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Notas sobre a Função do Contrato na História

Bruno Torquato de Oliveira Naves

Mestre e Doutorando em Direito Privado pela PUC Minas, Professor de Direito Civil e História do
Direito na PUC Minas, unidades Coração Eucarístico, Barreiro e São Gabriel, Coordenador do Curso
de Especialização em Direito Civil da PUC Minas, Coordenador do Curso de Graduação em Direito da
PUC Minas, unidade Barreiro.

1. Introdução à Teoria dos Contratos

Tentaremos, por este breve ensaio, discorrer sobre a evolução do


tratamento jurídico do contrato, um dos mais relevantes institutos jurídicos da
sociedade capitalista.

O ordenamento brasileiro, todavia, não tratou de conceituar o instituto do


contrato. Sua definição é construção doutrinária.

Vivemos no mundo dos contratos. Por dia, realizamos vários contratos, ao


comprar um produto na padaria, na utilização do transporte público ou na execução
de nosso trabalho.

Sem adentrarmos nas controvérsias que cercam o problema da


conceituação do contrato, podemos defini-lo como o acordo de vontades, celebrado
entre duas ou mais pessoas, com objeto economicamente apreciável, que visa criar,
resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos e obrigações.

Por este conceito, podemos perceber que o distrato e o adendo contratual


também têm natureza jurídica contratual, pois aquele pretende extinguir os contratos
e este objetiva modificá-los.

2. Evolução Histórica do Contrato

O direito primitivo já havia estabelecido costumes que regulavam


contratos. Uma tribo ou clã celebrava um acordo com outra tribo, para fornecimento
de algum produto ou cessão de um direito. Seriam os chefes das tribos ou os
comissários por eles designados que pactuavam em nome de toda a tribo. Assim,
em caso de descumprimento, todo o grupo-credor poderia exigir o cumprimento do
grupo inadimplente.

Tratando-se de leis escritas, será na antiga Mesopotâmia que nos


deparamos com os primeiros enunciados conhecidos acerca dos contratos. As Leis
de Eshnunna, promulgadas provavelmente entre os anos de 1825 e 1787 a.C., já
dispunham sobre a compra e venda, arrendamento e empréstimo a juros. O Código
de Hamurabi, elaborado anos mais tarde no Império Babilônico, provavelmente em
1758 a.C. (1), também continha dispositivos semelhantes, regulamentando alguns
contratos específicos, a execução destes contratos, as taxas de juros cobradas, bem
como o preço de determinados serviços.

Assim, prescreve o §268 do Código de Hamurabi que: “Se um homem


alugou um boi para semear o grão, seu aluguel será de 2 sutu de cevada”, o
correspondente a 20 litros de cevada.

Em outra passagem, é fixada a taxa máxima de juros. Se o empréstimo


foi de cevada, os juros serão de 33% (1/3 do bem emprestado). Se o empréstimo foi
de prata, a taxa máxima será de 20% (2).

Podemos logo inferir que o direito dos contratos existe desde que o
homem deu início às primeiras comunidades. No entanto, é o Direito Romano o
primeiro a sistematizar a regulação contratual, criando algumas categorias de
contratos. Isto significa que contratos específicos receberam tratamento normativo
em sociedades anteriores à romana, mas será esta que estabelecerá as bases para
a teoria contratual, aplicável a todos os contratos, definindo requisitos, garantias e
classificações.

Devemos lembrar que o Direito Romano apresenta períodos bem


distintos, que fazem com que a regulamentação do contrato varie bastante de época
a época. Desta forma, o contrato do direito romano arcaico é muito diferente do pós-
clássico. Mas vejamos sinteticamente esta evolução.

No direito romano arcaico, o contrato era o ato que submetia o devedor


ao poder do credor. Em razão da forte presença de crenças religiosas,
especialmente nos deuses domésticos, o cumprimento de um contrato era questão
de honra e o vínculo jurídico era pessoal, levando o credor, em caso de
inadimplemento, a atingir o corpo do devedor.

No Direito Romano clássico, podemos perceber a utilização de três


vocábulos para designar fenômenos semelhantes: convenção, contrato e pacto. A
convenção era o gênero e as espécies eram o contrato e o pacto. Contratos eram
convenções normatizadas, e por isso protegidas pela via da actio. Três eram as
espécies contratuais: a) litteris, que exigia inscrição no livro do credor (denominado
codex); b) re, que se fazia pela tradição efetiva da coisa; e c) verbis, que se
celebrava pela troca de expressões orais, como em um ritual religioso.

Estes contratos tinham proteção judicial prevista pelo ius civile, podendo o
credor reclamar via actio, sua execução.

Havia, no entanto, outra categoria de convenção, com finalidades


semelhantes – o pacto. O pacto era um acordo não previsto em lei. Não exigia forma
especial, nem era protegido pela actio.

Durante a República romana e o Alto Império Romano (direito romano


clássico), para os pactos mais freqüentes foi criada proteção judicial. Os pretores,
através de seus editos, começaram a proteger os pactos mais freqüentes, o que
acabou por erigi-los a categoria de contratos. Criou-se, então, uma nova espécie
contratual – os contratus solo consensu – que envolviam venda, locação, mandato e
sociedade. Para estes contratos bastava a emissão de vontade, sem nenhuma
formalidade.

Por fim, algumas constituições imperiais também concederam proteção a


alguns tipos de pacto.

Na Idade Média, por influência do direito germânico, o inadimplemento


comumente ensejava a escravidão ou a prisão. O direito feudal, elaborado e
aplicado pelo senhor dentro dos feudos, pressupunha um contrato prévio celebrado
entre senhor feudal e vassalo, pelo qual assumiam obrigações recíprocas.

Ao vassalo era dada uma porção de terra, que deveria ser cultivada
mediante o pagamento de uma parcela da produção.
“Em contrapartida o vassalo devia a seu senhor a fidelidade (abster-se de
atos hostis ou perigosos contra o senhor), o auxilium (ajuda militar e material, nem
sempre de caráter pecuniário) que, na maioria das vezes, apresentava-se sob a
forma de auxílio militar (de homens e armamentos) ou com o consilium (obrigação
de auxiliar ao senhor com conselhos sempre que este convocava).”(3)

O contrato feudo-vassálico era ato formal e simbólico. A entrega da coisa


ou de algo que a representasse era essencial para que o contrato se efetivasse.

Aos poucos, em razão do desenvolvimento do direito canônico, a vontade


foi sobrelevada como fonte do direito contratual. A palavra empenhada fazia lei. O
contrato não era somente uma questão jurídica, mas religiosa. Assim, a boa-fé era
essencial e o povo temia o perjúrio, condenado pela Igreja. Daí a freqüência da
utilização de juramentos em nome de Deus na formação contratual.

Ao mesmo tempo em que se resgatava o Direito Romano clássico,


através do Corpus Iuris Civilis, que exigia a formalidade na constituição do contrato,
a Igreja estabelecia: ex nudo pacto, actio oritur (4).

Os costumes municipais dos séculos XIII e XIV, em cidades da Itália,


França e Países Baixos (5), admitiram o consensualismo no direito dos contratos,
embora glosadores e comentadores resistissem. Para que houvesse contrato,
bastava o consenso, o acordo de vontades. O respeito à palavra dada fazia do
contrato uma obrigação moral.

Com o jusnaturalismo, a obrigatoriedade dos contratos é reforçada como


regra fundada na própria razão e que deve prevalecer nos direitos nacionais, pois o
homem é senhor de seus atos; indivíduo autônomo, que não deve se submeter a
nenhuma autoridade exterior. Assim, o contrato seria a submissão a normas criadas
pelo próprio indivíduo, sendo, portanto, legitimada pela vontade das partes, que
livremente pactuavam.

São estas as idéias que serão inseridas nos códigos modernos pelos
iluministas. A burguesia, como forma de manter o Estado afastado de suas
atividades, assume o jusnaturalismo racionalista como fundamento do Direito e a
vontade é eleita como fundamento da sociedade moderna – da formação do Estado
à fundamentação do Direito. Assim, tanto o Direito Público quanto o Direito Privado
viram o surgimento do dogma da vontade em seu alicerce; o contrato como
fundamento da sociedade capitalista.

No Direito Público, a formação do Estado fundou-se no contrato social


que, segundo Rousseau, pretende aliviar o homem da infelicidade gerada pela
passagem do estado natural para a sociedade política. O contrato social, constituído
pela vontade geral, era fonte legítima para ordenação social.

Nas relações privadas, a vontade como fundamento se repetia. Em


relações comerciais – especialmente após o impulso dado pelo Direito Canônico à
boa-fé –, o ideal de justiça era consectário da vontade individual dos contratantes,
pois, ao assumir uma obrigação, o devedor restringe sua liberdade, mas por
intermédio de sua própria vontade.

Como afirma o Professor Fernando Noronha, “Já no final do século XIX,


na França, Fouillée podia resumir a concepção reinante dizendo, em expressão que
ficou célebre, que toda justiça é contratual e que quem diz contratual, diz justo
(‘toute justice est contractualle; qui dit contractuel, dit juste’)” (6)

A idéia kantiana de que a legitimidade do contrato, ou mesmo da lei, está


no fato do homem impor normas a si mesmo, fundamentou toda a teorização da
autonomia liberal.

O estabelecimento do direito abstrato possibilitou ampla circulação de


riquezas. O contrato garantiria liberdade e igualdade jurídicas, pois estas advinham
da própria vontade dos contratantes. Liberdade por meio da auto-regulação de
interesses. Igualdade, meramente formal, pelo objetivo de se criar um campo de
atuação em que condições pessoais não influiriam.

Depois do implemento do Estado Social, com a proteção à parte mais


vulnerável nos contratos de massa e com a reação ao desrespeito aos direitos de
personalidade, a vontade já não possui o mesmo status no mundo jurídico.

O Estado passou a intervir na economia do contrato, permitindo a


modificação de suas cláusulas, obrigando determinadas pessoas a contratar ou
estabelecendo cláusulas.

A derrocada do voluntarismo veio com a nova hermenêutica,


especialmente com os filósofos e psicólogos que trabalham a compreensão e vêem
a vontade como expressão culturalmente condicionada. “Se as pessoas celebram
contratos, não é simplesmente porque desejam, mas porque são movidas por
necessidades, ainda que falsas, fantasiosas.”(7)

Deste intervencionismo do Estado Social, passamos à crise contratual,


um momento de revisão teórica.

A teoria clássica dos contratos não oferece resposta satisfatória para os


contratos de massa. O conteúdo contratual não pode mais ser previamente discutido
e, na maioria das vezes, é imposto por uma parte ou pela lei, que fixa um conteúdo
básico.

Neste contexto, a importância dos princípios contratuais se sobreleva. A


boa-fé, a autonomia privada e a função social do contrato demonstram a
modificação sofrida ao longo do século XX. O contrato não é apenas instrumento
econômico, mas instrumento que deve contribuir para o pleno desenvolvimento do
ser humano.

3. Da Função Atual dos Contratos

Após esta síntese histórica, importante compreender as funções


desempenhadas pelos contratos em nossos dias.

Sem sombra de dúvida, a função econômica dos contratos em nossa


sociedade de consumo é enorme. A ponto de afirmarmos que sem o contrato, nossa
sociedade capitalista não existiria. O contrato é instrumento de circulação de
riqueza, ajudando a distribuir a renda e a gerar empregos.

Em uma perspectiva contemporânea, contrato é um conceito funcional e,


como tal, desempenha importante papel social.

A função social do contrato, erigida modernamente a princípio, coloca em


foco a dimensão coletiva, não se limitando à satisfação de necessidades individuais
dos contratantes.

“Esses conceitos, ditos funcionais, operam relacionando dois planos: o


plano normativo e o plano da realidade social. [...] É equívoca, portanto, a leitura de
institutos civis sob a perspectiva puramente estrutural. As categorias, conceitos e
institutos devem ser lidos à luz da função exercida. É essa a grande viragem do
direito moderno: a passagem de uma concepção estrutural do direito em favor de
uma postura funcionalizada, onde sobreleva a atuação social dos direitos.”(8)

O princípio da função social do contrato evidencia a funcionalização do


contrato; devolvê-lo à sua tarefa original, às vezes esquecida nos caminhos do
individualismo. O contrato, além da realização de interesses privados, deve
contribuir para edificação do ser humano digno.

César Fiuza destaca, ainda, a função pedagógica do contrato,


entendendo-o como meio de socialidade, exercitando os relacionamentos sociais
sadios. Envolve uma noção de respeito ao outro, a si mesmo e ao ordenamento, já
que se empenha a própria palavra.

“Aproxima os homens, abate suas diferenças. As cláusulas contratuais


dão aos contratantes noção de respeito ao outro e a si mesmos, visto que, afinal,
empenharam sua própria palavra. Por meio dos contratos, as pessoas adquirem do
direito como um todo, pois, em última instância, um contrato nada mais é do que a
miniatura do ordenamento jurídico, em que as partes estipulam deveres e direitos,
através de cláusulas, que passam a vigorar entre elas.” (9)

4. Considerações Finais

Evidente que o contrato assume, hodiernamente, funções diversas das


que perpassaram este instituto ao longo de séculos. Da solidariedade clânica dos
tempos antigos, o contrato assumiu um caráter mais geral com os romanos, com
preocupação precipuamente processual; recebeu influência voluntarista do direito
canônico e do Iluminismo; e acabou por ser devidamente instrumentalizado na
busca pela efetivação da dignidade da pessoa humana.

Ao afirmarmos que o contrato é elemento contribuinte da dignidade


humana, condicionado pela função social, não estamos reiterando posições acerca
do ocaso do direito privado. O contrato é instrumento de realização de interesses
privados, prevalentemente. Todavia estes interesses só podem ser tutelados se não
ofenderem interesses sociais. Dito de outra forma, às vezes cumprir a função social
do contrato é tão-somente adimplir com a obrigação, satisfazendo o credor; pois sua
satisfação pode ser parte integrante e essencial na construção da sociedade livre e
fraterna, posta constitucionalmente.

Daí o grande erro em se afirmar que o interesse social sobrepõe-se ao


interesse particular. Este é integrante daquele e, não raras vezes, estar de acordo
com o interesse social é satisfazer o interesse particular. Não devemos
descaracterizar o contrato como instrumento de realização privada, mas impedir que
seja meio egoísta de opressão da parte mais fraca.

Notas

(1) Há três diferentes formas de datação pelos historiadores especializados: a cronologia longa, a
curta e a média. “Assim a cronologia longa data o reinado de Hammurabi entre os anos 1848-1806
a.C.; a cronologia média entre 1792 e 1750 a.C. e a curta entre 1728 e 1686 a.C.” (BOUZON,
Emanuel. Uma coleção de direito babilônico pré-hammurabiano: Leis do reino de Esnunna.
Petrópolis: Vozes, 2001. p.12) Adotamos a cronologia média, por ser a que, atualmente, encontra
mais adeptos dentre os historiadores.

(2) BOUZON, Emanuel. O Código de Hammurabi. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 108-109. §L.

(3) CASTRO, Flávia Lages de. História do direito: geral e Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p.
124.

(4) Em tradução livre: Do pacto nu pode se originar uma ação.

(5) GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. Trad. António Manuel Hespanha e Manuel Luís
Macaísta Malheiros. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001. p. 736.

(6) NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 65

(7) FIUZA, César et ROBERTO, Giordano Bruno Soares. Contratos de adesão. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002. p. 101.

(8) NETTO, Felipe Peixoto Braga. Teoria dos ilícitos civis. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 38. O
autor ainda afirma: “O direito moderno normatiza finalidades. Se antes os fins da norma escondiam-se
atrás do binômio previsão/sanção, ou hipótese/conseqüência, hoje o direito explicita finalidades. Há
uma progressiva noção da importância dos fins na sistemática jurídica. Isso diz profundamente com a
interpretação. À medida que o legislador declara os fins que deseja implementados, o papel do
intérprete sobreleva. Os meios de atingir os fins certamente variam. A própria noção dos fins é fluida,
ainda que existam parâmetros.” p. 36.

(9) FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 8. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.365-366.

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