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De estudantes a cidadãos

Redes de jovens e participação política

Ann Mische
Universidade de Columbia

Este artigo faz parte de tese de doutorado defendida na New School for Social Research e envolveu dois anos de
pesquisa de campo com várias organizações políticas e sociais de jovens brasileiros nos anos 90. Agradeço os
comentários de Helena Abramo, Mustafa Emirbayer, Fernando Rossetti Ferreira, Maria da Gloria Gohn, Carlos
Antonio Costa Ribeiro, Salvador Sandoval, Charles Tilly, e Harrison White.

Cinco anos depois das manifestações juvenis lutar verdadeiramente pela cidadania. É uma gera-
que animaram o país e ajudaram a derrotar um pre- ção que tem consciência de cidadania”1. Além do
sidente, esses eventos ainda inspiram surpresa e mis- heroísmo, essa declaração de Lindberg Farias, pre-
tificação. A convergência dramática dos “caras pin- sidente da União Nacional dos Estudantes na épo-
tadas” nas ruas das principais cidades brasileiras em ca, levanta uma série de perguntas críticas para a
agosto de 1992 tem gerado interpretações contra- análise da participação política da juventude. De
ditórias, desde as celebrações eufóricas do “renas- que consiste essa nova “consciência de cidadania”?
cimento” da resistência estudantil de três décadas De onde surge a nova identidade “cívica” entre os
atrás, até as manipulações cínicas dos meios de pro- jovens, e como se distingue da identidade estudan-
paganda, usando a “grife” dos caras pintadas para til dos anos 60? Dada a heterogenidade e dispersão
vender roupas, cursinhos, e computadores. Até hoje das várias “juventudes” dos anos 90, quais são os
há poucas tentativas sérias de analisar as origens e fatores que contribuiram, ainda que provisoriamen-
os impactos desses eventos em termos da especifi- te, para sua convergência no movimento pelo im-
cidade histórica dessa corte de jovens. Neste ensaio, peachment e, ao mesmo tempo, quais as contradi-
procuro examinar as manifestações de 1992 numa ções e tensões sociais que também se manifestaram?
perspectiva histórica, analisando tanto as mudanças Finalmente, quais são as perspectivas levantadas
nas relações sociais, quanto as reformulações polí- para a futura participação dos jovens, tanto em rela-
tico-culturais que influiram na participação dos jo- ção à consciência e aos projetos pessoais, quanto em
vens brasileiros nas últimas três décadas. relação aos grupos e movimentos que contribuem
Comecemos com as palavras de um dos jovens
que se destacou na época: “O movimento estudantil
hoje é outro (…) mudou pelos próprios estudantes. 1 Entrevista com Lindberg Farias no caderno Folha-
Eles despertaram e começaram a descobrir o que é teen, 28/6/93.

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de diversas maneiras à sociedade organizada do “geração shopping center”, nascida durante a di-
país? tadura e criada entre as expectativas crescentes e
Para aprofundar a análise dessas questões, pre- disilusões sucessivas da lenta e conservadora tran-
cisamos de instrumentos adequados à complexidade sição à democracia. Quando a constituição de 1988
da dinâmica social que leva à formação de novas estendeu o voto para jovens de 16 anos, só a metade
identidades e projetos de ação. Na consideração da dos jovens esperados tirou o título de eleitor. Uma
“cidadania juvenil”, aponto para uma reformula- pesquisa na Folha de São Paulo, alguns meses an-
ção teórica da noção de identidade coletiva — e sua tes das eleições de 1989, indicou que embora a
relação com a estrutura ou a posição social — ques- maioria dos jovens aprovassem ideais como “liber-
tionando as visões estáticas e pré-deterministas que dade” e “participação”, muitos duvidaram se as
geralmente acompanham tais conceitos. Precisamos instituições democráticas brasileiras constituiriam
de uma nova ótica teórica capaz de englobar a mul- os melhores meios para realizar esses fins. Em 1991,
tiplicidade de relações e significações sociais, e o uma pesquisa da agência de publicidade McCann
caráter interativo e processual de toda experiência Erickson declarou que, “em contraste com seus pais,
social. Essa ótica deve visar tanto os mundos inte- que queriam mudar o mundo, a próxima geração
rativos dos jovens, quanto as relações emergentes está mais interessada em melhorar a própria vida…
entre os grupos organizados, e os pontos de conver- Os jovens de hoje não se interessam por qualquer
gência ou distanciamento entre os dois. Sugiro aqui tipo de manifestação social. Vivem para resolver
que a análise sistemática de “redes” interpessoais seus projetos pessoais.”3
e organizacionais, focalizando a “multivalência” de Devido à percepção predominante de apatia e
discursos e ações, pode abrir novos caminhos na individualismo juvenil, o inesperado entusiasmo
compreensão de como a cultura política é refor- político dos jovens em 1992 gerou amplo comen-
mulada através da ambiguidade conflituosa das in- tário e debate. Nos dias e meses depois das mani-
terações sociais. festações, diversos atores — a mídia, educadores,
representantes do governo, partidos políticos, mo-
A batalha das interpretações vimentos sociais e organizações estudantis — bata-
lharam para dar interpretações públicas dos even-
Quando milhares de jovens brasileiros — a tos imprevistos. Surgiram comparações nostálgicas
maior parte de classe média — saíram às ruas para com a oposição estudantil dos anos 60, que come-
protestar contra a corrupção no governo do pre- çou com a campanha pela reforma universitária e
sidente Fernando Collor de Melo, eles pegaram a se radicalizou ao longo de vários anos de confron-
maioria dos brasileiros (incluindo os próprios jo- to com a ditadura militar. O movimento estudan-
vens) de surpresa.2 Reportagens na grande imprensa til foi brutalmente esmagado em 1968 com a pri-
retratavam o ceticismo e disinteresse político da são, perseguição, morte ou exílio da maior parte das
lideranças, muitas das quais entraram em grupos
clandestinos de resistência armada durante os anos
70. A nostalgia dessa época influiu tanto na con-
2Segundo estimativas policiais, as primeiras manifes- fluência dos eventos como nas interpretações post-
tações em 11 de Agosto (o Dia dos Estudantes) mobiliza- hoc; não foi por coincidência que as manifestações
ram 10.000 em São Paulo. Foram seguidas por uma onda
de manifestações em várias cidades brasileiras, incluindo atos
de 20.000 a 40.000 no Rio de Janeiro, Brasília, Salvador, e
outras cidades. O movimento culminou em um grande ato 3 A pesquisa de McCann Erikson sobre os jovens bra-
no dia 25 de agosto, que mobilizou mais de 200.000 pes- sileiros faz parte de um perfil maior da juventude na America
soas em São Paulo. Latina. Jornal da Tarde, 30/5/91.

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anti-Collor aconteceram no final da mini-série da do ramo distribuem banderinhas de partidos de opo-


Rede Globo Anos Rebeldes, que cativou a audiên- sição. Suspeita-se que alguns manifestantes, que não
cia jovem com seus personagens simpáticos e sua arredam o pé da frente do palanque, sejam contrata-
visão romântica do movimento de 68, e certamen- dos por políticos em campanhas. Um tom oficial en-
te serviu como inspiração nas semanas exaltadas de tra em choque com a espotaneidade juvenil. Rataza-
agosto de 1992. nas da política procuram aproveitar de manifestantes
Apesar da evocação da mémoria de 68, há for- ingênuos…
tes diferenças entre os dois episódios de mobilização Nos 60, a visita do banqueiro Rockefeller gerou
juvenil. Enquanto as mobilizações anteriores foram protestos: criticavam a presença no país do represen-
conduzidas num campo político polarizado entre o tante de imperialismo. Hoje, a FIESP está presente, e
Estado militar e a oposição estudantil, os caras pin- se o presidente da cadeia de lojas 7-Eleven ou a dire-
tadas foram atores privilegiados em uma ampla mo- toria da Nike visitarem o Brasil, periga serem convi-
bilizaçao da sociedade civil e política contra o go- dados a subir no palanque. Não há compromissos
verno Collor. Depois da revelação de uma extensa ideológicos vinculados aos padrões marxistas. Mas há
rede de patrocínio coordenada pelo assessor Paulo democracia. (Marcelo Rubens Paiva, Folha de São
César Farias, o governo ficou mais e mais isolado, Paulo, 19/9/92).
enquanto as bandeiras da moralidade pública e da
Embora não seja verdade que os compromis-
“ética na política” ganharam força na imprensa, nas
sos marxistas estivessem completamente ausentes
organizações civis e nos partidos de oposição. Isso
das manifestações pelo impeachment, outra diferen-
tocou numa grande reserva de frustração pública
ça notável em relação aos anos 60 foi a subordina-
com o clientelismo e a corrupção crônica do sistema
ção dos discursos tradicionais da esquerda à lingua-
político. Nesse clima, a participação entusiasmada
gem mais expansiva e universalizante de “cidada-
dos jovens nas passeatas pelo impeachment — orga-
nia.” O discurso do Movimento pela Ética na Po-
nizados pelas entidades estudantis, apoiados pelos
lítica focalizou a defesa das instituições democrá-
partidos e entidades civis, e divulgados pela gran-
ticas (as ditas “regras do jogo”), conseguindo man-
de imprensa — não pode ser chamada de “indepen-
ter a unidade provisória na medida em que deixou
dente” ou “espontânea”, pois eles receberam am-
de lado as questões mais conflituosas sobre o futu-
plas formas de apoio oficial e não-oficial, o que fica
ro social e econômico do país. Nesse sentido, os
evidente no ceticismo deste comentário jornalístico:
jovens estavam participando — pelo menos em teo-
ria — não como radicais ou conservadores, socia-
Nos anos 60, as passeatas eram na hora do “rush”,
listas ou liberais, membros de grupos políticos, ou
para chamar atenção e buscar adesão do povo: “Você
até como “estudantes”, mas como “cidadãos-em-
é explorado, não fique aí parado” (…) Saldo do dia:
formação”, tentando resgatar a “democracia-em-
estudantes mortos, policiais feridos e quebra-quebra
formação” da herança de corrupção e impunidade
nas ruas. À noite, o Reporter Esso falava do clima de
pública. Esse redirecionamento no sentido do dis-
guerra civil no centro da cidade, mas não mostrava
curso universalizante de cidadania é evidente na
imagens (…) Nos anos 90, a liderança sobe nos pa-
declaração de Marco Aurélio Chagas Martonelli,
lanques montados pela prefeitura e pelo governo do
presidente do histórico Centro Acadêmico XI de
Estado, a repressão ajuda a interromper o trânsito, as
Agosto da Faculdade de Direito da Universidade de
palavras de ordem viram jingles, os rostos estão pin-
São Paulo:
tados, e, à noite, o “Globo Repórter” dedica uma ho-
ra, em horário nobre, para nova “onda teen”. Retoma, assim, o ME seu papel político, repre-
Há um aparato que garante a segurança dos ma- sentativo dos interesses dos estudantes, reencontran-
nifestantes, de ambulâncias a bombeiros. Profissionais do caminhos para a concretização da cidadania no

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país. O impeachment do presidente é ponto de honra que simplesmente não aceitam que seu país seja assal-
para qualquer cidadão, independente de qualquer ide- tado impunemente por corruptos. (Veja, 9/9/92)
ologia. Instituir-se a ética na política, não como pri-
Por outro lado, políticos e intelectuais da opo-
vilégio, mas como pressuposto básico para a demo-
sição, muitos deles lideranças estudantis no passa-
cracia, será o verdadeiro divisor de águas da História
do, viram na nova cidadania dos jovens o renas-
brasileira. (Folha de São Paulo, 15/8/92.)
cimento de uma consciência crítica mais ampla, e
Mas apesar do universalismo da noção de ci- a possível revitalização da atividade estudantil or-
dadania, a multivalência do conceito o sujeita a in- ganizada. Segundo José Dirceu, deputado federal
terpretações múltiplas e as vezes contraditórias. pelo PT em 1992 e presidente da União Estadual dos
Assim, atores diversos — desde militantes e inte- Estudantes de São Paulo em 1968,
lectuais da esquerda até políticos conservadores e
A CPI do PC desvendou para a juventude um
comandantes militares — puderam fazer afirma-
quadro cruel: o estado de decomposição moral de nos-
ções entusiasmadas sobre a “nova cidadania” dos
sas elites e os sinais de desagregação social que nosso
jovens, porém com implicações divergentes. Por
país enfrenta. A juventude reage com indignação e
exemplo, o coronel Erasmo Dias, deputado esta-
exige punição, apóia o impeachment e pode ser o esto-
dual pelo PDS e ex-secretário de segurança públi-
pim da mobilização contra Collor (…) Em sintonia com
ca (que comandou uma violenta invasão da PUC-
a juventude, jogando um papel importante nas mobi-
SP em 1977, na qual dois mil estudantes foram
lizações a favor do impeachment, o movimento estu-
presos), declarou seu forte apoio ao movimento de
dantil pode se reorganizar e assumir seu papel políti-
1992:
co institucional. (Folha de São Paulo, 15/8/92)
A sociedade precisa unir-se para dar um basta Na mesma linha, as lideranças das entidades
à atividade criminosa no governo federal. O povo in- estudantis, embora se esforçando para parecer apar-
dignado deveria fazer uma tomada do Planalto, como tidárias e representativas de amplos setores da ju-
foi a tomada da Bastilha. ventude, celebraram a emergência de uma nova
Porém, o coronel Dias também procurou sub- politização entre os jovens que indicava seu maior
dimensionar o potencial político do movimento, desejo de participação política. Nas palavras de
contrariando a interpretação de que as manifesta- Lindberg Farias, então presidente da UNE e mili-
ções juvenis foram ligadas ou coordenadas por gru- tante do PC do B,
pos organizados da esquerda: É uma juventude politizada, eles foram os pri-
meiros a ir às ruas defender o impeachment. Essa é
Esses grupos, de cuja probidade eu duvido, já
uma bandeira extremamente política. A politização
não têm força para organizar o que quer que seja.
dessa juventude se dá no processo, nas ruas, queren-
(Estado de São Paulo, 24/8/92)
do participar. Aí é que vai aprender a resgatar os va-
Numa linha parecida, a grande impresa enfa- lores democráticos. (Folha de São Paulo, 31/8/92).
tizou o caráter apartidário do movimento, focali-
Em contraste marcante com o minimalismo
zando a falta de experiência política e a indignação
político e a indignação puramente “ética” dos co-
espontânea dos jovens, como na seguinte reporta-
mentários conservadores, as entidades estudantis —
gem da Veja:
lideradas por jovens militantes de partidos da es-
Na verdade, a quase totalidade dos estudantes querda — tentaram ligar a participação de estudan-
que tomaram a Paulista não pertence a nenhum par- tes “como cidadãos” a uma crítica mais ampla da
tido e jamais participou de uma reunião política na injustiça social, da crise econômica, e da política
vida. Eles marcharam, e continuarão marchando, por- neo-liberal do governo Collor:

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Descontração, irreverência e rebeldia tomaram tas de classes sociais, que reduzem a ação e os inte-
conta das ruas. De cara pintada a juventude demons- resses do jovem à sua posição nas relações de produ-
trou estar disposta a construir um país diferente, li- ção. Sem subestimar os efeitos reais de normas e de
vre desta quadrilha que assaltou o Palácio do Planal- classes sociais, precisamos de outros instrumentos
to (…) Uma crise que vai além da falta de ética, da de análise mais flexíveis, capazes de compreender
moral dos bons costumes, e que ameaça a própria exis- o dinamismo, a contingência, e a multiplicidade das
tência do país, das instituições, de cada um (…) É fo- experiências e interações sociais. Para entender as
me, recessão, arrocho, desemprego, impunidade. No mudanças históricas que levaram os jovens da identi-
país de abundância, o povo e a juventude no maior dade participativa forte de “estudante” nos anos 60
sufoco, tudo se faz para manter o plano “neo-liberal”, à nova identidade, complexa e contraditória, de “ci-
o plano de desmantelamento do estado público (…) dadão” nos anos 90, é necessário analisar as trans-
Continua a rebeldia característica de juventude. A ca- formações nas redes interpessoais e organizacionais
pacidade de nos revoltarmos frente à injustiça. (Pan- nas quais os jovens se encontram, e como as estru-
fleto de UNE/UBES, 8/92). turas diferenciadas dessas redes influenciam na ar-
ticulação de projetos pessoais e sociais.
Com interpretações tão contraditórias sobre a
A noção de “identidade” em si já coloca uma
participação dos jovens nas manifestações de 92, a
série de dificuldades teóricas. O problema princi-
compreensão dessa “nova cidadania” apresenta um
pal é como reconciliar as pressuposições estáticas,
desafio para a pesquisa e a análise. Entre o espon-
categóricas e substancialistas da palavra com uma
taneísmo dos conservadores e a exaltação dos gru-
visão dinâmica, processual e interativa. Um comen-
pos organizados, como poderemos medir as verda-
tário de Alberto Melucci, teórico dos “novos mo-
deiras dimensões desse momento de participação
vimentos sociais”, aponta para as tensões ineren-
juvenil? Não queremos tampouco cair no ceticismo
tes ao conceito: “A palavra ‘identidade’ é insepa-
de atribuir o fenômeno dos caras pintadas somen-
rável da idéia de permanência, e por isso pouco ade-
te à manipulação pela mídia ou pelos partidos po-
quada para a análise processual que estou defenden-
líticos. Se existiu manipulação (de vários lados),
do...” (Melucci, 1994). Na tentativa de achar uma
também houve uma experiência orgânica importan-
saída parcial para esse dilema, alguns pesquisado-
te, indicativa de mudanças estruturais e culturais,
res de movimentos sociais estão incorporando o
tanto nas vidas e perspectivas dos jovens, quanto
trabalho recente da análise de redes (“network ana-
na organização social e política da sociedade bra-
lysis”) que enfatiza o caráter relacional — em vez
sileira. Porém, uma análise dessas mudanças requer
de puramente categórico ou atribucional — de iden-
uma reformulação teórica do vínculo entre as rela-
tidades, baseadas em redes sociais (Wellman e Ber-
ções sociais e a dinâmica cultural da formação de
kowitz 1988; White 1992; Emirbayer e Goodwin,
identidades e projetos.
1994). Por exemplo, Doug McAdam (1986, 1988)
demonstra que os laços prévios entre estudantes
A formação de identidade: redes e projetos recrutados para o movimento de direitos civis nos
anos 1960, junto com a experiência prévia em ou-
Um dos problemas com as tentativas de expli- tros grupos organizados, são os fatores mais impor-
car a participação política de jovens é a utilização tantes que influem no compromisso político dos
de modelos estáticos e deterministas de influência jovens. Da mesma forma, Roger Gould (1991, 1995)
social. Tais modelos têm várias versões, desde a teo- demonstra que foram os laços múltiplos, tanto de
ria funcionalista de socialização, que explica o com- bairro como de grupos organizados, que influiram
portamento dos jovens como a internalização de no recrutamento para a Comuna de Paris em 1871.
normas pré-concebidas, até as análises mais estrei- Gould introduz o conceito útil de “identidade parti-

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cipativa”, referente à “identidade social que um periências que são relevantes naquele círculo, entre
indivíduo assume em uma dada instância de pro- a multiplicidade de conexões que poderiam ser fei-
testo social” (Gould 1995, 13, grifos no original). tas. Nesse sentido, não é apenas o atributo ou a
Ele demonstra que tais identidades podem ser re- posição social que determina a identidade, mas tam-
formuladas a partir de uma reestruturação das re- bém são as experiências e orientações coletivas den-
des de trabalho e comunidade; na França, por exem- tro de um dado contexto concreto que criam o po-
plo, havia uma mudança da identidade participativa tencial para formas diferenciadas de reconhecimen-
baseada em classe social na Revolução de 1848, to. Também implica que em qualquer momento,
para uma outra identidade na Comuna de 1871, muitas dimensões de relações — junto com laços ou
baseada na comunidade urbana. identidades possíveis — são desarticuladas, não re-
Embora esses trabalhos representem avanços conhecidas, e por isso relativamente invisíveis nas
significativos na compreensão do caráter múltiplo superfícies de interações públicas.
e interativo de identidades, eles oferecem apenas
uma solução parcial à problemática desse concei- Identidade como experimentação
to. Ainda sofrem de uma visão substancialista e de-
terminista, vendo identidade como algo pré-existen- Para entender a dinâmica temporal de identi-
te nas relações sociais, objeto dos “apelos” dos mo- dades como influência na ação coletiva, é preciso
bilizadores. Por isso não conseguem focalizar o pro- analisar como elas interagem com o ciclo de vida
cesso fluido e contingente da formação de identi- da pessoa. Como Erikson (1968) e outros mostram,
dades na interação dinâmica entre o “ciclo de vida” a juventude é um período sensível na formação de
da pessoa, a participação no movimento e as mu- identidades, em que as pessoas experimentam vá-
danças históricas da época. Para resgatar esse as- rias expressões públicas, procurando reconhecimen-
pecto, é necessário um conceito de identidade como to no meio de diversos “círculos” (ou redes): famí-
focalizador de projetos, dando direção às ações lia, colegas, escola, trabalho, atividades de lazer e,
além de definição aos grupos. às vezes, atividade política. Durante esse período de
experimentação, eles estabelecem compromissos (ain-
Identidade como reconhecimento da provisórios) com laços sociais e significados co-
letivos, que terão um impacto crítico nas suas op-
O primeiro passo nessa nova conceituação é ções ao longo da vida. Essas experiências também
a potencialização de identidade. O que normalmen- têm um impacto na emergência de novos “estilos
te entendemos com essa palavra são as qualidades geracionais”, como Mannheim demonstra: “Na ju-
agregadas de categorias sociais, como classe, gêne- ventude, em que a vida é nova, as forças de formação
ro, raça, ou nacionalidade. Na realidade, esses atri- estão apenas vindo a ser, e atitudes básicas no pro-
butos são simplesmente identidades possíveis, que cesso de desenvolvimento podem se aproveitar das
se tornam visíveis, efetivas e relativamente “fixas” forças moldantes de novas situações” (Mannheim
apenas quando reconhecidas publicamente por ou- 1952, 296). Embora a “estratificação da experiên-
tros, dentro do que Pizzorno (1986) chama de “cír- cia” esteja condicionada tanto por classe social, co-
culos de reconhecimento.” Esse conceito abarca a mo por grupos de idade, Mannheim enfatiza que
dimensão intersubjetiva de redes sociais: cada rede não é apenas a posição social que determina a emer-
representa um repertório mais ou menos delimita- gência de uma identidade geracional distinta, pois
do de reconhecimentos coletivos, que dão sentido é necessário que as experiências comuns estejam
e direção aos laços sociais. Redes diferentes — por sujeitas à reflexão consciente dentro de situações
exemplo, de trabalho, bairro, escola, familia — dão históricas de “desestabilização dinâmica.” Isso é
visibilidade social às dimensões específicas de ex- facilitado pela participação em “grupos concretos,

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onde a estimulação mútua numa unidade próxima preensão da participação dos jovens brasileiros em
e vital inflama os participantes e os ajuda a desen- episódios diferenciados de ação coletiva? Utilizare-
volver atitudes integradas adequadas aos requisitos mos essas formulações na análise das diferenças
de suas posições comuns” (p. 307). históricas entre o movimento estudantil dos anos 60
e os caras pintadas dos anos 90, na tentativa de
Identidade como orientação entender como os jovens foram levados da identi-
dade participativa de “estudante” no movimento
Outra limitação do conceito de identidades é anterior a uma outra identidade participativa, qua-
uma tendência a focalizar seu aspecto delineador, lificada pela noção mais abrangente de “cidadão”,
quer dizer, as determinições de quem pertence ou não em 1992.
a uma dada categoria ou grupo. Dá-se pouca aten- Meu argumento básico é que o período ante-
ção ao papel de identidades como mecanismos de rior, de 1960 a 1968, serviu como um nexo para a
orientação, usados pelos atores para dar direção e concentração de identidade. A identidade forte de
forma à ação futura. Identidades não são apenas ca- “estudante” se tornou um prisma para múltiplas
tegorias sociais que em si dão estrutura e sentido às dimensões dos projetos emergentes dos jovens da
redes sociais, mas são mobilizadas de forma seleti- classe média universitária, dentro de uma dinâmi-
va, segundo os projetos emergentes dos atores, pe- ca radicalizante de oposição política. Isso não se
los quais eles tentam resolver conflitos e criar novas deve a uma lógica intrínseca ou “destino histórico”
oportunidades de ação (Emirbayer e Mische, 1994). de estudantes como categoria social, mas resultou
Não é apenas a pergunta “quem sou eu?” que os da estrutura específica de suas redes sociais, concen-
jovens procuram responder enquanto experimentam tradas principalmente na família e, mais importante
expressões de identidade, mas também “por onde ainda, nas universidades. Em contraste, o período
vou?” Embora as carreiras e trajetórias abertas aos posterior de reestruturação democrática, nos anos
jovens estejam estruturadas pelas posições de clas- 80 e 90, é caracterizado pela dispersão crescente das
se e pelas instituições sociais e políticas, os jovem redes juvenis. Os anos formativos dos jovens não
também têm algum espaço de escolha, manobra e, são limitados à familia e às universidades, mas acon-
às vezes, invenção de caminhos e direções de vida. tecem em contextos sociais, culturais e políticos mais
Experiências dentro de vários locais sociais criam as diversos, englobando um campo maior de possíveis
oportunidades e barreiras, esperanças e frustrações, (e às vezes contraditórios) projetos pessoais e cole-
que levam os jovens a experimentar diferentes futu- tivos. Por isso, a categoria de “estudante” não tem
ros possíves, com mais ou menos receptividade às a multivalência necessária para servir como um pris-
identidades e projetos pré-concebidos que são ofe- ma para a diversidade de projetos-em-formação dos
recidos pela sociedade. Muitas vezes as soluções en- jovens nos anos 90. Daí a necessidade de uma iden-
contradas implicam em uma fusão de múltiplos “pro- tidade mais abrangente (e ambígua), evidente no
jetos-em-formação”, cristalizados numa dada iden- universalismo formal de “cidadão.”
tidade social. Assim as identidades funcionam mais
como prismas do que como fronteiras, oferecendo Concentração de identidade: os anos 60
possibilidades para a fusão de projetos pessoais e
coletivos que atravessam círculos e redes sociais. Para acompanhar essa transformação, é neces-
sário prestar atenção à estrutura do mundo juvenil
Mudanças estruturais e culturais: 1960-1990 universitário nos anos 60. No início da década, esse
mundo estava no meio de uma reconfiguração im-
Como será que esse conceito mais dinâmico e portante, devido ao influxo da classe média no en-
interativo de identidade pode nos ajudar na com- sino superior do país. Embora a porcentagem dos

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jovens no ensino superior continuasse minúscula em mento pelo jovem das expectativas familiares, e a
relação ao conjunto juvenil do país, esse setor se formação de “projetos de carreira” que melhor ex-
achava em plena expansão, aumentando de 27.253 pressam seus desejos de autonomia e participação
estudantes matriculados em 1945, para 142.386 em dentro do contexto do desenvolvimento nacional
1964, o que significa um crescimento linear anual do país:
de 12,5% (Cunha, 1983). Até 1971, esse número
Transformando-se em estudante e procurando
aumentou para 561.387, um crescimento de mais
dar sentido renovador ao seu projeto de carreira, o
de 500% ao longo da década dos 60 (Durham,
jovem está, ao mesmo tempo, reconhecendo os con-
1993). Segundo a análise de Luís A. Cunha (1983),
tornos de uma condição alienada, tal como se formula
essa expansão se deve a uma confluência de fato-
no plano da experiência familiar, e lutando para ultra-
res, incluindo, por um lado, o aumento da deman-
passá-la com os recursos de engajamento de que se
da pelo ensino superior entre a “nova classe média”,
dispõe como estudante, ou seja, como futuro profis-
para garantir acesso ao novo setor burocrático das
sional. (Foracchi, 1977, 299)
empresas privadas e estatais, e por outro lado, “o
atendimento da demanda de ensino universitário Enquanto os jovens passavam do círculo res-
por parte do Estado populista”, que removeu as trito da família para as redes mais complexas da
barreiras ao ensino superior enquanto aumentava universidade, a identidade estudantil se investia com
o número de vagas nas universidades públicas e gra- novas e autônomas significações. Desiludindo-se
tuitas (Martins, 1987, 35). Esse aumento de vagas com as condições inadequadas do ensino nas uni-
se deu por meio da “federalização” do sistema uni- versidades, que não foram equipadas para atender
versitário, que, começando no final dos anos 50, ao influxo dramático de jovens de classe média,
juntava os estabelecimentos isolados de ensino (par- muitos estudantes se juntaram às discussões e ma-
ticulares, municipais e estaduais) e criava grandes nifestações pela reforma universitária no início da
centros universitários, que começavam a ter um pa- década, que para muitos foi o ponto de partida para
pel importante na vida intelectual, cultural e polí- uma postura crítica e um engajamento maior. Na-
tica do país.4 quele momento, as universidades serviram como os
Dentro desse quadro, podemos traçar a cres- principais centros de intercâmbio intelectual, polí-
cente importância da categoria de “estudante” nas tico e cultural, constituindo uma concentração in-
suas passagens por diversas redes interpessoais e tensa de círculos de reconhecimento por parte dos
organizacionais, durante a tumultuada década de estudantes: “Quase toda a vida cultural e compor-
60. Num estudo revelador sobre os estudantes da tamental juvenil, mesmo quando não consubstan-
Universidade de São Paulo em 1962, Marialice Fo- ciada no movimento estudantil, é constituída e se
racchi descobriu uma alta incidência de estudantes expressa no espaço universitário: das discussões exis-
da primeira geração universitária, muitas vezes de tencialistas à bossa nova, passando pelo projeto de
familias de ascendência imigrante. Foracchi de- constituição de uma cultura nacional popular do
monstra como a ambigüidade da categoria de “es- CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE, pelos
tudante” serve como veículo tanto do projeto fa- festivais de música universitária e pela tropicália:
miliar de ascensão social, quanto do questiona- são culturas e estilos de vida identificados aos meios
universitários, vividos por universitários” (Abramo
1992, 85).
Essa rica interatividade nas universidades cru-
4
No meio da década de 60, 65% da matrículas eram zou, naquele momento, com uma nova configura-
em universidades, a grande maioria instituições públicas ção nas redes organizacionais dos militantes estu-
(Cunha, 1983, 94.). dantis. A direção do ME estava saindo de uma po-

Revista Brasileira de Educação 141


Ann Mische

larização, na década anterior, entre os grupos ude- organizada.5 Embora a sede da UNE no Rio de Ja-
nistas/liberais, que controlavam a UNE de 1950- neiro tenha sido invadida e incendiada, e as entida-
55, e os grupos vanguardistas da esquerda, hege- des estudantis autônomas banidas (substituídas pe-
monizados pelo Partido Comunista. O início dos los “diretórios” atrelados ao Estado), o movimen-
anos 60 foi marcado pela ascendência da juventu- to continuou a crescer durante os anos subsequen-
de católica, organizada primeiro na JUC e depois, tes. Como uma liderança estudantil comentou, “ho-
quando as lideranças se radicalizaram e sairam je, é mais fácil convencer um estudante de que ele
daquela entidade, na Ação Popular (Souza, 1994; deve ser contra a ditadura, do que era antes con-
Lima e Arantes, 1984). Essas lideranças consegui- vencê-lo que ele deveria ser contra o capitalismo”
ram se compor com diversos grupos da esquerda (Foracchi 1982, 63). O reconhecimento e aprendi-
marxista, formando o dito “grupão”, ao mesmo zado social dos estudantes, ocasionados pelas ma-
tempo que expandiam o apoio entre as bases estu- nifestações de massa e os conflitos com a polícia,
dantis, ajudando a superar a distância entre essas aguçaram tanto a crítica do Estado militar (e seus
bases e os grupos vanguardistas: “Melhor do que laços com o imperialismo capitalista), quanto a iden-
elas, as organizações católicas canalizaram a insa- tidade empolgante dos estudantes como “sujeitos
tisfação da juventude da classe média, e sensíveis da história”, engajados em projetos revolucionários
aos reclamos de um meio que muito bem conheci- de transformação social. Ao lado da radicalização
am, souberam levantar a bandeira da “Reforma da crescente dos setores militantes, se viu de novo uma
Universidade” (Martins 1994, 2). Nos anos que convergência de lutas específicas do meio estudan-
dirigiu a UNE, esse grupo ajudou a intensificar o til — como a crítica ao projeto MEC-USAID e a
intercâmbio político e cultural nas universidades retomada das bandeiras da reforma universitária —
por meio da UNE-volante, onde os diretores da com as lutas políticas mais gerais, contra a ditatura
UNE viajavam aos estados para discutir as refor- e a interferência norte-americana no desenvolvimen-
mas e mobilizar a “greve do 1/3” pela democrati- to do país. Além disso, o clima foi permeado pela
zação interna das universidades. Essas viagens fo- utopia social, a liberalização cultural e a alta serie-
ram dinamizadas pelas apresentações culturais do dade político-moral que caracterizou o movimen-
recém formado Centro Popular de Cultura (CPC to juvenil internacional que estava explodindo em
da UNE), que aumentaram a receptividade dos jo- várias partes do mundo.
vens aos mensagens políticas. Segundo João Ro- Para resumir, os contextos interpessoais, ideo-
berto Martins Filho, a participação maciça dos es- lógicos e políticos dos anos 60, vividos principal-
tudantes na greve de 1962 “cristalizou um mo- mente pelos jovens universitários, carregaram a iden-
mento da convergência entre a ‘vanguarda’ estu- tidade de “estudante” com significados múltiplos
dantil e a massa universitária” (Martins 1994, 2), capazes de ligar uma variedade de projetos-em-for-
embora a derrota da greve resultasse no deloca- mação. A “atualização” dessa identidade (para usar
mento do interesse da militância das lutas “espe-
cíficas” universitárias para a busca de alianças “po-
líticas” com setores operários e camponeses (Mar-
tins, 1987, 1994). 5 Alguns comentaristas argumentam que, diferente do
Depois do golpe de 1964, o movimento estu- movimento sindical e camponês, o ME sobreviveu inicial-
dantil (e a categoria de “estudante”) ganhou uma mente depois do golpe militar devido à posição ambígua dos
estudantes da classe média, e à ascendência, nos anos 1964-
nova forma de reconhecimento, através da dinâmica
66, de setores “liberais” à liderança estudantil em vários
do confronto com o Estado militar. Durante os pri- estados, onde no começo simpatizaram com o golpe, em-
meiros anos da ditadura, as universidades foram os bora logo em seguida ficaram disiludidos com a perda da
únicos espaços que restaram de oposição visível e democracia (Martins, 1987).

142 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


De estudantes a cidadãos

o termo de Mannheim) e sua capacidade de crista- mo, 1992; Costa, 1993; Sposito, 1994). Segundo
lizar um “estilo geracional” emergente não eram Felícia Madeira, as décadas intermediárias dos 70
“inerentes” à posição de familia, classe, ou geração e 80 visavam “uma série de modificações que (...)
dos estudantes, mas dependia dos processos de apren- estenderam a identidade jovem para uma parcela
dizagem social que ocorriam em vários “círculos de maior da sociedade” — entre as quais se destacam
reconhecimento”, através de redes densas e concen- o rejuvenescimento (e monetarização) do mercado
tradas, ocasionando a radicalização de uma iden- de trabalho, o aumento das oportunidades de estu-
tidade que fôra, no início da década, relativamen- do, a penetracão dos meios de comunicação de mas-
te restrita e delimitada. sa, e a difusão do sistema crediário, facilitando o
acesso ao consumo para jovens das classes popu-
Dispersão de identidade: os anos 90 lares (Madeira,1986). “Ser jovem” não é mais equi-
valente a “ser estudante”; a identidade juvenil se
Três décadas depois do desmantelamento bru- desloca para fora das universidades, estendendo seu
tal do movimento estudantil dos anos 60, os jovens alcance além dos setores médios e abrangendo ou-
brasileiros enfrentam uma outra configuração, bas- tras significações, altamente ligadas ao consumo e
tante diferenciada, de seus contextos relacionais e aos “estilos” culturais.
culturais. Uma mudança crítica é que as universi- Ao mesmo tempo, o meio universitário viveu
dades — e o movimento estudantil — já não se cons- seu próprio processo de diversificação. De 1971
tituem como os centros da vida cultural e política para 1991, o número de matrículas no ensino su-
juvenil. Com a crise da esquerda, o fim da ditadu- perior cresceu de 561.397 para 1.565.056, embo-
ra como fator unificador e a abertura de espaços ra houvesse uma estagnação do crescimento durante
alternativos para participação política, o movimen- os anos 80 (Durham, 1993, 8). O excedente de de-
to estudantil perde seu monopólio na mobilização manda pelo ensino superior que começou a se ma-
juvenil. A diversificação da experiência da juventu- nifestar no final dos anos 60 foi absorvido em gran-
de, especialmente com a extensão da “cultura jo- de parte pelo setor privado, localizando-se com
vem” para jovens trabalhadores e das periferias, é maior frequência em faculdades isoladas, em vez de
confirmada por estudos recentes sobre os jovens universidades centralizadas6. Em 1990, das 918 ins-
brasileiros durante a “modernização conservadora” tituições de ensino superior, 749 eram estabeleci-
dos anos 80: mentos isolados, dos quais 582 eram particulares
(Durham, 1993, 10). As universidades públicas tam-
Descortina-se uma nova configuração do univer-
bém foram decentralizadas, exemplificado no de-
so juvenil: a crise do espaço universitário como signi-
mantelamento da Faculdade de Filosofia da USP na
ficativo para a elaboração das referências culturais, o
Rua Maria Antonia, que nos anos 60 foi sede de
enfraquecimento da noção de cultura alternativa como
uma intensa interatividade político e cultural; e sua
modo de contraposição ao sistema, e a emergência de
substituição pelas faculdades fragmentadas e isola-
uma intensa vivência, por parte dos jovens das cama-
doras da Cidade Universitária, que dificultam a or-
das populares, no campo de lazer ligado à indústria
ganização política.
cultural. (Abramo, 1994, 82)

Em contraste com os anos 60, os jovens ago-


ra passam seus anos formativos em redes mais dis-
6 A proporção de estudantes matriculados nas insti-
persas, formadas nas escolas públicas e particula-
tuições particulares subiu de 44.05% em 1961 para 61,30%
res, nos lugares de trabalho, nos “shopping cen- em 1991 (Durham, 1993); no início dos anos 90 a porcen-
ters”, nos clubes noturnos, nos bairros e ruas, e em tagem de instituições privadas establizou-se em torno de
outras espaços de lazer, cultura e sociabilidade (Abra- 75% do total (Sampaio, 1995).

Revista Brasileira de Educação 143


Ann Mische

Entre os estudantes dessas faculdades, as con- tidárias. Porém, no início dos anos 90 a PJ também
dições de trabalho e as redes de sociabilidade tam- se encontra em uma “crise” de reavaliação, distan-
bém se diversificaram. Numa pesquisa recente so- ciada da população jovem mais ampla. Mais recen-
bre universitários em São Paulo e Campinas, Ruth temente, outros grupos juvenis estão emergindo,
Cardoso e Helena Sampaio anotam que mais da desde os movimentos dos negros e homossexuais,
metade dos alunos pesquisados trabalham, uma ca- até as associações de área e as empresas juniores,
racterística que atravessa atributos como gênero e localizadas nos cursos universitários. Muitas vezes
classe social, embora varie significamente por cur- as redes dos movimentos, partidos, e outras orga-
so universitário (Cardoso e Sampaio, 1994). Des- nizações se cruzam, criando novos conflictos e opor-
ses alunos, 48% se socializam com mais frequência tunidades vindo da superposição de diferentes pro-
com pessoas fora da escola, embora 26% saiam jetos e estilos de intervenção. Essas tensões per-
com pessoas dentro e fora da escola, e apenas 12% meiam o campo político-juvenil nos anos 90, influin-
dão preferência aos amigos do meio escolar (Sam- do tanto nas relações entre os grupos, como nas di-
paio, s.d.)7 . Essa diversificação das redes de estu- ficuldades de atrair mais jovens para a participação
do, trabalho, e sociabilidade expõe os jovens a in- política organizada (Mische, 1996b).
fluências e pressões diversas, exigindo um certo jogo A partir dessa breve análise, vimos como as
de coordenação e segmentação entre os diversos redes interativas dos jovens — junto com os con-
envolvimentos. textos culturais-ideológicos para a formação de iden-
No meio dos grupos organizados, também se tidades — se diversificaram durante os anos 90,
vê uma complexificação marcante das formas de tanto para os militantes juvenis como para as juven-
participação social e política, embora essas redes tudes mais amplas. Para muitos jovens, a perplexi-
continuem a ser densas e entrelaçadas. Jovens com dade diante desse quadro foi intensificada pelas in-
algum interesse político agora podem escolher en- certezas e frustrações da década anterior de transi-
tre muitas formas alternativas de militância, inclu- ção democrática. Os jovens testemunharam as cri-
indo partidos políticos, movimentos populares, sin- ses e escândalos recorrentes do retorno ao gover-
dicais e anti-discriminatórios, organizações não- no civil, junto com as contradições de verem os dis-
governamentais e associações profissionais. Desde cursos e formalismos democráticos (incluindo uma
seu reaparecimento nas manifestações pela demo- nova constituição) ao lado dos vestígios de auto-
cratização no final dos anos 70, o movimento es- ritarismo. Esses vestígios foram especialmente visí-
tudantil tem se engajado num processo conflituoso veis para os estudantes na resistência de muitas di-
de reconstrução, embora ficasse politicamente mar- reções escolares aos grêmios estudantis e na repres-
ginalizado durante a maior parte dos anos 80. Nesse são às greves dos professores no final dos anos 80.
período, a Pastoral de Juventude da Igreja Católi- Ao mesmo tempo, viviam a ansiedade da inflação
ca começou a se destacar, focalizando os anseios e crônica, junto com uma recessão econômica que
esperanças das camadas populares, e formando qua- sufocou as aspirações de muitos jovens, de diver-
dros importantes de lideranças comunitárias e par- sas classes sociais. Esses fatores confluiram para
sustentar uma ambivalência forte sobre a política,
um ceticismo sobre a possibilidade de mudanças
institucionais e uma tendência à paralisia política.
7 É interessante notar que a preferência de sociabili-
Porém, essa ambivalência não significa neces-
dade varia de acordo com o grau de centralidade ou isola-
sariamente que os jovens fossem acríticos ou apá-
mento das escolas: nas universidades públicas, 20% saem
com pessoas das escolas, enquanto nas escolas isoladas pri- ticos. Aponta, por outro lado, para a falta de espa-
vadas esse número diminui para 12%, chegando a 5,4% nas ços centralizadores ou de identidades públicas uni-
universidades particulares (Sampaio, s.d.). ficadoras, capazes de transformar suas críticas so-

144 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


De estudantes a cidadãos

ciais — muitas vezes agudas — em ação coletiva. ticulações, embora as vantagens possam tomar a
Mas o potencial que poderia ser mobilizado para forma não-material de liderança ou status dentro
protesto social ainda estava presente; a simpatia, a das várias redes conectadas através deles.
indignação e o entusiasmo dos jovens poderiam ser No contexto brasileiro, uma ponte importan-
tocados de forma inesperada, como aconteceu em te se constróoi por meio do fenômeno da “militân-
agosto de de 1992. cia múltipla”, no caso de jovens que são simulta-
neamente lideranças no movimento estudantil, nos
Convergência e interlocução partidos políticos, nos grupos da igreja, ou em ou-
tros movimentos e organizações. Apesar das afir-
Embora essa análise das configurações juvenis mações da “autonomia” dos movimentos e protes-
explicasse a ressonância reduzida da identidade es- tos contra a “partidarização” das entidades, na ver-
tudantil nos anos 90, ainda não explica por que a dade, as redes de liderança são extremamente inter-
categoria de “cidadão” surgiu como alternativa efe- ligadas. Facções do movimento estudantil são inti-
tiva. Nem explica a dinâmica de articulação dessa mamente ligadas à participação em partidos e ten-
identidade no meio de uma convergência política dências de esquerda — um fator que não quero de-
inesperada e multifacetada. Para entender essa di- nunciar como falha-base, como fazem muitos ou-
nâmica no contexto da diversificação das redes ju- tros críticos, pois aparece quase como uma neces-
venis nos anos 90, precisamos examinar como a sidade estrutural dentro da complexa organização
articulação de identidades e projetos atravessa re- da sociedade civil e política dos anos 90, onde o
des distintas, tanto interpessoais como organizacio- engajamento nas “lutas institucionais” faz parte das
nais. Aqui é essencial o papel de interlocutores so- estratégias e repertórios dos movimentos sociais. Ao
ciais, com identidades múltiplas, posicionados no mesmo tempo, é importante reconhecer que o ca-
cruzamento de vários contextos sociais. ráter denso e entrelaçado dessas redes — onde os
Para entender esse processo, precisamos vol- militantes falam muito entre si e pouco para quem
tar à ideia dos círculos de reconhecimento: as iden- está fora — tem tido consequências negativas para
tidades se tornam visíveis apenas quando reconhe- o movimento. Contribui para a desilusão de mui-
cidas por outros dentro de locais específicos de inte- tos jovens com a política estudantil organizada e as
ração. As pessoas que servem como pontes efetivas entidades históricas do ME, que eles vêem como
são aquelas que podem evocar sua multiplicidade distantes de suas preocupações e aspirações. Com
de laços (e identidades) para serem “vistas” em uma efeito, os laços fortes e identidades restritas dos mili-
variedade de contextos sociais, e assim viabilizar tantes têm reforçado uma tendência ao auto-isola-
oportunidades para conexão e ação conjuntas de mento do ME, devido à falta de resonância com as
diversas pessoas ou grupos. Porém, essas conexões identidades mais dispersas dos jovens brasileiros.
não implicam necessariamente em uma correspon- Durante as manifestações pelo impeachment,
dência de objetivos entre todos os setores ligados, porém, alguns interlocutores novos entraram em
pois só funcionam porque atores desligados reco- cena que foram capazes de renovar tanto os víncu-
nhecem dimensões diferentes de si mesmos na iden- los fortes dentro do ME e da esquerda, quanto os
tidade multivalente da “pessoa-ponte”, que assim laços mais amplos com outros setores juvenis. Um
serve como um “prisma” para projetos diversos. Por exemplo marcante aparece na pessoa de Lindberg
isso, as ligações formadas são sempre ambíguas, Farias, que virou herói popular em decorrência das
experimentais e, às vezes, contraditórias, embora manifestações. Lindberg também foi militante do
possibilitem alianças provisórias e conjunturais. Co- PC do B, que controlara a direção da UNE desde a
mo qualquer intermediário, tais interlocutores po- reconstrução da entidade em 1979 (com exceção
dem também colher benefícios próprios dessas ar- dos anos 1987-1991, quando foi dirigida majori-

Revista Brasileira de Educação 145


Ann Mische

tariamente pelo PT). Por causa de suas múltiplas leves e alegres de participação social (embora essa
identidades públicas, Lindberg foi a figura ideal pa- mentalidade ainda pudesse levá-los a uma crítica
ra construir a ponte entre o movimento estudantil mais aprofundada das barreiras impostas aos jovens
tradicional, os projetos da esquerda, e as experiên- pelo sistema capitalista). De tal maneira, essa cor-
cias dispersas da geração “shopping center.” Em- rente tentava focalizar as novas aspirações e frus-
bora filho de ativistas políticos, um “socialista con- trações dos setores médios estudantis, nas escolas
victo” e uma militante comunista de muitos anos, secundárias e nas faculdades públicas e particula-
ele projetou uma imagem bonita e charmosa, com res. Nas outras alas da militância, incluindo alguns
um vocabulário jovem que ajudou a quebrar a es- setores do PT, surgiu uma discussão paralela sobre
tereotipia do militante chato e barbudo. Assim ele as novas preocupações dos jovens, não necessaria-
conseguiu se projetar para fora das redes militan- mente concentradas nas universidades, porém mais
tes, aparecendo nas manifestações (e na mídia) co- dispersas nos movimentos sociais e sindicais, e nas
mo figura simpática e inteligente na qual os jovens expressões culturais das periferias.
de classe média poderiam reconhecer suas própri- Enquanto tais discussões levaram muitos mi-
as experiências e aspirações. Como já vimos, Lind- litantes petistas a desvalorizar o engajamento no
berg conscientemente subordinou sua orientação ME, o PC do B manteve seu investimento na poten-
socialista, declarando que “como presidente da cialidade estudantil. Devido à sua tenacidade na
UNE, represento os interesses dos estudantes bra- disputa pelo controle das entidades estudantis, essa
sileiros e tenho posições mais amplas” (Folha de São corrente conseguiu colocar Lindberg numa posição,
Paulo, 31/8/92). Nas passeatas, como nas inúme- em 1992, que o permitiu desfrutar de uma explo-
ras entrevistas, ele abraçou seu papel de pessoa- são política que nem ele nem o partido previam. À
ponte, enfatizando a convergência de diversos se- frente da entidade histórica dos estudantes, e com
tores de jovens: a ajuda da militância partidária, Lindberg cresceu
como liderança dentro de seu papel múltiplo, como
Eram 20 mil jovens. Diversos os rostos. Desde
porta-voz emergente do movimento, articulador su-
os que usavam camisas de Che Guevara até os fre-
prapartidário das lideranças estudantis e mobili-
quentadores de shopping centers. Estudantes pesqui-
zador-relâmpago da logística e infraestrutura das
sadores, bolsistas do CNPq, junto a metaleiros e ska-
passeatas. Especialmente notável foi uma colabora-
tistas. Todos, revoltados, pediam o impeachment do
ção entre as direções da UNE e do Centro Acadê-
presidente. Foi a passeata do grito indignado de uma
mico XI de Agosto, que sediou o ato que fechou a
juventude que acredita na mudança no Brasil. (Folha
primeira passeata, forjando uma aliança provisória
de São Paulo, 15/8/92)
entre os comunistas e os social-democratas em nome
Para não supervalorizar o papel do indivíduo, do projeto mais amplo da defesa da cidadania.
é importante lembrar que Lindberg não agiu sozi- Por outro lado, se Lindberg, junto com a UNE
nho, nem em relação a sua própria corrente políti- e os partidos políticos souberam aproveitar e cana-
ca, nem em relação às outras forças ativas no mo- lizar a conjuntura emergente, eles também foram
vimento pelo impeachment. A própria eleição de usados por atores e forças distintas — e muitas vezes
Lindberg como presidente da UNE se deve a uma alheias — a seus próprios projetos políticos. Já vi-
mudança explícita de estratégia dentro do ME, que mos como a grande imprensa, os políticos diversos,
estava sendo articulada nas várias forças políticas e até os ex-representantes do Estado militar, con-
desde o final dos anos 80. Por exemplo, a juventu- correram para oferecer seus elogios aos jovens ma-
de do PC do B começara a destacar uma “nova men- nifestantes, embora enfatizassem a visão esponta-
talidade” entre os jovens, que estaria mais voltada neista e puramente ética da cidadania. O papel da
para cultura, esporte, ecologia e outras formas mais imprensa foi especialmente importante aqui, pois

146 Mai/Jun/Jul/Ago 1997 N º 5 Set/Out/Nov/Dez 1997 N º 6


De estudantes a cidadãos

Lindberg deve sua extraordinária projeção social em criminatórios (dos negros, mulheres, povos indíge-
grande parte à sua “adoção” como menino-dos- nas, homosexuais, etc.), até sua recente apropria-
olhos da imprensa, que aumentou mil vezes o po- ção pelos setores consumidores e empresariais, re-
der “prísmico” de sua posição multivalente. A mí- vela sua capacidade de veicular projetos divergen-
dia também operou no sentido de possibilitar que tes dentro da linguagem universalista de direitos e
milhares de jovens, em redes dispersas e desorga- responsibilidades. Assim, coloca-se uma questão
nizadas, soubessem com antecedência do percurso ideológica de fundo: nesse cruzamento, quais pro-
das manifestações, e assim pudessem se juntar a jetos substantivos estão ganhando campo em rela-
partir de mil focos informais nas escolas, nos bair- ção à futura direção política e econômica do país?
ros, nos locais de trabalho e de sociabilidade. O As divergências nesse ponto aparecem no meio dos
descaso dessa mesma mídia com os projetos maio- grupos organizados, e se evidenciam na falta de uni-
res do ME se evidenciou no ano seguinte, quando formidade na adoção da identidade cívica: em al-
foi lançado um ataque feroz contra o “sectarismo” guns contextos, os jovens abraçam essa identidade
e a “visão antiquada” que a imprensa visava nas com conviccão e energia, embora em outros, te-
entidades estudantis. nham bastante ambivalência e disputa ideológica
sobre o alcance e os limites do conceito. Porém, dois
Reconfigurações emergentes aspectos do universalismo do conceito de “cidada-
nia” merecem mais atenção: como essa linguagem
O ponto de partida da análise desenvolvida está sendo mobilizada para articular conexões com
aqui é a necessidade de reexaminar a participação setores mais amplos da juventude, como vimos aci-
juvenil a partir da intersecção de duas óticas dife- ma; e talvez mais criticamente, como o discurso
rentes: 1) da estrutura relacional e cultural dos mun- cívico também serve para estabelecer parâmetros
dos juvenis num dado momento histórico, e 2) da éticos de comunicação interna entre os próprios
estrutura dos grupos organizados, que serve, às ve- grupos organizados, dada a heterogeneidade e com-
zes de maneira ambígua e contraditória, como “pon- plexidade do campo político-juvenil nos anos 90.
te articuladora” na fusão de projetos pessoais e cole- Como as redes organizacionais juvenis estão
tivos. Contra os perigos gêmeos do espontaneismo se reconfigurando, em decorrência das manifesta-
e iluminismo, procuro localizar os pontos de cone- ções de 1992? Embora os caras pintadas aparen-
xão e de distanciamento entre essas óticas, e ver temente tivessem se ausentado do cenário nacional
como influem na formação de novas identidades e logo após o impeachment, as manifestações juvenis
práticas políticas. Restam três linhas de indagação, tiveram um forte impacto nas redes organizadas,
que abro brevemente aqui como indicativas para o reforçando um processo de reavaliação interna que
estudo mais amplo que estou elaborando sobre mo- os militantes ainda estão tentando desenrolar. O
vimentos juvenis brasileiros nos anos 90. ME se ocupou em canalizar o influxo de energia e
De que maneira a nova identidade de “cida- reconhecimento social que ganhou com o impeach-
dão” está funcionando como ponte-articuladora ment, se empolgando na tarefa de formar grêmios
dos movimentos juvenis? Como vimos acima, a res- estudantis e revitalizar os centros acadêmicos e DCEs.
posta é muito mais complexa do que se imagina, Embora o número de entidades estudantis tenha cla-
devido às interpretações tão diversificadas do sen- ramente aumentado, especialmente nos meses imedia-
tido e prática de “cidadania” (Mische, 1996a). A tamente após o impeachment, os dados sobre a quan-
trajetória do discurso cívico no Brasil, desde seu tidade de novas entidades são bastante incertos; e
reaparecimento nos movimentos populares e sindi- a comprensão do papel que elas exercem nas diver-
cais no final dos anos 70, passando por sua expan- sas cidades e regiões do país requer um levantamen-
são com os movimentos anti-ditatoriais e anti-dis- to sistemático. Além disso, é importante analisar as

Revista Brasileira de Educação 147


Ann Mische

reconfigurações das relações entre os diversos gru- rias manifestações assumidas por essa nova “cons-
pos organizados, não apenas em relação às corren- ciência de cidadania.” Para não incorrermos no re-
tes políticas tradicionais, mas também visando a trato individualista e desinteressado da juventude,
relação do ME “geral”, simbolizado pela entidade é importante indagar sobre a existência de novas
histórica da UNE, com os outros movimentos e or- maneiras de articular projetos pessoais e coletivos,
ganizações mais “específicos” (do ponto de vista do talvez sem a grande escala utópica das décadas pas-
ME), incluindo o movimento negro, 8 os movimen- sadas, porém mostrando outras formas, mais prág-
tos de área (ligados aos cursos universitários), as maticas e delimitadas, de ligar as preocupações e
empresas juniores, e outros setores que se organi- aspirações pessoais com visões mais amplas da so-
zam fora do meio escolar ou universitário, como os ciedade e seus problemas. Os sinais recentes de maior
movimentos sindicais, religiosos e comunitários. A interesse estudantil pelas organizações específicas de
necessidade de tal análise está colocada pelo carác- curso, além da emergência de várias formas con-
ter majoritariamente branco e de classe média dos testadoras de expressão cultural, apontam para al-
caras pintadas e das lideranças estudantis, apesar gumas possibilidades nesse sentido, embora as ten-
do presidente da UNE eleito em 1996 ser negro e dências ao corporativismo e/ou ao recuo político
usar este fato como bandeira da entidade. A mar- desses setores também precisem ser analisadas.
ginalização da questão racial na política estudantil
foi salientada por universitários negros no Congresso Conclusão
da UNE de 1993 sob a bandeira: “A juventude ne-
gra não tem cara pintada.” As relações muitas vezes As influências a médio e longo prazo das ma-
conflituosas entre esses setores, além de tentativas nifestações de 1992, tanto para os jovens como para
recentes de aproximação, apontam para uma refor- a cultura política democrática no Brasil, ainda es-
mulacão (ainda em progresso) dessas relações, cujos tão para ser vistas. Depois das passeatas, a maio-
parâmetros precisam ser melhor compreendidos. ria dos caras pintadas voltaram para suas redes dis-
Existem sinais do advento de uma consciên- persas nas escolas, trabalhos e shopping centers.
cia “cívica”, embora difusa, entre setores mais am- Embora mais alguns se juntaram aos movimentos
plos da juventude? Essa pergunta é mais difícil para organizados, esses ainda constituem um grupo pe-
se responder, especialmente do ponto de vista de queno. Não se pode dizer que as passeatas “causa-
uma pesquisa que focaliza os grupos organizados. ram” o impeachment do presidente Collor, embo-
A pressuposição básica aqui é que um evento pú- ra certamente contribuiram nessa direção. Porém,
blico de tais proporções como o impeachment, am- elas ajudaram a provocar um momento dramático
plamente divulgado e celebrado nos meios de co- de diálogo social, no qual os discursos e repertórios
municação de massa, não poderia passar sem dei- da cultura cívica podiam ser reformulados.
xar alguma marca nessa coorte de jovens brasilei- Meu argumento é que a interlocução social de
ros. Porém, dada a diversificação das redes e seto- atores como Lindberg Farias funcionou em direções
res juvenis, e a grande dispersão de identidades e diversas: ajudou a dar identidade e orientação aos
projetos-em-formação, seria difícil delinear as vá- jovens nos atos pelo impeachment, ao mesmo tem-
po que contribuiu para a rearticulação dos discur-
sos e projetos dos setores organizados (da esquer-
da e talvez da direita também), na tentativa de ca-
8 Como fui lembrada enfaticamente por jovens uni-
tivar o engajamento de uma coorte de jovens mui-
versitários engajados no movimento negro, do ponto de vista
deste, é o movimento estudantil que aparece como movimen-
to diferenciada daquela de três décadas atrás. Esse
to “específico”, em relação à luta mais abrangente contra processo certamente não começou com Lindberg,
o racismo. pois as auto-reflexões da esquerda já estavam acon-

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De estudantes a cidadãos

tecendo havia algum tempo, como parte de um di- COSTA, Márcia Regina, (1993). Os “Carecas do Subúrbio”.
alogo interno — às vezes doloroso — decorrente das Rio de Janeiro: Vozes.

mudanças no Leste Europeu. Porém, a alta visibi- DURHAM, Eunice Ribeiro, (1993). O sistema federal de
lidade de Lindberg, dentro do clima intensificado ensino superior: problemas e alternativas. Revista Bra-
sileira de Ciências Sociais, 23.
de indignação e debate público, criou um círculo
multivalente de reconhecimento, um prisma forte EMIRBAYER, Mustafa, GOODWIN, Jeff, (1994). Network
analysis, culture, and agency. American Journal of Socio-
no qual os projetos políticos no processo de refor-
logy, 99:6.
mulação poderiam alcançar setores mais amplos da
EMIRBAYER, Mustafa, MISCHE, Ann, (1994). What is
sociedade. Se ele foi usado por diversas forças po-
Agency?. Los Angeles, August 5-9 1994. (Paper presented
líticas, ele também se aproveitou de uma dinâmica
at the Conference of the American Sociological Asso-
que lançou aprendizados sociais em vários sentidos. ciation)
Nesse processo, criou-se a possibilidade de uma re- ERIKSON, Erik, (1968). Identity: Youth and Crisis. New
focalização de discursos políticos no sentido mais York: W. W. Norton.
abrangente de cidadania, e a incorporação desse
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formação no universalismo ambíguo de cidadania GOULD, Roger, (1991). Multiple networks and mobiliza-
serviu para criar pontes — pelo menos momenta- tion in the Paris Commune, 1871. American Sociological
neamente — entre as redes densas dos militantes e Review, 56.
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