor​nou a olhá-los, e o bai​le re​c o​m e​ç ou.
— Eu? — re​pe​tiu. — Eu... eu!
O ve​lho pa​dre res​pi​r ou fun​do, ima​gi​nan​do o que Emmy sen​tia; en​tão en​vol​-
veu-o uma emo​ç ão tão in​ten​sa e pro​f un​da que seus olhos se en​c he​r am de lá​gri​-
mas. Ha​via me​nos de um mês, aque​la me​ni​na es​ta​va pa​r a​lí​ti​c a numa cama, sem
me​xer as mãos ou as per​nas, sem po​der ves​tir-se ou pen​te​a r-se, sem ter a me​nor
es​pe​r an​ç a de vol​tar à vida de an​tes... sem fu​tu​r o, às por​tas da mor​te. E ago​r a fa​-
zia seus ur​si​nhos dan​ç a​r em no ar e to​c a​va flau​ta ape​nas pen​san​do na mú​si​c a que
que​r ia ou​vir.
Ste​f an teve von​ta​de de con​tar-lhe que aque​le dom era par​te da cura re​a ​li​za​-
da por Bren​dan, mas, se fa​las​se qual​quer coi​sa, te​r ia de ex​pli​c ar por que o “Bo​lo​-
ta” con​se​guia ope​r ar tais pro​dí​gi​os, e não sa​be​r ia nem como co​m e​ç ar. Além do
mais, não dis​pu​nha de tem​po para con​tar-lhe o pou​c o que sa​bia. Já pas​sa​va das
nove, e de​ve​r ia es​tar em Evans​ton. A me​di​da que a ma​nhã avan​ç a​va, sen​tia que
não po​dia per​der um se​gun​do. Na​que​le pas​so, aca​ba​r ia sen​do obri​ga​do a apa​nhar
um avi​ã o e voar para Ne​va​da an​tes de aca​bar o dia. A jul​gar pelo que acon​te​c ia
com Tolk e Emmy, o me​lhor da fes​ta es​ta​va mes​m o em Elko County... e Ste​f an
Wy ca-zik que​r ia to​m ar par​te no es​pe​tá​c u​lo, ain​da que fos​se ape​nas um ob​ser​va​-
dor mudo e as​sus​ta​do.
Lem​brou-se das pa​la​vras de Tolk, no apar​ta​m en​to dos Men​do-za: “Há
mais...” O pa​tru​lhei​r o des​c o​bri​r a por aca​so par​te de seus po​de​r es. Tam​bém por
aca​so Emmy des​c o​bri​r a ou​tro as​pec​to dos
mes​m os po​de​r es, o su​f i​c i​e n​te para vi​r ar a casa pelo aves​so. Bre​ve, com cer​-
te​za, ha​ve​r ia ur​si​nhos dan​ç an​do no quar​to dos fi​lhos de Win​ton Tolk.
— O se​nhor mes​m o pode cui​dar de tudo? — O pai de Emmy en​f i​ou a ca​-
be​ç a pela por​ta e fi​tou-o com olhos an​si​o​sos.
— Por fa​vor — pe​diu a sra. Hal​bourg, apro​xi​m an​do-se por trás do ma​r i​do.
— Que​r e​m os que seja fei​to o mais ra​pi​da​m en​te pos​sí​vel.
— Tudo... o quê? — per​gun​tou o pa​dre, in​tri​ga​do. — O que vo​c ês que​r em
que...
— O exor​c is​m o, é cla​r o! — o ca​sal res​pon​deu ao mes​m o tem​po.
En​tão fora para isso que a mãe de Emmy o re​c e​be​r a com tan​ta
na​tu​r a​li​da​de, qua​se com alí​vio.
— Nem pen​sar! — ex​c la​m ou Ste​f an. — Não há a me​nor ne​c es​si​da​de de
exor​c is​m o. Emmy não está pos​su​í​da pelo de​m ô​nio... Que idéia! Deus do céu...
Nada dis​so!
En​quan​to ele fa​la​va, um dos ur​si​nhos que es​ta​vam na ca​dei​r a de ba​lan​ç o sal​-
tou para o chão e ca​m i​nhou em sua di​r e​ç ão, gin​gan​do nas per​ni​nhas re​don​das e
ma​c i​a s.
Win​ton dis​se​r a que pre​c i​sa​va de tem​po para apren​der a con​tro​lar seus po​de​-
res. Emmy po​r ém, mos​tra​va-se ca​paz de fa​zer o que qui​zes​se, se​nho​r a de suas
no​vas ha​bi​li​da​des. Ste​f an não pôde dei​xar de pen​sar que as cri​a n​ç as re​a l​m en​te se
adap​tam a quais​quer cir​c uns​tân​c i​a s me​lhor que os adul​tos, por es​tra​nhas e ina​-
cre​di​tá​veis que se​j am as cir​c uns​tân​c i​a s...
Ain​da as​sus​ta​dos, sem sa​ber o que pen​sar, os pais da me​ni​na en​tra​r am no
quar​to e olha​r am em vol​ta, ten​tan​do de​c i​dir se es​ta​vam di​a n​te de um pre​sen​te de
Deus ou do di​a ​bo. O pá​r o​c o ba​lan​ç ou a ca​be​ç a, pre​o​c u​pa​do. Era fá​c il adi​vi​nhar
o que es​ta​vam sen​tin​do. Emmy pa​r e​c ia bem, os ur​si​nhos eram lin​dos, a flau​-
ta so​a ​va como um mi​la​gre... e, no en​tan​to, tudo era es​tra​nho de​m ais, in​c om​-
preen​sí​vel, as​sus​ta​dor!
Pela pri​m ei​r a vez na vida, o oti​m is​m o ina​ba​lá​vel do ina​ba​lá​vel fi​lho de po​lo​-
ne​ses via-se di​a n​te de um beco sem sa​í​da.
De​pois de fa​lar com Ale​xan​der Ch​r is​toph​son, Gin​ger acom​pa​nhou Fay e até
a fa​zen​da de El​r oy e Nancy Ja​m i​son, no vale
Le​m oi​lle, a vin​te qui​lô​m e​tros de Elko, os mes​m os Ja​m i​son que vi​si​ta​r am os
Block na noi​te de 6 de ju​lho do ano re​tra​sa​do. Cla​r o que tam​bém pre​sen​c i​a ​r am
os acon​te​c i​m en​tos da​que​la noi​te e, por​tan​to, não ha​via dú​vi​da de que fo​r am sub​-
me​ti​dos à la​va​gem ce​r e​bral como to​dos os ou​tros. De tudo que ocor​r e​r a, po​r ém,
res​ta​va-lhes ape​nas a lem​bran​ç a fal​sa de te​r em vol​ta​do para casa le​van​do Er​nie
e Fay e para al​guns dias de fé​r i​a s na fa​zen​da. A mes​m a lem​bran​ç a que os Block
guar​da​vam... até pou​c o tem​po an​tes.
A idéia não era con​tar aos Ja​m i​son o que des​c o​bri​r am, mas ten​tar sa​ber na
me​di​da do pos​sí​vel se o ca​sal so​f ria al​gum tipo de per​tur​ba​ç ão psi​c o​ló​gi​c a. No
caso de con​f ir​m ar-se a hi​pó​te​se, en​tão sim, pre​ten​di​a m ex​pli​c ar-lhes a ver​da​de e
con​ven​c ê-los a mu​dar-se para o mo​tel. Do con​trá​r io, não lhes di​r i​a m. Tam​bém
para eles, como para Alex Ch​r is​toph​son, a ig​norân​c ia dos fa​tos cons​ti​tu​ía um se​-
gu​r o de vida.
De acor​do com a es​tra​té​gia que Jack Twist de​f i​ni​r a na noi​te an​te​r i​or, fa​r i​a m
uma úni​c a vi​si​ta aos Ja​m i​son. Se não hou​ves​se si​nal apa​r en​te de que o blo​queio
co​m e​ç a​va a fra​que​j ar, dei​xa​r i​a m os dois de lado, pois não ti​nham tem​po a per​-
der. Ain​da con​f or​m e as pa​la​vras de Jack, “nem o de​m ô​nio em pes​soa” con​ven​-
ce​r ía al​guém de que lhe rou​ba​r am três dias do pas​sa​do. Ele não ti​nha dú​vi​das de
que os ini​m i​gos ul​ti​m a​vam os pre​pa​r a​ti​vos de ata​que.
A vi​a ​gem, na ca​m i​nho​ne​te do mo​tel, foi tran​qüi​la e agra​dá​vel. Com pou​c o
mais de quin​ze qui​lô​m e​tros de com​pri​m en​to e cin​c o de lar​gu​r a, o vale avan​ç a​va
até o sopé dos mon​tes Ruby. Ape​sar da neve, de lon​ge em lon​ge viam-se cam​pos
onde em bre​ve co​m e​ç a​r ia a se​m e​a ​du​r a do tri​go e da ce​va​da que, quan​do che​-
gas​se a pri​m a​ve​r a, co​bri​r í​a m o vale de ver​de.
As ter​r as de pas​ta​gens e gado con​c en​tra​vam-se na re​gi​ã o mais alta, onde se
ori​gi​na​r a a pro​pri​e ​da​de dos Ja​m i​son. A prin​c í​pio, o ca​sal de​di​c a​r a-se à cri​a ​ç ão
de gado, mas, com a ex​tra​or​di​ná​r ia va​lo​r i​za​ç ão das ter​r as de​c i​di​r am ven​der boa
par​te da fa​zen​da. Ago​r a, já bei​r an​do os ses​sen​ta anos, cui​da​vam de uns vin​te
hec​ta​r es si​tu​a ​dos na re​gi​ã o pró​xi​m a ao sopé das mon​ta​nhas; ti​nham ape​nas três
ca​va​los e al​gu​m as ga​li​nhas.
Ao sair da es​tra​da que cor​ta​va o vale para to​m ar o rumo da en​c os​ta, Fay e
co​m en​tou:
— Acho que es​tão nos se​guin​do.
Gin​ger olhou pelo es​pe​lho re​tro​vi​sor à sua di​r ei​ta e viu um car​r o sem pla​c as,
a al​guns me​tros de dis​tân​c ia.
— Será mes​m o? — per​gun​tou.
— Só pode ser. Es​tão atrás de nós des​de o pos​to de ga​so​li​na, na ci​da​de.
— Pode ser co​in​c i​dên​c ia...
Quan​do se apro​xi​m a​r am da en​tra​da da pro​pri​e ​da​de dos Jami-son, Fay e pas​-
sou para o acos​ta​m en​to e di​m i​nuiu a mar​c ha, es​pe​r an​do a re​a ​ç ão do ou​tro mo​to​-
ris​ta. Se re​a l​m en​te a se​guia, ele te​r ia que pa​r ar; se não, ul​tra​pas​sa​r ia a ca​m i​nho​-
ne​te e con​ti​nu​a ​r ia seu ca​m i​nho. O car​r o pa​r ou.
— Aí está sua co​in​c i​dên​c ia — Fay e co​m en​tou.
— Eles nem se pre​o​c u​pam em dis​f ar​ç ar...
— E por que se pre​o​c u​pa​r i​a m? Se Jack está cer​to, já sa​bem tudo que sa​be​-
mos, pelo me​nos até ago​r a. Sa​bem que es​ta​m os jun​tos, or​ga​ni​zan​do nos​sas tro​-
pas... e não têm mo​ti​vo para se es​c on​der. Tal​vez pen​sem até que nos in​ti​m i​dam
com essa brin​c a​dei​r a de gato e rato.
Ela ma​no​brou, pi​sou no ace​le​r a​dor e do​brou na en​tra​da que le​va​va à casa
dos Ja​m i​son. Pelo es​pe​lho, Gin​ger viu o car​r o ma​no​brar para se​gui-las.
— Ou vão nos pe​gar, ou só que​r em sa​ber onde es​ta​r e​m os, caso de​c i​di​r em
agar​r ar-nos a to​dos de uma vez só.
Fa​zia ain​da mais frio na es​tra​di​nha, la​de​a ​da de pi​nhei​r os an​ti​gos e al​tos, que
mal dei​xa​vam pas​sar a luz fra​c a da ma​nhã.
Sen​ta​do ao lado do mo​to​r is​ta, a ca​m i​nho da en​tra​da do de​pó​si​to, olhan​do sem
ver a gra​m a cres​ta​da de frio e os ves​tí​gi​os de neve so​bre a ter​r a en​du​r e​c i​da, o
co​r o​nel Falkirk pen​sa​va no que po​de​r ia acon​te​c er se va​zas​se o se​gre​do de Thun​-
der Hill.
Do pon​to de vis​ta po​lí​ti​c o, Thun​der Hill fa​r ia o escân​da​lo de Wa​ter​ga​te pa​r e​-
cer mera bis​bi​lho​ti​c e de re​pór​te​r es ama​do​r es. As
mais con​f i​á ​veis e res​pei​ta​das ins​ti​tui​ç ões po​lí​ti​c as do país, das mai​o​r es às
me​no​r es, en​vol​vi​das num gran​de cir​c o de men​ti​r as, fal​si​da​des e his​tó​r i​a s mal​-
con​ta​das...
Se o se​gre​do for man​ti​do, pen​sa​va, pro​va​r e​m os ao mun​do que nos​sas di​f e​-
ren​ç as in​ter​nas... as bri​gas e o ci​ú​m e en​tre CIA, FBI, Ser​vi​ç o Se​c re​to do Exér​c i​-
to, For​ç a Aé​r ea... sao su​per​f i​c i​a is. Mos​tra​r e​m os que, di​a n​te de um ver​da​dei​r o
pe​r i​go, de uma ame​a ​ç a real, so​m os pa​tri​o​tas o bas​tan​te para es​que​c er as di​f e​-
ren​ç as e unir es​f or​ç os. Mas... se o se​gre​do va​zar... não so​bra​r á pe​dra so​bre pe​-
dra! O escân​da​lo será tão gran​de que o povo ame​r i​c a​no per​de​r á a fé nos ho​m ens
que es​c o​lheu para go​ver​ná-lo e no sis​te​m a de que tan​to nos or​gu​lha​m os. Ver​da​de
que pou​c a gen​te sabe de tudo... no má​xi​m o meia dú​zia dos me​lho​r es agen​tes do
FBI, dois ou três da CIA. A mai​or par​te dos agen​tes en​vol​vi​dos na ope​r a​ç ão
não faz idéia do que há em Thun​der Hill... Por isso a no​tí​c ia ain​da não trans​pi​r ou.
Mas os chefões sa​bem! Os da CIA, do FBI, do Es​ta​do-Mai​or do Exér​c i​to. Sem
fa​lar no mi​nis​tro da Guer​r a, no pre​si​den​te e em dois de seus prin​c i​pais as​ses​so​-
res, no vice-pre​si​den​te... To​das es​sas ca​be​ç as vão ro​lar quan​do al​guém mais sou​-
ber da ver​da​de.
A ca​tás​tro​f e po​lí​ti​c a se​r ia ape​nas par​te da de​vas​ta​ç ão to​tal. Uma co​m is​são
no​m e​a ​da pelo pre​si​den​te, tra​ba​lhan​do em si​gi​lo, es​tu​da​va, du​r an​te anos, as pos​sí​-
veis con​se​qüên​c i​a s de uma hi​po​té​ti​c a cri​se se​m e​lhan​te à que bro​ta​r ia em Thun​-
der Hill se o se​gre​do fos​se di​vul​ga​do. Eram fí​si​c os, bi​ó​lo​gos, an​tro​pó​lo​gos, so​c i​ó​-
lo​gos, te​ó​lo​gos, eco​no​m is​tas, edu​c a​do​r es e cen​te​nas de ou​tros es​pe​c i​a ​lis​tas em
to​das as áre​a s do co​nhe​c i​m en​to hu​m a​no; seu pri​m ei​r o re​la​tó​r io, al​ta​m en​te con​f i​-
den​c i​a l, ti​nha mais de mil pá​gi​nas. Le-land co​nhe​c ia-o de cor, por​que tra​ba​lha​r a
com a equi​pe, como es​pe​c i​a ​lis​ta em es​tra​té​gia mi​li​tar, e re​di​gi​r a al​gu​m as con​-
clusões. O re​la​tó​r io era mui​to cla​r o: na even​tu​a ​li​da​de de uma cri​se to​tal de va​lo​-
res, o mun​do ja​m ais vol​ta​r ia a ser o mes​m o. As so​c i​e ​da​des hu​m a​nas e as cul​tu​-
ras co​nhe​c i​das so​f re​r i​a m mu​dan​ç as ra​di​c ais e de​f i​ni​ti​vas. In​de​pen​den​te​m en​te da
na​tu​r e​za da cri​se, con​si​de​r an​do-se ape​nas a pro​f un​di​da​de dos va​lo​r es afe​ta​dos,
pre​vi​a m-se mi​lhões de mor​tes, em todo o pla​ne​ta, nos pri​m ei​r os dois anos.
Ao apro​xi​m ar-se da gi​gan​tes​c a por​ta de aço en​c ra​va​da na mon​ta​nha, o te​-
nen​te Hor​ner di​m i​nuiu a ve​lo​c i​da​de, mas não pa​r ou; en​trou à di​r ei​ta e en​c a​m i​-
nhou-se para um pe​que​no es​ta​c i​o​na​m en​to, onde ha​via al​guns ve​í​c u​los.
Com dez me​tros de al​tu​r a e seis de lar​gu​r a, cada uma, as por​tas de aço eram
mui​to pe​sa​das para abrir-se toda vez que al​guém pre​c i​sa​va en​trar ou sair. Fa​zi​a m
um ba​r u​lho que po​dia ser ou​vi​do a qui​lô​m e​tros de dis​tân​c ia e pro​vo​c a​r a​vam um
des​lo​c a​m en​to de ar vi​sí​vel à vol​ta da mon​ta​nha. Além dis​so, de​m o​r a​vam cin​c o
mi​nu​tos para abrir-se to​tal​m en​te. Para evi​tar es​ses in​c on​ve​ni​e n​tes, ha​via na en​-
cos​ta, à di​r ei​ta, uma por​ta igual​m en​te in​vul​ne​r á​vel, po​r ém de di​m ensões re​du​zi​-
das, su​f i​c i​e n​te para dar pas​sa​gem a um ho​m em de cada vez.
O mai​or e mais bem pro​te​gi​do co​f re do mun​do. Não ha​via lu​gar me​lhor do
que Thun​der Hill para es​c on​der o se​gre​do da noi​te de 6 de ju​lho. Na​que​la for​ta​-
le​za inex​pug​ná​vel ele es​ta​r ia se​pul​ta​do para sem​pre.
Le​land e o te​nen​te Hor​ner sal​ta​r am do car​r o e di​r i​gi​r am-se para a por​ta me​-
nor, qua​se tão pe​sa​da quan​to a pri​m ei​r a, po​r ém aci​o​na​da por um me​c a​nis​m o
mais sim​ples, em​bo​r a to​tal​m en​te se​gu​r o. Qua​tro al​ga​r is​m os, di​gi​ta​dos num pai​-
nel ele​trô​ni​c o jun​to à fe​c ha​du​r a, abi​r a​r am-na qua​se sem ru​í​do. Os nú​m e​r os
eram tro​c a​dos a cada duas se​m a​nas, e os pou​c os fun​c i​o​ná​r i​os que ti​nham aces​so
ao có​di​go de​c o​r a​vam-no como par​te da ro​ti​na de tra​ba​lho. Le​land adi​a n​tou-se,
di​gi​tou o có​di​go, e a por​ta des​li​zou so​bre os tri​lhos.
Ali co​m e​ç a​va o pri​m ei​r o de vá​r i​os tú​neis que le​va​vam ao co​r a​ç ão da mon​-
ta​nha: um tú​nel de qua​tro me​tros de com​pri​m en​to e três de diâ​m e​tro, pro​f u​sa​-
men​te ilu​m i​na​do. Ao fi​nal, uma cur​va à es​quer​da e ou​tra por​ta, idên​ti​c a à pri​-
mei​r a, que não po​dia ser aber​ta até que a en​tra​da ex​ter​na es​ti​ves​se no​va​m en​te
tran​c a​da. Le​land to​c ou um ter​m i​nal de com​pu​ta​dor sen​sí​vel à tem​pe​r a​tu​r a da
mão e ou​viu o zum​bi​do da pri​m ei​r a por​ta se fe​c han​do a suas cos​tas.
No ins​tan​te em que a fe​c ha​du​r a es​ta​lou, en​tra​r am em ope​r a​ç ão as duas câ​-
ma​r as de ví​deo ins​ta​la​das no teto do tú​nel, que acom​pa​nha​r am os dois ho​m ens na
di​r e​ç ão da se​gun​da por​ta. Não ha​via olho hu​m a​no atrás das câ​m a​r as, nem di​a n​te
dos mo​ni​to​r es dos ter​m i​nais. O sis​te​m a era ope​r a​do ele​tro​ni​c a​m en​te, atra​vés
de um com​pu​ta​dor pro​gra​m a​do para per​m i​tir ex​c lu​si​va​m en​te a pas​sa​gem do
pes​so​a l au​to​r i​za​do. Uma pre​c au​ç ão adi​c i​o​nal, à pro​va de erro ou de trai​ç ão, pre​-
ven​do a hi​pó​te​se de al​gum des​c ui​do da guar​da, do​lo​so ou não. O sis​te​m a de se​gu​-
ran​ç a que con​tro​la​va o aces​so a Thun​der Hill era in​de​pen​den​te, sem li​ga​ç ão com
o com​pu​ta​dor cen​tral da base nem com o mun​do ex​ter​no, o que o tor​na​va vir​tu​-
al​m en​te in​vul​ne​r á​vel a qual​quer equi​pa​m en​to ele​trô​ni​c o que fos​se usa​do para
aci​o​ná-lo, tan​to de den​tro quan​to de fora.
Quan​do o car​r o de Le​land pas​sa​r a pela gua​r i​ta, um dos sol​da​dos di​gi​ta​r a um
có​di​go se​c re​to em seu ter​m i​nal de com​pu​ta​dor. Com isso, aci​o​na​r a o sis​te​m a de
se​gu​r an​ç a, que “re​c o​nhe​c eu” Le​land e Hor​ner no ins​tan​te em que as câ​m a​r as
cap​ta​r am seus ros​tos. En​quan​to os dois ca​m i​nha​vam para a se​gun​da por​ta,
as ima​gens ini​c i​a is eram com​pa​r a​das com os re​gis​tros ho​lo​grá​f i​c os ar​m a​ze​na​dos
na me​m ó​r ia do sis​te​m a de se​gu​r an​ç a, con​si​de​r an​do-se, para a com​pa​r a​ç ão, qua​-
ren​ta e dois de​ta​lhes do quei​xo à tes​ta de cada um. Não ha​via dis​f ar​c e ou más​c a​-
ra que pas​sas​se in​c ó​lu​m e pelo exa​m e das câ​m a​r as. Se um úni​c o dos qua​r en​ta e
dois de​ta​lhes re​gis​tra​dos não co​in​c i​dis​se exa​ta​m en​te com a ima​gem cap​ta​da, so​-
a​r ia um alar​m e em toda a área sub​terrâ​nea da base, o tú​nel se​r ia blo​que​a ​do, o
sis​te​m a de ar con​di​c i​o​na​do li​be​r a​r ia um gás que fa​r ia ador​m e​c er o pre​ten​so in​-
va​sor.
A por​ta in​ter​na não ti​nha fe​c ha​du​r a, tran​c a ou có​di​go nu​m é​r i​c o a ser di​gi​ta​-
do. A es​quer​da, na pa​r e​de do tú​nel, ha​via ape​nas uma pla​c a de vi​dro, qua​dra​da,
com doze cen​tí​m e​tros de lado; Le​land co​lo​c ou a pal​m a da mão es​quer​da so​bre a
pla​c a, pres​si​o​nou-a e es​pe​r ou um se​gun​do, tal​vez me​nos. A por​ta co​m e​ç ou a
abrir-se de​va​gar, de​pois que as im​pressões di​gi​tais dei​xa​das no vi​dro
fo​r am com​pa​r a​das à ima​gem das câ​m a​r as e da​das como “ver​da​dei​r as e co​-
in​c i​den​tes”.
— En​tra​da mais di​f í​c il só a do pa​r a​í​so — Hor​ner sus​pi​r ou.
— En​ga​no seu — dis​se Le​land. — Aqui é mais di​f í​c il.
Os dois en​tra​r am num tú​nel na​tu​r al, ape​nas re​to​c a​do por mãos hu​m a​nas.
Não se via a abó​ba​da da ca​ver​na, mui​to alta, me​tros aci​m a, mer​gu​lha​da na es​-
cu​r i​dão, por​que as lu​m i​ná​r i​a s fo​r am re​bai​xa​das até a al​tu​r a nor​m al, cri​a n​do a
ilu​são de um se​gun​do teto. Com mais de sete me​tros de lar​gu​r a, o tú​nel avan​ç a​va
cer​c a de cen​to e cin​qüen​ta me​tros. Em al​guns pon​tos, via-se a ro​c ha na​tu​r al, mas
de lon​ge em lon​ge era pos​sí​vel per​c e​ber os pon​tos em que a pas​sa​gem fora alar​-
ga​da a gol​pes de pi​c a​r e​ta ou ex​plosões de di​na​m i​te. Ha​via es​pa​ç o su​f i​c i​e n​te para
car​ga e des​c ar​ga dos ca​m i​nhões que dei​xa​vam os su​pri​m en​tos à en​tra​da dos
gran​des ele​va​do​r es en​c ar​r e​ga​dos de trans​por​tá-los para os pi​sos sub​terrâ​ne​os.
Ape​nas um guar​da vi​gi​a ​va a en​tra​da da sala cuja por​ta Le​land e Hor​ner
abri​r am. Con​si​de​r an​do que Thun​der Hill es​ta​va dis​tan​te de tudo, pro​te​gi​da pe​los
mais so​f is​ti​c a​dos equi​pa​m en​tos de se​gu​r an​ç a; con​si​de​r an​do que nin​guém en​tra​va
ali sem pas​sar por ins​pe​ç ão ele​trô​ni​c a ri​go​r o​sa, um úni​c o guar​da era mais que
su​f i​c i​e n​te, na opi​ni​ã o de Le​land. Pro​va​vel​m en​te, o guar​da ti​nha a mes​m a opi​ni​-
ão, pois, com o re​vól​ver no col​dre, as per​nas cru​za​das e uma pas​ti​lha na boca, lia
com gos​to um ro​m an​c e po​li​c i​a l.
Ves​tia ca​sa​c o de in​ver​no, pois as áre​a s in​ter​m e​di​á ​r i​a s do de​pó​si​to não ti​nham
ca​le​f a​ç ão; ape​nas os es​c ri​tó​r i​os e as áre​a s de con​vi​vên​c ia e la​zer eram aque​c i​-
das. Toda a ener​gia con​su​m i​da em Thun​der Hill vi​nha de uma pe​que​na usi​na hi​-
dre​lé​tri​c a cons​tru​í​da às mar​gens de um rio sub​terrâ​neo. A pro​du​ç ão de ener​gia
era gran​de, mas não bas​ta​va para a ca​le​f a​ç ão das ca​ver​nas, onde a tem​pe​r a​tu​r a
ja​m ais ul​tra​pas​sa​va a mar​c a dos doze graus cen​tí​gra​dos, per​f ei​ta​m en​te su​por​tá​-
vel para quem se ves​tis​se apro​pri​a ​da​m en​te
— Bom-dia, co​r o​nel Le​land... te​nen​te Hor​ner... — O guar​da le​van​tou-se.
— Os se​nho​r es po​dem en​trar para fa​lar com o dou​tor Ben​nell. Já sa​bem onde
en​c on​trá-lo.
A es​quer​da, a três me​tros de dis​tân​c ia, bri​lha​va a su​per​f í​c ie po​li​da do re​ves​ti​-
men​to in​ter​no das gi​gan​tes​c as por​tas de en​tra​da. Le​land e Hor​ner de​r am-lhes as
cos​tas, do​bra​r am à di​r ei​ta e mer​gu​lha​r am no co​r a​ç ão da mon​ta​nha, rumo aos
ele​va​do​r es.
Ha​via em Thun​der Hill as​c en​so​r es hi​dráu​li​c os de três ta​m a​nhos, o mai​or dos
quais era idên​ti​c o aos mo​de​los uti​li​za​dos para o trans​por​te de avi​ões. Além de
equi​pa​m en​to e pro​visões equi​va​len​tes a mais de dois bi​lhões de dó​la​r es — co​m i​-
da con​ge​la​da, re​m é​di​os, apa​r e​lha​gem hos​pi​ta​lar, rou​pas, bar​r a​c as de cam​pa​-
nha, ar​m a​m en​to leve, fu​zis, mor​tei​r os, ar​ti​lha​r ia de cam​po, mu​ni​ç ão, ve​í​c u​los
mi​li​ta​r es e vin​te ogi​vas nu​c le​a ​r es —, Thun​der Hill ain​da con​ta​va com equi​pa​-
men​to aé​r eo. Em pri​m ei​r o lu​gar, cin​qüen​ta e oito he​li​c óp​te​r os, trin​ta dos quais
equi​pa​dos com ar​m a​m en​to an​ti​tan​que, e oito de fa​bri​c a​ç ão an​glo-fran​c e​sa, des​-
ti​na​dos a trans​por​te em ge​r al. Ne​nhu​m a ae​r o​na​ve con​ven​c i​o​nal, mas vin​te ja​tos
de fa​bri​c a​ç ão in​gle​sa, do​ta​dos de pro​pul​so​r es es​pe​c i​a is, que lhes per​m i​ti​a m de​-
co​lar e pou​sar ver​ti​c al​m en​te, sem ne​c es​si​da​de de pis​ta. No caso de um ata​que
nu​c le​a r li​m i​ta​do, se​gui​do de in​va​são de tro​pas ini​m i​gas, tan​to he​li​c óp​te​r os de
trans​por​te como os trans​por​ta​do​r es de ja​tos po​di​a m ser con​du​zi​dos de ele​va​-
dor até o piso de sa​í​da e de​c o​lar em qual​quer di​r e​ç ão.
Por ora, en​tre​tan​to, nada pa​r e​c ia exi​gir o uso do equi​pa​m en​to aé​r eo de
Thun​der Hill; as​sim Le​land e Hor​ner pas​sa​r am di​r e​to pe​los as​c en​so​r es hi​dráu​li​-
cos e en​tra​r am num dos três ele​va​do​r es co​m uns reu​ni​dos ao fun​do.
No ter​c ei​r o piso in​f e​r i​or do com​ple​xo, o úl​ti​m o do de​pó​si​to, eram guar​da​dos
equi​pa​m en​tos mé​di​c os, ali​m en​tos, ar​m as e mu​ni​ç ão; as sa​las ca​la​f e​ta​das ti​nham
vál​vu​las re​gu​la​do​r as de pres​são e por​tas à pro​va de ex​plo​são. No se​gun​do piso,
in​ter​m e​di​á ​r io, fi​c a​vam os ve​í​c u​los, as ae​r o​na​ves e o pes​so​a l re​si​den​te em Thun​-
der Hill.
Le​land e Hor​ner sa​í​r am do ele​va​dor no se​gun​do piso, di​r e​ta​m en​te num com​-
par​ti​m en​to de pa​r e​des de pe​dra, mui​to bem ilu​m i​na​do em seus qua​se qua​r en​ta
me​tros de diâ​m e​tro. Ser​via de ante-sala para qua​tro ou​tras sa​las es​c a​va​das na ro​-
cha e que, por
sua vez, abri​a m-se para mais uma sé​r ie de apo​sen​tos. Nas ma​lhas mai​o​r es
des​sa teia mer​gu​lha​da na mon​ta​nha guar​da​vam-se, en​tre ou​tras coi​sas, o equi​pa​-
men​to aé​r eo, os ji​pes e os tan​ques blin​da​dos.
Três das qua​tro sa​las que da​vam para a ante-sala di​a n​te do ele​va​dor não ti​-
nham por​tas, pois não ha​via ris​c o real de in​c ên​dio ou ex​plo​são à al​tu​r a da​que​le
ní​vel sub​terrâ​neo. A quar​ta câ​m a​r a, po​r ém, es​ta​va fe​c ha​da, e bem fe​c ha​da, por​-
que ali se man​ti​nha o se​gre​do da noi​te de 6 de ju​lho.
A pou​c os pas​sos do ele​va​dor, Le​land pa​r ou e olhou para a por​ta a sua fren​te.
Não ti​ve​r am tem​po de cons​truir uma por​ta igual às da en​tra​da do de​pó​si​to, mas
aque​la era per​f ei​ta, com suas to​r as de ma​dei​r a e seus oito me​tros de al​tu​r a por
vin​te de lar​gu​r a. Sem​pre que pa​r a​va ali, Le​land lem​bra​va-se do gi​gan​tes​c o por​tal
cons​tru​í​do pe​los na​ti​vos no pri​m ei​r o King Kong. E es​tre​m e​c ia, pen​san​do no que
acon​te​c e​r ia se sua for​ta​le​za fos​se vi​o​la​da.
— Ain​da se as​sus​ta, não é? — per​gun​tou Hor​ner.
— Você não?
— Eu tam​bém!
A es​quer​da, na por​ç ão in​f e​r i​or da​que​la bar​r i​c a​da, ha​via uma pe​que​na por​ta,
da al​tu​r a de um ho​m em, que dava aces​so à câ​m a​r a; um guar​da ali pos​ta​do exa​-
mi​na​va as cre​den​c i​a is dos vi​si​tan​tes. As ati​vi​da​des da “for​ta​le​za” de Le​land nada
ti​nham a ver com a ro​ti​na de Thun​der Hill, e a área era proi​bi​da a no​ven​ta por
cen​to do pes​so​a l da base.
Ao re​dor da ante-sala dos ele​va​do​r es, nos es​pa​ç os de ro​c ha en​tre as qua​tro
aber​tu​r as que da​vam aces​so às de​m ais câ​m a​r as in​ter​nas, ha​via vá​r i​a s di​vi​só​r i​a s
cons​tru​í​das no co​m e​ç o dos anos 60. Na​que​la épo​c a, usa​vam-se di​vi​só​r i​a s para
se​pa​r ar es​c ri​tó​r i​os, sa​las de tra​ba​lho ou lo​c ais de reu​ni​ã o dos ofi​c i​a is, en​ge​nhei​-
ros e su​pe​r in​ten​den​tes de pro​j e​tos do Exér​c i​to. Com o pas​sar do tem​po, as gran​-
des câ​m a​r as sub​terrâ​ne​a s fo​r am cada vez mais sub​di​vi​di​das, até que uma ver​da​-
dei​r a ci​da​de en​ter​r a​da co​m e​ç ou a sur​gir, com quar​tos, lan​c ho​ne​tes, salões de jo​-
gos, la​bo​r a​tó​r i​os, cen​tros de ma​nu​ten​ç ão de equi​pa​m en​tos, sa​las de com​pu​ta​do​-
res e mui​tos ou​tros com​par​ti​m en​tos, Pes​so​a l do Exér​c i​to ou do Go​ver​no,
de​sig​na​do para pres​tar ser​vi​ç os jun​to à base, em pe​r í​o​dos de um ou dois
anos, ocu​pa​va as ins​ta​la​ç ões. Nas sa​las do se​gun​do piso ha​via ca​le​f a​ç ão, ex​c e​-
len​te ilu​m i​na​ç ão, li​nhas te​le​f ô​ni​c as in​ter​nas e ex​ter​nas, co​zi​nhas, ba​nhei​r os mo​-
der​nos e to​dos os con​f or​tos da ci​vi​li​za​ç ão. Eram cons​tru​í​das a par​tir de pai​néis de
me​tal re​ves​ti​dos de es​m al​te azul-cla​r o, bran​c o ou bege, com ja​ne​las pe​que​nas e
por​tas es​trei​tas. Ape​sar de não ter ro​das, lem​bra​vam tmi​lers dis​pos​tos em cír​c u​lo,
como se uma tri​bo de mo​der​nos ci​ga​nos ti​ves​se des​c o​ber​to um modo novo de
acam​par e re​sis​tir às tem​pes​ta​des de neve, es​c on​den​do-se den​tro da ter​r a, a cem
me​tros da su​per​f í​c ie.
Le​land vi​r ou-se, deu as cos​tas à por​ta proi​bi​da e di​r i​giu-se a um dos tmi​lers,
no qual fun​c i​o​na​va o es​c ri​tó​r io do dr. Mi​les Ben​nell Hor​ner, como sem​pre,
acom​pa​nha​va-o.
Mi​les Ben​nell trans​f e​r i​r a-se para Thun​der Hill no ve​r ão re​tra​sa​do a fim de
ini​c i​a r a aná​li​se me​tó​di​c a e ci​e n​tí​f i​c a dos acon​te​c i​m en​tos do dia 6 de ju​lho. Des​-
de aque​la épo​c a, dei​xa​r a a base ape​nas três ve​zes, e sem​pre por pou​c os dias. O
que era de​ver trans​f or​m a​r a-se para ele em mis​são. Pa​r e​c ia ob​c e​c a​do... ou lou​-
co.
Uma dú​zia de ofi​c i​a is es​ta​va na sala, al​guns uni​f or​m i​za​dos, ou​tros à pai​sa​na;
al​guns ape​nas de pas​sa​gem, ou​tros con​ver​san​do em gru​pos. Le​land pas​sou por
eles sem vi​r ar a ca​be​ç a, ima​gi​nan​do quem se​r i​a m aque​les ho​m ens ca​pa​zes de
tra​ba​lhar du​r an​te se​m a​nas e me​ses sem ver a luz do sol. Re​c e​bi​a m uma aju​da de
cus​to con​si​de​r á​vel, a tí​tu​lo de “ris​c o adi​c i​o​nal”, o que, para Le​land, ain​da não
cons​ti​tu​ía com​pen​sa​ç ão su​f i​c i​e n​te para ta​m a​nho sa​c ri​f í​c io. Thun​der Hill não era
su​f o​c an​te como Shenk​f i​e ld, mas es​ta​va lon​ge de ser con​f or​tá​vel.
Le​land sus​pei​ta​va que co​m e​ç a​va a so​f rer de claus​tro​f o​bia, pois pas​sa​va dias
e dias com a sen​sa​ç ão de es​tar en​ter​r a​do vivo. O que po​de​r ia ser es​ti​m u​lan​te
para um ma​so​quis​ta as​su​m i​do como ele, re​ve​la​va-se sim​ples​m en​te in​su​por​tá​vel.
Era um tipo de dor que não cau​sa​va pra​zer ne​nhum.
O dr. Mi​les Ben​nell ti​nha as​pec​to do​e n​tio. Como to​dos em Thun​der Hill, per​-
de​r a com​ple​ta​m en​te o tom ro​sa​do da pele, de-
pois de me​ses lon​ge do sol. Os ca​be​los es​c u​r os e en​c a​r a​c o​la​dos e a bar​ba
cres​c i​da tor​na​vam-río ain​da mais pá​li​do. A luz es​bran​qui​ç a​da das lâm​pa​das fluo​-
res​c en​tes, pa​r e​c ia um fan​tas​m a. Cum​pri​m en​tou os re​c ém-che​ga​dos com um
ace​no de ca​be​ç a, mas não se le​van​tou nem es​ten​deu-lhes a mão.
Le​land achou me​lhor as​sim. Não era ami​go de Ben​nell... ao con​trá​r io, odi​a ​-
va-o... Além dis​so, co​m e​ç a​va a sus​pei​tar dele. To​dos os ci​e n​tis​tas en​vol​vi​dos no
pro​j e​to da​vam-lhe a im​pres​são de não se​r em nor​m ais, nem com​ple​ta​m en​te hu​-
ma​nos. Se seu ins​tin​to es​ti​ves​se cer​to, quan​to me​nos con​ta​to fí​si​c o ti​ves​se com
eles, me​lhor.
Na voz fria que sem​pre in​ti​m i​da​r a os su​bal​ter​nos, re​du​zin​do-os à mais mi​se​-
rá​vel sub​ser​vi​ê n​c ia, Le​land des​pe​j ou seu ser​m ão:
— Das duas uma: ou o se​nhor foi ne​gli​gen​te no con​tro​le da se​gu​r an​ç a des​ta
uni​da​de, o que con​f i​gu​r a cri​m e con​tra a se​gu​r an​ç a na​c i​o​nal, ou foi cúm​pli​c e de
um cri​m e. No se​gun​do caso, é o trai​dor que es​ta​m os pro​c u​r an​do. Ago​r a, ouça
com aten​ç ão... Vou des​c o​brir quem foi o fi​lho da puta que man​dou as fo​to​gra​f i​a s
para as tes​te​m u​nhas. Vou tra​ba​lhar com meus ho​m ens... E te​nha cer​te​za de que
os de​te​to​r es de men​ti​r as não apa​r e​c e​r ão que​bra​dos nos mo​m en​tos mais im​por​-
tan​tes, nem os in​ter​r o​ga​tó​r i​os se​r ão sus​pen​sos de re​pen​te, sem mai​o​r es ex​pli​c a​-
ções. Que​r o sa​ber quem fez Jack Twist vol​tar para cá... E quan​do des​c o​brir, aca​-
bo com ele... O in​f e​liz vai de​se​j ar ter nas​c i​do mos​c a, para pas​sar a vida co​m en​-
do bos​ta de ca​va​lo...
— Boa fra​se de efei​to... mas in​tei​r a​m en​te des​ne​c es​sá​r ia. Tam​bém que​r o
des​c o​brir onde está a fa​lha da se​gu​r an​ç a.
Le​land teve von​ta​de de que​brar-lhe a cara. Era por isso que odi​a ​va Mi​les
Ben​nell: o des​gra​ç a​do não ti​nha medo de nada.
Cal​vin Shark​le mo​r a​va na agra​dá​vel Rua 0’Ban​non, num bair​r o de clas​se
mé​dia de Evans​ton. O pa​dre Wy ​c a​zik pre​c i​sou pa​r ar duas ve​zes para in​f or​m ar-se
so​bre a di​r e​ç ão a se​guir. Na es​qui​na da Rua 0’Ban​non com a Ave​ni​da Scott, a dois
quar​tei​r ões da casa de Shark​le, avis​tou o mo​vi​m en​to: car​r os de po​lí​c ia, am​bu​lân​-
ci​a s, equi​pes de te​le​vi​são cor​r en​do de um lado para o ou​tro com suas câ-
ma​r as. Ape​sar do frio e do ven​to for​te, uma mul​ti​dão de cu​r i​o​sos es​pa​lha​va-
se pela cal​ç a​da e pe​los jar​dins das ca​sas vi​zi​nhas.
O trá​f e​go es​ta​va en​gar​r a​f a​do, e Ste​f an de​c i​diu es​ta​c i​o​nar na pró​pria ave​ni​-
da, onde não foi fá​c il en​c on​trar uma vaga. Saiu do car​r o e, al​guns quar​tei​r ões
adi​a n​te, co​m e​ç ou a abrir ca​m i​nho en​tre a mul​ti​dão. A me​di​da que fa​zia per​gun​-
tas e ou​via ex​pli​c a​ç ões mais ou me​nos de​sen​c on​tra​das, per​c e​bia que to​dos es​ta​-
vam ner​vo​sos e es​tra​nha​m en​te as​sus​ta​dos. Na ver​da​de, ha​via no ar uma fas​c i​na​-
ção im​pi​e ​do​sa pela tra​gé​dia alheia e um medo ins​tin​ti​vo de que a mes​m a dor
atin​gis​se a to​dos.
Não ha​via dú​vi​da de que acon​te​c e​r a uma tra​gé​dia. Um ho​m em de ros​to re​-
don​do e bi​go​des gros​sos di​zia a Ste​f an:
— Você não viu na te​le​vi​são?! O tal Shark​le, o “Tu​ba​r ão!”, é as​sim que o
cha​m am. Ho​m em pe​r i​go​so... Está en​trin​c hei​r a​do em casa des​de on​tem. Já ma​-
tou dois vi​zi​nhos e um po​li​c i​a l, e está com dois re​f éns lá den​tro. Se quer sa​ber,
acho que os dois es​tão fo​di​dos...
Ter​ç a-fei​r a de ma​nhã, Parker Fai​ne foi de avi​ã o até San Fran​c is​c o e lá to​-
mou uma co​ne​xão para Mon​te​r ey. Uma hora de vôo até San Fran​c is​c o, uma
hora de es​pe​r a no ae​r o​por​to, trin​ta e cin​c o mi​nu​tos de vi​a ​gem até Mon​te​r ey. Ver​-
da​de que o tem​po cor​r e​r a, pois uma das pas​sa​gei​r as, mu​lher jo​vem e bo​ni​ta, re​-
co​nhe​c eu-o, dis​se que ado​r a​va seus qua​dros e mos​trou-se en​c an​ta​da com seu
char​m e.
Em Mon​te​r ey, na agên​c ia lo​c a​do​r a de car​r os, ha​via ape​nas um au​to​m ó​vel
dis​po​ní​vel, um ca​lham​be​que ver​de-vô​m i​to que cons​ti​tu​ía ver​da​dei​r a ofen​sa ao
sen​so es​té​ti​c o de um pin​tor. Mas Parker Fai​ne não ti​nha tem​po a per​der.
Bom nas re​tas, o car​r o ame​a ​ç a​va em​pa​c ar nas su​bi​das. De​va​gar, Parker fi​-
nal​m en​te che​gou ao en​de​r e​ç o que Dom lhe dera: a casa de Ge​r ald Sal​c oe, o ho​-
mem que se hos​pe​da​r a no Mo​tel Tran​qüi-li​da​de com a mu​lher e duas fi​lhas na
noi​te de 6 de ju​lho e que pa​r e​c ia ter su​m i​do da face da ter​r a. A casa era im​po​-
nen​te, em es​ti​lo co​lo​ni​a l su​li​no, mas hor​r i​vel​m en​te des​lo​c a​da na cos​ta da Ca​li​f ór​-
nia; si​tu​a ​va-se no meio de um enor​m e ter​r e​no gra​m a​do, à
som​bra de pi​nhei​r os fron​do​sos, e era cer​c a​da de ar​bus​tos tão re​c or​ta​dos que
a fa​m í​lia de​via pa​gar sa​lá​r io in​te​gral para meia dú​zia de jar​di​nei​r os; os can​tei​r os
es​ta​vam flo​r i​dos de ver​m e​lho e púr​pu​r a, em ple​no mês de ja​nei​r o.
Parker ma​no​brou o ca​lham​be​que pela en​tra​da ma​j es​to​sa e es​ta​c i​o​nou em
fren​te aos de​graus que le​va​vam à va​r an​da de gra​dis de fer​r o tra​ba​lha​do. Já era
hora de ha​ver al​gu​m a luz ace​sa, mas a casa es​ta​va às es​c u​r as, com as cor​ti​nas
fe​c ha​das. Pa​r e​c ia va​zia.
Parker sal​tou do car​r o, su​biu a es​c a​da e an​dou pela va​r an​da, sem​pre re​c la​-
man​do do frio e do ven​to. A ne​bli​na dis​si​pa​r a-se na re​gi​ã o do ae​r o​por​to, mas ali,
na re​gi​ã o mais alta da ci​da​de, ain​da era su​f i​c i​e n​te para im​pe​dir que o sol aque​-
ces​se a ter​r a. No nor​te da Ca​li​f ór​nia o in​ver​no era sem​pre úmi​do e frio, o que
não acon​te​c ia em La​gu​na Be​a ​c h. Pre​ven​do o frio, Parker ves​ti​r a uma cal​ç a de
ve​lu​do gros​so, ca​m i​sa de fla​ne​la xa​drez, su​é ​ter de lã azul e ja-pona da Ma​r i​nha
com di​vi​sa e tudo. In​du​m en​tá​r ia re​f i​na​da e ori​gi​nal, com​ple​m en​ta​da por ina​c re​-
di​tá​veis tê​nis cor de abó​bo​r a. Ao to​c ar a cam​pai​nha, Parker olhou para os pés e
fez uma ca​r e​ta: es​ta​va fan​ta​si​a ​do de​m ais. To​c ou seis ve​zes, es​pe​r an​do trin​ta se​-
gun​dos en​tre um si​nal e ou​tro, e nin​guém apa​r e​c eu.
Na vés​pe​r a, um ho​m em cha​m a​do Jack Twist lhe te​le​f o​na​r a às onze ho​r as da
noi​te, de uma ca​bi​ne pú​bli​c a em Elko, para di​zer que ti​nha um re​c a​do de Do​m i​-
nick Cor​vai​sis: den​tro de vin​te mi​nu​tos, ele de​via es​pe​r ar uma cha​m a​da em de​-
ter​m i​na​da ca​bi​ne de La​gu​na Be​a ​c h. Fai​ne tra​ba​lha​va num qua​dro fan​tás​ti​c o, ini​-
ci​a ​do às três da tar​de, mas nem o tra​ba​lho o im​pe​di​r a de sa​ber o que Dom que​-
ria; ao per​c e​ber do que se tra​ta​va, ime​di​a ​ta​m en​te con​c or​da​r a em ir a Mon​te​r ey.
An​da​va pin​tan​do mui​to, nos úl​ti​m os dias, só por​que era a úni​c a ati​vi​da​de que o
fa​zia pa​r ar de pen​sar em Dom e em seus ami​gos reu​ni​dos num mo​tel no fim do
mun​do. De​pois, in​f or​m a​do de que Dom fa​zia flu​tu​a r sa​lei​r os, a seu bel-pra​zer,
de​c i​diu que nem a Ter​c ei​r a Guer​r a Mun​di​a l o impe-di​r ia de ir a Mon​te​r ey.
E ago​r a ali es​ta​va, der​r o​ta​do por uma por​ta fe​c ha​da! Não, não que​r ia vol​tar
de mãos va​zi​a s. Ti​nha de en​c on​trar os Sal​c oe, nem
que fos​se no fim do arco-íris. Para co​m e​ç ar, qual​quer casa das vi​zi​nhan​ç as
ser​via.
Os ar​bus​tos e o gra​m a​do di​f i​c ul​ta​vam um pou​c o a ca​m i​nha​da até a casa ao
lado, e Fai​ne vol​tou ao car​r o ver​de-vô​m i​to. Deu a par​ti​da, pôs a mão na ala​van​c a
do câm​bio e mais uma vez olhou para as ja​ne​las cada casa... En​tão viu um leve
mo​vi​m en​to nas cor​ti​nas, como se al​guém es​ti​ves​se es​pi​a n​do e fu​gis​se para den​-
tro ao vê-lo le​van​tar a ca​be​ç a. Sor​r in​do, sol​tou o bre​que e par​tiu, de​va​gar, em di​-
re​ç ão à sa​í​da. Sen​tia-se re​nas​c er... ago​r a que, ou​tra vez, brin​c a​va de es​pi​ã o.
Ern​j e e Dom es​ta​c i​o​na​r am o jipe ao fim da es​tra​da vi​c i​nal, e o car​r o de vi​-
dros fos​c os pa​r ou em se​gui​da, a du​zen​tos me​tros de dis​tân​c ia. Com os pneus
enor​m es e os ho​lo​f o​tes de si​na​li​za​ç ão por cima da car​r o​c e​r ia, pa​r e​c ia um in​se​to
gi​gan​te, pron​to para en​f i​a r-se na ter​r a ao pri​m ei​r o si​nal de in​se​ti​c i​da. Não se via
si​nal de mo​to​r is​ta.
— Você acha que eles que​r em bri​ga? — Dom per​gun​tou, sal​tan​do do jipe.
— Se qui​ses​sem, já te​r i​a m mos​tra​do a cara. — Er​nie sol​ta​va ba​f o​r a​das de
ar no frio da ma​nhã. — Que​r em só fi​c ar de olho. Por mim, que se da​nem!
Vol​ta​r am ao jipe, e apa​nha​r am as ar​m as: uma es​pin​gar​da car​r e​ga​da com
ba​las es​pe​c i​a is de ca​li​bre 32 e um fu​zil Spring​f i​e ld. A idéia era mos​trar aos ho​-
mens do car​r o-in​se​to que es​ta​vam pron​tos para a bri​ga.
Dali em di​a n​te, a mon​ta​nha su​bia em di​r e​ç ão oes​te, e a flo​r es​ta co​m e​ç a​va a
aden​sar-se. Na di​r e​ç ão les​te, con​tu​do, a ter​r a era pla​na, seca e nua. Ain​da não
co​m e​ç a​r a a ne​var, po​r ém ven​ta​va cada vez mais for​te. Dom en​c o​lheu-se no ca​-
sa​c o de in​ver​no que com​pra​r a em Reno, in​ve​j an​do o abri​go de nái​lon de Er​nie,
fe​c ha​do até o pes​c o​ç o, e suas bo​tas for​r a​das de pele. Fe​liz​m en​te, to​dos es​ses itens
es​ta​vam in​c lu​í​dos na lis​ta de com​pras que Gin​ger e Fay e fi​c a​r am en​c ar​r e​ga​das
de fa​zer em Elko: o ma​te​r i​a l ne​c es​sá​r io para a ope​r a​ç ão da​que​la noi​te, in​c lu​in​do
rou​pas de in​ver​no para
Dom e para os que não es​ti​ves​sem pre​pa​r a​dos para en​f ren​tar o frio. Na​que​le
mo​m en​to, to​da​via o ven​to o fa​zia tre​m er.
Am​bos ca​m i​nha​r am até o pon​to em que a mon​ta​nha co​m e​ç a​va a su​bir, para
con​ti​nu​a r a ope​r a​ç ão de re​c o​nhe​c i​m en​to do ter​r e​no à vol​ta de Thun​der Hill. A
alta cer​c a ele​tri​f i​c a​da se​guia adi​a n​te, pe​ne​tran​do na flo​r es​ta; de re​pen​te, dei​xa​va
de acom​pa​nhar a es​tra​da, do​bra​va para les​te e des​c ia em di​r e​ç ão ao vale.
Ali ha​via uma ca​m a​da de neve de trin​ta cen​tí​m e​tros, e as bo​tas de Er​nie afun​da​-
vam qua​se até o cano. Con​ti​nu​a ​r am an​dan​do acom​pa​nhan​do a cer​c a até um lo​-
cal de onde po​di​a m ver as por​tas de aço da en​tra​da do de​pó​si​to.
Não ha​via guar​das nem cães. Do lado opos​to da cer​c a, a neve bri​lha​va, mui​-
to bran​c a, sem si​nais de pe​ga​das, an​ti​gas ou re​c en​tes, o que sig​ni​f i​c a​va que ali
não ha​via ron​da re​gu​lar de vi​gi​a s.
— Nin​guém dei​xa​r ia um lu​gar como esse en​tre​gue ao anjo da guar​da —
dis​se Er​nie. — O fato de não ha​ver pa​tru​lhas de guar​da sig​ni​f i​c a que a se​gu​r an​ç a
é ele​trô​ni​c a. Com cer​te​za há um mi​lhão de apa​r e​lhos de vi​gi​lân​c ia do ou​tro lado
da cer​c a.
Dom es​pi​ou na di​r e​ç ão do car​r o-in​se​to, pre​o​c u​pa​do com o jipe. Viu um ho​-
mem de uni​f or​m e es​c u​r o, a si​lhu​e ​ta re​c or​ta​da con​tra a neve. Não es​ta​va per​to
do jipe, nem pa​r e​c ia in​te​r es​sa​do nele. Pa​r a​do jun​to à es​tra​da, ob​ser​va​va os mo​-
vi​m en​tos de Er​nie e Dom.
Ao vê-lo, Er​nie se​gu​r ou a es​pin​gar​da por bai​xo do bra​ç o e le​vou o bi​nó​c u​lo
aos olhos.
— E do Exér​c i​to — dis​se. — Pelo me​nos, usa um ca​sa​c o mi​li​tar. Está de
olho em nós.
— Ali pa​r a​do...? Não é es​tra​nho?
— E im​pos​sí​vel se​guir al​guém num des​c am​pa​do como este sem apa​r e​c er.
E o cara está que​r en​do ser vis​to mes​m o. Ele e a arma. Para avi​sar de que não
está pre​o​c u​pa​do com nos​sos fu​zis.
— Por quê?
— Por​que ele tem uma sub​m e​tra​lha​do​r a bel​ga. Uma arma fan​tás​ti​c a.
Seis​c en​tos ti​r os por mi​nu​to.
Se ti​ves​se as​sis​ti​do ao no​ti​c i​á ​r io de te​le​vi​são, na vés​pe​r a, o pa-
dre Wy ​c a​zik te​r ia ou​vi​do fa​lar mui​to de Cal​vin Shark​le, cujo nome es​ta​va nas
man​c he​tes fa​zia vin​te e qua​tro ho​r as. Mas ele não via te​le​vi​são há anos, por​que
de​c i​di​r a que era per​da de tem​po. Acha​va que aque​las versões sim​pli​f i​c a​das de
fa​tos da vida em​bo​ta​vam, a in​te​li​gên​c ia. Sen​tia-se eno​j a​do com o sexo e a vi​o​-
lên​c ia que a pe​que​na tela mos​tra​va. Con​si​de​r a​va tudo aqui​lo mo​r al​m en​te re​pul​si​-
vo. Po​de​r ia tam​bém ter lido so​bre Cal​vin nas pri​m ei​r as pá​gi​nas da edi​ç ão ma​tu​ti​-
na do Tri​bu​ne ou do Sun-Ti​mes, mas sa​í​r a tão apres​sa​do da casa pa​r o​qui​a l que
nem pen​sa​r a em jor​nais. Sem ou​tras fon​tes, re​c o​lhia frag​m en​tos da his​tó​r ia de
um ou de ou​tro, cer​c a​do pela mul​ti​dão que se aco​to​ve​la​va jun​to ao cor​dão de
iso-la​m e​m o.
Fa​zia me​ses que Cal Shark​le an​da​va agin​do de modo es​tra​nho. O sol​tei​r ão
sim​pá​ti​c o e amis​to​so, do qual to​dos os vi​zi​nhos gos​ta​vam na Rua 0’Ban​non, trans​-
for​m a​r a-se de re​pen​te num ho​m em pre​o​c u​pa​do, so​r um​bá​ti​c o, ca​la​dão. Vi​via di​-
zen​do a quem qui​ses​se ou​vir que pres​sen​tia “que al​gu​m a coi​sa im​por​tan​te e ter​r í​-
vel es​ta​va para acon​te​c er”. Lia li​vros eso​té​r i​c os e fa​la​va mui​to em Ar-ma​ge​-
dom. Pas​sa​va noi​tes em cla​r o, ator​m en​ta​do por pe​sa​de​los.
No dia 2 de de​zem​bro, dei​xou de di​r i​gir, ven​deu o ca​m i​nhão e pas​sou a an​-
dar pela vi​zi​nhan​ç a anun​c i​a n​do que “o fim es​ta​va pró​xi​m o”. Fa​la​va em ven​der a
casa, com​prar um ter​r e​no nas mon​ta​nhas e cons​truir um abri​go an​ti​a ​tô​m i​c o,
con​f or​m e uma plan​ta que en​c on​tra​r a numa re​vis​ta es​pe​c i​a ​li​za​da em so​bre​vi​vên​-
cia pós-guer​r a nu​c le​a r.
— Mas não vai dar tem​po — con​f es​sou à irmã, Nan Gil​c h​r ist. — Vou ter
que adap​tar mi​nha pró​pria casa.
Não sa​bia o que es​ta​va para acon​te​c er, não en​ten​dia a ori​gem do medo que
o tor​tu​r a​va, mas ga​r an​tia que não se tra​ta​va de guer​r a nu​c le​a r, in​va​são rus​sa, co​-
lap​so eco​nô​m i​c o nem qual​quer ou​tra coi​sa que os gru​pos alar​m is​tas va​ti​c i​na​vam
pe​las pra​ç as.
— Não sei o que é — dis​se a Nan —, mas sei que é es​tra​nho e hor​r í​vel... e
que está mui​to pró​xi​m o de acon​te​c er.
A irmã le​vou-o ao mé​di​c o, que, sem en​c on​trar ne​nhum dis​túr​bio orgâ​ni​c o,
di​a g​nos​ti​c ou “cri​se agu​da de stress”. De​pois do Na​tal,
Cal​vin já não pa​r e​c ia o mes​m o. Na pri​m ei​r a se​m a​na de ja​nei​r o man​dou
des​li​gar o te​le​f o​ne, ex​pli​c an​do ape​nas que “não se sabe como eles po​de​r ão nos
en​c on​trar. Tal​vez pos​sam en​trar pelo te​le​f o​ne...” Mas não sa​bia o que res​pon​der
quan​do al​guém lhe per​gun​ta​va quem eram “eles”.
Nin​guém, na ver​da​de, ima​gi​na​r a que Cal pu​des​se re​pre​sen​tar al​gum pe​r i​go.
Era um ho​m em cal​m o e as​sim fora du​r an​te toda a vida. Ape​sar do que an​da​va
di​zen​do, nada in​di​c a​va que se tor​na​r ia vi​o​len​to.
Até que, na ma​nhã do dia an​te​r i​or, oito e meia, Carl atra​ves​sou a rua e ba​teu
à por​ta de Edward Wilker​son, seu vi​zi​nho e ve​lho ami​go, de quem se afas​ta​r a nos
úl​ti​m os tem​pos.
— Não pos​so ser tão ago​ís​ta — dis​se-lhe. — Mi​nha casa está pre​pa​r a​da
para o ata​que, e a de vo​c ês é vul​ne​r á​vel. Por isso, quan​do “eles” che​ga​r em, se
vo​c ês se as​sus​ta​r em e qui​se​r em ir para lá, tudo bem. Po​de​r e​m os nos de​f en​der
me​lhor.
Quan​do Wilker​son per​gun​tou-lhe quem eram “eles”, Cal res​pon​deu:
— Não sei que cara têm, nem que nome usam para iden​ti​f i​c ar sua es​pé​c ie.
Mas vêm para nos agre​dir. Tal​vez nos trans​f or​m em em zum​bis.
Cal Shark​le ga​r an​tiu que ti​nha em casa mu​ni​ç ão su​f i​c i​e n​te para re​sis​tir a um
ata​que ma​c i​ç o e que ha​via re​f or​ç a​do por​tas, ja​ne​las e pa​r e​des.
As​sus​ta​do com a con​ver​sa so​bre ar​m as e mu​ni​ç ão, Wilker​son es​pe​r ou que o
vi​zi​nho vol​tas​se para casa e te​le​f o​nou para Nan Gil​c h​r ist. Ela che​gou meia hora
mais tar​de com o ma​r i​do, e dis​se a Wilker​son que ten​ta​r ia con​ven​c er o ir​m ão a
dei​xar-se le​var até um hos​pi​tal para exa​m es. Mas, de​pois que Nan en​trou na casa
de Shark​le, Wilker​son achou que se​r ia mais se​gu​r o acom​pa​nhá-la e con​vo​c ou ou​-
tro vi​zi​nho, Frank Krelky, para ir com ele. Ima​gi​nou que Nan abri​r ia a por​ta, po​-
rém o pró​prio Cal apa​r e​c eu à bei​r a da his​te​r ia, ar​m a​do com uma pis​to​la semi-
au​to​m á​ti​c a de cano lon​go, acu​san​do os vi​zi​nhos de es​ta​r em trans​f or​m a​dos
em zum​bis.
— Vo​c ês já es​tão trans​f or​m a​dos — gri​tou. — Oh! Deus! Eu de​ve​r ia ter
vis​to. Quan​do foi que acon​te​c eu? Quan​do foi que vo​c ês dei​xa​r am de ser hu​m a​-
nos? Meu Deus... Ago​r a vo​c ês vi​e ​r am nos bus​c ar! — Com um ber​r o de ani​m al
as​sus​ta​do, abriu fogo con​tra os vi​zi​nhos. O pri​m ei​r o tiro atin​giu o pes​c o​ç o de
Krelky, à quei​m a-rou​pa. Wilker​son cor​r eu e, ao ser atin​gi​do nas per​nas, fin​giu-
se de mor​to, o que lhe sal​vou a vida.
Krelky foi le​va​do para o Ins​ti​tu​to Mé​di​c o-Le​gal e Wilker​son es​ta​va no hos​pi​-
tal, fora de pe​r i​go, pron​to para fa​lar aos re​pór​te​r es.
Jun​to ao cor​dão de iso​la​m en​to, à en​tra​da da Rua 0’Ban​non, um jo​vem con​ta​-
va ao pa​dre Wy ​c a​zik as úl​ti​m as no​tí​c i​a s da ma​nhã.
— *Meu nome é Ro​ger Has​terwick, sou es​pe​c i​a ​lis​ta em mis​tu​r as al​c o​ó​li​c as
— de​c la​r a​r a —, mas es​tou tem​po​r a​r i​a ​m en​te de​sem​pre​ga​do.
Po​de​r ia ser, mais pro​sai​c a​m en​te, um bar​man re​c ém-des​pe​di​do, Ste​f an tra​-
du​zi​r a. Ro​ger ti​nha olhos bri​lhan​tes, de pu​pi​las di​la​ta​das, o que po​dia in​di​c ar in​to​-
xi​c a​ç ão por be​bi​da, dro​gas, fal​ta de sono ou psi​c o​pa​tia, ou tudo isso jun​to, mas
sa​bia das no​vi​da​des com de​ta​lhes.
— Daí — con​ta​va —, os po​li​c i​a is blo​que​a ​r am o quar​tei​r ão, ti​r a​r am as pes​-
so​a s das ca​sas vi​zi​nhas e ten​ta​r am en​trar em con​ta​to com o “Tu​ba​r ão”. Mas o te​-
le​f o​ne es​ta​va des​li​ga​do. A po​lí​c ia co​m e​ç ou a ber​r ar no me​ga​f o​ne, e o ho​m em se
fez de sur​do. Pa​r e​c e que a irmã dele e o cu​nha​do ain​da es​ta​vam vi​vos, como re​-
féns, por isso a po​lí​c ia não pôde in​va​dir a casa.
— Quei​r a Deus que es​te​j am vi​vos — mur​m u​r ou Ste​f an, unin​do as mãos
ge​la​das, mais de medo que de frio.
— Cla​r o, cla​r o... — fez Ro​ger, im​pa​c i​e n​te para con​ti​nu​a r con​tan​do o que
sa​bia. — Afi​nal, como já es​ta​va es​c u​r e​c en​do e logo se​r ia noi​te fe​c ha​da, a po​lí​c ia
cha​m ou o pes​so​a l do es​qua​drão es​pe​c i​a l para en​trar em ação e sal​var os re​f éns.
Jo​ga​r am bom​bas de gás la​c ri​m o​gê​nio, mas ti​ve​r am pro​ble​m as. Os po​li​c i​a is tro​-
pe​ç a​vam pelo jar​dim, por​que o “Tu​ba​r ão” co​briu a gra​m a com uma rede de
ara​m e. Um de​les caiu, que​brou a ca​be​ç a e teve con​c us​são ce​r e​bral. Não mor​-
reu, mas ain​da está in​c ons​c i​e n​te. Cal não foi atin​gi​do pelo gás por​que es​ta​va de
más​c a​r a, como se já sou​bes​se o que a po​lí​c ia fa​r ia, e abriu fogo con​tra o es​qua​-
drão es​pe​c i​a l. Ma​tou um guar​da e fe​r iu ou​tro. En​tão su​biu para o só​tão e fe​c hou
a por​ta. Nin​guém con​se​gue tirá-lo de lá, por​que man​dou ins​ta​lar uma por​ta de
aço lá no só​tão. As ja​ne​las tam​bém são de aço. O “Tu​bu​r ão” e a po​lí​c ia es​tão
em​pa​ta​dos. Que lou​c u​r a!
Dois mor​tos e três fe​r i​dos, Ste​f an fez as con​tas.
Has​terwick con​ti​nu​a ​va:
— Daí os po​li​c i​a is fo​r am em​bo​r a e re​sol​ve​r am es​pe​r ar que es​c u​r e​c es​se.
Não acon​te​c eu nada du​r an​te toda a noi​te. Hoje de ma​nhã Cal abriu uma fres​ti​-
nha da ja​ne​la e co​m e​ç ou a gri​tar. Pa​r e​c ia lou​c o... di​zia que al​guém es​ta​va che​-
gan​do... De​pois fe​c hou a ja​ne​la e não apa​r e​c eu mais. To​m a​r a que ele faça al​gu​-
ma coi​sa logo, por​que está mui​to frio e isto aqui já está fi​c an​do meio cha​to.
— O que ele gri​ta​va? — Ste​f an per​gun​tou.
Quan​do?
— Hoje de ma​nhã.
— Ah, dei​xe ver... — A al​guns pas​sos, a mul​ti​dão mo​vi​m en​tou-se, se​guin​do
uma onda de in​f or​m a​ç ões no​vas que vi​nha do ou​tro lado da rua. Afli​to, sem que​-
rer per​der qual​quer de​ta​lhe sór​di​do, Ro​ger gri​tou, fre​né​ti​c o, para um ho​m em de
ros​to ver​m e​lho e cha​péu de ca​ç a​dor:
— O que hou​ve? O que foi ago​r a?
— Um cara aí tem um rá​dio e sin​to​ni​zou a fai​xa do es​qua​drão es​pe​c i​a l.
Pa​r e​c e que eles vão in​va​dir a casa e man​dar o “Tu​ba​r ão” para o es​pa​ç o. O ho​-
mem cor​r eu em di​r e​ç ão a casa, e Has​terwick se​guiu-o.
O pa​dre Wy ​c a​zik foi em​pur​r a​do de to​dos os la​dos, a mul​ti​dão dis​pa​r an​do em
di​r e​ç ão à es​qui​na, ten​tan​do apro​xi​m ar-se o mais pos​sí​vel da casa. Ape​nas dez ou
doze pes​so​a s fi​c a​r am onde es​ta​vam, pa​r a​das jun​to ao cor​dão de iso​la​m en​to.
Logo ocor​r e​r ia uma tra​gé​dia, ha​ve​r ia mais mor​tos, ou​tros fe​r i​dos. Ste​f an sen​tia a
ame​a ​ç a no ar. Ti​nha que fa​zer al​gu​m a coi​sa... mas não con​se​guia pen​sar. Até
aque​le mo​m en​to, o “mis​té​r io” de Bren​dan pa​r e​c e​r a-lhe uma bên​ç ão di​vi​na, um
dom, um pre​sen​te... uma pro​m es​sa de fe​li​c i​da​de eter​na, o pri​m ei​r o ato de um
gran​de es​pe​tá​c u​lo que Deus pre​pa​r a​va para seus fi​lhos. Mas ali es​ta​va o re​ver​so
da me​da​lha, o lado es​c u​r o do mis​té​r io, a tra​gé​dia!
Afi​nal, sem sa​ber o que fa​zer, Ste​f an re​sol​veu acom​pa​nhar a mul​ti​dão, que
ou​tra vez se reu​nia, um quar​tei​r ão adi​a n​te, à vol​ta de um ca​m i​nhão azul com
uma pai​sa​gem da Ca​li​f ór​nia pin​ta​da na car​r o​c e​r ia. O dono, um gran​da​lhão pe​lu​-
do e bar​bu​do, sen​ta​do na ca​bi​ne, abri​r a as por​tas do ca​m i​nhão e me​xia nos bo​-
tões do rá​dio. Os po​li​c i​a is ul​ti​m a​vam os pla​nos de ata​que.
As equi​pes es​pe​c i​a is to​m a​vam po​si​ç ão no pri​m ei​r o an​dar da casa de Shark​le.
Usa​r i​a m uma pe​que​na car​ga de ex​plo​si​vo plás​ti​c o para ar​r e​ben​tar a por​ta de
aço, o que lhes per​m i​ti​r ia en​trar no só​tão, mas não aba​la​r ia os ali​c er​c es da casa.
En​quan​to isso, uma se​gun​da equi​pe fa​r ia ex​plo​dir a por​ta da fren​te, num ata​-
que em cu​nha. A es​tra​té​gia era ter​r i​vel​m en​te pe​r i​go​sa, tan​to para os ofi​c i​a is
quan​to para os re​f éns, mas o es​qua​drão pa​r e​c ia con​ven​c i​do de que se​r ia ain​da
mais pe​r i​go​so con​ti​nu​a r es​pe​r an​do.
Ao ou​vir as vo​zes que o rá​dio re​pro​du​zia, fa​zen​do vi​brar o ar frio da ma​nhã
de ja​nei​r o, Ste​f an sen​tiu de re​pen​te que pre​c i​sa​va de​ter o ata​que. Se o pla​no fos​-
se le​va​do adi​a n​te, ha​ve​r ia uma car​ni​f i​c i​na. Pre​c i​sa​va pas​sar pelo cor​dão de iso​-
la​m en​to, ir até a casa... e fa​lar com Cal Shark​le. E ti​nha que ser logo!
Vol​tou as cos​tas ao ca​m i​nhão e dis​pa​r ou a cor​r er em di​r e​ç ão à casa si​ti​a ​da,
um quar​tei​r ão adi​a n​te. Ain​da não sa​bia o que di​r ia a Shark​le para con​ven​c ê-lo a
en​tre​gar-se. Tal​vez o ba​ti​do “Cal​vin, você não está so​zi​nho” ser​vis​se. Até en​c on​-
trá-lo, aca​ba​r ia des​c o​brin​do al​gu​m a coi​sa!
Sua par​ti​da re​pen​ti​na deu à mul​ti​dão a im​pres​são de que ele sou​be​r a de al​gu​-
ma no​vi​da​de, e Ste​f an já es​ta​va a meio ca​m i​nho quan​do os pri​m ei​r os cu​r i​o​sos
pas​sa​r am por ele, cor​r en​do e gri​tan​do como lou​c os, in​ter​r om​pen​do com​ple​ta​-
men​te o trân​si​to da Ave​ni​da Scott. Bre​ques chi​a ​vam, bu​zi​nas gri​ta​vam, ou​via-se o
ru​í​do dos car​r os ba​ten​do uns nos ou​tros, la​ta​r ia ras​pan​do. O pá​r o​c o aca​bou atro​-
pe​la​do pela mul​ti​dão, foi em​pur​r a​do com vi​o​lên​c ia, tro​pe​ç ou e caiu de jo​e ​lhos
na cal​ç a​da; le​van​tou-se e con​ti​nuou cor​r en​do. O ar da ma​nhã pa​r e​c ia cada vez
mais car​r e​ga​do de ame​a ​ç as, como um ani​m al en​lou​que​c i​do, se​den​to de san​gue,
que se apro​xi​m as​se. Ste​f an olha​va ao re​dor, hor​r o​r i​za​do, o co​r a​ç ão ba​ten​do dis​-
pa​r a​do. O in​f er​no deve ser as​sim, pen​sou. Gen​te tres-lou​c a​da cor​r en​do sem pa​-
rar, sem sa​ber para onde, uma mul​ti​dão a nos em​pur​r ar para a fren​te, para a
fren​te...
Quan​do, afi​nal, se apro​xi​m ou da casa de Shark​le, os pri​m ei​r os cu​r i​o​sos já re​-
tro​c e​di​a m, em​pur​r a​dos pe​los ca​va​los e cas​se​te​tes da po​lí​c ia. De​ses​pe​r a​do, o pa​-
dre Wy ​c a​zik olhou para um lado e ou​tro, à pro​c u​r a do co​m an​dan​te do pe​lo​tão,
por​que pre​c i​sa​va fa​lar com al​guém. Foi pu​xa​do para trás, em​pur​r a​do para a
fren​te, no​va​m en​te em​pur​r a​do, gri​tou que era sa​c er​do​te e pre​c i​sa​va fa​lar com o
ofi​c i​a l, mas não lhe de​r am ou​vi​dos. Al​guém ti​r ou-lhe o cha​péu, ou​tro em​pur​r ou-
o e, de re​pen​te, lá es​ta​va ele, em pé na li​nha de fogo, dois pas​sos à fren​te da mul​-
ti​dão de​sa​f i​a n​do os ca​va​los.
Os po​li​c i​a is gri​ta​r am-lhe que sa​ís​se dali, ame​a ​ç a​r am-no com pri​são e es​pan​-
ca​m en​to, ti​r a​r am os cas​se​te​tes da cin​tu​r a e bai​xa​r am os es​c u​dos. Mas ele não
pa​r a​va de gri​tar. Um dos guar​das se apro​xi​m ou, como se qui​ses​se ouvi-lo me​lhor.
O que po​de​r ia di​zer-lhe? Que era pa​dre, que sa​bia o que es​ta​va acon​te​c en​do com
Shark​le, que sa​bia como fazê-lo ren​der-se? Era men​ti​r a, mas va​lia a pena ten​tar.
Só teve tem​po para co​m e​ç ar: abriu o ca​sa​c o e mos​trou o co​la​r i​nho bran​c o ao po​-
li​c i​a l.
— Sou pa​dre...Acho que sei... — An​tes que con​c lu​ís​se a fra​se, o ho​m em em​-
pur​r ou-o para trás, aos gri​tos. No mes​m o ins​tan​te, duas ex​plosões sa​c u​di​r am o ar,
ao in​ter​va​lo de pou​c os se​gun​dos. Al​guns, na mul​ti​dão, sa​ben​do das no​tí​c i​a s pelo
rá​dio do ca​m i​nhão azul, ba​te​r am pal​m as. En​tão uma ter​c ei​r a ex​plo​são fez o
chão es​tre​m e​c er. Ste​f an le​vou a mão aos ou​vi​dos para se pro​te​ger. A casa de
Shark​le voou pe​los ares, pe​da​ç os de ma​dei​r a e vi​dro jo​ga​dos con​tra o céu cin​zen​-
to. Mi​lha​r es, mi​lhões de pe​da​ç os, e uma vas​ta nu​vem de po​e i​r a. Des​sa vez a
mul​ti​dão gri​tou, a uma só voz, medo e hor​r or es​tam​pa​dos em to​dos os ros​tos.
Des​c o​bri​a m que a mor​te era mais do que um es​pe​tá​c u​lo em tec​ni​c o​lor, dis​tan​te
e con​ti​do numa tela.
— Ele ti​nha uma bom​ba! — gri​tou um dos po​li​c i​a is. — Meu Deus! Ele ex​-
plo​diu a casa! — Vi​r ou-se para onde es​ta​vam as am​bu​lân​c i​a s e or​de​nou: — An​-
dem! Vão!
Ain​da tre​m en​do, o pa​dre Wy ​c akik ten​tou acom​pa​nhar os en​f er​m ei​r os, mas
um dos guar​das se​gu​r ou-o pelo bra​ç o.
— Sou pa​dre — dis​se ele. — Pode ha​ver al​guém pre​c i​san​do de... con​f or​to
es​pi​r i​tu​a l. Eu pre​c i​so...
— Po​dia ser o papa em pes​soa — re​tru​c ou o po​li​c i​a l. — Nin​guém pode se
apro​xi​m ar. Ain​da não sa​be​m os se Shark​le mor​r eu.
— Es​tão to​dos mor​tos — Ste​f an mur​m u​r ou, bai​xan​do a ca​be​ç a. — To​dos:
Shark​le, a irmã, o cu​nha​do, os guar​das do es​qua​drão es​pe​c i​a l... Quan​tos se​r i​a m?
Tal​vez cin​c o, seis. Ou dez?!
* An​dan​do sem rumo, acom​pa​nhan​do a mul​ti​dão que se dis​per​sa​va, ajei​tan​-
do o ca​c he​c ol, as​sus​ta​do e ton​to, mur​m u​r an​do um “Pa​dre Nos​so”, Ste​f an avis​tou
Ro​ger Has​terwick, o bar​man de​sem​pre​ga​do, de pu​pi​las di​la​ta​das. Cor​r eu até ele,
a gar​r ou-o pelo bra​ç o e per​gun​tou:
— O que foi que Shark​le dis​se hoje cedo?
— C-como? — ga​gue​j ou o ra​paz.
— An​tes de sair cor​r en​do, você dis​se que Cal​vin Shark​le abriu uma fres​ta
na ja​ne​la e gri​tou... que al​gu​m a coi​sa ia acon​te​c er. O que ele dis​se? Quais fo​r am
suas pa​la​vras exa​tas?
— Ah, sim? — Has​terwick sor​r iu. — Sim, sim... Uma lou​c u​r a... Não sei se
me lem​bro... — E re​pe​tiu, pa​la​vra por pa​la​vra, o que Shark​le dis​se​r a.
Pa​la​vra por pa​la​vra, o pa​dre Wy ​c a​zik foi des​c o​brin​do que Shark​le não es​ta​va
lou​c o. Con​f u​so, sim, atur​di​do e as​sus​ta​do... ator​m en​ta​do pelo ter​r í​vel stress pro​-
vo​c a​do pela der​r o​c a​da do blo​queio ce​r e​bral, per​di​do... mas não lou​c o. O ra​paz e
to​dos que o ou​vi​r am sa​bi​a m ape​nas que um ho​m em ber​r a​va pa​la​vras sem sen​ti​-
do, den​tro de uma casa trans​f or​m a​da em for​ta​le​za. Mas ele, Ste​f an, sa​bia dos
acon​te​c i​m en​tos de duas noi​tes atrás, no Mo​tel Tran​qüi-li​da​de, dos sa​lei​r os vo​a ​do​-
res, das cu​r as mi​la​gro​sas de Emmy e Tolk. Po​dia ha​ver al​gu​m a ver​da​de nas pa​-
la​vras de​sa​ti​na​das de Shark​le... Mas... e se hou​ves​se?! O ve​lho pá​r o​c o sen​tiu a
pele ar​r e​pi​a r-se.
— Ei, o se​nhor não pode acre​di​tar nes​sa lou​c u​r a! — Ro​ger ex​c la​m ou. — O
cara era ma​lu​c o... Ex​plo​diu a pró​pria casa!...
Sem res​pon​der, Ste​f an cor​r eu para seu car​r o. Já an​tes de che​gar a Evans​ton
para o úl​ti​m o ato da tra​gé​dia de Shark​le, pres​sen​ti​r a que pre​c i​sa​r ia voar para Ne​-
va​da. De​pois de fa​lar com Tolk e ver o que es​ta​va acon​te​c en​do com Emmy, já
não ha​via como es​pe​r ar.
Ago​r a que sa​bia o que Shark​le dis​se​r a, a ne​c es​si​da​de de ir era ain​da mai​or e
mais ur​gen​te. Já não se tra​ta​va de cu​r i​o​si​da​de tem​pe​r a​da de mis​ti​c is​m o... Ste​f an
ti​nha de ir para Elko para pro​te​ger o gru​po dos ami​gos de Bren​dan. De​pois de
uma vida de lu​tas para sal​var con​f ra​des em di​f i​c ul​da​des, para não per​der uma só
de suas ove​lhas, mes​m o as mais hu​m il​des, era che​ga​da a hora de cui​dar não
ape​nas das al​m as, mas tam​bém dos cor​pos pou​sa​dos na​que​le mo​tel. Cal​vin anun​-
ci​a ​va uma ca​tás​tro​f e que am​de​a ​ç a​va a to​dos, al​m as e cé​r e​bros!
O ve​lho cura deu a par​ti​da e afas​tou-se de Evans​ton. Não ti​nha tem​po de vol​-
tar à casa pa​r o​qui​a l e fa​zer as ma​las. Pre​c i​sa​va cor​r er para o ae​r o​por​to, re​zan​do
para en​c on​trar lu​gar no pri​m ei​r o avi​ã o.
Meu Deus do céu, pen​sa​va. Que nova pro​va​ç ão nos es​pe​r a? O que nos en​vi​-
as​tes, Se​nhor? Um pre​sen​te... ou uma nova pra​ga, mai​or que to​das as pra​gas da
Bí​blia?
Pi​sou fun​do no ace​le​r a​dor e dis​pa​r ou como... um mor​c e​go fu​gin​do do in​f er​-
no!
Gin​ger e Fay e pas​sa​r am boa par​te da ma​nhã com El​r oy e Nancy Ja​m i​son,
fa​zen​do de​ze​nas de per​gun​tas, a pre​tex​to de que a mé​di​c a pu​des​se in​f or​m ar-se
so​bre as ter​r as, por​que ti​nha pla​nos de mu​dar para lá, por mo​ti​vos de saú​de. Os
Ja​m i​son co​nhe​c i​a m mui​to bem a his​tó​r ia da re​gi​ã o e ado​r a​vam fa​lar so​bre o as​-
sun​to, prin​c i​pal​m en​te so​bre a be​le​za do vale Le​m oi​lle.
As duas não con​se​gui​r am des​c o​brir a me​nor fa​lha de me​m ó​r ia em seus an​-
fi​tri​ões. El​r oy e Nancy pa​r e​c i​a m fe​li​zes, sem pro​ble​m as psi​c o​ló​gi​c os. Uma la​-
va​gem ce​r e​bral per​f ei​ta, tão per​f ei​ta quan​to a de Fay e, com lem​bran​ç as fal​sas
im​plan​ta​das bem fun​do em
seu in​c ons​c i​e n​te. Con​tar-lhes o que se pas​sa​va no Mo​tel Tran​qüi-li​da​de se​r ia
in​ú​til, além do agra​van​te de co​lo​c á-los em ris​c o de vida.
— São óti​m as pes​so​a s — Gin​ger co​m en​tou ao par​ti​r em, ain​da ace​nan​do
para Nancy Ja​m i​son. — Mui​to sim​pá​ti​c os.
— São ex​c e​len​tes ami​gos — dis​se Fay e —, gen​te de con​f i​a n​ç a. Se​r ia óti​-
mo tê-los co​nos​c o. Por ou​tro lado, é bom sa​ber que es​tão li​vres des​se pe​sa​de​lo.
Ca​la​r am-se, mas as duas sa​bi​a m que ti​nham um úni​c o as​sun​to na ca​be​ç a: os
ocu​pan​tes do car​r o que ain​da as es​pe​r a​vam na en​tra​da, jun​to à cer​c a. Será que
se li​m i​ta​r i​a m a se​gui-las de vol​ta para casa? Er​nie e Dom sa​í​r am ar​m a​dos para
fa​zer o re​c o​nhe​c i​m en​to do ter​r e​no do de​pó​si​to. Mas, par​tin​do para uma sim​-
ples vi​si​ta de cor​te​sia, ne​nhu​m a das duas ima​gi​na​r a que te​r i​a m pro​ble​m as. Gin​-
ger sa​bia ati​r ar, por​que co​nhe​c ia os pe​r i​gos de ser bo​ni​ta e vi​ver so​zi​nha numa
ci​da​de gran​de. E Fay e, boa mu​lher de ma​r i​nhei​r o, era qua​se cam​peã de tiro.
Fan​tás​ti​c as ha​bi​li​da​des... para quem dei​xa​r a os re​vól​ve​r es em casa!
De re​pen​te, Fay e es​ta​c i​o​nou na mata de pi​nhei​r os.
— Tal​vez eu seja me​lo​dra​m á​ti​c a, e isso não nos aju​de — dis​se, de​sa​bo​to​-
an​do o ca​sa​c o —, se os des​gra​ç a​dos apon​ta​r em uma arma para nos​sas ca​be​ç as.
— Fez uma ca​r e​ta e ti​r ou duas fa​c as de co​zi​nha de den​tro do ca​sa​c o.
— Como con​se​guiu es​sas fa​c as?! — Gin​ger ar​r e​ga​lou os olhos.
— La​van​do a lou​ç a do al​m o​ç o de Nancy. Não po​dia pe​dir que El​r oy me
em​pres​tas​se um re​vól​ver. As fa​c as são boas, afi​a ​das, de pon​ta fina. Se for​m os
pre​sas, e eles nos en​f i​a ​r em na​que​le car​r o, dei​xe sua faca es​c on​di​da, até ter uma
chan​c e de metê-las nas cos​tas de um de​les. Eu cui​do do ou​tro.
— Per​f ei​to. Es​pe​r o que, al​gum dia, você co​nhe​ç a Rita Han​naby...
— A es​po​sa do mé​di​c o que aju​dou você em Bos​ton?
— Isso mes​m o. Você e Rita são mui​to pa​r e​c i​das.
— Eu... e uma dama da alta so​c i​e ​da​de de Bos​ton?! — Fay e sor​r iu. — Mas
que idéia!... Não pode ha​ver a mí​ni​m a se​m e​lhan​ç a...
— São ir​m ãs de alma. Am​bas são se​gu​r as, se​r e​nas e ja​m ais per​dem a
elegân​c ia, não im​por​ta a ca​tás​tro​f e que es​te​j a acon​te​c en​do.
Fay e es​c on​deu as fa​c as sob o ban​c o an​tes de re​tru​c ar:
— Quan​do se é mu​lher de ma​r i​nhei​r o, apren​de-se a le​var a vida com cal​-
ma e ja​m ais na​dar con​tra a cor​r en​te. Caso con​trá​r io, aca​ba-se en​lou​que​c en​do.
— Você e Rita são bo​ni​tas e fe​m i​ni​nas, su​a ​ves e de​pen​den​tes... do lado de
fora. Mas por den​tro, cada uma a seu modo, são duas le​o​a s.
— E você? Uma ga​ti​nha por fora... uma ti​gre​sa por den​tro!
Fay e deu a par​ti​da e em se​gun​dos vol​ta​vam à es​tra​da, sob o céu
cin​zen​to. A tem​pes​ta​de es​ta​va cada vez mais pró​xi​m a.
O car​r o que as se​gui​r a con​ti​nu​a ​va pa​r a​do no acos​ta​m en​to; os dois ho​m ens
que as vi​gi​a ​vam não mo​vi​a m um mús​c u​lo. Gin​ger ace​nou para eles, mas não
ob​te​ve res​pos​ta.
O car​r o ma​no​brou e con​ti​nuou a se​gui-las.
Mi​les Ben​nell le​van​tou-se da pol​tro​na, com ar en​te​di​a ​do, e res​pon​deu às per​-
gun​tas, a voz ora in​di​f e​r en​te, ora di​ver​ti​da e irô​ni​c a, por​que era ho​m em que ja​-
mais gri​ta​va nem se zan​ga​va, como os sol​da​dos que Falkirk co​nhe​c ia bem.
Le​land Falkirk odi​a ​va-o. Sen​ta​do jun​to a uma ve​lha mesa, a um can​to da
sala, exa​m i​na​va as fi​c has de ar​qui​vo de cada um dos ci​e n​tis​tas ci​vis que tra​ba​-
lha​vam na sala tran​c a​da do se​gun​do pa​vi​m en​to. A sala do se​gre​do. Uma das pos​-
si​bi​li​da​des de en​c on​trar o trai​dor se​r ia des​c o​brir qual de​les te​r ia es​ta​do em Nova
York na data em que as fo​tos fo​r am en​vi​a ​das a Do​m i​nick Cor​vai​sis. A se​gu​r an​-
ça de Thun​der Hill tra​ba​lha​r a du​r an​te todo o do​m in​go... e o re​la​tó​r io era de​sen​-
co​r a​j a​dor. Mas, en​quan​to o trai​dor não fos​se pre​so, to​dos eram sus​pei​tos, mes​m o
os agen​tes da se​gu​r an​ç a in​ter​na. Le​land não po​dia mais con​f i​a r em nin​guém.
Nem em Ben​nell, nem nos ou​tros ci​e n​tis​tas que tra​ba​lha​vam com ele. Pre​c i​sa​va
agir so​zi​nho.
Os pro​ble​m as acu​m u​la​vam-se. E como não se acu​m u​la​r i​a m se, nos úl​ti​m os
me​ses, qual​quer ci​vil idi​o​ta era “au​to​r i​za​do” a en​trar Thun​der Hill?! Ago​r a já
eram trin​ta e sete! Trin​ta e sete ci​e n​tis​tas das mais di​ver​sas es​pe​c i​a ​li​da​des, con​-
vo​c a​dos por Ben​nell!
Trin​ta e oito, in​c lu​in​do o pró​prio Ben​nell. Era um mi​la​gre que, até ali, o as​-
sun​to ain​da não hou​ves​se che​ga​do aos jor​nais... Um ba​ta​lhão de im​be​c is! In​dis​c i​-
pli​na​dos, sem ex​pe​r i​ê n​c ia mi​li​tar... in​c a​pa​zes de guar​dar se​gre​dos...
Pior do que isso: ape​nas Ben​nell e mais sete ci​e n​tis​tas per​m a​ne​c i​a m na base
em tem​po in​te​gral. Os ou​tros trin​ta ti​nham fa​m í​lia e tra​ba​lho em vá​r i​a s uni​ver​si​-
da​des do país e só vi​nham para Thun​der Hill quan​do suas agen​das per​m i​ti​a m, às
ve​zes para fi​c ar um ou dois dias, no má​xi​m o al​gu​m as se​m a​nas, nun​c a mais de
um ou dois me​ses. Era pra​ti​c a​m en​te im​pos​sí​vel des​c o​brir qual de​les es​ti​ve​r a em
Nova York, sem uma lon​ga e can​sa​ti​va in​ves​ti​ga​ç ão.
Para com​pli​c ar o pro​ble​m a, dos oito pes​qui​sa​do​r es que vi​vi​a m em Thun​der
Hill três fo​r am a Nova York em de​zem​bro, in​c lu​si​ve o pró​prio Ben​nell. Le​land ti​-
nha, pelo me​nos, trin​ta e três sus​pei​tos com que se pre​o​c u​par.
Nem o pes​so​a l mi​li​tar en​c ar​r e​ga​do da se​gu​r an​ç a do pro​j e​to ins​pi​r a​va-lhe
con​f i​a n​ç a, em​bo​r a o ma​j or Fu​ga​ta e o te​nen​te Helms, che​f e e sub​c he​f e de se​gu​-
ran​ç a, es​ti​ves​sem ofi​c i​a l​m en​te a par do que se pas​sa​va nos la​bo​r a​tó​r i​os de Ben​-
nell. No do​m in​go, de​pois de ini​c i​a r o in​ter​r o​ga​tó​r io dos ci​e n​tis​tas, Fu​ga​ta apa​r e​-
ce​r a com a no​tí​c ia de que o de​te​tor de men​ti​r as es​ta​va que​bra​do e era per​da de
tem​po tra​ba​lhar com os re​sul​ta​dos ob​ti​dos até ali. Na vés​pe​r a, de​pois que Le​land
re​qui​si​ta​r a ou​tro de​te​tor em Shenk​f i​e ld e pu​se​r a-o em fun​c i​o​na​m en​to, Fu​ga​ta
vol​ta​r a com a mes​m a his​tó​r ia: o apa​r e​lho que​bra​r a du​r an​te o trans​por​te. Dois de​-
te​to​r es inu​ti​li​za​dos em pou​c os dias!
Al​guém des​c o​bri​r a que os blo​quei​os co​m e​ç a​vam a ce​der e re​sol​ve​r a apro​-
vei​tar a opor​tu​ni​da​de, en​vi​a n​do a al​gu​m as tes​te​m u​nhas os bi​lhe​tes ci​f ra​dos e as
fo​tos rou​ba​das do ar​qui​vo. O fi​lho da puta con​se​gui​r a o que que​r ia, pelo me​nos
até ali... e sen​tia-se ame​a ​ç a​do. Para se li​vrar, sa​bo​ta​r a os dois de​te​to​r es de men​-
ti​r as.
Le​land le​van​tou a ca​be​ç a, dei​xou as fi​c has so​bre a mesa e olhou para Ben​-
nell, que con​ti​nu​a ​va im​pas​sí​vel di​a n​te de uma das ja​ne​las.
— Quem sabe o se​nhor po​de​r ia me aju​dar — dis​se.
— Se for pos​sí​vel, será um pra​zer. — O ci​e n​tis​ta vol​tou-se para ele.
— Seu pes​so​a l co​nhe​c e as mil e du​zen​tas pá​gi​nas do re​la​tó​r io da co​m is​são
in​ter​dis​c i​pli​nar que tra​ba​lhou so​bre as con​se​qüên-cias de uma even​tu​a l cri​se pla​-
ne​tá​r ia... To​dos sa​bem o que pode acon​te​c er se nos​so se​gre​do va​zar. Ha​ve​r ia en​-
tre eles al​guém tão ir​r es​pon​sá​vel... a pon​to de cor​r er o ris​c o de di​vul​gar nos​so se​-
gre​do?
O dr. Ben​nell es​tre​m e​c eu, como se a sim​ples men​ç ão da​que​la pos​si​bi​li​da​de
fos​se su​f i​c i​e n​te para cau​sar-lhe ca​la​f ri​os. Le​land, po​r ém, per​c e​beu a iro​nia ocul​-
ta, qua​se in​vi​sí​vel, sob to​ne​la​das de boas in​ten​ç ões apa​r en​tes.
— Como em to​dos os gru​pos, te​m os al​gu​m as ove​lhas ne​gras em nos​so re​-
ba​nho — ex​pli​c ou Ben​nell. — Mui​tos ci​e n​tis​tas, em todo o mun​do, dis​c or​dam das
con​c lusões da​que​le re​la​tó​r io. Para mui​tos, a di​vul​ga​ç ão pú​bli​c a de qual​quer
gran​de ame​a ​ç a que pese so​bre a es​pé​c ie hu​m a​na se​r ia a úni​c a ma​nei​r a de en​-
fren​tá-la com efi​c á​c ia. Di​zem que o re​la​tó​r io é au​to​r i​tá​r io e eli​tis​ta em suas con​-
clusões.
— Quan​to a mim, te​nho cer​te​za de que as con​c lusões são cor​r e​tas. E você,
Hor​ner? — Le​land vi​r ou-se para o te​nen​te, sen​ta​do jun​to à por​ta.
— Con​c or​do com o se​nhor, co​r o​nel. O pú​bli​c o ex​ter​no deve ser pre​pa​r a​do
aos pou​c os para re​c e​ber uma no​tí​c ia como... esse se​gre​do. Um len​to pro​c es​so de
edu​c a​ç ão que pode le​var anos, tal​vez mais de dez. E mes​m o as​sim...
Le​land con​c or​dou com a ca​be​ç a e, ou​tra vez, vol​tou-se para Ben​nell:
— Não es​pe​r o gran​de coi​sa de nos​sa es​pé​c ie, dou​tor. Uma opi​ni​ã o pes​si​-
mis​ta, tal​vez, mas bas​tan​te re​a ​lis​ta. A hu​m a​ni​da​de não está e tal​vez ja​m ais es​te​j a
pre​pa​r a​da para um fato como esse. Ha​ve​r ia o caos po​lí​ti​c o e eco​nô​m i​c o, sur​gi​r i​-
am le​van​tes po​pu​la​r es, a mas​sa mais ig​no​r an​te des​per​ta​r ia e tal​vez fos​se di​f í​c il
con​tro​lá-la. Exa​ta​m en​te como o re​la​tó​r io pre​vê.
— O se​nhor tem o di​r ei​to de pen​sar o que qui​ser... — o ci​e n​tis​ta res​pon​deu
com um sor​r i​so in​ten​c i​o​nal, como se ele pró​prio
com​ple​tas​se o sen​ti​do das pa​la​vras: “Mes​m o que sua opi​ni​ã o me pa​r e​ç a im​-
be​c il, pre​ten​si​o​sa e au​to​r i​tá​r ia”.
— Mas o se​nhor con​c or​da com as con​c lusões do re​la​tó​r io? — in​sis​tiu o co​-
ro​nel.
— Não se pre​o​c u​pe co​m i​go. Não fui eu que man​dei os bi​lhe​tes e as fo​tos
que tan​to o pre​o​c u​pam.
— En​tão es​pe​r o que não crie pro​ble​m as com meu pes​so​a l. Como o se​nhor
sabe, o pen​to​tal só​di​c o é mais efi​c i​e n​te que qual​quer de​te​tor de men​ti​r as. O cha​-
ma​do “soro da ver​da​de”.
— Não vou cri​a r pro​ble​m as — ga​r an​tiu Ben​nell, le​van​tan​do as so​bran​c e​-
lhas. — Mas há gen​te aqui, em mi​nha equi​pe, que ja​m ais se sub​m e​te​r á a um in​-
ter​r o​ga​tó​r io des​se tipo. São ci​e n​tis​tas pro​f is​si​o​nais. Pes​so​a s que são o que são e
vi​vem como vi​vem, ex​c lu​si​va​m en​te pelo que têm na ca​be​ç a. A vida in​te​lec​tu​a l
é, para eles, mais im​por​tan​te que a vida ma​te​r i​a l. Não acre​di​to que um ho​m em
cujo QI seja duas ve​zes su​pe​r i​or ao QI mé​dio da po​pu​la​ç ão do país con​c or​de em
re​c e​ber uma in​j e​ç ão de uma dro​ga que po​de​r á afe​tar-lhe o cé​r e​bro.
— O se​nhor sabe que o pen​to​tal só​di​c o não apre​sen​ta efei​tos co​la​te​r ais.
— Na mai​o​r ia dos ca​sos, tal​vez. De qual​quer modo, al​guns dos ci​e n​tis​tas
con​tra​ta​dos para esse pro​j e​to não con​c or​da​r ão em ser sub​m e​ti​dos a in​ter​r o​ga​tó​-
ri​os con​du​zi​dos com o uso de dro​gas... qual​quer dro​ga. Ain​da que es​te​j a em jogo
a se​gu​r an​ç a na​c i​o​nal.
— Para seu go​ver​no, é bom sa​ber que vou so​li​c i​tar au​to​r i​za​ç ão es​pe​c i​a l
para in​ter​r o​gar seu pes​so​a l. To​dos... os que sa​bem do se​gre​do e os que não sa​-
bem. Vou usar o soro da ver​da​de em to​dos, con​c or​dem ou não com a idéia. Pe​di​-
rei ao ge​ne​r al Al​va​r a​do au​to​r i​za​ç ão es​pe​c i​a l para ini​c i​a r os in​ter​r o​ga​tó​r i​os.
Al​va​r a​do era o co​m an​dan​te de Thun​der Hill, um bu​r o​c ra​ta de car​r ei​r a, um
sol​da​do que não gos​ta​va de com​ba​tes. Le​land des​pre​za​va-o, como des​pre​za​va os
ci​e n​tis​tas.
— Se o ge​ne​r al con​c or​dar — con​ti​nuou —, vou cair em cima de seus ci​e n​-
tis​tas. Quei​r am ou não o soro. E isso in​c lui o se​nhor. En​ten​deu bem?
— Sim, cla​r o. En​ten​di per​f ei​ta​m en​te — dis​se Ben​nell, sem al​te​r ar a voz.
Le​land es​m ur​r ou a mesa e em​pur​r ou para lon​ge as fi​c has que exa​m i​na​r a:
— Es​ta​m os an​dan​do mui​to de​va​gar! Pre​c i​so en​c on​trar o trai​dor com a
má​xi​m a ur​gên​c ia. Não pos​so es​pe​r ar um mês. Va​m os tra​tar de con​ser​tar o mal​-
di​to de​te​tor e co​m e​ç ar logo com os in​ter​r o​ga​tó​r i​os. — Le​van​tou-se, an​dou até a
por​ta, mas pa​r ou an​tes de sair, com uma per​gun​ta atra​ves​sa​da na gar​gan​ta. A
mes​m a per​gun​ta que o per​se​guia des​de que re​c e​be​r a os úl​ti​m os re​la​tó​r i​os: —
Dou​tor, o que pen​sa so​bre o que está acon​te​c en​do com o pa​dre e com Cor​vai​sis?
O pa​dre re​a ​li​za cu​r as mi​la​gro​sas, e o ou​tro faz voar sa​lei​r os. Qual é sua opi​ni​ã o?
Pela pri​m ei​r a vez, a voz de Ben​nell soou al​te​r a​da, to​m a​da por uma emo​ç ão
re​pen​ti​na e au​tên​ti​c a:
— Está com medo, co​r o​nel? — per​gun​tou, apoi​a n​do os co​to​ve​los so​bre a
mesa. — Acre​di​to fir​m e​m en​te que exis​te uma ex​pli​c a​ç ão ra​c i​o​nal para o que
está acon​te​c en​do aos dois. O se​nhor sem​pre re​a ​ge com medo... en​quan​to eu, de
mi​nha par​te, sin​to-me como um dos ra​r os elei​tos cha​m a​dos a as​sis​tir ao mai​or
mo​m en​to da evo​lu​ç ão de nos​sa es​pé​c ie. De qual​quer modo, seja qual for a ex​pli​-
ca​ç ão para o que está acon​te​c en​do, nos​sa úni​c a chan​c e de des​c o​brir é fa​lar com
eles. Cha​m e Cor​vai​sis e Cro​nin, con​te-lhes a ver​da​de e peça-lhes que nos aju​-
dem a en​ten​der como re​c e​be​r am es​ses po​de​r es ex​tra​or​di​ná​r i​os. Não po​de​m os
eli​m i​ná-los, pura e sim​ples​m en​te, ou obri​gá-los a no​vas sessões de la​va​gem ce​-
re​bral... an​tes de ob​ter​m os as res​pos​tas do que pre​c i​sa​m os.
— Se fi​zer​m os con​ta​to com as “tes​te​m u​nhas” e lhes con​tar​m os o se​gre​do...
mas não con​se​guir​m os fazê-los es​que​c er o que hou​ve... não ha​ve​r á como man​ter
o si​gi​lo. To​dos sa​be​r ão que men​ti​m os.
— Tal​vez sim, tal​vez não — o ci​e n​tis​ta in​sis​tiu. — Mais dia me​nos dia, o pú​-
bli​c o aca​ba​r á des​c o​brin​do. Será que o se​nhor não en​ten​de que, no mo​m en​to, não
há nada, nes​ta base ou no pla​ne​ta, mais im​por​tan​te do que o que está acon​te​c en​-
do a Do​m i​nick
Cor​vai​sis e ao pa​dre Bren​dan?! Nem a his​tó​r ia que o se​nhor in​ven​tou...
Nada?! Pre​c i​sa​m os de​les, pre​c i​sa​m os co​nhe​c er esse po​der... Mais im​por​tan​te do
que isso... pre​c i​sa​m os dar aos dois uma chan​c e de de​sen​vol​ve​r em os po​de​r es,
para des​c o​brir​m os até onde po​dem ir. E por fa​lar nis​so... quan​do é que o se​nhor
vai tra​zê-los para cá?
— Até o fim da tar​de de hoje es​ta​r ão aqui.
— En​tão, à noi​te já te​r e​m os fa​la​do com eles...
— Sim. — O co​r o​nel deu mais dois pas​sos rumo à sa​í​da, onde o te​nen​te
Hor​ner o es​pe​r a​va. Pa​r ou pela se​gun​da vez: — Dou​tor... o se​nhor vai exa​m i​ná-
los... Será que terá con​di​ç ões de des-CQ​brir se so​f re​r am al​gum tipo de... me​ta​-
mor​f o​se? Se ain​da são... hu​m a​nos? E se já es​ti​ve​r em... pos​su​í​dos... e re​sis​ti​r em
ao de​te​tor de men​ti​r as e a nos​sas dro​gas, o que fa​r e​m os?
— Ain​da não sa​be​m os — Mi​les Ben​nell le​van​tou-se, me​teu as mãos nos
bol​sos do aven​tal de tra​ba​lho e ca​m i​nhou um pou​c o pela sala. — Es​ta​m os tra​ba​-
lhan​do com to​das as hi​pó​te​ses, des​de que re​c e​be​m os os re​la​tó​r i​os, no do​m in​go.
Ain​da não sa​be​m os que po​de​r es são es​ses. As pes​qui​sas sem​pre es​bar​r am em
mis​té​r i​os... Mas te​m os ra​zões para crer que não há pe​r i​go. Cri​a ​m os tes​tes mé​di​-
cos e psi​c o​ló​gi​c os mui​to ela​bo​r a​dos... e es​pe​r a​m os ve​r i​f i​c ar, aci​m a de qual​quer
dú​vi​da, se eles... ain​da são hu​m a​nos! De iní​c io, é ver​da​de, to​dos nos pre​o​c u​pa​-
mos com a pos​si​bi​li​da​de de con​tá​gio e com a pos​si​li​da​de de que eles, re​a l​m en​te,
te​nham sido pos​su​í​dos. Mas já faz mais de um ano que aban​do​na​m os essa li​nha
de pes​qui​sa. Eu e mi​nha equi​pe não te​m os dú​vi​das de que eles con​ti​nu​a m a ser
hu​m a​nos... ape​sar dos po​de​r es que es​tão de​sen​vol​ven​do.
— Mas eu ain​da não es​tou con​ven​c i​do. Cor​vai​sis e Cro​nin são os pri​m ei​r os
a dar si​nais es​tra​nhos... De​pois, com cer​te​za, apa​r e​c e​r ão ou​tros. Não se ilu​da...
Eles são mui​to mais for​tes que nós, e não te​r ão di​f i​c ul​da​de em en​ga​nar o se​nhor
e seus ci​e n​tis​tas, ape​sar de seus mi​lha​r es de tes​tes.
— O se​nhor não sabe que tes​tes...
— E há mais um de​ta​lhe que o se​nhor tal​vez ima​gi​ne que a se​gu​r an​ç a es​-
que​c eu de le​var em con​si​de​r a​ç ão — de​c la​r ou Le​land,
sor​r in​do com o can​to dos lá​bi​os. — Não, eu não me es​que​ç o de nada. Não
es​que​ç o, por exem​plo, que o se​nhor tam​bém pode es​tar... con​ta​m i​na​do.
— Eu?!
— Por que não? O se​nhor está aqui, tra​ba​lhan​do no se​gre​do. Pas​sa os dias
nes​ta sala, há mais de de​zoi​to me​ses, com ape​nas três rá​pi​dos pe​r í​o​dos de fé​r i​a s.
Se Cor​vai​sis e Cro​nin fo​r am con​ta​m i​na​dos após al​gu​m as ho​r as de con​ta​to, por
que não o se​nhor, de​pois de todo esse tem​po?
— Mas... — Ben​nell es​ta​va sur​pre​so de​m ais para en​c on​trar as pa​la​vras
cer​tas — ... é mui​to di​f e​r en​te! Es​tou tra​ba​lhan​do apos​te-ri​o​ri! O que quer que te​-
nha acon​te​c i​do com Cor​vai​sis e o pa​dre, acon​te​c eu na​que​la noi​te. Sou qua​se um
fa​xi​nei​r o... um su​j ei​to que che​ga de​pois da fes​ta e tem que se con​ten​tar com os
res​tos... A coi​sa, seja o que for, acon​te​c eu no co​m e​ç o, nas pri​m ei​r as ho​r as... não
de​pois.
— E o que isso pro​va? Como pos​so ter cer​te​za de que não hou​ve con​ta​m i​-
na​ç ão... de​pois? — Le​land con​ti​nu​a ​va a fitá-lo de fren​te, os olhos fri​os como aço.
— To​m a​m os to​das as pre​c au​ç ões... tra​ba​lha​m os em per​f ei​tas con​di​ç ões de
se​gu​r an​ç a...
— O que são “per​f ei​tas con​di​ç ões de se​gu​r an​ç a” para tra​ba​lhar com o
des​c o​nhe​c i​do? O des​c o​nhe​c i​do é exa​ta​m en​te isto... o que não se co​nhe​c e e não
tem pas​sa​do... nem se pode pre​ver como evo​lui​r á. E im​pos​sí​vel to​m ar pre​c au​-
ções com re​la​ç ão a algo que não se co​nhe​c e.
— Mas... Não! Não pode ser...
— Uma vez con​ta​m i​na​do, o se​nhor po​de​r ia con​ta​m i​nar a mim tam​bém. —
O co​r o​nel olhou em vol​ta. — Tal​vez pen​se que exa​ge​r o ape​nas para as​sus​tá-lo,
não é? Pois não acha in​tri​gan​te que o te​nen​te Hor​ner te​nha fi​c a​do aí, du​r an​te todo
o tem​po de nos​sa con​ver​sa sem fa​zer nada, quan​do po​de​r ia es​tar tra​ba​lhan​do
nos de​te​to​r es? Ele, que é es​pe​c i​a ​lis​ta em in​ter​r o​ga​tó​r i​os e equi​pa​m en​tos mi​li​ta​-
res? Sabe por que or​de​nei ao te​nen​te que não sa​ís​se da sala? Por​que nao acho se​-
gu​r o per​m a​ne​c er em am​bi​e n​te fe​c ha​do sozi-
nho com o se​nhor... De​f i​ni​ti​va​m en​te, não é se​gu​r o.
— Está di​zen​do que... — Ben​nell ar​r e​ga​la​va os olhos, sem acre​di​tar.
— O se​nhor en​ten​deu per​f ei​ta​m en​te o que es​tou di​zen​do. Es​tou di​zen​do
que, na hi​pó​te​se de ter sido con​ta​m i​na​do, o se​nhor sa​be​r ia tam​bém o que fa​zer
para me con​ta​m i​nar... O des​c o​nhe​c i​do de que fa​la​va​m os há pou​c o. E se usas​se
qual​quer um des​ses po​de​r es mis​te​r i​o​sos para... en​trar em meu cé​r e​bro, rou​bar
meu es​pí​r i​to hu​m a​no e me trans​f or​m ar em ou​tra... coi​sa}\ Pos​so não sa​ber usar o
vo​c a​bu​lá​r io ci​e n​tí​f i​c o mais ri​go​r o​so, mas o se​nhor en​ten​de per​f ei​ta​m en​te o que
que​r o di​zer.
*— Che​ga​m os a dis​c u​tir se se​r ia se​gu​r o per​m a​ne​c er​m os aqui ape​nas nós
dois — de​c la​r ou Hor​ner, apro​xi​m an​do-se. — Não ti​r ei os olhos do se​nhor, dou​tor,
e não sei se per​c e​beu que tam​bém não ti​r ei a mão do col​dre.
Ben​nell olha​va de um para o ou​tro, atur​di​do.
— Tal​vez pen​se que sou um sol​da​do rá​pi​do no ga​ti​lho — Le-land con​ti​nuou
—, um fas​c is​ta xe​nó​f o​bo e tei​m o​so. Mas fui en​c ar​r e​ga​do da se​gu​r an​ç a des​se
pro​j e​to, o que in​c lui man​ter o se​gre​do so​bre o que se pas​sa no de​pó​si​to e as​se​gu​-
rar a tran​qüi​li​da​de da po​pu​la​ç ão ci​vil. Par​te de mi​nha mis​são con​sis​te em ima​gi​-
nar o pior e agir como se o pior fos​se ine​vi​tá​vel.
— Deus do céu... — mur​m u​r ou o ci​e n​tis​ta, ar​r e​ga​lan​do ain​da mais os
olhos. — Vo​c ês são doi​dos... Es​tão com​ple​ta​m en​te lou​c os! Os dois!
— Re​a ​ç ão pre​vi​sí​vel — re​tru​c ou Le​land — para um ho​m em que, com
mui​ta pro​ba​bi​li​da​de, já não é ple​na​m en​te hu​m a​no. Ve​nha, Hor​ner, não te​m os
mais nada a fa​zer aqui.
Ben​nell se​guiu-o, rá​pi​do:
— Es​pe​r e! Por fa​vor!
Le​land vol​tou-se.
— Tudo bem, co​r o​nel. — O ci​e n​tis​ta res​pi​r ou fun​do. — En​ten​do que seu
tra​ba​lho exi​ge con​si​de​r ar toda pos​si​bi​li​da​de, mes​m o que pa​r e​ç a ab​sur​da. De
qual​quer modo, sua idéia é... lou​c u​r a. Não há o mí​ni​m o ris​c o de que eu, ou qual​-
quer mem​bro de mi-
nha equi​pe, te​nha sido... to​ma​do por al​gu​m a bac​té​r ia ou en​ti​da​de es​tra​nha.
Não é pos​sí​vel! Mas há uma coi​sa que pre​c i​so sa​ber... E se fos​se ver​da​de? Se eu,
ou al​gum dos ho​m ens que tra​ba​lham co​m i​go ti​ves​se sido con​ta​m i​na​do, o se​nhor
nos ma​ta​r ia?
— Sem he​si​tar — Le​land res​pon​deu.
— E se... to​dos os ofi​c i​a is que tra​ba​lham no de​pó​si​to, mes​m o os que não
sa​bem o que fa​ze​m os aqui, tam​bém es​ti​ves​sem con​ta​m i​na​dos? To​dos, in​c lu​si​ve o
ge​ne​r al Al​va​r a​do...?
— Já pen​sei nis​so.
— O que fa​r ia? Ma​ta​r ia a to​dos? Do sol​da​do raso ao ge​ne​r al?
— Sim.
— Je​sus!
— E se, por aca​so, está pen​san​do em dar o fora, es​que​ç a — con​ti​nuou o
co​r o​nel, im​pas​sí​vel. — Há de​zoi​to me​ses, pre​ven​do que essa idéia po​de​r ia lhe
ocor​r er, in​tro​du​zi um novo pro​gra​m a no com​pu​ta​dor que con​tro​la a en​tra​da e a
sa​í​da. A me​nos que di​gi​te ou​tro có​di​go, que, evi​den​te​m en​te, só eu co​nhe​ç o, to​das
as sa​í​das es​ta​r ão blo​que​a ​das em fra​ç ões de se​gun​do...
— Es​ta​m os pre​sos! — Ben​nell em​pa​li​de​c eu ain​da mais, a pele ama​r e​la​da
bri​lhan​do em con​tras​te com a bar​ba es​c u​r a. — Não fa​la​r ia des​se có​di​go se já
não o hou​ves​se ati​va​do...
— Acer​tou em cheio! Ao en​trar, ex​pus as im​pressões di​gi​tais de mi​nha
mão es​quer​da... e não as da di​r ei​ta, como sem​pre fiz. Bas​tou isso para tran​c ar as
sa​í​das e en​tra​das. Só o te​nen​te Hor​ner e eu es​ta​m os au​to​r i​za​dos a tran​si​tar li​vre​-
men​te para den​tro e para fora do de​pó​si​to. Até que eu en​ten​da que o pe​r i​go pas​-
sou.
Le​land Falkirk gi​r ou so​bre os cal​c a​nha​r es e saiu da sala, qua​se ple​na​m en​te
fe​liz. Pela pri​m ei​r a vez, em de​zoi​to me​ses, con​se​gui​r a fa​zer com que Mi​les Ben​-
nell per​des​se a cal​m a.
Se pu​des​se, ado​r a​r ia con​tar-lhe seu pla​no, pelo sim​ples pra​zer de ver o or​gu​-
lho​so ci​e n​tis​ta ras​te​j ar de medo e im​plo​r ar pi​e ​da​de. Mas ain​da era cedo. O pla​no
es​ta​va pron​to e era per​f ei​to, des​de que aci​o​na​do no mo​m en​to cor​r e​to. Quan​do
che​gas​se a hora, sa​be​r ía o que fa​zer para ma​tar to​dos os re​si​den​tes de Thun​der
Hill... na hi​pó​te​se de se con​f ir​m ar que es​ta​vam con​ta​m i​na​dos. Não so-
bra​r ia pe​dra so​bre pe​dra. O de​pó​si​to fi​c a​r ia re​du​zi​do a um mon​te de es​c om​-
bros fu​m e​gan​tes... e o se​gre​do per​m a​ne​c e​r ia en​ter​r a​do para sem​pre, até a con​-
su​m a​ç ão dos tem​pos. Um pla​no sim​ples, que exi​gia um úni​c o sa​c ri​f í​c io: ele pró​-
prio te​r ia que fi​c ar en​ter​r a​do ali, com os res​tos da mal​di​ta pra​ga. Le​land não tre​-
me​r ia... quan​do che​gas​se o mo​m en​to.
Ten​do dor​m i​do ape​nas cin​c o ho​r as e meia, Jor​j a le​van​tou-se, to​m ou um ba​-
nho, ves​tiu-se e cor​r eu ao en​c on​tro de Ma​r eie. A me​ni​na e Jack Twist es​pe​r a​-
vam-na, sen​ta​dos à mesa do café. Jor​j a pa​r ou no li​ving, a al​guns pas​sos da co​zi​-
nha, e ob​ser​vou-os de lon​ge, sqm que os dois des​sem por sua pre​sen​ç a.
Quan​do vol​ta​r am de Elko, às qua​tro e qua​r en​ta da ma​nhã, de​c i​di​r am que
Jack dor​m i​r ia na sala, para que Ma​r eie não fi​c as​se so​zi​nha de ma​nhã, quan​do
Fay e e Er​nie sa​ís​sem. Jor​j a in​sis​ti​r a em le​var a fi​lha para o quar​to, mas Jack ju​-
ra​r a que to​m a​r ia con​ta da me​ni​na até ela acor​dar.
— A ga​r o​ta está dor​m in​do com os Block. Se a ti​r ar​m os da cama ago​r a —
dis​se​r a —, ela vai acor​dar e pas​sar a noi​te em cla​r o. Nin​guém aqui está em con​-
di​ç ões de des​per​di​ç ar um mo​m en​to de sono, por​que ama​nhã pre​c i​sa​m os es​tar
em for​m a.
— Mas ela dor​m iu mui​to cedo — Jor​j a ar​gu​m en​ta​r a. — Vai acor​dar cedo
e aca​ba​r á acor​dan​do você tam​bém...
— Não faz mal. Es​tou acos​tu​m a​do a dor​m ir pou​c o. Você, sim, pre​c i​sa de
uma boa noi​te de sono.
— Você é... um ami​go e tan​to... — Jor​j a sor​r i​r a. E de​pois, sé​r ia, acres​c en​-
ta​r a: — Tal​vez você seja o me​lhor ami​go que já tive.
— Ah... sou um san​to!
Jor​j a des​c o​bri​r a que Jack era um gran​de su​j ei​to en​quan​to ro​da​vam por Elko.
Ele era es​per​to, aten​to, gen​til, e o me​lhor ou​vin​te que já en​c on​tra​r a. A uma e
meia da ma​dru​ga​da, Bren​dan, can​sa​do, en​c o​lhe​r a-se no ban​c o tra​sei​r o do jipe,
para dor​m ir. Jor​j a, que des​de mui​to tem​po que​r ia fi​c ar a sós com Jack, dera gra​-
ças a Deus ao ver o pa​dre res​so​nar bai​xi​nho. Ago​r a sim, Jack Twist era todo seu.
Sem Bren​dan, sen​ti​r a-se à von​ta​de para re​la​xar e en​tre​gar-se ao fas​c í​nio que
Jack exer​c ia so​bre ela. Con​ta​r a-lhe mais so​bre sua
vida do que ja​m ais ha​via con​ta​do a nin​guém, des​de o dia em que sua úni​c a e
me​lhor ami​ga mu​da​r a-se da vi​zi​nhan​ç a, vin​te anos an​tes. Em qua​se sete anos de
ca​sa​m en​to, nun​c a se abri​r a com Alan tão sin​c e​r a​m en​te como con​ver​sa​r a com
Jack Twist, um ho​m em que mal co​nhe​c ia.
Ali, pa​r a​da jun​to à por​ta da co​zi​nha, ven​do-o fa​lar com Ma​r eie, des​c o​bria
nele ain​da ou​tras qua​li​da​des. Era dos pou​c os e ra​r os ho​m ens ca​pa​zes de fa​lar
tran​qüi​la​m en​te com uma cri​a n​ç a, sem ser con​des​c en​den​te, sem pa​r e​c er idi​o​ta,
sem dar si​nais de im​pa​c i​ê n​c ia. Jack ria com Ma​r eie, in​ter​r o​ga​va-a so​bre suas
mú​si​c as pre​f e​r i​das, seus pra​tos fa​vo​r i​tos, seus de​se​nhos ani​m a​dos pre​di​le​tos, aju​-
da​va-a a pin​tar as luas ver​m e​lhas. Ma​r eie pa​r e​c ia ain​da mais alheia que na vés​-
pe​r a, como se, aos pou​c os, mer​gu​lhas​se num tran​se cada vez mais pro​f un​do.
Não res​pon​dia às per​gun​tas e man​ti​nha os olhos fi​xos em suas luas. Ain​da as​sim,
ele con​ti​nu​a ​va a fa​lar cal​m o e nor​m al. Jor​j a lem​brou-se do que lhe con​ta​r a so​-
bre a es​po​sa: sim... pas​sa​r a oito anos ao lado de Jenny, sem ja​m ais re​c e​ber res​-
pos​ta, sem per​c e​ber um si​nal qual​quer de que ela o ou​vis​se. Tão cedo, com cer​-
te​za, Ma​r eie não o fa​r ia per​der a pa​c i​ê n​c ia.
Jor​j a con​ti​nuou pa​r a​da jun​to à por​ta, di​vi​di​da en​tre o pra​zer de ver Jack à
von​ta​de, tran​qüi​lo e des​c on​tra​í​do, e a ago​nia de no​tar que Ma​r eie dis​tan​c i​a ​va-se
cada vez mais, mer​gu​lhan​do aos pou​c os num mun​do só seu, como as cri​a n​ç as
au​tis​tas dos li​vros que ha​via lido.
— Bom-dia! — ex​c la​m ou ele, er​guen​do o olhar. — Dor​m iu bem? Faz mui​-
to tem​po que está aí?
— Che​guei ago​r a. — Jor​j a apro​xi​m ou-se.
— Va​m os... — Jack vi​r ou-se para a me​ni​na. — Diga bom-dia para sua
mãe.
Ma​r eie não mo​veu um mús​c u​lo e con​ti​nou fi​tan​do as luas em seu ál​bum.
Jack sor​r ia.
— Afi​nal... já é qua​se hora de boa-tar​de...
Ten​tan​do sor​r ir tam​bém, Jor​j a apro​xi​m ou-se de Ma​r eie, aca​r i​c i​ou-lhe os ca​-
be​los e to​c ou-lhe o quei​xo para fazê-la vi​r ar-se.
A me​ni​na olhou para o ros​to da mãe, ape​nas por um mo​m en​to, como se não
a vis​se e, bai​xan​do os olhos para o ál​bum, vol​tou ás pro​f un​de​zas de um mun​do
que só ela co​nhe​c ia. Olhos sem bri​lho, va​zi​os. Jor​j a sus​pi​r ou, e Ma​r eie con​c en​-
trou-se na Lua que pin​ta​va pela cen​té​si​m a vez, com o úl​ti​m o toco de lá​pis ver​-
me​lho.
Jack le​van​tou-se e an​dou até o re​f ri​ge​r a​dor.
— Está com fome? — per​gun​tou. — Pois eu es​tou. Ma​r eie já to​m ou seu
lei​te, mas eu quis es​pe​r á-la para to​m ar​m os café jun​tos. — Exa​m i​nou o que ha​via
para co​m er. — Que tal ovos com ba​c on e tor​r a​das? Ou uma ome​le​te de quei​j o
com ce​bo​la e pi​m en​tão ver​de...
— En​tão, além do mais, você sabe co​zi​nhar!
— Não sou ne​nhum mes​tre-cuca, mas sem​pre se pode en​go​lir o que co​zi​-
nho e ge​r al​m en​te é pos​sí​vel iden​ti​f i​c ar o que se vai co​m er, an​tes de pro​var. Es​pe​-
re só para ver. — Abriu a por​ta do free-zer. — Te​m os wa fi​les con​ge​la​dos. Se qui​-
ser, aque​ç o al​guns para acom​pa​nhar a ome​le​te.
— Eu como o que você co​m er — dis​se Jor​j a, sem des​pre​gar os olhos do
ros​ti​nho de Ma​r eie. Cada vez que olha​va a fi​lha, sen​tia o es​tô​m a​go con​trair-se.
Jack foi até a co​zi​nha car​r e​gan​do uma cai​xi​nha de lei​te, al​guns ovos, um pa​-
co​te de quei​j o, pi​m en​tões, uma pe​que​na ce​bo​la, e dei​xou tudo ao lado da pia.
Jor​j a apro​xi​m ou-se, olhan​do por so​bre seu om​bro na di​r e​ç ão de Ma​r eie e fa​lan​-
do em voz bai​xa:
— É ver​da​de que ela to​m ou lei​te?
— Lei​te, flo​c os, uma tor​r a​da com ge​léia e ou​tra com cre​m e de amen​-
doim. Cla​r o que eu pre​c i​sei aju​dar, mas ela está ali​m en​ta​da.
Jor​j a fe​c hou os olhos, lu​tan​do para não pen​sar no que Dom lhe con​ta​r a so​bre
a mor​te de Ze​be​di​a h Lo​m ack e no sui​c í​dio de Alan. Se os dois, ho​m ens adul​tos,
não en​c on​tra​r am for​ç as para ven​c er a ob​ses​são do​e n​tia com a Lua, sur​gi​da a
par​tir do que vi​r am na noi​te de 6 de ju​lho do ano re​tra​sa​do... o que ocor​r e​r ia com
Ma​r eie, uma me​ni​na?! Se aca​ba​r am mor​r en​do, o que acon​te​c e​r ia a sua fi​lha?!
— Não, não... — Jack vi​r ou-se para ela e abra​ç ou-a. — Não cho​r e.
Ma​r eie vai fi​c ar boa. Eu ga​r an​to. Hoje cedo, to​dos acor​da​r am tran-qüi​los e
nin​guém teve pe​sa​de​los; Dom não an​dou pela casa, Er-nie qua​se não sen​tiu
medo do es​c u​r o... Sabe por quê? Por​que o fato de es​tar​m os jun​tos, ali​a ​dos, como
uma ver​da​dei​r a fa​m í​lia, ali​vi​ou as tensões. Os blo​quei​os co​m e​ç am a ce​der...
Sim, sim... E cla​r o que Ma​r eie pa​r e​c e ain​da mais alheia... po​r ém isso não sig​ni​f i​-
ca que es​te​j a pior. Fi​que tran​qüi​la... Ma​r eie vai fi​c ar boa. Eu sei.
Jor​j a nao es​pe​r a​va o abra​ç o, mas agra​de​c eu a Deus! Dei​xou-se abra​ç ar, e,
para sur​pre​sa sua, sen​tiu-se re​nas​c er en​tre os bra​ç os for​tes de Jack. Eram qua​se
da mes​m a al​tu​r a; por um ins​tan​te, po​r ém, abra​ç a​da a ele, Jor​j a sen​tiu-se pe​que​-
na e frá​gil, guar​da​da e pro​te​gi​da como algo mui​to pre​c i​o​so. Lem​brou-se do que
pen​sa​r a du​r an​te a vi​a ​gem até Elko: nin​guém nas​c e para ser só, para lu​tar so​zi​nho;
a es​sên​c ia da es​pé​c ie é a ne​c es​si​da​de de dar e re​c e​ber afe​to. Ali, na​que​le mo​-
men​to, apro​xi​m a​vam-se duas for​ç as com​ple​m en​ta​r es: ela, que tan​to pre​c i​sa​va
ser con​f or​ta​da, e Jack, que tan​to que​r ia en​c on​trar al​guém a quem con​f or​tar. Da
uni​ã o dos dois bro​ta​va a co​r a​gem de que am​bos pre​c i​sa​vam para con​ti​nu​a r a
luta.
— Ome​le​te de quei​j o, com pou​c a ce​bo​la e pe​da​c i​nhos de pi​m en​tão ver​de
— Jack mur​m u​r ou-lhe ao ou​vi​do, sen​tin​do que ela se re​c om​pu​nha — ... Isso é
tudo de que pre​c i​sa​m os, por ora. Você não acha?
— Ma​r a​vi​lha das ma​r a​vi​lhas.
— Mi​nhas ome​le​tes têm um se​gre​do. Sem​pre uso pe​da​c i​nhos de cas​c a de
ovo no tem​pe​r o.
— Mas é esse o se​gre​do mes​m o! Os me​lho​r es res​tau​r an​tes do mun​do pre​-
pa​r am ome​le​tes com pe​da​c i​nhos de cas​c a, para me​lho​r ar a tex​tu​r a.
— E mes​m o? E bo​li​nhos de ba​c a​lhau com pe​da​c i​nhos de es​pi​nha?
— O que diz de stro​ga​noff com las​qui​nhas de osso?
— E mous​se de cho​c o​la​te com pa​li​tos?
— E pre​gos na tor​ta de maçã?
— E uma sol​tei​r o​na em cada for​m a de bolo?
— De​tes​to bo​los.
— Eu tam​bém. — Jack riu. — Che​ga?
— Che​ga. Vou der​r e​ter o quei​j o.
Na mesa, Ma​r eie co​lo​r ia luas e mais luas. E a cada uma rei​ni​c i​a ​va o can​to
mo​nó​to​no, mo​no​c ór​di​c o, re​pe​tin​do sem​pre a mes​m a pa​la​vra.
Em Mon​te​r ey, Ca​li​f ór​nia, Parker Fai​ne es​c a​pa​va por pou​c o da rede de uma
gi​gan​tes​c a ara​nha de cer​c a. Deu-se por mui​to fe​liz, quan​do viu que ain​da es​ta​va
vivo, li​vre dos ter​r í​veis ten​tá​c u​los do mons​tro. Uma au​tên​ti​c a ara​nha de cer​c a:
uma mu​lher cha​m a​da Es​sie Craw, vi​zi​nha dos Scal​c oe. As ara​nhas de cer​c a
cons​tróem na gra​m a ni​nhos tu​bu​la​r es, sub​terrâ​ne​os, qua​se in​vi​sí​veis, ca​m u​f la​dos
por uma pe​que​na tam​pa cui​da​do​sa​m en​te tra​m a​da com os lon​gos fios de baba
que pro​du​zem. Quan​do al​gum in​se​to des​c ui​da​do tro​pe​ç a na ar​m a​di​lha, cai no bu​-
ra​c o do ni​nho e aca​ba tra​ga​do pela bes​ta pe​lu​da que o es​pe​r a lá em​bai​xo.
O ni​nho tu​bu​lar de Es​sie Craw era uma lin​da casa em es​ti​lo es​pa​nhol, mui​to
mais bo​ni​ta e bem in​te​gra​da ao ce​ná​r io que a man​são co​lo​ni​a l dos Scal​c oe, com
sa​c a​das de fer​r o fun​di​do e flo​r es co​lo​r i​das bro​tan​do de va​sos de ar​gi​la. Bas​tou
olhar a casa para Fai​ne adi​vi​nhar que es​ta​va à por​ta de gen​te in​te​r es​san​te, bo​ni​-
ta e, com um pou​c o de sor​te, tam​bém in​te​li​gen​te. Mas, quan​do Es​sie Craw apa​-
re​c eu, ele logo viu que se en​ga​na​r a. Quan​do a ara​nha de cer​c a des​c o​briu que ele
que​r ia sa​ber da vida dos Scal​c oe, pra​ti​c a​m en​te o ar​r as​tou para den​tro, fa​zen​do
cair a tam​pi​nha do ni​nho tu​bu​lar a suas cos​tas. Por​que gen​te que quer sa​ber da
vida alheia deve es​tar dis​pos​ta a fa​lar da vida alheia... e Es​sie Craw era vi​c i​a ​da
em me​xe​r i​c os.
A jul​gar pela cara, con​tu​do, Es​sie não era ara​nha, mas pás​sa​r o. Não um uru​-
bu ma​gro, de pes​c o​ç o pe​la​do... an​tes, uma gai​vo​ta gor​da e bem ce​va​da, que
olha​va as pes​so​a s de lado com olhi​nhos re​don​dos e ar​r e​ga​la​dos.
De​pois de con​du​zi-lo até a sala, ofe​r e​c eu-lhe café. Parker agra​de​c eu. Ela in​-
sis​tiu. Ele dis​se que não que​r ia dar tra​ba​lho. Ela trou​xe o café e ain​da foi bus​c ar
um pra​to de bo​li​nhos aman​tei​ga​dos, mui​to
ani​m a​da e fa​lan​te. Parker des​c o​briu que pas​sa​va dias es​pe​r an​do que al​guém
ca​ís​se em sua teia.
Es​sie de​sa​pon​tou-se quan​do ele lhe dis​se que não sa​bia coi​sa al​gu​m a so​bre os
Scal​c oe e, por​tan​to, não ti​nha no​vi​da​des para con​tar. Mas como não era nem
mes​m o ami​go da fa​m í​lia, ofe​r e​c eu-se para ou​vir o que ela qui​ses​se di​zer, fos​-
sem men​ti​r as, ca​lú​ni​a s e co​m en​tá​r i​os mo​r a​lis​tas. E não pre​c i​sou per​gun​tar mui​to
para des​c o​brir o que que​r ia sa​ber.
Don​na Scal​c oe, es​po​sa de Ge​r ald, era — nas pa​la​vras de Es​sie — um poço
de fin​gi​m en​to: loi​r a oxi​ge​na​da, sor​r i​den​te de​m ais para ser ho​nes​ta e fal​sa como
uma co​bra. Tão ma​gra que tal​vez fos​se tal​c o​ó​la​tra... ou ano​r é​xi​c a. Ge​r ald era
seu se​gun​do ma​r i​do; em​bo​r a já es​ti​ves​sem ca​sa​dos por de​zoi​tos anos, Es​sie acre​-
di​ta​va que a uni​ã o não se​r ia du​r a​dou​r a. Em sua ver​são, o com​por​ta​m en​to das
duas fi​lhas do ca​sal, gê​m e​a s de de​zes​seis anos, era tão des​r e​gra​do, li​c en​c i​o​so e
pe​c a​m i​no​so que ban​dos de ra​pa​zes ron​da​vam a man​são, como cães à pro​c u​r a de
ca​de​las no cio.
Ge​r ald Scal​c oe era pro​pri​e ​tá​r io de três prós​pe​r as lo​j as de anti-güi​da​des em
Car​m el, mas Es​sie não sa​bia ex​pli​c ar como as lo​j as da​vam tan​to lu​c ro, sen​do ele
um be​ber​r ão li​ber​ti​no e ig​no​r an​te, sem o me​nor tino co​m er​c i​a l.
Parker mal ro​ç ou os lá​bi​os pela xí​c a​r a de café e não to​c ou nos bo​li​nhos. Es​-
sie Craw era tão ve​ne​no​sa que ul​tra​pas​sa​va os li​m i​tes da sim​ples ma​le​di​c ên​c ia e
rai​a ​va a de​su​m a​ni​da​de, o que o fa​zia sen​tir-se mui​to mal sob seu teto, com von​-
ta​de de le​van​tar-se, sair e es​que​c er os Scal​c oe para sem​pre.
De qual​quer modo, con​se​guiu al​gu​m as in​f or​m a​ç ões im​por​tan​tes. Os Scal​c oe
ha​vi​a m par​ti​do de re​pen​te, sem mai​o​r es ex​pli​c a​ç ões, e vi​a ​j a​r am para Napa e
So​no​m a, na re​gi​ã o dos vi​nhos. Es​ta​vam tão an​si​o​sos pelo des​c an​so que se es​que​-
ce​r am de dei​xar en​de​r e​ç o. Nem os só​c i​os de Ge​r ald sa​bi​a m onde en​c on​trá-lo, o
que le​va​va Es​sie a su​por que os só​c i​os eram la​drões e que Ge​r ald que​r ia li​vrar-se
dos ne​gó​c i​os.
— Ele me te​le​f o​nou no do​m in​go; dis​se que iam vi​a ​j ar e vol​ta​r i​a m no dia vin​-
te — Es​sie con​tou. — Pe​diu-me para dar uma olha​da na casa. É mui​to de​sa​gra​-
dá​vel ter vi​zi​nhos que nos impõem ta​r e​f as des​se tipo... como se eu não ti​ves​se
mais nada a fa​zer se​não cui​dar da casa dos ou​tros.
— Che​gou a fa​lar pes​so​a l​m en​te com al​gum de​les?
— Não... Acho que es​ta​vam com mui​ta pres​sa de vi​a ​j ar.
— Você os viu par​tir?
— Não... E bem que ten​tei. De​vem ter sa​í​do quan​do eu es​ta​va ocu​pa​da.
— As gê​m e​a s vi​a ​j a​r am com eles? Não es​tão na es​c o​la?
— Es​tão... mas é uma des​sas es​c o​las mo​der​nas. Mo​der​nas de​m ais para
meu gos​to, ali​á s as pro​f es​so​r as di​zem que vi​a ​j ar é tão im​por​tan​te quan​to as​sis​tir
às au​las. Já ou​viu es​tu​pi​dez mai​or?
— E Ge​r ald Scal​c oe... quan​do fa​lou com você ao te​le​f o​ne... pa​r e​c ia es​tra​-
nho?
— Es​tra​nho? Não. Pa​r e​c ia ner​vo​so... como sem​pre. De​via es​tar bê​ba​do.
Fa​la​va aos tran​c os, en​r o​la​va a lín​gua... Cla​r o! Tal​vez Don​na o te​nha le​va​do para
in​ter​ná-lo numa clí​ni​c a de de​sin​to​xi​c a​ç ão! Deve ser isso.
Era de​m ais. Parker le​van​tou-se para sair, e Es​sie plan​tou-se di​a n​te da por​ta,
fa​lan​do sem pa​r ar. Se não ha​via gos​ta​do do café... tal​vez chá? Ou cro​is​sant de no​-
zes? A von​ta​de fér​r ea e o de​se​j o in-que​bran​tá​vel que fi​ze​r am de Parker Fai​ne um
dos gran​des pin​to​r es con​tem​porâ​ne​os fo​r am mais for​tes, e ele con​se​guiu es​c a​-
par, pri​m ei​r o até a va​r an​da e logo, cor​r en​do, até a cal​ç a​da. Es​sie se​guiu-o até o
car​r o ver​de-vô​m i​to, que, con​si​de​r a​das as cir​c uns​tân​c i​a s, pa​r e​c ia lin​do como
uma li​m u​si​ne, por​que per​m i​tia-lhe fu​gir da rede vis​guen​ta da​que​la mu​lher. Pi​-
san​do no ace​le​r a​dor, Parker es​c a​pou como Co​le​r id​ge, o gran​de po​e ​ta in​glês:
“Como o ho​mem que, numa es​tra​da de​ser​ta, foge com medo e hor​ror e, ten​do
uma vez es​pi​a​do para trás, vol​ta a ca​be​ç a e se​gue em fren​te.
Por​que sabe que um de​mô​nio o per​se​gue, de per​to, cor​ren​do pela es​tra​da.”
Di​r i​giu a esmo pela ci​da​de, por mais de uma hora, reu​nin​do
co​r a​gem para fa​zer o que sa​bia ser ne​c es​sá​r io. Por fim, vol​tou à casa dos
Scal​c oe, es​ta​c i​o​nou jun​to à ala​m e​da, apro​xi​m ou-se da por​ta e to​c ou a cam​pai​-
nha sem pa​r ar, du​r an​te três mi​nu​tos. Se hou​ves​se al​guém em casa, ain​da que não
es​ti​ves​se dis​pos​to a re​c e​ber vi​si​tas, aca​ba​r ia aten​den​do à por​ta, para se li​vrar do
tor​m en​to da si​r e​ne so​pran​do nos ou​vi​dos. Mas nin​guém apa​r e​c eu.
Parker an​dou pela va​r an​da e es​pi​ou pe​las ja​ne​las da fren​te, como se fos​se
um co​nhe​c i​do da fa​m í​lia, em​bo​r a, na ver​da​de, to​m as​se cui​da​do para que Es​sie
Craw não o vis​se. Na man​são, as cor​ti​nas es​ta​vam cor​r i​das e não se via si​nal de
vida. Parker des​c eu pe​los fun​dos da va​r an​da e con​tor​nou a casa, mer​gu​lhan​do
nas áre​a s de som​bra. Ex​pe​r i​m en​tou o trin​c o de al​gu​m as ja​ne​las — to​das bem fe​-
cha​das. Nos fun​dos ha​via can​tei​r os de flo​r es, um gran​de pá​tio de la​j o​tas, um bar
e al​guns ca​r os mó​veis de jar​dim. Parker apro​xi​m ou-se da por​ta da co​zi​nha, en​-
cos​tou o om​bro no vi​dro e que​brou-o; en​tão, me​teu a mão pelo bu​r a​c o, abriu o
trin​c o, afas​tou as cor​ti​nas e en​trou. Pa​r ou, aten​to. Nada. A casa con​ti​nu​a ​va mer​-
gu​lha​da em si​lên​c io. A co​zi​nha li​ga​va-se à copa ilu​m i​na​da pela cla​r i​da​de que vi​-
nha do pá​tio. Parker pas​sou pela la​r ei​r a e pela mesa de bi​lhar e pa​r ou, pe​tri​f i​c a​-
do, ao ver o alar​m e na pa​r e​de. Co​nhe​c ia o apa​r e​lho des​de os tem​pos em que
cons​tru​í​r a a casa de La​gu​na Be​a ​c h e fora obri​ga​do a in​f or​m ar-se so​bre equi​pa​-
men​tos de se​gu​r an​ç a. Fez men​ç ão de gi​r ar so​bre os cal​c a​nha​r es e fu​gir, quan​-
do se lem​brou da pe​que​na lâm​pa​da ver​m e​lha que de​ve​r ia fi​c ar ace​sa se o apa​-
re​lho es​ti​ves​se li​ga​do. A lâm​pa​da es​ta​va apa​ga​da: não ha​via o que te​m er. Os
Scal​c oe es​que​c e​r am-se de li​gar o alar​m e quan​do sa​í​r am de fé​r i​a s.
A copa era agra​dá​vel, bem equi​pa​da e mo​der​na. Parker atra​ves​sou-a e che​-
gou à sala de jan​tar, que es​ta​va às es​c u​r as. De​pois de ava​li​a r os ris​c os, de​c i​diu
acen​der as lu​zes para con​ti​nu​a r suas in​ves​ti​ga​ç ões de es​pi​ã o ama​dor. Pa​r ou ou​tra
vez, no li​ving, à pro​c u​r a de si​nais de vida. Nada. O si​lên​c io o en​vol​via, pro​f un​do e
pe​sa​do como si​lên​c io de ce​m i​té​r io.
Quan​do Bren​dan Cro​nin che​gou à co​zi​nha dos Block, de​pois de acor​dar tar​de
e to​m ar um lon​go ba​nho de chu​vei​r o, en​c on-
trou Ma​r eie ocu​pa​da em co​lo​r ir luas e mur​m u​r an​do in​di​f e​r en​te a tudo e a to​-
dos. Che​gou a pen​sar em usar seus po​de​r es para ten​tar aju​dá-la, mas logo afas​-
tou a idéia. En​quan​to não ti​ves​se cer​te​za de con​tro​lar o que fa​zia com as mãos,
se​r ia mui​to ar​r is​c a​do ten​tar ou​tra cura.
Jack e Jor​j a aca​ba​vam de co​m er a ome​le​te com tor​r a​das e re​c e​be​r am-no
com ca​r i​nho. Jor​j a ofe​r e​c eu-se para pre​pa​r ar-lhe um pra​to, mas Bren​dan agra​-
de​c eu: que​r ia ape​nas café, for​te e quen​te.
Viu as qua​tro pis​to​las so​bre a mesa, ao lado de Jack. Duas per​ten​c i​a m a Er​-
nie. As ou​tras, o pró​prio Jack trou​xe​r a de Nova York. Nin​guém men​c i​o​na​va as
ar​m as, pois sa​bi​a m que o ini​m i​go es​ta​va à es​c u​ta e não era con​ve​ni​e n​te re​ve​lar o
ar​se​nal de que dis​pu​nham. Mas as ar​m as dei​xa​vam Bren​dan ner​vo​so. Ele pres​-
sen​tia que se​r i​a m usa​das, vá​r i​a s ve​zes, ain​da an​tes do fim da​que​le dia.
Já não era o ho​m em oti​m is​ta da che​ga​da, tal​vez por​que, pela pri​m ei​r a vez
em se​m a​nas, na​que​la noi​te não so​nha​r a. Dor​m i​r a sem so​nhar... o que ape​nas o
frus​tra​va. Ao con​trá​r io dos ou​tros, noi​te após noi​te ti​nha so​nhos des​lum​bran​tes
que o en​c hi​a m de es​pe​r an​ç as. Sem so​nhos, as noi​tes pa​r e​c i​a m va​zi​a s... e isso o
dei​xa​va ten​so e pre​o​c u​pa​do.
— Acho que vai ne​var — co​m en​tou sen​tan​do-se para to​m ar o café.
— E sem de​m o​r a — Jack con​c or​dou.
O céu pa​r e​c ia de pe​dra, duro e cin​zen​to como gra​ni​to.
Re​ve​zan​do-se com o pri​m ei​r o gru​po, Ned e Sandy Sar​ver fo​r am para Elko,
na vés​pe​r a, en​c on​trar Jack, Jor​j a e Bren​dan. Das qua​tro da ma​nhã às sete e
meia, an​da​r am pela ci​da​de cum​prin​do seu tur​no e quan​do vol​ta​r am ao mo​tel to​-
dos já ha​vi​a m sa​í​do para as ta​r e​f as da ma​nhã. As oito ho​r as to​m a​r am um rá​pi​do
des​j e-jum e fo​r am dor​m ir, pre​pa​r an​do-se para a lon​ga noi​te que os es​pe​r a​va.
Ned acor​dou pou​c o de​pois das duas da tar​de, mas não se le-
van​tou. Dei​xou-se fi​c ar na cama, no quar​to em pe​num​bra, ven​do Sandy dor​-
mir. Ama​va-a mais que nun​c a, com um amor for​te e pro​f un​do, que flu​ía como
rio cau​da​lo​so, le​van​do-os para uma vida me​lhor, além das do​r es e das pre​o​c u​pa​-
ções do mun​do.
Ned da​r ia qual​quer coi​sa para sa​ber fa​lar com a mes​m a ha​bi​li​da​de com que
con​ser​ta​va ob​j e​tos que​bra​dos. As ve​zes, ocor​r ia-lhe a idéia de que nun​c a dis​se​r a
a Sandy o quan​to a ama​va. Cada vez que ten​ta​va, aca​ba​va en​r o​lan​do-se nas fra​-
ses, lon​gas de​m ais, com​pli​c a​das de​m ais, chei​a s de ima​gens pe​sa​das e idi​o​tas.
Nas​c e​r a mes​m o para con​ser​tar o que se que​bra​va, asas, pes​so​a s... Mas de bom
gra​do tro​c a​r ia tal ha​bi​li​da​de pelo dom da pa​la​vra, pela fra​se per​f ei​ta, que ex​-
pres​sas​se os sen​ti​m en​tos mais pro​f un​dos.
• Olhan​do para a mu​lher, per​c e​beu que ela tam​bém es​ta​va des​per​ta.
— Já acor​dou? — per​gun​tou.
Sandy sor​r iu e en​tre​a ​briu os olhos.
— Fi​quei com medo de você. Es​ta​va me olhan​do como se qui​ses​se me co​-
mer viva...
— Você está uma de​lí​c ia para ser co​m i​da viva. Lá isso é ver​da​de...
Ela afas​tou as co​ber​tas e, nua, abriu os bra​ç os para o ma​r i​do.
Os dois mer​gu​lha​r am en​tão no rit​m o co​nhe​c i​do do amor, em que se tor​na​-
ram mes​tres de​pois do de​sa​bro​c har de Sandy.
Mais tar​de, quan​do des​c an​sa​vam lado a lado na cama, de mãos da​das, ela
sor​r iu para Ned e de​c la​r ou:
— Acho que sou a mu​lher mais fe​liz do mun​do. Você me fez fe​liz as​sim
que o vi, no Ari​zo​na, há tan​to tem​po. Des​de que co​m e​ç ou a cui​dar de mim, que
me le​vou para seu ni​nho, você sem​pre me fez fe​liz. Sin​to-me tão fe​liz, ago​r a,
que, se Deus me ful​m i​nas​se com um raio, nes​te exa​to ins​tan​te, eu não te​r ia do
que re​c la​m ar.
— Não fale as​sim — pe​diu Ned. Er​gueu-se so​bre um co​to​ve​lo, vi​r ou-se
para ela e olhou-a de fren​te. — Não que​r o que fale as​sim. Não é bom... Pode dar
azar. Es​ta​m os me​ti​dos numa en​r as​c a​da dos di​a ​bos... e é bem pos​sí​vel que um de
nós mor​r a. E me​lhor não de​sa​f i​a r o des​ti​no. Não que​r o que fale em mor​r er.
— Você nun​c a foi su​pers​ti​c i​o​so...
— Eu sei, mas ago​r a é di​f e​r en​te. Não que​r o que você diga que está tão fe​-
liz que po​de​r ia mor​r er sem re​c la​m ar. Ou​viu bem? Não que​r o nem que pen​se nis​-
so.
Abra​ç ou-a, pu​xan​do-a para cima de seu cor​po, e es​trei​tou-a com for​ç a, até
sen​tir o co​r a​ç ão da mu​lher ba​ter de en​c on​tro ao seu. De re​pen​te, já não ou​vi​a m
as pan​c a​das dos dois co​r a​ç ões pul​san​do ao mes​m o rit​m o, mas de um úni​c o,
imen​so, cheio de amor.
Na casa dos Scal​c oe, em Mon​te​r ey, Parker con​ti​nu​a ​va a pro​c u​r ar res​pos​tas
para as per​gun​tas de Dom. Em pri​m ei​r o lu​gar, era pre​c i​so achar al​gu​m a pro​va
de que a fa​m í​lia es​ta​va mes​m o em Napa e So​no​m a: um ca​tá​lo​go de ho​tel, um
nú​m e​r o de te​le​f o​ne para onde li​gar e per​gun​tar se ha​vi​a m che​ga​do em se​gu​r an​-
ça. Ou al​gum in​dí​c io de que cos​tu​m a​vam vi​a ​j ar para a re​gi​ã o dos vi​nhos... uma
agen​da de te​le​f o​nes, por exem​plo. Ou, se fos​se im​pos​sí​vel pro​var que sim​ples​-
men​te sa​í​r am de fé​r i​a s, al​gum si​nal de que fo​r am ti​r a​dos de casa à for​ç a: man​-
chas de san​gue, mo​bí​lia re​vi​r a​da, rou​pas ati​r a​das pelo chão.
Dom pe​di​r a-lhe ape​nas que fos​se a Mon​te​r ey e en​tras​se em con​ta​to com a
fa​m í​lia; fi​c a​r ia bo​qui​a ​ber​to se sou​bes​se que ele ar​r om​ba​r a uma por​ta e, na​que​le
mo​m en​to, em​pe​nha​va-se em ple​na e cri​m i​no​sa in​va​são de do​m i​c í​lio. Mas
Parker Fai​ne não era ho​m em de fa​zer as coi​sas pela me​ta​de, e de​li​c i​a ​va-se com
a aven​tu​r a, ape​sar do co​r a​ç ão que ba​tia ace​le​r a​do e da gar​gan​ta seca.
De​pois do li​ving, vi​nha a bi​bli​o​te​c a e, pou​c o adi​a n​te, uma sala de mú​si​c a,
com pi​a ​no, es​tan​tes de par​ti​tu​r as, ca​dei​r as, dois es​to​j os de cla​r i​ne​tas e uma bar​r a
para exer​c í​c i​os de balé. As gê​m e​a s “de​vas​sas”, com cer​te​za, eram adep​tas da
mú​si​c a e da dan​ç a clás​si​c a.
Não ha​via mais o que pro​c u​r ar na par​te so​c i​a l da casa, e Parker, de​va​gar, di​-
ri​giu-se para os quar​tos. A luz do piso in​f e​r i​or su​bia pe​los de​graus car​pe​ta​dos, fa​-
zia bri​lhar o cor​r i​m ão de car​va​lho po​li​do e che​ga​va até o hall do an​dar su​pe​r i​or.
De​pois, es​c u​r i​dão. Ele pa​r ou no hall, as mãos úmi​das de suor. Nada. Si​lên​c io. Di​-
fí​c il en​ten​der por​que pres​sen​tia que ha​via mais al​guém em
casa. Tal​vez fos​se ins​tin​to. Tal​vez de​ves​se con​c en​trar-se e ou​vir o que lhe di​-
zi​a m seus sen​ti​dos mais pri​m i​ti​vos. Mas... se hou​ves​se re​a l​m en​te al​guém es​c on​-
di​do ali, es​pe​r an​do para ata​c á-lo, por que o dei​xa​r ia su​bir? Por que não o ata​c a​r a
no li​ving, por exem​plo, ou na co​zi​nha?
Con​ti​nuou pelo cor​r e​dor, até que ou​viu al​gu​m a coi​sa. Um zum​bi​do, uma
com​bi​na​ç ão es​tra​nha de bip e blip, um som que vi​nha dos dois quar​tos no fim do
hall. Pri​m ei​r o, Parker pen​sou que fos​se o alar​m e con​tra la​drões. Mas de que ser​-
vi​r ia um alar​m e que mal se po​dia ou​vir? O ru​í​do era con​tí​nuo, rit​m a​do: bip-blip...
Es​ten​deu a mão para o in​ter​r up​tor, acen​deu a luz e es​pe​r ou. O ru​í​do con​ti​nu​-
a​va, va​ga​m en​te co​nhe​c i​do, po​r ém im​pos​sí​vel de iden​ti​f i​c ar.
A ve​lha cu​r i​o​si​da​de, já crô​ni​c a, e sem​pre su​j ei​ta a cri​ses agu​das, em​pur​r ou-
o para a fren​te. Sem ela Parker não te​r ia con​se​gui​do ga​nhar a vida como ar​tis​ta.
Cu​r i​o​si​da​de é a alma da cri​a ​ti​vi​da​de. As​sim, cu​r i​o​so como uma cri​a n​ç a, se​guiu
adi​a n​te, acom​pa​nhan​do o bip-blip. Ao fim do cor​r e​dor, já ou​via dois ru​í​dos di​f e​-
ren​tes, cada um com seu rit​m o pró​prio e am​bos vin​do de um dos quar​tos es​c u​r os,
cuja por​ta es​ta​va en​tre​a ​ber​ta.
Parker res​pi​r ou fun​do, em​pur​r ou a por​ta e en​trou no quar​to. Não via nada, e
nin​guém o ata​c ou. O ru​í​do con​ti​nu​a ​va, ple​na​m en​te au​dí​vel, mui​to pró​xi​m o. En​-
tão, ele per​c e​beu, na es​c u​r i​dão com​ple​ta, uma lu​zi​nha ver​de, mui​to fra​c a, de​f i​-
nin​do-se à me​di​da que seus olhos se ha​bi​tu​a ​vam à es​c u​r i​dão. Acen​deu a luz e...
viu as gê​m e​a s.
Foi a pri​m ei​r a ima​gem que se for​m ou em suas re​ti​nas. Pa​r e​c i​a m mor​tas,
dei​ta​das uma ao lado da ou​tra numa cama de ca​sal, o len​ç ol pu​xa​do até o pes​c o​-
ço, os olhos aber​tos. Parker per​c e​beu que o bip-blip vi​nha dos apa​r e​lhos de ele​-
tro​e n​c e​f a​lo​gra​m a e ele-tro​c ar​di​o​gra​m a, cu​j os fios li​ga​vam-se à ca​be​ç a das me​-
ni​nas. Viu as agu​lhas es​pe​ta​das em seus bra​ç os. E en​ten​deu que elas não es​ta​vam
mor​tas, mas dro​ga​das, em ple​no pro​c es​so de la​va​gem ce​r e​bral. Aque​le tal​vez
fos​se um quar​to de hós​pe​des, ele​gan​te e im-
pes​so​a l. As gê​m e​a s fo​r am co​lo​c a​das ali, na cama gran​de, por​que o ar​r an​j o
tor​na​va mais sim​ples o tra​ba​lho mé​di​c o.
Mas onde es​ta​r i​a m... eles? Onde es​ta​r i​a m os se​qües​tra​do​r es, os tor​tu​r a​do​r es,
os car​r as​c os? Con​f i​a ​r i​a m em seus mé​to​dos a pon​to de dei​xar a fa​m í​lia fe​c ha​da
em casa sem guar​das e sem as​sis​tên​c ia?
Parker apro​xi​m ou-se da cama e pas​sou a mão di​a n​te dos olhos de uma das
gê​m e​a s. Ela nem pis​c ou. Ti​nha fo​nes nos ou​vi​dos, e, ao lado de sua ca​be​ç a, uma
fita ro​da​va de​va​gar num gra​va​dor. Fai​ne de​bru​ç ou-se e apro​xi​m ou o ou​vi​do do
fone. Uma voz de mu​lher fa​la​va su​a ​ve, man​so: “Na se​gun​da-fei​r a dor​m i até tar​-
de. O ho​tel é óti​m o para dor​m ir até tar​de por​que é si​len​c i​o​so, as ar-ru​m a​dei​r as
en​tram e saem sem fa​zer ba​r u​lho. E como um clu​be de cam​po. Nem pa​r e​c e ho​-
tel, da​que​les que as ar​r u​m a​dei​r as ba​tem por​tas des​de a ma​dru​ga​da. A re​gi​ã o dos
vi​nhos é in​c rí​vel... Eu ado​r a​r ia vi​ver lá! Quan​do acor​da​m os, Ch​r is​sie e eu fo​m os
dar um pas​seio pelo cam​po, para co​nhe​c er al​gum ga​ti​nho... mas não en​c on​tra​-
mos nin​guém”.
Um som hip​nó​ti​c o, que o as​sus​tou.
Com cer​te​za os blo​quei​os de me​m ó​r ia dos Scal​c oe co​m e​ç a​vam a ce​der. Al​-
guém da fa​m í​lia, tal​vez to​dos, lem​bra​va-se do que vira no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de,
em ju​lho do ano re​tra​sa​do. Tor​nou-se ne​c es​sá​r io in​du​zi-los a es​que​c er tudo ou​tra
vez. Para co​brir o pe​r í​o​do de tem​po da se​gun​da la​va​gem ce​r e​bral, es​ta​vam re​-
ce​ben​do ou​tro con​j un​to de lem​bran​ç as fal​sas, a his​tó​r ia que a voz de robô re​pe​-
tia, sem pa​r ar, nos fo​nes de ou​vi​do.
Dom fa​la​r a so​bre o as​sun​to pelo te​le​f o​ne, no sá​ba​do e no do​m in​go à noi​te,
mas Parker ain​da não sen​ti​r a de per​to o hor​r or e a mons​truo​si​da​de da cons​pi​r a​-
ção em que se en​vol​via. A hor​r í​vel voz do gra​va​dor re​ve​lou-lhe a ver​da​de.
Ro​de​ou a cama e apro​xi​m ou-se da ou​tra ga​r o​ta, imó​vel, às ve​zes com os
olhos pa​r a​dos, às ve​zes pis​c an​do mui​to, como em con​vul​são. Pen​sou em re​m o​-
ver as agu​lhas, des​li​gar os apa​r e​lhos e car​r e​gar as me​ni​nas para fora. Não. Era
me​lhor achar um te​le​f o​ne e cha​m ar a po​lí​c ia para cui​dar de​las.
Não sa​be​r ia di​zer por quan​to tem​po era ob​ser​va​do, mas, de re-
pen​te, sen​sa​ç ão ful​m i​nan​te como um raio, per​c e​beu que não es​ta​va so​zi​nho
com as gê​m e​a s. Sal​tou para a por​ta an​tes de pen​sar, mas não con​se​guiu fu​gir. À
sa​í​da, es​pe​r a​vam-no dois ho​m ens de cal​ç a es​c u​r a, ca​m i​sa bran​c a com man​gas
ar​r e​ga​ç a​das até o co​to​ve​lo e gra​va​ta frou​xa no co​la​r i​nho duro. Um ter​c ei​r o, de
ócu​los, ter​no e gra​va​ta no lu​gar, aguar​da​va no hall.
Agen​tes fe​de​r ais. Quem mais se​r ia idi​o​ta o bas​tan​te para es​tar na Ca​li​f ór​nia,
fe​c ha​do em casa, de ter​no e gra​va​ta, ma​tan​do duas me​ni​nas de de​zes​seis anos?
— Mas... que di​a ​bos está fa​zen​do aqui?! — per​gun​tou um de​les.
Parker não per​deu tem​po em ex​pli​c ar que era pin​tor, ou em ten​tar es​m ur​r á-
los como “mo​c i​nho” de ci​ne​m a, ou em exi​gir que res​pei​tas​sem seus di​r ei​tos de ir
e vir ga​r an​ti​dos a todo ci​da​dão cum​pri​dor da lei. Fi​c ou de bico fe​c ha​do e cor​r eu
para a ja​ne​la de vi​dro, ocul​ta atrás das cor​ti​nas. Só teve tem​po de pen​sar que a
ja​ne​la não era mui​to re​sis​ten​te, que o vi​dro que​bra​r ia sob seu peso, que as cor​ti​-
nas e a ja​que​ta de in​ver​no o pro​te​ge​r i​a m dos ca​c os e que ele ti​nha chan​c es de
che​gar lá em​bai​xo an​tes que os fe​de​r ais per​c e​bes​sem. Se as cor​ti​nas fos​sem
mai​o​r es que a ja​ne​la, ou se não hou​ves​se ja​ne​la atrás de​las, es​ta​r ia per​di​do.
Sem pes​ta​ne​j ar cor​r eu para o cor​ti​na​do como uma lo​c o​m o​ti​va sem freio.
Ou​viu os vi​dros que​bra​r em-se, sen​tiu o im​pac​to das ve​ne​zi​a ​nas de ma​dei​r a e de
re​pen​te per​c e​beu que con​se​gui​r a es​c a​par. Es​ta​va na va​r an​da, à luz da ma​nhã.
Dali para o chão, era um pulo. E ele sal​tou por so​bre a ba​laus​tra​da, pe​din​do a
Deus que o li​vras​se da sor​te in​gló​r ia de en​gan​c har-se numa ár​vo​r e e ser ca​pa​do
por al​gum ga​lho seco. Não foi. Caiu ao chão in​tei​r o; ar​r a​nha​do, as​sus​ta​do, mas
in​tei​r o.
Dis​pa​r ou a cor​r er. Viu fo​lhas vo​a n​do so​bre a ca​be​ç a, viu uma las​c a de ár​vo​-
re ar​r an​c a​da, a cen​tí​m e​tros de seu om​bro, e deu-se con​ta de que ati​r a​vam nele.
En​tão não pa​r ou de cor​r er. Via os ti​r os, mas não ou​via os es​tam​pi​dos. Ar​m as com
si​len​c i​a ​dor. Con​ti​nuou cor​r en​do, che​gou até a cer​c a nos li​m i​tes do gra​m a​do,
caiu numa tou​c ei​r a de azá​le​a s, le​van​tou-se, se​guiu adi​a n​te, sal​tou ou​tra cer​c a e
não pa​r ou mais.
Os ho​m ens ti​nham mes​m o que ten​tar matá-lo, para evi​tar que ele abris​se a
boca. Na​que​le mo​m en​to, com cer​te​za, es​ta​vam re​m o​ven​do as me​ni​nas... ou ma​-
tan​do-as.
E se achas​se um te​le​f o​ne, cha​m as​se a po​lí​c ia? O que acon​te​c e​r ia? De que
lado fi​c a​r ia a po​lí​c ia, se os as​sas​si​nos fos​sem agen​tes fe​de​r ais? Em quem acre​di​-
ta​r i​a m? Num gran​de pin​tor fan​ta​si​a ​do de ar​tis​ta ex​c ên​tri​c o, de ca​be​lo com​pri​do
e bar​ba por fa​zer, ou nos ho​m ens do FBI com seus ter​nos e gra​va​tas e ar​m as
com si​len​c i​a ​dor, po​san​do de sal​va​do​r es da hu​m a​ni​da​de?... de​f en​den​do os ci​da​-
dãos ho​nes​tos de as​sal​tos de gen​te como Parker Fai​ne?
Con​ti​nuou cor​r en​do. Dei​xou para trás o ca​lham​be​que, es​c or​r e​gou por um
gra​m a​do, equi​li​brou-se no topo es​trei​to de um muro de pe​dra, an​dou no meio dos
pi​nhei​r os, atra​ves​sou o quin​tal de uma casa e saiu por ou​tro, na rua de trás. Obri​-
gou-se a an​dar por rüas onde ha​via gen​te, por​que não que​r ia cha​m ar a aten​ç ão.
Sa​bia per​f ei​ta​m en​te o que ti​nha a fa​zer, ago​r a que co​m e​ç a​va a des​c o​brir a
ex​ten​são do cal​vá​r io de Dom. Cla​r o que o ami​go es​ta​va me​ti​do numa cons​pi​r a​-
ção de pro​por​ç ões gi​gan​tes​c as, cla​r o que sa​bia que cor​r ia pe​r i​go... mas uma coi​-
sa é sa​ber com a ca​be​ç a, e ou​tra, bem di​f e​r en​te, é sa​ber com as tri​pas. Ti​nha de
ir para Elko. Dom era seu me​lhor ami​go e pre​c i​sa​va de aju​da. O que mais po​de​-
ria fa​zer num mo​m en​to como aque​le? Aju​dá-lo, só isso...
Cla​r o que po​dia fin​gir para si mes​m o que nada acon​te​c e​r a. Po​dia vol​tar para
casa, tran​qüi​la​m en​te, e con​ti​nu​a r a pin​tar... Se fi​zes​se isso, po​r ém, ja​m ais vol​ta​r ia
a be​ber com a cons​c i​ê n​c ia tran​qüi​la, nem se​r ia ca​paz de gos​tar de si pró​prio.
Tra​gé​di​a s in​to​le​r á​veis para um be​ber​r ão ego​c ên​tri​c o, apai​xo​na​do pelo pró​prio
per​f il...
De​via ir até o ae​r o​por​to de Mon​te​r ey e to​m ar um avi​ã o para San Fran​c is​c o.
De lá, da​r ia um jei​to de che​gar a Ne​va​da. Os fe​de​r ais não pen​sa​r i​a m em fe​c har
o ae​r o​por​to, por​que não sa​bi​a m que ele era um fo​r as​tei​r o. A cha​ve do car​r o ti​nha
uma eti​que​ta da lo​c a​do​r a do ae​r o​por​to, mas es​ta​va bem guar​da​da no fun​do
do bol​so da ja​que​ta. Em uma hora ou duas, evi​den​te​m en​te, aca​ba-
riam des​c o​brin​do que o car​r o fora alu​ga​do no ae​r o​por​to... e tal​vez des​c o​bris​-
sem quem era ele. Mas até lá Parker já es​ta​r ia vo​a n​do para San Fran​c is​c o.
Con​ti​nuou an​dan​do. Numa rua tran​qüi​la, já dis​tan​te da casa dos Scal​c oe, en​-
con​trou um ra​paz, de de​ze​no​ve ou vin​te anos, es​c o​van​do ca​pri​c ha​da​m en​te as
ban​das bran​c as de um ve​lho au​to​m ó​vel da dé​c a​da de 50, res​tau​r a​do e re​c ém-re​-
pin​ta​do de ama​r e-lo-bri​lhan​te.
— Es​c u​te aqui, ami​go — dis​se Parker, apro​xi​m an​do-se do ra​paz —, meu
car​r o que​brou ali na ou​tra rua, e eu te​nho que to​m ar um avi​ã o den​tro de meia
hora. Es​tou mor​r en​do de pres​sa. Será que você me le​va​r ia ao ae​r o​por​to por...
cin​qüen​ta dó​la​r es?
O ra​paz con​c or​dou e, no per​c ur​so, re​ve​lou-se exí​m io mo​to​r is​ta. Não fos​se
as​sim, te​r i​a m am​bos mor​r i​do em qual​quer uma das de​ze​nas de cur​vas que ele
fez, ran​gen​do os pneus e jo​gan​do o pon​tei​r o do ve​lo​c í​m e​tro na mar​c a da ve​lo​c i​-
da​de má​xi​m a.
No ae​r o​por​to, Parker des​c o​briu que o pró​xi​m o voo para San Fran​c is​c o de​c o​-
la​va em dez mi​nu​tos. Foi o tem​po de com​prar a pas​sa​gem e cor​r er para o em​-
bar​que, cer​to de en​c on​trar o avi​ã o já to​m a​do pe​los fe​de​r ais, mas não viu ne​-
nhum de​les na es​c a​da do apa​r e​lho, lá den​tro ou na ca​bi​ne do co​m an​dan​te. Meia
hora de​pois, so​bre​vo​a n​do a Ca​li​f ór​nia, co​m e​ç ou a pre​o​c u​par-se com o se​gun​do
pro​ble​m a que ti​nha pela fren​te: como con​se​guir um voo de San Fran​c is​c o a
Reno, an​tes que os ho​m ens des​c o​bris​sem sua tri​lha.
Das ja​ne​las do apar​ta​m en​to dos Block, Jack Twist exa​m i​na​va a pai​sa​gem,
pro​c u​r an​do pos​tos de ob​ser​va​ç ão da DERO. Ha​via pelo me​nos um na​que​la área,
ti​nha que ha​ver, e, por mais es​c on​di​do ou in​vi​sí​vel que fos​se, Jack pre​c i​sa​va lo​c a​-
li​zá-lo com pre​c i​são.
Pre​ven​do uma si​tu​a ​ç ão como aque​la, le​va​r a con​si​go ou​tra de suas en​ge​nho​-
cas: um ins​tru​m en​to co​nhe​c i​do pelo ser​vi​ç o se​c re​to do Exér​c i​to como ter​m o​de​-
te​tor. Se​m e​lhan​te a uma des​sas ar​m as lan​ç a-rai​os, que apa​r e​c em em fil​m es de
fic​ç ão ci​e n​tí​f i​c a, pos​su​ía no lu​gar do cano um con​j un​to de len​tes sen​sí​veis ao ca-
lor. Bas​ta​va se​gu​r ar o apa​r e​lho so​bre a pal​m a da mão, apon​tá-lo para a área
a ser ob​ser​va​da e es​pi​a r pelo vi​sor, como se fos​se um te​les​c ó​pio. Ori​e n​tan​do-o
para uma pai​sa​gem, por exem​plo, o ob​ser​va​dor te​r ia a ima​gem am​pli​a ​da do ter​-
re​no e, so​bre​pos​ta a ela, a re​pre​sen​ta​ç ão cro​m á​ti​c a de to​das as fon​tes emis​so​r as
de ca​lor exis​ten​tes em seu cam​po vi​su​a l. Plan​tas, ani​m ais e ro​c has aque​c i​das
pelo sol re​c e​bem e emi​tem ca​lor, mas a tec​no​lo​gia avan​ç a​da do apa​r e​lho con​se​-
guia se​le​c i​o​nar as fon​tes, de​te​tan​do ape​nas as que pe​sa​vam mais de trin​ta qui​los
— en​tre as quais se in​c lu​í​a m se​r es hu​m a​nos. As​sim, mes​m o que os ho​m ens de
Le​land es​ti​ves​sem com tra​j es de plás​ti​c o, que re​têm gran​de par​te do ca​lor
do cor​po, o apa​r e​lho acu​sa​r ia sua pre​sen​ç a num raio de mui​tos qui​lô​m e​tros.
Jack vas​c u​lhou a área dos fun​dos do mo​tel, ao nor​te, até ter cer​te​za de que
não ha​via nin​guém por ali. Na di​r e​ç ão oes​te tam​bém não en​c on​trou ves​tí​gio de
pre​sen​ç a hu​m a​na. En​tão, pos​tou-se à ja​ne​la do lado sul.
Ma​r eie aca​ba​r a de co​lo​r ir a úl​ti​m a Lua do ál​bum e apro​xi​m a​r a-se, ca​la​da,
ven​do-o tra​ba​lhar. Tal​vez gos​tas​se dele, pois Jack sem​pre lhe dava mui​ta aten​ç ão,
mes​m o que ela se​quer o olhas​se. Tal​vez es​ti​ves​se com medo e se sen​tis​se mais
se​gu​r a sa​ben​do-o por per​to, ou qual​quer ou​tra ra​zão mais di​f í​c il de iden​ti​f i​c ar.
Jack sa​bia que por ora não ha​via o que fa​zer por ela, além de con​ti​nu​a r fa​lan​do
com cal​m a, em voz bai​xa, e dei​xar que a me​ni​na o se​guis​se a toda par​te.
Jor​j a tam​bém o acom​pa​nha​va e, em​bo​r a não lhe fi​zes​se per​gun​tas, nem in​-
ter​f e​r is​se em seu cam​po de vi​são, per​tur​ba​va-o mui​to. Era uma mu​lher mui​to
bo​ni​ta, po​r ém isso não era o mais im​por​tan​te. Para Jack Twist, o im​por​tan​te é que
gos​ta​va dela. Per​c e​bia que Jor​j a sen​tia-se bem a seu lado, mas não sa​bia se a
atra​ía como ho​m em. Pen​san​do bem, o que ha​ve​r ia de atra​e n​te num cri​m i​no​so
con​f es​so, de cara amas​sa​da e, ain​da por cima, ves​go? De qual​quer modo, po​de​-
ri​a m ser ami​gos, o que era me​lhor que nada.
Fi​nal​m en​te, es​pi​a n​do da ja​ne​la da sala, Jack en​c on​trou o que pro​c u​r a​va: on​-
das de ca​lor emi​ti​das por se​r es hu​m a​nos. Duas mar​c as co​lo​r i​das, mui​to ní​ti​das no
vi​sor, es​c on​di​das nas co​li​nas, a qua​tro​c en​tos me​tros do mo​tel. Os da​dos nu​m é​r i​-
cos in​di​c a​vam as di​m ensões apro​xi​m a​das da fon​te: tra​ta​va-se, sem dú​vi​da, de
dois ho​m ens. Ago​r a bas​ta​va-lhe exa​m i​nar a área com um bom bi​nó​c u​lo e mui​ta
pa​c i​ê n​c ia pois, com cer​te​za, os ho​m ens usa​vam tra​j es de ca​m u​f la​gem.
— Bin​go! — Jack ex​c la​m ou de re​pen​te.
Jor​j a não dis​se pa​la​vra, por​que, como to​dos, apren​de​r a bem a li​ç ão da vés​-
pe​r a: tudo que di​zi​a m po​dia es​tar sen​do ou​vi​do de lon​ge.
Ajus​tan​do as len​tes, Jack con​ti​nuou a ob​ser​var. Os ho​m ens es​ta​vam em pé
so​bre a neve, e um de​les car​r e​ga​va um pos​san​te bi​nó​c u​lo pen​du​r a​do ao pes​c o​ç o.
Jack di​r i​giu-se para a ja​ne​la que se abria do lado les​te, re​to​m ou o ter​m o​de​te​tor e
vas​c u​lhou toda a área a sua fren​te: nada. Os ho​m ens de Le​land con​c en​tra​vam-
se no sul, di​a n​te da fa​c ha​da prin​c i​pal do mo​tel — e da úni​c a via de en​tra​da e sa​í​-
da.
Falkirk su​bes​ti​m a​r a Jack Twist. Co​nhe​c ia sua his​tó​r ia e sa​bia que era um su​-
jei​to es​per​to, mas ain​da não con​se​guia ava​li​a r o grau de sua es​per​te​za.
Á uma e qua​r en​ta, a neve co​m e​ç ou a cair em flo​c os le​ves e ma​c i​os. Vin​te
mi​nu​tos de​pois, quan​do Er​nie e Dom vol​ta​r am da mis​são de re​c o​nhe​c i​m en​to da
área ex​ter​na de Thun​der Hill, Jack cha​m ou Er​nie:
— Da​qui a pou​c o, quan​do co​m e​ç ar a ne​var de ver​da​de, vai apa​r e​c er gen​te
que​r en​do se hos​pe​dar aqui, pois mes​m o sem os lu​m i​no​sos ace​sos, há de ver os
car​r os no es​ta​c i​o​na​m en​to. Não será fá​c il ex​pli​c ar que o mo​tel está aber​to para
uns e fe​c ha​do para ou​tros. Por isso, le​vem to​dos os car​r os para os fun​dos. Não
que​r o gen​te ron​dan​do aqui.
Era um tru​que. Sa​ben​do que os ho​m ens de Le​land o ou​vi​a m, in​ven​ta​r a aque​-
la his​tó​r ia para jus​ti​f i​c ar os car​r os es​ta​c i​o​na​dos nos fun​dos, fora do al​c an​c e dos
vi​gi​a s. Mais tar​de, quan​do es​c u​r e​c es​se, to​dos eles par​ti​r i​a m do Mo​tel Tran​qüi​li​-
da​de, e Jack não que​r ia que nin​guém se​guis​se o ca​m i​nhão e o jipe lo​ta​dos.
Er​nie pis​c ou o olho, fez um si​nal de po​si​ti​vo com o po​le​gar e cha​m ou Dom:
— Ve​nha. Va​m os tra​tar dis​so ago​r a, para não ter que sair de​bai​xo da neve,
mais tar​de.
Na co​zi​nha, Ned e Sandy ul​ti​m a​vam o pre​pa​r o dos san​du​í​c hes que le​va​r i​a m
na vi​a ​gem. De​pois, era só es​pe​r ar que Fay e e Gin-ger vol​tas​sem.
A ne​vas​c a au​m en​ta​va de tem​pos em tem​pos, trans​f or​m an​do o dia em noi​te.
As duas e qua​r en​ta, o ven​to ces​sou e a neve pas​sou a cair como um véu bran​c o,
re​du​zin​do a vi​si​bi​li​da​de a pou​c o mais de dez me​tros. Nas co​li​nas, os ho​m ens da
DERO re​c o​lhe​r am o equi​pa​m en​to de vi​gi​lân​c ia e tra​ta​r am de pro​c u​r ar ou​tro
pos​to de ob​ser​va​ç ão, mais pró​xi​m o do mo​tel.
Jack não ti​r a​va os olhos do re​ló​gio. Sen​tia que o tem​po se es​go​ta​va, mas não
sa​bia quan​tas ho​r as ain​da lhes res​ta​vam.
En​quan​to o te​nen​te Hor​ner con​ser​ta​va o de​te​tor de men​ti​r as, Falkirk es​bra​ve​-
ja​va com o ma​j or Fu​ga​ta, che​f e da se​gu​r an​ç a de Thun​der Hill, e seu as​sis​ten​te, o
te​nen​te Helms, afir​m an​do que am​bos en​c a​be​ç a​vam a lis​ta de pos​sí​veis trai​do​r es.
Fez dois ini​m i​gos de mor​te, o que ab​so​lu​ta​m en​te não o pre​o​c u​pa​va. Não pre​c i​sa​-
va que os su​bal​ter​nos o amas​sem: que​r ia só que sen​tis​sem medo.
Ain​da não ter​m i​na​r a o dis​c ur​so quan​do che​gou o ge​ne​r al Al-va​r a​do, um ho​-
mem gor​do e bar​r i​gu​do, com de​dos gros​sos como sal​si​c has e vas​ta pa​pa​da. O
ge​ne​r al en​trou aos ber​r os, sem pe​dir li​c en​ç a:
— E ver​da​de o que o dou​tor Ben​nell aca​ba de me co​m u​ni​c ar, Falkirk? Não
pode ser! Você não se atre​ver ia a re​pro​gra​m ar a se​gu​r an​ç a... e nos dei​xar pre​-
sos aqui!
Os olhos fu​zi​lan​do, mas a voz con​tro​la​da e res​pei​to​sa, Le​land lem​brou-lhe
que era res​pon​sá​vel pela se​gu​r an​ç a do pro​j e​to e, por​tan​to, ti​nha au​to​r i​da​de su​f i​-
ci​e n​te para in​tro​du​zir, quan​do bem en​ten​des​se, o có​di​go se​c re​to nos com​pu​ta​do​-
res que vi​gi​a ​vam en​tra​das e sa​í​das.
— E quem lhe dis​se isso? — Al va​r a​do per​gun​tou.
— O ge​ne​r al Maxwell D. Rid​de​nhour, che​f e do Es​ta​do-Mai​or do Exér​c i​to
dos Es​ta​dos Uni​dos, se​nhor.
— Não acre​di​to. — Não era pos​sí​vel. Não po​dia ser. O Es​ta​do-Mai​or ja​-
mais o de​sau​to​r i​za​r ia pe​r an​te um sim​ples co​r o​nel.
— Por que não liga para o ge​ne​r al Maxwell, se​nhor, e per​gun​ta a ele? —
Le​land re​ti​r ou um car​tão do bol​so e es​ten​deu-o a Alva-rado. — Aqui está o nú​-
me​r o.
— Eu sei o nú​m e​r o! — gri​tou Al​va​r a​do, fu​zi​lan​do-o com o olhar.
— Esse é o te​le​f o​ne par​ti​c u​lar do ge​ne​r al. Caso ele es​te​j a de fol​ga... o se​-
nhor o en​c on​tra​r á em casa. Creio que ele con​c or​da​r á em aten​dê-lo, já que en​-
fren​ta​m os uma gra​ve emer​gên​c ia.
Es​pu​m an​do de rai​va, Al​va​r a​do agar​r ou o car​tão, deu meia-vol​ta e saiu da
sala como um fu​r a​c ão. Vol​tou quin​ze mi​nu​tos de​pois, pá​li​do como um ca​dá​ver:
— Está con​f ir​m a​do — dis​se, sem olhar para nin​guém. — A par​tir des​te
mo​m en​to, o se​nhor é o co​m an​dan​te da base de Thun​der Hill.
— Não. O se​nhor per​m a​ne​c e no co​m an​do.
— Mas... sou seu pri​si​o​nei​r o...
— O se​nhor per​m a​ne​c e no co​m an​do — re​pe​tiu o co​r o​nel, im​pa​c i​e n​te —,
no ple​no gozo de sua au​to​r i​da​de. E será obe​de​c i​do sem​pre que suas or​dens não
en​tra​r em em con​f li​to com as ins​tru​ç ões que da​r ei ao pes​so​a l no sen​ti​do de im​pe​-
dir que ele​m en​tos pe​r i​go​sos... que po​nham em ris​c o a se​gu​r an​ç a da co​m u​ni​da​-
de... es​c a​pem des​ta base.
Al​va​r a​do ba​lan​ç ou a ca​be​ç a e co​m en​tou:
— Pelo que ouvi do dou​tor Ben​nell, o se​nhor pa​r e​c e con​ven​c i​do de que nos
trans​f or​m a​m os numa es​pé​c ie de... mons​tros. Isso é lou​c u​r a to​tal... Mons​tros...
Ig​no​r an​do o co​m en​tá​r io, Falkirk pros​se​guiu:
— Como o se​nhor sabe, um ou mais ofi​c i​a is ou ci​e n​tis​tas re​si​den​tes nes​ta
base sa​bo​ta​r am a se​gu​r an​ç a e en​vi​a ​r am men​sa​gens a al​gu​m as tes​te​m u​nhas,
com o ob​j e​ti​vo de​li​be​r a​do de atraí-las para cá. Sem dú​vi​da os cri​m i​no​sos es​pe​r a​-
vam fa​zer com que elas se lem​bras​sem do que vi​r am. O pla​no era en​vol​ver a
im​pren​sa e a opi​ni​ã o pú​bli​c a, e nos for​ç ar a re​ve​lar ao mun​do nos​so se​gre​do.
Não des​c ar​to a pos​si​bi​li​da​de de que es​ses trai​do​r es te​nham sido mo​vi​dos por
boas in​ten​ç ões. Os ci​e n​tis​tas são in​gê​nuos e in​c a​pa​zes de ava​li​a r os ris​c os a que
nos expõem.
— Mons​tros... — Al​va​r a​do re​pe​tiu, ain​da ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a.
Con​ser​ta​do o de​te​tor, Le​land en​c ar​r e​gou Fu​ga​ta e Helms de
in​ter​r o​gar to​dos os ofi​c i​a is de qual​quer pa​ten​te e os ci​e n​tis​tas re​si​den​tes em
Thun​der Hill; or​de​nou-lhes que co​m e​ç as​sem pe​los que ti​nham co​nhe​c i​m en​to do
se​gre​do es​c on​di​do na base fa​zia de​zoi​to me​ses.
— Se não des​c o​bri​r em o trai​dor eu os mato — dis​se, na voz fria de sem​pre.
Não pre​c i​sa​va de emo​ç ão para sa​ber o que ti​nha a fa​zer. Se não en​c on​tras​sem o
trai​dor, só ha​ve​r ia uma ex​pli​c a​ç ão pos​Sí​vel... o com​plô as​su​m i​r a pro​por​ç ões de
mo​tim e en​vol​via a to​dos em Thun​der Hill; a con​ta​m i​na​ç ão alas​tra​r a-se e to​-
dos, na base, es​ta​vam in​f e​ta​dos. Cla​r o que te​r ia de matá-los.
À uma e qua​r en​ta e cin​c o, Le​land e Hor​ner vol​ta​r am a Shenk-fi​e ld, dei​xan​do
o pes​so​a l do de​pó​si​to tran​c a​do em sua gi​gan​tes​c a tum​ba sub​terrâ​nea. Mal che​ga​-
ram re​c e​be​r am más no​tí​c i​a s, por cor​te​sia de Fos​ter Pol​ni​c hev, di​r e​tor do FBI em
Chi​c a​go.
Para co​m e​ç ar, Cal​vin Shark​le es​ta​va mor​to, em Evans​ton, Il​li​nois. Se isso
fos​se tudo, até que não se​r ia tão mau, po​r ém ha​via mais: além dele ha​vi​a m mor​-
ri​do a irmã, o cu​nha​do e uma equi​pe in​tei​r a do es​qua​drão es​pe​c i​a l. O as​sun​to era
man​c he​te dos jor​nais e das te​le​visões da ci​da​de, evi​den​te​m en​te por cau​sa da vi​o​-
lên​c ia. Os vam​pi​r os da im​pren​sa en​c on​tra​r am san​gue na Rua 0’Ban​non e não de​-
so​c u​pa​r i​a m a área en​quan​to não se sa​c i​a s​sem. Pior: as lou​c u​r as que Shark​le gri​-
ta​r a da ja​ne​la des​per​ta​r am a cu​r i​o​si​da​de de um jo​vem re​pór​ter à caça de ma​té​-
ri​a s sen​sa​c i​o​na​lis​tas. Ha​via no​tí​c i​a s de que es​ta​r ia a ca​m i​nho de Ne​va​da, com
o en​de​r e​ç o e te​le​f o​ne do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de na agen​da. Era ra​zo​á ​vel ima​gi​nar
que po​de​r ia se apro​xi​m ar de Thun​der Hill.
Como se ain​da não bas​tas​se, Pol​ni​c hev fa​la​va de “coi​sas es​tra​nhís​si​m as que
an​dam acon​te​c en​do por aqui”. Por exem​plo: um ti​r o​teio en​tre a po​lí​c ia e um
mar​gi​nal, num dos cor​ti​ç os do cen​tro, ter​m i​nou com um ho​m em mor​to e um
me​ni​no... res​sus​c i​ta-
do. O pa​tru​lhei​r o Win​ton Tolk, cuja vida o pa​dre Cro​nin sal​va​r a, re​a ​li​zou o
mi​la​gre com o fi​lho dos Men​do​za. Isso sig​ni​f i​c a​va que o pa​dre con​ta​gi​a ​r a o po​li​-
ci​a l... E o que mais lhe trans​m i​ti​r a nes​se con​tá​gio, além da mis​te​r i​o​sa ca​pa​c i​da​de
de ci​c a​tri​zar te​c i​dos? De​via ser algo mui​to ter​r í​vel... um mons​tro pe​r i​go​so,
que cres​c ia den​tro de Tolk.
Co​m e​ç a​va o apo​c a​lip​se. Le​land sen​tiu náu​se​a s ao sa​ber das no​tí​c i​a s de Chi​-
ca​go.
O FBI in​f or​m a​va que o pa​tru​lhei​r o ain​da não fa​la​r a à im​pren​sa e es​ta​va fe​-
cha​do em casa, sem que​r er ver nin​guém. No en​tan​to, como cen​te​nas de re​pór​te​-
res cer​c as​sem a casa, era de se es​pe​r ar que a qual​quer mo​m en​to um de​les aca​-
ba​r ia en​tran​do e fa​lan​do com o po​li​c i​a l. Não ha​via como im​pe​dir que Tolk ci​tas​se
o nome de Bren​dan Cro​nin. E de Cro​nin a Emmy Hal​bourg era ape​nas um pas​so.
A me​ni​na... O ou​tro pe​sa​de​lo! Pol​ni​c hev con​tou que, após a in​c rí​vel res​sur​-
rei​ç ão do fi​lho dos Men​do​za, cor​r e​r a a vi​si​tar os Hal​bourg, para ver se a ga​r o​ta
tam​bém an​da​va fa​zen​do mi​la​gres, já que fora cu​r a​da por Bren​dan. O que en​-
con​trou qua​se o fez des​m ai​a r. Sua pri​m ei​r a re​a ​ç ão foi pre​ve​nir a fa​m í​lia para
que se man​ti​ves​se lon​ge da im​pren​sa. Em se​gui​da, po​r ém, te​m en​do que
uma sim​ples ad​ver​tên​c ia não fos​se su​f i​c i​e n​te, re​sol​veu pren​dê-los. Na​que​le ins​-
tan​te, os Hal​bourg es​ta​vam num dos en​de​r e​ç os se​c re​tos que o FBI usa​va re​gu​lar​-
men​te, sob a vi​gi​lân​c ia cons​tan​te de seis agen​tes. Os pri​m ei​r os re​la​tó​r i​os eram
de​sa​ni​m a​do​r es. Mais as​sus​ta​dos com Emmy do que ela com suas ar​m as, os
agen​tes per​m a​ne​c i​a m uni​dos todo o tem​po, ao in​vés de re​ve​zar-se. Ti​nham in​tru​-
ções cla​r as para ma​tar a fa​m í​lia in​tei​r a ao pri​m ei​r o mo​vi​m en​to sus​pei​to ou in​-
com​preen​sí​vel de Emmy.
— Não sei de que adi​a n​ta​r á matá-los — Pol​ni​c hev di​zia ao te​le​f o​ne. — Já
não há como man​ter o se​gre​do. Per​de​m os o con​tro​le. A úni​c a sa​í​da que vejo é
abrir o jogo. Ir aos jor​nais e con​tar tudo.
— Você está lou​c o?! — Le​land ber​r ou.
— Não po​de​m os sair por aí ma​tan​do pes​so​a s a tor​to e a di​r ei​to! O que é
que você quer? Que ma​te​m os os Hal​bourg, os Tolk,
os Men​do​za, to​das as suas tes​te​m u​nhas do mo​tel?! Não há se​gre​do que jus​ti​-
fi​que ta​m a​nha car​ni​f i​c i​na!
— Você nao sabe o que está di​zen​do! — Falkirk con​ti​nu​a ​va a gri​tar. — A
ques​tão já não se re​su​m e em di​vul​gar o se​gre​do ou não! O se​gre​do não tem mais
tan​ta im​por​tân​c ia. O pro​ble​m a é ou​tro! E a es​pé​c ie hu​m a​na que está em pe​r i​go!
Se di​vul​gar​m os o se​gre​do ago​r a, não po​de​r e​m os sair por aí com​ba​ten​do a in​f ec​-
ção por nos​sos mei​os, por​que es​ses po​lí​ti​c os mal​di​tos cai​r ão em cima de nós,
com os li​be​r ais e com to​dos os idi​o​tas do país, e... aí, sim, es​ta​r á tudo per​di​do!
— Pois a jul​gar pelo que te​nho vis​to aqui, o pe​r i​go não é tão sé​r io quan​to
você pen​sa — Pol​ni​c hev ar​gu​m en​tou. — Cla​r o que ins​truí os agen​tes que es​tão
vi​gi​a n​do os Hal​bourg a te​r em cui​da​do, mas não acre​di​to que a me​ni​na seja uma
ame​a ​ç a... Emmy não é um mons​tro! E bo​ni​ta, sau​dá​vel. Não sei o que Bren​dan
fez com ela, nem ima​gi​no como ela con​se​gue fa​zer to​das aque​las coi​sas, mas
apos​to mi​nha mão di​r ei​ta como a ga​r o​ta não ame​a ​ç a​r ia a vida de uma mos​c a!
Ah, se o se​nhor a vis​se... E... in​c rí​vel! Acho que es​ta​m os as​sis​tin​do ao es​pe​tá​c u​lo
mais des​lum​bran​te... des​de que o mun​do é mun​do!
— Cla​r o... — Falkirk ten​tou con​tro​lar-se. — E exa​ta​m en​te isso que o ini​m i​-
go quer nos fa​zer pen​sar. Se va​c i​lar​m os... não sa​be​r e​m os como lu​tar. E es​ta​r e​-
mos der​r o​ta​dos an​tes de a guer​r a co​m e​ç ar.
— Es​c u​te... Se Cro​nin, Cor​vai​sis, Tolk e Emmy es​ti​ves​sem con​ta​m i​na​dos...
se já não fos​sem gen​te como nós, po​r ém mons​tros, não es​ta​r i​a m fa​zen​do mi​la​-
gres! Es​ta​r i​a m es​c on​di​dos, es​pe​r an​do o mo​m en​to de ata​c ar! E ten​ta​r i​a m con​ta​-
mi​nar o mai​or nú​m e​r o pos​sí​vel de pes​so​a s.
— Não sa​be​m os o que po​dem es​tar pla​ne​j an​do — Le​land res​pon​deu, a voz
cal​m a. — Não sa​be​m os como fun​c i​o​na o agen​te in​f ec​c i​o​so. Tal​vez o mi​c ró​bio
tome con​ta do cé​r e​bro de​les. Tal​vez os tor​ne es​c ra​vos de sua von​ta​de. E pos​sí​vel
até que o hos​pe​dei​r o nem sai​ba que está con​ta​m i​na​do. Nem sa​be​m os se o agen​-
te é mes​mo um mi​c ró​bio... De qual​quer modo, essa gen​te já não é hu​m a​na e é
com isso que de​ve​m os nos pre​o​c u​par. Não pode-
mos con​f i​a r ne​les! Tra​te de pren​der tam​bém os Tolk. Toda a fa​m í​lia. Po​nha-
os de qua​r en​te​na. Ur​gen​te​m en​te!
— Já lhe dis​se que a casa dos Tolk está cer​c a​da de re​pór​te​r es. Se for​m os lá
pren​dê-los ama​nhã o se​nhor verá meu re​tra​to nas pri​m ei​r as pá​gi​nas dos jor​nais...
E adeus his​tó​r ia de va​za​m en​to quí​m i​c o em Shenk​f i​e ld! Em​bo​r a eu já não con​-
cor​de com a idéia de man​ter as men​ti​r as que in​ven​ta​m os, não que​r o ser o pri​-
mei​r o a pa​gar o pato.
A con​tra​gos​to, Le​land con​c or​dou. Os ar​gu​m en​tos fa​zi​a m sen​ti​do.
— Es​tão vi​gi​a n​do a casa, pelo me​nos? — per​gun​tou.
— Dia e noi​te.
— E quan​to aos Men​do​za? Se Bren​dan to​c ou em Tolk e o con​ta​m i​nou, e
Tolk to​c ou no ga​r o​to...
— Es​ta​m os de olho na casa, mas tam​bém não po​de​m os nos apro​xi​m ar
mui​to por cau​sa da im​pren​sa.
O ter​c ei​r o pe​sa​de​lo era o pa​dre Wy ​c a​zik. Es​ti​ve​r a com os Men​do​za e sa​í​r a
de lá di​r e​ta​m en​te para a casa de Emmy, an​tes de Pol-ni​c hev sa​ber o que se pas​-
sa​va. Ho​r as mais tar​de, um dos agen​tes do FBI iden​ti​f i​c ou-o en​tre a mul​ti​dão que
se aglo​m e​r a​va em fren​te à casa de Shark​le, no mo​m en​to da ex​plo​são. E dali em
di​a n​te, nin​guém mais o viu... fa​zia mais de seis ho​r as.
— E cla​r o que ele sabe de mui​ta coi​sa. Bas​ta so​m ar dois e dois para des​c o​-
brir pelo me​nos boa par​te da ver​da​de. Ou​tro bom mo​ti​vo para abrir​m os o jogo e
não ser​m os apa​nha​dos de cal​ç a cur​ta...
Para Le​land Falkirk, era como se o mun​do de​sa​bas​se so​bre seus om​bros. Es​-
ta​vam per​den​do o con​tro​le... E ele con​su​m i​r a anos e anos apren​den​do a vi​ver
como se tudo exis​tis​se para ser con​tro​la​do. Não se​r ia pos​sí​vel exis​tir vida sem ha​-
ver con​tro​le. Em pri​m ei​r o lu​gar, au​to​c on​tro​le: era pre​c i​so trei​nar-se até a exaus​-
tão, para do​m i​nar os pró​pri​os im​pul​sos, ven​c er o de​se​j o e não aca​bar der​r o​ta​do
por ví​c i​os re​pug​nan​tes como be​bi​da, dro​gas, sexo — des​de me​ni​no a fa​m í​lia en​-
si​na​va-lhe essa li​ç ão. De​pois, vi​nha o con​tro​le in​te​lec​tu​a l: era pre​c i​so acre​di​tar
na ló​gi​c a e na ra​zão, pois a na​tu​r e​za cor​r om​pi​da do ho​m em vi​via acos​sa​da por
bai​xos ins-
tin​tos, su​pers​ti​ç ão, ir​r a​c i​o​na​li​da​de. Essa se​gun​da li​ç ão Le​land apren​de​r a ape​-
sar da fa​m í​lia, quan​do fu​gia de casa para as​sis​tir aos cul​tos de uma sei​ta fa​ná​ti​c a,
cu​j os adep​tos ba​ba​vam e ro​la​vam pelo chão como ani​m ais.
Me​ni​no, Le​land obri​ga​va-se a pre​sen​c i​a r os ri​tu​a is que apa​vo​r a​vam por​que
já acre​di​ta​va fir​m e​m en​te que de​via apren​der a con​tro​lar o medo... para não en​-
lou​que​c er. Aos pou​c os, apren​de​r a a con​tro​lar o ter​r or que lhe ins​pi​r a​vam o pai e
a mãe, quan​do o es​pan​c a​vam “para seu pró​prio bem”, di​zi​a m, para “li​vrá-lo
do de​m ô​nio”. Um bom mé​to​do de apren​di​za​do era não re​sis​tir à dor, mas sub​-
me​ter-se a ela... pro​c u​r á-la, até tor​nar-se in​sen​sí​vel. Por​que nada é ca​paz de
cau​sar medo quan​do se tem cer​te​za de que e pos​sí​vel su​por​tar a dor. Con​tro​le.
Le​land era o ho​m em do con​tro​le. Con​tro​la​va tudo: o cor​po, a vida, seus ho​m ens,
qual​quer mis​são que lhe fos​se atri​bu​í​da.
E ago​r a, pela pri​m ei​r a vez em mais de qua​r en​ta anos, sen​tia que o con​tro​le
lhe es​c a​pa​va. Pela pri​m ei​r a vez, des​de o tem​po dos cul​tos dos fa​ná​ti​c os, sen​tia-se
à bei​r a do pâ​ni​c o.
— Vou des​li​gar — dis​se afi​nal —, mas não saia daí. Man​da​r ei os ra​pa​zes
pre​pa​r a​r em uma reu​ni​ã o por te​le​f o​ne. Fa​la​r e​m os mais tar​de... eu, você, seu su​-
pe​r i​or, Rid​de​nhour em Washing​ton e nos​so con​ta​to na Casa Bran​c a. Va​m os de​c i​-
dir a nova li​nha de ação. Te​r e​m os de ser du​r os e pre​c i​sos. Não me dei​xa​r ei en​-
vol​ver pe​las fan​ta​si​a s que você está ali​m en​tan​do. Re​a s​su​m i​r e​m os o con​tro​le de
tudo. Va​m os aca​bar com esse pes​so​a l in​f e​ta​do, que já co​m e​ç a a fe​der. Va​m os
var​r ê-los da face da ter​r a, cus​te o que cus​tar, mes​m o que se​j am ga​r o​ti​nhas lin​-
das e pa​dre​c os bon​do​sos. Pre​c i​sa​m os sal​var a pró​pria pele. Pode apos​tar... eu dou
um jei​to nis​so tudo!
Os ho​m ens do car​r o se​gui​r am Fay e e Gin​ger até a sa​í​da da Ro​do​via 80. Gin​-
ger co​m e​ç a​va a pen​sar que eles se​r i​a m bem ca​pa​zes de es​ta​c i​o​nar jun​to à en​tra​-
da do mo​tel, como hós​pe​des nor​m ais. En​tre​tan​to, o car​r o pa​r ou a uns trin​ta me​-
tros de dis​tân​c ia e lá fi​c ou, sob a neve. Eram duas ho​r as e qua​r en​ta e cin​c o mi​nu​-
tos.
Fay e es​ta​c i​o​nou em fren​te à en​tra​da da re​c ep​ç ão, Dom e Er​nie
cor​r e​r am para aju​dá-las a des​c ar​r e​gar as com​pras que ha​vi​a m fei​to em
Elko: más​c a​r as e abri​gos para en​f ren​tar a neve, bo​tas e lu​vas tér​m i​c as, dois re​-
vól​ve​r es semi-au​to​m á​ti​c os, mu​ni​ç ão para es​sas e as ou​tras ar​m as, lan​ter​nas,
duas bús​so​las, um pe​que​no lam​pi​ã o de ace​ti​le​no com dois bu​j ões de gás e uma
in​f i​ni​da​de de itens me​no​r es.
Er​nie abra​ç ou Fay e, Dom abra​ç ou Gin​ger, e os dois ho​m ens dis​se​r am jun​-
tos, em coro:
— Eu es​ta​va pre​o​c u​pa​do com você.
Rin​do, as duas res​pon​de​r am igual​m en​te em coro:
— Eu tam​bém es​ta​va pre​o​c u​pa​da com você.
De​pois, Er​nie bei​j ou Fay e, e Dom bei​j ou Gin​ger, e nin​guém achou nada es​-
tra​nho ou sur​preen​den​te. Era nor​m al. Pre​vi​sí​vel e es​pe​r a​do. Dom e Gin​ger sen​ti​-
am-se ín​ti​m os e pró​xi​m os como se fos​sem ma​r i​do e mu​lher des​de há três dé​c a​-
das, como Fay e e Er​nie. Fora as​sim já no mo​m en​to em que se abra​ç a​r am na
pis​ta de pou​so do ter​m i​nal aé​r eo de Elko, dois dias an​tes.
De​pois de em​pi​lhar as com​pras num can​to da sala, to​dos fo​r am bus​c ar to​das
as ar​m as exis​ten​tes em casa. Gin​ger ar​r u​m a​va as ca​dei​r as ao re​dor da mesa, a
mes​m a onde Dom e Bren​dan ha​vi​a m tes​ta​do seus po​de​r es, na vés​pe​r a, Bren​dan
fi​ta​va as ar​m as com um olhar mis​to de medo e des​gos​to, e já não pa​r e​c ia tão oti​-
mis​ta e en​tu​si​a s​m a​do.
— Al​gum pro​ble​m a? — Gin​ger per​gun​tou-lhe.
— Não so​nhei on​tem — res​pon​deu ele. — Não vi a luz dou​r a​da, não ouvi a
voz que me cha​m a​va. Sabe, des​de o co​m e​ç o eu re​pe​tia para mim mes​m o que
não era Deus quem me cha​m a​va para cá. Mas, no fun​do do co​r a​ç ão, eu que​r ia
exa​ta​m en​te o con​trá​r io... que​r ia ter cer​te​za de que Ele cha​m a​va. O pa​dre Wy ​c a​-
zik es​ta​va cer​to... Não per​di com​ple​ta​m en​te a fé. Ain​da há em mim al​gu​m a coi​-
sa mui​to pro​f un​da, que tal​vez me faça vol​tar à Igre​j a. Te​nho pen​sa​do mui​to nis​-
so, ul​ti​m a​m en​te. Não é ape​nas a fé, a cren​ç a sin​c e​r a na exis​tên​c ia de Deus... E
mais do que isso... pre​c i​so de Deus! Mas ago​r a, quan​do per​c e​bo tudo, não con​si​-
go mais so​nhar, já não vejo aque​la luz dou​r a​da... E como se, de uma vez por to​-
das, Deus es​ti​ves​se se es​que​c en​do de mim.
— Não, não é as​sim... Gin​ger sor​r iu e to​m ou-lhe as mãos, ten​tan​do trans​-
mi​tir-lhe co​r a​gem. — Deus ja​m ais aban​do​na os que cre​e m nele. Os ho​m ens, às
ve​zes, es​que​c em-se de Deus, mas Ele não se es​que​c e de seus fi​lhos. Deus é per​-
dão e amor... Não é isso que os pa​dres en​si​nam aos fi​é is?
— Pa​r e​c e que foi você que es​tu​dou em Roma...
Ela aper​tou-lhe as mãos e, olhan​do-o bem nos olhos, pros​se​guiu:
— Ne​nhum de nós tem so​nha​do, e acho que a ra​zão é a mes​m a... Nos​sos
so​nhos são ape​nas in​dí​c i​os de lem​bran​ç as que pro​c u​r am vir à tona, tal​vez em ter​-
mos de sím​bo​los, não sei. Mas, seja lá como for, ain​da que seu so​nho seja a ex​-
pres​são de um cha​m a​m en​to de Deus, é bem ra​zo​á ​vel que você já não so​nhe...
por​que está aqui. Que tal? Deus cha​m ou, e você aten​deu. Pron​to. Para que Deus
per​de​r ia tem​po e ener​gia cha​m an​do você, se você já che​gou? Pode não ser uma
boa ex​pli​c a​ç ão te​o​ló​gi​c a, mas faz sen​ti​do.
Bren​dan riu bai​xi​nho, os olhos um pou​c o me​nos tris​tes.
A vol​ta da mesa, os ou​tros iam to​m an​do seus lu​ga​r es. Pre​o​c u​pa​da, Gin​ger
ob​ser​vou que Ma​r eie pa​r e​c ia cada vez mais alheia. Fi​c ou sen​ta​da onde Jor​j a a
co​lo​c a​r a, ca​bis​bai​xa, o ca​be​lo es​c on​den​do-lhe o ros​to, as mão​zi​nhas cru​za​das no
colo, re​pe​tin​do sem​pre a mes​m a pa​la​vra: “A Lua”... De​via ter a sen​sa​ç ão de que
es​ta​va pres​tes a lem​brar-se de al​gu​m a coi​sa im​por​tan​te, que a qual​quer mo​m en​-
to sur​gi​r ia ni​ti​da​m en​te em sua me​m ó​r ia. Sem me​c a​nis​m os psi​c o​ló​gi​c os mui​to
só​li​dos, numa ida​de em que re​a ​li​da​de e fan​ta​sia são qua​se a mes​m a coi​sa, dei​xa​-
va-se le​var pela in​ten​si​da​de da sen​sa​ç ão, mer​gu​lhan​do em si pró​pria, cada vez
mais fun​do, à pro​c u​r a da re​c or​da​ç ão.
— Ela vai fi​c ar boa — Gin​ger ga​r an​tiu a Jor​j a, que fi​ta​va a me​ni​na com
olhos úmi​dos de lá​gri​m as. — Não sei ain​da quan​do ou como... mas te​nho cer​te​za
de que vai fi​c ar boa.
— E... — Jor​j a res​pi​r ou fun​do e ten​tou sor​r ir, agra​de​c i​da. — Ela tem que
fi​c ar boa!
Jack e Ned ter​m i​na​r am de pren​der a fo​lha de com​pen​sa​do
di​a n​te do vi​dro da por​ta e tam​bém fo​r am para a mesa. Ago​r a não fal​ta​va
mais nin​guém.
Em rá​pi​das pa​la​vras, Fay e e Gin​ger fi​ze​r am o re​la​tó​r io da vi​si​ta aos Ja​m i​-
son. Fa​la​r am dos ho​m ens que as ha​vi​a m se​gui​do e des​c o​bri​r am que Er​nie e Dom
tam​bém ti​ve​r am com​pa​nhia em seu pas​seio.
— Se an​dam por aí, à vis​ta de to​dos, é por​que es​tão pron​tos para cair em
cima de nós — co​m en​tou Jack.
— Tal​vez seja bom al​guém dar uma es​pi​a ​da para ver se já não es​tão che​-
gan​do. Eu vou lá. — Ned le​van​tou-se, apro​xi​m ou-se da ja​ne​la e olhou por uma
fres​ta, fo​c a​li​zan​do o es​ta​c i​o​na​m en​to.
A pe​di​do de Jack, Er​nie e Dom con​ta​r am so​bre a ex​pe​di​ç ão de re​c o​nhe​c i​-
men​to nos ar​r e​do​r es de Thun​der Hill. Jack ou​via, aten​to, per​gun​tan​do so​bre de​ta​-
lhes cujo sig​ni​f i​c a​do Gin​ger não con​se​guia adi​vi​nhar. As gra​des do por​tão ti​nham
fios de ara​m e tran​ç a​do? E a cer​c a? Como eram os mon​tan​tes de cer​c a? Por
fim, ele per​gun​tou:
— Ha​via guar​das vi​gi​a n​do a cer​c a? Cães?
— Não — res​pon​deu Dom. — Não ha​via pe​ga​das na neve. E pro​vá​vel que
a se​gu​r an​ç a seja toda ele​trô​ni​c a. Eu ti​nha es​pe​r an​ç as de en​trar lá, mas, de​pois do
que vi​m os, acho que é lou​c u​r a.
— Cla​r o que va​m os en​trar! — Jack de​c la​r ou, na voz cal​m a e se​gu​r a de
sem​pre. — Não vai ha​ver pro​ble​m a até che​gar​m os à en​tra​da do de​pó​si​to, pro​pri​-
a​m en​te dito. Quan​to a en​trar na mon​ta​nha... ve​r e​m os o que é pos​sí​vel fa​zer,
quan​do che​gar​m os lá.
Sur​pre​so, Dom olhou para Er​nie, que, por sua vez, fran​ziu a tes​ta. Pela cara
dos dois, Gin​ger con​c luiu que Thun​der Hill era to​tal​m en​te inex​pug​ná​vel.
— Você dis​se... “en​trar na mon​ta​nha”? — Dom per​gun​tou.
— Nin​guém en​tra lá sem ser con​vi​da​do — dis​se Er​nie, ba​lan​ç an​do a ca​be​-
ça.
— Se a se​gu​r an​ç a ex​ter​na é ele​trô​ni​c a — Jack pen​sa​va em voz alta —, é
qua​se cer​to que a se​gu​r an​ç a da en​tra​da prin​c i​pal tam​bém é. De uns anos para
cá, pa​r e​c e fe​bre... To​dos con​f i​a m ce​ga​m en​te nos equi​pa​m en​tos ele​trô​ni​c os. Cla​-
ro que, pelo sim, pelo
não, dei​xam um guar​da no por​tão da fren​te. Mas o guar​da tam​bém sabe que
a se​gu​r an​ç a é ab​so​lu​ta... ou pen​sa que é... Acha que está ali só para cons​tar, por​-
que nun​c a foi as​sal​ta​do. É ca​paz até de dor​m ir a sono sol​to... — Ani​m a​do com a
idéia, fi​tou os com​pa​nhei​r os, um a um, e de​c la​r ou: — En​trar lá vai ser fá​c il.
Quan​to ao res​to, ain​da não sei. Pode ser que a gen​te con​si​ga dar uma boa olha​da
em tudo sem nin​guém nos ver...
— Você fala como se ti​ves​se cer​te​za de que... — Gin​ger co​m e​ç ou, mas
Jack a in​ter​r om​peu.
— Pas​sei mais de oito anos de mi​nha vida en​tran​do e sain​do de lu​ga​r es
onde nin​guém en​tra e de onde nin​guém sai. É mi​nha es​pe​c i​a ​li​da​de. O pró​prio
Exér​c i​to me trei​nou para esse tra​ba​lho... Co​nhe​ç o os tru​ques de​les. — Riu e pis​-
cou o olho ves​go. — Sem fa​lar nos tru​ques que eu mes​m o aca​bei in​ven​tan​do.
Jor​j a re​te​sou-se na ca​dei​r a, ten​sa, e pon​de​r ou:
— Mas... com seus tru​ques ou sem eles... você pode aca​bar pre​so lá den​-
tro!
— Cla​r o! E exa​ta​m en​te o que eu que​r o.
— Ora essa. E por quê?! — Ela le​van​tou-se de um sal​to. — O que vai fa​zer
lá?!
O pla​no pa​r e​c ia per​f ei​to. No co​m e​ç o, Gin​ger ou​viu-o com o co​r a​ç ão aper​ta​-
do de medo, mas quan​do ele aca​bou, teve que se con​tro​lar para não ba​ter pal​-
mas. Jack Twist era um es​tra​te​gis​ta de gê​nio!
Como sem​pre, Jack ex​pôs-lhes o pla​no com a se​gu​r an​ç a de quem sa​bia que
se​r ia obe​de​c i​do e que to​dos con​c or​da​r i​a m em exe​c u​tar as ta​r e​f as sem dis​c u​ti-las
e sem as​sus​tar-se com os ris​c os. Usou de to​dos os tru​ques de per​su​a ​são que co​-
nhe​c ia, fa​lou-lhes com voz fir​m e como se es​ti​ves​se fa​lan​do a sol​da​dos pro​f is​si​o​-
nais, an​tes de man​dá-los para uma mis​são ex​tre​m a​m en​te ar​r is​c a​da. En​tre ou​tras
ra​zões, agia as​sim por​que não ti​nha tem​po a per​der com dis​c ussões. O cé​r e​bro e
os ins​tin​tos gri​ta​vam-lhe uma úni​c a e re​pe​ti​da men​sa​gem: “Está che​gan​do a
hora! Está che​gan​do a hora!”
O pla​no era sim​ples.
Den​tro de uma hora, com ex​c e​ç ão de Dom, Ned e Jack, to​dos en​tra​r i​a m no
jipe e ru​m a​r i​a m para Elko por uma es​tra​da vi​c i​nal à qual se po​dia ter aces​so pe​-
los fun​dos do mo​tel. Qua​se com cer​te​za não se​r i​a m se​gui​dos. Em Elko o gru​po se
di​vi​di​r ia: Er​nie, Fay e e Gin​ger con​ti​nu​a ​r i​a m vi​a ​gem no jipe rumo a Twin Fa​-
lis, Ida​ho, e de lá para Po​c a​tel​lo, onde da​r i​a m um jei​to, qual​quer um, de con​se​-
guir um avi​ã o que os le​vas​se a Bos​ton. De​vi​a m che​gar a Bos​ton na quin​ta à noi​te
ou, o mais tar​dar, na sex​ta de ma​nhã, e hos​pe​dar-se em casa dos Han​naby, aos
quais con​ta​r i​a m os de​ta​lhes do que ha​vi​a m des​c o​ber​to até aque​le ins​tan​te. De​-
pois, du​r an​te uma ou duas ho​r as, Gin​ger se ocu​pa​r ia ex​c lu​si​va​m en​te em te​le​f o​-
nar para o mai​or nú​m e​r o pos​sí​vel de mé​di​c os, seus co​nhe​c i​dos do hos​pi​tal, con​-
vo​c an​do-os para uma reu​ni​ã o. Nes​se en​c on​tro, Fay e, Gin​ger e Er​nie con​ta​r i​a m a
to​dos o que acon​te​c e​r a, con​c en​tran​do-se nos de​ta​lhes sór​di​dos da la​va​gem ce​r e​-
bral pra​ti​c a​da por agen​tes do go​ver​no em ino​c en​tes ci​da​dãos. En​quan​to isso, Ge​-
or​ge e Rita es​ta​r i​a m con​ta​tan​do seus ami​gos in​f lu​e n​tes e or​ga​ni​zan​do ou​tras reu​-
ni​ões, às quais Gin​ger, Er​nie e Fay e com-pa​r e​c e​r i​a m para con​tar a mes​m a his​-
tó​r ia, re​pe​tin​do-a o quan​to fos​se ne​c es​sá​r io. Só de​pois de fa​lar a vá​r i​a s pes​so​a s
im​por​tan​tes os três pro​c u​r a​r i​a m a im​pren​sa. E só de​pois de fa​lar à im​pren​sa pro​-
cu​r a​r i​a m a po​lí​c ia para for​m a​li​zar uma de​c la​r a​ç ão ofi​c i​a l, as​si​na​da pe​los três,
afir​m an​do que Pa​blo Jack​son não fora as​sas​si​na​do por um la​drão co​m um, no as​-
sal​to da se​m a​na an​te​r i​or.
— A idéia é in​f or​m ar o mai​or nú​m e​r o pos​sí​vel de pes​so​a s so​bre o que está
acon​te​c en​do aqui. As​sim, caso vo​c ês so​f ram um “aci​den​te” an​tes de po​de​r em
con​ven​c er a im​pren​sa a in​ves​tir em nos​sa his​tó​r ia, ha​ve​r á mui​ta gen​te dis​pos​ta a
não acei​tar a idéia de que o “aci​den​te” te​nha sido mes​m o... aci​den​tal. Aí é que
você en​tra, Gin​ger — Jack vi​r ou-se para ela —, por​que é a úni​c a de nós que tem
con​ta​tos in​f lu​e n​tes em Bos​ton, uma das ci​da​des mais im​por​tan​tes do país. Se con​-
se​guir “ven​der nos​so pei​xe” lá, es​ta​r á cri​a n​do um pa​r e​dão de se​gu​r an​ç a a nos​sa
vol​ta. Mas é im​por​tan​te que vo​c ês se me​xam de​pres​sa, para não dar tem​po aos
fe​de​r ais de des​c o​bri​r em o que es​ta​m os pla​ne​j an​do. Eles os ma​ta​r i​a m an​tes de
pen​sar duas ve​zes.
Lá fora a tem​pes​ta​de de neve as​so​bi​a ​va. Óti​m o. Quan​to mais vi​o​len​ta a ne​-
vas​c a mai​o​r es as chan​c es de sair sem se​r em se​gui​dos.
— De​pois que Gin​ger, Fay e e Er​nie fo​r em para Po​c a​tel​lo — Jack con​ti​-
nuou —, vo​c ês qua​tro... Bren​dan, Sandy, Jor​j a e Ma​r eie... irão até uma loja de
car​r os e com​pra​r ão ou​tro ve​í​c u​lo de tra​ç ão nas qua​tro ro​das, com o di​nhei​r o que
vou lhes dar. Ime​di​a ​ta​m en​te de​pois to​m a​r ão rumo opos​to ao de Gin​ger... irão
para Salt Lake City, Utah. A vi​a ​gem vai ser di​f í​c il e len​ta por cau​sa da neve, mas
vo​c ês têm de che​gar lá e con​se​guir um voo para es​tar em Chi​c a​go no má​xi​m o
quin​ta-fei​r a à noi​te. — Vi​r ou-se para Bren​dan. — En​tão, você de​ve​r á en​trar em
con​ta​to com seu ami​go, o pa​dre Wy ​c a​zik, a fim de con​se​guir uma en​tre​vis​ta com
o... “che​f e 5' da ar​qui​di​o​c e​se de Chi​c a​go... o mais de​pres​sa pos​sí​vel.
— O car​de​a l — Bren​dan cor​r i​giu. — Car​de​a l Ri​c hard 05Cal​la-han. Mas
acho que nem o pa​dre Wy ​c a​zik pode con​se​guir uma en​tre​vis​ta com ele no pra​zo
que você quer...
— Ele pre​c i​sa con​se​guir. Como Gin​ger, em Bos​ton, você deve agir mui​to
rá​pi​do em Chi​c a​go. Você, Jor​j a e Ma​r eie de​ve​r ão fa​lar com o car​de​a l e con​tar-
lhe o que está acon​te​c en​do co​nos​c o. Se for pre​c i​so, Bren​dan, faça voar a ba​ti​na
dele, ar​r an​que ima​gens dos al​ta​r es, gru​de os ban​c os no teto. Faça o que for ne​-
ces​sá​r io, mas con​ven​ç a o car​de​a l de que ele está ten​do a chan​c e de par​ti​c i​par do
mais ex​tra​or​di​ná​r io fe​nô​m e​no que a hu​m a​ni​da​de já viu, des​de os dias em que
Je​sus mul​ti​pli​c a​va os pei​xes e res​sus​c i​ta​va os mor​tos. Não é blas​f ê​m ia... — as​se​-
gu​r ou, di​a n​te dos olhos ar​r e​ga​la​dos de Bren​dan. — Es​tou con​ven​c i​do dis​so.
— Eu... tam​bém — Bren​dan ga​gue​j ou. Ape​sar do es​pan​to, pa​r e​c ia ou​tra
vez en​tu​si​a s​m a​do, como que con​ta​gi​a ​do pela se​r e​na con​f i​a n​ç a de Jack.
O ven​to so​pra​va cada vez mais for​te.
— A jul​gar pelo ven​da​val de ago​r a, te​r e​m os um tu​f ão de​pois que a ne​vas​-
ca pas​sar.
O mau tem​po po​de​r ia aju​dá-los, mas um tu​f ão aca​ba​r ia com seus pla​nos. O
ini​m i​go tal​vez de​c i​dis​se an​te​c i​par o as​sal​to ao mo​tel.
— E isso, Bren​dan — Jack re​su​m iu. — Você tem a mis​são de con​ven​c er
seu car​de​a l 0’Cal​la​han a con​vo​c ar reu​ni​ões com o pre​f ei​to, ve​r e​a ​do​r es, em​pre​-
sá​r i​os, lí​de​r es da co​m u​ni​da​de... todo mun​do. Terá no má​xi​m o vin​te e qua​tro ho​-
ras para es​pa​lhar as no​tí​c i​a s. Quan​to mais a ci​da​de fa​lar de você, mas se​gu​r o es​-
ta​r á. De​pois de se reu​nir com os “fi​gu​r ões,,J pro​c u​r e a im​pren​sa. Dê um show na
te​le​vi​são. Faça voar a saia da re​pór​ter, ar​r an​que qua​dros das pa​r e​des, em​pur​r e
me​sas, vire ca​dei​r as...
— De​pois dis​so eles não po​de​r ão mais nos per​se​guir — con​c luiu Bren​dan,
rin​do de ore​lha a ore​lha.
— E o que es​pe​r a​m os. E tor​ç o para vo​c ês con​ven​c ê-los de que não são
lou​c os var​r i​dos nem es​tão in​ven​tan​do his​tó​r i​a s. — Jack res​pi​r ou fun​do. Por​que
en​quan​to es​ti​ve​r em an​dan​do por aí, como es​tre​las de te​le​vi​são, Dom, Ned e eu
es​ta​r e​m os den​tro do de​pó​si​to de Thun​der Hill, pro​va​vel​m en​te pre​sos. A úni​c a
chan​c e de sair​m os de lá vi​vos vai de​pen​der da per​for​man​c e de vo​c ês.
— Não gos​to dis​so — de​c la​r ou Jor​j a, ba​lan​ç an​do a ca​be​ç a. — Por que vo​-
cês têm de ir para aque​la mal​di​ta mon​ta​nha? Já lhe fiz a mes​m a per​gun​ta, e você
ain​da não res​pon​deu, Jack. Va​m os sair por aí, va​m os gri​tar nos​sa his​tó​r ia aos qua​-
tro ven​tos, va​m os des​m as​c a​r á-los... Que ne​c es​si​da​de há de vo​c ês irem se me​ter
lá den​tro? Se o pla​no fun​c i​o​nar, mais dia me​nos dia, aca​ba​r e​m os des​c o​brin​do o
que há em Thun​der Hill e o que acon​te​c eu no ve​r ão re​tra​sa​do.
Jack es​pe​r ou um mo​m en​to an​tes de fa​lar, por​que pre​via que as dis​c ussões
co​m e​ç a​r i​a m exa​ta​m en​te àque​la al​tu​r a do pla​no.
— Des​c ul​pe, mas você está sen​do in​gê​nua. Po​de​m os gas​tar a lín​gua de
tan​to fa​lar e, ain​da as​sim, o Exér​c i​to fará o pos​sí​vel e o im​pos​sí​vel para ga​nhar
tem​po. Vão in​ven​tar ou​tras his​tó​r i​a s, pro​c es​sar os jor​nais, fa​zer o di​a ​bo... para ter
tem​po de in​ven​tar ou​tra men​ti​r a que jus​ti​f i​que tudo. Só te​m os uma chan​c e de
des​c o​brir a ver​da​de... e é agir com ra​pi​dez. Para apres​sar os acon​te​c i​m en​tos, vo​-
cês pre​c i​sam ter um ar​gu​m en​to mui​to for​te, que exi​j a ime​di​a ​ta ação das au​to​r i​-
da​des; Dom, Ned e eu, pri​si​o​nei​r os em Thun​der Hill, se​r e​m os o gran​de trun​f o de
vo​c ês. Três ci​da​dãos ho​nes​tos... ou pelo me​nos ra​zo​a ​vel​m en​te ho​nes​tos... se​qües​-
tra​dos
pe​las mais al​tas au​to​r i​da​des na​c i​o​nais. Se​r e​m os as ví​ti​m as... en​quan​to o pre​-
si​den​te, em pes​soa, e to​dos os “fi​gu​r ões” do país fa​r ão o pa​pel de ter​r o​r is​tas. Não
va​m os dar tem​po a essa cor​j a... eles vão ter de ex​pli​c ar-se em dois dias, no má​-
xi​m o.
A vol​ta da mesa, nin​guém achou o que di​zer. Fay e olha​va para Jack com os
olhos chei​os de lá​gri​m as, como se já o vis​se mor​to.
— Não é jus​to — Jor​j a mur​m u​r ou — que vo​c ês se sa​c ri​f i​quem...
— Nin​guém será sa​c ri​f i​c a​do se cada um de vo​c ês fi​zer o que deve fa​zer
— Jack res​pon​deu pron​ta​m en​te — Vo​c ês nos ti​r a​r ão de lá, sãos e sal​vos, com a
agi​ta​ç ão na​c i​o​nal que vão cri​a r. E por isso que sua mis​são é tão im​por​tan​te.
— Mas... e se, por aca​so, de​pois que vo​c ês es​ti​ve​r em lá den​tro
— ar​gu​m en​tou Jor​j a, pas​san​do a mão pelo ca​be​lo, afli​ta —, vi​r em al​gu​m a
coi​sa que ex​pli​que tudo... que sir​va para nos fa​zer en​ten​der o que acon​te​c eu? Po​-
de​r ão ti​r ar fo​to​gra​f i​a s, ou rou​bar al​gum pla​no, sei lá... e vol​tar para casa... não é?
Vo​c ês vão ten​tar ou...?
— E cla​r o que va​m os ten​tar! — Jack re​c os​tou-se à ca​dei​r a e riu.
— E é bem pos​sí​vel que con​si​ga​m os es​c a​par.
Men​ti​r a. Jack Twist sa​bia que ti​nham pou​c a chan​c e de en​trar na base e ri​go​-
ro​sa​m en​te ne​nhu​m a de sair de Thun​der Hill. Quan​to a en​c on​trar al​gu​m a coi​sa
que ex​pli​c as​se os acon​te​c i​m en​tos nem em so​nho! Pela boa ra​zão de que não ti​-
nham a mí​ni​m a idéia do que pro​c u​r ar. Po​de​r i​a m pas​sar dez ve​zes ao lado da ex​-
pli​c a​ç ão de seus tor​m en​tos e nem sus​pei​ta​r i​a m. Além do mais, na hi​pó​te​se de al​-
gum ex​pe​r i​m en​to ci​e n​tí​f i​c o em an​da​m en​to ter es​c a​pa​do ao con​tro​le na​que​la noi​-
te, os re​la​tó​r i​os de pes​qui​sa es​ta​r i​a m co​di​f i​c a​dos ou mi​c ro​f il​m a​dos, es​c on​di​dos
no co​r a​ç ão da ro​c ha. Mas Jack não fa​lou so​bre isso. Não cor​r e​r ia o ris​c o de per​-
der um se​gun​do em dis​c ussões es​té​r eis so​bre pos​sí​veis ris​c os.
Jor​j a ain​da in​sis​tiu:
— Po​de​r i​a ​m os ir a Elko, pro​c u​r ar o re​da​tor do jor​nal da ci​da​de... Bren​dan
fa​r ia seu show aqui mes​m o. Não vejo ne​c es​si​da​de em co​m e​ç ar por Chi​c a​go e
Bos​ton...
— Até que a gran​de im​pren​sa che​gas​se aqui es​ta​r í​a ​m os mor​tos —■ Jack
de​c la​r ou, con​sul​tan​do o re​ló​gio de pul​so; os pon​tei​r os
vo​a ​vam. — Bren​dan se​r ia tido por lou​c o, por um des​ses que con​tam que vi​-
ram dis​c os vo​a ​do​r es. Não. Te​m os que ir. E to​dos pre​c i​sam fa​zer exa​ta​m en​te o
que eu dis​se. E nos​sa úni​c a chan​c e.
Jor​j a fe​c hou os olhos e cru​zou os bra​ç os so​bre o pei​to.
— Você vai co​m i​go, Dom? — Jack per​gun​tou.
— Sim... cla​r o. — A res​pos​ta que Jack es​pe​r a​va. O es​c ri​tor per​ten​c ia àque​-
la ca​te​go​r ia de ho​m ens nos quais se pode con​f i​a r ce​ga​m en​te, por​que ja​m ais se
aco​var​dam em mo​m en​tos de ne​c es​si​da​de, mas que ain​da não che​ga​r am a co​-
nhe​c er-se bem a si pró​pri​os. — Cla​r o que vou, mas você se im​por​ta​r ia de con​-
tar por que es​c o​lheu mi​nha agra​dá​vel com​pa​nhia? E uma hon​r a, po​r ém...
— E sim​ples. Er​nie ain​da não está com​ple​ta​m en​te cu​r a​do do medo do es​-
cu​r o. Vai ser di​f í​c il para ele en​c a​r ar a vi​a ​gem até Poca-tel​lo. Não se​r ia se​gu​r o,
nem para ele nem para nós, levá-lo a uma mis​são no​tur​na. So​bra​vam Ned e
você. Além dis​so, eu me sen​ti-ria mais se​gu​r o sen​do se​qües​tra​do com um es​c ri​-
tor de re​no​m e... A im​pren​sa ado​r a ce​le​bri​da​des!
Gin​ger, que se man​ti​ve​r a ca​la​da, olhan​do-o, co​m en​tou:
— Você é um gê​nio, Jack, mas não pas​sa de um au​tên​ti​c o por​c o chau​vi​nis​-
ta. Por que não in​c luiu mu​lhe​r es no gru​po que vai a Thun​der Hill? Acho que os
três que de​vi​a m ir so​m os Dom, você e eu.
— Mas...
— Ain​da não aca​bei... — ela o in​ter​r om​peu e, le​van​tan​do-se, ca​m i​nhou
para a ou​tra ex​tre​m i​da​de da mesa, cons​c i​e n​te de que, as​sim, des​lo​c a​va para si
mes​m a o cen​tro das aten​ç ões. Mo​bi​li​za​va a sala in​tei​r a, com in​te​li​gên​c ia, in​tui​-
ção e be​le​za, para en​f ren​tar Jack. Afi​nal era como ele... sa​bia con​se​guir o que
que​r ia, do modo como que​r ia, no ins​tan​te em que que​r ia. — Meu pla​no é o se​-
guin​te... Ned e Sandy vão a Chi​c a​go para dar cre​di​bi​li​da​de aos pro​dí​gi​os de
Bren​dan. Jor​j a e Ma​r eie se​guem para Bos​ton com Fay e e Er​nie, le​van​do uma
car​ta mi​nha; os Han​naby os re​c e​be​r ão como re​c e​be​r i​a m a mim mes​m a. E há
ou​tro de​ta​lhe que você, Jack, não po​de​r ia ava​li​a r... Rita e Fay e vão se ado​r ar no
ins​tan​te
em que se en​c on​tra​r em... Vão des​c o​brir que são ir​m ãs de alma... Não fa​r ei
fal​ta ne​nhu​m a lá. Aqui, sim, pos​so ser mui​to mais útil. Pri​m ei​r o por​que sou mé​-
di​c a. Vo​c ês dois es​ta​r ão so​zi​nhos em ter​r e​no ini​m i​go; se fo​r em fe​r i​dos, po​de​r ei
cui​dar de vo​c ês. Se​gun​do, por​que, em​bo​r a seja in​te​r es​san​te ser se​qües​tra​do jun​to
com uma ce​le​bri​da​de, é mui​to mais in​te​r es​san​te ser se​qües​tra​do com uma ce​le​-
bri​da​de e... uma mu​lherl Não seja ca​be​ç a-dura, Jack... E cla​r o que você tem de
me le​var!
Não ha​via o que dis​c u​tir. Gin​ger es​ta​va cer​ta da pri​m ei​r a à úl​ti​m a pa​la​vra, e
Jack ren​deu-se à evi​dên​c ia.
— Tem ra​zão. Você vem co​m i​go e com Dom. Ned, Sandy e Bren​dan vão
para Chi​c a​go. Está re​sol​vi​do.
— Por mim, não ha​ve​r ia pro​ble​m a al​gum em ir com você para Thun​der
Hill, se você achas​se que era o caso — dis​se Ned.
— Eu sei. Mas mu​da​m os os pla​nos. Jor​j a e Ma​r eie vão para Bos​ton com
Fay e e Er​nie. E ago​r a... se de​m o​r ar​m os mui​to para dar o fora da​qui, pas​sa​r e​m os
o res​to da eter​ni​da​de dis​c u​tin​do quem de​ve​r ia ter ido com quem para o in​f er​no!
Por​que eles es​tão che​gan​do. — Jack le​van​tou-se, foi até a por​ta, re​m o​veu o com​-
pen​sa​do e olhou para fora. — Per​f ei​to!
Uma es​pes​sa cor​ti​na bran​c a, de ven​to e neve, co​bria a pai​sa​gem.
Quan​do sa​í​r am, mal se via a es​tra​da onde es​ta​c i​o​na​r a o car​r o que ha​via se​-
gui​do Fay e e Gin​ger. Mas Jack logo per​c e​beu que o car​r o não es​ta​va lá. Pre​f e​r i​-
ria que os ho​m ens os acom​pa​nhas​sem de per​to... por​que as​sim ele tam​bém os vi​-
gi​a ​r ia.
A reu​ni​ã o por te​le​f o​ne não se​guia o rumo que Le​land de​se​j a​va. Que​r ia que
os che​f es con​f ir​m as​sem sua de​c i​são de in​va​dir o mo​tel, pren​der as “tes​te​m u​-
nhas” e levá-las para Thun​der Hill. Para isso, con​ta​va com o ge​ne​r al Rid​de​nhour
para aju​dá-lo a con​ven​c er os ou​tros de que a ame​a ​ç a era real e mui​to gra​ve.
Tão gra​ve que jus​ti​f i​c a​r ia a au​to​r i​za​ç ão ofi​c i​a l para eli​m i​nar os in​tru​sos do mo​tel
e todo pes​so​a l de Thun​der Hill, as​sim que ti​ves​sem pro​vas de que já não eram
hu​m a​nos. E es​sas pro​vas, sem dú​vi​da, apa​r e-ce​r i​a m. Po​r ém, no mo​m en​to em
que apa​nhou o te​le​f o​ne e ou​viu as úl​ti​m as no​tí​c i​a s, Le​land per​c e​beu que te​r ia
pro​ble​m as.
Emil Foxwor​th, di​r e​tor do FBI, foi o pri​m ei​r o a fa​lar. O gru​po en​c ar​r e​ga​do
da se​gun​da la​va​gem ce​r e​bral dos Scal​c oe, em Mon-te​r ey, Ca​li​f ór​nia, in​f or​m a​va
que a casa fora in​va​di​da por um ho​m em bar​bu​do que con​se​gui​r a es​c a​par. O ca​-
sal Scal​c oe e as duas gê​m e​a s fo​r am trans​f e​r i​dos às pres​sas para um hos​pi​tal mó​-
vel e dali para uma casa que o FBI usa​va em emer​gên​c i​a s; o pro​c es​so de la​va​-
gem ce​r e​bral pros​se​guia. In​ves​ti​ga​ç ões re​a ​li​za​das so​bre o ho​m em bar​bu​do, a
par​tir do car​r o aban​do​na​do, re​ve​la​vam que se cha​m a​va Parker Fai​ne e era gran​-
de ami​go de Cor​vai​sis.
— Con​se​gui​m os se​gui-lo até San Fran​c is​c o, mas o per​de​m os. Não sa​be​m os
dele des​de o mo​m en​to em que o avi​ã o pou​sou em San Fran​c is​c o.
Fos​ter Pol​ni​c hev, do es​c ri​tó​r io do FBI em Chi​c a​go, já acha​va ex​tre​m a​m en​te
ar​r is​c a​do man​ter o se​gre​do e aca​bou de con​ven​c er-se da ur​gên​c ia da di​vul​ga​ç ão
ao ou​vir o re​la​tó​r io so​bre a vi​si​ta de Fai​ne. Foxwor​th, tam​bém do FBI, e Ja​m es
Her​ton, as​ses​sor da Pre​si​dên​c ia para as​sun​tos de se​gu​r an​ç a na​c i​o​nal, con​c or​da​-
vam com ele.
Pol​ni​c hev não se can​sa​va de fa​lar das cu​r as ma​r a​vi​lho​sas que Bren​dan e
Tolk re​a ​li​za​r am e in​sis​tia em que os re​sul​ta​dos dos acon​te​c i​m en​tos tal​vez fos​sem
be​né​f i​c os para a hu​m a​ni​da​de.
— Sem es​que​c er — di​zia — que o dou​tor Ben​nell e sua equi​pe de pes​qui​sa​-
do​r es acham que não há e ja​m ais hou​ve pe​r i​go. Faz me​ses que re​pe​tem isso... e
têm ar​gu​m en​tos bas​tan​te con​vin​c en​tes.
Le​land ten​tou per​su​a ​di-los de que Ben​nell po​de​r ia es​tar con​ta​m i​na​do e que
era ar​r is​c a​do con​f i​a r nele. Mas sa​bia que era ape​nas um lí​der mi​li​tar, in​c a​paz de
en​f ren​tar dois po​lí​ti​c os numa guer​r a de pa​la​vras. De​vi​a m ima​gi​nar que es​ta​va
lou​c o.
Nem o ge​ne​r al Rid​de​nhour o de​f en​dia. De​pois de ou​vir aten​ta​m en​te os ar​gu​-
men​tos de uma e ou​tra par​te, as​su​m in​do o pa​pel de me​di​a ​dor, ele aca​bou con​-
cor​dan​do com Pol​ni​c hev.
— Res​pei​to sua po​si​ç ão — de​c la​r ou a Le​land —, mas acho que o as​sun​to
já não é ape​nas uma ques​tão mi​li​tar. Cla​r o que não de​ve​m os ne​gli​gen​c i​a r quan​to
à se​gu​r an​ç a, po​r ém, tal​vez seja hora de con​vo​c ar ci​e n​tis​tas, neu​r o​lo​gis​tas, bi​ó​lo​-
gos, fi​ló​so​f os... pa-
ra nos aju​dar a pen​sar. De​ve​m os evi​tar so​lu​ç ões pre​c i​pi​ta​das. Cla​r o tam​bém
que, caso o se​nhor en​c on​tre pro​vas de que re​a l​m en​te há pe​r i​go, es​ta​r ei dis​pos​to a
re​ver mi​nhas po​si​ç ões. Quan​to às pro​vi​dên​c i​a s ime​di​a ​tas, con​c or​do em que as
tes​te​m u​nhas se​j am le​va​das para Thun​der Hill e que a re​gi​ã o seja man​ti​da sob
se​ve​r a vi​gi​lân​c ia... mas acon​se​lho cau​te​la quan​to às me​di​das de mé​dio e lon​go
pra​zos. Ne​nhum de nós de​ve​r á des​c ar​tar a hi​pó​te​se de que o se​gre​do do de​pó​si​to
pos​sa even​tu​a l​m en​te ser di​vul​ga​do.
— Com todo o res​pei​to... — re​pli​c ou Le​land, mal con​tro​lan​do a fú​r ia que o
fa​zia es​tre​m e​c er —, eu não te​nho dú​vi​das de que a ame​a ​ç a é real e mui​to gra​ve.
Não te​m os tem​po a per​der com neu​r o​lo​gis​tas ou fi​ló​so​f os... nem com o fa​la​tó​r io
de um ban​do de po​lí​ti​c os co​var​des.
Foxwor​th e Her​ton ves​ti​r am a ca​r a​pu​ç a e pro​tes​ta​r am, aos gri​tos. Le​land re​-
tru​c ou, tam​bém aos ber​r os, e a reu​ni​ã o vi​r ou bate-boca in​te​r ur​ba​no, nin​guém en​-
ten​den​do nin​guém, até que Rid-de​nhour exi​giu si​lên​c io. Ti​nha uma pro​pos​ta de
tré​gua: Le​land nada fa​r ia con​tra as tes​te​m u​nhas, e não se to​m a​r i​a m pro​vi​dên​c i​a s
para re​f or​ç ar a ver​são ofi​c i​a l, mas, em tro​c a, tam​bém não se pen​sa​r ia, pelo me​-
nos na​que​le mo​m en​to, em di​vul​gar o se​gre​do.
— Vou pe​dir uma au​di​ê n​c ia de emer​gên​c ia ao pre​si​den​te — dis​se Rid​de​-
nhour. — No má​xi​m o den​tro de qua​r en​ta e oito ho​r as, te​r e​m os es​bo​ç a​do um pla​-
no que sa​tis​f a​ç a a to​dos, do pre​si​den​te ao dou​tor Ben​nell e seus ci​e n​tis​tas em
Thun​der Hill.
Im​pos​sí​vel, pen​sou Le​land, ver​m e​lho de ira.
Des​li​gou o te​le​f o​ne e per​m a​ne​c eu sen​ta​do por al​gum tem​po, es​f or​ç an​do-se
para en​go​lir o fra​c as​so da reu​ni​ã o e a cer​te​za de que, mais cedo ou mais tar​de,
aca​ba​r ia der​r o​ta​do. Não che​gou a cha​m ar Hor​ner para tro​c ar idéi​a s por​que Hor​-
ner não po​dia sa​ber que o pla​no a ser exe​c u​ta​do em pou​c os mi​nu​tos era um ato
de in​su​bor​di​na​ç ão e fla​gran​te de​so​be​di​ê n​c ia às or​dens de co​m an​do.
Não pre​c i​sa​va de con​se​lhos. Le​land co​nhe​c ia seu de​ver.
Man​da​r ia blo​que​a r a ro​do​via, sob pre​tex​to de ou​tro va​za​m en​to de gás tó​xi​c o,
e com isso iso​la​r ia o mo​tel. Pren​de​r ia as tes​te​m u​nhas e as le​va​r ia di​r e​ta​m en​te
para o de​pó​si​to de Thun​der Hill.
Quan​do es​ti​ves​sem reu​ni​das com o dr. Ben​nell e todo o pes​so​a l da base, pre​-
sos por trás das por​tas de aço da mon​ta​nha, Le​land os fa​r ia voar pe​los ares... e
vo​a ​r ia com eles, na ex​plo​são de uma ou duas das ogi​vas nu​c le​a ​r es de cin​c o me​-
ga​tons guar​da​das no ar​se​nal do piso in​f e​r i​or. Uma ou duas ex​plosões, e tudo que
es​ta​va con​ti​do na mon​ta​nha se re​du​zi​r ia a cin​zas. Es​ta​r ia eli​m i​na​da a prin​c i​pal
fon​te da con​ta​m i​na​ç ão. So​bra​r i​a m ou​tras, es​pa​lha​das pelo mun​do: os Tolk, a fa​-
mí​lia de Emmy e as tes​te​m u​nhas, cu​j os blo​quei​os ain​da não ha​vi​a m fa​lha​do. Le​-
land con​f i​a ​va, po​r ém, que, ao ver o va​lo​r o​so exem​plo de seu sa​c ri​f í​c io, Rid​de​-
nhour vol​ta​r ia à ra​zão e or​de​na​r ia a So​lu​ç ão Fi​nal, com a eli​m i​na​ç ão de to​das as
fon​tes de con​ta​m i​na​ç ão res​tan​tes.
Falkirk tre​m ia. Não de medo ou de an​si​e ​da​de... mas de or​gu​lho! Era o elei​to
para li​de​r ar a gran​de ba​ta​lha da hu​m a​ni​da​de. Para sal​var não ape​nas um país...
mas o pla​ne​ta in​tei​r o, a es​pé​c ie hu​m a​na. Sen​tia-se pron​to para en​f ren​tar o gran​-
de mo​m en​to do sa​c ri​f í​c io. Nada te​m ia. Ima​gi​nan​do o que sen​ti​r ia quan​do as on​-
das de ca​lor da ex​plo​são o atin​gis​sem e o fi​zes​sem de​sa​pa​r e​c er, um ar​r e​pio per​-
cor​r eu-o dos pés à ca​be​ç a. Não, não re​c u​a ​r ia di​a n​te da dor, a mais in​ten​sa, a
mais vi​o​len​ta, a mais lon​ga dor... Sa-be​r ia como su​por​tá-la. Ha​via mui​to tem​po
que se pre​pa​r a​va para aque​le mo​m en​to, para a úl​ti​m a dor de sua vida.
Ao sair do res​tau​r an​te, dois pas​sos atrás de Gin​ger, Dom le​van​tou a ca​be​ç a
para o céu, para as es​pi​r ais bran​c as que o ven​to cri​a ​va na neve. De re​pen​te, viu o
que os ou​tros não po​di​a m ver:
A suas cos​tas, ouve-se o ru​í​do dos úl​ti​mos vi​dros que se des​pren​dem das ja​ne​-
las e se es​pa​ti​fam no chão. A fren​te, as lâm​pa​das do es​ta​c i​o​na​men​to ace​sas, na es​-
cu​ri​dão da noi​te de ve​rão. E por toda a par​te, vin​do de to​das as di​re​ç ões, o ron​c o
de tro​v o​a​da e o som de ter​re​mo​to. O co​ra​ç ão bate-lhe des​c om​pas​sa​do. Não con​-
se​gue res​pi​rar, a boca seca, a gar​gan​ta fe​c ha​da. Cor​re para fora do res​tau​ran​te,
olha em vol​ta. En​tão olha para cima...
— O que hou​ve? — Gin​ger per​gun​tou.
Dom per​c e​beu que es​c or​r e​ga​r a na neve e, tam​bém, num frag-
men​to de lem​bran​ç a que aflo​r a​va à cons​c i​ê n​c ia. Vol​tou-se para o gru​po:
— Vi... como se es​ti​ves​se acon​te​c en​do ago​r a. Em ju​lho... na​que​la noi​te.
Duas noi​tes an​tes, sem que​r er, re​c ri​a ​r a o som de tro​vo​a ​da e o tre​m or de ter​-
ra da noi​te de 6 de ju​lho, mas ago​r a nada acon​te​c e​r a, tal​vez por​que a me​m ó​r ia
já es​ti​ves​se me​nos re​pri​m i​da e en​c on​tras​se ca​m i​nhos de​sim​pe​di​dos para ma​ni​-
fes​tar-se.
Dom olhou para cima ou​tra vez, e...
E um ron​c o de mo​tor, tâo for​te que lhe fere os ou​v i​dos. A ter​ra tre​me, ele a
sen​te tre​mer nos os​sos, nos den​tes, como vi​dros e ja​ne​las em noi​tes de tro​v o​a​da.
Cor​re pelo piso ci​men​ta​do, olhan​do para o céu es​c u​ro e... Lá está! Um avi​ão vo​-
an​do mui​to bai​x o, cem, du​zen​tos me​tros aci​ma do solo, as lu​zes bran​c as e ver​me​-
lhas pis​c an​do na es​c u​ri​dão, tão bai​x o que se vê o bri​lho do vi​dro da ca​bi​ne do pi​-
lo​to. Um jato mui​to ve​loz, um caça... E lá vem ou​tro! Sain​do da noi​te es​tre​la​da.
Mas o ru​í​do que re​ben​tou os vi​dros do res​tau​ran​te e fez sal​tar os sa​lei​ros so​bre as
me​sas con​ti​nua a cres​c er, cada vez mais for​te. Os ja​tos voam lon​ge, po​rém o ron​-
co con​ti​nua. Dom vira-se para trás, por​que o ru​í​do pa​re​c e vir de lá... e gri​ta de
sus​to: ou​tro jato, ain​da mais bai​x o que os dois pri​mei​ros, pou​c o mais de um me​tro
aci​ma do te​lha​do do res​tau​ran​te. Tão bai​x o que ele se joga ao chão, cer​to de que
o avi​ão está cain​do. Um jato com as co​res ame​ri​c a​nas.
— Dom!
Es​ta​va dei​ta​do de bru​ç os no ci​m en​to do pá​tio, o ros​to es​c on​di​do en​tre os bra​-
ços, que​r en​do pro​te​ger-se do jato... que vira na noi​te de 6 de ju​lho do ano re​tra​-
sa​do!
— O que hou​ve? — Sandy per​gun​ta​va, ajo​e ​lha​da a seu lado, to​c an​do-lhe o
om​bro. Gin​ger es​ta​va do ou​tro lado, igual​m en​te ajo​e ​lha​da, se​gu​r an​do-lhe a mão.
— Você está bem? — per​gun​tou.
An​tes que ele res​pon​des​se, as duas uni​r am for​ç as para aju​dá-lo a le​van​tar-
se.
— Es​tou co​m e​ç an​do a lem​brar... — Dom er​gueu os olhos para o céu, à es​-
pe​r a de que o flu​xo de lem​bran​ç as con​ti​nu​a s​se. — Vi ja​tos mi​li​ta​r es vo​a n​do bai​-
xo... Eram dois, mas de​pois apa​r e​c eu um ter​c ei​r o... Vo​a ​vam tão bai​xo que eu
pen​sei que fos​sem cair em cima do res​tau​r an​te.
— Ja​tos! — Ma​r eie gri​tou.
To​dos vi​r a​r am-se para ela, pois era a pri​m ei​r a pa​la​vra, além de “Lua”, que
di​zia des​de a vés​pe​r a. A me​ni​na es​ta​va no colo da mãe, ten​tan​do pro​te​ger-se do
ven​to, mas olha​va fi​xa​m en​te para o céu. Como que des​per​ta​da pe​las pa​la​vras de
Dom, vas​c u​lha​va o céu à pro​c u​r a dos avi​ões que, tam​bém para ela, pa​r e​c i​a m ter
aca​ba​do de pas​sar.
— Não me lem​bro de nada... — dis​se Er​nie. — Ja​tos?
— Ja​tos! Ja​tos! — Ma​r eie re​pe​tiu, er​guen​do a mão para o céu.
Nin​guém con​se​guiu lem​brar-se de nada. O que fora um mo​m en​to de es​pe​-
ran​ç a trans​f or​m a​va-se em va​zio e de​sen​c an​to. Ma​r eie bai​xou a ca​be​ç a e me​teu
o po​le​gar na boca, mer​gu​lhan​do no​va​m en​te em seu alhe​a ​m en​to.
— Te​m os de sair da​qui — Jack pu​xou Jor​j a e Dom. — Não po​de​m os es​pe​-
rar mais. Va​m os pe​gar as coi​sas e cair fora.
Qua​se que ar​r as​ta​do para den​tro, sen​tin​do o per​f u​m e da noi​te de ve​r ão de
me​ses atrás, ou​vin​do ain​da o ron​c o dos ja​tos, Dom o se​guiu.
TER​CEI​RA PAR​TE
NOI​TE EM THUN​DER HILL
Co​ra​gem, amor, ami​za​de, com​pai​x ão e em​pa​tia nos ele​v am aci​ma dos ani​-
mais e de​fi​nem o que é hu​ma​no.
Li​vro das La​men​t a​ç ões
Tua tum​ba hu​mil​de por mãos es​tran​gei​ras ador​na​da; re​v e​ren​c i​a​da por es​tra​-
nhos e por es​tra​nhos pran​te​a​da.
Ale​xan​der Pope
SEIS_______________________
Noi​t e de ter​ç a-fei​r a, 14 de ja​nei​r o
1. LUTA
Mal ater​r is​sou em Salt Lake City, pro​c e​den​te de Chi​c a​go, o pa​dre Ste​f an Wy ​-
ca​zik em​bar​c ou em ou​tro avi​ã o, rumo a Elko. Con​se​guiu pou​sar, ape​sar da ne​vas​-
ca, mi​nu​tos an​tes de o ae​r o​por​to ser fe​c ha​do ao trá​f e​go aé​r eo, com a vi​si​bi​li​da​de
re​du​zi​da a qua​se zero. Di​r i​giu-se en​tão a um te​le​f o​ne pú​bli​c o, con​se​guiu des​c o​-
brir o nú​m e​r o do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de e li​gou. Não ou​viu si​nal de cha​m a​da, ape​-
nas a li​nha zum​bin​do sem pa​r ar. Ten​tou vá​r i​a s ve​zes, e re​pe​tiu-se o zum​bi​do. Pe​-
diu o au​xí​lio da te​le​f o​nis​ta, que, após duas ten​ta​ti​vas, de​sis​tiu.
— Des​c ul​pe, se​nhor, mas a li​nha está com de​f ei​to — dis​se ela.
A in​f or​m a​ç ão pa​r e​c eu-lhe dra​m á​ti​c a, e Ste​f an gri​tou:
— De​f ei​to?! Que tipo de de​f ei​to?
— Não sei. Al​gum cabo rom​pi​do por cau​sa da tem​pes​ta​de... Está ven​tan​do
mui​to.
A ex​pli​c a​ç ão era sim​ples de​m ais. Fa​zia pou​c o tem​po que es​ta​va ne​van​do, e o
ven​da​val não pa​r e​c ia su​f i​c i​e n​te para rom​per ca​bos te​le​f ô​ni​c os. O mo​tel es​ta​va
iso​la​do de tudo e de to​dos, e isso pa​r e​c ia obra de mãos hu​m a​nas, sem qual​quer
re​la​ç ão com ne​vas​c a ou ven​da​val.
Ste​f an li​gou para Chi​c a​go, à pro​c u​r a do pa​dre Ger​r a​no, que aten​deu logo ao
se​gun​do to​que.
— Mi​c ha​e l, já es​tou em Elko, são e sal​vo. Mas não con​si​go li-gar para
Bren​dan. Há al​gum de​f ei​to na li​nha.
— Eu sei — o pa​dre Ger​r a​no res​pon​deu.
— Você sabe?! Mas como é que pode sa​ber?!
— E que re​c e​bi um te​le​f o​ne​m a há dois ou três mi​nu​tos -ex​pli​c ou-se o ou​-
tro. — Um ho​m em que não quis se iden​ti​f i​c ar, mas dis​se ser ami​go de Gin​ger
Weiss, uma das pes​so​a s que está no mo​tel. Con​tou que Gin​ger li​gou para ele hoje
de ma​nhã, pe​din​do al​gu​m as in​f or​m a​ç ões, e que ele já ti​nha, mas não con​se​guia
en​trar em con​ta​to com o Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. Pa​r e​c e que Gin​ger Weiss pre​via
pro​ble​m as com o te​le​f o​ne, pois deu ao ho​m em nos​so nú​m e​r o e o de um ca​sal de
ami​gos dela em Bos​ton. Pe​diu ao tal ho​m em que li​gas​se para nós e pas​sas​se as
in​f or​m a​ç ões ao se​nhor, pois ela se en​c ar​r e​ga​r ia de en​trar em con​ta​to co​nos​c o.
— O ho​m em não quis se iden​ti​f i​c ar... — Ste​f an re​pe​tiu, pre​o​c u​pa​do. — E
lhe pas​sou as in​f or​m a​ç ões?
— Pas​sou. — Mi​c ha​e l ten​tou ser bre​ve. — São dois as​sun​tos. Pri​m ei​r o, so​-
bre um lu​gar cha​m a​do Thun​der Hill. O ho​m em diz que, tan​to quan​to pôde des​c o​-
brir, o lu​gar con​ti​nua sen​do o que sem​pre foi... uma es​pé​c ie de al​m o​xa​r i​f a​do gi​-
gan​te, su​per​pro​te​gi-do, à pro​va de ex​plosões e de in​va​são... um dos oito al​m o​xa​-
ri​f a-dos que o Exér​c i​to man​tém por todo o país, e que não é, se​quer, o mai​or de​-
les. O se​gun​do as​sun​to era so​bre um tal co​r o​nel Le-land Falkirk, do Exér​c i​to, co​-
man​dan​te de uma uni​da​de da DE-RO, um gru​po en​c ar​r e​ga​do da de​f e​sa ci​vil.
Ven​do a ne​vas​c a que cres​c ia a cada ins​tan​te, os olhos na ja​ne​la da ca​bi​ne te​-
le​f ô​ni​c a, o pa​dre Wy ​c a​zik ou​viu o co​le​ga con​tar-lhe, qua​se sem to​m ar fô​le​go, a
bi​o​gra​f ia ofi​c i​a l do co​r o​nel Falkirk.
— ...mas nada dis​so é im​por​tan​te — Mi​c ha​e l con​c luiu. — Pa​r e​c e que o se​-
nhor X des​c on​f ia de que há ape​nas um de​ta​lhe em toda essa bi​o​gra​f ia que pode
ter algo a ver com os acon​te​c i​m en​tos do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de.
— Se​nhor X...?
— Não sa​be​m os o nome dele, não é? Por que não o cha​m a​m os de se​nhor
X?
— Tudo bem, con​ti​nue.
— Bem, X acre​di​ta que o úni​c o fato re​le​van​te é que o co​r o​nel Falkirk foi o
re​pre​sen​tan​te do Exér​c i​to num gru​po de es​pe​c i​a ​lis​tas que o go​ver​no cri​ou, há
nove anos, para ela​bo​r ar um re​la​tó​r io so​bre o que acon​te​c e​r ia à hu​m a​ni​da​de em
caso de ca​tás​tro​f e to​tal de di​m ensões pla​ne​tá​r i​a s. O se​nhor X diz que an​dou in​-
ves​ti​gan​do e des​c o​briu duas co​in​c i​dên​c i​a s es​tra​nhís​si​m as... Pri​m ei​r a, que vá​r i​a s
pes​so​a s que tra​ba​lha​r am nes​se gru​po es​tão ou têm es​ta​do de fé​r i​a s mui​to se​gui​-
da​m en​te, de​sa​pa​r e​c em às ve​zes por mais de um mês, têm fol​gas fora de hora...
A se​gun​da co​in​c i​dên​c ia é que o si​gi​lo que cer​c a o re​la​tó​r io foi am​pli​a ​do... os re​-
sul​ta​dos es​tão sob se​gu​r an​ç a má​xi​m a des​de o dia oito de ju​lho do ano re​tra​sa​do.
Dois dias de​pois que Bren​dan e os ou​tros es​ti​ve​r am no Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, em
Ne​va​da.
— O que po​de​r ia ser essa... “ca​tás​tro​f e to​tal” que o gru​po es​tu​dou? — Ste​-
fan per​gun​tou e ou​viu Mi​c ha​e l re​pe​tir a res​pos​ta que o sr. X lhe dera quan​do ele
fez a mes​m a per​gun​ta. — Oh, Deus... bem que eu ima​gi​na​va!
— Ima​gi​na​va... — A voz do ou​tro lado do fio pa​r e​c ia um eco. — Ima​gi​na​-
va... que uma coi​sa as​sim... es​ti​ves​se por trás dos pro​ble​m as de Bren​dan?! O se​-
nhor acre​di​ta nis​so?
— Não pen​se que eu te​nha che​ga​do a essa es​pan​to​sa con​c lu​são usan​do mi​-
nha fan​tás​ti​c a in​te​li​gên​c ia... Sei ape​nas que Cal Shark-le gri​ta​va al​gu​m a coi​sa pa​-
re​c i​da com isso... mi​nu​tos an​tes de ex​plo​dir a pró​pria casa.
— Deus do céu... — Mi​c ha​e l sus​pi​r ou.
— Pa​r e​c e que es​ta​m os nos apro​xi​m an​do do li​m i​a r de um novo mun​do.
Você está pre​pa​r a​do para o fu​tu​r o?
— Eu sei lá! E o se​nhor?
— Ah, es​tou sim, cla​r o. Mas há mui​tos pe​r i​gos no ca​m i​nho.
Gin​ger sa​bia que Jack Twist cor​r ia con​tra o tem​po. Tra​ba​lha​va
numa es​pé​c ie de fre​ne​si, aten​dia a um e ou​tro, au​xi​li​a n​do nas úl-
ti​m as ta​r e​f as an​tes da par​ti​da, mas não ti​r a​va os olhos da por​ta e das ja​ne​las.
Pa​r e​c ia es​pe​r ar que, a qual​quer mo​m en​to, che​gas​sem os ini​m i​gos.
Le​va​r am qua​se meia hora para se ves​tir, car​r e​gar as ar​m as e ajei​tar nas
mo​c hi​las a mu​ni​ç ão ex​tra. De​pois, ain​da pre​c i​sa​r am ar​r u​m ar o equi​pa​m en​to,
dis​tri​bu​in​do-o en​tre a ca​m i​o​ne​ta dos Sar​ver e o jipe de Jack. Tra​ba​lha​vam sem
pa​r ar de di​zer ba​na​li​da​des, para con​f un​dir os ho​m ens que os es​c u​ta​vam de lon​ge.
Por fim, às qua​tro e dez da tar​de, dei​xan​do o rá​dio li​ga​do bem alto para ga​-
nhar al​guns mi​nu​tos an​tes que os ob​ser​va​do​r es des​sem pela fal​ta de gen​te, sa​í​-
ram pela por​ta dos fun​dos, sus​sur​r an​do des​pe​di​das, como “até mais ver”, “cui​de-
se bem”, “vou re​zar por você”, “vai dar tudo cer​to” ou “va​m os aca​bar com
aque​les fi​lhos da puta”. Gin​ger per​c e​beu que Jack e Jor​j a se​pa​r a​r am-se com um
lon​go abra​ç o e viu que, ao se des​pe​dir de Ma​r eie, Jack bei​j ou-a como se fos​se
sua fi​lha. Era pior que uma des​pe​di​da de fa​m í​lia, por​que, por mais que al​guns in​-
sis​tis​sem em rir e pu​lar de en​tu​si​a s​m o, to​dos sa​bi​a m que al​guns, tal​vez mui​tos,
não vol​ta​r i​a m a en​c on​trar-se.
Re​pri​m in​do as lá​gri​m as, Gin​ger cha​m ou-os à re​a ​li​da​de:
— Che​ga de des​pe​di​das! Te​m os que cair fora!
Com Ned na di​r e​ç ão, os sete que iam para Chi​c a​go e Bos​ton sa​í​r am pri​m ei​-
ro. A neve caía pe​sa​da e, pou​c os pas​sos adi​a n​te, já es​c on​dia o jipe. Ned ti​nha ins​-
tru​ç ões para evi​tar a es​tra​da prin​c i​pal en​quan​to pu​des​se, para en​ga​nar os vi​gi​a s e
man​ter-se o mais afas​ta​do pos​sí​vel do lo​c al onde Jack avis​ta​r a o ob​ser​va​dor de
bi​nó​c u​lo. As​sim, ru​m ou para cam​po aber​to, des​c en​do pelo acos​ta​m en​to. O ven​to
que zu​nia en​c o​briu o ru​í​do do mo​tor até o jipe de​sa​pa​r e​c er com​ple​ta​m en​te.
Gin​ger, Dom e Jack em​bar​c a​r am na ca​m i​o​ne​ta de Ned e se​gui​r am a mes​-
ma tri​lha. Sen​ta​da en​tre os dois, Gin​ger olha​va o jipe a sua fren​te, pen​san​do se
al​gum dia vol​ta​r ia a ver os ami​gos que lá es​ta​vam. Fa​zia pou​c o tem​po que os co​-
nhe​c ia mas ama​va-os como se fos​sem gen​te sua, sua fa​m í​lia. E tre​m ia de medo
por eles.
— “O amor dig​ni​f i​c a o ho​m em”, Ja​c ob, seu pai, sem​pre di​zia.
“In​te​li​gên​c ia, co​r a​gem, amor, ami​za​de, com​pai​xão, em​pa​tia são as qua​li​da​-
des que di​f e​r en​c i​a m o ser hu​m a​no”, ex​pli​c a​va. “Al​gu​m as pes​so​a s acham que a
in​te​li​gên​c ia é nos​sa qua​li​da​de mais im​por​tan​te, pois nos per​m i​te re​sol​ver pro​ble​-
mas, atin​gir ob​j e​ti​vos, ava​li​a r os ris​c os e van​ta​gens... Sim, cla​r o que isso tudo
tam​bém con​ta! Mas de que ser​vi​r ia a in​te​li​gên​c ia, sem co​r a​gem, amor, ami​za​de,
com​pai​xão, em​pa​tia? Nós, ho​m ens e mu​lhe​r es, ama​m os nos​so pró​xi​m o... essa é
nos​sa gran​de cruz... e a mai​or bên​ç ão de Deus!”
Parker Fai​ne che​gou a pen​sar que o pi​lo​to não con​se​gui​r ia pou​sar e des​vi​a ​r ia
para ou​tro ae​r o​por​to, mais ao sul. En​ga​nou-se: o avi​ã o foi um dos úl​ti​m os a ater​-
ris​sar em Elko an​tes que o cam​po fe​c has​se para pou​sos e de​c o​la​gens. Parker des​-
ceu e atra​ves​sou a pis​ta, pro​te​gen​do com a mão en​lu​va​da o ros​to que o ven​to fus​-
ti​ga​va como agu​lhas de gelo. A den​sa bar​ba que cul​ti​va​r a du​r an​te anos fa​zia-lhe
fal​ta...
Logo que che​ga​r a a San Fran​c is​c o, pela ma​nhã, com​prou um bar​be​a ​dor e
uma te​sou​r a, e cor​r eu para o ba​nhei​r o do ae​r o​por​to. Sem he​si​tar, pôs-se a ras​par
a bar​ba e, ao fi​nal da ta​r e​f a, exa​m i​nou o pró​prio ros​to sor​r in​do: es​ta​va mais bo​ni​-
to do que an​tes. Ra​pi​da​m en​te to​sou a ca​be​lei​r a e olhou-se de per​f il: ma​r a​vi​lho​so!
— Está fu​gin​do da po​lí​c ia? — per​gun​tou um ho​m em que la​va​va as mãos
na pia ao lado.
— Não — Parker res​pon​deu, sem ti​r ar os olhos do es​pe​lho, des​lum​bra​do
com a cara nova. — Es​tou fu​gin​do de mi​nha mu​lher.
— En​tão so​m os dois... — O ou​tro sus​pi​r ou, com de​sa​len​to.
Para evi​tar ser iden​ti​f i​c a​do, guar​dou os car​tões de cré​di​to e com​prou a di​-
nhei​r o uma pas​sa​gem para Reno, aon​de, ben​di​zen​do a sor​te, che​gou a tem​po de
em​bar​c ar no úl​ti​m o voo rumo ao ter​m i​nal de Elko. Pa​gou a pas​sa​gem tam​bém à
vis​ta e des​c o​briu, com um sus​pi​r o con​f or​m a​do, que lhe so​bra​vam vin​te e um dó​-
la​r es no bol​so. Que im​por​ta​va?! Dom, seu me​lhor ami​go, pre​c i​sa​va de aju​da... e
ele pre​c i​sa​va ir em seu so​c or​r o.
Ago​r a em Elko, o pri​m ei​r o pas​so era te​le​f o​nar ao Mo​tel Tran-qüi​li​da​de. Cor​-
reu a uma das duas ca​bi​nes exis​ten​tes no pe​que​no
ter​m i​nal, li​gou três ve​zes se​gui​das e... nada! Parker cor​r eu até o meio do sa​-
guão, olhan​do em vol​ta, per​gun​tou al​gu​m a coi​sa a um fun​c i​o​ná​r io uni​f or​m i​za​do
que pas​sa​va e des​c o​briu que não po​de​r ía alu​gar um car​r o no ae​r o​por​to. Tam​bém
não en​c on​tra​r ia táxi, por​que, com a tem​pes​ta​de, to​dos os tá​xis es​ta​vam ocu​pa​dos
na ci​da​de. Ti​nha que ar​r an​j ar uma ca​r o​na. Vi​r ou-se para um lado, para o ou​tro,
e aca​bou co​li​din​do de fren​te com um ho​m em de ca​be​lo gri​sa​lho, alto e ma​gro.
— Sou pa​dre, meu fi​lho — dis​se o es​tra​nho. — Te​nho que ir ao Mo​tel Tran​-
qüi​li​da​de. Um caso de vida ou mor​te. Te​nho que ir ao mo​tel... o mais ra​pi​da​m en​-
te pos​sí​vel. Pode me dar uma ca​r o​na?
Dom ia sen​ta​do ao lado de Gin​ger, co​la​do à por​ta da ca​m i​o​ne​ta de Ned, ten​-
so como nun​c a em sua vida. A fren​te, ape​nas a neve, in​f in​dá​veis cor​ti​nas bran​c as
que o car​r o rom​pia uma a uma, des​c o​brin​do que de​pois da pri​m ei​r a ha​via uma
se​gun​da, e ou​tra, e ou​tra, sem nun​c a aca​bar.
Can​sa​do de con​tar cor​ti​nas de neve, ele con​c en​trou-se no mo​ti​vo de sua ten​-
são. Con​c luiu que es​ta​va com medo de, como no caso dos ja​tos, lem​brar-se de
algo mais, tal​vez de tudo. O que te-ria acon​te​c i​do de​pois da pas​sa​gem do ter​c ei​r o
jato, em voo tão bai​xo que o fez jo​gar-se no chão?
A ne​vas​c a tor​na​va a tar​de ain​da mais es​c u​r a. Não eram nem cin​c o ho​r as e
já pa​r e​c ia noi​te fe​c ha​da. De qual​quer modo, Dom sa​bia que Jack ain​da não po​-
dia li​gar os fa​r óis, prin​c i​pal​m en​te por cau​sa da neve. Re​f le​ti​da nos mi​lhões de
pe​que​nos cris​tais, a luz ama​r e​la​da se​r ia vi​sí​vel a qui​lô​m e​tros de dis​tân​c ia e aca​-
ba​r ia cha​m an​do a aten​ç ão dos vi​gi​a s.
A cer​ta al​tu​r a do ca​m i​nho, as mar​c as do jipe so​bre a neve fun​da e ma​c ia do​-
bra​r am para les​te. Jack acom​pa​nhou-as com o olhar, pen​sa​ti​vo, e se​guiu em
fren​te, rumo ao nor​te; dali em di​a n​te, gui​ou-se pe​las in​di​c a​ç ões que Dom lhe for​-
ne​c ia, len​do a bús​so​la.
Pou​c o mais à fren​te co​m e​ç a​va a su​bi​da da en​c os​ta. Dom che​gou a pen​sar
que Jack te​r ia que vol​tar e se​guir a tri​lha de Ned
para con​tor​nar a mon​ta​nha em lu​gar de ten​tar es​c a​lá-la. Jack, po​r ém, en​ga​-
tou a mar​c ha, pi​sou fun​do no ace​le​r a​dor e es​pe​r ou que a tra​ç ão nas qua​tro ro​das
con​se​guis​se levá-los para cima. Aos so​la​van​c os, o mo​tor ge​m en​do com o es​f or​-
ço, o jipe co​m e​ç ou a su​bir.
En​tre Jack e Dom, Gin​ger sa​c o​le​j a​va a cada tran​c o dos pneus no ter​r e​no aci​-
den​ta​do. Aos olhos de Dom, pa​r e​c ia mais bo​ni​ta do que nun​c a, o ca​be​lo bri​lhan​-
do, ouro e pra​ta, mais lu​m i​no​so do que a neve.
Avan​ç a​r am vá​r i​os me​tros, mor​r o aci​m a, até atin​gir um pri​m ei​r o pla​tô, liso,
de ter​r a fir​m e. De re​pen​te, Jack pi​sou no bre​que:
— Os ja​tos! — gri​tou.
‘ Dom er​gueu os olhos para o céu, ima​gi​nan​do tra​tar-se de vi​são real. Mas
não: Jack fa​la​va dos mes​m os ja​tos que Dom vira ao sair do res​tau​r an​te. Avi​ões
do pas​sa​do.
— Um... dois... três... qua​tro ja​tos! — ex​c la​m ou Jack, de olhos fe​c ha​dos. —
Vo​a n​do bai​xo. Pa​r e​c e que vão cair em mi​nha ca​be​ç a!
— Só me lem​bro de três — ob​ser​vou Dom.
— O ou​tro apa​r e​c eu quan​do saí do mo​tel. Eu não es​ta​va no res​tau​r an​te
com vo​c ês. Cor​r i para fora de meu quar​to e vi... acho que era um caça-bom​bar​-
dei​r o... sur​gin​do do nada, do meio da es​c u​r i​dão. Você tem ra​zão... es​ta​va mui​to
bai​xo! Uns doze, quin​ze me​tros. O quar​to avi​ã o era o que vo​a ​va mais bai​xo... foi
ele que es​tou​r ou as vi​dra​ç as.
— E de​pois? — Gin​ger per​gun​tou, a voz por um fio, com medo de es​pan​tar
as lem​bran​ç as de Jack.
— O ter​c ei​r o e o quar​to ja​tos, que vo​a ​vam mais bai​xo, to​m a​r am a di​r e​ç ão
da ro​do​via, qua​se ba​ten​do nos fios elé​tri​c os... Dava para ver as tur​bi​nas ron​c an​-
do, cor de fogo. Pas​sa​r am por cima da es​tra​da e se se​pa​r a​r am: um foi para les​te,
o ou​tro para oes​te... Fo​r am e vol​ta​r am. Eu... cor​r i na di​r e​ç ão do gru​po que saía
do res​tau​r an​te. Eram vo​c ês... Eu não sa​bia. Que​r ia per​gun​tar se ti​nham idéia do
que es​ta​va acon​te​c en​do.
A neve ba​tia no pára-bri​sa.
— É só... —Jack de​bru​ç ou-se so​bre o vo​lan​te. — Não con​si​go me lem​brar
de mais nada.
— Fi​que tran​qüi​lo... você vai se lem​brar — Dom ga​r an​tiu. — Os blo​quei​os
já es​tão ce​den​do.
Jack en​ga​tou a mar​c ha e se​guiu em fren​te, rumo a Thun​der Hill.
O co​r o​nel Le​land Falkirk e o te​nen​te Hor​ner, acom​pa​nha​dos por dois sar​gen​-
tos da DERO ar​m a​dos até os den​tes, to​m a​r am um car​r o e ru​m a​r am para o pon​to
em que es​ta​va sen​do mon​ta​do o blo​queio da es​tra​da. Dois gran​des ca​m i​nhões do
Exér​c i​to, atra​ves​sa​dos so​bre o as​f al​to, fe​c ha​vam a es​tra​da a les​te. A oes​te, a bar​-
rei​r a si​tu​a ​va-se dez qui​lô​m e​tros adi​a n​te do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. Por to​dos os la​-
dos viam-se lan​ter​nas de si​na​li​za​ç ão mon​ta​das so​bre ca​va​le​tes. Seis sol​da​dos da
DERO, com abri​gos de in​ver​no, po​li​c i​a ​vam a área. Três de​les, na​que​le mo​m en​-
to, an​da​vam ao lon​go da fila de ve​í​c u​los que se for​m a​va jun​to à bar​r ei​r a, po​li​da​-
men​te ex​pli​c an​do a si​tu​a ​ç ão aos mo​to​r is​tas.
Le​land des​c eu do car​r o e di​r i​giu-se ao sar​gen​to Vin​c e Bi​daki​a n, en​c ar​r e​ga​do
do blo​queio.
— Como es​ta​m os indo? — per​gun​tou.
— Até ago​r a, tudo bem, se​nhor. Há pou​c o mo​vi​m en​to por cau​sa da ne​vas​-
ca. Mui​ta gen​te pa​r ou em Bat​tle Moun​tain para não vi​a ​j ar com esse tem​po. Ou​-
tros fi​c a​r am em Win​ne​m uc​c a. Os ca​m i​nho​nei​r os de​vem ter pre​f e​r i​do pa​r ar
onde es​ta​vam, quan​do a ne​vas​c a co​m e​ç ou. A fila está pe​que​na. Vai de​m o​r ar
mais de uma hora até ter​m os du​zen​tos ve​í​c u​los por aqui.
A idéia era con​se​guir que os mo​to​r is​tas es​pe​r as​sem ali, sem lhes su​ge​r ir que
vol​tas​sem a Bat​tle Moun​tain. Os ho​m ens da DERO ti​nham ins​tru​ç ões para ex​pli​-
car a to​dos que a es​tra​da per​m a​ne​c e​r ía blo​que​a ​da por no má​xi​m o uma hora e
que o me​lhor a fa​zer era es​pe​r ar um pou​c o e se​guir vi​a ​gem com se​gu​r an​ç a.
Um blo​queio mais de​m o​r a​do sig​ni​f i​c a​r ia en​gar​r a​f a​m en​to, com to​dos que​-
ren​do vol​tar até a ci​da​de mais pró​xi​m a, e exi​gi​r ía no​ti​f i​c a​ç ão das au​to​r i​da​des lo​-
cais.
Le​land es​ta​va dis​pos​to a ace​le​r ar a ope​r a​ç ão só para não se en​vol​ver com a
po​lí​c ia, por​que era ine​vi​tá​vel que esta en​tras​se em con​ta​to com o co​m an​do mi​li​-
tar... e mais cedo ou mais tar​de des​c o​bri​r í​a m que es​ta​vam li​dan​do com um re​-
bel​de. Se con​se​guis​se man​tê-los a dis​tân​c ia por ape​nas uma hora, ga​nhan​do tem​-
po para com​ple​tar a ope​r a​ç ão, re​sol​ve​r ia tudo an​tes que eles apa​r e​c es​sem. Bas​-
ta​va-lhe uma hora para apa​nhar as tes​te​m u​nhas e levá-las para Thun​der Hill,
onde nin​guém, nun​c a, po​de​r ia en​c on​trá-las.
— Nao se es​que​ç a de pro​vi​den​c i​a r para que os mo​to​r is​tas te​nham ga​so​li​na
su​f i​c i​e n​te para se​guir vi​a ​gem. Foi por isso que trou​xe​m os nos​sos tan​ques.
— Já es​ta​m os pro​vi​den​c i​a n​do, se​nhor. São as ins​tru​ç ões que re-cebi. — Bi​-
daki​a n per​f i​lou-se.
— A po​lí​c ia ain​da não apa​r e​c eu para me​ter o na​r iz?
— Ain​da não, se​nhor. — O sar​gen​to pas​sou os olhos pela pe-queng fila de
car​r os pa​r a​dos. — Mas logo vai apa​r e​c er.
— Você sabe o que deve di​zer a eles?
— Sim, se​nhor. Um ca​m i​nhão que trans​por​ta​va ma​te​r i​a is para Shenk​f i​e ld
so​f reu um pe​que​no aci​den​te. O aci​den​te pro​vo​c ou um va​za​m en​to de subs​tân​c ia
tó​xi​c a, e nós acha​m os que se​r ia pru​den​te...
— Co​r o​nel! — O te​nen​te Hor​ner apro​xi​m a​va-se, cor​r en​do pela neve, tão
cheio de ca​sa​c os e abri​gos de frio que pa​r e​c ia duas ve​zes mais gor​do que o nor​-
mal. — Uma men​sa​gem do sar​gen​to Fixx, da es​c u​ta, em Shenk​f i​e ld. Acon​te​c eu
al​gu​m a coi​sa com as tes​te​m u​nhas. O sar​gen​to não ouve vo​zes há quin​ze mi​nu​tos,
só um rá​dio to​c an​do mui​to alto. Ele acha que não há mais nin​guém no mo​tel.
— Es​tão no res​tau​r an​te...
— Não, co​r o​nel. Fixx acha que eles... fo​r am em​bo​r a...
— “Fo​r am em​bo​r a”... para onde?! — Le​land nem es​pe​r ou a res​pos​ta, em
par​te por​que não que​r ia ou​vir, em par​te por​que sa​bia. Cor​r eu de vol​ta para o car​-
ro.
Cha​m a​va-se Ta​lia Erwy, e era igual​zi​nha a Ma​r ie Dress​ler, a par​c ei​r a de
Wal​la​c e Beery na​que​les di​vi​nos fil​m es an​ti​gos. Na ver​da​de, pa​r e​c ia mais alta e
mai​or que Dress​ler, que a seu lado se​r ia uma mu​lher mi​ú​da, ape​sar dos os​sos
gran​des, do ros​to re​don​do, da boca enor​m e e do quei​xo duro. De qual​quer modo,
Ta​lia era a mais fan​tás​ti​c a das mu​lhe​r es aos olhos de Parker Fai​ne, não só por​que
con​c or​da​va em lhes dar uma ca​r o​na, como tam​bém por​que in​sis​tia em não re​-
ce​ber um vin​tém.
— Para mim vai ser óti​m o — dis​se, rin​do um pou​c o como Ma-rie Dress​ler.
— Nao te​nho nada para fa​zer. Sa​bem qual era meu pro​gra​m a? Ir para casa e
pre​pa​r ar al​gu​m a coi​sa para co​m er... so​zi​nha. Sou pés​si​m a co​zi​nhei​r a... Vo​c ês
apa​r e​c e​r am na hora cer​ta. As​sim pos​so adi​a r por al​guns mi​nu​tos o su​plí​c io de
co​m er meu hor​r í​vel bolo de car​ne... Sou eu que agra​de​ç o!
Ta​lia di​r i​gia um car​r o ve​lho, com mais de dez anos, po​r ém bem equi​pa​do,
com pneus de neve e cor​r en​tes. Fez cara feia quan​do Parker per​gun​tou se o car​r o
an​da​va.
— Meu “Ve​lhão”?! Vo​c ês nao o co​nhe​c em. O “Ve​lhão” che​ga a qual​quer
lu​gar do mun​do, faça chu​va, faça sol... ou neve. En​trem aí.
Parker sen​tou-se ao lado dela, e o pa​dre Wy ​c a​zik aco​m o​dou-se no ban​c o de
trás. Não ro​da​r am nem dois qui​lô​m e​tros quan​do ou​vi​r am, pelo rá​dio, a no​tí​c ia do
va​za​m en​to de gás e do blo​queio da ro​do​via.
— Fi​lhos da mãe, in​c om​pe​ten​tes, bur​r os... Ta​lia au​m en​tou o vo​lu​m e do rá​-
dio e er​gueu a voz, para que os dois ou​vis​sem, ao mes​m o tem​po, as no​tí​c i​a s e sua
opi​ni​ã o so​bre os mi​li​ta​r es. — Uma dro​ga pe​r i​go​sa, e eles aí, nos ca​m i​nhões, para
lá e para cá, como ma​lu​c os! Em dois anos, é a se​gun​da vez que es​ses ve​ne​nos
pin​gam por aí!
Nem Parker nem Ste​f an con​se​gui​r am res​pon​der, se​quer com um rá​pi​do
olhar de sim​pa​tia. Co​m e​ç a​va o úl​ti​m o ato da tra​gé​dia.
— E ago​r a? — ela per​gun​tou vi​r an​do-se um para o ou​tro. — O que que​r em
que eu faça?
— Há al​gum lu​gar onde pos​sa​m os alu​gar um ve​í​c u​lo com tra​ç ão nas qua​-
tro ro​das? Um jipe tal​vez...
— Há uma loja que ven​de ji​pes.
— E será que você nos le​va​r ia até lá? — Parker per​gun​tou, sor​r in​do.
— Eu e o “Ve​lhão” po​de​m os levá-los aon​de qui​se​r em, mes​m o que cai​a m
ca​ni​ve​tes.
0 ven​de​dor não era co​lo​r i​do e ani​m a​do como Ta​lia; ao con​trá​r io: Fe​lix Schel​-
le​nhof era cin​zen​to e so​r um​bá​ti​c o da ca​be​ç a aos pés. Rou​pa cin​zen​ta, voz cin​zen​-
ta. Dis​se a Parker que não alu​ga​vam car​r os por dia. Cla​r o, ti​nham vá​r i​os ji​pes à
ven​da, mas era im​pos​sí​vel con​c luir uma ven​da em vin​te mi​nu​tos. No caso de fi​-
nan​c i​a ​m en​to, pre​c i​sa​r i​a m de vin​te e qua​tro ho​r as para ava​li​a r o cré​di​to do com​-
pra​dor. Não acei​ta​vam che​ques de ou​tros Es​ta​dos. Só ven​di​a m à vis​ta e em di​-
nhei​r o.
— Vou pa​gar com car​tão de cré​di​to — anun​c i​ou Parker, en​f i​a n​do a mão
no bol​so.
Im​pos​sí​vel. A loja acei​ta​va car​tões ape​nas para a com​pra de aces​só​r i​os.
Nun​c a, em tem​po al​gum, apa​r e​c e​r a al​guém que​r en​do pa​gar um jipe in​tei​r o com
car​tões de cré​di​to. Um car​r o... me​di​a n​te um sim​ples re​tân​gu​lo de plás​ti​c o!
— Meu car​tão não tem li​m i​te de com​pra. Veja... quan​do es​ti​ve em Pa​r is,
cer​ta vez, pas​sei por uma ga​le​r ia e vi um qua​dro de Dali ex​pos​to. Lin​do! Cus​ta​va
trin​ta mil dó​la​r es... e a ga​le​r ia con​c or​dou em ven​dê-lo...
Com ges​tos de cin​zen​ta po​li​dez, Schel​le​nhof le​van​tou-se para dis​pen​sá-los.
— Pelo amor de Deus! Tra​te de nos ven​der esse jipe logo! — Ste​f an le​-
van​tou-se e es​m ur​r ou a mesa, ver​m e​lho da tes​ta ao pes​c o​ç o. — E um caso de
vida ou mor​te. Pe​gue esse te​le​f o​ne e li​gue para a em​pre​sa do car​tão de cré​di​to.
— Ou​tro mur​r o na mesa. — Per​gun​te se au​to​r i​zam a ven​da. Mas seja rá​pi​do! —
Deu o ter​c ei​r o mur​r o, de​f i​ni​ti​vo.
A fú​r ia di​vi​na, ou os mús​c u​los de Ste​f an, ou as duas coi​sas jun​tas con​ven​c e​-
ram o ho​m em. Sem di​zer nada, ele pe​gou o car​tão e cor​r eu para o te​le​f o​ne.
— Sim, se​nhor! — Parker ex​c la​m ou, per​ple​xo. — Se o se​nhor fos​se um
des​ses pre​ga​do​r es que apa​r e​c em na te​le​vi​são, es​ta​r ia mi​li​o​ná​r io!
— Não es​tou in​te​r es​sa​do em ser mi​li​o​ná​r io, mas já sa​c u​di pelo
co​la​r i​nho um ou dois pe​c a​do​r es até fazê-los des​c o​bri​r em a ver​da​de de Deus.
— Não te​nho dú​vi​das...
Schel​le​nhof vol​tou, me​nos cin​zen​to do que an​tes, por​que a ven​da fora apro​-
va​da e ele an​te​via a co​m is​são. Tra​zia uma dú​zia de for​m u​lá​r i​os e mos​trou a
Parker onde as​si​nar.
— Que se​m a​na... — qua​se sor​r iu. — Na se​gun​da-fei​r a me apa​r e​c eu um
ma​lu​c o que com​prou um jipe e pa​gou em di​nhei​r o... um saco de no​tas de vin​te
dó​la​r es! Deve ter ga​nho no cas​si​no. E ago​r a vo​c ês... A se​m a​na mal co​m e​ç ou!
— Que emo​ç ão! — Parker fez uma ca​r e​ta e pôs-se a as​si​nar os for​m u​lá​r i​-
os.
O pa​dre Wy ​c a​zik apa​nhou o te​le​f o​ne e pe​diu à te​le​f o​nis​ta que fi​zes​se uma li​-
ga​ç ão a co​brar para Chi​c a​go, em nome de Mi​c ha​e l Ger​r a​no. Mal o cura o aten​-
deu, Ste​f an con​tou-lhe so​bre Parker e o blo​queio da ro​do​via. De​pois, apro​vei​tan​-
do-se do mo​m en​to em que Schel​le​nhof se afas​tou, dis​se algo que sur​preen​deu o
pin​tor:
— E pos​sí​vel que nos acon​te​ç a al​gu​m a coi​sa ain​da hoje. Por​tan​to, no ins​-
tan​te em que eu des​li​gar, te​le​f o​ne para Si​m on 2o-der​m an, na re​da​ç ão do Tri​bu​-
ne, e con​te-lhe tudo. Abra o jogo. Con​te a ele as li​ga​ç ões com o caso do po​li​c i​a l
Tolk, com Emmy Hal​bourg, com Cal Shark​le, tudo! Con​te a ele o que acon​te​-
ceu em Ne​va​da há qua​se dois anos, na​que​le ve​r ão. Con​te-lhe o que eles vi​r am.
Se ele não acre​di​tar, diga que fa​lou co​m i​go, que eu man​dei você pro​c u​r á-lo e
que eu sei que é tudo ver​da​de. Si​m on me co​nhe​c e e sabe que sou duro de con​-
ven​c er.
Quan​do Ste​f an des​li​gou, Parker ar​r e​ga​lou os olhos.
— O se​nhor... sabe? Sabe o que acon​te​c eu no mo​tel?
— Acho que sei. Eu ex​pli​c o pelo ca​m i​nho.
Ned di​r i​gia o jipe rumo a les​te, com Sandy e Fay e ao lado, olhan​do para a
vas​ta imen​si​dão bran​c a que pa​r e​c ia co​brir o mun​do.
No ban​c o de trás, aper​ta​do en​tre Bren​dan e Jor​j a com Ma​r eie no colo, Er​nie
ten​ta​va con​ven​c er-se de que não se ren​de​r ia ao medo no mo​m en​to em que as úl​-
ti​m as fra​c as lu​zes do dia de​sa​pa​r e​c es-
sem. Con​f i​a ​va nas lem​bran​ç as de Dom. Se este con​se​guiu lem​brar-se dos
ja​tos, ele tam​bém po​de​r ia e en​tão es​ta​r ia li​vre para sem​pre.
— Che​ga​m os à es​tra​da mu​ni​c i​pal — Fay e anun​c i​ou. Doze qui​lô​m e​tros adi​-
an​te fi​c a​va a en​tra​da de Thun​der Hill.
— De​pres​sa, Ned — Sandy to​c ou o bra​ç o do ma​r i​do.
To​dos pen​sa​vam no mes​m o pro​ble​m a: es​ta​vam em ple​na es​tra​da, a pou​c os
qui​lô​m e​tros de Thun​der Hill. A qual​quer mo​m en​to po​dia apa​r e​c er um guar​da,
até por aca​so, e des​c o​bri-los.
Ned pi​sou no ace​le​r a​dor, atra​ves​sou a es​tra​da e vol​tou ao ter​r e​no aci​den​ta​do
do ou​tro lado, fa​zen​do tudo tão rá​pi​do que Bren-dan e Jor​j a fo​r am jo​ga​dos so​bre
Er​nie, en​c o​lhi​do no ban​c o. No​vai​hen​te es​c on​de​r am-se en​tre cor​ti​nas de neve e
ru​m a​r am para a pró​xi​m a es​tra​da mu​ni​c i​pal, dois qui​lô​m e​tros a les​te. Ali, afi​nal,
es​ta​r i​a m a ca​m i​nho da úl​ti​m a es​tra​da, pa​r a​le​la à ro​do​via, que os le​va​r ia a Elko.
Er​nie es​pi​a ​va pela ja​ne​la e via a noi​te che​gan​do.
Não... era bo​ba​gem gas​tar ener​gia numa fo​bia idi​o​ta. Como po​dia ter medo
do es​c u​r o quan​do tan​tas ame​a ​ç as re​a is pe​sa​vam so​bre sua ca​be​ç a, so​bre Fay e,
so​bre os ami​gos? Era mui​to fá​c il per​der-se no meio de uma tem​pes​ta​de, fora da
es​tra​da. Era fá​c il não ver um bu​r a​c o co​ber​to de neve e cair an​tes de per​c e​ber
o que se pas​sa​va. Ned com cer​te​za já adi​vi​nha​va o pe​r i​go, pois ago​r a di​r i​gia de​-
va​gar, aten​to aos aci​den​tes do ter​r e​no.
Vou te​m er o que vale a pena te​m er, Er​nie pen​sou, fran​zin​do a tes​ta numa ca​-
re​ta zan​ga​da. Não te​nho medo do es​c u​r o, dro​ga!
Como se ou​vis​se seu pen​sa​m en​to, Fay e vi​r ou-se para trás e sor​r iu para o
ma​r i​do. Er​nie fi​tou-a nos olhos e fez-lhe um si​nal de po​si​ti​vo com o po​le​gar, qua​-
se sem tre​m er. Fay e ia di​zer al​gu​m a coi​sa, che​gou a le​van​tar a mão para de​vol​-
ver-lhe o si​nal... e foi en​tão que Ma​r eie gri​tou.
Sen​ta​do no es​c ri​tó​r io de Thun​der Hill onde tra​ba​lha​va, nas en​tra​nhas da ter​-
ra, o dr. Ben​nell pen​sa​va, mer​gu​lha​do na pe​nun-bra, ter​r i​vel​m en​te pre​o​c u​pa​do. A
úni​c a luz exis​ten​te vi​nha da pe​que​na ja​ne​la que se abria para o vão cen​tral da
gran​de ca​ver​na
do se​gun​do piso e era in​su​f i​c i​e n​te para ilu​m i​nar o sa​lão sub​terrâ​neo. Na
mesa, a sua fren​te, es​ta​vam as seis lau​das da​ti​lo​gra​f a​das que lera e re​le​r a cen​te​-
nas de ve​zes e qua​se co​nhe​c ia de cor: o per​f il psi​c o​ló​gi​c o de Le​land Falkirk, rou​-
ba​do do com​pu​ta​dor cen​tral que guar​da​va as fi​c has pes​so​a is dos sol​da​dos da
DERO es​c a​la​dos para a se​gu​r an​ç a de Thun​der Hill.
Dou​tor em bi​o​lo​gia e quí​m i​c a, es​tu​di​o​so de fí​si​c a e an​tro​po​lo​gia, mú​si​c o for​-
ma​do em vi​o​lão e pi​a ​no, au​tor de li​vros tão di​f e​r en​tes quan​to um tra​ta​do de neu​-
ro-his​to​lo​gia e uma tese so​bre a obra de John D. Mac​Do​nald, co​nhe​c e​dor de vi​-
nhos fi​nos, apai​xo​na​do pe​los fil​m es de Clint Eastwo​od — o que o cre​den​c i​a ​va
como o úl​ti​m o dos ilu​m i​nis​tas vi​vos em ple​no fim de sé​c u​lo 20 —, Mi​les Ben-nell
era en​tre ou​tras coi​sas uma au​to​r i​da​de mun​di​a l de in​f or​m á​ti​c a. Uma pai​xão que
lhe vi​nha dos tem​pos de es​tu​dan​te.
De​zoi​to me​ses an​tes, quan​do o tra​ba​lho que o re​ti​nha ali o obri​gou a ter fre​-
qüen​tes con​ta​tos com Le​land Falkirk, Ben​nell des​c o​bri​r a que o co​r o​nel so​f ria de
gra​ves per​tur​ba​ç ões men​tais, que o tor​na​r i​a m inap​to para o ser​vi​ç o mi​li​tar, não
fos​se ele uma es​pé​c ie mui​to rara de lou​c o. Le​land sa​bia usar a pró​pria lou​c u​-
ra para trans​f or​m ar-se em má​qui​na efi​c i​e n​te e pro​du​ti​va, sem dei​xar de com​-
por​tar-se como se fos​se nor​m al. A par​tir daí Mi​les de​c i​diu in​f or​m ar-se so​bre ele.
Por que pa​r e​c ia sem​pre tão ten​so? Que tipo de es​tí​m u​lo o fa​r ia des​c on​tro​lar-se?
As res​pos​tas es​ta​vam nos com​pu​ta​do​r es da uni​da​de sob seu co​m an​do, e Mi​les
co​m e​ç ou a usar seu pró​prio ter​m i​nal para ter aces​so aos ar​qui​vos da base
da DERO e aos dos​si​ê s ul​tra-se​c re​tos de Washing​ton.
Quan​do afi​nal des​c o​briu o tex​to que ti​nha à sua fren​te, o per​f il psi​c o​ló​gi​c o de
Le​land Falkirk, sen​tiu ca​la​f ri​os, mas de​c i​diu não aban​do​nar o pro​j e​to de Thun​der
Hill, mes​m o com ris​c o adi​c i​o​nal de ter que con​vi​ver com um ho​m em de​se​qui​li​-
bra​do e pe​r i​go​so como o co​r o​nel. Não ha​via pe​r i​go ime​di​a ​to, des​de que tra​tas​-
se Falkirk com o res​pei​to e a so​le​ni​da​de que sua lou​c u​r a pa​r e​c ia exi​gir. Não po​dia
des​c ui​dar-se; qual​quer des​li​ze, e Le​land sa​be​r ia que ha​via al​gu​m a coi​sa por trás
da re​ve​r ên​c ia. Mas não cor​r e​r ia tal ris​c o, des​de que o tra​tas​se com po​li​dez e o
man​ti​ves​se a dis​tân​c ia.
Tudo cor​r eu ra​zo​a ​vel​m en​te bem até que, de re​pen​te, Falkirk to​m ou o po​der,
as​su​m iu o con​tro​le ab​so​lu​to da ope​r a​ç ão. E ali es​ta​va Ben​nell, com o gru​po de ci​-
en​tis​tas reu​ni​dos para o pro​j e​to, à mer​c ê de um lou​c o var​r i​do. En​ter​r a​dos vi​vos
em Thun​der Hill, à es​pe​r a de que Le​land de​c i​dis​se o que fa​zer com eles, jul​gan​-
do-os con​f or​m e um có​di​go alu​c i​na​do de ino​c en​tes e cul​pa​dos.
0 psi​c ó​lo​go mi​li​tar — mais mi​li​tar que psi​c ó​lo​go — en​c ar​r e​ga​do de re​di​gir o
per​f il do co​r o​nel, es​c re​via mal e, em​bo​r a de​c la​r as​se seu pa​c i​e n​te “ex​c ep​c i​o​nal​-
men​te apto” para cum​prir suas fun​ç ões, nao dei​xa​va de ob​ser​var al​guns fa​tos in​-
tri​gan​tes. Para Mi-les, ex​c e​j en​te psi​c ó​lo​go e ci​e n​tis​ta ha​bi​tu​a ​do a ler nas en​tre​li​-
nhas, o tex​to era cla​r o. E ter​r i​vel​m en​te as​sus​ta​dor. Em pri​m ei​r o lu​gar, por​que
afir​m a​va que Le​land Falkirk te​m ia e ao mes​m o tem​po des​pre​za​va to​das as for​-
mas de re​li​gi​ã o. Sa​ben​do que, para mui​tos de seus co​le​gas, o amor a Deus con​-
fun​dia-se com o amor à pá​tria, o co​r o​nel fi​ze​r a o pos​sí​vel e o im​pos​sí​vel para
ocul​tar seus sen​ti​m en​tos anti-re​li​gi​o​sos. A ex​pli​c a​ç ão pa​r e​c ia sim​ples: infân​c ia
numa fa​m í​lia de fa​ná​ti​c os. Sin​to​m a que, em mui​tos ca​sos, não se​r ia gra​ve, mas
que, da​das as cir​c uns​tân​c i​a s do pro​j e​to em pau​ta, tor​na​va-se mui​to sé​r io. Por​que
ha​via boa dose de mis​té​r io e mis​ti​c is​m o no se​gre​do de Thun​der Hill, o que tal​vez
dis​pa​r as​se os me​c a​nis​m os de re​j ei​ç ão mais alu​c i​na​dos de Le​land Falkirk.
Além dis​so, Le​land era ob​c e​c a​do pela ne​c es​si​da​de de con​tro​lar tudo e to​dos.
Sua ne​c es​si​da​de de man​ter o con​tro​le era uma com​pul​são, mui​to fa​c il​m en​te ex​-
pli​c á​vel, pois não pas​sa​va de um re​f le​xo de medo de ser der​r o​ta​do pe​los pró​pri​os
fan​tas​m as pes​so​a is. Sem um con​tro​le rí​gi​do, a lou​c u​r a vi​r ia à tona, fa​zen​do-o
per​der as di​vi​sas, o pres​tí​gio e o po​der.
Mi​les es​tre​m e​c eu, pres​sen​tin​do a ter​r í​vel pres​são que o se​gre​do de Thun​der
Hill exer​c ia so​bre aque​le cé​r e​bro do​e n​te. Como nin​guém, Falkirk sa​bia que um
dia tal se​gre​do se​r ia des​c o​ber​to e di​vul​ga​do aos qua​tro ven​tos, es​c a​pan​do a seu
con​tro​le. A ten​são era su​f i​c i​e n​te para que, de re​pen​te, o co​r o​nel ex​plo​dis​se
por den​tro para sem​pre, ou para fora — e nes​te caso ele se trans-
for​m a​r ia numa bom​ba viva, com po​der su​f i​c i​e n​te para des​truir o pla​ne​ta.
Em ter​c ei​r o lu​gar, Falkirk so​f ria de claus​tro​f o​bia agu​da, que se acen​tu​a ​va em
lo​c ais sub​terrâ​ne​os. Res​quí​c i​os de medo in​f an​til de “ar​der para sem​pre no in​f er​-
no”, como seus pais não can​sa​vam de re​pe​tir. A claus​tro​f o​bia le​va​va-o a des​c on​-
fi​a r de qual​quer pes​soa que, como ele, vi​ves​se nas pro​f un​de​zas da ter​r a.
O pior fora dei​xa​do para o fim do re​la​tó​r io: Le​land Falkirk era ma​so​quis​ta
com​pul​si​vo. Gos​ta​va de sen​tir dor e medo. Isso po​de​r ía levá-lo, sem pen​sar mui​-
to, a ado​tar al​gum tipo de “so​lu​ç ão fi​nal” para si pró​prio e para to​dos os que co​-
nhe​c i​a m o se​gre​do. In​ven​ta​r ia al​gu​m a coi​sa como sa​c ri​f i​c ar-se pela hu​m a​ni​da​-
de, ou en​tre​gar-se para sal​var o mun​do... Só Deus sabe do que se​r ia ca​paz!
Mi​les co​briu o ros​to com as mãos e bai​xou a ca​be​ç a. Não era o te​m or à
mor​te que o de​ses​pe​r a​va. Nem o medo de ver mor​r e​r em seus com​pa​nhei​r os de
pes​qui​sa. Era mais que isso. Se Falkirk re​sol​ves​se matá-los para que não re​ve​las​-
sem o se​gre​do, es​ta​r ia ne​gan​do a úni​c a chan​c e de con​se​guir, de​pois de mi​lê​ni​os,
ven​c er a fome, a mi​sé​r ia, a mor​te e a dor. Es​ta​r ia rou​ban​do à hu​m a​ni​da​de o prê​-
mio da trans​c en​dên​c ia.
Na co​zi​nha dos Block, Le​land Falkirk fo​lhe​a ​va o ál​bum de Ma​r eie: luas e
mais luas, ver​m e​lhas, cor de san​gue.
Do lado de fora do mo​tel, doze ho​m ens da DERO vas​c u​lha​vam o chão à pro​-
cu​r a de pis​tas, pas​san​do in​f or​m a​ç ões um para ou​tro, aos gri​tos, por cau​sa do ven​-
to que as​so​bi​a ​va for​te.
Res​pi​r an​do com​pas​sa​da​m en​te, con​tan​do até três an​tes de dei​xar sair o ar dos
pulmões, num exer​c í​c io que sem​pre o fa​zia re​la​xar, Falkirk vi​r a​va uma a uma as
pá​gi​nas do ál​bum de Ma​r eie: luas ver​m e​lhas, cen​te​nas de​las.
O te​nen​te Hor​ner su​biu as es​c a​das e apa​r e​c eu na por​ta da co​zi​nha:
— Re​vis​ta​m os os vin​te quar​tos do mo​tel. Es​tão va​zi​os. Eles es​c a​pa​r am pe​los
fun​dos. Há mar​c as de pneus na neve lá trás. Mas são mui​to fra​c as. Con​ti​nua ne​-
van​do, e a neve está en​c o​brin​do as mar​c as. De qual​quer modo, eles não po​dem
es​tar lon​ge.
— Man​dou al​guém atrás de​les? — Falkirk per​gun​tou.
— Ain​da não. Mas reu​ni al​guns ho​m ens, que só es​pe​r am suas or​dens.
Le​land res​pi​r ou fun​do, um-dois-três, para den​tro e para fora, até sen​tir que a
voz so​a ​r ia cal​m a, nor​m al; en​tão or​de​nou:
— Diga-lhes que sai​a m já.
— Sim, se​nhor. Va​m os apa​nhá-los em me​nos de meia hora.
— Te​nho cer​te​za dis​so. — A voz, ri​go​r o​sa​m en​te sob con​tro​le, con​f ir​m a​va o
per​f ei​to che​f e mi​li​tar no co​m an​do de seus ho​m ens. — De​pois de des​pa​c har os
sol​da​dos, en​c on​tre-me lá em​bai​xo e leve um mapa de toda a re​gi​ã o. Eles es​tão
ten​tan​do che​gar a Elko por al​gu​m a es​tra​da mu​ni​c i​pal. Va​m os des​c o​brir qual é e
in​ter​c ep​tá-los na me​ta​de do ca​m i​nho, quan​do me​nos es​pe​r a​r em.
— Sim, se​nhor.
Hor​ner des​c eu, os pas​sos apres​sa​dos so​a n​do pela es​c a​da. Falkirk vol​tou a fo​-
lhe​a r o ál​bum. Já na rua, o te​nen​te gri​ta​va ins​tru​ç ões para os sol​da​dos. Ou​tra fo​-
lha co​ber​ta de luas ver​m e​lhas, e ou​tra, e mais ou​tra.
A fren​te do mo​tel, os car​r os aci​o​na​vam os mo​to​r es. Oito ho​m ens, di​vi​di​dos
em dois gru​pos de qua​tro, um em cada car​r o, par​ti​a m no en​c al​ç o dos fu​gi​ti​vos.
Le​land ain​da fo​lhe​ou o ál​bum, to​c an​do com a pon​ta da unha os re​c or​tes co​-
la​dos. De re​pen​te, sem mo​ver um mús​c u​lo do ros​to, apa​nhou o ál​bum e jo​gou-o
com for​ç a con​tra a pa​r e​de. Al​guns re​c or​tes sol​ta​r am-se e flu​tu​a ​r am no ar, an​tes
de cair num mo​vi​m en​to su​a ​ve e on​du​lan​te. So​bre o apa​r a​dor, Falkirk viu
uma jar​r a de cerâ​m i​c a: um ur​si​nho ri​so​nho com as pa​tas di​a n​tei​r as so​bre a bar​-
ri​ga. Apa​nhou-a e ati​r ou-a ao chão, fi​c an​do a ou​vir o ti​lin​tar dos ca​c os so​bre as
la​j o​tas. Bis​c oi​tos es​pa​lha​r am-se so​bre as fo​lhas ar​r an​c a​das do ál​bum, mis​tu​r an​-
do-se aos ca​c os. De​pois foi o rá​dio de pi​lha que voou na di​r e​ç ão das lâm​pa​das e
es​pa​ti​f ou-se so​bre o piso. O açu​c a​r ei​r o ba​teu na por​ta, es​par​r a​m an​do seu con​te​ú​-
do para todo lado. A ces​ta de pão al​ve​j ou a pa​r e​de. A ca​f e​tei​r a au​to​m á​ti​c a re​-
ben​tou o vi​dro do fo​gão.
Na co​zi​nha em de​sor​dem, ape​nas o ron​c o da agi​ta​da res​pi​r a-
ção de Le​land cor​ta​va o si​lên​c io. Pas​sa​da a fú​r ia, o co​r o​nel co​m e​ç ou a con​-
tro​lar-se, ins​pi​r an​do... um-dois-três, ex​pi​r an​do... um-dois-três. Cal​m a​m en​te,
quan​do a res​pi​r a​ç ão se nor​m a​li​zou, ele saiu da co​zi​nha, des​c eu a es​c a​da e apro​-
xi​m ou-se da mesa onde Hor-ner o es​pe​r a​va, sen​ta​do à fren​te do mapa aber​to.
Cal​m a​m en​te, os dois de​bru​ç a​r am-se so​bre a mesa e co​m e​ç a​r am a pla​ne​j ar a
ope​r a​ç ão de in​ter​c ep​ta​ç ão.
— A Lua! — Ma​r eie gri​tou. — Ma​m ãe... Olhe! A Lua! Mas, por quê, ma​-
mãe?! Olhe só... a Lua!
Es​bra​ve​j an​do, sem pa​r ar de gri​tar, a me​ni​na sal​tou do colo de Jor​j a, que inu​-
til​m en​te ten​tou se​gu​r á-la. As​sus​ta​do com os gri​tos, Ned bre​c ou o jipe. Ma​r eie es​-
mur​r a​va a ja​ne​la, ao lado de Er​nie, sem sa​ber o que fa​zer para es​c a​par da lem​-
bran​ç a que co​m e​ç a​va a vol​tar. Er​nie agar​r ou-a com for​ç a e en​tre​gou-a a Bren​-
dan. A me​ni​na ain​da gri​ta​va, pre​sa en​tre os bra​ç os do pa​dre mas, aos pou​c os, foi
se acal​m an​do até que pa​r ou de gri​tar e re​c o​m e​ç ou sua can​ti​le​na mo​nó​to​na:
— A Lua... A Lua... — Al​guns ins​tan​tes de​pois, vol​tou a agi​tar-se.
— Oh, não dei​xe que eles me pe​guem... Não dei​xe, por fa​vor...
— As​sus​ta​da, os olhos ar​r e​ga​la​dos, Ma​r eie sal​tou do colo de Bren​dan e
pen​du​r ou-se ao pes​c o​ç o de Er​nie.
— Acal​m e-se, que​r i​da... Está tudo bem. E cla​r o que não vou dei​xar que le​-
vem você. Está tudo bem... — Er​nie abra​ç ou-a, aca​r i​c i​a n​do-lhe a ca​be​ç a.
Ned en​gre​nou a mar​c ha, e o gru​po ou​tra vez mer​gu​lhou na es​c u​r i​dão da ne​-
vas​c a.
De​pois de me​ses de ter​r or, de​ses​pe​r a​do cada vez que pres​sen​tia a apro​xi​m a​-
ção da noi​te, Er​nie pela pri​m ei​r a vez sen​tia-se fe​liz, em paz, des​c o​brin​do que ha​-
via al​guém, no mun​do, que pre​c i​sa​va mui​to de sua for​ç a e de sua co​r a​gem. Es​-
trei​tan​do a me​ni​na con​tra o pei​to, Er​nie afa​ga​va-a e se​c a​va-lhe as lá​gri​m as, fa​-
la​va bai​xi​nho para con​so​lá-la. E es​que​c ia-se da noi​te, já es​c u​r a, já co​brin​do o
mun​do, co​la​da aos vi​dros do jipe.
Jack di​r i​gia a ca​m i​o​ne​ta rumo a les​te, até que, afi​nal, che​gou
à es​tra​da que Ned de​ve​r ia ter atra​ves​sa​do al​guns mi​nu​tos an​tes. En​tão do​-
brou e ru​m ou para o de​pó​si​to de Thun​der Hill, se​guin​do o mes​m o ca​m i​nho que
Dom e Er​nie ha​vi​a m per​c or​r i​do de ma​nhã.
Quan​to mais su​bi​a m a mon​ta​nha, mais for​te ne​va​va.
— Aque​las lâm​pa​das ace​sas, lá lon​ge, são a en​tra​da do de​pó​si​to — in​f or​-
mou Dom, apon​tan​do duas lâm​pa​das de va​por de mer​c ú​r io que bri​lha​vam va​ga​-
men​te en​tre os flo​c os de neve.
Jack mal con​se​guia ver o per​f il da gua​r i​ta, lon​ge, além da cer​c a. Des​li​gou os
fa​r óis e di​m i​nuiu a mar​c ha, dan​do-se tem​po para ha​bi​tu​a r-se à fal​ta de luz.
Quan​to ao ru​í​do do mo​tor, não ha​via ra​zão para se pre​o​c u​par, pois to​dos os ru​í​dos
su​m i​a m, per​di​dos nos ge​m i​dos do ven​to. Pou​c o se via do ca​m i​nho à fren​te, já
que os lim​pa​do​r es de pára-bri​sa es​ta​vam gru​da​dos aos vi​dros, pe​sa​dos de neve,
co​m e​ç an​do a con​ge​lar.
— Acho que po​de​r i​a ​m os acen​der os fa​r óis — Gin​ger su​ge​r iu, a voz ten​sa,
os olhos co​la​dos à es​tra​da.
— Nada dis​so. Te​m os que ir no es​c u​r o até lá.
No mo​tel, Le​land Falkirk e o te​nen​te Hor​ner con​ti​nu​a ​vam ana​li​san​do as pos​-
sí​veis ro​tas de fuga, quan​do vol​ta​r am os sol​da​dos en​c ar​r e​ga​dos de se​guir as tes​te​-
mu​nhas. Não con​se​gui​r am acom​pa​nhar a tri​lha, por cau​sa da neve e do ven​to.
As mar​c as dos pneus de​sa​pa​r e​c i​a m a pou​c os qui​lô​m e​tros dali. De qual​quer
modo, ha​via in​dí​c i​os de que pelo me​nos um dos car​r os ru​m a​r a para o les​te.
Como não ha​via mo​ti​vo para su​por que as tes​te​m u​nhas pre​ten​des​sem se​pa​r ar-se,
a con​c lu​são ób​via era que os dois car​r os se​gui​a m na mes​m a di​r e​ç ão.
— Cla​r o, es​tão to​dos indo para Elko — Le​land co​m en​tou, sem des​vi​a r os
olhos do mapa. — E a úni​c a via de aces​so para fora do Es​ta​do. As duas ou​tras al​-
ter​na​ti​vas, Bat​tle Moun​tain ou Win-ne​m uc​c a, são mui​to dis​tan​tes e pe​que​nas de​-
mais para que eles pos​sam es​c on​der-se lá.
O te​nen​te Hor​ner apon​tou para o mapa com o dedo gor​do como um cha​r u​to.
— Esta é a es​tra​da que pas​sa por trás do mo​tel e vai até Thun-
der Hill — ex​pli​c ou. — Já de​vem ter che​ga​do à es​tra​da e es​tão se​guin​do
para o les​te.
— Por onde te​r ão que pas​sar para che​gar a Elko?
— Só há um ca​m i​nho... Vis​ta Val​ley. Sete qui​lô​m e​tros a les​te da es​tra​da
que vai até o de​pó​si​to. — O te​nen​te Hor​ner le​van​tou a ca​be​ç a e olhou para
Falkirk.
O dr. Mi​les Ben​nell ou​viu al​guém ba​ter à por​ta e gri​tou:
— En​tre! Está aber​ta.
— O que está fa​zen​do, sen​ta​do no es​c u​r o? — per​gun​tou o ge​ne​r al Al​va​r a​-
do. — Se Falkirk o vis​se aí, man​da​r ia pren​dê-lo por “ati​tu​de sus​pei​ta”.
— Falkirk está lou​c o e você sabe dis​so, Bob.
— Des​c o​bri tar​de de​m ais. Pas​sei me​ses di​zen​do e re​pe​tin​do que ele era
um ex​c e​len​te ofi​c i​a l, em​bo​r a mui​to pre​so aos ma​nu​a is e “es​quen​ta​do” de​m ais.
Hoje à noi​te, po​r ém, des​c o​bri que você tem ra​zão. O ho​m em quer ir con​tra a
cor​r en​te re​m an​do com um remo só. Aca​bo de re​c e​ber um pe​di​do dele. Na ver​-
da​de, uma or​dem. Quer que todo o pes​so​a l re​si​den​te em Thun​der Hill seja re​c o​-
lhi​do aos alo​j a​m en​tos e per​m a​ne​ç a con​f i​na​do até “or​dens pos​te​r i​o​r es”. Den​tro
de al​guns mi​nu​tos vou trans​m i​tir a or​dem pelo sis​te​m a de som da base.
— E ele não dis​se por que que​r ia isso?
Al​va​r a​do pu​xou uma ca​dei​r a para jun​to da mesa e sen​tou-se. A luz que vi​nha
dos fun​dos da ca​ver​na ilu​m i​na​va-lhe os pés, as per​nas e me​ta​de do tron​c o, mas
dei​xa​va o ros​to mer​gu​lha​do em pe​num​bra.
— Está tra​zen​do as tes​te​m u​nhas e não quer que nin​guém alheio ao se​gre​do
as veja. Não sei se é ver​da​de, mas foi o que me dis​se.
Atô​ni​to, Ben​nell de​bru​ç ou-se so​bre a mesa.
— Mas se ele está pen​san​do numa se​gun​da la​va​gem ce​r e​bral, o me​lhor se​-
ria man​ter as tes​te​m u​nhas no mo​tel, como da ou​tra vez — ar​gu​m en​tou. — Você
sabe se ele já man​dou cha​m ar os mal​di​tos “la​va​do​r es”?
— Tan​to quan​to sei, nin​guém está sen​do es​pe​r a​do em Thun​der Hill. Falkirk
não cha​m ou os mons​tros. Deve es​tar con​ven​c i​do de que não será pos​sí​vel man​ter
o pla​no ori​gi​nal. Fa​lou que é para você es​tu​dar cui​da​do​sa​m en​te dois de​les, o pa​-
dre Ste​f an e Dom Cor​vai​sis. Dis​se que tal​vez já nao se​j am hu​m a​nos. Mas dis​se
tam​bém que an​dou pen​san​do na con​ver​sa que teve com você e che​gou à con​c lu​-
são de que tal​vez você te​nha ra​zão e ele es​te​j a sen​do ri​go​r o​so de​m ais... Quer que
você exa​m i​ne as tes​te​m u​nhas e faça um re​la​tó​r io, es​pe​c i​f i​c an​do os dons que têm
ma​ni​f es​ta​do. De​pen​den​do do re​sul​ta​do, ele po​de​r á pou​pá-las. Caso seu re​la​tó​r io
não dei​xe mar​gem a dú​vi​das so​bre a real si​tu​a ​ç ão des​sas pes​so​a s, Falkirk sus​pen​-
de​r á a se​gun​da la​va​gem ce​r e​bral e en​c a​m i​nha​r á su​ges​tões aos su​pe​r i​o​r es, em
Washing​ton, re​c o​m en​dan​do que o se​gre​do seja di​vul​ga​do.
--- É bom de​m ais para ser ver​da​de... Não acre​di​to nele, Bob.
Mi​les es​ten​deu a mão para acen​der as lu​zes, mas o ge​ne​r al o de​te​ve, pe​din​-
do:
— Não acen​da, por fa​vor. As​sim, no es​c u​r o, é mais fá​c il fa​lar com fran​-
que​za. — Cru​zou os bra​ç os, si​len​c i​ou por al​guns ins​tan​tes e per​gun​tou: — Diga...
foi você quem man​dou as fo​tos para Dom Cor​vai​sis e para Block? — Como não
ob​ti​ves​se res​pos​ta, con​ti​nuou: — So​m os ami​gos... Pelo me​nos, te​nho tido a im​-
pres​são de que po​de​m os con​f i​a r um no ou​tro. Ja​m ais en​c on​trei al​guém com
quem pu​des​se jo​gar xa​drez e pô​quer... Você é bom nos dois. Por isso vou lhe con​-
tar a ver​da​de. Fui eu que atraí Jack Twist para cá.
— Você... mas como?! Por quê? — Ben​nell ar​r e​ga​lou os olhos.
— Sou​be que al​gu​m as tes​te​m u​nhas co​m e​ç a​vam a se lem​brar e es​ta​vam
ten​do pro​ble​m as psi​c o​ló​gi​c os em fun​ç ão dis​so. Achei en​tão que só te​r i​a m chan​c e
se vi​e s​sem para cá e cri​a s​sem tan​ta con​f u​são que as au​to​r i​da​des aca​bas​sem
obri​ga​das a re​ve​lar a ver​da​de.
— Mas por quê?!
— Por​que des​c o​bri que é im​pos​sí​vel men​tir tan​to.
— E re​sol​veu sa​bo​tar o pla​no... de Falkirk. Po​de​r ia ter sido mais di​r e​to. Fa​-
lar com o che​f e do Es​ta​do-Mai​or, por exem​plo.
— Não quis cor​r er o ris​c o de de​so​be​de​c er or​dens su​pe​r i​o​r es. — Al​va​r a​do
res​pi​r ou fun​do. — Não quis ar​r is​c ar mi​nha apo​sen-
ta​do​r ia, que está pró​xi​m a, nem a pen​são que sus​ten​ta mi​nha fa​m í​lia. E tam​-
bém... tive medo de que Falkirk man​das​se me ma​tar.
Mi​les vi​via pen​san​do na mes​m a pos​si​bi​li​da​de.
— Co​m e​c ei com Twist — pros​se​guiu o ge​ne​r al por​que é o úni​c o ho​m em
do gru​po do mo​tel com ca​pa​c i​da​de e ex​pe​r i​ê n​c ia de com​ba​te su​f i​c i​e n​tes para
or​ga​ni​zar um exér​c i​to ci​vil ca​paz de der​r o​tar Falkirk. Quan​to a des​c o​brir os ban​-
cos, iden​ti​da​des e có​di​gos, foi fá​c il. Bas​tou dar uma olha​da nos ar​qui​vos do in​ter​-
ro​ga​tó​r io e das sessões de la​va​gem ce​r e​bral. Fíá até có​pi​a s das cha​ves dos co​-
fres. Idéia de Falkirk, para o caso de, al​gum dia, ser ne​c es​sá​r io chan​ta​ge​a r Jack
ou apre​sen​tar pro​vas que o man​das​sem para a pri​são. Em de​zem​bro, quan​do tive
a fol​ga de dez dias, fui para Nova York e en​c hi os co​f res com car​tões-pos​tais que
le​vei da​qui. Foi fá​c il.
— E mui​to en​ge​nho​so... — Mi​les sor​r iu, des​lum​bra​do, para a som​bra do
ros​to do ami​go. — Jack Twist deve ter en​lou​que​c i​do quan​do en​c on​trou os pos​tais.
E Falkirk ja​m ais des​c o​bri​r ia como os car​tões en​tra​r am nos co​f res. Pelo me​nos
não po​de​r ía pro​var nada con​tra você.
— Es​pe​r o que não. To​m ei to​dos os cui​da​dos pos​sí​veis... nun​c a to​quei nos
car​tões sem usar lu​vas, por exem​plo. A idéia ini​c i​a l era dar al​gum tem​po para
Twist re​or​ga​ni​zar as idéi​a s. De​pois, bas​ta​r ia dar al​guns te​le​f o​ne​m as anô​ni​m os
para as tes​te​m u​nhas, fa​lar-lhes so​bre seus pro​ble​m as psi​c o​ló​gi​c os, for​ne​c er-lhes
o nú​m e​r o do te​le​f o​ne de Twist e su​ge​r ir que o pro​c u​r as​sem. Foi en​tão que sou​be
das fo​tos, e meu pla​no não pre​c i​sou se​guir adi​a n​te. Como Falkirk, tam​bém não te​-
nho dú​vi​das de que o ho​m em que man​dou as fo​tos con​ti​nua em Thun​der Hill e
co​nhe​c e o se​gre​do. Como é? Vai se abrir, ou eu fico fa​lan​do so​zi​nho, como pe​c a​-
dor em con​f es​si​o​ná​r io?
Ben​nell bai​xou os olhos para a mesa onde dei​xa​r a as lau​das do per​f il psi​c o​ló​-
gi​c o de Falkirk. Res​pi​r ou fun​do, re​c os​tou-se na ca​dei​r a e de​c la​r ou:
— Gos​to de jo​gar xa​drez com você por​que pen​sa como eu. E
gos​to de jo​gar pô​quer por​que você é tão doi​do quan​to eu... Dois gê​ni​os! E
ver​da​de, ami​go... Fui eu que man​dei as fo​tos.
— Ah... — Al​va​r a​do es​ti​c ou as per​nas gros​sas e re​la​xou. — Ago​r a me sin​-
to me​lhor. Mas... por que Cor​vai​sis? E fá​c il en​ten​der que você qui​ses​se cu​tu​c ar os
Block. Afi​nal, vi​vem aqui, e as ou​tras tes​te​m u​nhas aca​ba​r i​a m che​gan​do a eles.
Mas... Cor​vai​sis?!
— Por​que é es​c ri​tor, um ho​m em de ima​gi​na​ç ão. Car​tas anô​ni​m as, fa​lan​do
das cri​ses de so​nam​bu​lis​m o e dos so​nhos que só ele co​nhe​c ia, e es​tra​nhas fo​tos
de gen​te des​c o​nhe​c i​da aca​ba​r i​a m por des​per​tar-lhe a cu​r i​o​si​da​de e o fa​r i​a m re​-
a​gir an​tes dos ou​tros. Isso, sem fa​lar que aca​ba de lan​ç ar um li​vro que os jor​nais
já co​m en​ta​vam an​tes do lan​ç a​m en​to. Se Cor​vai​sis pre​c i​sas​se de es​pa​ç o na im​-
pren​sa, te​r ia mais fa​c i​li​da​de em con​se​gui-lo do que qual​quer ou​tro.
— So​m os dois gê​ni​os...
— E... Ge​ni​a is de​m ais... O pla​no fun​c i​o​nou, mas foi um pou​c o len​to. Eles
pre​c i​sa​vam ter che​ga​do an​tes. Ou tal​vez, se ti​vés​se​m os um pou​c o de co​r a​gem
para en​f ren​tar Falkirk, não se​r ia ne​c es​sá​r io ar​r is​c ar tan​tas vi​das.
— Por que acha que vim pro​c u​r á-lo e con​tar tudo? — Al​va​r a​do per​gun​tou,
de​pois de um ins​tan​te de si​lên​c io.
— Por​que pre​c i​sa​va de um ali​a ​do. Por​que, como eu, você tam​bém não
acre​di​ta na re​ge​ne​r a​ç ão de Falkirk. Não acre​di​ta que, de um ins​tan​te para ou​tro,
ele te​nha-se trans​f or​m a​do em ho​m em sen​sa​to. E tam​bém não acre​di​ta que es​te​-
ja tra​zen​do as tes​te​m u​nhas para cá a fim de se​r em exa​m i​na​das.
— Ele vai ma​tar as tes​te​m u​nhas, os mi​li​ta​r es e os ci​e n​tis​tas que tra​ba​lham
aqui, co​m e​ç an​do por nós dois. Vai nos ma​tar a to​dos.
O alto-fa​lan​te em​bu​ti​do to​c ou uma si​r e​ne de aler​ta, uma pe​que​na luz ver​m e​-
lha acen​deu-se na pa​r e​de, e logo o sub​terrâ​neo foi in​va​di​do pela voz do ge​ne​r al
Al​va​r a​do: o pes​so​a l de ser​vi​ç o em Thun​der Hill de​ve​r ia re​c o​lher-se aos alo​j a​-
men​tos e lá per​m a​ne​c er até or​dens pos​te​r i​o​r es. An​tes dis​so, po​r ém, to​dos, ci​vis
e mi​li​ta​r es, de​vi​a m apre​sen​tar-se ao al​m o​xa​r i​f a​do e iden​ti​f i​c ar-se para re​c e​ber
ar​m as que le​va​r i​a m para os alo​j a​m en​tos e usa​r i​a m quan​do e como lhes fos​se
opor​tu​na​m en​te in​di​c a​do.
Al​va​r a​do le​van​tou-se e apro​xi​m ou-se do ami​go.
— Ou​viu? Quan​do es​ti​ve​r em ar​m a​dos e re​c o​lhi​dos, vou reu​ni-los e co​m u​-
ni​c ar-lhes que hou​ve um mo​tim li​de​r a​do por Falkirk e seus mal​di​tos as​se​c las; que
a idéia de man​tê-los con​f i​na​dos foi de Falkirk, mas que a idéia de armá-los foi
mi​nha.
— Quan​do Le​land man​dar seus ca​c hor​r os para a exe​c u​ç ão ge​r al, que​r o
que nos​sos ho​m ens te​nham uma chan​c e de de​f en​der-se. Mas es​pe​r o que con​si​-
ga​m os detê-lo an​tes de che​gar a esse ex​tre​m o.
— Vou re​c e​ber uma arma tam​bém? — Ben​nell er​gueu-se.
O ge​ne​r al di​r i​giu-se para a por​ta, mas pa​r ou an​tes de abri-la.
— Você, an​tes de qual​quer ou​tro — res​pon​deu. — Use um de seus aven​tais
de la​bo​r a​tó​r io, bem lar​gos, e leve a pis​to​la es​c on​di​da na cin​tu​r a. Vou ves​tir meu
abri​go de in​ver​no e tam​bém es​ta​r ei com a pis​to​la es​c on​di​da. Quan​do des​c on​f i​a r​-
mos que Falkirk está pron​to para or​de​nar o mas​sa​c re, faço-lhe um si​nal... Eu
mato Falkirk, e você mata o te​nen​te Hor​ner. Não per​c a um se​gun​do, por​que Hor​-
ner ten​ta​r á nos ma​tar tão logo per​c e​ber que que​r e​m os Le​land. Quan​do eu sa​c ar
a pis​to​la, Hor​ner vai ati​r ar em mim... e é mui​to im​por​tan​te que eu so​bre​vi​va. —
Al​va​r a​do vi​r ou-se e sor​r iu. — Não só por​que que​r o go​zar mi​nha me​r e​c i​da apo​-
sen​ta​do​r ia, mas prin​c i​pal​m en​te por​que sou ge​ne​r al e, com Falkirk mor​to, te​nho
au​to​r i​da​de para or​de​nar que os ho​m ens da DE-RO de​po​nham as ar​m as. En​ten​-
deu?
Mi​les fez que sim com a ca​be​ç a.
— E está pre​pa​r a​do? — per​gun​tou o ou​tro. — Acha que é ca​paz de ma​tar
um ho​m em?
— Fi​que tran​qüi​lo. Não vou dei​xar Hor​ner aca​bar com você. Não só por​-
que não que​r o per​der um gran​de par​c ei​r o de xa​drez e pô​quer mas, prin​c i​pal​-
men​te, por​que você é o úni​c o ge​ne​r al que co​nhe​ç o que leu a obra com​ple​ta de
T.S. Eli​ot.
— “Acho que che​ga​m os ao fim do ca​m i​nho. Onde os mor​tos dei​xam os
os​sos” — Al​va​r a​do de​c la​r ou, com um sor​r i​so. — Veja -que iro​nia! Quan​do eu
era me​ni​no, há mui​to tem​po meu pai di-
zia que mi​nha “ma​nia de po​e ​sia” ia me tor​nar efe​m i​na​do. Hoje, sou ge​ne​r al
de cin​c o es​tre​las e cito Eli​ot para agra​de​c er ao ho​m em que pre​c i​sa​r á ma​tar para
sal​var mi​nha vida... Va​m os ao al-mo​xa​r i​f a​do?
Ben​nell apro​xi​m ou-se e, an​tes de sair, per​gun​tou:
— Você está bem cons​c i​e n​te de que Falkirk cum​pre or​dens do co​m an​dan​te
do Es​ta​do-Mai​or do Exér​c i​to? Quan​do você o ma​tar, o ge​ne​r al Rid​de​nhour e, tal​-
vez, o pró​prio pre​si​den​te vão cair em cima de você.
— Que se dane o co​m an​dan​te! — Al​va​r a​do riu e pou​sou a mão no om​bro
do ami​go. — Que se da​nem os po​lí​ti​c os, que que​r em trans​f or​m ar o Exér​c i​to num
clu​be de co​m a​dres fo​f o​quei​r as. Mes​m o que Falkirk leve para o in​f er​no o có​di​go
de sa​í​da, em dois ou três dias es​ta​r e​m os fora da​qui, nem que seja pre​c i​so di​na​-
mi​tar a por​ta ou des​m on​tá-la, pa​r a​f u​so por pa​r a​f u​so. E en​tão... se​r e​m os os dois
ho​m ens mais im​por​tan​tes des​te in​f e​liz pla​ne​ta. Tal​vez duas das per​so​na​gens mais
im​por​tan​tes de toda a His​tó​r ia, em to​dos os tem​pos. Des​de Ma​r ia Ma​da​le​na, na
ma​nhã da Pás​c oa, nin​guém teve no​tí​c ia tão im​por​tan​te para con​tar ao mun​do.
O pa​dre Wy ​c a​zik en​c ar​r e​gou-se de di​r i​gir o jipe, uma vez que, des​de o Vi​e t​-
nã, ti​nha cer​ta prá​ti​c a com ve​í​c u​los de tra​ç ão nas qua​tro ro​das. Ver​da​de que não
ne​va​va no Vi​e t​nã, mas o jipe é jipe. A pres​sa e a an​gús​tia com o que es​ta​r ia
acon​te​c en​do a Bren-dan fa​zi​a m-no es​que​c er o pe​r i​go e des​per​ta​vam lem​bran​ç as
dos dias ter​r í​veis do pas​sa​do, quan​do trans​por​ta​va fe​r i​dos ou me​di​c a​m en​tos por
es​tra​das im​pos​sí​veis com ba​las zu​nin​do so​bre a ca​be​ç a. Vol​ta​vam-lhe a ener​gia
da ju​ven​tu​de, a for​ç a e a co​r a​gem de seus pri​m ei​r os anos de car​r ei​r a. Por isso
Deus o cha​m a​r a para o sa​c er​dó​c io: às ve​zes, em mo​m en​tos de de​ses​pe​r o, um
pa​dre pre​c i​sa ter mús​c u​los de aço, co​r a​gem de leão e alma de aven​tu​r ei​r o.
Com a ro​do​via in​ter​di​ta​da, só lhes res​ta​va a es​tra​da es​ta​du​a l, que mal se via
de​bai​xo da neve. Ape​nas os olhos-de-gato ama​r e​los, à mar​gem da es​tra​da, si​na​-
li​za​vam o ca​m i​nho, e Ste​f an gui​ou-
se por eles. Para avan​ç ar rumo ao Mo​tel Tran​qüi​li​da​de, fe​liz​m en​te con​ta​-
vam com a bús​so​la e o mapa da re​gi​ã o que ha​vi​a m com​pra​do.
Du​r an​te a vi​a ​gem, o pa​dre fa​lou que sa​bia a res​pei​to do re​la​tó​r io men​c i​o​na​-
do por Mi​c ha​e l Ger​r a​no; por fim, con​c luiu:
— Pelo que me dis​se o tal se​nhor X, acho que o re​la​tó​r io é um caso tí​pi​c o
de mal​ver​sa​ç ão dos fun​dos pú​bli​c os... Um ban​do de ci​e n​tis​tas... al​guns ra​zo​a ​vel​-
men​te sé​r i​os, ou​tros com​ple​ta​m en​te doi​dos, reu​ni​dos para ana​li​sar as con​se​qüên​-
ci​a s de um even​to que, na opi​ni​ã o de to​dos, ja​m ais acon​te​c e​r ia... Até que acon​te​-
ceu.
— Acon​te​c eu... o quê? — Parker ti​r ou os olhos do mapa e vi​r ou-se para
Ste​f an.
— O ban​do au​to​de​no​m i​nou-se Gru​po de Es​tu​dos so​bre Con​ta​tos de Ter​c ei​-
ro Grau. O nome diz tudo, não acha?
Parker es​ta​va per​ple​xo.
— En​tão... o que acon​te​c eu... Não! Não pode ser! O se​nhor está di​zen​do
que... meu ami​go Dom teve con​ta​to com... se​r es de ou​tro pla​ne​ta?!
— Exa​ta​m en​te... Al​gu​m a coi​sa des​c eu do céu na​que​la noi​te, seis de ju​lho
do ano re​tra​sa​do.
— Je​sus! — Parker co​lo​c ou a mão na boca.
— Des​c ul​pe, não é nada pes​so​a l... Dis​se “Je​sus” as​sim, por di​zer... Não é
pos​sí​vel! Deus do céu... Puta que pa​r iu! Per​dão, pa​dre, per​dão! E que... mer​da...
é de​maisl Nos​sa Se​nho​r a...
— Acho que, da​das as cir​c uns​tân​c i​a s, Deus não vai se ofen​der com essa
mis​tu​r a de blas​f ê​m i​a s que você está vo​m i​tan​do... — ria Ste​f an. — O que in​te​r es​-
sa é que o tal gru​po, co​nhe​c i​do por al​guns como GE​TRAU, pas​sou anos es​tu​dan​-
do o que acon​te​c e​r ia à hu​m a​ni​da​de se, por aca​so, a Ter​r a fos​se in​va​di​da ou vi​si​-
ta​da por se​r es de ou​tro pla​ne​ta.
— Mas que bes​tei​r a! Gas​tar mas​sa cin​zen​ta para des​c o​brir uma coi​sa que
qual​quer cri​a n​ç a acos​tu​m a​da a ver fil​m es de fic​ç ão ci​e n​tí​f i​c a res​pon​de​r ia na
hora! Se​r ia fan​tás​ti​c o, ma​r a​vi​lho​so, lin​do... des​c o​brir que não es​ta​m os so​zi​nhos
no es​pa​ç o! Eu sei, o se​nhor sabe, qual​quer idi​o​ta sabe... Des​c ul​pe mais uma vez...
O se​nhor não é idi​o​ta, só eu.
— Tal​vez. De qual​quer modo, você há de con​c or​dar que uma coi​sa é ver se​-
res ex​tra​ter​r es​tres no ci​ne​m a, e ou​tra, bem di​f e​r en​te, é en​c on​trá-los em casa, à
noi​te. A ver​da​de é que vá​r i​os ci​e n​tis​tas veem nes​ses con​ta​tos al​gu​m as ame​a ​ç as
gra​ves. An​tro​pó​lo​gos e his​to​r i​a ​do​r es ob​ser​vam o se​guin​te: ao en​trar em con​ta​to
com cul​tu​r as mais evo​lu​í​das, as cul​tu​r as pri​m i​ti​vas ten​dem a so​f rer um co​lap​so
em suas ins​ti​tui​ç ões... Os pri​m i​ti​vos per​dem a fé nos va​lo​r es de seu mun​do, nos
di​r i​gen​tes, nos pró​pri​os deu​ses. Isso acon​te​c eu com os es​qui​m ós, por exem​plo,
quan​do os bran​c os in​va​di​r am suas ter​r as. Cres​c e​r am as​sus​ta​do​r a​m en​te as ta​xas
de al​c o​o​lis​m o en​tre a po​pu​la​ç ão, a fa​m í​lia de​sin​te​grou-se, au​m en​tou o nú​m e​-
ro de sui​c í​di​os. E não pen​se que os bran​c os que​r i​a m aca​bar com os es​qui​m ós.
Cla​r o que não! Che​ga​r am como ami​gos... Mas le​va​vam uma cul​tu​r a mais so​f is​ti​-
ca​da, mais com​ple​xa... O con​ta​to foi de​vas​ta​dor para os es​qui​m ós. Per​de​r am o
or​gu​lho, a auto-es​ti​m a, e ja​m ais se re​c u​pe​r a​r am. E o GE​TRAU acha que a mes​-
ma coi​sa po​de​r ia acon​te​c er com to​dos nós se de​pa​r ar​m os com uma cul​tu​r a su​-
pe​r i​or.
Ste​f an pa​r ou de fa​lar e, no mes​m o ins​tan​te, bre​c ou o jipe. A es​tra​da aca​ba​va
de re​pen​te.
Parker acen​deu a luz in​ter​na, de​bru​ç ou-se so​bre o mapa, es​tu​dou-o por al​-
guns ins​tan​tes e, apon​tan​do para a es​quer​da, dis​se:
— Por ali. Va​m os ro​dar qua​tro qui​lô​m e​tros para oes​te, atra​ves​sar a es​tra​da
de Vis​ta Val​ley, vol​tar para o chão bru​to e se​guir adi​a n​te, uns dez qui​lô​m e​tros, até
che​gar​m os ao Mo​tel Tran​qüi​li-dade, pe​los fun​dos.
— Fi​que de olho nes​se mapa. Deus só aju​da a quem se aju​da — pro​c la​-
mou Ste​f an, re​c o​lo​c an​do o ve​í​c u​lo em mo​vi​m en​to.
Após al​guns mo​m en​tos de si​lên​c io, Parker vol​tou ao as​sun​to:
— O tal se​nhor X en​trou nes​se tipo de de​ta​lhe com o pa​dre Ger​r a​no? Fa​lou
so​bre os es​qui​m ós... so​bre a po​si​ç ão de GE​TRAU...?
— Dis​se al​gu​m as coi​sas...
— ... e ou​tras o se​nhor mes​m o con​c luiu...
Ste​f an sor​r iu, ca​lou-se por ins​tan​tes e de​c la​r ou:
— O pro​ble​m a dos con​ta​tos en​tre di​f e​r en​tes cul​tu​r as pre​o​c u​pa os je​su​í​tas
há vá​r i​os sé​c u​los. Te​m os pen​sa​do so​bre o as​sun​to, para des​c o​brir se fi​ze​m os mais
bem ou mais mal às cul​tu​r as que pro​c u​r a​m os, ao lon​go dos sé​c u​los, na ten​ta​ti​va
de con​ver​tê-las à nos​sa re​li​gi​ã o. Em al​guns ca​sos, é di​f í​c il sa​ber se fi​ze​m os o pa​-
pel de men​sa​gei​r os de Deus... ou do di​a ​bo.
— Es​ta​m os indo para o nor​te. Tra​te de cor​r i​gir a rota para a es​quer​da, o
mais ra​pi​da​m en​te pos​sí​vel — in​ter​r om​peu-o Parker.
Ste​f an obe​de​c eu e, pou​c o de​pois, re​to​m ou o as​sun​to:
— Pen​se, por exem​plo, nos ín​di​os ame​r i​c a​nos. Não foi a aguar​den​te ou as
ar​m as dos bran​c os que os des​tru​í​r am... foi o cho​que de cul​tu​r as. No​vos va​lo​r es,
no​vas téc​ni​c as de so​bre​vi​vên​c ia obri​ga​r am os ín​di​os a re​a ​va​li​a r seus va​lo​r es tra​-
di​c i​o​nais... e, in​f e​liz​m en​te, fez com que se sen​tis​sem atra​sa​dos, po​bres, der​r o​ta​-
dos. O se​nhor X dis​se ao pa​dre Ger​r a​no que a con​c lu​são do GE​TRAU era exa​ta​-
men​te essa: o con​ta​to de nos​sa cul​tu​r a, no atu​a l es​tá​gio de pro​gres​so, com ou​tra
cul​tu​r a ex​tra​or​di​na​r i​a ​m en​te de​sen​vol​vi​da po​de​r á le​var o pla​ne​ta à au​to​des​trui​-
ção, à per​da da fé nas ins​ti​tui​ç ões.
— Bo​ba​gem... — Parker fez uma ca​r e​ta. — O se​nhor te​r ia sua fé aba​la​da
por um con​ta​to com gen​te de ou​tro pla​ne​ta, ain​da que se​j am bi​lhões de anos
mais avan​ç a​dos do que nós?
— Não! — Ste​f an re​te​sou as cos​tas no ban​c o e olhou para o céu, o ros​to
ilu​m i​na​do. — Mui​to pelo con​trá​r io! Tal​vez mi​nha fé so​f res​se aba​los se, al​gum
dia, se com​pro​vas​se que so​m os os úni​c os se​r es pen​san​tes nes​sa vas​ti​dão in​f i​ni​ta.
Nos​sa so​li​dão tal​vez de​m ons​tras​se que sur​gi​m os de um áto​m o que se jun​tou a ou​-
tro por aca​so, que cres​c eu por aca​so e deu no que deu por aca​so. Mas, se des​c o​-
brís​se​m os vida em ou​tros pla​ne​tas, pro​va​r í​a ​m os de​f i​ni​ti​va​m en​te a exis​tên​c ia de
Deus, cri​a n​do vida, se​m e​a n​do seus fi​lhos em to​dos os lu​ga​r es. Deus exis​te por​que
ama a vida... Ele nao dei​xa​r ia o es​pa​ç o va​zio...
— Mui​ta gen​te pen​sa​r ia como o se​nhor.
— Ain​da que a es​pé​c ie que vi​e s​se nos vi​si​tar ti​ves​se uma apa​r ên​c ia mui​to
di​f e​r en​te da nos​sa, eu não me as​sus​ta​r ia. Deus nos
cri​ou à Sua ima​gem... não à ima​gem fí​si​c a, mas à es​pi​r i​tu​a l. Deu-nos ca​pa​-
ci​da​de de pen​sar, com​pai​xão, amor, ami​za​de... por es​sas qua​li​da​des é que so​m os
como Ele. E isso que pre​c i​so di​zer a Bren-dan... — Im​pa​c i​e n​te, o pa​dre es​m ur​-
rou o vo​lan​te. — Es​tou con​ven​c i​do de que sua cri​se de fé tem al​gu​m a re​la​ç ão
com isso. Ele teve con​ta​to com se​r es di​f e​r en​tes de nós... de cul​tu​r a es​pan​to​sa​-
men​te su​pe​r i​or à nos​sa... E con​c luiu que não fo​m os to​dos cri​a ​dos à ima​gem de
Deus. Sua fé caiu por ter​r a. En​ten​de ago​r a por que es​tou tão an​si​o​so para en​c on​-
trá-lo? Pre​c i​so di​zer-lhe: não im​por​ta a apa​r ên​c ia fí​si​c a, não im​por​ta a su​pe​r i​o​r i​-
da​de cul​tu​r al. O que im​por​ta é sa​ber se os se​r es que ele viu têm ca​pa​c i​da​de de
amar ao pró​xi​m o, de in​te​r es​sar-se sin​c e​r a​m en​te pela sor​te dos ir​m ãos, de usar a
in​te​li​gên​c ia su​pe​r i​or que Deus lhes deu para en​f ren​tar com co​r a​gem as di​f i​c ul​-
da​des da vida.
— Não te​r i​a m che​ga​do até aqui se não fos​sem as​sim... — ob​ser​vou Parker,
res​pi​r an​do fun​do, o ros​to sé​r io.
— Cla​r o! — Ste​f an ex​c la​m ou. — Acho que a la​va​gem ce​r e​bral não per​-
mi​tiu que Bren​dan re​f le​tis​se so​bre suas pri​m ei​r as emo​ç ões. Mas, quan​do ele se
lem​brar do que viu e ti​ver tem​po para pen​sar, che​ga​r á à mes​m a con​c lu​são. E eu
que​r o es​tar com ele, para aju​dá-lo.
— O se​nhor gos​ta mui​to de Bren​dan, não é?
Aten​to ao ter​r e​no que se es​ten​dia a sua fren​te, bran​c o e qua​se im​pe​ne​trá​vel,
o pa​dre Wy ​c a​zik não res​pon​deu. Mo​m en​tos de​pois, de​sa​ba​f ou, numa voz ex​tre​-
ma​m en​te su​a ​ve:
— As ve​zes me ar​r e​pen​do de ter me tor​na​do pa​dre. Deus que me per​doe,
mas é ver​da​de... As ve​zes, pen​so na fa​m í​lia que pode-ria ter cons​tru​í​do... uma
es​po​sa que par​ti​lhas​se co​m i​go as do​r es e as ale​gri​a s da vida, que me des​se fi​lhos,
que os vis​se cres​c er, a meu lado. E a úni​c a coi​sa que me fez fal​ta... uma fa​m í​lia.
Só isso, nada mais. Bren​dan, para mim, é o fi​lho que nao tive e nun​c a te​r ei. Gos​to
mui​to dele... mais do que você pode ima​gi​nar.
Parker ou​viu em si​lên​c io, os olhos no mapa, pen​sa​ti​vo. De re​pen​te, sen​ten​c i​-
ou:
— Esse GE​TRAU é uma bes​tei​r a. As con​c lusões do re​la​tó​r io são ri​dí​c u​las.
Não há con​ta​to de ter​c ei​r o grau que pos​sa des​truir o pla​ne​ta.
— Tam​bém acho — Ste​f an con​c or​dou. — O erro de ra​c i​o​c í​nio é sim​pló​-
rio... eles pen​sam que nos​sa cul​tu​r a está para a dos ex​tra​ter​r es​tres como a dos es​-
qui​m ós para a dos bran​c os. Os es​qui​m ós eram pri​m i​ti​vos... mas nós não so​m os!
O con​ta​to, em nos​so caso, se da​r ia en​tre uma cul​tu​r a avan​ç a​da e ou​tra mais
avan​ç a​da. O re​la​tó​r io afir​m a que, na hi​pó​te​se de ocor​r er um con​ta​to des​se tipo, o
acon​te​c i​m en​to de​ve​r ia ser man​ti​do em se​gre​do por dez ou vin​te anos. É ób​vio
que isso tam​bém não está cer​to. A hu​m a​ni​da​de há de su​por​tar o cho​que, por​que
está ma​du​r a para o en​c on​tro. Deus... há quan​to tem​po es​pe​r a​m os por elesl
— Há sé​c u​los... — Parker sus​pi​r ou.
Du​r an​te al​gum tem​po, sa​c o​le​j an​do no jipe, ten​tan​do evi​tar os aci​den​tes do
ter​r e​no, os dois fi​c a​r am em si​lên​c io, sem en​c on​trar pa​la​vras para ex​pres​sar seu
des​lum​bra​m en​to ante a fan​tás​ti​c a des​c o​ber​ta: não es​ta​vam so​zi​nhos no uni​ver​so.
Parker lim​pou a gar​gan​ta, ve​r i​f i​c ou a bús​so​la e in​f or​m ou:
— Es​ta​m os per​to. Me​nos de um qui​lô​m e​tro à fren​te de​ve​m os en​c on​trar a
es​tra​da de Vis​ta Val​ley. — Ca​lou-se e, um se​gun​do de​pois, per​gun​tou: — O que
foi que o ho​m em de Chi​c a​go, o tal Cal​vin Shark​le, gri​tou da ja​ne​la?
— Que viu pou​sar uma nave ex​tra​ter​r es​tre tri​pu​la​da por se​r es hos​tis... que
ti​nha medo de ser le​va​do para a nave... que to​dos os vi​zi​nhos es​ta​vam con​ta​m i​na​-
dos. Gri​tou tam​bém que os se​r es es​tra​nhos o amar​r a​r am numa cama e... en​tra​-
ram em seu cor​po pe​las vei​a s do bra​ç o. Quan​do ouvi con​tar isso, che​guei a pen​-
sar que Cal es​ta​va cer​to... os ex​tra​ter​r es​tres po​di​a m ter che​ga​do como ini​m i​gos.
Mas de​pois co​m e​c ei a pen​sar. Shark​le es​ta​va con​f un​din​do a ater​r is​sa​gem da nave
e o medo que sen​tiu com o ata​que dos sol​da​dos que o pren​de​r am à cama e o dro​-
ga​r am para fa​zer a la​va​gem ce​r e​bral. As coi​sas de​vem ter se pas​sa​do mais ou
me​nos as​sim: a nave pou​sou, to​dos se as​sus​ta​r am e logo apa​r e​c e​r am os sol​da​dos
nos tra​j es de la​bo​r a​tó​r io, co​ber​tos da ca​be​ç a aos pés, para levá-los pre​sos. Cal
não foi pre​so pe​los ali​e ​ní​ge​nas, mas pe-
los sol​da​dos; na con​f u​são men​tal pro​vo​c a​da pe​las dro​gas, tudo se mis​tu​r ou.
— O se​nhor acha que os sol​da​dos usa​vam equi​pa​m en​to ade​qua​do para evi​-
tar uma pos​sí​vel con​ta​m i​na​ç ão bac​te​r i​o​ló​gi​c a?
— Exa​ta​m en​te. Tal​vez al​guns hós​pe​des do mo​tel te​nham-se apro​xi​m a​do da
nave... o que fez os sol​da​dos sus​pei​ta​r em de con​ta​m i​na​ç ão. Sei ao cer​to que al​-
guns hós​pe​des do mo​tel lem​bram de ha​ver man​ti​do con​ta​to com gen​te ves​ti​da de
um modo es​tra​nho, com rou​pas que, de​pois, a dou​to​r a Gin​ger Weiss iden​ti​f i​-
cou como tra​j es “ve​da​dos”, do tipo usa​do em la​bo​r a​tó​r i​os de pes​qui​sas para evi​-
tar con​ta​m i​na​ç ão por bac​té​r i​a s. O po​bre Cal​vin en​lou​que​c eu por​que lhe ti​r a​r am
a chan​c e de lem​brar-se dos fa​tos como re​a l​m en​te acon​te​c e​r am.
— Es​ta​m os a me​nos de qui​nhen​tos me​tros da es​tra​da. — Parker acen​deu a
lâm​pa​da da ca​bi​ne.
A neve con​ti​nu​a ​va, im​pla​c á​vel. Por ve​zes, quan​do o ven​to di​m i​nu​ía ou mu​-
da​va de di​r e​ç ão, os flo​c os gi​r a​vam de um lado para o ou​tro e aca​ba​vam de​sa​pa​-
re​c en​do, como fan​tas​m as bai​la​r i​nos.
— Uma nave des​c eu... — mur​m u​r ou Parker, pen​sa​ti​vo. — E o go​ver​no sa​-
bia que al​gu​m a coi​sa es​ta​va para acon​te​c er... Tan​to sa​bia que blo​que​ou a ro​do​via
mi​nu​tos an​tes... Tal​vez já es​ti​ves​sem per​se​guin​do a nave des​de lon​ge... Mas não
con​si​go en​ten​der como acer​ta​r am... A tri​pu​la​ç ão da nave não po​de​r ia ter al​te​r a​-
do o cur​so?
— Não — Ste​f an res​pon​deu. — O go​ver​no tem sa​té​li​tes de ob​ser​va​ç ão
mui​to dis​tan​tes da Ter​r a. Só se​r ia pos​sí​vel pre​ver o lo​c al de pou​so se a nave es​ti​-
ves​se se​guin​do um cur​so de​ter​m i​na​do, em que​da li​vre, por exem​plo... se a tri​pu​-
la​ç ão es​ti​ves​se mor​ta.
— Pelo amor de Deus! Não que​r o nem pen​sar que eles vi​a ​j a​r am tan​to
para se esb​br​r a​c har aqui, nes​te fim de mun​do!
— Nem eu...
— Que​r o vi​ver para des​c o​brir que eles che​ga​r am vi​vos e bem... se​j am lá
quem fo​r em!
O jipe der​r a​pou, des​c eu al​guns me​tros, mas, ou​tra vez, con​se​guiu se​guir adi​-
an​te na es​c a​la​da.
— Que​r o des​c o​brir — Parker con​ti​nuou — que Dom e os ou​tros não vi​r am
uma nave cheia de ca​dá​ve​r es. Mas che​ga​r am a fa​lar com os ex​tra​ter​r es​tres.
Ima​gi​ne... Ima​gi​ne só!
— Acho que na​que​la noi​te acon​te​c e​r am fa​tos mui​to es​tra​nhos. Mais es​tra​-
nhos, até, do que ver des​c er do céu uma nave de ou​tro pla​ne​ta.
— O se​nhor acha que... es​ses fa​tos ex​pli​c a​r i​a m os po​de​r es de Dom e Bren​-
dan?
— Tal​vez. Não te​nho dú​vi​das de que acon​te​c eu algo mais, além de um
sim​ples en​c on​tro.
Pa​r a​r am ao che​gar ao topo da co​li​na e olha​r am em vol​ta. Ape​sar da neve,
Ste​f an viu fa​r óis ace​sos, pou​c os me​tros abai​xo, na es​tra​da de Vis​ta Val​ley. Qua​tro
car​r os, es​ta​c i​o​na​dos em cír​c u​lo, os fei​xes ama​r e​la​dos das lu​zes dos fa​r óis cor​tan​-
do a cor​ti​na de neve, de​se​nhan​do gra​des na vas​ti​dão bran​c a. O pa​dre en​gre​nou a
mar​c ha e co​m e​ç ou a des​c er o acos​ta​m en​to para atin​gir a es​tra​da; ti​nha a ní​ti​da
im​pres​são de que não con​se​gui​r ia che​gar.
— São... me​tra​lha​do​r as! — Parker gri​tou.
Dois ho​m ens pró​xi​m os à luz es​ta​vam ar​m a​dos, as me​tra​lha​do​r as apon​ta​das
para um gru​po de seis adul​tos e uma cri​a n​ç a, to​dos vi​r a​dos de fren​te para um
jipe idên​ti​c o ao que Parker ha​via com​pra​do, ape​nas de cor di​f e​r en​te. Ou​tros oito
ou dez ho​m ens fe​c ha​vam o cír​c u​lo à vol​ta do jipe, to​dos ves​tin​do o mes​m o tipo
de abri​go con​tra o frio. Eram os sol​da​dos que blo​que​a ​r am a ro​do​via ho​r as an​tes
— e tam​bém na noi​te de 6 de ju​lho do ano re​tra​sa​do.
To​dos, sol​da​dos e pri​si​o​nei​r os, vol​ta​r am a ca​be​ç a para a es​tra​da as​sus​ta​dos
com a in​tro​m is​são.
Ste​f an che​gou a pen​sar em ma​no​brar ra​pi​da​m en​te e pi​sar fun​do para es​c a​-
par dali. Mas logo con​c luiu que não ha​via fuga pos​sí​vel: os sol​da​dos os agar​r a​r i​-
am, ou os ma​ta​r i​a m a ti​r os.
Foi quan​do re​c o​nhe​c eu Bren​dan.
— E ele! — ex​c la​m ou. — Bren​dan! Está ali... o úl​ti​m o da fila!
— Os ou​tros tam​bém de​vem es​tar sain​do do mo​tel. — Parker apro​xi​m ou-
se do vi​dro para ver me​lhor. — Mas Dom não está com eles.
ago​r a que já ha​via en​c on​tra​do Bren​dan, o pa​dre Wy ​c a​zik não sai​r ia mais de
per​to dele, nem mes​m o se Deus lhe abris​se um ca​m i​nho di​r e​to para o Ca​na​dá,
como fi​ze​r a no mar Ver​m e​lho para Moi​sés. Pena que es​ta​va de​sar​m a​do. Afi​-
nal... era pa​dre e nun​c a con​f i​a ​r a em ar​m as de fogo. Nao po​dia fu​gir, nem que​r ia
ata​c ar... Na in​de​c i​são, dei​xou o ve​í​c u​lo des​li​zar len​ta​m en​te, en​c os​ta abai​xo, en​-
quan​to dava vol​tas e vol​tas na ca​be​ç a ten​tan​do des​c o​brir como co​m e​ç ar a con​-
ver​sa.
— Mas... o que va​m os fa​zer?! — Parker se​gu​r ou-se no ban​c o.
O di​le​m a du​r ou pou​c o, para sur​pre​sa e de​ses​pe​r o de Ste​f an. Um
dos sol​da​dos ar​m a​dos vi​r ou-se e abriu fogo con​tra o jipe.
Sem fa​lar, Dom ob​ser​va​va Jack Twist, de lan​ter​na na mão, exa​m i​nan​do a
cer​c a de ara​m e far​pa​do que se er​guia aci​m a de suas ca​be​ç as. Es​ta​vam na área
em que a cer​c a se es​ten​dia em ter​r e​no aber​to, des​c en​do para o fun​do do vale. A
gros​sa tra​m a de ara​m e far​pa​do es​ta​va in​c rus​ta​da de gelo em vá​r i​os pon​tos, mas
Jack con​c en​tra​va-se nas par​tes onde a neve não se acu​m u​la​r a.
— A cer​c a não é ele​tri​f i​c a​da — avi​sou, ele​van​do a voz aci​m a do zum​bi​do
do ven​to. — Não há fios con​du​to​r es en​tre​te​c i​dos no ara​m e, que, ali​á s, é mui​to
gros​so para ser​vir de con​du​tor; e ain​da há pon​tas sol​tas. Não há dú​vi​da... a cer​c a
não é ele​tri​f i​c a​da.
— Mas... — Gin​ger per​gun​tou — e os di​ze​r es na es​tra​da?
— Só es​tão lá para afu​gen​tar ama​do​r es. — Jack apro​xi​m ou o fei​xe de luz e
fez um si​nal para que ela olhas​se de per​to. — Mas tam​bém são ver​da​dei​r os, por​-
que, em​bo​r a a cer​c a não seja ele​tri​f i​c a​da, há fios con​du​to​r es es​c on​di​dos nos ro​-
los de ara​m e far​pa​do 4ue fi​c am en​tre os dois la​dos da cer​c a, ali por cima. Se al​-
guém te ntar pu​lar, vai mor​r er fri​to. Va​m os pas​sar por bai​xo.
Gin​ger se​gu​r ou a lan​ter​na en​quan​to Dom ti​r a​va de um dos sa​c os de lona o
ma​ç a​r i​c o de ace​ti​le​no e en​tre​ga​va-o a Jack, que ajei- ava 0s ocu​los de pro​te​ç ão,
na ver​da​de sim​ples ócu​los de es​qui​a ​dor ^om o vi​sor pin​ta​do. O ru​í​do agu​do do
ma​ç a​r i​c o era au​dí​vel ape​sar Ve nto, e a cha​m a azu​la​da cri​a ​va um halo ao re​dor
do gru​po.
Es​ta​vam lon​ge da es​tra​da de Thun​der Hill, num pon​to da cer​c a onde di​f i​c il​-
men​te se​r i​a m vis​tos. Mas, re​f le​ti​da na neve, a luz do ace​ti​le​no bri​lha​va mais do
que nor​m al​m en​te, e Dom te​m ia que, de re​pen​te, che​gas​sem os guar​das. De
qual​quer modo, va​lia a pena ten​tar, pois, se Jack es​ti​ves​se cer​to e a se​gu​r an​ç a
fos​se ele​trô​ni​c a, nem as câ​m a​r as se​r i​a m de gran​de uti​li​da​de numa noi​te de ne​-
vas​c a, por​que as len​tes es​ta​r i​a m co​ber​tas de neve e gelo. Pelo sim, pelo não, se
por aca​so fos​sem apa​nha​dos e “con​vi​da​dos” a en​trar, nem tudo es​ta​r ia per​di​do...
e eles se en​c on​tra​r i​a m den​tro de Thun​der Hill.
Nem Gin​ger, nem Dom, nem Jack es​ta​vam ar​m a​dos. Todo o ar​se​nal de que
dis​pu​nham fora en​tre​gue ao gru​po do jipe, que pre​c i​sa​va es​c a​par ao cer​c o. O
pla​no de Jack de​pen​dia de que os sete com​pa​nhei​r os che​gas​sem a Elko e, dali, to​-
mas​sem ru​m os di​f e​r en​tes, para fa​zer sua par​te do tra​ba​lho. Se fos​sem cap​tu​r a​-
dos, o pla​no fra​c as​sa​r ia.
Jack con​ti​nu​a ​va cur​va​do jun​to à cer​c a, cor​tan​do o ara​m e com o ma​ç a​r i​c o, a
luz azu​la​da re​f le​tia nos ócu​los. Foi a luz que fez Dom mer​gu​lhar no​va​m en​te no
pas​sa​do.
O ter​c ei​ro jato pas​sa ron​c an​do so​bre o res​tau​ran​te, vo​an​do bai​x o, mui​to bai​-
xo. Dom está no chão, o ros​to es​c on​di​do. Mas o avi​ão não cai. Voa bai​x o ain​da
por al​guns me​tros e, de re​pen​te, sobe em di​re​ç ão ao céu, dei​x an​do jun​to ao chão
o chei​ro quen​te de com​bus​tí​v el quei​ma​do e o ca​lor das tur​bi​nas in​c an​des​c en​-
tes. Ain​da ga​nha al​tu​ra quan​do apa​re​c e o quar​to jato, com lu​zes ver​me​lhas e
bran​c as, ron​c an​do por cima do te​lha​do do mo​tel, abrin​do enor​mes fe​ri​das na es​-
cu​ri​dão da noi​te. Voa para o sul, de​pois al​te​ra o cur​so e ruma para o les​te, por
cima das bar​ri​c a​das que blo​quei​am a ro​do​v ia, se​guin​do a tri​lha do ter​c ei​ro jato.
Os pri​mei​ros dois ja​tos já es​tão de vol​ta, vo​an​do mais bai​x o do que na pri​mei​ra in​-
cur​são, mas não se apro​x i​mam do mo​tel; se​pa​ram-se a meio ca​mi​nho, indo cada
um para um lado. A ter​ra ain​da es​tre​me​c e sob a car​ga do des​lo​c a​men​to de ar e
ain​da se ouve o ron​c o, às ve​zes mais per​to, às ve​zes mais lon​ge, como uma bom​ba
sen​do ar​ma​da para ex​plo​dir; in​c han​do, in​c han​do sem​pre, sem nun​c a re​ben​tar.
Jack acha que ou​tros ja​tos de apro​x i​mam... Mas ha tam​bém o zum​bi​do, agu​do, es​-
tra​nho, im​pos​sí​v el de ser lo​c a​li​za​do, pois pa​re​c e vir de to​dos os la​dos. Não é ba​ru​-
lho de mo​tor a jato. Dom le​v an​ta-se e olha em vol​ta. Vê Gin​ger, Jor​ja e Ma​reie.
Jack apro​x i​ma-se, cor​ren​do, sain​do do mo​tel. Er​nie e Faye saem cor​ren​do do es​-
cri​tó​rio... e os ou​tros! To​dos os ou​tros, Ned, Sandy... O zum​bi​do cres​c e... lem​bra o
fra​gor de ca​ta​ra​tas, po​rém é mais agu​do, como um mi​lhão de pí​fa​ros so​pra​dos em
unís​so​no; cor​ta o ar como uma ser​ra elé​tri​c a. Dom vas​c u​lha o céu a pro​c u​ra
dos ja​tos, co​bre os ou​v i​dos, olha para o alto, apon​ta e gri​ta:
* — Ve​jam... A Lua! A Lua\
To​dos acom​pa​nham seu olhar, Dom re​c ua al​guns pas​sos, tre​men​do de hor​ror.
Al​guém gri​ta...
— A Lua!
Dom aca​bou des​per​tan​do com o som dos pró​pri​os gri​tos.
Es​ta​va dei​ta​do na neve, der​r u​ba​do pelo sus​to da​que​le ins​tan​te de lem​bran​ç as.
Gin​ger sa​c u​dia-o pe​los om​bros, per​gun​tan​do:
— Você está bem?
— Acho... que me lem​brei de al​gu​m a coi​sa. Mas não sei di​r ei​to o que é. Os
ja​tos, não sei...
Pas​sos adi​a n​te, Jack aca​ba​va de abrir ca​m i​nho atra​vés da cer​c a. Des​li​gou o
ma​ç a​r i​c o, e a noi​te des​c eu ou​tra vez, como um imen​so man​to par​do.
— Va​m os em fren​te — dis​se para os ou​tros. — Da​qui em di​a n​te es​ta​m os
na toca da onça.
— Dá para an​dar? — Gin​ger per​gun​tou a Dom.
— Dá... — res​pon​deu ele, mas o es​tô​m a​go dava-lhe vol​tas e o co​r a​ç ão pa​-
re​c ia con​ge​la​do. — De re​pen​te, não sei por quê, fi​quei com medo.
— To​dos nós es​ta​m os com medo...
— Não, não es​tou com medo de ser apa​nha​do aqui. Não... E ou​tra coi​sa.
Uma coi​sa da qual es​ti​ve mui​to per​to, ago​r a. Qua​se me lem​brei... e es​tou tre​-
men​do como vara ver​de. Meu Deus!
Bren​dan mal acre​di​tou quan​do ou​viu o co​r o​nel Falkirk or​de​nar ao sol​da​do
que abris​se fogo con​tra o jipe que se apro​xi​m a​va pela es​tra​da. Que lou​c u​r a! Ele
nem sa​bia quem po​dia es​tar se apro​xi​m an​do. O sol​da​do tam​bém não acre​di​tou,
tan​to que nem to​c ou na arma. Mas Falkirk apro​xi​m ou-se dele, aos ber​r os:
— Obe​de​ç a, cabo! Este é as​sun​to de se​gu​r an​ç a má​xi​m a! En​vol​ve pro​ble​m as
de se​gu​r an​ç a na​c i​o​nal. Seu país em ris​c o! Quem é que você pen​sa que pode an​-
dar por aí, nes​sa es​tra​da, com uma noi​te as​sim? Boa gen​te não há de ser. Ati​r e
para ma​tar!
En​tão o cabo obe​de​c eu. A ra​j a​da de me​tra​lha​do​r a can​tou na noi​te, por um
ins​tan​te, mais alto que o ven​to. Os fa​r óis do jipe apa​ga​r am-se; des​go​ver​na​do, o
ve​í​c u​lo ga​nhou ve​lo​c i​da​de e des​c eu em di​r e​ç ão ao gru​po. O vi​dro do pára-bri​sa
es​ti​lha​ç ou-se sob a chu​va de ba​las. O jipe apro​xi​m a​va-se, cada vez mais rá​pi​do,
até que ba​teu numa pe​dra, sal​tou para fren​te e pa​r ou a pou​c o mais de um me​tro
de Falkirk. A neve con​ti​nu​a ​va a cair.
Cin​c o mi​nu​tos an​tes, quan​do Ned, che​gan​do pela ou​tra pis​ta da es​tra​da, do​-
bra​r a à di​r ei​ta para cair di​r e​to na ar​m a​di​lha de Falkirk, to​dos per​c e​be​r am que as
ar​m as que Jack lhe dera de nada va​le​r i​a m. Nem a me​tra​lha​do​r a, nem as pis​to​las,
nada... Sa​ben​do que a vida de to​dos de​pen​dia de que che​gas​sem a Elko, te​r i​-
am ten​ta​do en​f ren​tá-los, se não es​ti​ves​sem cer​c a​dos por um ver​da​dei​r o exér​c i​to,
ar​m a​do até os den​tes. Não ha​via re​sis​tên​c ia pos​sí​vel.
Bren​dan, an​gus​ti​a ​do, pen​sa​va se não ca​be​r ia a ele e a seus po​de​r es te​le​c i​né​-
ti​c os a ta​r e​f a de li​vrá-los da mor​te. Tal​vez con​se​guis​se ar​r an​c ar as me​tra​lha​do​r as
das mãos dos sol​da​dos. Mas, e se não des​se cer​to? Não es​que​c ia que, na vés​pe​r a,
no res​tau​r an​te, os po​de​r es ha​vi​a m es​c a​pa​do de qual​quer con​tro​le, e só por sor​te
não acon​te​c e​r a algo de mais gra​ve. Se fa​lhas​se, os sol​da​dos abri​r i​a m fogo con​tra
o gru​po, para se de​f en​der. Ou as pró​pri​a s me​tra​lha​do​r as, como os sa​lei​r os, vo​a ​r i​-
am so​zi​nhos, dis​pa​r an​do a esmo até es​go​tar-se a mu​ni​ç ão. E se al​guém fos​se fe​-
ri​do? E se ele, Bren​dan, fos​se mor​to e não ti​ves​se tem​po de sal​var os ou​tros? Di​f í​-
cil ga​nhar um dom com​pli​c a​do, sem ins​tru​ç ões de uso...
Ao ver o jipe des​c en​do a es​tra​da como um ani​m al fe​r i​do, Bren-
dan adi​vi​nhou des​gra​ç a. Es​ta​va com medo... de Falkirk, do ve​í​c u​lo des​go​ver​-
na​do e de si mes​m o. Tal​vez, para sen​tir-se me​lhor, pu​des​se so​c or​r er as pes​so​a s
que vi​a ​j a​vam no jipe. Ti​nha que ten​tar, cus​tas​se o que cus​tas​se! Era seu de​ver,
como pa​dre e como ho​m em. Tam​bém não en​ten​dia o mis​té​r io que fa​zia suas
mãos es​tan​c a​r em o san​gue, mas a ex​pe​r i​ê n​c ia pa​r e​c ia-lhe me​nos ar​r is​c a​da. En​-
tão, apro​vei​tan​do que os sol​da​dos es​ta​vam vol​ta​dos para o jipe me​tra​lha​do, afas​-
tou-se do gru​po, con​tor​nou o ve​í​c u​lo de Jack e dis​pa​r ou a cor​r er pela es​tra​da.
Cor​r eu, es​c or​r e​gou na neve, caiu, le​van​tou-se e se​guiu.
Nao ou​viu ti​r os a suas cos​tas, ape​nas gri​tos.
O ban​c o ao lado do mo​to​r is​ta era o mais pró​xi​m o. Um ho​m em cor​pu​len​to,
com a tes​ta en​c os​ta​da na por​ta en​tre​a ​ber​ta, ta​te​a ​va à pro​c u​r a de al​gu​m a coi​sa
onde pu​des​se apoi​a r-se para des​c er. Não es​ta​va mor​to, mas ti​nha duas gran​des
man​c has de san​gue no pei​to. Usa​va um pe​sa​do ca​sa​c o do uni​f or​m e da Ma​r i​nha.
No ins​tan​te em que Bren​dan o ti​r ou do jipe e o dei​tou na neve, um sol​da​do
apro​xi​m ou-se, com a co​r o​nha da me​tra​lha​do​r a er​gui​da para gol​peá-lo na ca​be​-
ça.
— Saia da​qui! — Bren​dan gri​tou, er​guen​do-se de um sal​to, os pu​nhos cer​-
ra​dos. — Vou cu​r ar este ho​m em. E não ten​te me im​pe​dir. Suma!
Falkirk che​gou a tem​po de se​gu​r ar a co​r o​nha da me​tra​lha​do​r a, evi​tan​do que
o sol​da​do atin​gis​se Bren​dan:
— Isso, pa​dre. Vá em fren​te. Que​r o ser tes​te​m u​nha ocu​lar de seu cri​m e.
— O quê? — Bren​dan não en​ten​deu.
— Nada. Faça seu “ser​vi​c i​nho”.
Nem pre​c i​sa​r ia or​de​nar. An​tes que aca​bas​se de fa​lar, Bren​dan ajo​e ​lhou-se
ao lado do ho​m em des​m ai​a ​do. Abriu-lhe o ca​sa​c o, er​gueu a ma​lha e de​sa​bo​to​ou
a ca​m i​sa xa​drez. En​c on​trou dois fe​r i​m en​tos: um no om​bro es​quer​do e o ou​tro,
mai​or, per​to da cin​tu​r a, à di​r ei​ta. Pre​c i​sa​va tra​tar pri​m ei​r o do fe​r i​m en​to no ab​-
do​m e.
Mas... como?l Não con​se​guia lem​brar-se do que fi​ze​r a para cu​r ar Emmy ou
Tolk. O que ha​via acon​te​c i​do? Não sa​bia... não se lem​bra​va de nada, além de que
sen​ti​r a im​po​tên​c ia, frus​tra​ç ão, hor​r or. A mor​te que​r ia le​var uma me​ni​na lin​da,
um ho​m em jus​to e tra​ba​lha​dor... Não! Não po​dia ser... Era hor​r í​vel de​m ais, ter​r í​-
vel de​m ais... Ti​nha que lu​tar... Mas era tão fra​c o, so​zi​nho con​tra o mun​do, con​tra
a mor​te! Não! A mor​te pre​c i​sa​va ser ven​c i​da, pela gló​r ia da vida, pela gló​r ia de
Deus!
Sen​tiu as pal​m as das mãos aque​c e​r em-se. Os anéis re​a ​pa​r e​c e​r am.
Sem ne​c es​si​da​de de olhar, pou​sou as mãos so​bre a fe​r i​da do ho​m em. E pe​-
diu a Deus, ou quem lhe ti​ves​se dado o po​der, que o aju​das​se a sal​vá-lo.
En​tão sen​tiu a cor​r en​te que se es​ta​be​le​c ia en​tre suas mãos e o ho​m em dei​ta​-
do a sua fren​te, a ener​gia que lhe flu​ía das vei​a s e an​da​va pe​los de​dos até atin​gir
a pele. A ener​gia em seu cor​po to​m a​va a for​m a de uma es​pi​r al, que gi​r a​va, fa​-
zen​do sur​gir um fio que o li​ga​va ao ho​m em. Ao re​dor dos dois te​c ia-se um man​to
pro​te​tor con​tra a dor e a mor​te. Des​sa vez, ao con​trá​r io do que acon​te​c e​r a com
Emmy e Win​ton Tolk, Bren​dan sen​tia-se ple​na​m en​te cons​c i​e n​te da for​ç a que
ema​na​va de suas mãos. Sa​bia que, ago​r a, es​ta​va re​m en​dan​do os te​c i​dos di​la​c e​-
ra​dos, re​c om​pon​do mús​c u​los, re​c ons​tru​in​do vei​a s, cri​a n​do san​gue.
A me​di​da que con​se​guia acom​pa​nhar o pro​c es​so de ci​c a​tri​za-ção de​sen​c a​-
de​a ​do por suas mãos, des​c o​bria que era ca​paz de ou​tras ma​r a​vi​lhas. Com Win​ton
e Emmy, o pro​c es​so fora mais len​to. Po​r ém o ho​m em dei​ta​do a sua fren​te, com
o ab​do​m e pra​ti​c a​m en​te ci​c a​tri​za​do, abria os olhos, res​pi​r a​va bem, ten​ta​va le​van​-
tar-se. Di​zia al​gu​m a coi​sa que não en​ten​dia bem:
— Por fa​vor... o pa​dre... está fe​r i​do. Vá aten​dê-lo an​tes. O pa​dre Wy ​c a​zik
está no jipe...
— Wy ​c a​zik?! — Apro​xi​m ou o ou​vi​do dos lá​bi​os do ho​m em. Não... não era
pos​sí​vel! O que o pa​dre Wy ​c a​zik es​ta​r ia fa​zen​do em Ne​va​da, num jipe, no meio
da noi​te?!
— Vá de​pres​sa — o ho​m em re​pe​tiu.
Bren​dan cor​r eu, em​pur​r an​do sol​da​dos e me​tra​lha​do​r as. A por​ta do mo​to​r is​ta
es​ta​va em​per​r a​da. De um sal​to, su​biu à ja​ne​la,
se​gu​r ou-se como pôde e sal​tou so​bre o capô, de fren​te para o pára-bri​sa es​ti​-
lha​ç a​do. Com o jipe tom​ba​do, era im​pos​sí​vel al​c an​ç ar o ho​m em pre​so ao vo​lan​-
te. En​tão Bren​dan vol​tou à por​ta e for​ç ou-a. Im​pos​sí​vel abri-la; pa​r e​c ia sol​da​da à
car​r o​c e​r ia. Bren​dan fe​c hou os olhos, to​c ou o trin​c o e, sim​ples​m en​te, de​se​jou que
a por​ta se abris​se... e ela es​c an​c a​r ou-se, com um ru​í​do ás​pe​r o de me​tal amas​sa​-
do.
O cor​po des​li​zou len​ta​m en​te para fora e caiu em seus bra​ç os. Bren​dan dei​-
tou-o so​bre a neve. De olhos aber​tos, o pa​dre Wy ca-zik já não olha​va para esse
mun​do. Con​tem​pla​va ou​tra di​m en​são, nos pri​m ei​r os pas​sos da vida eter​na.
T - N ÃO... — BRE NDAN GE ME U. — N ÃO...
Ti​nha um fe​r i​m en​to na ca​be​ç a, jun​to à têm​po​r a di​r ei​ta, por onde a bala en​-
tra​r a para sair atrás da ore​lha. Não era um fe​r i​m en​to mor​tal, mas o ou​tro... na
gar​gan​ta... era. Um bu​r a​c o, pou​c o abai​xo do pomo-de-adão, mos​tran​do a car​ne
di​la​c e​r a​da; o san​gue es​c u​r o co​m e​ç a​va a co​a ​gu​lar.
Ain​da as​sim, trê​m u​lo, Bren​dan pou​sou as mãos so​bre o pes​c o​ç o de Ste​f an,
sen​tiu cres​c e​r em as on​das de ener​gia que ha​vi​a m cu​r a​do Emmy, o pa​tru​lhei​r o
Tolk, o des​c o​nhe​c i​do de ins​tan​tes atrás. Mi​lhões e mi​lhões de lon​gos fios de luz e
cor cor​r en​do-lhe nas vei​a s, che​gan​do a suas mãos, ou​tra vez te​c en​do a vida. Sen​-
tiu nos de​dos o to​que frio da pele de seu úni​c o gran​de ami​go, seu guia, seu mes​-
tre. E logo per​c e​beu que não po​de​r ia sal​vá-lo. O po​der de​pen​dia da em​pa​tia com
a vida que ain​da lu​ta​va. Sem a par​ti​c i​pa​ç ão ati​va da ou​tra me​ta​de, Bren​dan era
ape​nas a fi​a n​dei​r a de um cor​dão que não ti​nha como ser usa​do. Os fios con​ti​nu​a ​-
vam, mas o tear dei​xa​r a de te​c er.
O pa​dre Wy ​c a​zik es​ta​va mor​to há al​guns mi​nu​tos, pro​va​vel​m en​te des​de que
o jipe se des​go​ver​na​r a. Bren​dan des​c o​bria que po​dia cu​r ar fe​r i​das, mes​m o as
mais ter​r í​veis, ape​nas en​quan​to hou​ves​se vida; ja​m ais con​se​gui​r ía fa​zer o que
Cris​to fi​ze​r a com Lá​za​r o. Pôs-se a cho​r ar. Sol​tou um pri​m ei​r o so​lu​ç o, ten​so, de​-
ses​pe​r a​do, de​pois ou​tro, um ter​c ei​r o, até que se le​van​tou e olhou para o
céu. Mur​m u​r a​va pa​la​vras que su​pu​nha ter es​que​c i​do:
— “San​ta Ma​r ia, mãe de Deus, ro​gai por nós, pe​c a​do​r es, ago​r a e na hora
de nos​sa mor​te...”
Es​ta​va re​zan​do ou​tra vez, nem in​c ons​c i​e n​te​m en​te, nem por há​bi​to. Re​za​va,
como tan​tas ve​zes na vida, com a con​vic​ç ão doce e pro​f un​da de que a Mãe de
Deus ou​vi​r ia seu de​ses​pe​r o sur​do e, ali​a n​do seus po​de​r es aos dele, o aju​da​r ia a
fa​zer re​vi​ver o pa​dre Wy ​c a​zik. Se em al​gum mo​m en​to per​de​r a a fé, re​c on​quis​ta​-
va-a na​que​le ins​tan​te, in​ta​ta, per​f ei​ta. Acre​di​ta​va e pe​dia de todo o co​r a​ç ão.
Ajo​e ​lha​do na neve, as mãos pou​sa​das so​bre a fe​r i​da ain​da úmi​da, mas já
fria, sem pa​r a​m en​tos, sem os tra​j es ecle​si​á s​ti​c os, Bren-dan re​za​va à Vir​gem,
Ma​r ia Ima​c u​la​da, Nos​sa Se​nho​r a, Mãe e Pro​te​to​r a dos De​sam​pa​r a​dos, Rosa
Mís​ti​c a, Es​tre​la da Ma​nhã, Tor​r e de Mar​f im, Saú​de dos Do​e n​tes, Con​so​lo dos
Afli​tos.
— “Mãe de mi​se​r i​c ór​dia, ro​gai por nós...”
De​m o​r ou al​guns ins​tan​tes para com​preen​der que Deus le​va​r a para sem​pre
seu ve​lho ami​go. Con​ti​nuou re​zan​do bai​xi​nho, mas afas​tou as mãos da mons​truo​-
sa fe​r i​da no pes​c o​ç o de Ste​f an, e afa​gou-lhe o ros​to ge​la​do. Uma gi​gan​tes​c a
onda de dor o su​f o​c a​va, lá​gri​m as ar​den​tes quei​m a​vam-lhe as fa​c es.
— En​tão, o se​nhor des​c o​briu que seus po​de​r es não são ili​m i​ta​dos — Falkirk
co​m en​tou, rin​do a suas cos​tas. — Óti​m o! Mui​to bom! Mas ago​r a mexa-se! Jun​te-
se aos ou​tros.
Bren​dan vol​tou-se, fi​tou-o nos ter​r í​veis olhos ge​la​dos que tan​to o as​sus​ta​r am
e, sem se mo​ver, de​c la​r ou:
— Meu ami​go mor​r eu sem tem​po de con​f es​sar-se. Sou pa​dre, como ele, e
vou cum​prir os ri​tos re​li​gi​o​sos que ele me​r e​c e e que eu de​se​j o ofe​r e​c er-lhe. Se
qui​ser me ma​tar, pode man​dar seus sol​da​dos ati​r a​r em em mim pe​las cos​tas.
Caso re​sol​va es​pe​r ar, eu me reu​ni​r ei aos ou​tros quan​do aca​bar.
Deu as cos​tas a Falkirk e des​c o​briu que, de re​pen​te, vol​ta​vam-lhe as fra​ses,
em la​tim, da ora​ç ão pe​los mor​tos.
Jack abriu uma tri​lha es​trei​ta na cer​c a de ara​m e; como ne​nhum dos três era
gor​do, não ti​ve​r am di​f i​c ul​da​de em che​gar ao ou​tro lado, de​pois de em​pur​r ar os
sa​c os de lona.
Se​guin​do ri​go​r o​sa​m en​te suas in​tru​ç ões, Dom e Gin​ger pa​r a​r am
bem jun​to à cer​c a, en​quan​to Jack exa​m i​na​va o ter​r e​no ao re​dor com a aju​da
de seu bi​nó​c u​lo de vi​são in​f ra​ver​m e​lha. Pro​c u​r a​va des​c o​brir as câ​m a​r as de te​le​-
vi​são ou os alar​m es com cé​lu​las fo-to​e ​lé​tri​c as. Ape​sar do ven​to e da neve que
tor​na​vam a pes​qui​sa mui​to mais di​f í​c il do que se a noi​te es​ti​ves​se lim​pa, con​se​-
guiu des​c o​brir duas câ​m a​r as que co​bri​a m a área a par​tir de dois di​f e​r en​tes pon​-
tos. Era pro​vá​vel que ti​ves​sem as len​tes co​ber​tas de neve, mas, ain​da as​sim, não
con​vi​nha ar​r is​c ar. Em com​pen​sa​ç ão, não ha​via si​nal de cé​lu​las fo​to​e ​lé​tri​c as.
Jack ti​r ou de um dos bol​sos do abri​go um apa​r e​lho não mai​or que uma car​-
tei​r a de di​nhei​r o: um vol​tí​m e​tro ex​tre​m a​m en​te so​f is​ti​c a​do, ca​paz de de​tec​tar a
pas​sa​gem de cor​r en​te elé​tri​c a num fio sem pre​c i​sar to​c ar nele. Vi​r ou-se de cos​-
tas para a cer​c a e apon​tou o vol​tí​m e​tro para o ter​r e​no; ajo​e ​lhou-se, es​ti​c ou o bra​-
ço e avan​ç ou al​guns me​tros, de​va​gar. O apa​r e​lho era sen​sí​vel a qual​quer si​nal de
ar​m a​di​lha fo​to​e ​lé​tri​c a ou ter​m o​e ​lé​tri​c a, ain​da que en​ter​r a​das a meio me​tro de
pro​f un​di​da​de, mas não re​gis​tra​r ia um emis​sor en​c ap​su​la​do. De qual​quer modo,
Jack ten​ta​va lo​c a​li​zar uma fon​te que di​f i​c il​m en​te es​ta​r ia en​c ap​su​la​da e não se​r ia
afe​ta​da pe​las ca​m a​das de neve, an​ti​ga ou mais re​c en​te. Pre​c i​sou avan​ç ar ajo​e ​-
lha​do ape​nas três me​tros, e logo o de​tec​tor soou, fa​zen​do acen​der uma pe​que​na
lâm​pa​da cor de âm​bar. Jack pa​r ou e cha​m ou Gin-ger e Dom.
— Fi​quem per​to de mim — dis​se. — O ter​r e​no está mi​na​do. Alar​m es sen​-
sí​veis a pres​são es​tão en​ter​r a​dos à pro​f un​di​da​de de cin​c o ou seis cen​tí​m e​tros. São
aci​o​na​dos pelo peso de quem pi​sar no ter​r e​no, a par​tir de três me​tros de cer​c a,
em toda a vol​ta. E uma teia de fios en​vol​ta em plás​ti​c o fino, de bai​xa vol​ta​-
gem. O alar​m e é aci​o​na​do sem​pre que qual​quer cri​a ​tu​r a com mais de vin​te ou
vin​te e cin​c o qui​los pisa num dos “ni​nhos” e rom​pe o con​ta​to. O peso da neve não
o aci​o​na, por​que a neve está uni​f or​m e​m en​te dis​tri​bu​í​da por toda a rede. Para
aci​o​nar o alar​m e, o peso deve lo​c a​li​zar-se numa pe​que​na área.
— Até eu peso mais que vin​te e cin​c o qui​los — co​m en​tou Gin-ger, ba​lan​-
çan​do a ca​be​ç a. — A rede de fios é mui​to ex​ten​sa?
— Co​bre uma fai​xa de três me​tros, no mí​ni​m o. — Jack res​pon​deu. — A
idéia é im​pe​dir que um es​per​ti​nho como eu des​c u​bra as mi​nas e re​sol​va sal​tar
so​bre elas até o ou​tro lado.
— Não sei o que você está pen​san​do, mas ga​r an​to que eu não pos​so fazê-
los vo​a ​r em para lá — dis​se Dom, ten​tan​do sor​r ir.
— Não sei... — Jack vi​r ou-se para ele. — Tal​vez, se ti​vés​se​m os tem​po, va​-
les​se a pena tes​tar seus po​de​r es. Se você faz ca​dei​r as vo​a ​r em para o teto, tal​vez
pos​sa nos te​le​trans​por​tar por cima das mi​nas. Mas não há tem​po para tes​tes... Va​-
mos ter que voar a mi​nha moda.
— O que quer di​zer... “a mi​nha moda”? Como? Acha que...
— Não, dou​to​r a. — Jack abai​xou-se e co​m e​ç ou a ti​r ar coi​sas da sa​c o​la. —
Não acho nada... sei que va​m os voar den​tro de dez mi​nu​tos. — Le​van​tou-se e
deu al​guns pas​sos jun​to à cer​c a, ain​da dis​tan​te da área mi​na​da. — Va​m os en​c on​-
trar uma ár​vo​r e do ou​tro lado, com um ga​lho ra​zo​a ​vel​m en​te gros​so que se es​ten​-
de so​bre o ter​r e​no. Se pos​sí​vel, uma ár​vo​r e que es​te​j a vin​te ou trin​ta me​tros da​-
qui.
— Para quê? — Dom fran​ziu as so​bran​c e​lhas.
— Já vai ver.
— E se não en​c on​trar​m os uma ár​vo​r e? — Gin​ger per​gun​tou.
— Tra​te de pen​sar po​si​ti​va​m en​te. Quan​do eu dis​ser que pre​c i​sa​m os de
uma ár​vo​r e, diga logo que va​m os en​c on​trar uma flo​r es​ta in​tei​r a. Ou fi​que de
bico fe​c ha​do.
A ár​vo​r e per​f ei​ta es​ta​va trin​ta me​tros à fren​te, na co​li​na que des​c ia em di​r e​-
ção ao vale: um pi​nhei​r o alto e só​li​do, com os ga​lhos bem se​pa​r a​dos, exa​ta​m en​te
como Jack que​r ia, ma​j es​to​so e co​ber​to de neve. Com o bi​nó​c u​lo, Jack vas​c u​lhou
cada cen​tí​m e​tro de pi​nhei​r o, até en​c on​trar um ga​lho que ser​vis​se para o que pla​-
ne​j a​va: gros​so e re​sis​ten​te, pas​san​do a pou​c os me​tros de al​tu​r a da cer​c a, de​pois
da área mi​na​da. Per​f ei​to para atu​a r como pi​lar de uma pon​te de cor​da. Jack dei​-
xou de lado o bi​nó​c u​lo; apa​nhou o gan​c ho que ti​r a​r a do saco de lona e le​va​va
pre​so ao cin​to, e o gros​so fio de nái​lon, com um cen​tí​m e​tro de diâ​m e​tro, que en​-
ro​la​r a no bra​ç o — itens que, en​tre ou​tros, Fay e e Gin​ger ha​vi​a m
com​pra​do em Elko pela ma​nhã. Pren​deu o fio no gan​c ho, com um nó fir​m e,
e tes​tou o ar​r an​j o. Per​f ei​to. Usa​do por al​pi​nis​tas pro​f is​si​o​nais, o fio de nái​lon era
ca​paz de su​por​tar o peso dos três jun​tos. Vol​tou a tes​tar o nó. Fi​xou uma das pon​-
tas do fio sob a bota, para evi​tar que lhe es​c a​pas​se, e pre​pa​r ou um laço com a
ex​tre​m i​da​de onde ata​r a o gan​c ho.
— Afas​tem-se um pou​c o — pe​diu.
Mo​ven​do o bra​ç o de​va​gar, aci​m a da ca​be​ç a, fez gi​r ar o laço com o gan​c ho
em mo​vi​m en​tos cada vez mais am​plos e mais rá​pi​dos até sol​tá-lo na di​r e​ç ão do
ga​lho que es​c o​lhe​r a. O fio voou so​bre a área das mi​nas com um zum​bi​do que
cor​ta​va a neve e en​gan​c hou-se no alvo com pre​c i​são, Jack en​r o​lou a pon​ta que
per​m a​ne​c ia pre​sa sob a bota num dos mon​tan​tes da cer​c a de ara​m e, de​pois de
exa​m i​ná-lo de​ti​da​m en​te e ter cer​te​za de que não ti​nha sen​so​r es ou câ​m a​r as. Deu
duas vol​tas em tor​no do mon​tan​te e, usan​do todo o peso do cor​po, pu​xou o fio de
nái​lon até dei​xa-lo bem es​ti​c a​do e reto. Pe​diu a Gin​ger e Dom que o aju​das​sem
a pu​xar e, en​tão sim, amar​r ou-o à vol​ta do mon​tan​te.
Es​ta​va pron​ta uma ra​zo​á ​vel pon​te de cor​da, que os fa​r ia “voar” so​bre a área
das mi​nas. Jack ti​nha que ser o pri​m ei​r o a pas​sar, para exa​m i​nar o ter​r e​no e pla​-
ne​j ar a eta​pa se​guin​te. De um sal​to, er​gueu os bra​ç os, pen​du​r ou-se e ba​lan​ç ou-se
para a fren​te e para trás, até ga​nhar im​pul​so para al​c an​ç ar o fio com os pés e
cru​zar os cal​c a​nha​r es so​bre ele. De bran​c o, no abri​go de frio, mãos en-lu​va​das,
pa​r e​c ia um gran​de urso po​lar brin​c an​do na neve, o ros​to vi​r a​do para o céu, as
cos​tas pa​r a​le​las ao chão. An​dan​do ca​den​c ia-da​m en​te, mãos e pés, como uma
mi​nho​c a gi​gan​te, fez uma pri​m ei​r a de​m ons​tra​ç ão, foi até a me​ta​de do ca​m i​nho
e vol​tou.
— E isso — dis​se. — Eu vou na fren​te com as duas sa​c o​las mai​o​r es. Dom
vai por úl​ti​m o, e você, Gin​ger, é a se​gun​da. Cada um leva uma das sa​c o​las me​-
no​r es, pre​sa às cos​tas, como mo​c hi​la.
— Vai ser fá​c il. — Gin​ger pre​c i​sou de aju​da para al​c an​ç ar o fio, mas, de​-
pois de pen​du​r a​da pe​las mãos, logo con​se​guiu pren​der-se pe​los tor​no​ze​los e riu.
— Cla​r o que va​m os con​se​guir! São só nove ou dez me​tros!
— Você está em ex​c e​len​te for​m a, dou​to​r a. — Jack er​gueu os olhos para ela.
— Quan​do che​gar aos três me​tros vai sen​tir que seus bra​ç os es​tão sen​do ar​r an​c a​-
dos do cor​po. Ao dez, será ca​paz de ju​r ar que já fo​r am ar​r an​c a​dos.
Al​gu​m a coi​sa na ati​tu​de de Bren​dan em re​la​ç ão à mor​te do ve​lho ami​go
cho​c ou o co​r o​nel Le​land Falkirk. Ha​via tal in​dig​na​ç ão em seus olhos, tan​ta dor
em sua voz cal​m a e con​ti​da que era qua​se im​pos​sí​vel du​vi​dar de que ele ain​da
fos​se hu​m a​no.
O medo do con​tá​gio de​vo​r a​va-o. Le​land ti​nha vis​to mui​tas coi​sas es​tra​nhas
na​que​la nave, e os ci​e n​tis​tas des​c o​bri​r am ou​tras mais. As pre​o​c u​pa​ç ões eram
mais do que jus​ti​f i​c a​das... em​bo​r a não o fos​se a lou​c u​r a. De qual​quer modo, era
di​f í​c il acre​di​tar que Bren​dan es​ti​ves​se fin​gin​do. Logo ele, o dos po​de​r es mais es​-
qui​si​tos, um dos prin​c i​pais sus​pei​tos de es​tar pos​su​í​do! Como en​ten​der o po​der de
cu​r ar, se​não como a pos​ses​são de um cor​po hu​m a​no por uma men​te di​a ​bó​li​c a?
Con​f u​so e atur​di​do, o co​r o​nel an​dou al​guns pas​sos, pa​r ou ao lado do pa​dre
ajo​e ​lha​do jun​to ao ca​dá​ver do ami​go, ou​viu a pre​c e em la​tim, ba​lan​ç ou a ca​be​-
ça e ten​tou or​ga​ni​zar os pen​sa​m en​tos. Viu as ou​tras seis tes​te​m u​nhas ao lado do
jipe de Jack Twist. Viu seus sol​da​dos, apar​va​lha​dos, sem sa​ber o que fa​zer, di​vi​di​-
dos en​tre o de​ver de obe​di​ê n​c ia e o sen​ti​m en​to de so​li​da​r i​e ​da​de para com o pa​-
dre. Viu o des​c o​nhe​c i​do que che​ga​r a com o ve​lho pá​r o​c o an​dan​do de um lado
para o ou​tro, an​gus​ti​a ​do, mas vivo, in​tei​r o. Um au​tên​ti​c o mi​la​gre, dig​no de ser
fes​te​j a​do. Por que te​m er um pro​dí​gio como aque​le?!
Le​land sa​bia o que es​ta​va es​c on​di​do em Thun​der Hill. E o fato de co​nhe​c er o
se​gre​do obri​ga​va-o a ver os fa​tos com olhos di​f e​r en​tes. A cura era uma ar​m a​di​-
lha, uma far​sa para con​f un​di-lo, para levá-lo a pen​sar como se​r ia van​ta​j o​so co​-
la​bo​r ar com o ini​m i​go, para in​du​zi-lo à não-re​sis​tên​c ia e à ren​di​ç ão in​c on​di​c i​o​-
nal. Ofe​r e​c i​a m ao mun​do o fim da dor, a vi​tó​r ia so​bre a mor​te em qua​se no​ven​-
ta por cen​to dos ca​sos de aci​den​tes e fe​r i​m en​tos gra​ves. Mas... como en​ten​der a
vida sem dor? Como dei​xar o ho​m em so​nhar com o fim
do so​f ri​m en​to? To​dos os so​nhos aca​ba​vam em ru​í​na, e só o so​f ri​m en​to e in​f i​-
ni​to, ine​xo​r á​vel. E não há dor mai​or do que ver ruir um so​nho. Me​lhor não aca​-
len​tar ilusões, não ali​m en​tar es​pe​r an​ç as. O ho​m em nas​c e e mor​r e com dor... Por
isso tem que vi​ver tam​bém com ela, por​que a dor é a es​sên​c ia da hu​m a​ni​da​de. A
sa​ni​da​de e a so​bre​vi​vên​c ia de​pen​dem de apren​der a con​vi​ver com o so​f ri​m en​to.
De que adi​a n​ta re​sis​tir à fa​ta​li​da​de ou so​nhar com o im​pos​sí​vel? E pre​c i​so ven​c er
o medo, ven​c er a dor... e fu​gir dos fal​sos Mes​si​a s que apa​r e​c em, aqui e ali, pro​-
me​ten​do um mun​do me​lhor, trans​c en​den​te, mais fe​liz. Des​c on​f i​a r, des​c on​f i​a r
mui​to.
Mais cal​m o, Le​land vol​ta​va a ser o ho​m em de sem​pre.
No gran​de ca​m i​nhão de trans​por​te de tro​pas do Exér​c i​to, Jor​j a pen​sa​va e ob​-
ser​va​va. O ca​m i​nhão ti​nha dois lon​gos ban​c os de me​tal, um di​a n​te do ou​tro, e um
ter​c ei​r o, mais cur​to, en​c os​ta​do à di​vi​são da ca​bi​ne do mo​to​r is​ta. De lon​ge em
lon​ge, pen​du​r a​das no teto, ha​via al​ç as de cou​r o onde os pas​sa​gei​r os po​di​a m se​gu​-
rar-se. No ban​c o me​nor, ja​zia o cor​po do pa​dre Wy ​c a​zik, amar​r a​do com cor​das
pre​sas na car​r o​c e​r ia e nos gan​c hos do teto. Nos ou​tros dois ban​c os, sen​ta​vam-se
Jor​j a, Ma​r eie, Bren​dan, Er​nie, Fa-y e, Sandy, Ned e o úni​c o re​c ém-che​ga​do so​-
bre​vi​ven​te, Parker Fai​ne. Em cir​c uns​tân​c i​a s nor​m ais, a por​ta do ca​m i​nhão fe​-
cha​va-se por den​tro, com uma tran​c a de fer​r o, para per​m i​tir que, em caso de
aci​den​te, os sol​da​dos pu​des​sem sair. Mas o co​r o​nel Fal-kirk man​da​r a tran​c ar a
por​ta por fora, com ca​de​a ​do, e guar​da​r a a cha​ve. Jor​j a sen​tia-se como numa
cela de pri​são... e, na es​c u​r i​dão, co​m e​ç a​va a de​ses​pe​r ar-se.
To​dos ima​gi​na​r am que Er​nie fos​se des​m ai​a r ou en​lou​que​c er, obri​ga​do a vi​a ​-
jar à noi​te, den​tro de uma ca​bi​ne es​c u​r a. Mas ele pa​r e​c ia bem, de mãos da​das
com Fay e, a res​pi​r a​ç ão qua​se nor​m al. Ape​nas uma vez deu mos​tras de per​der o
con​tro​le, mas a cri​se li​m i​tou-se a li​gei​r a fal​ta de ar ra​pi​da​m en​te su​pe​r a​da.
— Es​tou co​m e​ç an​do a me lem​brar dos ja​tos de que Dom fa​lou — dis​se ele,
pou​c o de​pois que o ca​m i​nhão co​m e​ç ou a mo​vi​m en​tar-se. — Eram qua​tro, pelo
me​nos, vo​a n​do mui​to bai​xo... En​tão, acon-
te​c eu al​gu​m a coi​sa que não con​si​go lem​brar... De​pois, cor​r i para o es​ta​c i​o​-
na​m en​to, en​trei na ca​m i​o​ne​te e dis​pa​r ei para a ro​do​via, rumo ao lu​gar onde es​ti​-
ve​m os... o lu​gar tão es​pe​c i​a l para Sandy e para mim... É tudo, por en​quan​to. Mas
já per​c e​bi que, quan​to mais lem​bro, me​nos medo do es​c u​r o sin​to...
Le​land não dei​xa​r a guar​das no ca​m i​nhão, tal​vez por​que achas​se ar​r is​c a​do
de​m ais dei​xar um ou dois ho​m ens for​te​m en​te ar​m a​dos na com​pa​nhia da​que​les...
mons​tros! De​pois de fazê-los en​trar no ca​m i​nhão, es​ti​ve​r a a pon​to de or​de​nar a
exe​c u​ç ão de to​dos, e Jor​j a sen​ti​r a o es​tô​m a​go con​trair-se de an​si​e ​da​de. Mas pa​-
re​c eu acal​m ar-se de re​pen​te e man​dou o ve​í​c u​lo an​dar. Jor​j a, po​r ém, es​ta​va
cer​ta de que ele os ma​ta​r ia no ins​tan​te em que che​gas​sem ao fim da vi​a ​gem, que
nin​guém ima​gi​na​va onde aca​ba​r ia.
Aos ber​r os, Falkirk per​gun​ta​r a por Dom, Gin​ger e Jack. Nin​guém res​pon​deu.
Como lou​c o, ele se apro​xi​m ou de Ma​r eie, se​gu​r ou-a pe​los ca​be​los e dis​se que, se
não fa​las​sem, tor​tu​r a​r ia a me​ni​na até a mor​te. Er​nie sal​tou do ban​c o, vo​c i​f e​r ou,
dis​se que Falkirk en​ver​go​nha​va sua far​da e, ca​bis​bai​xo, aca​bou di​zen​do que Jack,
Dom e Gin​ger sa​í​r am do Mo​tel Tran​qüi​li​da​de com des​ti​no a Bat​tle Moun​tain, na
es​pe​r an​ç a de che​gar a Reno.
— Fi​c a​m os com medo de que seus sol​da​dos já es​ti​ves​sem blo​que​a n​do as es​-
tra​das — Er​nie con​ti​nuou, sem​pre ca​bis​bai​xo — e pre​f e​r i​m os não ar​r is​c ar tudo
numa jo​ga​da só...
Não era ver​da​de. Por um ins​tan​te, Jor​j a pen​sou em sal​tar so​bre o pes​c o​ç o de
Er​nie e gri​tar-lhe que não ar​r is​c as​se a vida de Ma​r eie com men​ti​r as idi​o​tas...
mas per​c e​beu que Falkirk acre​di​ta​va. Er​nie in​ven​tou tan​tos de​ta​lhes que Le​land
aca​bou man​dan​do os sol​da​dos sa​í​r em para in​ves​ti​gar.
No ca​m i​nhão, aos so​la​van​c os, Jor​j a agar​r a​va-se a uma das al​ç as de cou​r o e
se​gu​r a​va Ma​r eie jun​to ao cor​po. Aos pou​c os, a me​ni​na pa​r e​c ia des​per​tar da le​-
tar​gia dos úl​ti​m os dias, dava si​nais de que​r er aten​ç ão e ca​r i​nho, abra​ç a​va-se com
for​ç a à mãe. Ain​da es​ta​va lon​ge da ale​gria e da vi​ta​li​da​de de an​tes, mas co​m e​-
ça​va a res​tau​r ar os la​ç os com a re​a ​li​da​de, es​c a​pan​do do abis​m o ne​gro em que
mer​gu​lha​r a.
Jor​j a se​r ia ca​paz de ju​r ar que nada, ou nin​guém, con​se​gui​r ia fazê-la pa​r ar
de pen​sar nos pro​ble​m as de Ma​r eie, até que Parker co​m e​ç ou a ex​pli​c ar como e
por que ele e o pa​dre Wy ​c a​zik ha​vi​a m che​ga​do até ali. Fa​lou-lhes de Cal​vin
Shark​le, de como Bren-dan trans​m i​ti​r a os po​de​r es de cura e te​le​c i​ne​se para Win​-
ton Tolk e Emmy Hal​bourg...
— ... e ago​r a, tal​vez, tam​bém para mim... — con​c luiu bai​xi​nho, com tal
des​lum​bra​m en​to na voz, que Jor​j a se es​que​c eu da fi​lha, do mun​do, de tudo.
De​pois, Parker fa​lou-lhes do GE​TRAU. Dis​se que, qua​se com cer​te​za, uma
nave es​pa​c i​a l pou​sa​r a no ter​r e​no em fren​te ao Mo​tel Tran​qui​li​da​de. Uma nave,
ou al​gu​m a ou​tra coi​sa, des​c e​r a do céu... e o mun​do nun​c a mais vol​ta​r ia a ser o
mes​m o.
— Uma nave do céu... — Fay e mur​m u​r ou, pen​sa​ti​va, mas logo gri​tou: —
Você está lou​c o! Não é pos​sí​vel!
Quan​do Fay e se acal​m ou, Sandy ba​teu pal​m as e riu alto, fe​liz.
— Es​tou me lem​bran​do — dis​se, ain​da rin​do. — Os ja​tos pas​sa​r am, o úl​ti​-
mo vo​a ​va mui​to bai​xo... Nós tí​nha​m os cor​r i​do para o pá​tio, e o chão con​ti​nu​a ​va a
tre​m er, como se fos​se um ter​r e​m o​to. O ar vi​bra​va... — Sua voz tam​bém tre​m ia,
num mis​to de des​lum​bra​m en​to e ter​r or, ao mes​m o tem​po eu​f ó​r i​c a e as​sus​ta​da.
— De re​pen​te, Dom olhou para cima, para o lado do res​tau​r an​te, e gri​tou... “A
Lua, a Lua!” To​dos nos vi​r a​m os e vi​m os a Lua, mais bri​lhan​te do que nun​c a,
bran​c a de doer os olhos. Pa​r e​c ia que es​ta​va cain​do so​bre nós. Oh, Deus... Vo​c ês
não se lem​bram?! Não se lem​bram do que foi olhar para o céu e ver a Lua se
apro​xi​m an​do?!
— Eu me lem​bro... — Er​nie mur​m u​r ou, re​ve​r en​te. — E cla​r o que me
lem​bro...
— E eu tam​bém... — A voz de Bren​dan.
Jor​j a teve um flash de lem​bran​ç a: uma Lua enor​m e, mui​to bri​lhan​te, apro​xi​-
man​do-se do te​lha​do do mo​tel.
— Al​guém gri​tou — Sandy re​c o​m e​ç ou. — Al​guns cor​r e​r am. A Ter​r a tre​-
mia cada vez mais, o ron​c o era cada vez mais for​te. Sen​tí​a ​m os a vi​bra​ç ão nos
os​sos. Um ru​í​do como o de uma cha-
lei​r a fer​ven​do, mis​tu​r a​do com o ba​r u​lho de cen​te​nas de me​tra​lha​do​r as, e o
zum​bi​do de um ven​to for​tís​si​m o... Mas não es​ta​va ven​tan​do. Sem​pre um zum​bi​do
e um tro​vão, apro​xi​m an​do-se... De re​pen​te, a Lua fi​c ou ain​da mais bri​lhan​te, o
es​ta​c i​o​na​m en​to pa​r e​c ia ilu​m i​na​do por um mi​lhão de lâm​pa​das. E, de re​pen​te,
a Lua mu​dou de cor! Fi​c ou ver​m e​lha, cor de san​gue, ver​m e​lha... Foi quan​do per​-
ce​be​m os que não era a Lua... era ou​tra coi​sa...
Jor​j a viu, como num fil​m e, a Lua mu​dan​do de cor, do bran​c o mais bri​lhan​te
para um ru​bro den​so e lu​m i​no​so. Foi a pri​m ei​r a bar​r ei​r a que ruiu. As de​m ais fo​-
ram cain​do, uma após ou​tra. Ina​c re​di​tá​vel que hou​ves​se vis​to as luas ver​m e​lhas
de Ma​r eie e não se lem​bras​se de nada. As lem​bran​ç as, ago​r a, flu​í​a m como um
rio. Jor​j a tre​m ia de medo do que ain​da es​ta​va por vir, mas sen​tia o co​r a​ç ão ba​ter
ace​le​r a​do, exul​tan​te.
— En​tão ela sur​giu por trás do res​tau​r an​te — Sandy pros​se​guiu, como num
tran​se. — Vo​a n​do mui​to bai​xo, como os ja​tos. Mas len​ta, mui​to len​ta, como um
ze​pe​lim que vi uma vez na te​le​vi​são. Era im​pos​sí​vel en​ten​der... Qual​quer um via
que era pe​sa​da, mil ve​zes mais pe​sa​da que um ze​pe​lim. Mas ela vi​nha, bela e
len​ta... Adi​vi​nha​m os que era... que ti​nha que ser... que não era des​te mun​do.
Jor​j a fe​c hou os olhos e aper​tou Ma​r eie con​tra o pei​to, lem​bran​do-se de
como a abra​ç a​r a na​que​la noi​te, os olhos er​gui​dos para o céu. Uma luz ver​m e​-
lha... mas se​r e​na, ina​c re​di​ta​vel​m en​te bela. O chão tre​m ia, Sandy es​ta​va cer​ta:
quan​do vi​r am que a Lua não se apro​xi​m a​va da Ter​r a, adi​vi​nha​r am a ver​da​de. A
nave não era como os dis​c os-vo​a ​do​r es do ci​ne​m a e da te​le​vi​são... não ti​nha nada
de es​pan​to​so... além do fato de exis​tir. Nada de pla​c as co​lo​r i​das, nada de ca​lo​tas
de luz ou fei​xes de va​por, nada de ar​m as como nos fil​m es de fic​ç ão ci​e n​tí​f i​c a. A
luz ver​m e​lha en​vol​via-a toda, como um cam​po de for​ç a que a fa​zia flu​tu​a r.
Não fos​se isso, a nave pa​r e​c e​r ía sim​ples, an​ti​qua​da, ape​nas um gran​de ci​lin​dro
com quin​ze ou vin​te me​tros de com​pri​m en​to por qua​tro ou cin​c o de diâ​m e​tro, as
bor​das ar​r e​don​da​das como dois ba​tons usa​dos uni​dos pe​las ba​ses. Es​pan​to​sa​m en​-
te sim​ples, gas​ta pelo
tem​po e pe​las di​f i​c ul​da​des da vi​a ​gem. Jor​j a via-a des​c er, como no ve​r ão re​-
tra​sa​do, por cima do res​tau​r an​te, na di​r e​ç ão da ro​do​via; os ja​tos zu​ni​a m ao re​dor,
me​tros aci​m a, vo​a n​do de um lado para ou​tro. Como na​que​la noi​te de 6 de ju​lho,
sen​tia o co​r a​ç ão dis​pa​r ar, no li​m i​a r de uma por​ta que re​ve​la​r ia o sen​ti​do da
vida... com os de​dos na cha​ve.
— Ela des​c eu do ou​tro lado da ro​do​via — con​ti​nuou Sandy, res​pi​r an​do fun​-
do. — Bem no lo​c al que vi​si​ta​m os... o lu​gar es​pe​c i​a l para Er​nie e para mim. Os
ja​tos vo​a ​vam como mos​c as ton​tas. Tí​nha​m os que ir até lá! Oh, Deus! Nada ou
nin​guém, des​te mun​do ou de ou​tro, nos im​pe​di​r ía de ir até lá! Cor​r e​m os para o
es​ta​c i​o​na​m en​to e fo​m os...
— Eu e Fay e fo​m os no ca​m i​nhão do mo​tel — Er​nie dis​se, a voz sol​ta, a
res​pi​r a​ç ão nor​m al. — Dom e Gin​ger es​ta​vam co​nos​c o... e tam​bém o jo​ga​dor de
pô​quer, Lo​m ack, de Reno. Por isso ele es​c re​veu nos​sos no​m es nos pôs​te​r es...
Como Dom con​tou. A lem​bran​ç a da cor​r i​da de ca​m i​nhão até a nave deve ter-lhe
der​r u​ba​do o blo​queio.
— Jor​j a, o ma​r i​do, Ma​r eie e al​guns ou​tros hós​pe​des fo​r am co​nos​c o, na tra​-
sei​r a da ca​m i​o​ne​te — Sandy con​tou. — Bren​dan, Jack e mais al​guns hós​pe​des
fo​r am de car​r o. Pes​so​a s que nem se co​nhe​c i​a m cha​m a​vam-se umas às ou​tras,
ofe​r e​c en​do ca​r o​na... E que já não éra​m os es​tra​nhos, eu acho. Pa​r a​m os no acos​-
ta​m en​to. Car​r os que vi​nham de Elko tam​bém pa​r a​r am. Gen​te cor​r ia pela es​tra​-
da. Es​ta​c i​o​na​m os numa cur​va, su​bi​m os na gra​de de pro​te​ç ão e olha​m os. A nave
não bri​lha​va como an​tes, es​ta​va se apa​gan​do. Al​guns ar​bus​tos fu​m e​ga​vam, o ca​-
pim es​ta​va todo quei​m a​do, mas até nos apro​xi​m ar​m os o fogo há ha​via de​sa​pa​r e​-
ci​do. Era es​tra​nho... nin​guém fa​la​va, nem gri​ta​va, nem olha​va para os la​dos. Es​-
tá​va​m os em si​lên​c io, como que es​pe​r an​do... à bei​r a de um pre​c i​pí​c io, que​r en​do
sal​tar, e sa​ben​do que sal​tar não nos fa​r ia cair. Pron​tos para voar, eu acho... Não
sei... Vo​c ês sa​bem o que que​r o di​zer!
Jor​j a sa​bia: a sen​sa​ç ão qua​se in​su​por​tá​vel de des​lum​bra​m en​to e exal​ta​ç ão.
Como se a hu​m a​ni​da​de, pre​sa ha​via sé​c u​los numa
jau​la es​c u​r a, de re​pen​te vis​se abri​r em-se as por​tas da eter​ni​da​de, des​c o​brin​-
do que, no fu​tu​r o, as noi​tes não se​r i​a m tão es​c u​r as nem tão apa​vo​r an​tes.
— Fi​quei pa​r a​da — Sandy vol​tou a fa​lar —, ven​do aque​la nave de luz, tão
lin​da, tão... im​pos​sí​vel... na pla​ní​c ie. E en​ten​di que as des​gra​ç as de mi​nha infân​-
cia... a dor, o de​ses​pe​r o, a ver​go​nha... não ti​nham mais im​por​tân​c ia. Meu pai já
não me dava medo. — A voz va​c i​lou, emo​c i​o​na​da. — Não vejo meu pai des​de
meus ca​tor​ze anos... Mas ti​nha pe​sa​de​los e vi​via com medo de que, de re​pen​te,
ele apa​r e​c es​se... e me ar​r as​tas​se para a cama... como an​tes. Sei que pa​r e​c e as​-
nei​r a, mas às ve​zes nem con​se​guia dor​m ir com medo de so​nhar com ele... Na
ro​do​via, olhan​do para a na-‘ve, na​que​le si​lên​c io, os ja​tos vo​a n​do alto, como pás​-
sa​r os dis​tan​tes... des​c o​bri que, se meu pai apa​r e​c es​se um dia, eu não ia tre​-
mer por​que já sa​bia como ele é: um po​bre ho​m em do​e n​te, um grão de areia
numa praia enor​m e.
A li​ber​ta​ç ão, Jor​j a pen​sou, os olhos ma​r e​j a​dos. A li​ber​ta​ç ão dos hor​r o​r es do
pas​sa​do, dos me​dos, do de​ses​pe​r o. Ain​da que os tri​pu​lan​tes da nave não trou​xes​-
sem res​pos​ta para ne​nhu​m a das ques​tões que ator​m en​tam a hu​m a​ni​da​de, sua
sim​ples pre​sen​ç a, se​r e​na e bela, era já a res​pos​ta que to​dos es​pe​r a​vam.
Cho​r an​do de ale​gria, a voz de Sandy vi​bra​va na es​c u​r i​dão:
— A ima​gem da nave me fez des​c o​brir que eu tam​bém era al​guém, ape​sar
de suja, co​ber​ta de pe​c a​dos e ver​go​nha. En​ten​di que to​dos so​m os pou​c a coi​sa,
que nin​guém é mui​to mais im​por​tan​te que os ou​tros... e, ain​da as​sim, so​m os uma
raça es​pe​c i​a l, uma raça que, al​gum dia, po​de​r á voar pelo es​pa​ç o e che​gar até o
lu​gar de onde aque​la nave par​tiu. Grãos de areia, sim, to​dos nós, mas com um
gran​de des​ti​no... Será que vo​c ês en​ten​dem o que que​r o di​zer? — Ca​lou-se por um
mo​m en​to, su​f o​c a​da pe​los so​lu​ç os. — Foi isso que pen​sei, que a vida é fei​ta de es​-
pe​r an​ç a num mun​do me​lhor — con​c luiu bai​xi​nho, a voz fra​c a. — E en​tão co​m e​-
cei a cho​r ar e rir, como lou​c a...
— Tam​bém me lem​bro de tudo — de​c la​r ou Ned, vol​tan​do-se para a mu​-
lher: — Es​tá​va​m os pa​r a​dos na cur​va da es​tra​da. Você
me abra​ç ou... e dis​se que me ama​va! Foi a pri​m ei​r a vez, des​de que nos co​-
nhe​c e​m os! Eu sa​bia que você me ama​va... mas você nun​c a dis​se an​tes! Foi bem
ali, di​a n​te de uma nave que aca​ba​va de des​c er do céu! E sabe o que é mais es​-
tra​nho? Com você abra​ç a​da a mim, di​zen​do que me ama​va... eu já nem li​ga​va
para a nave! A úni​c a coi​sa im​por​tan​te que acon​te​c eu na​que​la noi​te foi você... —
Res​pi​r ou fun​do, pro​c u​r an​do con​tro​lar a emo​ç ão — di​zen​do que me ama​va de​-
pois de tan​tos anos.
Na es​c u​r i​dão, Ned abra​ç a​va a mu​lher, e am​bos cho​r a​vam jun​tos. Após al​-
guns mo​m en​tos, ele vol​tou a fa​lar alto, ten​so:
— E os des​gra​ç a​dos me rou​ba​r am esse mo​m en​to! O me​lhor mo​m en​to de
mi​nha vida! Você, di​zen​do que me ama... Ah! Mas con​se​gui re​c u​pe​r á-lo... As
lem​bran​ç as ago​r a es​tão co​m i​go. Nin​guém, nun​c a mais, vai tirá-las de mim.
— E eu que ain​da não con​si​go me lem​brar de nada! — Fay e ex​c la​m ou,
fu​r i​o​sa. — Te​nho que lem​brar! Sou par​te dis​so, como vo​c ês!
Nin​guém re​tru​c ou. No si​lên​c io da noi​te, o ca​m i​nhão avan​ç a​va.
Jor​j a, ou​tra vez, fe​c hou o olhos e dei​xou o pen​sa​m en​to voar. A sim​ples des​-
co​ber​ta de que ha​via uma in​te​li​gên​c ia su​pe​r i​or obri​ga​va a ver de uma pers​pec​ti​-
va nova a luta da hu​m a​ni​da​de: a vi​o​lên​c ia da do​m i​na​ç ão, a es​c ra​vi​dão dos mais
po​bres ou mais fra​c os, a su​pos​ta su​pe​r i​o​r i​da​de de de​ter​m i​na​da raça, os ba​nhos
de san​gue para im​por cer​tas idéi​a s... tudo pa​r e​c ia in​f i​ni​ta​m en​te pe​que​no e in​ú​-
til. As re​li​gi​ões que pre​ga​vam a igual​da​de de to​dos pe​r an​te Deus so​bre-vi​ve​r i​a m,
mas as que pre​ga​vam a ur​gên​c ia de to​dos se pros​tra​r em di​a n​te de fal​sos ído​los,
es​sas es​ta​vam con​de​na​das. Sem po​der ex​pli​c ar, mas sen​tin​do em cada fi​bra do
cor​po, Jor​j a in​tu​ía que a vi​si​ta dos ex​tra​ter​r es​tres fa​r ia a hu​m a​ni​da​de se unir,
como uma gran​de fa​m í​lia. Os hu​m il​des se​r i​a m res​pei​ta​dos, os do​e n​tes tra​ta​dos,
os in​f e​li​zes con​so​la​dos, como ir​m ãos. Sem rei, sem go​ver​no.
Uma nave des​c e​r a do céu. E co​m e​ç a​va a as​c en​são da hu​m a​ni​da​de.
— A Lua... — Ma​r eie mur​m u​r ou bai​xi​nho, o ros​to es​c on​di​do no pei​to da
mãe.
Era o mo​m en​to de con​so​lá-la, abra​ç á-la e di​zer-lhe que as coi​sas co​m e​ç a​-
vam a me​lho​r ar, que logo ela tam​bém se lem​bra​r ia de tudo e es​ta​r ia li​vre dos
pe​sa​de​los e dos far​r a​pos de lem​bran​ç as que a ator​m en​ta​vam. Mas era cedo para
cri​a r fal​sas es​pe​r an​ç as: en​quan​to es​ti​ves​sem à mer​c ê de Falkirk, não po​di​a m pre​-
ver o ama​nhã.
— Lem​bro-me de mais al​gu​m a coi​sa — dis​se Bren​dan. — Sei que des​c i o
acos​ta​m en​to da ro​do​via, ca​m i​nhan​do para a nave. Ela ain​da bri​lha​va um pou​c o,
como âm​bar. Ha​via mais gen​te co​m i​go... Fay e, Er​nie, Gin​ger e Dom. Mas só
Gin​ger e Dom se apro​xi​m a​r am da nave, co​m i​go. Quan​do che​ga​m os bem per​to...
vi​m os uma por​ta... em arco... aber​ta...
Jor​j a lem​bra​va que tam​bém quis ir, mas teve medo de le​var Ma​r eie e não
po​dia dei​xá-la para trás. Sen​tiu von​ta​de de gri​tar que to​m as​sem cui​da​do, e ao
mes​m o tem​po, que não se aco​var​das​sem, não ti​ves​sem medo, se​guis​sem adi​a n​-
te. Não deu um pas​so, ven​do-os apro​xi​m a​r em-se do por​tal dou​r a​do.
— Pa​r a​m os di​a n​te da por​ta — Bren​dan con​ti​nuou —, es​pe​r an​do que al​-
guém sa​ís​se, mas nin​guém apa​r e​c eu. A luz, a ma​r a​vi​lho​sa luz dou​r a​da que eu via
em so​nhos, lá es​ta​va, nos cha​m an​do. Tí​nha​m os mui​to medo. En​tão ou​vi​m os os
mo​to​r es dos he​li​c óp​te​r os que se apro​xi​m a​vam, como aves agou​r en​tas. Sen​ti​m os
que ha​via pou​c o tem​po, que o Exér​c i​to in​va​di​r ia a nave tão logo os he​li​c óp​te​r os
pou​sas​sem. A luz nos cha​m a​va...
— Vo​c ês en​tra​r am na nave! — Jor​j a lem​brou-se.
— En​tra​m os. Nós três.
Um mo​m en​to im​pos​sí​vel, ina​c re​di​tá​vel. O mo​m en​to que mar​c a​va ou​tro re​-
co​m e​ç o: an​tes e de​pois da his​tó​r ia da hu​m a​ni​da​de. Co​m e​ç a​va a ruir o úl​ti​m o blo​-
queio que ain​da ocul​ta​va a ver​da​de. Fez-se com​ple​to si​lên​c io no ca​m i​nhão que
se​guia adi​a n​te, para um des​ti​no que nin​guém con​se​guia se​quer ima​gi​nar.
Oito pes​so​a s, cru​zan​do a noi​te ge​la​da, sen​ta​das sem po​der ver nem mes​m o o
ros​to do com​pa​nhei​r o ao lado e, no en​tan​to, mais pró​xi​m as umas das ou​tras do
que qual​quer ser hu​m a​no, em qual​quer tem​po.
— E o que acon​te​c eu, pa​dre? O que acon​te​c eu quan​do vo​c ês três en​tra​r am
na nave? — Parker quis sa​ber.
Com o au​xí​lio da pon​te de cor​da, va​len​do-se vá​r i​a s ve​zes dos ins​tru​m en​tos
que Jack ti​r a​va de seu saco de sur​pre​sas, os três che​ga​r am, por fim, à en​tra​da
prin​c i​pal de Thun​der Hill. Gin​ger ar​r e​ga​lou os olhos di​a n​te das des​c o​m u​nais por​-
tas de aço. O ven​to, so​pran​do so​bre o gelo, de​se​nha​r a es​tra​nhos ara​bes​c os na su​-
per​f í​c ie po​li​da do me​tal, como ide​o​gra​m as de sig​ni​f i​c a​do in​de​c i​f rá​vel. A fren​te
das por​tas, co​m e​ç a​va uma es​pé​c ie de ca​m i​nho re​c o​ber​to de as​f al​to, com cer​te​za
equi​pa​do com aque​c e​do​r es, pois não se via o me​nor ves​tí​gio de neve, e uma fu​-
ma​ç a cla​r a, puro va​por, su​bia do chão. O ca​m i​nho des​c ia em di​r e​ç ão a oes​te,
cru​zan​do a pla​ní​c ie rumo à flo​r es​ta, onde se viam as lu​zes do por​tão jun​to à gua​-
ri​ta.
Se apa​r e​c es​se al​guém para en​trar ou sair nos pró​xi​m os mi​nu​tos, ou se hou​-
ves​se uma tro​c a de guar​das, todo o tra​ba​lho de che​gar até ali es​ta​r ia per​di​do. Os
três, é cla​r o, po​de​r i​a m es​c on​der-se, aco​ber​ta​dos pela noi​te. Não ha​via si​nais de
pe​ga​das na área pró​xi​m a à en​tra​da, o que sig​ni​f i​c a​va que al​guém es​ti​ve​r a ali nas
úl​ti​m as ho​r as. Mas as mar​c as de seus pés, bri​lhan​do na neve sol​ta, fa​la​vam mais
que quin​ze alar​m es dis​pa​r an​do ao mes​m o tem​po. Era pre​c i​so en​trar logo, sem
per​da de tem​po, ou ja​m ais en​tra​r i​a m.
A pe​que​na por​ta de aces​so do pes​so​a l pa​r e​c ia tão im​pe​ne​trá​vel como a ou​-
tra. Jack nem pis​c ou. Ti​r ou da sa​c o​la mai​or o com​pu​ta​dor por​tá​til que o aju​da​r a
tan​tas ve​zes, pe​diu a Gin​ger que não ti​r as​se os olhos da en​tra​da prin​c i​pal, sem
dei​xar de pres​tar aten​ç ão a qual​quer luz ou ru​í​do sus​pei​to que apa​r e​c es​se dos la​-
dos do pla​tô, en​tre​gou uma lan​ter​na a Dom, e co​m e​ç ou a tra​ba​lhar.
Ajo​e ​lha​da na neve, olhos e ou​vi​dos aten​tos ao me​nor ru​í​do, Gin​ger sen​tia-se
à mer​c ê do des​ti​no, a qua​se qua​tro mil qui​lô​m e​tros de seu apar​ta​m en​to em Bos​-
ton. O ven​to ba​tia-lhe for​te no ros​to. A neve gru​da​va-se a suas so​bran​c e​lhas e, ao
der​r e​ter, pin​ga​va-lhe nos olhos. Que si​tu​a ​ç ão es​tú​pi​da! Meshug​ge. Que di​r ei​to ti​-
nha al​guém de des​tro​ç ar a vida de tan​tas pes​so​a s?! Quem o mal-
dito Ktlkirk pen​sa​va que era? Quem se​r ia o lou​c o que lhe dava or​dens? Maus
ame​r i​c a​nos. Mom​zers, to​dos mom​zers. Lem​brou-se do ros​to de Falkirk, que vira
no jor​nal: treif​ni​ak, como adi​vi​nha​r a des​de o pri​m ei​r o ins​tan​te, um ho​m em em
que não se po​dia con​f i​a r, nem por um mo​m en​to, nun​c a. Sem​pre que Gin​ger re​-
che​a ​va os pen​sa​m en​tos de tan​tas pa​la​vras em ídi​c he, das duas uma: ti​nha sé​r i​os
pro​ble​m as na vida... ou es​ta​va mor​ta de medo.
Me​nos de qua​tro mi​nu​tos de​pois que Jack aci​o​na​r a seu apa​r e​lho, ou​viu-se o
ru​í​do da por​ta des​li​zan​do para den​tro da pe​dra. Dom sal​tou de sus​to e Jack caiu
sen​ta​do na neve. Quan​do se apro​xi​m ou para aju​dá-lo, Gin​ger viu que a por​ta se
abri​r a tão re​pen-* ti​na​m en​te e com tan​ta for​ç a que ele não ti​ve​r a tem​po de des​li​-
gar os fios do mi​ni​ter​m i​nal, que as​sim fo​r am ar​r an​c a​dos e pu​xa​dos para den​tro
do ni​c ho em que a por​ta se en​c ai​xa​va.
De qual​quer modo, a en​tra​da es​ta​va fran​que​a ​da, e não soou ne​nhum alar​m e.
A sua fren​te, es​ten​dia-se o tú​nel de con​c re​to, com três me​tros e pou​c o de com​-
pri​m en​to por dois de diâ​m e​tro, ilu​m i​na​do por lâm​pa​das fluo​r es​c en​tes. Do​bra​va à
es​quer​da e aca​ba​va em ou​tra por​ta de me​tal.
— Es​pe​r em aqui — Jack cor​r eu para den​tro do tú​nel e olhou em vol​ta. Gin​-
ger plan​tou-se ao lado de Dom, cer​ta de que, em​bo​r a o pla​no fos​se dei​xar-se
pren​der em Thun​der Hill, não re​sis-ti​r ia à ten​ta​ç ão de dis​pa​r ar a cor​r er pela
neve, ao pri​m ei​r o si​nal de que algo não ia bem. Tal​vez adi​vi​nhan​do-lhe os pen​sa​-
men​tos, Dom en​la​ç ou-a pe​los om​bros e es​trei​tou-a jun​to a si, não ape​nas para
im​pe​di-la de fu​gir, como tam​bém para lem​brá-la de que não es​ta​va so​zi​nha.
Pou​c o de​pois, cer​to de que ne​nhum si​nal dis​pa​r a​r ia à en​tra​da do tú​nel, Jack
vol​tou para jun​tar-se aos dois.
— Há duas câ​m a​r as de cir​c ui​to fe​c ha​do no teto do tú​nel.
— Você foi vis​to? — Dom per​gun​tou.
— Acho que não, por​que as câ​m a​r as não se mo​ve​r am para me acom​pa​-
nhar. Acho que é pre​c i​so fe​c har a en​tra​da prin​c i​pal para abrir a se​gun​da por​ta.
No ins​tan​te em que a pri​m ei​r a por​ta é fe​c ha​da, as câ​m a​r as co​m e​ç am a fun​c i​o​-
nar. Há pon​tos de gás jun​to
às lu​m i​ná​r i​a s. Es​tão es​c on​di​dos, mas eu os vi. O sis​te​m a com​ple​to fun​c i​o​na
mais ou me​nos as​sim... você fe​c ha a por​ta ex​ter​na e aci​o​na as câ​m a​r as an​tes de
abrir a se​gun​da por​ta. Caso as câ​m a​r as não gos​tem de sua cara, é aci​o​na​do o
gás. Seja para fa​zer você dor​m ir, seja para matá-lo... de​pen​den​do ape​nas do gás
que usem.
— Vi​e ​m os até aqui para ser pre​sos, não para mor​r er numa câ​m a​r a de gás
— pro​tes​tou Dom.
— Bas​ta dei​xar​m os aber​ta a por​ta ex​ter​na até abrir​m os a se​gun​da... —
Jack sor​r iu.
— Mas você aca​bou de di​zer que isso é im​pos​sí​vel!
— Tal​vez seja fa​c í​li​m o...
O pró​xi​m o pas​so foi es​c on​der as sa​c o​las na neve; Jack pa​r e​c ia ter cer​te​za de
que não pre​c i​sa​r i​a m da​que​le equi​pa​m en​to e se​r ia per​da de ener​gia car​r e​gá-lo.
De​pois, ins​tru​í​da por ele, Gin​ger en​c ar​r e​gou-se de cor​tar os fios das câ​m a​r as
com um ca​ni​ve​te de es​c o​tei​r o. Em se​gui​da, Jack cor​r eu para a se​gun​da por​ta:
— Não tem se​gre​do ex​pos​to. Por​tan​to, não faz di​f e​r en​ç a que o com​pu​ta​dor
es​te​j a fora de com​ba​te.
— Será que não há es​c u​ta? — Gin​ger sus​sur​r ou.
— Deve ha​ver. Mas só é aci​o​na​da quan​do a por​ta ex​ter​na se fe​c ha. Aí o
com​pu​ta​dor, as câ​m a​r as e os mi​c ro​f o​nes co​m e​ç am a fun​c i​o​nar. Caso haja um
guar​da do lado de lá, não nos ou​vi​r ia atra​vés des​sa por​ta nem se gri​tás​se​m os. —
Jack ex​pli​c ou em voz bai​xa, jun​to ao ou​vi​do de Gin​ger. Apon​tou o pai​nel de vi​dro
à di​r ei​ta da se​gun​da por​ta. — Eis o “abre-te, Sé​sa​m o”. O Exér​c i​to co​m e​ç a​va a
usar esse tipo de fe​c ha​du​r a ele​trô​ni​c a há oito anos, quan​do dei​xei o ser​vi​ç o. Bas​ta
pres​si​o​nar a pal​m a da mão con​tra o vi​dro e “mos​trar” suas im​pressões di​gi​tais ao
com​pu​ta​dor. Ele as ana​li​sa e com​pa​r a com as im​pressões do pes​so​a l au​to​r i​za​do
a en​trar. En​tão as por​tas se abrem.
— E se as im​pressões não con​f e​r em? — Dom per​gun​tou, tam​bém em voz
bai​xa.
— O gás é li​be​r a​do.
— Mas en​tão, como va​m os en​trar? — Gin​ger ar​r e​ga​lou os olhos.
— Dom vai abrir a por​ta e nos con​vi​dar para a fes​ta.
Bo​qui​a ​ber​to, Dom vi​r ou-se para ele.
— Você está doi​do?! Como é que vou fa​zer mi​nhas im​pressões di​gi​tais con​-
fe​r i​r em com...
— Es​que​ç a as im​pressões. Use as mãos como usou em Reno... para ar​r an​-
car os pôs​te​r es da pa​r e​de do in​f e​liz Lo​m ack. Ou como usou para fa​zer des​c e​r em
as ca​dei​r as vo​a ​do​r as, lá no res​tau​r an​te. Vire-se para a por​ta e lhe or​de​ne que de​-
sa​pa​r e​ç a da fren​te. Deve ser sim​ples.
— Não pos​so... Não sei como...
— Fin​j a que a por​ta está co​ber​ta de sa​lei​r os e vi​dros de mo​lho. Faça de
con​ta que não é por​ta, mas ca​dei​r a. Sei lá! In​ven​te um jei​to... e seja rá​pi​do, por
fa​vor.
— Não dá. Você mes​m o viu, no res​tau​r an​te, que não sei con-.tro​lar os po​-
de​r es. Al​guém po​de​r ia ter-se fe​r i​do. E se, sem per​c e​ber, eu dis​pa​r ar o gás?
Jack bai​xou a ca​be​ç a e ca​lou-se por um mo​m en​to. Quan​do tor​nou a fa​lar, a
voz soou dura e fria como aço:
— Vou pe​dir-lhe mais uma vez... Por fa​v or, Dom Cor​vai​sis, abra essa por​-
ta.
— Não. É mi​nha úl​ti​m a pa​la​vra. Não in​sis​ta.
Jack vi​r ou-se e ru​m ou para a por​ta prin​c i​pal. Cer​ta de que ele es​ta​va sain​do,
Gin​ger ain​da deu dois pas​sos para ten​tar con​ven​c ê-lo a vol​tar, mas viu-o pa​r ar
an​tes da sa​í​da, a mão so​bre um bo​tão na pa​r e​de.
— Um ter​m i​nal ter​m os​sen​sí​vel — dis​se para Dom. — Se você não ten​tar
abrir essa por​ta, en​c os​to a mão aqui, a por​ta ex​ter​na se fe​c ha, as câ​m a​r as nos
en​c on​tram, não nos iden​ti​f i​c am como “qua​li​f i​c a​dos”, e o gás é li​be​r a​do. Vêm os
guar​das e...
— Acho que vi​e ​m os exa​ta​m en​te para ser apa​nha​dos — Dom con​ti​nu​a ​va a
ne​gar com a ca​be​ç a.
— Vi​e ​m os para des​c o​brir o que está acon​te​c en​do aqui... e de​pois ser pre​-
sos.
— Te​m os que nos con​ten​tar só em ser pre​sos. — Dom con​ti​nu​a ​va in​tran​si​-
gen​te.
Aber​ta para a noi​te ge​la​da, a por​ta, ex​ter​na fa​zia es​c a​par o ca​lor
do tú​nel, e o va​por bran​c o au​m en​ta​va a im​pres​são de que os dois ho​m ens
tra​va​vam uma ba​ta​lha de vida e mor​te.
En​tre os dois, Gin​ger adi​vi​nha​va quem se​r ia o ven​c e​dor. Gos​ta​va de Dom e
ad​m i​r a​va-o a pon​to de não pen​sar duas ve​zes an​tes de lhe con​f i​a r a pró​pria vida.
Na ver​da​de, já lhe en​tre​ga​r a a vida. Mas não ha​via dú​vi​da de que Jack o der​r o​ta​-
ria, por​que es​ta​va ha​bi​tu​a ​do a ven​c er, e Dom, como ele pró​prio di​zia, aca​ba​-
va de sair de uma toca de co​e ​lho, onde sem​pre se es​c on​de​r a.
— Se nos vi​r em, mor​r e​r e​m os. Du​vi​do que per​c am tem​po em nos fa​zer
dor​m ir. Nada dis​so! Vão usar ci​a ​nu​r e​to ou al​gum ou​tro gás ve​ne​no​so que, sem
dú​vi​da, atra​ves​sa​r á nos​sas rou​pas, por​que não são idi​o​tas a pon​to de pen​sar que
não trou​xe​m os más​c a​r as — Jack fa​la​va cal​m a​m en​te, com se​gu​r an​ç a, a mão a
cen​tí​m e​tros do bo​tão na pa​r e​de.
— Você está ble​f an​do!
— Será? — Jack sor​r iu com o can​to dos lá​bi​os.
— Você não tem co​r a​gem de nos ma​tar.
— Sou um cri​m i​no​so pro​f is​si​o​nal, já es​que​c eu?
— Você foi... não é mais.
— Uma vez ban​di​do, sem​pre ban​di​do.
Seus olhos ago​r a bri​lha​vam de um modo es​tra​nho. No sor​r i​so en​vi​e ​sa​do, ha​-
via algo de sá​di​c o, que fez Gin​ger es​tre​m e​c er: co​m e​ç a​va a acre​di​tar que ele
cum​pri​r ia a ame​a ​ç a, se as coi​sas não cor​r es​sem como que​r ia.
— Você não pla​ne​j ou nos​sa mor​te, não é? E se der er​r a​do? — Dom ain​da
ba​lan​ç a​va a ca​be​ç a.
— Não, mas tam​bém não pre​vi que você se re​c u​sa​r ia a co​la​bo​r ar. Abra
logo a mer​da des​sa por​ta!
Dom vi​r ou-se para Gin​ger, res​pi​r ou fun​do e pe​diu:
— Afas​te-se da​qui.
Ela obe​de​c eu de ime​di​a ​to e Jack gri​tou:
— Quan​do abrir a por​ta, en​tre logo. Deve ha​ver um guar​da do ou​tro lado,
mas ele vai le​var um gran​de sus​to, por​que ne​nhum alar​m e o pre​ve​niu. Se você
con​se​guir der​r u​bá-lo, eu es​ta​r ei a seu lado para con​c luir o ser​vi​ç o. Te​m os uma
boa chan​c e de des​c o​brir o que exis​te aí an​tes que apa​r e​ç am ou​tros guar​das.
Dom con​c or​dou. Vi​r ou-se para a por​ta, to​c ou-a de leve, como um ex​pe​r i​e n​te
ar​r om​ba​dor, ten​tan​do “sen​tir” a fe​c ha​du​r a. Jun​to à sa​í​da, Jack afas​tou a mão do
bo​tão que fe​c ha​r ia a por​ta prin​c i​pal, vol​tou-se para Gin​ger e mur​m u​r ou para que
Dom não o ou​vis​se:
— Es​tou pres​sen​tin​do que, a qual​quer mo​m en​to, o gi​gan​te vai des​c er pelo
pé de fei​j ão e aca​bar com a brin​c a​dei​r a.
Gin​ger des​c o​briu que ele ja​m ais os con​de​na​r ia à mor​te. Se Dom não con​-
cor​das​se em ten​tar abrir a por​ta, pro​va​vel​m en​te, Jack in​ven​ta​r ia um modo de ser
apa​nha​do, tal​vez re​tor​nan​do à gua​r i​ta.
De re​pen​te, como um so​pro de ven​to, a por​ta do fim do tú​nel abriu-se. Foi
um mo​vi​m en​to tão re​pen​ti​no que Dom caiu de cos​tas, es​que​c i​do das ins​tru​ç ões.
Num ins​tan​te, po​r ém, le​van​tou-se e cor​r eu para den​tro. Jack, que aci​o​na​r a o me​-
ca​nis​m o da por​ta ex​ter​na an​tes que o ou​tro se le​van​tas​se, cor​r eu para a se​gun​da
por​ta, com Gin​ger nos cal​c a​nha​r es.
Es​ta​vam no gran​de tú​nel de pe​dra, es​c a​va​do na ro​c ha. Gin​ger pa​r ou, à es​pe​-
ra dos pri​m ei​r os ti​r os, mas não ou​viu um úni​c o ru​í​do. Aci​m a de sua ca​be​ç a, des​-
cen​do de um teto que não se via, per​di​do na es​c u​r i​dão, apa​r e​c i​a m as lâm​pa​das
que ilu​m i​na​vam a pas​sa​gem: uns vin​te me​tros de lar​gu​r a por qua​se cem de com​-
pri​m en​to, da por​ta ao hall onde de​ve​r i​a m es​tar os ele​va​do​r es; a três me​tros da
en​tra​da, uma mesa ci​m en​ta​da ao piso, e so​bre a qual se es​pa​lha​vam exem​pla​r es
de re​vis​tas da se​m a​na, um ter​m i​nal de com​pu​ta​dor e... ne​nhum guar​da. O tú​nel
es​ta​va si​len​c i​o​so e de​ser​to como um mau​so​léu. Es​tra​nho... um de​pó​si​to que cus​-
tou mi​lha​r es de mi​lhões de dó​la​r es, pro​j e​ta​do para en​f ren​tar a Ter​c ei​r a Guer​r a
Mun​di​a l, as​sim, en​tre​gue aos ra​tos...
— Não é pos​sí​vel! — Jack olha​va em vol​ta. — Onde es​tão os guar​das?!
— E ago​r a? — per​gun​tou Dom, ain​da as​sus​ta​do com a fa​ç a​nha da por​ta,
tao sim​ples e per​f ei​ta, de​pois do fra​c as​so no res​tau​r an​te.
— Há al​gu​m a coi​sa er​r a​da... — Jack fran​zia as so​bran​c e​lhas. —
Não sei o que e, mas sin​to na pele. — Ti​r ou o ca​puz e cor​r eu o zí​per do abri​-
go. Dom e Gin​ger re​pe​ti​r am seus ges​tos. — Esta é a área de car​ga e des​c ar​ga de
ca​m i​nhões. As ins​ta​la​ç ões prin​c i​pais de​vem es​tar no piso in​f e​r i​or. Não es​tou gos​-
tan​do do si​lên​c io, mas acho que de​ve​m os des​c er.
— Te​m os é que pa​r ar de es​pe​c u​lar e agir rá​pi​do — Gin​ger ca​m i​nhou para o
fim do tú​nel, ou​vin​do o zum​bi​do da por​ta que Jack fe​c ha​va.
Mer​gu​lha​r am no co​r a​ç ão de Thun​der Hill.

2. MEDO

An​da​vam em si​lên​c io como ra​tos es​c on​den​do-se de um gato fa​m in​to, e ain​-
da as​sim seus pas​sos eco​a ​vam pe​las pa​r e​des de pe​dra. Pas​sa​r am pe​los ele​va​do​-
res mai​o​r es, aber​tos, pla​ta​f or​m as mo​vi​das por dois pi​la​r es hi​dráu​li​c os sin​c ro​ni​za​-
dos, um de cada lado, gran​des o su​f i​c i​e n​te para o trans​por​te de avi​ões. Dei​xa​r am
para trás os as​c en​so​r es mé​di​os, tam​bém de car​ga, e, por fim, che​ga​r am a
um ele​va​dor de ta​m a​nho nor​m al.
En​tra​r am, e no ins​tan​te em que Jack aper​tou o bo​tão, Dom lem​brou-se de
ou​tros de​ta​lhes da noi​te de 6 de ju​lho do ano re​tra​sa​do. Lem​brou-se da Lua mu​-
dan​do de cor... e do pou​so da nave. Um ci​lin​dro liso, apa​r en​te​m en​te sim​ples, qua​-
se co​m um, e que, sem dú​vi​da, vi​nha de ou​tro pla​ne​ta. Quan​do con​se​guiu acal​-
mar-se, Dom per​c e​beu que es​ta​va com a tes​ta co​la​da à pa​r e​de fria do ele​va​dor,
os bra​ç os cru​za​dos so​bre o pei​to, tre​m en​do como cri​a n​ç a as​sus​ta​da. Vi​r ou-se, viu
os com​pa​nhei​r os fi​tan​do-o de olhos ar​r e​ga​la​dos, à es​pe​r a.
— O que acon​te​c eu? — Gin​ger per​gun​tou.
— Lem​brei-me de mais uma coi​sa...
Dom con​tou-lhes o que aca​ba​va de “ver”. Não pre​c i​sou fa​lar mui​to para que
os dois tam​bém se lem​bras​sem. Os olhos de Gin​ger bri​lha​vam, Jack bai​xou a ca​-
be​ç a para es​c on​der as lá​gri​m as... de medo, ale​gria, es​pan​to e es​pe​r an​ç a.
— Nós en​tra​m os — Gin​ger mur​m u​r ou.
— Sim... você, Dom e Bren​dan — com​ple​tou Jack, a voz gra​ve e emo​c i​o​-
na​da.
— Nao con​si​go lem​brar o que acon​te​c eu den​tro da nave...
— Nem eu — Dom sus​pi​r ou. — Pelo me​nos até ago​r a. Lem​bro-me de
tudo, até o mo​m en​to em que atra​ves​sa​m os o por​tal da nave e vi​m os a luz dou​r a​-
da.
Gin​ger es​ta​va pá​li​da. Dom adi​vi​nhou que tam​bém ela des​c o​bri​r a a ex​pli​c a​-
ção para a po​de​r o​sa em​pa​tia que os jo​ga​r a nos bra​ç os um do ou​tro quan​do se en​-
con​tra​r am no ae​r o​por​to, no do​m in​go an​te​r i​or. Ha​vi​a m en​tra​do jun​tos na nave e
lá vi​r am al​gu​m a coi​sa que os li​gou para sem​pre.
— A nave deve es​tar es​c on​di​da aqui em Thun​der Hill — dis​se ela. Tem que
es​tar!
— Por isso, o go​ver​no to​m ou a ter​r a dos fa​zen​dei​r os — Dom acres​c en​tou.
— Au​m en​ta​r am a área de se​gu​r an​ç a para im​pe​dir que al​guém se apro​xi​m as​se o
su​f i​c i​e n​te para sus​pei​tar do que exis​te aqui.
— Deve ter sido di​f í​c il trans​por​tar a nave — Jack pen​sou em voz alta.
— Exis​tem aque​las enor​m es ja​m an​tas que trans​por​tam mís​seis.
— Sim, eu sei. Mas por que eles te​r i​a m man​ti​do a his​tó​r ia sob si​gi​lo ab​so​lu​-
to?
— Não faço idéia... — O ele​va​dor pa​r ou e Dom vi​r ou-se para sair. —
Quem sabe não des​c o​bri​m os tudo em me​nos de um mi​nu​to?
Es​ta​vam no se​gun​do piso sub​terrâ​neo. A jul​gar pela de​m o​r a da des​c i​da, ha​-
via vá​r i​os me​tros de ro​c ha só​li​da en​tre um pa​ta​m ar e ou​tro. A fren​te, uma enor​-
me ca​ver​na, com qua​se no​ven​ta me​tros de diâ​m e​tro. Ao re​dor, vá​r i​os com​par​ti​-
men​tos de pa​r e​des de me​tal, di​pos​tos como trai​lers num acam​pa​m en​to. Dois
dos trai​lers es​ta​vam ilu​m i​na​dos; os ou​tros, às es​c u​r as, pa​r e​c i​a m de​ser​tos. Dom
pen​sou nos acam​pa​m en​tos em lo​c a​ç ões de fil​m a​gem, os va​gões-ca​m a​r im dis​-
pos​tos em cír​c u​lo. Na ou​tra pa​r e​de, abri​a m-se qua​tro gran​des gru​tas, uma de​las
fe​c ha​da com uma cu​r i​o​sa pi​lha
de to​r as de ma​dei​r a, pri​m i​ti​va, rús​ti​c a, des​lo​c a​da no am​bi​e n​te de alta tec​no​-
lo​gia do lu​gar.
Mais es​pan​to​so, po​r ém, era o si​lên​c io. Aque​la ca​ver​na de​ve​r ia es​tar pu​lu​lan​-
do de gen​te, mas apa​r e​c ia de​ser​ta, como que aban​do​na​da. Não ha​via um úni​c o
guar​da na en​tra​da, não se via vi​val-ma no se​gun​do piso, não se es​c u​ta​va nem ba​-
ru​lho de má​qui​nas, vo​zes, pas​sos!
Ver​da​de que fa​zia frio e, àque​la hora, o pes​so​a l da base de​via es​tar re​c o​lhi​do
nos alo​j a​m en​tos ven​do te​le​vi​são, ou​vin​do mú​si​c a. Mas, e o si​lên​c io?!
— Será... que es​tão mor​tos? — Gin​ger per​gun​tou com um fio voz.
— Sin​to que al​gu​m a coi​sa está er​r a​da... — Jack olhou em vol​ta. Sem ti​r ar
os olhos da bar​r i​c a​da de to​r as, Dom deu dois pas​sos
em sua di​r e​ç ão. Jack e Gin​ger se​gui​r am-no de per​to, apro​xi​m an​do-se de um
pos​ti​go es​trei​to, re​c or​ta​do na ma​dei​r a, sob o qual pas​sa​va um fio de luz ama​r e​la​-
da, di​f e​r en​te da luz di​f u​sa que ilu​m i​na​va a gran​de an​tecâ​m a​r a de pe​dra. Dom
che​gou a es​ten​der a mão para em​pur​r ar a por​ta... e ou​viu vo​zes. Dois ho​m ens fa​-
lan​do bai​xo, qua​se sus​sur​r an​do. Pen​sou em dar meia-vol​ta e fu​gir, mas pa​-
rou, per​c e​ben​do que ali es​ta​va a me​lhor chan​c e de ver o que con​ti​nha a ca​ver​-
na... e ser apa​nha​do con​f or​m e o pla​no.
Apro​xi​m ou-se mais, fez um si​nal para Jack e Gin​ger e em​pur​r ou a por​ta.
Deu dois pas​sos...
A nave es​ta​va ali, bem a sua fren​te.
Gin​ger pa​r ou, as mão aper​tan​do o pei​to so​bre o co​r a​ç ão, que ba​tia alu​c i​na​do.
A gru​ta era imen​sa, com qua​se cem me​tros de pro​f un​di​da​de por vin​te ou
trin​ta de lar​gu​r a, e um teto alto, abau​la​do. O chão de pe​dra, ni​ve​la​do, cri​a ​va uma
pla​ta​f or​m a lisa, de pa​r e​de a pa​r e​de: es​ta​va man​c ha​do de óleo, como se ali fun​c i​-
o​nas​se uma ofi​c i​na mecâ​ni​c a.
À di​r ei​ta da en​tra​da, ao lon​go da pa​r e​de, ha​via ou​tros trai​lers idên​ti​c os aos do
hall, com pe​que​nas ja​ne​las e por​tas me​tá​li​c as, ali​nha​dos até o fun​do. Em cada
por​ta uma pla​c a: La​bo​ra​tó​rio de
Quí​mi​c a, Bi​bli​o​te​c a de Quí​mi​c a, Pa​to​lo​gia, La​bo​ra​tó​rio de Bi​o​lo​gia, Bi​bli​o​te​-
ca de Bi​o​lo​gia, Fí​si​c a I, Fí​si​c a II, An​tro​po​lo​gia, e ou​tros que não po​di​a m ler, pois
es​ta​vam dis​tan​tes. Além dos trai-lers, me​sas de tra​ba​lho e apa​r e​lhos ci​e n​tí​f i​c os;
ex​c e​to um es​pec-tró​gra​f o e um apa​r e​lho de rai​os X con​ven​c i​o​nal, idên​ti​c o ao
do Bos​ton Me​m o​r i​a l, os ins​tru​m en​tos eram mo​der​nís​si​m os, ex​tre​m a​m en​te so​f is​-
ti​c a​dos.
A nave es​ta​va à es​quer​da da en​tra​da. Era exa​ta​m en​te como Gin-ger lem​bra​-
ra quan​do os úl​ti​m os blo​quei​os co​m e​ç a​r am a ruir: um ci​lin​dro de quin​ze ou de​-
zoi​to me​tros de com​pri​m en​to por qua​se cin​c o de diâ​m e​tro, com bor​das ar​r e​don​-
da​das. Es​ta​va apoi​a ​da em al​guns ca​va​le​tes de um me​tro e meio de al​tu​r a, como
um sub​m a​r i​no re​c o​lhi​do para re​pa​r os. Em re​la​ç ão à an​ti​ga ima​gem, fal​ta​va-lhe
ape​nas o bri​lho que a fi​ze​r a mu​dar de cor, do bran​c o ao es​c ar​la​te e ao âm​bar.
Não se viam mo​to​r es nem tur​bi​nas. A fu​se​la​gem era como Gin​ger re​c or​da​r a:
uma fi​lei​r a de três me​tros de de​pressões ar​r e​don​da​das à fren​te, cada uma do ta​-
ma​nho de um pu​nho, sem fun​ç ão apa​r en​te. Do ou​tro lado, qua​tro cú​pu​las, como
me​ta​des de uma con​c ha, tam​bém sem fun​ç ão iden​ti​f i​c á​vel. Es​pa​lha​das pela fu​-
se​la​gem, meia dú​zia de ele​va​ç ões no me​tal, al​gu​m as do ta​m a​nho de uma tam​pa
de lata de lixo, ou​tras pe​que​nas como fe​c ho de vi​dro de mai​o​ne​se, ne​nhu​m a com
mais de dez cen​tí​m e​tros de al​tu​r a, es​tra​nhas e mis​te​r i​o​sas. Não fos​sem al​gu​m as
mar​c as de ar​r a​nhões, a nave es​ta​r ia per​f ei​ta, lisa e bri​lhan​te. Não era es​pe​ta​c u​-
lar, nem se pa​r e​c ia com as de fil​m es ou re​vis​tas, mas era a vi​são mais des​lum​-
bran​te que Gin​ger al​gum dia ti​ve​r a di​a n​te dos olhos. As​sus​ta​va-a e ma​r a​vi​lha​va-
a, dan​do medo e ale​gria ao mes​m o tem​po.
Dois ho​m ens es​ta​vam sen​ta​dos à mesa, ao lado da ae​r o​na​ve. Um de​les, alto,
ma​gro e bar​bu​do, ves​tia cal​ç a es​c u​r a, ma​lha pre​ta e um am​plo aven​tal de la​bo​-
ra​tó​r io. O ou​tro usa​va uni​f or​m e do Exér​c i​to, com a tú​ni​c a de​sa​bo​to​a ​da; pa​r e​c ia
uns dez anos mais ve​lho que o bar​bu​do. Ne​nhum dos dois cor​r eu para aci​o​nar o
alar​m e, nem gri​tou cha​m an​do os guar​das. Ape​nas le​van​ta​r am-se e pa​r a​r am, ca​-
la​dos, olhan​do os re​c ém-che​ga​dos.
Es​ta​vam nos es​pe​r an​do, Gin​ger pen​sou.
Era es​tra​nho, tal​vez fos​se mau si​nal, mas ela não se in​te​r es​sa​va com nada
além da nave. Ten​do Dom de um lado e Jack do ou​tro, to​dos mui​to jun​tos, an​dou
na di​r e​ç ão do en​ge​nho e pa​r ou a um pas​so de dis​tân​c ia, o co​r a​ç ão ba​ten​do como
lou​c o, ma​r a​vi​lha​da, des​lum​bra​da, sen​tin​do-se como que em es​ta​do de gra​ç a.
Um dos la​dos de fu​se​la​gem es​ta​va ras​pa​do, re​sul​ta​do de al​gum cho​que com
as​te​r ói​des ou com na​ves ini​m i​gas, du​r an​te a vi​a ​gem. Pe​que​nas mar​c as, cau​sa​das
não por ven​tos ou tem​pes​ta​des ter​r es​tres, mas por al​gum tipo de ata​que de es​tra​-
nhos ele​m en​tos de es​tra​nhas pa​r a​gens.
Tal​vez por in​tui​ç ão, tal​vez por já sa​ber, Gin​ger “sen​tia” que a nave era mui​to
an​ti​ga... po​dia ter mi​lê​ni​os de ida​de. Cor​r en​do os de​dos de leve pelo me​tal frio,
en​ten​deu que, na ver​da​de, a nave era como uma re​lí​quia, um mo​nu​m en​to ao
pas​sa​do. Vi​e ​r a de lon​ge, no tem​po e no es​pa​ç o; cum​pri​r a uma jor​na​da qua​se
eter​na.
Dom tam​bém apro​xi​m ou-se ain​da mais e to​c ou o me​tal.
— Ah! — ex​c la​m ou, in​c a​paz de ex​pres​sar o que sen​tia.
— Deus... — Gin​ger mur​m u​r ou, fe​c han​do os olhos —, que​r ia que meu pai
es​ti​ves​se aqui! Como ele gos​ta​r ia de ver isto! — Ja-cob, o so​nha​dor, que sem​pre
ama​r a os con​tos fan​tás​ti​c os de vi​a ​gens no tem​po, para o pas​sa​do ou para o fu​tu​-
ro...
— Se Jenny ti​ves​se vi​vi​do um pou​c o mais... Só um pou​c o mais... — dis​se
Jack, pen​san​do que, na ver​da​de, não que​r ia ape​nas que ela es​ti​ves​se ali, par​ti​-
lhan​do aque​le mo​m en​to; que​r ia que ti​ves​se re​sis​ti​do ape​nas mais um mês ou
dois... para ser sal​va! En​tão, com um sim​ples to​que de mão, Dom ou Bren​dan
po​de​r i​a m de​vol​vê-la a seus bra​ç os, viva e fe​liz.
— Deus... — Gin​ger re​pe​tiu, num fio de voz, as mãos trê​m u​las so​bre o me​-
tal. Sa​bia que mal co​m e​ç a​vam a en​ten​der o sig​ni​f i​c a​do da​que​le es​tra​nho en​c on​-
tro, as im​pli​c a​ç ões que te​r ia para o fu​tu​r o, as re​per​c ussões so​bre o pas​sa​do... Es​-
tra​nho en​c on​tro, à noi​te num ve​r ão per​di​do, no de​ser​to de Ne​va​da.
— Uma liga des​c o​nhe​c i​da. — O ho​m em bar​bu​do apro​xi​m ou-
se dos três e to​c ou a nave. — Mais re​sis​ten​te que aço, mais dura que di​a ​m an​-
te, e ina​c re​di​ta​vel​m en​te leve e fle​xí​vel. Você é Dom Cor​vai​sis?
— Sou... — Dom es​ten​deu a mão. Como Gin​ger, tam​bém pres​sen​tia que os
dois ho​m ens eram ali​a ​dos.
— Meu nome é Mi​les Ben​nell, sou che​f e da equi​pe en​c ar​r e​ga​da de es​tu​dar
o... ma​r a​vi​lho​so acon​te​c i​m en​to. Este é o ge​ne​r al Al​va​r a​do, co​m an​dan​te de
Thun​der Hill. Não po​dem ava​li​a r como las​ti​m a​m os o que fi​ze​r am com vo​c ês. O
que vo​c ês vi​r am ja​m ais po​de​r ia ter-lhes sido rou​ba​do. Pre​c i​sa​va ser con​ta​do
ao mun​do... Se exis​tis​se al​gum modo de re​m e​di​a r os er​r os, vo​c ês di​vul​ga​r i​a m a
ver​da​de ama​nhã mes​m o! Mas Falkirk che​gou pri​m ei​r o, en​c on​trou vo​c ês e...
— Falkirk?! — Jack in​ter​r om​peu-o. — Está pen​san​do que foi Falkirk quem
nos trou​xe aqui? Cla​r o que não! — Riu. — Nós vi​e ​m os por nos​sa con​ta.
Gin​ger per​c e​beu que o ge​ne​r al dava um pas​so atrás, co​lhi​do pelo im​pac​to de
sur​pre​sa. Viu-o olhar para Ben​nell e, aos pou​c os, uma pe​que​na luz de es​pe​r an​ç a
re​nas​c en​do no ros​to de am​bos.
— Quer di​zer que... en​tra​r am em Thun​der Hill... so​zi​nhos?!
— Al​va​r a​do ar​r e​ga​lou os olhos. — Mas isso é im​pos​sí​vel!
— A idéia de atrair Jack Twist foi sua, não foi? — Ben​nell sor​r iu para o
ami​go. — Co​nhe​c e a fi​c ha dele. Lem​bre-se de que foi sol​da​do de eli​te e tem alto
trei​na​m en​to para... in​va​dir áre​a s proi​bi​das.
— Sem Dom, não te​r í​a ​m os con​se​gui​do en​trar — ga​r an​tiu Jack.
— Eu os trou​xe até a se​gun​da por​ta do tú​nel. Mas foi ele quem a abriu.
Ben​nell vi​r ou-se para Dom, per​ple​xo, as so​bran​c e​lhas fran​zi​das.
— Mas... o que você en​ten​de de sis​te​m as de se​gu​r an​ç a? A me​nos que...
Cla​r o! Você tem po​de​r es es​pe​c i​a is! De​pois de ar​r an​c ar os pôs​te​r es da casa de
Lo​m ack, e de fa​zer aque​la luz sur​gir quan​do viu Bren​dan, você deve ter per​c e​bi​-
do que era ca​paz de fa​zer qual​quer... mi​la​gre! E aca​bou des​c o​brin​do a ver​da​de...
o po​der está em você.
pro​va de que ou​vi​a m mes​m o to​das as nos​sas con​ver​sas no mo​tel, Gin​ger
pen​sou. Mas pro​va, tam​bém, de que Jack con​se​gui​r a man​ter em se​gre​do os pla​-
nos de fuga. Se não ti​ves​se ar​r an​c a​do os te​le​f o​nes e man​ti​do ve​da​das as ja​ne​las,
Ben​nell sa​be​r ía tam​bém dos sa​lei​r os vo​a ​do​r es.
— E ver​da​de. Bren​dan e eu sa​be​m os que te​m os po​de​r es te​le​c i-né​ti​c os... e
ou​tros, tal​vez. Mas de onde vem esse po​der? Sa​be​m os que de​vem ter algo a ver
com a nave, mas não con​se​gui​m os lem​brar o que acon​te​c eu de​pois que en​tra​-
mos. O se​nhor sabe?
— Não... — Ben​nell ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. — Sa​be​m os que vo​c ês três en​tra​-
ram, e isso é tudo. Não te​m os idéia do que acon​te​c eu den​tro da nave! Quan​do
che​ga​r am os he​li​c óp​te​r os com os ho​m ens da DE-RO e os pri​m ei​r os ci​e n​tis​tas,
vo​c ês sa​í​r am, em es​ta​do de cho​que. Não fi​c a​r am lá den​tro mais que al​guns mi​-
nu​tos. Quan​do fo​r am pre​sos, dis​se​r am que não ti​nham vis​to nada de es​pe​c i​a l, só
de​r am uma es​pi​a ​da. Para im​pe​dir que vo​c ês re​sis​tis​sem à pri​são, o pes​so​a l se​dou
os três e le​vou-os de vol​ta ao Mo​tel Tran​qüi​li​da​de. As​sim, se, de​pois de pas​sa​do o
cho​que, vo​c ês mu​das​sem de idéia e re​sol​ves​sem con​tar o que vi​r am, não te​r i​a m
tem​po.
As​sus​ta​do ou an​gus​ti​a ​do, Mi​les pas​sou as mãos pe​los ca​be​los.
— Mais tar​de, quan​do de​c i​di​r am que vo​c ês se​r i​a m sub​m e​ti​dos a la​va​gem
ce​r e​bral, não hou​ve tem​po se​quer para in​ter​r o​gá-los. Sem es​pe​r ar que vo​c ês sa​-
ís​sem da se​da​ç ão, eles ape​nas mu​da​r am as dro​gas e de​r am iní​c io ao tra​ba​lho.
Essa foi uma das ra​zões pe​las quais sem​pre dis​c or​dei da idéia da la​va​gem ce​r e​-
bral. Fa​zer vo​c ês es​que​c e​r em an​tes de lhes dar a chan​c e de con​tar o que ha​-
via acon​te​c i​do era, além de cru​e l e in​j us​to, uma ter​r í​vel as​nei​r a, por​que nos dei​-
xa​va com​ple​ta​m en​te no es​c u​r o.
Gin​ger olhou para a por​ta da nave e mur​m u​r ou:
— Se en​trar​m os ou​tra vez, é pos​sí​vel que nos lem​bre​m os de tudo...
— Sim... — Ben​nell se​guiu-lhe o olhar. — E pos​sí​vel.
Tam​bém fi​t an​do a nave, Jack per​gun​t ou:
— Como é que vo​c ês sou​be​r am que... ela es​t a​va se apro​xi​man​do e que
pou​sa​r ia jun​t o à ro​do​via?
— E por que de​c i​di​r am es​c on​der a nave e as tes​te​m u​nhas? — Dom quis
sa​ber.
— Ha​via... tri​pu​lan​tes? — Jack es​ta​va an​si​o​so.
— Cal​m a — pe​diu Al​va​r a​do, dan​do um pas​so à fren​te. — Vo​c ês vão re​c e​-
ber to​das as res​pos​tas, por​que têm di​r ei​to a elas. Mas, an​tes, há pro​ble​m as mui​to
ur​gen​tes para re​sol​ver. — Vi​r ou-se para Dom. — Se você con​se​guiu en​trar aqui,
com cer​te​za tam​bém sa​be​r á abrir as por​tas para o pes​so​a l sair, não é? Po​de​r á
man​tê-las aber​tas para que a base seja eva​c u​a ​da?
Gin​ger olhou para Dom, de​pois para Jack, e os viu aler​tas.
— Bem... — Dom mur​m u​r ou. — Não sei, tal​vez...
— Bob... — dis​se Ben​nell, mui​to sé​r io, vol​tan​do-se para o ami​go. — Se o
co​r o​nel per​c e​ber que a base foi eva​c u​a ​da ou que al​guém en​trou aqui, sem ser
apa​nha​do pela se​gu​r an​ç a que só ele con​tro​la, será como acen​der o pa​vio. Vai
pen​sar que... fo​m os con​ta​m i​na​dos.
— Con​ta​m i​na​dos...? — Gin​ger per​gun​tou.
— Le​land está lou​c o. Acre​di​ta que to​dos, nes​ta base, fo​m os “pos​su​í​dos”
pe​los se​r es que che​ga​r am com a nave. Acha que eles nos rou​ba​r am a alma e nos
trans​f or​m a​r am em zum​bis, es​c ra​vos de uma von​ta​de su​pe​r i​or.
— Esse cara pre​c i​sa ser in​ter​na​do no hos​pí​c io — opi​nou Jack.
— Dou​tor — co​m e​ç ou Gin​ger, es​c o​lhen​do bem as pa​la​vras —, é cla​r o que
não so​m os zum​bis. Mas... há al​gu​m a ra​zão ob​je​ti​v a para Falkirk sus​pei​tar de con​-
ta​m i​na​ç ão?
— Em tese, sim — Mi​les res​pon​deu com um es​gar. — Mas só em tese. Na
ver​da​de, to​dos de​m o​r a​m os um pou​c o para en​ten​der o que re​a l​m en​te acon​te​c eu.
Mais tar​de, com cal​m a, eu lhe ex​pli​c a​r ei tudo.
— Por fa​vor, re​c o​nhe​c e​m os que vo​c ês têm ple​no di​r ei​to de sa​ber da ver​-
da​de, mas não po​de​m os per​der um mi​nu​to — dis​se Al​va​r a​do, já afli​to. —-
Falkirk pode che​gar a qual​quer mo​m en​to, tra​zen​do as ou​tras tes​te​m u​nhas do mo​-
tel.
— Não vai achar nin​guém no mo​tel. Eles sa​í​r am an​tes de nós — Dom in​-
for​m ou.
— Ja​m ais su​bes​ti​m e aque​le ho​m em. Pre​c i​sa​m os im​pe​dir que ele en​tre,
mon​tar um pla​no de di​vul​ga​ç ão para a his​tó​r ia de vo​c ês e, se pos​sí​vel, eva​c u​a r a
base. Caso Falkirk con​si​ga en​trar aqui, ha​ve​r á um mas​sa​c re. Tal​vez haja um
mas​sa​c re de qual​quer modo, afi​nal...
Ou​vi​r am pas​sos no hall. Gin​ger le​vou as mãos à boca para não gri​tar. Ma​-
reie, Jor​j a, Bren​dan e os ou​tros en​tra​r am.
— Tar​de de​m ais... — Ben​nell sus​pi​r ou.
À en​tra​da de Thun​der Hill, Parker Fai​ne e todo o gru​po fo​r am em​pur​r a​dos
em di​r e​ç ão à por​ta me​nor, sob a mira da me​tra​lha​do​r a do te​nen​te Hor​ner. Le​-
land or​de​na​r a aos sol​da​dos da DERO que le​vas​sem o cor​po do pa​dre Wy ​c a​zik
para Shenk​f i​e ld, en​ter​r as​sem-no sem iden​ti​f i​c a​ç ão e fi​c as​sem por lá à es​pe​r a de
no​vas or​dens. Não via ne​c es​si​da​de de sa​c ri​f i​c ar a tro​pa toda, quan​do ape​nas ele
e Plor​ner, seu bra​ç o di​r ei​to, po​de​r i​a m con​tro​lar os pri​si​o​nei​r os e des​truir o de​pó​-
si​to. Po​bre Hor​ner... não te​r ia a chan​c e de re​c e​ber nem mes​m o uma me​da​lha de
Hon​r a ao Mé​r i​to...
No tú​nel de en​tra​da, Le​land sen​tiu um ca​la​f rio ao per​c e​ber que as câ​m a​r as
de te​le​vi​são não es​ta​vam ope​r an​do. Mas logo sos​se​gou, lem​bran​do que o có​di​go
se​c re​to não exi​gia ob​ser​va​ç ão vi​su​a l, pois fora pro​gra​m a​do para só abrir a por​ta
in​ter​na ao re​c e​ber a im​pres​são da pal​m a de sua mão es​quer​da. No ins​tan​te em
que to​c ou a cha​pa de vi​dro, a por​ta abriu-se.
Sem​pre sob a mira da me​tra​lha​do​r a de Hor​ner, os oito pri​si​o​nei​r os fo​r am
con​du​zi​dos para o ele​va​dor, que des​c eu para o se​gun​do piso, e ago​r a en​tra​vam
na ca​ver​na.
Es​pi​a n​do por so​bre as ca​be​ç as do gru​po, Le​land viu Gin​ger, Dom Cor​vai​sis e
Twist. Não po​dia ima​gi​nar quem os fi​ze​r a en​trar, mas não im​por​ta​va. O que va​lia
era que ele ti​nha to​dos em seu po​der, bem ali, exa​ta​m en​te como que​r ia.
Dei​xou Hor​ner com os pri​si​o​nei​r os na sala de Ben​nell e cor​r eu para o ele​va​-
dor, que o trans​por​tou para o ter​c ei​r o piso in​f e​r i​or. Era uma pena não po​der mais
con​tar com Hor​ner: ele fi​c a​r ia mui​to tem​po ex​pos​to aos agen​tes da con​ta​m i​na​-
ção.
Le​land le​va​va a me​tra​lha​do​r a ao om​bro, dis​pos​to a dis​pa​r ar no
pri​m ei​r o que ten​tas​se bar​r ar-lhe o ca​m i​nho. Se apa​r e​c es​sem mui​tos, ati​r a​r ia
em si mes​m o: pre​f e​r ia mor​r er a dei​xar-se con​ta​gi​a r. Não po​dia mu​dar, trans​f or​-
mar-se em algo que não en​ten​dia bem, se des​de a infân​c ia re​sis​ti​r a ao pai e à
mãe, e tam​bém a efes, aos ver​m es que o per​se​gui​a m du​r an​te anos, sob um ou
ou​tro dis​f ar​c e, que​r en​do rou​bar-lhe a dig​ni​da​de e a pró​pria iden​ti​da​de.
No ter​c ei​r o piso sub​terrâ​neo guar​da​vam-se as ar​m as, a mu​ni​ç ão, todo o
equi​pa​m en​to bé​li​c o. Ali sem​pre ha​via al​guns ope​r á​r i​os en​c ar​r e​ga​dos da ma​nu​-
ten​ç ão e os guar​das de se​gu​r an​ç a. Na​que​le ins​tan​te, po​r ém, o lo​c al es​ta​va de​ser​-
to. Si​nal de que Al-va​r a​do não se atre​ve​r a a de​so​be​de​c er suas or​dens: o pes​so​a l
es​ta​va con​f i​na​do nos alo​j a​m en​tos.
Tal​vez pas​sas​se pela ca​be​ç a do ge​ne​r al que, agin​do as​sim, con-se​gui​r ia con​-
ven​c ê-lo de que ain​da era hu​m a​no. Idi​o​ta! Seus pais tam​bém agi​a m, fa​la​vam e
pen​sa​vam como gen​te... Ah! Sim... bei​j os, ca​r i​nhos, ho​r as e ho​r as de con​ver​va
fi​a ​da... e quan​do co​m e​ç a​va a con​f i​a r ne​les, a acre​di​tar nas men​ti​r as que di​zi​a m,
mos​tra​vam a ver​da​dei​r a face, a hor​r í​vel cara de mosn​tro que sem​pre es​c on​di​-
am. Apa​nha​vam a cor​r eia de cou​r o ou a pal​m a​tó​r ia e o es​pan​c a​vam, di​zen​do
que o cas​ti​ga​vam “para seu pró​prio bem!” Ne​nhum zum​bi con​se​gui​r ia en​ga​ná-
lo, logo a ele, Le​land Falkirk, que des​de me​ni​no apren​de​r a a iden​ti​f i​c ar o lobo es​-
con​di​do sob a pele do cor​dei​r o.
Che​gou ao lo​c al do ar​m a​m en​to nu​c le​a r, sob se​gu​r an​ç a má​xi​m a. Ape​nas oito
dos ofi​c i​a is su​pe​r i​o​r es, em Thun​der Hill, ti​nham au​to​r i​za​ç ão para en​trar ali, mas
ape​nas quan​do se apre​sen​tas​sem jun​tos ou no mí​ni​m o em gru​po de três. O com​-
pu​ta​dor es​ta​va pro​gra​m a​do para só li​be​r ar a en​tra​da de​pois que seis pal​m as
de mão, em or​dem pre​de​ter​m i​na​da, fos​sem apre​sen​ta​das à pla​c a de vi​dro. Mas,
isso, an​tes de Le​land al​te​r ar os có​di​gos de aces​so ao sis​te​m a de se​gu​r an​ç a. Ago​-
ra, fren​te à pe​sa​da por​ta de me​tal, bas​tou-lhe to​c ar a pla​c a com a pal​m a da mão
es​quer​da para abrir ca​m i​nho.
A di​r ei​ta da en​tra​da, as ogi​vas nu​c le​a ​r es, se​m i​m on​ta​das, mas sem de​to​na​dor
nem ex​plo​si​vo: os de​to​na​do​r es es​ta​vam guar​da-
dos nas ga​ve​tas ao lon​go da pa​r e​de, e as car​gas de ex​plo​si​vo en​c on​tra​vam-se
em ca​bi​nes pres​su​r i​za​das, de umi​da​de e tem​pe​r a​tu​r a con​tro​la​das, na pa​r e​de
opos​ta.
O trei​na​m en​to mi​li​tar de Le​land pre​via a even​tu​a ​li​da​de de en​f ren​tar ame​a ​-
ças de ter​r o​r is​tas ar​m a​dos com bom​bas atô​m i​c as. Por isso ele sa​bia per​f ei​ta​-
men​te como mon​tar, ar​m ar e de​sar​m ar todo tipo de bom​ba. Em oito mi​nu​tos,
sem dei​xar de vi​gi​a r a por​ta, a me​tra​lha​do​r a sem​pre ao al​c an​c e da mão, ar​m ou
os de​to​na​do​r es e im​plan​tou as car​gas de ex​plo​si​vo de duas bom​bas. De​pois de
co​nec​tá-las a dois ti​m ers, res​pi​r ou um pou​c o mais ali​vi​a ​do. Acer​tou os pon​tei​r os
dos me​c a​nis​m os de tem​po para ex​plo​dir em quin​ze mi​nu​tos e li​gou os de​to​na​do​-
res.
Le​van​tou-se, pen​du​r ou a me​tra​lha​do​r a num om​bro e no ou​tro pren​deu as al​-
ças das bom​bas. Cada bom​ba pe​sa​va mais de trin​ta qui​los, e ele ge​m eu ao er​guê-
las da mesa, ar​que​a ​do sob o peso do apo​c a​lip​se.
Qual​quer ou​tro ho​m em pa​r a​r ia no meio do ca​m i​nho para co​lo​c ar o peso no
chão e ali​vi​a r a dor dos mús​c u​los. Le​land Fal-kirk, não. O peso cur​va​va-lhe as
cos​tas, fa​zia ar​de​r em-lhe os ner​vos do bra​ç o, mas ele avan​ç a​va sem​pre, fe​liz
com a dor qua​se in​su​por​tá​vel para qual​quer ou​tro mor​tal.
Na ca​ver​na de onde par​ti​a m os ele​va​do​r es, ain​da no ter​c ei​r o piso, dei​xou
uma das bom​bas, bem no meio do chão. Er​gueu os olhos para o teto de pe​dra, e
com um sor​r i​so de sa​tis​f a​ç ão exa​m i​nou as pa​r e​des só​li​das. Quan​do che​gas​se o
mo​m en​to da de​to​na​ç ão, a me​nor ra​c ha​du​r a exis​ten​te na ro​c ha fa​r ia ex​plo​dir a
ca​ver​na, e os an​da​r es su​pe​r i​o​r es de​sa​ba​r i​a m... Le​land sa​bia que não ha​via no
pla​ne​ta ro​c ha sem fis​su​r a. Ain​da que as pa​r e​des re​sis​tis​sem, nin​guém so​bre​vi​ve​-
ria na​que​le piso, nem se​r es hu​m a​nos, nem qual​quer ou​tra for​m a de vida —
mons​tros, ver​m es, bac​té​r i​a s... tudo se​r ia re​du​zi​do a pó. O ca​lor do in​f er​no se ins​-
ta​la​r ia na base... e tam​bém a dor.
Ele não so​bre​vi​ve​r ia à dor, mas não te​m e​r ia en​f ren​tá-la, se​r ia uma ago​nia
in​ten​sa, in​des​c ri​tí​vel, mas bre​ve. Du​r a​r ia mui​to me​nos que as in​ter​m i​ná​veis sur​-
ras com a cor​r eia de cou​r o ou as pan-
ca​das de pal​m a​tó​r ia pelo ros​to e pe​las cos​tas... ate a pele ras​gar-se e o san​-
gue jor​r ar como água da tor​nei​r a aber​ta.
Com a se​gun​da bom​ba ain​da pen​du​r a​da ao bra​ç o, sor​r iu para o pe​que​no re​-
ló​gio onde os pon​tei​r os vo​a ​vam. A mai​or das ma​r a​vi​lhas, o que fa​zia as bom​bas
atô​m i​c as tão fas​c i​nan​tes, era exa​ta​m en​te aque​le pe​que​no de​ta​lhe: de​pois de ar​-
ma​das, com o ti​mer aci​o​na​do, nada nem nin​guém con​se​gui​r ia im​pe​dir a ex​plo​-
são, fa​tal e ine​xo​r á​vel como o des​ti​no.
Foi até o ele​va​dor e su​biu para o se​gun​do piso.
Com Ma​r eie no colo, Jor​j a cor​r eu para o lado de Jack e pa​r ou, rí​gi​da, pá​li​da,
os olhos na nave. Em​bo​r a de cer​to modo já es​ti​ves​se pre​pa​r a​da para a cena, a
pre​sen​ç a da nave, real, pal​pá​vel, a dois pas​sos de dis​tân​c ia, de​vol​via-a ao es​ta​do
de exal​ta​ç ão e emo​ç ão do ins​tan​te em que, ain​da no ca​m i​nhão de Falkirk, co​m e​-
ça​r a a lem​brar-se.
Ma​r eie de​ba​tia-se para sol​tar-se, e Jor​j a co​lo​c ou-a no chão. A me​ni​na deu
dois ou três pas​sos va​c i​lan​tes em di​r e​ç ão à nave e es​ten​deu a mão para to​c ar o
bojo de me​tal.
— A Lua... — mur​m u​r ou.
— Não, que​r i​da. Não é a Lua. É um tipo de avi​ã o, di​f e​r en​te dos que co​nhe​-
ce​m os. Foi essa... nave que des​c eu do céu, na​que​la noi​te. Não foi a Lua, que pa​-
re​c ia cair so​bre nos​sas ca​be​ç as. Você se lem​bra...? Era bran​c a, de​pois fi​c ou ver​-
me​lha...
— Não foi a Lua... — Ma​r eie re​pe​tiu, bai​xi​nho, as so​bran​c e​lhas fran​zi​das,
no es​f or​ç o de con​se​guir se​pa​r ar, na lem​bran​ç a, o que era pe​sa​de​lo e o que era
re​a ​li​da​de.
— Não... Foi essa nave es​pa​c i​a l.
A me​ni​na vi​r ou-se para Jor​j a e, pela pri​m ei​r a vez em se​m a​nas, re​c o​nhe​c eu
o ros​to da mãe. E sor​r iu.
— Uma nave... como a do ca​pi​tão Kirk?
— Acho que sim... — Jor​j a riu.
— Como a de Luke Sky walker, de Guer​ra nas Es​tre​las — Jack aju​dou.
— Luke?! E Han Solo?!
Essa mes​m a. —Jack sor​r iu, mas ven​do que Ma​r eie ou​tra vez
se alhe​a ​va e vol​ta​va a olhar para a nave como se não a vis​se, fi​c ou sé​r io e
pou​sou a mão no om​bro de Jor​j a. — Não se pre​o​c u​pe. Ela pre​c i​sa de al​gum
tem​po para se adap​tar às no​vi​da​des. Mas logo, logo, es​ta​r á bem, rin​do e brin​c an​-
do como an​tes.
Jor​j a fe​c hou os olhos, em par​te para agra​de​c er a Deus por ter co​nhe​c i​do
aque​le ho​m em, em par​te para usu​f ruir mais in​ten​sa​m en​te a se​gu​r an​ç a que a
pre​sen​ç a de Jack lhe trans​m i​tia. Mas logo re​c u​pe​r ou a cons​c i​ê n​c ia de sua si​tu​a ​-
ção e dis​se:
— Tal​vez... Se con​se​guir​m os es​c a​par da​qui.
— Cla​r o que va​m os es​c a​par. Ain​da não sei como, mas va​m os sair mais
cedo do que você pen​sa.
Dom cor​r eu para abra​ç ar Parker, com um sor​r i​so nos lá​bi​os e lá​gri​m as nos
olhos.
— Como foi que você che​gou aqui?!
— De​pois eu con​to tudo — o ou​tro res​pon​deu, a voz e o ros​to som​bri​os di​-
zen​do cla​r a​m en​te que nem tudo fora um mar de ro​sas.
— Eu não ti​nha o di​r ei​to de en​vol​vê-lo nes​sa con​f u​são.
— Você não ti​nha o di​r ei​to é de me dei​xar de fora... — Parker olhou para a
nave e es​que​c eu-se do res​to, des​lum​bra​do.
— O que acon​te​c eu com sua bar​ba? Você cor​tou o ca​be​lo!
— Não lhe dis​se que só ras​pa​r ia a bar​ba quan​do acon​te​c es​se al​gu​m a coi​sa
que me​r e​c es​se mes​mo ser co​m e​m o​r a​da? Não acha que isso — apon​tou para a
nave — vale mais que uma bar​ba ve​lha?
Er​nie con​tor​na​va a nave, to​c a​va-a com a pon​ta dos de​dos, exa​m i​na​va os mí​-
ni​m os de​ta​lhes. Ao lado de Bren​dan, Fay e es​pe​r a​va, tão pre​o​c u​pa​da com ele
quan​to com o ma​r i​do. Fa​zia me​ses que per​de​r a a fé, ou acha​va que a per​de​r a, o
que dava na mes​m a; ago​r a aca​ba​va de ver seu me​lhor ami​go mor​to. Es​ta​va pá​li​-
do, com olhei​r as, po​r ém mes​m o as​sim con​se​guiu sor​r ir, ao co​m en​tar:
— Ela é lin​da, não é?
— Lin​da... como o fu​tu​r o — Fay e res​pon​deu. — E eu que nun​c a acre​di​tei
em his​tó​r i​a s de dis​c os vo​a ​do​r es!
— Mas isso não é Deus... — Bren​dan bai​xou a ca​be​ç a. — No fun​do do co​-
ra​ç ão, eu es​pe​r a​va ou​tro tipo de mi​la​gre.
— Lem​bra-se do que Parker con​tou no ca​m i​nhão? So​bre o que
o pa​dre Wy ​c a​zik dis​se a ele? Seu pá​r o​c o sa​bia que al​gu​m a coi​sa ti​nha des​c i​-
do à Ter​r a, uma nave in​ter​pla​ne​tá​r ia. Sa​bia que não era Deus... e, ain​da as​sim,
sen​tia com mais in​ten​si​da​de o mis​té​r io da fé.
— Você não o co​nhe​c eu — ata​lhou Bren​dan. — Para ele, qual​quer coi​sa
ser​via para re​f or​ç ar a fé.
— Pois você é como ele. Só pre​c i​sa de al​gum tem​po para se adap​tar. Na
ver​da​de, você é igual​zi​nho a seu que​r i​do pa​dre Wy ​c a​zik.
— Mas você nem o co​nhe​c eu! — Bren​dan olhou-a, sur​pre​so.
— Nem pre​c i​sa​r ia co​nhe​c ê-lo. O que você nos con​tou so​bre ele foi su​f i​c i​-
en​te para ver o quan​to você o ama​va. Ad​m i​r ou-o como pa​dre e como ser hu​m a​-
no. Mas você ain​da é mui​to jo​vem. Com o tem​po, à me​di​da que for ama​du​r e​-
cen​do e apren​den​do mais so​bre a vida e os ho​m ens, tam​bém será como ele... um
gran​de pa​dre e um gran​de ho​m em. E fará de cada dia da sua vida uma ho​m e​na​-
gem a ele.
Bren​dan co​m e​ç a​va a vis​lum​brar al​gu​m a es​pe​r an​ç a de reen​c on​trar a paz.
Com os olhos úmi​dos, fi​tou Fay e e tor​nou a bai​xar a ca​be​ç a.
— Acha que eu pos​so... so​nhar com isso? — mur​m u​r ou.
— Te​nho cer​te​za. — Ela o abra​ç ou como mãe con​f or​tan​do o fi​lho.
De mãos da​das, Sandy e Ned con​tem​pla​vam a nave de lon​ge. Qua​se não ti​-
nham mais o que di​zer, por​que tudo que im​por​ta​va já fora dito. Pelo me​nos, era
o que Ned pen​sa​va, o co​r a​ç ão ex​plo​din​do de ale​gria.
Foi quan​do Sandy en​c on​trou um as​sun​to. Al​gu​m a coi​sa mui​to im​por​tan​te, so​-
bre a qual ne​nhum dos dois ja​m ais fa​la​r a:
— Se es​c a​par​m os des​sa, que​r o ter um fi​lho. Vou pro​c u​r ar um mé​di​c o, des​-
co​brir por que nun​c a en​gra​vi​dei. Tal​vez haja um meio...
— Mas você... você nun​c a...
— Nun​c a me pre​o​c u​pei por​que acha​va que o mun​do não me​r e​c ia, que eu
não me​r e​c ia, que o bebê não me​r e​c ia vi​ver só para so​f rer — ela res​pon​deu. —
Mas ago​r a é di​f e​r en​te! Que​r o um fi​lho, para es​tar vivo quan​do nós dois não exis​-
tir​m os... para po​der gos​tar de vi​ver nes​se mun​do novo que vem aí, para vi​a ​j ar
pelo es​pa​ç o, para ir ao en​c on​tro des​sas cri​a ​tu​r as que nos trou​xe​r am a fe​li​c i​da​de.
Pro​m e​to que vou ser a me​lhor mãe des​te mun​do... e, quem sabe, de ou​tros tam​-
bém!
— Eu sei. — Ned abra​ç ou-a, como sem​pre sem en​c on​trar as pa​la​vras cer​-
tas.
Quan​do Mi​les Ben​nell viu che​ga​r em as úl​ti​m as tes​te​m u​nhas, com​preen​deu
que de nada adi​a n​ta​r i​a m os po​de​r es de Dom para man​ter Falkirk a dis​tân​c ia. O
úni​c o po​der que o fa​r ia pa​r ar era a arma que tra​zia es​c on​di​da na cin​tu​r a. Ima​gi​-
na​va que Falkirk fos​se apa​r e​c er com um ver​da​dei​r o exér​c i​to da DERO, e sur​-
preen​deu-se ao ver Hor​ner en​trar so​zi​nho, de me​tra​lha​do​r a apon​ta​da para a ca​-
be​ç a de Ma​r eie.
— Ge​ne​r al Al​va​r a​do, dou​tor Ben​nell — dis​se o te​nen​te —, o co​r o​nel Falkirk
che​ga​r á num ins​tan​te.
— Como se atre​ve a apa​r e​c er ar​m a​do em fren​te de seu co​m an​dan​te, te​-
nen​te?! — O ge​ne​r al Al​va​r a​do avan​ç ou para a me​tra​lha​do​r a. — Não per​c e​be
que es​ta​m os numa ca​ver​na? Não en​ten​de que, se es​c or​r e​gar esse dedo no ga​ti​-
lho, a arma dis​pa​r a, as ba​las ri​c o​c he-tei​a m nas pa​r e​des e to​dos po​de​m os fi​c ar
fe​r i​dos, in​c lu​si​ve você?
— Meu dedo ja​m ais es​c or​r e​ga no ga​ti​lho, se​nhor. — Ha​via ta​m a​nha iro​nia
em sua voz que era qua​se um de​sa​f io.
— Onde está Falkirk? — O ge​ne​r al re​sis​tiu à pro​vo​c a​ç ão.
— Está ocu​pa​do, se​nhor, em ta​r e​f as ur​gen​tes. Pede que o des​c ul​pem pela
de​m o​r a... Mas logo es​ta​r á aqui.
— Que ta​r e​f as?
— Não es​tou in​f or​m a​do, se​nhor.
Ao lado, Mi​les ima​gi​na​va o que Falkirk es​ta​r ia fa​zen​do e che​ga​va a te​m er
que já hou​ves​se or​de​na​do a exe​c u​ç ão dos sol​da​dos con​f i​na​dos nos alo​j a​m en​tos.
Não se ou​vi​a m ti​r os... o que, afi​nal de con​tas, pou​c o sig​ni​f i​c a​va en​tre aque​las pa​-
re​des de pe​dra. Es​ta​va a pon​to de sal​tar so​bre Hor​ner, de​sar​m á-lo e co​m e​ç ar a
lim​pe​za, man​dan​do-o para o in​f er​no com me​tra​lha​do​r a e tudo.
Para con​tro​lar os im​pul​sos as​sas​si​nos, de​c i​diu que a úni​c a coi​sa a fa​zer era
apro​vei​tar o tem​po para con​tar às tes​te​m u​nhas o que sa​bia e des​c o​brir o que pu​-
des​se. Já de iní​c io, des​c o​briu que co​nhe​c i​a m o re​la​tó​r io do GE​TRAU. Em rá​pi​-
das pa​la​vras, re​su​m iu-o para os ou​tros, res​pon​den​do, para co​m e​ç ar, às per​gun​tas
que Dom e Jack ha​vi​a m fei​to. O se​gre​do fora idéia de Falkirk, ba​se​a ​do nas con​-
clusões do re​la​tó​r io so​bre a des​trui​ç ão da vida no pla​ne​ta, a ca​tás​tro​f e to​tal e ou​-
tras pre​visões fa​ta​lis​tas.
Quan​to à nave, fora de​tec​ta​da pe​los sa​té​li​tes avan​ç a​dos, po​si​c i​o​na​dos a trin​ta
e cin​c o mil qui​lô​m e​tros da Ter​r a, que a vi​r am pas​sar pela Lua. Os so​vi​é ​ti​c os,
cujo equi​pa​m en​to de vi​gi​lân​c ia não era tão acu​r a​do, só mui​to mais tar​de des​c o​-
bri​r am a apro​xi​m a​ç ão da nave e nun​c a che​ga​r am a iden​ti​f i​c á-la com pre​c i​são.
De iní​c io, os ob​ser​va​do​r es ima​gi​na​r am que se tra​tas​se de um gran​de me​te​o​-
ri​to ou um pe​que​no as​te​r ói​de em rota de co​li​são com a Ter​r a. Se fos​se cons​ti​tu​í​do
de ma​te​r i​a l po​r o​so, tal​vez se in​c en​di​a s​se ao en​trar na at​m os​f e​r a. Caso con​trá​r io,
ha​via ain​da a pos​si​bi​li​da​de de que se frag​m en​tas​se em me​te​o​r i​tos me​no​r es, qua​-
se ino​f en​si​vos. Mas a Ter​r a es​ta​va sem sor​te. As pri​m ei​r as pes​qui​sas, des​c o​briu-
se que o “me​te​o​r i​to” con​ti​nha alta taxa de fer​r o e ní​quel, o que for​m a​va uma liga
re​sis​ten​te, eli​m i​nan​do a pos​si​bi​li​da​de de frag​m en​ta​ç ão ex​ten​sa e cri​a n​do ter​r í​vel
ame​a ​ç a po​ten​c i​a l. Na​tu​r al​m en​te, po​dia-se con​tar com a alta pro​ba​bi​li​da​de de
que ca​ís​se no mar, que co​bre se​ten​ta por cen​to do pla​ne​ta. Se a que​da acon​te​c es​-
se mui​to jun​to à cos​ta, con​tu​do, te​r ia o im​pac​to de um ma​r e​m o​to, ge​r a​r ia uma
onda gi​gan​te — a tsu​na​mi dos ja​po​ne​ses — que de​vas​ta​r ia gran​de ex​ten​são do li​-
to​r al. Na pior das hi​pó​te​ses, cor​r ia-se o ris​c o de que o “me​te​o​r i​to” ca​ís​se
em área den​sa​m en​te po​vo​a ​da. Aven​tou-se, en​tão, a pos​si​bi​li​da​de de des​truí-lo
an​tes que che​gas​se à Ter​r a ou al​te​r ar-lhe a tra​j e​tó​r ia.
— Ima​gi​nem o que acon​te​c e​r ia se uma peça de fer​r o e ní​quel, gran​de como
um ôni​bus, de​sa​bas​se so​bre o cen​tro de Ma​nhat​tan, à ve​lo​c i​da​de de qua​se três
mil qui​lô​m e​tros por hora — Ben-nell exem​pli​f i​c ou.
Seis me​ses an​tes, as ór​bi​tas dos sa​té​li​tes de de​f e​sa es​pa​c i​a l dos
Es​ta​dos Uni​dos ha​vi​a m sido se​c re​ta​m en​te al​te​r a​dos. Es​per​tos e pre​vi​den​tes,
os pro​j e​tis​tas os equi​pa​r am com ar​m as po​de​r o​sas e al​ta​m en​te ma​no​brá​veis, ca​-
pa​zes de des​truir qual​quer ame​a ​ç a à se​gu​r an​ç a na​c i​o​nal oriun​da des​se ou da​que​-
le pla​ne​ta. Não dis​pu​nham de ogi​vas nu​c le​a ​r es, mas o ar​m a​m en​to aco​pla​do aos
sa​té​li​tes pa​r e​c ia ple​na​m en​te sa​tis​f a​tó​r io para dar com​ba​te ao “pe​da​c i​nho’’ de lixo
es​pa​c i​a l que ame​a ​ç a​va o país.
— En​tão — Mi​les con​ti​nu​a ​va —, pou​c as ho​r as an​tes do mo​m en​to pre​vis​to
para o ata​que ao “me​te​o​r i​to”, co​m e​ç a​m os a re​c e​ber fo​to​gra​f i​a s es​pan​to​sas. Não
po​dia ser um me​te​o​r i​to, por​que as fo​tos mos​tra​vam um ob​j e​to de si​m e​tria bi​la​te​-
ral per​f ei​ta. Os da​dos dos com​pu​ta​do​r es ins​ta​la​dos nos sa​té​li​tes con​f ir​m a​r am
nos​sas sus​pei​tas. As fo​tos che​ga​vam de dez em dez mi​nu​tos. Ao fim de uma
hora, ne​nhum de nós ti​nha dú​vi​das de que se tra​ta​va de uma nave es​pa​c i​a l. A
idéia de des​truí-la foi ime​di​a ​ta​m en​te des​c ar​ta​da. Os so​vi​é ​ti​c os não sa​bi​a m de
nada, por​que não es​ta​vam ras​tre​a n​do o ob​j e​to. Quan​do ti​ve​m os cer​te​za de que
ele en​tra​r ia no cam​po de ob​ser​va​ç ão dos so​vi​é ​ti​c os, co​m e​ç a​m os a emi​tir si​nais
de in​ter​f e​r ên​c ia; as​sim, não po​de​r i​a m sa​ber da “vi​si​ta” que es​tá​va​m os es​pe​r an​-
do. De iní​c io, pen​sa​m os que a nave não con​se​gui​r ia es​c a​par à atra​ç ão gra​vi​ta​c i​o​-
nal da Ter​r a e se​r ia apa​nha​da em ór​bi​ta fixa, an​tes de co​li​dir com nos​so pla​ne​ta.
Pou​c o de​pois, quan​do já não ha​via o que fa​zer, vi​m os que a nave se apro​xi​m a​va
da Ter​r a se​guin​do a tra​j e​tó​r ia de um au​tên​ti​c o me​te​o​r i​to; só que, para nos​sa sur​-
pre​sa, a que​da pa​r e​c ia con​tro​la​da. Trin​ta e oito mi​nu​tos an​tes do pou​so, tí​nha​m os
da​dos su​f i​c i​e n​tes para cal​c u​lar e pre​ver o pon​to de im​pac​to: Elko, Ne​va​da.
— Ti​ve​r am tem​po para or​de​nar o blo​queio da ro​do​via e con​vo​c ar Falkirk e
os ho​m ens da DERO, que, com cer​te​za, an​da​vam aqui por per​to... — com​ple​tou
Er​nie Block.
— Es​ta​vam em ma​no​bras em Ida​ho — Mi​les con​c or​dou. — Fe​liz​m en​te,
es​ta​vam pró​xi​m os. Ou in​f e​liz​m en​te, con​f or​m e o pon​to de vis​ta.
— Quan​to a seu pon​to de vis​ta, dou​tor Ben​nell, é des​ne​c es​sá​r io in​sis​tir. Já o
co​nhe​ç o. — Le​land Falkirk sor​r ia, en​c os​ta​do à por​ta.
Na cin​tu​r a de Mi​les, a arma pe​sa​va como um ca​nhão e pa​r e​c ia como um
es​ti​lin​gue.
Ao ver Falkirk, Gin​ger des​c o​briu que as fo​tos do Sen​ti​ne​la não lhe fa​zi​a m jus​-
ti​ç a. Era mais atra​e n​te e mais im​po​nen​te do que o jor​nal mos​tra​va. A me​tra​lha​-
do​r a, que car​r e​ga​va des​pre​o​c u​pa-da​m en​te pen​du​r a​da no om​bro, pa​r e​c ia cem
ve​zes mais ame​a ​ç a​do​r a que a de Hor​ner, apon​ta​da para o co​r a​ç ão do dr. Ben​-
nell. Gin​ger teve a im​pres​são de que aque​la pos​tu​r a, tão des​c on​tra​í​da, era qua​se
um con​vi​te para que al​guém se atre​ves​se a ata​c á-lo. Ao vê-lo en​trar, pres​sen​tiu
ou adi​vi​nhou a aura de lou​c u​r a e ter​r or que o acom​pa​nha​va.
— Onde es​tão seus sol​da​dos, co​r o​nel? — Ben​nell per​gun​tou.
— Es​ta​m os aqui... o te​nen​te Hor​ner... e eu. Não achei ne​c es​sá​r io mo​bi​li​zar
mais gen​te para dis​c u​tir um as​sun​to tão sim​ples com pes​so​a s tão sen​sa​tas.
Ben​nell fun​gou, con​f u​so e as​sus​ta​do. Gin​ger sen​tiu um ar​r e​pio.
— Por fa​vor — Falkirk con​ti​nuou, sor​r in​do li​gei​r a​m en​te —, não in​ter​r om​-
pam o que es​ta​vam fa​zen​do. O dou​tor Ben​nell terá todo o pra​zer em res​pon​der às
per​gun​tas que de​se​j em fa​zer.
— Te​nho uma per​gun​ta — de​c la​r ou Sandy. — Onde es​tão os... tri​pu​lan​tes
des​sa nave?
— Es​tão mor​tos. Eram oito... e mor​r e​r am an​tes de pou​sar.
Para Gin​ger, foi como sa​ber da mor​te de uma fa​m í​lia ami​ga.
— Mor​r e​r am... como? — Ned quis sa​ber. — Al​gu​m a do​e n​ç a?
Sem ti​r ar os olhos de Falkirk, Ben​nell res​pi​r ou fun​do e ex​pli​c ou:
— Para com​preen​der, vo​c ês pre​c i​sam sa​ber, pelo me​nos, o que des​c o​bri​-
mos so​bre eles e so​bre as ra​zões que os fi​ze​r am vir até nós. En​c on​tra​m os, no
com​pu​ta​dor da nave, uma es​pé​c ie de en​c i​c lo​pé​dia de sua cul​tu​r a, da his​tó​r ia de
sua es​pé​c ie. De​m o​r a​m os duas se​m a​nas para des​c o​brir a fita de ví​deo e mais de
um mês para en​ten​der como ope​r ar o apa​r e​lho onde es​ta​va. Des​c o​bri​m os que o
apa​r e​lho es​ta​va em bom es​ta​do de con​ser​va​ç ão, fun​c i​o​nan​do per​f ei​ta​m en​te, o
que é es​pan​to​so, con​si​de​r an​do que... Bem, va​m os por par​tes. In​te​r es​sa, por ora,
que vi​m os a fita, e en​ten​de-
mos per​f ei​ta​m en​te a men​sa​gem que nos tra​zi​a m, por​que usa​r am uma lin​-
gua​gem vi​su​a l de fan​tás​ti​c a cla​r e​za, que pra​ti​c a​m en​te eli​m i​na​va a bar​r ei​r a da
lín​gua. Al​guns ci​e n​tis​tas che​ga​r am a se emo​c i​o​nar, cho​r an​do como cri​a n​ç as, ao
per​c e​ber que se sen​ti​a m como ir​m ãos de nos​sos... con​vi​da​dos.
— Ir​m ãos... — Falkirk re​pe​tiu, com um riso irô​ni​c o e mal​do​so. Ben​nell fez
como se não ti​ves​se ou​vi​do e con​ti​nuou:
— Se​r i​a m ne​c es​sá​r i​a s mui​tas se​m a​nas para que eu pu​des​se lhes con​tar
tudo o que sa​be​m os so​bre eles. Por en​quan​to, para que en​ten​dam o que acon​te​-
ceu, bas​ta sa​ber que a es​pé​c ie de​les é mui​to iji​a is an​ti​ga que a nos​sa. Quan​do
par​ti​r am para essa vi​a ​gem, ha​vi​a m lo​c a​li​za​do já cin​c o ou​tros pla​ne​tas ha​bi​ta​dos
por se​r es in​te​li​gen​tes.
— Cin​c o! — Gin​ger ex​c la​m ou, des​lum​bra​da. — Mas... é fa​bu​lo​so! Ain​da
que to​das as ga​lá​xi​a s es​ti​ves​sem chei​a s de se​r es in​te​li​gen​tes, é qua​se im​pos​sí​vel
acre​di​tar que te​nham con​se​gui​do lo​c a​li​zar cin​c o, quan​do nós, por exem​plo, em
mi​lhões de anos, não lo​c a​li​za​m os um úni​c o pla​ne​ta ha​bi​ta​do!
— Creio que, quan​do afi​nal do​m i​na​r am a tec​no​lo​gia das vi​a ​gens in​ter​ga​-
lác​ti​c as — Ben​nell pros​se​guiu —, a ques​tão de en​c on​trar e vi​si​tar seus pla​ne​tas
ir​m ãos tor​nou-se para eles uma es​pé​c ie de re​li​gi​ã o, um de​ver mís​ti​c o. É di​f í​c il
en​ten​der​m os bem esse as​pec​to de sua cul​tu​r a. A ver​da​de é que a fita que trou​xe​-
ram fala mais de as​pec​tos do dia-a-dia que de al​tas in​da​ga​ç ões fi​lo​só​f i​c as. Mas
vá​r i​os pes​qui​sa​do​r es, além de mim, acham que as vi​a ​gens eram, para eles, uma
es​pé​c ie de ser​vi​ç o re​li​gi​o​so, como se, na bus​c a de ou​tros ti​pos de vida, ten​tas​sem
pro​var que to​dos nós es​ta​m os li​ga​dos a um úni​c o Cri​a ​dor.
— Deus?! — per​gun​tou Bren​dan, lí​vi​do. — Acha que eles te-riam vin​do
como men​sa​gei​r os de... Deus?
— Tal​vez. Não como “men​sa​gei​r os”, no sen​ti​do em que en​ten​de​m os os an​-
jos, por exem​plo. Não tra​zi​a m ne​nhu​m a men​sa​gem de ca​r á​ter re​li​gi​o​so. Te​nho a
im​pres​são de que a gran​de mis​são des​ses vi​a ​j an​tes era aju​dar a es​ta​be​le​c er con​-
ta​to en​tre as vá​r i​a s es-
tihi
pé​c i​e s que ha​bi​tam o es​pa​ç o. Fa​zer com que se en​c on​tras​sem e cri​a s​sem la​-
ços en​tre si.
— La​ç os... — Falkirk fez uma ca​r e​ta e olhou o re​ló​gio. Len​ta​m en​te, mo​-
ven​do-se com cal​m a, o ge​ne​r al apro​xi​m a​va-se
de Le​land sem que o ou​tro o vis​se. Per​c e​ben​do a ma​no​bra, e cada vez mais
an​gus​ti​a ​da com o cli​m a de cres​c en​te hos​ti​li​da​de en​tre Ben​nell, Falkirk e Al​va​r a​do
— hos​ti​li​da​de que não con​se​guia ^nten​der —, Gin​ger acer​c ou-se de Dom e en​la​-
çou-o pela cin​tu​r a.
— Eles nos trou​xe​r am um pre​sen​te — dis​se Ben​nell, che​gan​do /mais per​to
de Falkirk. — Per​ten​c em a uma es​pé​c ie an​tiqíi​ís​si​m a,
que vi​veu mi​lê​ni​os para apren​der a usar es​ses po​de​r es que, para nós, ain​da
pa​r e​c em pa​r a​nor​m ais, como a ca​pa​c i​da​de de ci​c a​tri​zar te​c i​dos ou mo​ver ob​j e​-
tos. Nos​sos “ami​gos” não ape​nas ti​ve​r am tem​po para de​sen​vol​ver tais po​de​r es,
como tam​bém es​c o​bri​r am um modo de trans​f e​r i-los a es​pé​c i​e s que ain​da não jps
co​nhe​c em.
— “Trans​f e​r i-los”? — Dom re​pe​tiu. — Como? rp- — Ain​da não des​c o​bri​-
mos. Mas não há dú​vi​da de que eles sa​bem pas​sar adi​a n​te suas ha​bi​li​da​des. O
que acon​te​c eu com vo​c ês, por exem​plo, com​pro​va isso.
— O quê?! — Jack ar​r e​ga​lou os olhos. — Está di​zen​do que Dom e Bren​dan
tam​bém po​dem pas​sar para nós... ou para qual​quer ou​tra pes​soa... os po​de​r es que
têm?!
— Já acon​te​c eu — Bren​dan res​pon​deu por Mi​les. — As duas pes​so​a s que
con​se​gui sal​var em Chi​c a​go, um po​li​c i​a l e uma garo-ti​nha, já são ca​pa​zes de fa​-
zer o que eu faço.
— Mais dois fo​c os de con​tá​gio — Falkirk res​m un​gou.
— Três, co​r o​nel. — Parker sor​r iu. — Eu tam​bém fui sal​vo por Bren​dan. Se
o se​nhor pre​c i​sar, me te​le​f o​ne. Será um pra​zer sal​vá-lo.
Falkirk ful​m i​nou-o com um olhar, e Bren​dan con​ti​nuou:
— Não acre​di​to que Dom e eu se​j a​m os ca​pa​zes de trans​m i​tir só um de
nos​sos po​de​r es. Acho que, quan​do sal​vo al​guém, trans​m i​to-lhe to​dos que re​c e​bi,
mes​m o aque​les que ain​da não des​c o​bri.
A ca​be​ç a de Gin​ger dava vol​tas, como um tor​ve​li​nho.
— Deus... Dou​tor Ben​nell, o se​nhor está di​zen​do que eles vi​e ​r am para ace​-
le​r ar nos​so pro​c es​so de evo​lu​ç ão... Para nos fa​zer quei​m ar eta​pas, de modo que
nos trans​f or​m a​r e​m os logo numa es​pé​c ie su​pe​r i​or... E isso?!
— Pa​r e​c e que sim.
— Ora, ora... — Falkirk olhou para o re​ló​gio. — Che​ga de pa​lha​ç a​da!
— Mas que pa​lha​ç a​da, co​r o​nel? — Fay e vi​r ou-se para ele. — Será que já
não bas​ta a lou​c u​r a de ima​gi​nar que não so​m os hu​m a​nos?
— Por fa​vor, não co​m e​ta o erro de pen​sar que me en​ga​na. Vo​c ês es​tão to​-
dos pos​su​í​dos por es​ses de​m ô​ni​os. Bo​ba​gem ten​tar me en​ga​nar.
— O que sig​ni​f i​c a isso? — Gin​ger per​gun​tou a Ben​nell, ven​do-o apro​xi​-
mar-se de Falkirk pela es​quer​da, com a cla​r a in​ten​ç ão de cha​m ar sua aten​ç ão
para o lado opos​to ao do ge​ne​r al Al​va​r a​do.
— Um erro — Ben​nell res​pon​deu. — Ou, tal​vez, ape​nas ou​tra amos​tra da
po​bre​za de es​pí​r i​to de nos​sa in​f e​liz es​pé​c ie, sem​pre des​c on​f i​a ​da e as​sus​ta​da fren​-
te a tudo que é di​f e​r en​te. Até eu e al​guns de nos​sos ci​e n​tis​tas mais con​f i​á ​veis
che​ga​m os a te​m er que os ex​tra​ter​r es​tres ten​tas​sem con​tro​lar nos​sas men​tes. Mas
logo com​preen​de​m os a ver​da​de, à me​di​da que ti​ve​m os aces​so às fi​tas de ví​deo
de sua en​c i​c lo​pé​dia.
— Eu não acre​di​to na “ver​da​de” des​sas fi​tas — gri​tou Le​land. — Pura pro​-
pa​gan​da. Men​ti​r as e mais men​ti​r as. Vo​c ês fo​r am con​ta​m i​na​dos.
— Não acre​di​to que eles fos​sem ca​pa​zes de men​tir — re​ba​teu Mi​les. —
No en​tan​to, su​pon​do que qui​ses​sem nos en​ga​nar, por que tra​r i​a m as fi​tas? Por
que se pre​o​c u​pa​r i​a m em ex​pli​c ar o que es​ta​vam nos dan​do de pre​sen​te, sem pe​-
dir nada em tro​c a?
— Sei que nem to​dos aqui são re​li​gi​o​sos — dis​se Bren​dan —, mas eu os
vejo como ver​da​dei​r os men​sa​gei​r os de Deus. Como an​j os...
— E de​m ais! — Falkirk sol​tou uma gar​ga​lha​da. — Você pen​sa que con​se​-
gue me fa​zer en​go​lir essa ba​bo​sei​r a de an​j os e men​sa​gei​r os de Deus... como
meu pai, aque​le des​gra​ç a​do, fa​zia? Es​que-
ça! Nao acre​di​to em an​j os... Acho que nem vo​c ês acre​di​ta​r i​a m que eles são
an​j os, se os vis​sem... São mons​tros... Não têm ca​be​ç a... pa​r e​c em ver​m es... no​-
jen​tos, vis​guen​tos... São mons​tros!
— Ver​m es? — Bren​dan vi​r ou-se para Mi​les. — O que ele quer di​zer com
isso?
— Nos​sos vi​si​tan​tes, na ver​da​de, não se pa​r e​c em co​nos​c o — ex​pli​c ou o
dou​tor. São bí​pe​des, como nós, e têm dois bra​ç os e duas mãos, mas cada uma
com seis de​dos. Na ver​da​de, de iní​c io, tam​bém me pa​r e​c e​r am re​pul​si​vos. De​-
pois, aos pou​c os, fui des​c o​brin​do que, lá a seu modo, eram mui​to bo​ni​tos.
— Só po​dem pa​r e​c er bo​ni​tos aos olhos de seus se​m e​lhan​tes! — O co​r o​nel
es​pu​m a​va de fú​r ia. — Vo​c ês são to​dos iguais! Ben-nell aca​ba de pro​var que te​-
nho ra​zão... vo​c ês es​tão po​dres, con​ta​m i​na​dos, são mons​tros como eles, ver​m es...
Es​que​c en​do o medo e a me​tra​lha​do​r a, Gin​ger sal​tou à fren​te de Falkirk.
— Seu idi​o​ta! — gri​tou. — Que im​por​tân​c ia tem se eles não são iguais a
você e a mim?! O que im​por​ta é ape​nas o que são por den​tro, na alma, no co​r a​-
ção, seja lá onde for! E eles vi​e ​r am com o úni​c o ob​j e​ti​vo de nos aju​dar. Os se​r es
hu​m a​nos de bom co​r a​ç ão têm mais coi​sas em co​m um com eles do que di​f e​r en​-
ças. Meu pai di​zia que in​te​li​gên​c ia, co​r a​gem, amor, ami​za​de, com​pai​xão e em​-
pa​tia são as gran​des qua​li​da​des que di​f e​r en​c i​a m o ser hu​m a​no. Mas só a in​te​li​-
gên​c ia não bas​ta para nos dis​tin​guir de um ma​c a​c o... ou de um ver​m e! Um ver​-
me não te​r ia co​r a​gem para se aven​tu​r ar pelo es​pa​ç o, rumo ao des​c o​nhe​c i​do,
como eles fi​ze​r am. Que ver​m e ar​r is​c a​r ia a pró​pria vida para nos aju​dar a
ser mais fe​li​zes?
Cada vez mais exal​ta​da, sen​tiu que não fa​la​va ape​nas aque​le co​r o​nel ri​dí​c u​-
lo, cheio de or​gu​lho e vai​da​de, mas à pró​pria hu​m a​ni​da​de, in​c a​paz de ver o fu​tu​-
ro, de so​nhar, de crer e lu​tar por dias me​lho​r es. A hu​m a​ni​da​de está con​f or​m a​da
com a pró​pria mi​sé​r ia, por​que é uma mi​sé​r ia co​nhe​c i​da, que já não as​sus​ta
nem in​dig​na, que faz par​te da es​sên​c ia do dia-a-dia.
•— Olhe para mim, co​r o​nel! Está ven​do? Sou ju​dia. Há mui​ta
gen​te, por aí, ca​paz de achar que eu tam​bém não sou hu​ma​na, que mi​nha
raça gera mons​tros, que ma​ta​m os e co​m e​m os cri​a n​c i​nhas! Que di​f e​r en​ç a exis​te
en​tre o anti-se​m i​tis​m o pa​r a​nói​c o de tan​tos e sua lou​c u​r a, co​r o​nel? Por fa​vor,
pen​se um pou​c o... Dei​xe-nos sair em paz, sem ti​r os, sem mor​tes... Po​de​m os aju​-
dá-lo a reen​c on​trar a paz... Bas​ta que nos dei​xe aju​dá-lo. Por fa​vor!
— Mag​ní​f i​c o dis​c ur​so, dou​to​r a... — Falkirk ba​teu pal​m as que eco​a ​r am,
agou​r en​tas, en​tre as pa​r e​des de pe​dra. Sem pa​r ar de fa​lar ou de olhar para Gin​-
ger, apon​tou a me​tra​lha​do​r a para o pei​to de Al​va​r a​do.
— Pára onde está, ge​ne​r al. Não to​que na arma. Não te​nho pla​nos de mor​-
rer com um tiro... Vou es​pe​r ar pelo gran​de fogo...
— Gran​de fogo? — Ben​nell vi​r ou-se para ele.
— O gran​de fogo que vai aca​bar co​nos​c o e li​vrar o mun​do da des​gra​ç a
que o se​nhor es​c on​de aqui.
— Bob! — Ben​nell apro​xi​m ou-se de Al​va​r a​do. — Esse ma​lu​c o deve ter
ati​va​do as bom​bas...
— Duas bom​bas... — Falkirk riu. — Uma está aqui no hall. A ou​tra está no
an​dar de bai​xo. Ati​va​das e li​ga​das ao ti​mer. — Con​sul​tou o re​ló​gio. — Fal​tam três
mi​nu​tos... Não há tem​po nem para vo​c ês ten​ta​r em me pas​sar seus mi​c ró​bi​os!
Quan​to tem​po de​m o​r a para ocor​r er con​tá​gio?
Gin​ger olha​va para Fí​or​ner, ten​tan​do des​c o​brir o que fa​zer, quan​do viu a me​-
tra​lha​do​r a voar de suas mãos... li​vre, leve... pa​r ar no ar por um ins​tan​te e aco​m o​-
dar-se, tran​qüi​la, nas mãos de Jack. Ao lado, a me​tra​lha​do​r a de Falkirk sal​ta​va
para a mão de Er​nie, que a re​c e​beu em ple​no voo.
— Foi você, Dom? — Gin​ger per​gun​tou-lhe.
— Acho que sim... — Ele sor​r iu, ain​da as​sus​ta​do. — Mas nem sa​bia que
po​dia fa​zer isso, mais ou me​nos como Bren​dan, quan​do re​a ​li​za suas cu​r as.
— Mas de que adi​a n​ta isso? — Ben​nell apro​xi​m ou-se. — Falkirk dis​se que
as bom​bas es​tão aci​o​na​das para ex​plo​dir em três mi​nu​tos.
Dom cor​r eu para a por​ta de ma​dei​r a, gri​tan​do:
— Bren​dan! Cui​de da bom​ba que está aqui. Eu me en​c ar​r e​go da que está
no an​dar de bai​xo.
— É in​ú​til... — Al​va​r a​do sus​pi​r ou.
Bren​dan ajo​e ​lhou-se ao lado da bom​ba e es​tre​m e​c eu ao ver o pe​que​no cro​-
nô​m e​tro: fal​ta​vam no​ven​ta e três se​gun​dos para a ex​plo​são.
Não sa​bia o que fa​zer. Cu​r a​r a três pes​so​a s, é ver​da​de; fi​ze​r a vo​a ​r em sa​lei​r os
e vi​dros de mo​lho; até cri​a ​r a luz com o po​der de suas mãos. Mas os sa​lei​r os e vi​-
dros de mo​lho es​c a​pa​r am-lhe ao con​tro​le e, de um mo​m en​to para o ou​tro, pas​sa​-
ram a ame​a ​ç ar todo mun​do no res​tau​r an​te. Sa​bia que, se fi​zes​se um mo​vi​m en​-
to em fal​so com o de​to​na​dor da bom​ba, de nada va​le​r i​a m seus po​bres de su​per-
ho​m em.
Oi​ten​ta e seis se​gun​dos.
To​dos os ou​tros dei​xa​r am a ca​ver​na e reu​ni​r am-se na an​tecâ-mara. Falkirk e
Hor​ner con​ti​nu​a ​vam sob a mira das me​tra​lha​do​r as — o que, para os dois, não fa​-
zia a me​nor di​f e​r en​ç a, pois con​f i​a ​vam ple​na​m en​te na efi​c á​c ia da bom​ba.
Se​ten​ta e um se​gun​dos.
— O que acon​te​c e​r á se eu fi​zer ex​plo​dir o de​to​na​dor? — Bren​dan per​gun​-
tou para Al​va​r a​do.
— Nem ten​te. A bom​ba é pro​gra​m a​da para ex​plo​dir au​to​m a​ti​c a​m en​te as​-
sim que al​guém to​c ar no de​to​na​dor.
Ses​sen​ta e três se​gun​dos.
Fay e ajo​e ​lhou-se ao lado de Bren​dan e su​ge​r iu:
— Faça o de​to​na​dor se​pa​r ar-se da bom​ba. Como Dom fez para de​sar​m ar
os dois sol​da​dos.
Bren​dan fi​xou os olhos no pe​que​no re​ló​gio que não pa​r a​va de gi​r ar e ten​tou
ima​gi​nar que o de​to​na​dor pu​la​va para lon​ge da bom​ba. Nada!
Qua​r en​ta e qua​tro se​gun​dos.
Es​m ur​r an​do as pa​r e​des do ele​va​dor para que an​das​se mais rá​pi​do, Dom cor​-
reu para o hall do ter​c ei​r o piso tão logo a por​ta se abriu o su​f i​c i​e n​te para lhe dar
pas​sa​gem. Gin​ger se​guiu-o.
Ele ajo​e ​lhou-se ao lado da bom​ba, o co​r a​ç ão pu​lan​do na gar​gan​ta.
— Je​sus! — ex​c la​m ou.
Qua​r en​ta e dois se​gun​dos.
— Você vai con​se​guir. — Gin​ger nao ti​r a​va os olhos dos pon​tei​r os. — Você
tem uma ta​r e​f a gran​di​o​sa.
— Lá vai...
— Eu te amo.
— Eu tam​bém te amo.
Sem​pre sem ti​r ar os olhos do de​to​na​dor, Dom er​gueu as mãos e viu os anéis
apa​r e​c e​r em, um em cada pal​m a. Bren​dan su​a ​va frio. Trin​ta e nove se​gun​dos.
Já sen​tia os anéis nas pal​m as da mão, sa​bia que o po​der des​per​ta​va em seu
cor​po, mas não con​c en​tra​va-se na ur​gên​c ia da ta​r e​f a. Quan​to mais pen​sa​va, me​-
nos con​se​guia con​tro​lar a ener​gia que acor​da​va.
Trin​ta e qua​tro se​gun​dos.
— As​sim não dá... — Parker apro​xi​m ou-se. — Você está ten​tan​do uma via
ra​c i​o​nal, tal​vez por​que é je​su​í​ta, e os je​su​í​tas são vi​c i​a ​dos em pen​sar. Dei​xe-me
ten​tar por ou​tro ca​m i​nho, mais emo​c i​o​nal. Eu sou ar​tis​ta... Dei​xe-me tra​tar dis​so
a meu modo. — Apon​tou um lon​go dedo ira​do para o de​to​na​dor e ber​r ou: —
Seu fi​lho de uma puta, des​gra​ç a​do, ve​a ​do de mer​da... Caia fora daí.../a!
Com um es​ta​li​do de fios re​ben​ta​dos, o de​to​na​dor sim​ples​m en​te sal​tou da
bom​ba e ani​nhou-se nos bra​ç os de Parker.
— Os pon​tei​r os ain​da es​tão cor​r en​do! — Bren​dan ex​c la​m ou, per​ple​xo.
— Mas o de​to​na​dor está aqui... — Parker riu.
— Há uma car​ga de ex​plo​si​vo con​ven​c i​o​nal no pró​prio de​to​na​dor. — Al​va​-
ra​do es​ten​deu a mão, es​pe​r an​do que o pin​tor o jo​gas​se para ele.
O ou​tro de​to​na​dor pu​lou nas mãos de Dom. Os olhos fi​xos nos pon​tei​r os, que
con​ti​nu​a ​vam a cor​r er, per​c e​beu que, de al​gum modo, era pre​c i​so fazê-los pa​r ar.
En​tão, sem pen​sar mais, sim​ples​m en​te de​se​jou que pa​r as​sem. Os pon​tei​r os fi​c a​-
ram como que con-
ge​la​dos, e no vi​sor di​gi​tal os al​ga​r is​m os imo​bi​li​za​r am-se de re​pen​te: três se​-
gun​dos!
Ain​da mal acos​tu​m a​do ao pa​pel de má​gi​c o, Parker as​sus​tou-se com a in​f or​-
ma​ç ão de Al​va​r a​do. Mas, co​e ​r en​te com o pa​pel de he​r ói em mo​m en​tos de cri​se
qua​se in​c on​tor​ná​vel, gri​tou que to​dos se dei​tas​sem e pro​te​ges​sem a ca​be​ç a. En​-
tão jo​gou o de​to​na-dor para lon​ge e ati​r ou-se de cara no chão. O apa​r e​lho ro​lou
como uma gra​na​da e pa​r ou a cen​tí​m e​tros da pa​r e​de do fun​do.
Dom es​ta​va bei​j an​do Gin​ger quan​do am​bos ou​vi​r am a ex​plo​são no an​dar de
cima. Es​tre​m e​c e​r am. Pre​c i​sa​r am de um se​gun​do para per​c e​ber que, se fos​se a
bom​ba, o teto já te​r ia de​sa​ba​do, e eles es​ta​r i​a m cain​do ain​da mais fun​do, jun​to
com to​ne​la​das de ro​c ha.
— Foi o de​to​na​dor — Gin​ger dis​se.
— Va​m os ver se há al​guém fe​r i​do.
O ele​va​dor ar​r as​ta​va-se para cima. Na an​tecâ​m a​r a, fo​r am re​c e​bi​dos por
um ver​da​dei​r o exér​c i​to de sol​da​dos ar​m a​dos até os den​tes, pron​tos para en​trar
em com​ba​te. Dom pe​gou a mão de Gin​ger e, sem ver nem pen​sar, cor​r eu para a
sala da nave. Pri​m ei​r o viu Fay e. De​pois Sandy e Ned. Bren​dan, vivo, in​tei​r o, Jor​-
ja, Ma​r eie, Jack.
Parker cor​r eu para os dois e en​vol​veu-os num enor​m e abra​ç o!
— Você per​deu meu show, ami​go! Fui fan​tás​ti​c o! Se ti​ves​sem me con​vo​-
ca​do, jun​to com Au​die Murphy, te​r í​a ​m os aca​ba​do com a Se​gun​da Guer​r a em
me​nos de seis me​ses!
— Acho que es​tou co​m e​ç an​do a des​c o​brir por que Dom gos​ta tan​to de
você... — Gin​ger riu.
— Por​que con​vi​ve co​m i​go há mui​to tem​po... “Co​nhe​c er Parker é amá-lo”!
De re​pen​te, um gri​to as​sus​ta​do cha​m ou-lhes a aten​ç ão. Apro​vei​tan​do-se do
mo​m en​to em que a eu​f o​r ia os tor​na​r a des​c ui​da​dos, Falkirk fu​giu do al​c an​c e das
ar​m as de Jack e Er​nie, e ti​r ou uma pis​to​la de um dos sol​da​dos.
— Pelo amor de Deus, ho​m em... — Jack gri​tou. — Está tudo aca​ba​do. Já
não há pe​r i​go, dro​ga. Es​que​ç a es​sas lou​c u​r as de mons​tros e...
— Sei, sei... — Falkirk sor​r iu irô​ni​c o. Não per​de​r ia sua mi​se​r á​vel guer​r a par​-
ti​c u​lar no ins​tan​te em que che​ga​r a tão per​to de uma vi​tó​r ia con​sa​gra​do​r a. — Está
tudo aca​ba​do... mas vo​c ês não vão me apa​nhar em suas ar​m a​di​lhas. Não vão me
pe​gar!
An​tes que al​guém pu​des​se pen​sar em ti​r ar-lhe a arma das mãos, me​teu o
cano da pis​to​la na boca e pres​si​o​nou o ga​ti​lho.
Com um gri​to de hor​r or, Gin​ger vi​r ou-se para não ver, Dom fe​c hou os olhos.
Não era ape​nas a so​lu​ç ão vi​o​len​ta que os hor​r o​r i​za​va. Mui​to mais do que isso, as​-
sus​ta​va-os a es​tu​pi​dez de uma mor​te, mais uma, no mo​m en​to em que a hu​m a​ni​-
da​de es​ta​va tão pró​xi​m a de ga​nhar, para sem​pre, a trans​c en​dên​c ia.
3. TRANS​CEN​DÊN​CIA
En​quan​to os sol​da​dos de Thun​der Hill des​lum​bra​vam-se com a nave, que
mui​tos de​les ja​m ais ha​vi​a m vis​to, Gin​ger, Dom e os ou​tros, acom​pa​nha​dos por
Mi​les Ben​nell, su​bi​r am a ram​pa de aces​so.
O in​te​r i​or da nave era sim​ples como a fu​se​la​gem, e con​f or​m e Mi​les ex​pli​-
cou, a es​pé​c ie a que per​ten​c i​a m os vi​si​tan​tes ha​vi​a m su​pe​r a​do a con​c ep​ç ão de
equi​pa​m en​tos ci​e n​tí​f i​c os tal como nós os co​nhe​c e​m os. Com cer​te​za, te​r i​a m su​-
pe​r a​do até a pró​pria fí​si​c a que es​tu​da​m os.
Logo à en​tra​da vi​r am uma gran​de sala, qua​se com​ple​ta​m en​te cin​zen​ta, sem
nada de es​pe​c i​a l. Não en​c on​tra​r am ves​tí​gio da luz dou​r a​da que bri​lha​va ali na
noi​te de 6 de ju​lho e que Bren​dan vol​ta​r a a ver em so​nhos. Ape​nas um fio es​ten​-
dia-se de pa​r e​de a pa​r e​de, com lâm​pa​das co​m uns, ins​ta​la​do pe​los ci​e n​tis​tas para
po​de​r em tra​ba​lhar.
Ain​da as​sim, a nave era quen​te, hos​pi​ta​lei​r a e má​gi​c a. Gin​ger lem​brou-se do
es​c ri​tó​r io do pai, nos fun​dos da pri​m ei​r a jo​a ​lhe-ria que com​pra​r a no Bro​okly n,
onde ins​ta​lou seu quar​tel-ge​ne​r al du​r an​te anos. O san​tu​á ​r io ti​nha de​c o​r a​ç ão co​-
mum, qua​se vul-
gar. Mas Gin​ger acha​va aque​la sala a mais fan​tás​ti​c a e má​gi​c a que po​dia ha​-
ver, por​que era onde seu pai tra​ba​lha​va, lia, sen​ta​va-se para pen​sar a con​tar-lhe
his​tó​r i​a s: aven​tu​r as de mis​té​r io, con​tos de fada, com bru​xas e gno​m os. Ao ouvi-
lo, Gin​ger es​que​c ia as pa​r e​des nuas e os mó​veis ve​lhos e sol​ta​va a fan​ta​sia; às
ve​zes ia para Lon​dres, aju​dar Sher​lock Hol​m es em suas in​ves​ti​ga​ç ões; às ve​zes ia
para mui​to mais lon​ge, gui​a ​da pe​las mãos de Ray Brad-bury. O es​c ri​tó​r io do pai
era como uma gru​ta en​c an​ta​da. A nave, em​bo​r a mui​to di​f e​r en​te, ti​nha a mes​m a
aura de des​lum​bra​m en​to. Pe​las pa​r e​des nuas, aqui como lá, cor​r i​a m in​f in​dá​veis
rios de ma​r a​vi​lhas e mis​té​r i​os.
Jun​to às pa​r e​des, en​f i​lei​r a​vam-se qua​tro ur​nas bran​c o-azu​la​das, gran​des o
bas​tan​te para aco​m o​dar se​r es adul​tos, fa​bri​c a​das com ma​te​r i​a l des​c o​nhe​c i​do,
trans​pa​r en​te como acrí​li​c o. Ha​vi​a m ser-
ido para man​ter os vi​a ​j an​tes em es​ta​do de se​m i​c on​ge​la​m en​to du-nte a vi​a ​-
gem, de modo que en​ve​lhe​c i​a m ape​nas um ano ter​r es​tre a cada cin​qüen​ta anos,
con​f or​m e Ben​nell ex​pli​c a​va. Pro​va​vel​m en​te, vi​a ​j a​r am sem acor​dar, en​tre​gan​do
a di​r e​ç ão da nave a apa​r e​lhos ca​pa​zes de in​di​c ar a exis​tên​c ia de vida in​te​li​gen​te
nos pla​ne​tas pe​los quais pas​sa​vam. Atra​ves​sa​r am cen​te​nas de mi​lha​r es de sis​te​-
mas so​la​r es tão gran​des quan​to o nos​so.
A tam​pa de cada urna apre​sen​ta​va uma mar​c a cir​c u​lar, idên​ti​c a, em for​m a
e ta​m a​nho, aos anéis que apa​r e​c i​a m nas pal​m as das mãos de Dom e Bren​dan.
— O se​nhor dis​se que eles já che​ga​r am mor​tos — Ned lem​brou —, mas
não con​tou como mor​r e​r am.
— Mor​r e​r am de ve​lhos. — Ben​nell ba​lan​ç ou a ca​be​ç a. — A nave con​ti​nou
a fun​c i​o​nar gui​a ​da ape​nas por apa​r e​lhos, até al​guns mi​nu​tos de​pois de pou​sar na
ro​do​via. Os tri​pu​lan​tes já de​vi​a m es​tar mor​tos há mui​to tem​po.
— En​ve​lhe​c en​do um ano a cada cin​qüen​ta?! — Fay e ad​m i​r ou-se.
— A es​pé​c ie é di​f e​r en​te da nos​sa. Pelo que con​se​gui​m os de​du​zir, vi​vi​a m,
em mé​dia, cer​c a de qui​nhen​tos anos.
Com Ma​r eie no colo, Jack apro​xi​m ou-se de Ben​nell para co​m en​tar:
— Deus... Se um ano na Ter​r a equi​va​le a cin​qüen​ta anos, eles es​ta​vam vi​a ​-
jan​do há pelo me​nos vin​te e cin​c o mi​lê​ni​os, para mor​r er de ve​lhos!
— Mui​to mais — cor​r i​giu Ben​nell. — Ape​sar de todo o avan​ç o tec​no​ló​gi​c o,
as in​f or​m a​ç ões que trou​xe​r am pro​vam que nun​c a con​se​gui​r am su​pe​r ar a ve​lo​c i​-
da​de da luz, cer​c a de tre​zen​tos mil qui​lô​m e​tros por se​gun​do. Na ver​da​de, a nave
vi​a ​j a​va a uma ve​lo​c i​da​de li​gei​r a​m en​te in​f e​r i​or, até pe​que​na em re​la​ç ão a dis​-
tân​c ia que ti​nha a per​c or​r er. Nos​sa ga​lá​xia, que é vi​zi​nha à de​les, tem oi​ten​ta mil
anos-luz de diâ​m e​tro, o equi​va​len​te e tre​zen​tos e oi​ten​ta e qua​tro tri​lhões de qui​lô​-
me​tros. O au​di​o​vi​su​a l que tra​zi​a m in​di​c a​va a lo​c a​li​za​ç ão exa​ta do pla​ne​ta de ori​-
gem: trin​ta e um mil anos-luz do li​m i​te da sua ga​lá​xia. Vi​a ​j an​do a uma ve​lo​c i​da​-
de bem pró​xi​m a à da luz, é fá​c il cal​c u​lar e des​c o​brir que sa​í​r am de casa há pou​-
co me​nos de trin​ta e dois mi​lê​ni​os. Mes​m o com en​ve​lhe​c i​m en​to mui​to len​to, por
cau​sa da hi​ber​na​ç ão con​tro​la​da, de​vem ter mor​r i​do há, no mí​ni​m o, dez mi​lê​ni​os.
Gin​ger tre​m ia dos pés à ca​be​ç a. Com a mão trê​m u​la, to​c ou a urna mais pró​-
xi​m a, sen​tin​do que es​ta​va di​a n​te de um mo​nu​m en​to à com​pai​xão, ao amor, à
em​pa​tia; um mo​nu​m en​to que ul​tra​pas​sa​va o en​ten​di​m en​to hu​m a​no e pro​va​va
uma ca​pa​c i​da​de de sa​c ri​f í​c io ao mes​m o tem​po co​m o​ven​te e as​sus​ta​do​r a. Ha​vi​-
am sa​í​do de casa cer​tos de que ja​m ais vol​ta​r i​a m, ani​m a​dos ape​nas pela es​pe​r an​-
ça de aju​dar ou​tra es​pé​c ie mui​to dis​tan​te.
— Mor​r e​r am a vin​te e cin​c o mil anos-luz de dis​tân​c ia de seu pla​ne​ta — Ben​-
nell con​ti​nu​a ​va, em voz bai​xa e re​ve​r en​te, como se es​ti​ves​se re​zan​do ou fa​lan​do
numa igre​j a. — Já es​ta​vam a ca​m i​nho e mor​tos quan​do a hu​m a​ni​da​de ain​da vi​-
via em ca​ver​nas e co​m e​ç a​va a apren​der a cul​ti​var a ter​r a. Quan​do mor​r e​r am,
ha​via ape​nas cin​c o mi​lhões de ha​bi​tan​tes em nos​so pla​ne​ta... me​nos que a me​ta​-
de da atu​a l po​pu​la​ç ão de Ma​nhat​tan. Du​r an​te o úl​ti​m o mi​lê​nio, des​de que o ho​-
mem ain​da es​pan​ta​va lo​bos nas es​te​pes até cons​truir suas hor​r í​veis bom​bas ca​pa​-
zes de aca​bar com a vida da face do glo​bo, es​ses oito aven​tu​r ei​r os in​ven​c í​veis
cor​r i​a m para nós, cor​tan​do a vas​ti​dão do es​pa​ç o de​ser​to.
Bren​dan to​c a​va ou​tra urna e cho​r a​va. Pen​sa​va em tudo que dei​xa​r a de lado
para de​di​c ar-se ao sa​c er​dó​c io: fa​m í​lia, fi​lhos, pra​ze​r es mun​da​nos. E, de re​pen​te,
des​c o​bria que seu sa​c ri​f í​c io era nada, com​pa​r a​do ao que Deus exi​gi​r a da​que​les
se​r es.
— Mas para en​c on​trar ou​tros cin​c o pla​ne​tas ha​bi​ta​dos, a dis​tân​c i​a s tão...
ina​c re​di​tá​veis — dis​se Parker, pro​c u​r an​do as pa​la​vras —, com pos​si​bi​li​da​des tão
re​m o​tas de che​ga​r em a seu des​ti​no, eles te​r i​a m que lan​ç ar ao es​pa​ç o mui​tas na​-
ves iguais a essa...
— Ima​gi​na​m os que lan​ç a​vam cen​te​nas por ano, tal​vez mi​lha​r es — Ben​nell
ex​pli​c ou. — E isso mais de cem mi​lê​ni​os an​tes que esta nave par​tis​se. Como eu
lhes dis​se, as vi​a ​gens têm um alto sig​ni​f i​c a​do para eles, tan​to cul​tu​r al quan​to... re​-
li​gi​o​so. As ou​tras cin​c o ra​ç as ou es​pé​c i​e s que lo​c a​li​za​r am es​ta​vam num raio de
quin​ze mil anos-luz do mun​do de​les. E não po​de​m os es​que​c er que, de​pois de lo​-
ca​li​zar um pla​ne​ta ha​bi​ta​do, a no​tí​c ia ain​da de​m o​r a quin​ze mi​lê​ni​os para re​tor​nar
ao pla​ne​ta de​les. Acho que ago​r a vo​c ês co​m e​ç am a en​ten​der o sen​ti​do e a pro​-
fun​di​da​de do com​pro​m is​so, não é?
— Al​gu​m as na​ves tal​vez nem vol​tem... nem che​guem a lu​gar ne​nhum —
Er​nie pen​sou em voz alta. — Fi​c am aí pelo es​pa​ç o, para sem​pre, mes​m o de​pois
que a tri​pu​la​ç ão está mor​ta há mi​lê​ni​os.
— Cer​to... — Ben​nell con​c or​dou.
— Mas mes​m o as​sim eles con​ti​nu​a m... — dis​se Dom.
— Mes​m o as​sim, eles con​ti​nu​a m.
— Nun​c a che​ga​r e​m os a tan​to! — Ned bai​xou a ca​be​ç a e abra​ç ou Sandy.
— Tal​vez che​gue​m os — Ben​nell sor​r iu. — Cla​r o que pre​c i​sa​r e​m os de tem​-
po para ama​du​r e​c er... mil anos, um pou​c o mais, tal​vez. De​pois, ou​tros cem anos
para de​sen​vol​ver, em ter​m os de tec​no​lo​gia, as in​f or​m a​ç ões que nos trou​xe​r am.
En​tão po​de​r e​m os cons​truir e lan​ç ar uma nave com tri​pu​la​ç ão hu​m a​na, em es​ta​-
do de hi​ber​na​ç ão. Tal​vez até lá te​nha​m os de​sen​vol​vi​do al​gum pro​c es​so de blo​-
que​a r o en​ve​lhe​c i​m en​to. Nós já não es​ta​r e​m os aqui para ver, nem nos​sos ne​tos,
mas os ta​ta​r a​ne​tos dos ta​ta​r a​ne​tos dos
ta​ta​r a​ne​tos de nos​sos ta​ta​r a​ne​tos tal​vez es​te​j am: trin​ta e dois mi​lê​ni​os de​pois
da par​ti​da, nos​sos des​c en​den​tes dis​tan​tes re​tri​bui​r ão essa vi​si​ta, res​pon​den​do ao
con​vi​te que nos​sos “ami​gos” con​se​gui​r am nos en​tre​gar, em mãos, mes​m o de​pois
de mor​tos.
To​dos fi​c a​r am em si​lên​c io, ten​tan​do vi​su​a ​li​zar a imen​si​da​de do fu​tu​r o que
Ben​nell des​c re​ve​r a.
— Pa​r e​c e que es​ta​m os pen​san​do como Deus... Pen​san​do e so​nhan​do como
se fôs​se​m os Deus, e não ho​m ens — Bren​dan mur​m u​r ou.
— E, di​a n​te dis​so, quem liga para a de​c i​são do cam​pe​o​na​to, no jogo de do​-
min​go? — Parker riu.
Dom to​c a​va as ur​nas com a pon​ta dos de​dos, an​dan​do à vol​ta da ca​bi​ne.
— Só seis tri​pu​lan​tes es​ta​vam mor​tos quan​do che​ga​r am — dis​se. — Lem​-
bro que duas des​sas ur​nas pa​r e​c i​a m nos cha​m ar. Eram aque​las... — Apon​tou. —
Con​ti​nham se​r es vi​vos; mui​to fra​c os, é ver​da​de, mas vi​vos.
— Sim... — Bren​dan con​c or​dou, as lá​gri​m as cor​r en​do-lhe pelo ros​to. —
Ha​via luz nes​tas duas ur​nas, uma luz que pa​r e​c ia nos hip​no​ti​zar. Fui con​du​zi​do até
aqui e como que obri​ga​do a co​lo​c ar as mãos so​bre este anel, pri​m ei​r o a di​r ei​ta,
de​pois a es​quer​da. Quan​do obe​de​c i... sen​ti que ha​via vida na urna, um fio de
vida, lu​tan​do para não se per​der an​tes de nos pas​sar os... po​de​r es. Do lado de
den​tro da urna, ele tam​bém to​c ou o anel, pri​m ei​r o com uma mão, de​pois com a
ou​tra... e en​tão, afi​nal, cum​priu a mis​são que o trou​xe​r a. Mor​r eu ins​tan​tes de​pois.
Não en​ten​di o que es​ta​va acon​te​c en​do, nem o que sen​tia... ig​no​r a​va os po​de​r es...
Pou​c o de​pois apa​r e​c e​r am os guar​das e nos le​va​r am.
— Vi​vos! — Ben​nell mal con​se​guia res​pi​r ar. — Sim... é pos​sí​vel! Dois cor​-
pos es​ta​vam re​du​zi​dos a pó... ou​tros dois em adi​a n​ta​do es​ta​do de de​c om​po​si​ç ão,
tal​vez por​que as câ​m a​r as de hi​ber​na​ç ão des​li​ga​r am-se au​to​m a​ti​c a​m en​te no ins​-
tan​te em que mor​r e​r am... Dois es​ta​vam ra, 'ci​m en​te con​ser​va​dos, e dois... es​ta​-
vam per​f ei​tos. Pa​r e​c ia que sim​ples​m en​te dor​m i​a m. Mas não ima​gi​na​m os que...
— Lem​bro-me de tudo — afir​m ou Dom. — Sem dú​vi​da, o meu tam​bém es​-
ta​va vivo e, qua​se mor​r en​do, me pas​sou os po​de​r es. Cla​r o que eu es​pe​r a​va ser
in​ter​r o​ga​do, ter tem​po para pen​sar so​bre o que acon​te​c e​r a e para pôr as idéi​a s
em or​dem. Mas o Go​ver​no es​ta​va tão afli​to, ten​tan​do pro​te​ger a po​pu​la​ç ão do
“con​ta​to com uma cul​tu​r a mais adi​a n​ta​da”, como di​zia o tal re​la​tó​r io... Tal​vez, na
ver​da​de, ti​ves​se ape​nas medo do des​c o​nhe​c i​do... Nun​c a tive a opor​tu​ni​da​de de
con​tar isso a nin​guém.
Gin​ger olhou, um por um, os ros​tos dos ami​gos do Mo​tel Tran-qüi​li​da​de, ven​-
do em cada olhar a pro​m es​sa que se cum​pri​r ia: nas​c i​a m os no​vos tem​pos. O gru​-
po ali pre​sen​te te​r ia um pa​pel im​por​tan​te na cons​tru​ç ão do fu​tu​r o, es​ta​r i​a m uni​-
dos para sem​pre... Todo ho​m em re​a ​pren​de​r ía a amar ao pró​xi​m o como a
si mes​m o. Nin​guém mais se sen​ti​r ia es​tran​gei​r o em ne​nhum can​to do pla​ne​ta. Já
não ha​ve​r ia des​c o​nhe​c i​dos onde exis​tis​sem pelo me​nos dois ho​m ens, um ho​m em
e uma mu​lher, duas mu​lhe​r es, duas cri​a n​ç as. Gin​ger olhou para as pró​pri​a s
mãos, pe​que​nas e há​beis mãos de ci​r ur​giã. Tal​vez es​ti​ves​sem per​di​dos os anos e
anos de es​tu​do e prá​ti​c a.
Que im​por​ta​va? O mun​do já não pre​c i​sa​r ia de mé​di​c os, hos​pi​tais, ci​r ur​gi​a s.
Logo, quan​do Dom lhe trans​m i​tis​se os po​de​r es, cu​r a​r ia com um sim​ples to​que, e,
ao cu​r ar, pas​sa​r ia adi​a n​te os mes​m os dons. A es​ti​m a​ti​va de vida da es​pé​c ie cres​-
ce​r ia mui​to... ha​ve​r ia gen​te com du​zen​tos, tre​zen​tos, qui​nhen​tos anos de ida​-
de. Pra​ti​c a​m en​te já não ha​ve​r ia mor​te, ex​c e​to tal​vez nos ca​sos de aci​den​tes. Ne​-
nhum Ja​c ob e ne​nhu​m a Anna se​r i​a m ar​r an​c a​dos de per​to dos fi​lhos que ama​-
vam. As Jenny te​r i​a m vida lon​ga, para par​ti​lhar a ve​lhi​c e sau​dá​vel e útil dos ma​-
ri​dos. Ba​ru​c h-ha-Shem... nun​c a mais!

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