Você está na página 1de 174

Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Reitor
Prof. Dr. Pasqual Barretti

Vice-Reitora
Profa. Dra. Maysa Furlan

Pró-Reitor de Pesquisa
Prof. Dr. Edson Cocchieri Botelho

Pró-Reitor de Extensão Universitária e Cultura


Prof. Dr. Raul Borges Guimarães

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


Diretor
Prof. Dr. Murilo Gaspardo

Vice-Diretora
Profa. Dra. Nanci Soares

Comissão Editorial UNESP - Câmpus de Franca


Presidente
Prof. Dr. Murilo Gaspardo

Membros
Prof. Dr. Agnaldo de Sousa Barbosa
Prof. Dr. Alexandre Marques Mendes
Profa. Dra. Analúcia Bueno Reis Giometti
Profa. Dra. Cirlene Aparecida Hilário da Silva Oliveira
Profa. Dra. Elisabete Maniglia
Prof. Dr. Genaro Alvarenga Fonseca
Profa. Dra. Helen Barbosa Raiz
Profa. Dra. Hilda Maria Gonçalves da Silva
Prof. Dr. Jean Marcel Carvalho França
Prof. Dr. José Duarte Neto
Profa. Dra. Josiani Julião Alves de Oliveira
Prof. Dr. Luis Alexandre Fuccille
Profa. Dra. Paula Regina de Jesus Pinsetta Pavarina
Prof. Dr. Paulo César Corrêa Borges
Prof. Dr. Ricardo Alexandre Ferreira
Profa. Dra. Rita de Cássia Aparecida Biason
Profa. Dra. Valéria dos Santos Guimarães
Profa. Dra. Vânia de Fátima Martino
André Luiz Pereira Spinieli
(Organizador)

REGIMES INTERNACIONAIS DE DIREITOS


HUMANOS: DIÁLOGOS ENTRE O DIREITO
E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Câmpus de Franca
2021
© 2022 Faculdade de Ciências Humanas e Sociais - Franca
Contato
Av. Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, CEP 14409-160, Jd. Petráglia / Franca - SP
publica.franca@unesp.br
Diagramação e Revisão
Sandra Aparecida Cintra Ferreira (STAEPE)
Carlos Alberto Bernardes (STAEPE)
Letícia de Paula Souza
Autores e Autoras
Alexandre Diniz Santiago Isabela de Oliveira Guariza
Amanda Teixeira Fonseca Izabela Novais Marcellino
Angelo Rocha Paschoaleto João Lucas da Silva
Bianca Adam Amaral João Victor da Silva Freitas
Bruna Carbone Jonas de Paula Vieira
Danielle Elis Alves Valdívia Júlia dos Santos Silveira
Danielle Moura Santos Lara Papesso
Diego Andrade Cavalcante Larissa Prudêncio Menezes Ferreira
Edmundo Dantez Costa Neto
Elias Venancio de Souza Letícia Cardoso Ferreira
Felippe Miguel Fontana Letícia Rodrigues Bernardino
Fernanda Tainá Faria Novo Lucas Laino
Flávia Caldeira dos Santos Luís Felipe Pellison
Giovana Guerra do Amaral Marcela Rodrigues da Cunha Oliveira Carvalho
Giovanna Corvino Maria Luís Cuoco Casimiro
Guilherme Henrique Pinto Matheus Cerruti
Guilherme Nóbrega França Priscila Helena Rosa
Huiguis Cailis de Camargo Silva Rodrigo Dutra Gonçalves
Isabela Benites Soares Badur Sofia de Paula Taveira

Regimes internacionais de Direitos Humanos : diálogos entre o Direito e as


Relações Internacionais / André Luiz Pereira Spinieli (organizador).
– Franca : UNESP – FCHS, 2022.
173 p.

ISBN: 978-65-86378-11-5

1.Direito. 2. Relações internacionais. 3. Direitos humanos.

I. Título. II. Spinieli, André Luiz Pereira.

CDD – 340
Ficha catalográfica elaborada pela Bibliotecária Andreia Beatriz Pereira – CRB8/8773
CONTEÚDO
APRESENTAÇÃO DA OBRA
André Luiz Pereira Spinieli........................................................................9

OS DIREITOS HUMANOS E A FALÁCIA DA UNIVERSALIDADE:


POR UMA PERSPECTIVA MULTICULTURAL
Amanda Teixeira Fonseca
Fernanda Tainá Faria Novo
Giovanna Corvino
Isabela Benites Soares Badur
Izabela Novais Marcellino........................................................................13

CONTRIBUIÇÕES DA PERSPECTIVA DECOLONIAL PARA A


LÓGICA TRADICIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
Giovana Guerra do Amaral ......................................................................29

NICARÁGUA: SOB AS BASES DA REPRESSÃO


Jonas de Paula Vieira
Elias Venâncio de Souza
Diego Andrade Cavalcante
Angelo Rocha Paschoaleto
Guilherme Henrique Pinto .......................................................................43

AS MIGRAÇÕES VENEZUELANAS NO BRASIL E O REGIME


INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
Felippe Miguel Fontana
Júlia dos Santos Silveira
Luís Felipe Pellison
Maria Luís Cuoco Casimiro
Matheus Cerruti........................................................................................61
A MORTE DE VLADIMIR HERZOG E OS DIREITOS HUMANOS
NA DITADURA MILITAR NO BRASIL (1964-1985)
Alexandre Diniz Santiago
Bianca Adam Amaral
Danielle Elis Alves Valdívia
Isabela de Oliveira Guariza
Sofia de Paula Taveira...............................................................................73

O CRIME DE TORTURA E A DITADURA MILITAR BRASILEIRA:


UMA ABORDAGEM A PARTIR DOS DIREITOS HUMANOS
Guilherme Nóbrega França
Huiguis Cailis de Camargo Silva
João Lucas da Silva
Lara Papesso.............................................................................................93

POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA SOB A PERSPECTIVA


DO ESTADO BRASILEIRO E O CONSELHO DE DIREITOS
HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS
Larissa Prudêncio Menezes Ferreira
Marcela Rodrigues da Cunha Oliveira Carvalho
Priscila Helena Rosa...............................................................................105

A INOBSERVÂNCIA DO DIREITO À SAÚDE ÀS PESSOAS EM


SITUAÇÃO DE RUA
Rodrigo Dutra Gonçalves.......................................................................117

GÊNERO ENTRE COLCHETES: DISPUTAS E CONSENSOS


SOBRE DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES
Letícia Cardoso Ferreira.........................................................................131
OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA: MOBILIDADE
URBANA, DIREITO À CIDADE E INCLUSÃO SOCIAL
Edmundo Dantez Costa Neto
Lucas Laino
Victória Guimarães de Souza..................................................................149

ANÁLISE SOBRE OS ATAQUES BOLSONARISTAS AOS


DIREITOS HUMANOS E A REAÇÃO INTERNACIONAL
Bruna Carbone
Danielle Moura Santos
Flávia Caldeira dos Santos
João Victor da Silva Freitas
Letícia Rodrigues Bernardino ................................................................161
APRESENTAÇÃO DA OBRA

André Luiz Pereira Spinieli*

Estamos próximos de completarmos dois anos imersos em um


cenário pandêmico que foi responsável pela morte de mais de seiscentas
mil pessoas no Brasil até então. Entre escândalos de corrupção, descasos
com a saúde pública e negação categórica da ciência como instrumento
necessário à solução da crise em que o mundo se encontra inserido,
o instante contemporâneo trouxe à tona novos episódios de violação
estrutural de direitos humanos. Embora brademos cotidianamente essas
garantias como universais, certo é que a pandemia desvelou severos
problemas de efetivação dos direitos humanos tanto no contexto brasileiro
quanto internacional, o que exige a afirmação de um diálogo entre o direito
e as relações internacionais como forma de contornar as dificuldades de
materialização dos direitos humanos na contemporaneidade.
Completamos mais de setenta anos desde a assinatura da
Declaração Universal dos Direitos Humanos e trinta anos da promulgação
da Constituição Federal. Mais que elementos simbólicos da luta pela
concretização dos direitos humanos, hoje podemos perceber que esses
documentos se encontram inseridos em contextos nos quais sua missão
civilizatória falhou. Se os direitos humanos devem ser compreendidos
como elementos mínimos para que os sujeitos possam coexistir em
sociedade de acordo com uma ideia de dignidade humana, então é possível
afirmar que a pandemia foi capaz de extirpar essa perspectiva de vivência
de diversos grupos minoritários e vulneráveis. A dificuldade de acessar
determinados estratos da vida social se tornou uma tônica na realidade
desses grupos não apenas na esfera latino-americana, demarcada por
profundas diferenças, mas também em nível universal, demandando novas
perspectivas conceituais e críticas sobre a cidadania e os próprios direitos
humanos.
Nesta obra, intitulada “Regimes internacionais de direitos
humanos: diálogos entre o direito e as relações internacionais”,
*
Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Franca). Especialista
em Direitos Humanos pela Faculdade de Ciências e Tecnologias de Campos Gerais
(FACICA/Campos Gerais). Membro do Laboratório de Estudos e Pesquisas Avançadas
em Direito Internacional Ambiental (LEPADIA), vinculado à Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Em 2020 e 2021, foi professor da disciplina “Regime Internacional
de Direitos Humanos”, na Graduação em Relações Internacionais da UNESP. E-mail:
andre.spinieli@unesp.br.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 9


relações internacionais
apresentamos os resultados das pesquisas realizadas pelos discentes
da disciplina homônima, assim como por convidados que participaram
diretamente das reflexões em sala de aula. A proposta da realização de
uma coletânea de artigos em formato de livro surgiu a partir do instante
em que percebemos não apenas a qualidade dos temas que os Graduandos
em Relações Internacionais discutiam em suas pesquisas individuais e
coletivas, mas principalmente a forma como demonstraram ser possível
uma interlocução frutífera entre o direito e as relações internacionais –
elemento que permeou os encontros da disciplina que deu origem a esta
obra, na qual a ênfase foi justamente as preocupações com os direitos
humanos das populações vulneráveis e minoritárias tanto no Brasil quanto
nos Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos, notadamente
os Sistemas Interamericano e Europeu.
Este livro, que se figura enquanto resultado das discussões travadas
no âmbito da disciplina “Regime Internacional de Direitos Humanos”, é
uma realização conjunta entre docente e discentes, além da colaboração
direta de convidados. Nele, são discutidos elementos epistemológicos
para uma nova visão do direito internacional dos direitos humanos, com
destaque para as reflexões sobre multiculturalismo e decolonialidade. Além
disso, também há uma aproximação extensa acerca dos problemas que
afetam a materialização dos direitos humanos de populações vulneráveis
e minoritárias, permitindo um amplo debate sobre gênero, deficiência,
migração, refúgio, situação de rua e o papel de governos autoritários para
o aprofundamento das crises em direitos humanos.

Franca, 20 de setembro de 2021.

10 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
PARTE I

ELEMENTOS TEÓRICOS PARA UMA


NOVA EPISTEMOLOGIA DO DIREITO
INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
OS DIREITOS HUMANOS E A FALÁCIA DA
UNIVERSALIDADE: POR UMA PERSPECTIVA
MULTICULTURAL

HUMAN RIGHTS AND THE FALLACY OF UNIVERSALITY: FOR


A MULTICULTURAL PERSPECTIVE

Amanda Teixeira Fonseca*


Fernanda Tainá Faria Novo**
Giovanna Corvino***
Isabela Benites Soares Badur****
Izabela Novais Marcellino*****

RESUMO: O presente trabalho objetiva investigar o mito da universalidade que reveste os direitos
humanos e explorar um horizonte diferente, o do multiculturalismo. Por meio da abordagem
bibliográfica descritiva, compreendemos o universalismo como um entrave para a aplicação dos
direitos humanos, uma vez que perpetua visões hegemônicas e exclui a vivência de tantas outras
sociedades que não as ocidentais. Exploramos as lentes do multiculturalismo como mecanismos
para ampliar a abrangência dos direitos humanos e possibilitar uma aproximação entre teoria e
prática.
Palavras-chave: Multiculturalismo. Universalidade. Teoria crítica. Direitos humanos. Globalização.
ABSTRACT: This paper aims to investigate the myth of universality that covers human rights
and to explore a different horizon, that of multiculturalism. Through the descriptive bibliographic
approach, we understand universalism as an obstacle to the application of human rights, since it
perpetuates hegemonic views and excludes the experience of so many other non-Western societies.
We explored the lenses of multiculturalism as mechanisms to expand the scope of Human Rights
and enable an approximation between theory and practice.
Keywords: Multiculturalism. Universality. Critical theory. Human rights. Globalization.

*
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Assistente de Negócios na Zenvia Mobile. E-mail: amanda.fseca@gmail.com.
**
Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP),
Ex-membro do “Grupo de Estudos e Extensão em Marketing Internacional”, Analista de
Importação na CGO Assessoria em Comércio Exterior. E-mail: ftfnovo@gmail.com.
***
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Ex-membro do “Observatório de Política Exterior” (OPEX). Estagiária em Estratégia de
Marca na PepsiCo. E-mail: gi.corvino@hotmail.com.
****
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Ex-membro do grupo de extensão “Núcleo de Estudos da Tutela Penal e Educação em
Direitos Humanos”. Estagiária de Relações Governamentais na International Paper.
E-mail: isabelabadur@gmail.com.
*****
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Analista de Estratégias de Marca na ClickBus. E-mail: izabelanovaism@gmail.com.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 13


relações internacionais
INTRODUÇÃO
Os direitos humanos surgem no pós-Guerra como uma ferramenta
para guiar o comportamento internacional e como um bem comum da
humanidade, visando evitar que novas catástrofes contra a dignidade
humana, como toda violência e opressão física e moral instauradas durante
as guerras mundiais, se repetissem. Entretanto, como ferramenta, os direitos
humanos foram e são instrumentalizados não para garantia do bem-estar
dos indivíduos, mas a favor de pensamentos hegemônicos e dominantes,
pregando uma falsa universalidade.
É fato que os direitos humanos se sustentam sob uma lógica
ocidental e eurocêntrica de modo que suas gerações coincidam com as fases
das histórias das sociedades ocidentais. Os direitos humanos da Primeira
Geração, por exemplo, estão associados ao panorama do século XVIII,
com a independência dos Estados Unidos e elaboração de sua constituição
(1787) e com o feito da Revolução Francesa (1798). A segunda geração está
fortemente vinculada ao fim da Primeira Guerra Mundial e ao fomento a
ideia do Estado de Bem-Estar Social (COMPARATO, 2015). Ou seja, o
desenvolvimento dos direitos humanos está marcado pelos ciclos da história
ocidental de forma que experiências orientais não são, em nenhum momento,
consideradas para a formulação daquilo que viria a ser intitulado universal.
Isso implica uma grande dificuldade em se aplicar esses direitos de forma
ampla e justa que considere, igualmente, as culturas e diferenças de todos os
povos e que respeite o a multiculturalidade que o universal abarca.
Por esse motivo, o objetivo desse trabalho é desmistificar
a falácia da universalidade proposta pela Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de 1948, a qual reivindica a extensão universal dos
direitos humanos, uma vez que a condição de pessoa é o requisito uno
para obtenção desses direitos, compreendendo o ser humano como um ser
fundamentalmente moral, possuidor de dignidade e unicidade existencial,
sendo a dignidade um valor inato à condição humana (PIOVESAN,
2011; RAMOS, 2014). Tal entendimento progressivamente, destrói,
separa e amplifica desigualdades e, por isso, a proposta de se pensar os
direitos humanos por outra perspectiva, a multicultural. Com o intuito de
investigar os malefícios da universalidade e de explorar as possibilidades
do multiculturalismo quando aplicado aos direitos humanos, nos baseamos,
principalmente, nos trabalhos de Boaventura de Sousa Santos, Samuel
Huntington, Milton Santos, Stuart Hall e Joaquín Herrera Flores.

14 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
O trabalho se encontra dividido em três capítulos elaborados
através da abordagem bibliográfica descritiva. O primeiro aborda os
aspectos gerais do surgimento dos direitos humanos, o segundo versa sobre
a influência da globalização nos direitos humanos e como ela explicita a
impossibilidade de direitos humanos universais e o terceiro, explorando
a teoria crítica, trata da perspectiva multicultural dos direitos humanos e
suas oportunidades.

1 PANORAMA GERAL: OS DIREITOS HUMANOS UNIVERSAIS

A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada na


Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1948, em um contexto pós
Guerra Fria, ainda marcado por processos de descolonização e surgimento
de novos atores internacionais, bem como novas nacionalidades
(FLORES, 2009). Os direitos sociais, econômicos, culturais, entre outros,
foram integrados aos sistemas legais internacionais e nacionais, sendo
considerados “parte essencial da ordem no pós Guerra” (SIKKINK, 2015,
p. 217). No entanto, tais direitos acabam por ser usufruídos apenas por
uma parcela da sociedade, o que contradiz sua concepção universal.
A América Latina, como aponta Sikkink (2015) teve grande
importância no âmbito de direitos humanos internacionais no pós Segunda
Guerra, como por exemplo no estabelecimento da Declaração Americana
dos Direitos e Deveres do Homem que também serviu de influência à
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ademais, juristas e ativistas
latino-americanos foram condutores da luta pela proteção internacional
dos direitos humanos, visto que ela poderia “eliminar o uso indevido da
proteção diplomática dos cidadãos no exterior” (SIKKINK, 2015, p. 217)
A Carta das Nações Unidas, de 1945, que constitui a criação
da Organização das Nações Unidas, estabelecia a defesa da paz e dos
direitos humanos, visando, através da cooperação internacional, promover
o respeito aos direitos e liberdades de todos e, em 1948, reafirma-se a
universalização da proteção desses direitos através da Declaração Universal
dos Direitos Humanos. O documento é amplamente visto como limiar do
regime global de direitos humanos. Ainda que a Declaração Americana a
tenha precedido em alguns aspectos e, segundo Flores (2009) a Declaração
Universal dos Direitos Humanos estabelece que essa categoria de direitos
deve ser reconhecida e aplicada de forma universal:

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 15


relações internacionais
Os direitos humanos são uma convenção cultural que
utilizamos para introduzir uma tensão entre direitos
reconhecidos e as práticas sociais que buscam tanto
seu reconhecimento positivado como outra forma de
reconhecimento ou outro procedimento que garanta algo
que é, ao mesmo tempo, exterior e interior a tais normas.
(FLORES, 2009, p. 28)
A igualdade entre todos os seres humanos sem qualquer tipo de
discriminação, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou
qualquer outro aspecto, foi base para a construção da Declaração Universal
dos Direitos Humanos – premissa essencial após anos de guerra e crimes
contra a humanidade. A afirmação de direitos no pós Guerra se fez necessária
para a orientação da ordem internacional, de modo a iniciar um processo
em que os direitos humanos passariam a ser reconhecidos, proclamados
e protegidos por todos os Estados, caracterizando um movimento de
internacionalização dos direitos de interesse da comunidade internacional.
A Declaração Universal traz em seu artigo primeiro que “todas as
pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos [...]” (ONU, 1948)
reforçando a universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos, sendo a
condição de pessoa o único requisito para a dignidade e direitos, desconsiderando
particularidades sociais, culturais ou econômicas da sociedade. Ainda que
existam valores particulares, o cerne da Declaração Universal dos Direitos
Humanos pauta-se em valores universais, reforçando assim a necessidade de
assegurar o que é comum em benefício de toda sociedade.
Tais políticas de direitos foram pautadas na perspectiva ocidental
atendendo a interesses geopolíticos e econômicos dos Estados a partir
de uma concepção tradicional e hegemônica de que os direitos devem
ser reconhecidos e aplicados de modo universal. Diferentes nações
com histórias políticas e econômicas distintas assumiram a mesma
orientação quanto aos direitos humanos, com o objetivo de adotar um
conjunto de práticas e conceitos que buscam salvaguardar o ser humano
independentemente de suas características particulares, a fim de não
comprometer sua universalidade.
Flores (2009) defende a análise dos direitos humanos a partir de
seu contexto ocidental que, ao estabelecer a “universalidade dos direitos
humanos”, difundiu tal conceito frente a cenários complexos de distintas
particularidades de cada indivíduo no processo, e aponta que a universalidade
dos direitos pode ser estabelecida num contexto em que haja:

16 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
O fortalecimento de indivíduos, grupos e organizações na
hora de construir um marco de ação que permita a todos e
todas criar as condições que garantam um modo igualitário o
acesso aos bens materiais e imateriais que fazem com que a
vida seja digna de ser vivida. (FLORES, 2009, p. 19)
A Declaração e Programa de Ação de Viena, adotada em 1993
na ocasião da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, reforçou a
concepção universal da Declaração de Direitos Humanos, corroborando que
“a comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente,
de maneira justa e equânime, com os mesmos parâmetros e a mesma ênfase”
. Ambas as declarações reforçam a necessidade de um acordo entre diferentes
nações com perspectivas distintas no âmbito cultural, político, econômico
e religioso a fim de garantir um conjunto de direitos básicos pelos Estados.
No contexto atual, com o avanço da globalização e liberalização
econômica, os direitos passaram a ser vistos como liberdades, e não direitos
propriamente ditos (FLORES, 2009). Esse aspecto, somado à necessidade
de compreender a multiculturalidade, dá luz a novas perspectivas sobre os
direitos humanos, de modo a considerá-los não apenas responsabilidade do
Estado, mas sim dos indivíduos e seus grupos, através de uma concepção
crítica e integradora de suas particularidades.
Sendo assim, a concepção de direitos humanos universais de certo
modo deslegitima a implementação de sistemas de garantias próprios de
cada nação e, com o avanço da globalização acentuou-se a necessidade de
considerar as assimetrias e a visão plural da sociedade (SANTOS, 1997).

2 A GLOBALIZAÇÃO E OS DIREITOS HUMANOS

A globalização, de forma geral, estabeleceu um processo mundial


de encurtamento das distâncias, com diversos intercâmbios culturais e
econômicos e de forma muito mais frequente, além de as relações sociais
tornarem-se, no plano econômico e político, cada vez mais transnacionais
(BINJA, 2010, p. 9). Mas, também serviu como um mecanismo que auxiliou
na evidência de que a premissa da universalidade dos direitos humanos
não poderia ser concluída e nem alcançada. Ou seja, durante muito tempo
partiu-se do pressuposto de que a globalização serviu como ponte para a
emancipação de diversos espaços e povos, que seriam finalmente incluídos,
mas tal ideia não se concretiza devido a uma série de desenvolvimentos
injustos e desiguais (FLORES, 2009, p. 137): a universalidade não se

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 17


relações internacionais
materializa justamente pela distância entre teoria e prática no proposto
pelos direitos humanos.
Tal ideia vai ao encontro do que afirma a teoria crítica. Rompendo
com os paradigmas da teoria tradicional – muito fixa na questão racional
–, a teoria crítica procura evidenciar ainda mais a discrepância que
há entre teoria versus prática. Em termos de direitos humanos, David
Sánchez Rubio afirma que existe uma separação abismal entre teoria e
prática (RUBIO, 2014, p. 250), ou seja, a teoria crítica afirma que existe
a necessidade de distinguir e compreender que é palpável a discrepância
entre aquilo que é proposto e teorizado por atores sociais e internacionais e
o que é de fato praticado, dando cada vez mais indícios que a globalização,
apesar de ter encurtado algumas distâncias, não encurtou esses abismos e
acabou potencializando os processos de exclusão global, fazendo com que
os grupos vulneráveis ficassem ainda mais à margem dos direitos humanos
ou necessitassem se provar ainda mais e provar seus direitos.
A globalização, sendo vista como algo primordialmente positivo,
nos faz questionar, então, quem define o que são os direitos humanos
e quem tem acesso a eles. Ou então, se uma das principais conjunturas
sob as quais os direitos humanos se constroem é a de que eles são uma
categoria universal, questiona-se quem é abarcado por essa universalidade.
Sob a perspectiva crítica, essa ideia da universalidade não se concretiza
justamente devido às diversas separações entre o que é previsto em lei e
posto em discursos e aquilo que é concretizado. Outro motivo pelo qual a
universalidade não é colocada em prática deve-se ao fato de que algumas
correntes filosóficas do direito pensam os direitos humanos como algo que
deve garantido pela lei, algo estático, e não algo que está acima de todos
nós, pensado como um direito natural. Ou seja, não basta que sejamos seres
humanos para que tenhamos acesso aos direitos humanos, é necessário ter
isso previsto em lei.
Entretanto, esses marcadores jurídicos sociais, apesar de
existirem em forma de tratados internacionais, leis dos Estados,
Constituições etc., mostram que justamente há um cenário de crise em
relação à efetivação das garantias, mesmo quando previstas em lei. Isso
porque essa crise é intensificada por grupos hegemônicos que não estão
verdadeiramente preocupados em criar direitos humanos universais,
porque, para esses grupos, os direitos humanos são setoriais – aplicando-
os apenas a eles mesmos e excluindo diversos grupos minoritários na
tentativa de manter o status quo.

18 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
O universalismo prega a existência de valores, julgamentos,
escolhas e comportamentos com valor absoluto para todos os
homens. Ele forma há dois séculos o substrato ideológico da
cultura política ocidental e só pode ser realizado eliminando-
se a diferença e transformando em obrigação universal o que
é apenas um ponto de vista particular. (SEMPRINI, 1999, p.
92-93)
Dessa forma, os direitos humanos viram mais um instrumento
de exclusão e de intensificação das desigualdades, provando que sua
universalidade, de fato, não existe. Isso porque os grupos hegemônicos,
que ostentam uma posição social de relevância, não somente sustentam um
discurso de negação, como também a prática de negação da importância
dos direitos humanos e/ou sua defesa setorial seletiva, e a reivindicação
dos grupos vulneráveis por direitos humanos passa a representar uma
luta social que tem como finalidade última o reconhecimento de direitos
básicos e superação de desigualdades. Isso porque
[...] os direitos humanos não são um dado, mas um construído,
enfatiza-se que as violações a estes direitos também o são.
Isto é, as exclusões, as discriminações, as desigualdades, as
intolerâncias e as injustiças são um construído histórico, a
ser urgentemente desconstruído. Há que se assumir o risco
de romper com a cultura da “naturalização” da desigualdade
e da exclusão social, que, enquanto construídos históricos,
não compõem de forma inexorável o destino da humanidade.
(FLORES, 2009, p. 15)
Ainda segundo Joaquín Herrera Flores, essa complexidade dos
direitos humanos
[...] se agrava quando vemos que o fundamento que justifica
a “universalidade” dos direitos se sustenta em um pretendido
conjunto de premissas empíricas: os seres humanos têm
todos os direitos reconhecidos nos textos internacionais pelo
mero fato de haver nascido. Os direitos se apresentam como
um fato que já existe, dado de uma vez por todas. (FLORES,
2009, p. 37)
Entretanto, mesmo que se insista em afirmar que todos temos os
mesmo direitos e partimos todos de um ponto de igualdade, “de pronto
nos deparamos com a realidade, com os fatos concretos que vivemos, e o
resultado definitivo pode ser bem diferente para uns e outros” (FLORES,
2009, p. 38). Em um mundo globalizado,

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 19


relações internacionais
Tudo dependerá da situação que cada um ocupe nos
processos que facilitam ou dificultam o acesso aos bens
materiais e imateriais exigíveis em cada contexto cultural
para se alcançar a dignidade [...]. De fato, quando nos diz
que “somos” iguais perante a lei, o que em realidade está
dizendo é que “devemos” ser iguais perante a lei. A igualdade
não é um fato já dado de antemão. É algo que se tem de
construir, utilizando para isso todo tipo de intervenções
sociais e públicas. Portanto, quando utilizamos a linguagem
dos direitos, não partimos do que “temos”, mas sim do que
devemos ter. (FLORES, 2009, p. 38)
Essa divisão estrutural dos direitos humanos – aqueles que
definem o que eles são e a quem ele se aplicam versus os que estão a
sua margem - ocorre porque, de acordo com Boaventura de Sousa Santos,
enquanto forem concebidos como direitos humanos universais, os direitos
humanos tenderão a operar como localismo globalizado, isto é
[...] consiste no processo pelo qual determinado fenômeno
local é globalizado com sucesso, seja a atividade mundial
das multinacionais, a transformação da língua inglesa em
língua franca, a globalização do fast food americano ou
da sua música popular, ou a adoção mundial das leis de
propriedade intelectual ou de telecomunicações dos EUA.
(SANTOS, 2010, p. 109)
Ou seja, o universalismo nos direitos humanos significa a parte
falando pelo todo, uma forma de globalização de-cima-para-baixo, que
sempre servirá como mecanismo de choque de civilizações, como afirma
Samuel Huntington (2011), como arma do ocidente contra o resto do
mundo. A sua abrangência global será obtida à custa da sua legitimidade
local e em favor das características hegemônicas eurocêntricas – um modelo
importado de direitos humanos - que estão longe de abarcar todo o “resto”.
Assim, mesmo que todas as culturas tendam a tomar seus valores máximos
como os mais abrangentes, “apenas a cultura ocidental tende a formulá-los
como universais [...], a questão da universalidade é uma questão particular,
uma questão específica da cultura ocidental” (SANTOS, 2010, p. 112).

3 UMA NOVA PERSPECTIVA: O MULTICULTURALISMO

A necessidade da imposição de valores e direitos humanos


universais se vê num beco sem saída quando “as sociedades modernas
são cada vez mais confrontadas com grupos minoritários exigindo o

20 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
reconhecimento de suas identidades e o acolhimento de suas diferenças
culturais” (KYMLICKA, 1996, p. 10; MBAYA, 1997, p. 17) e passam
a existir cada vez mais a reivindicação por reconhecimento da não
homogeneidade étnica e cultural dessas sociedades e uma demanda por
reorientação das políticas públicas no sentido de assegurar a diversidade/
pluralidade de grupos e tradições (BINJA, 2010, p. 10).
Assim, por conta da existência de diferentes sociedades e
diferentes culturas e especificidades, se faz necessário uma perspectiva
multicultural do sistema internacional, para que haja a possibilidade
de distribuir os direitos humanos para esses distintos grupos de forma
igualitária e proporcional. Segundo Semprini, o multiculturalismo
[...] configura-se como política de gestão da multiculturalidade
e/ou movimentos culturais demandados pela valorização
da diferença como fator de expressão de identidade(s).
Este, enquanto movimento de ideias, resulta de um tipo
de consciência coletiva para a qual as orientações do agir
humano se oporiam a toda forma de centrismos. (SEMPRINI,
1999, p. 161)
Esse novo movimento está “situado em uma política de
reconhecimento e afirmação da diversidade enquanto manifestação da
diferença [...] e preceitua o respeito à diferença como manifestação da
dignidade humana” (MELO, 2015, p. 1507). Ademais, ele se faz essencial,
uma vez que permite se opor e afrontar as concepções homogêneas e
monoculturais das sociedades etnocêntricas, sejam elas ocidentais ou não,
fazendo surgir uma “expressão de uma nova sensibilidade cultural, crítica,
no capitalismo, que recusa o universalismo e procura articular sistemas de
valores abalados” (BINJA, 2010, p. 76).
Devido às novas demandas pela inclusão dos debates em torno
de temas complexos – e urgentes - como os direitos e o reconhecimento
das minorias, raça, etnicidade, identidade, sexualidade, gênero, etc., a
partir da Segunda Guerra Mundial, o multiculturalismo não somente tem
sofrido alterações, mas também vem gradualmente se intensificando. O
debate fez-se mais evidente e passou a desempenhar um papel crucial no
campo da contestação política. Tudo isso pode ser compreendido como o
resultado da reconfiguração estratégica das forças e relações sociais em
torno do globo (HALL, 2003, p. 53). Essa reconfiguração, cada vez mais,
nos permite compreender que as diferenças são aquilo que constituem as
sociedades modernas, que são base para suas políticas, suas manifestações

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 21


relações internacionais
culturais, identificações e etc., e pensar em um conceito universal e
homogêneo de direitos humanos é negar vastas, complexas e variadas
formas de identidades e de manifestação cultural, social e política que
se perderão pelo caminho e/ou ficarão à margem dos direitos básicos e
naturais que qualquer ser humano deveria poder usufruir.
Quanto mais se fala e se dá espaço a essas diferenças, mais se
permite compreender que elas existem e necessitam ganhar mais e mais
relevância e importância nos debates. Isso porque, além da atenção ao
multiculturalismo ser indispensável para a diminuição das desigualdades e
para a o estabelecimento de princípios complementares e não excludentes,
nos permite compreender que nenhuma cultura é suficiente em si – ou
pode falar por todas -, como impõe a cultura ocidental, e todas elas são
complementares. Ademais, “em uma atenção à diferença como forma
de reconhecimento e autonomia, os direitos não podem ser considerados
humanos e sem estes, as desigualdades e as injustiças tendem a se prolongar
no tempo” (MELO, 2015, p. 1506).
Devido a isso, o multiculturalismo não pode ser apenas mais um
princípio norteador dos direitos humanos que ficará apenas na teoria. Segundo
Boaventura de Sousa Santos, para ocorrer uma globalização de-baixo-para-
cima ou contra-hegemônica, focando no combate às desigualdades, os
direitos humanos devem ser reconcetualizados como multiculturais. E, para
que realmente haja uma política emancipatória baseada no multiculturalismo,
devemos transformar a conceitualização e prática dos direitos humanos de
um localismo globalizado – fenômeno local globalizado com sucesso, a
parte sendo tomada como o todo – em um projeto cosmopolita:
não excluem aos Estados-nação, regiões, classes ou grupos
sociais subordinados a oportunidade de se organizarem
transnacionalmente na defesa de interesses percebidos
como comuns [...]. As atividades cosmopolitas incluem,
entre outras, diálogos e organizações SulSul, organizações
mundiais de trabalhadores, filantropia transnacional Norte-
Sul, redes internacionais de assistência jurídica alternativa,
organizações transnacionais de direitos humanos, redes
mundiais de movimentos feministas, organizações não
governamentais (ONG’s) transnacionais de militância
anticapitalista, redes de movimentos e associações ecológicas
e de desenvolvimento alternativo, movimentos literários,
artísticos e científicos na periferia do sistema mundial em
busca de valores culturais alternativos, não imperialistas,

22 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
empenhados em estudos sob perspectivas pós-coloniais ou
subalternas, etc, etc. (SANTOS, 2010, p. 110)
Ainda de acordo com Boaventura de Sousa Santos (2010, p.
113-115), são necessárias algumas premissas para que tal transformação
ocorra e para que tenhamos um projeto de globalização baseado em direitos
humanos multiculturais. A primeira premissa é sobre a superação do debate
entre universalismo e relativismo cultural. Trata-se de um debate falso,
cujos conceitos polares são prejudiciais para uma concepção qualificada
como emancipatória de direitos humanos (SANTOS, 2010, p. 113). A
segunda premissa afirma que todas em todas as culturas há a concepção de
dignidade humana, mas em nem todas é concebida em termos de direitos
humanos. É essencial portanto, reconhecer preocupações isomórficas entre
culturas diferentes (SANTOS, 2010, p. 113).
A terceira premissa é afirma que a concepção de dignidade
humana é incompleta e problemática em todas as culturas. Tal
incompletude tem origem na existência de uma pluralidade de culturas
e se cada cultura fosse tão completa como afirma, existiria apenas uma
cultura. Conscientizar sobre a incompletude cultural é crucial para que
haja uma concepção multicultural de direitos humanos (SANTOS, 2010,
p. 113-114). A quarta premissa é afirma que a dignidade humana possui
diversas versões, variando de acordo com as culturas. É necessário, então,
que definir qual dessas versões apresenta um círculo de reciprocidade
mais amplo (SANTOS, 2010, p. 114-115). A quinta premissa ressalta
que todas as culturas tendem a fazer uma distribuição das pessoas e dos
grupos sociais entre dois princípios competitivos de pertença hierárquica.
O princípio da igualdade age por meio de unidades homogêneas e
a hierarquias entre elas. Já o princípio da diferença age por meio das
identidades e diferenças consideradas únicas e das hierarquias entre elas.
Ambos os princípios não são necessariamente sobrepostos e, devido a
isso, nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são
desiguais (SANTOS, 2010, p. 115).
Essas premissas representam não somente a prática multicultural
dos direitos humanos para além da teoria, mas um diálogo intercultural
sobre dignidade humana que nega falsos universalismo ao reconhecer
o outro e a diversidade, no sentido mais amplo de reciprocidade, dando
“às pessoas e grupos sociais o direito a serem iguais quando a diferença
os inferioriza, e o direito a serem diferentes quando a igualdade os
descaracteriza” (SANTOS, 2010, p. 122).

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 23


relações internacionais
CONSIDERAÇÕES FINAIS: HÁ DIREITOS HUMANOS
UNIVERSAIS?

Tendo em vista o que foi exposto, compreende-se que à medida


que a multiculturalidade instiga o diálogo entre diferentes culturas, ela
possibilita, ao menos, pensar direitos humanos de forma mais abrangente e,
consequentemente, mais universal. Atualmente, negar a multiculturalidade
não é mais, ou não deveria ser, uma opção. A resistência em se aceitar
o multiculturalismo reside, entre outras coisas, nas bases do mainstream
que extrapolam o foco no conceito de soberania. Há um temor de que
a coletividade conduza à perda de identidade cultural, de nacionalidade.
Contudo, o multiculturalismo não se trata da imposição de uma cultura
sobre a outra, e sim de um intercâmbio, de um diálogo, justamente lutando
contra tendências hegemônicas e de sobreposição.
Fica clara a dificuldade de se pensar e, especialmente, executar
direitos de forma ampla dentro da economia mundo capitalista (EMC) e
dos moldes modernos da globalização perversa, investigada por Milton
Santos (2008) na obra Por uma outra globalização: do pensamento
único à consciência universal. Esses dois aspectos inviabilizam tanto
a noção tradicional de direitos humanos universais quanto à ideia de
multiculturalismo. Isso porque a competição incessante e inerente ao
capitalismo – que é o que garante sua reprodução – gera desigualdades no
meio internacional e intranacional. A EMC, assim como a globalização,
se baseia, na verdade, na geração de diferenças e de desigualdades e lucra
a partir delas, ficando assim nítida a contradição existente entre nosso
sistema atual e os direitos humanos.
Desse modo, as garantias provenientes da universalização dos
direitos humanos, que advogam, primordialmente, por igualdade, não
podem ser concretizadas em um sistema baseado na competição e na
criação de desigualdades. Torna-se, portanto, ainda mais difícil pensar
no multiculturalismo, pois esse segue o caminho contrário à falácia
universalizante vendida pela globalização. É vantajoso para o sistema
vender a ideia de igualdade e universalidade – e, como exposto acima, não
cumpri-la – pois essas ideias são utilizadas para justificar o mercado global
e todas as explorações dele advindas.
Podemos então concluir que os direitos humanos universais
nunca existiram porque, da mesma forma, o ideal de universalização, que
se intensificou com a globalização, também não existiu. Trata-se de uma

24 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
fabulação, de vender uma ideia de unificação e minimização de diferenças
quando o que se observa é o aumento de situações degradantes que obstruem
a dignidade humana (SANTOS, 2009). Entende-se, portanto, a importância
do olhar da teoria crítica em nos chacoalhar para o mito da universalidade
dos direitos humanos e despertar pensamentos convergentes à diversidade,
à multiculturalidade, fornecendo novas ferramentas para pensar e fazer
direitos humanos. No cenário atual, o multiculturalismo é necessário para
sustentar e viabilizar os direitos humanos.
Para que esses se tornem mais abrangentes e eficientes, deve-se,
primeiramente, pensá-los de forma mais humanizada, no sentido de que
os parâmetros para os direitos humanos devem ser estabelecidos a partir
do respeito a todos os homens e, consequentemente, deve-se considerar
as experiências da humanidade como um todo, em seus mais diversos
entendimentos e costumes. “Há uma busca de uniformidade, ao serviço
dos atores hegemônicos, mas o mundo se torna menos unido, tornando
mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal”
(SANTOS, 2001, p. 19).
Os padrões mínimos, que devem existir para que os direitos humanos
possam de fato ser observados e defendidos pelas organizações internacionais,
necessitam partir de uma base que não possua enfoque hegemônico e que não
seja enviesada. Os direitos humanos não podem ser instrumentalizados pelos
países centrais para impor seus pensamentos, suas vontades e/ou necessidades
mercadológicas, de forma que, ao julgar uma situação de violação contra
os direitos humanos, essa seja analisada pelas lentes de todas as culturas
envolvidas, o relativismo cultural (LUCAS, 2009, p. 83). A utilização das
mesmas bases técnicas de hoje, porém servindo a outras ambições, aos
fundamentos políticos e sociais, seria capaz de fornecer novas perspectivas
(SANTOS, 2001). O primeiro passo para transpor as iniquidades do sistema
e aproximar os direitos humanos da realidade é justamente compreender o
mito de sua universalidade e sua instrumentalização pelos grandes poderes.
Por fim, fica evidente que existe uma grande diferença entre
o que é teorizado como direitos humanos e aquilo que é colocado em
prática, como afirma a teoria crítica. E que grande parte dessa diferença
está baseada em uma teoria de direitos humanos universais impossíveis de
serem materializados porque tal perspectiva de universalidade não existe e
serve, muitas vezes, para violar tais direitos. Isso porque a universalidade
dos direitos humanos baseia-se em um conjunto de pressupostos, todos
eles tipicamente ocidentais, que não abarcam uma diversidade tão grande

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 25


relações internacionais
presente em sociedades étnica e culturalmente tão distintas entre si. A
grande consequência disso é a ainda maior delimitação das desigualdades
entre diferentes grupos sociais e culturais, acentuada por uma globalização
baseada em um localismo globalizado e não em um projeto cosmopolita.
Tudo isso faz com que a necessidade por direitos humanos
multiculturais fique cada vez mais evidente, porque, além de não podermos
mais negar urgência em reconhecer a diversidade enquanto manifestação
da diferença, os direitos humanos passam a representar uma luta social
que possui como fim último a superação das injustiças e desigualdades,
influenciada por cada momento histórico.

REFERÊNCIAS

BINJA, Elias Justino Bartolomeu. Multiculturalismo: a identidade


do sujeito nas tensões sociais contemporâneas em Charles Taylor. 124
f. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura)
– Programa de Pós-Graduação em História da Cultura, Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2010.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos
humanos. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Trad.
Carlos Roberto Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e
Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidade e mediações culturais. Trad.
Adelaine La G. Resende. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
HUNTINGTON, Samuel P. The clash of civilizations and the remaking
of world order. New York: Simon & Schuster, 2011.
KYMLICKA, Will. Multicultural citizenship. New York: Clarendon
Press, 1996.
LUCAS, Doglas César. O problema da universalidade dos direitos
humanos e o relativismo de sua efetivação histórica. Revista Brasileira
de Direito Constitucional, v. 13, n. 1, p. 81-103, 2009.
MBAYA, Etienne-Richard. Gênese, evolução e universalidade dos
direitos humanos frente à diversidade de culturas. Estudos Avançados, v.
11, n. 30, p. 17-41, 1997.

26 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
MELO, José Wilson Rodrigues de. Multiculturalismo, diversidade e
direitos humanos. In: Anais do EDUCERE – XII Congresso Nacional
de Educação, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, 2015.
ONU. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Paris, 1948. Disponível em: un.org/en/universal-
declaration-human-rights/. Acesso em: 15 fev. 2021.
PIOVESAN, Flávia Cristina. Proteção dos direitos sociais: desafios
do ius commune sul-americano. Revista do Tribunal Superior do
Trabalho, v. 77, n. 4, p. 102-139, out./dez. 2011.
RAMOS, André de Carvalho. Teoria geral dos direitos humanos na
ordem internacional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
RUBIO, David Sánchez. Derechos humanos instituyentes, luchas Sociales
y acciones cotidianas. Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério
Público de São Paulo, São Paulo, v. 6, n. 1, p. 243-268, jan. 2014.
SANTOS, Boaventura de Souza. Uma concepção multicultural de
direitos humanos. Lua Nova, São Paulo, v. 1, n. 39, p. 105-124, 1997.
SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à
consciência universal. São Paulo: Record, 2008.
SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Trad. Loureano Pelegrin. São
Paulo: EDUSC, 1999.
SIKKINK, Kathryn. Protagonismo da América Latina em direitos
humanos. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 12, n.
22, p. 215-227, 2015.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 27


relações internacionais
CONTRIBUIÇÕES DA PERSPECTIVA DECOLONIAL PARA
A LÓGICA TRADICIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

CONTRIBUTIONS OF THE DECOLONIAL PERSPECTIVE TO


THE TRADITIONAL LOGIC OF HUMAN RIGHTS

Giovana Guerra do Amaral*

RESUMO: A legitimidade do caráter universal dos direitos humanos é questionada particularmente


pelas suas raízes teóricas ocidentais que cristalizam certa tensão acerca do essencialismo da
condição humana. Entende-se que o “ser humano”, postulado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, não compreende outras formas de ser e existir além da ocidental, invisibilizadas pelas
instrumentalizações do colonialismo e da colonialidade como faces ocultas da modernidade.
Através da articulação entre a teoria crítica dos direitos humanos e os estudos decoloniais, o
presente artigo foca nas relações epistêmicas de poder perpetuadas pelo discurso universalizante
dos direitos humanos. O objetivo central é identificar em que medida a abordagem epistemológica
decolonial oferece outras maneiras de compreender o regime internacional dos direitos humanos.
O problema de pesquisa questiona o suposto universalismo da Declaração e a ausência em seu
arranjo das subjetividades não ocidentais. Através do método qualitativo, procedendo com a revisão
bibliográfica por meio da metodologia relacional, utilizou-se estudos bibliográficos relativos à teoria
decolonial e à proposta crítica de Joaquín Herrera Flores. Verificou-se a partir do estudo que o pensar
crítico e a observação dos aspectos coloniais permite que se reconheçam outras epistemologias e
outros projetos de resistência para que sejam repensados os direitos humanos a partir de práticas
decoloniais que rompam com a lógica hegemônica tradicional dos direitos humanos.
Palavras-chave: Direitos humanos. Decolonialidade. Fundamentação crítica.
ABSTRACT: The legitimacy of the universal character of human rights has often been questioned
because of its Western theoretical roots which ensure a certain tension regarding the essentialism
in the definition of the human condition. It is understood that the “human being” postulated in the
Universal Declaration of Human Rights does not include other ways of existing, excluded by the
instrumentalizations of colonialism and coloniality. Through the articulation between the critical
theory of human rights and decolonial studies, this article focuses on the epistemic power relations
perpetuated by the universalizing discourse of human rights. The main objective is to identify the
extent to which the decolonial epistemological approach offers other ways of understanding the
international human rights regime. The research problem questions the universalism and the absence
in its arrangement of non-Western subjectivities. Through the qualitative method, proceeding with
the bibliographic review through the relational methodology, bibliographic studies were used
related to the decolonial theory and the critical proposal of Joaquín Herrera Flores. It was concluded
that the critical thinking and the observation of the colonial aspects allow rethinking the human
rights from decolonizing practices that disrupt the traditional hegemonic logic of the human rights.
Keywords: Human rights. Decoloniality. Critical grounding.

*
Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Realiza intercâmbio acadêmico na Universidade de Bordeaux, França (2021). E-mail:
giovana.amaral@unesp.br

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 29


relações internacionais
INTRODUÇÃO

A Declaração Universal dos Direitos Humanos aprovada pela


ONU em 10 de dezembro de 1948, engendrada e redigida como resultado
dos impactos desumanos da Segunda Grande Guerra Mundial (1939-
1945), marca a passagem da teoria moderna dos direitos humanos para
sua concepção contemporânea. Lideranças mundiais trabalharam em um
acordo diplomático que culminou no documento que declarava – e não
constituía – direitos de liberdade, de igualdade e garantias políticas e
sociais a todos os seres humanos. A Declaração criou um compromisso
perante a ordem internacional de promover a efetivação dos direitos e de
zelar para que qualquer violação fosse evitada nos âmbitos doméstico e
internacional. A concepção de uma declaração universal direcionada à
defesa dos direitos individuais da pessoa humana, baseados na defesa da
liberdade e da igualdade, foi um grande avanço na história. Portanto, são
inegáveis os impactos e as transformações decorrentes da sua consolidação.
Entretanto, a história dos direitos humanos como um todo não
pode ser reduzida à Declaração de 1948 e à teoria tradicional dos direitos
humanos, que se limita a um determinado lugar e tempo: o Ocidente. A
abordagem adotada pelas Nações Unidas e pelas elites internacionais em
sua elaboração faz parte de um discurso sublimado sobre a universalidade
dos direitos que inviabiliza outras histórias e linguagens. A suposta
universalidade esconde as relações de poder epistêmicas que o regime
internacional dos direitos humanos favorece, sobretudo devido às raízes
teóricas ocidentais que desconsideram em sua essência as particularidades
culturais. Estabeleceu-se, assim, no discurso de proteção aos direitos
de todos os seres humanos, a colonialidade de uma retórica discursiva
fundamentada na modernidade europeia, que estipulou, em um suposto
universalismo, as características próprias de toda a humanidade.
O debate acerca do caráter universal dos direitos humanos tem sido
acentuado por diversas correntes epistemológicas e vertentes teóricas nas
últimas décadas (BRAGATO, 2014). Dessa Forma, os fundamentos teóricos
dos direitos humanos já constituem um tema amplamente investigado, o
que sugere que já esteja esgotado e que, portanto, não mereça maiores
investimentos. Entretanto, mesmo que diversas áreas de estudo tenham
se desenvolvido, ainda existem lacunas referentes às ferramentas teóricas
necessárias para analisar os direitos humanos através de uma perspectiva
decolonial. Uma compreensão limitada das opressões perpetuadas pelo

30 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
discurso universal dos direitos humanos, sem a adoção de uma perspectiva
política epistêmica frente às manifestações da colonialidade, fortalece as
estruturas de opressão sem ao menos questioná-las.
Nesse sentido, a análise crítica postulada neste estudo defende
a emergência de práticas alternativas para pensar e operacionalizar os
direitos humanos. O estudo desenvolveu-se por meio da resposta ao
problema de pesquisa que questiona a possibilidade de se trabalhar, pensar
e avançar no sentido de uma abordagem crítica decolonial dos direitos
humanos, através de uma crítica ao suposto universalismo da Declaração
e a ausência em seu arranjo dos direitos dos povos colonizados, mulheres,
estrangeiros, negros e índios.
O objetivo geral do presente estudo é analisar de que forma a
teoria crítica dos direitos humanos de Joaquín Herrera Flores contribui para
pensar os direitos humanos em uma perspectiva que não se reduza a um
conjunto de princípios elencados em uma declaração universal, mas utilizá-
los como instrumento de denúncia e possibilidade de transformação; e
identificar em que medida a abordagem epistemológica decolonial oferece
outras maneiras de compreender o regime internacional dos direitos
humanos. O objetivo específico é possibilitar o diálogo entre essas duas
vertentes teóricas, através do método relacional de Herrera Flores, que
viabiliza uma articulação com eixos de subordinação para um caminho
metodológico que permite constatar vulnerabilidades e invisibilidades.
Por fim, é feita uma análise sobre como os fundamentos epistêmicos de
uma perspectiva decolonial contribuem para identificar o diálogo entre os
eixos de subordinação, com base nas experiências locais.
Metodologicamente, para responder ao problema e atender aos
objetivos, foi utilizado o método qualitativo, através do qual se buscou
descrever, compreender e explicar as questões referentes ao caráter
hegemônico da Declaração Universal dos Direitos Humanos, com base
na análise teórica da teoria crítica dos direitos humanos e dos estudos
decoloniais. Emprega-se a abordagem bibliográfica descritiva, na qual
a descrição se dá por meio de literatura selecionada em relação às
categorias articuladas no trabalho consistentes, de um lado, nas obras
de Joaquín Herrera Flores (2009) e dos estudos decoloniais nas obras
de Boaventura de Sousa Santos (1997, 2003, 2013, 2016, 2017), Aníbal
Quijano (2005), Walter Mignolo (2008, 2011, 2017), Luciana Ballestrin
(2013) e Enrique Dussel (1993, 2005). O trabalho se divide em dois
capítulos: no primeiro, discute-se a abordagem crítica dos direitos

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 31


relações internacionais
humanos com relação ao seu caráter universal e, no segundo, aborda-se
a questão dos estudos decoloniais.
Este trabalho consiste em um exercício crítico à concepção
hegemônica de direitos humanos. A crítica é pensada não somente no
sentido de uma desconstrução, mas como uma possibilidade de expressão
da transformação, direcionando a atenção para as demais sociedades,
comunidades, populações, grupos e indivíduos que não se encaixam nos
moldes culturais eurocêntricos, incentivando as lutas que reivindicam
condições necessárias para a concretização dos direitos humanos. Trata-se,
portanto, de revelar os valores subjacentes à adoção de certos instrumentos
internacionais relativos à proteção dos direitos humanos.

1 A TEORIA CRÍTICA DOS DIREITOS HUMANOS DE


JOAQUÍN HERRERA FLORES

A teoria tradicional dos direitos humanos remete ao século XVIII


e às grandes revoluções da história ocidental, como a Revolução Americana
de 1776, e a Revolução Francesa de 1789. É nesse cenário de conquista e
colonização eurocêntrica que nasce autenticamente a concepção moderna
de Direitos do Homem, fundada no ideário liberal e na afirmação de
uma nova sociedade burguesa. As históricas e liberais declarações, que
projetavam direitos como universais para todos os homens, representavam,
na verdade, os interesses e privilégios de segmentos sociais ascendentes
economicamente. No interior do conteúdo, e na intertextualidade das
enunciações das declarações universais e humanistas, ocultavam-se
conceituações abstratas e contraditórias. Tratava-se, no entanto, da proteção
de direitos idealizados para o sujeito burguês, racional e individualista;
dentro de um contexto cultural pautado por um humanismo abstrato.
A assertiva de que todos os homens nascem livres e iguais não
se aplicava naturalmente aos sujeitos subalternos das colônias exploradas.
Tanto na Declaração de 1948, assim como nas suas precursoras, o protótipo
de natureza humana não era apenas masculino, mas branco e ocidental. Era
para esse grupo social que se estendia a ideia de racionalidade e civilidade
(BRAGATO; DAMACENA, 2013). A história mostra que os valores
expressados por esses direitos representavam o padrão de vida idealizado
para o homem ocidental, negando ao outro – os adeptos a religiões não
ocidentais, os indígenas da América, os negros escravizados, as minorias
étnicas dos Estados nacionais, os subalternos da Ásia e, mais recentemente,

32 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
os trabalhadores imigrantes ou refugiados com as suas famílias – esse
mesmo padrão de direito.
Historicamente, o monopólio político e econômico das potências
imperialistas europeias foi acompanhado pela dominação intelectual do
pensamento europeu moderno. Enquanto produto cultural da Europa, os
direitos humanos apresentam características que trazem traços da herança
colonial e não compreendem a história e a racionalidade dos povos fora
do ocidente (WOLKMER, 2017). Estabeleceu-se assim a colonialidade na
ideia de um universalismo abstrato que, além de ocultar o caráter ideológico,
nega a importância dos contextos políticos, sociais, econômicos, históricos
e culturais de outras regiões do mundo.
Os direitos humanos na perspectiva tradicional hegemônica são
entendidos como
[...] direitos universalmente válidos independentemente
do contexto social, político e cultural em que operam e
dos diferentes regimes de direitos humanos existentes em
diferentes regiões do mundo: partes de uma concepção de
natureza humana como sendo individual, autossustentada
e qualitativamente diferente da natureza não humana.
(SANTOS, 2013, p. 55)
Em contestação à teoria tradicional dos direitos humanos, outras
formas de pensar foram desenvolvidas. Nesse sentido, Joaquim Herrera
Flores (2009), partindo de uma análise crítica ao universalismo, defende
uma visão histórica contextualizada dos direitos humanos, que considera
os processos de lutas sociais, políticas, estruturais e culturais. O autor
argumenta que os direitos humanos em sua perspectiva tradicional
[...] se apresentam sob o guarda-chuva protetor e globalizador
da universalidade (são direitos humanos porque pertencem
aos humanos). Desde o princípio, havemos de ser conscientes
de que reflexão sobre os direitos está repleta de contradições
internas que exigem ser desveladas para, como nos dizia
Foucault, fazer visível o visível: as injustiças, opressões e
exclusões contra as quais, em teoria, o conceito de direitos
humanos nos deveria proporcionar instrumentos de luta e de
intervenção. (FLORES, 2009, p. 43)
Assim, Herrera Flores parte de uma crítica à abstração de direitos
humanos que ignora as particularidades do ser humano e seu contexto social.
Os direitos humanos não podem ser compreendidos fora de seu contexto
cultural. Partindo deste princípio, não existe a possibilidade de afirmar

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 33


relações internacionais
que todos os seres humanos, de diferentes nações e contextos sociais, são
iguais perante direitos. Não se pode entender o direito alienado da condição
social, principalmente das individualidades e dos princípios por trás de
tratados e declarações. Nesse sentido, o direito tradicional universalista,
traz, equivocadamente, a sensação de que os direitos estão resguardados
para todos. Essa noção é um produto cultural da racionalidade moderna
hegemônica nos países ocidentais e tem como consequência um conceito
alienado de defesa dos direitos, que ignora a possibilidade de intervenção
subjetiva nas relações políticas globais.
Em contraposição à ideia universalista ocidental de direitos
humanos, Herrera Flores defende um universalismo a posteriori, que
possibilita a consolidação de espaços de discussão e luta. De acordo com
o autor,
[...] a partir da riqueza humana se rechaça qualquer
universalismo a priori que imponha critérios como se
fossem o padrão ouro da ideia de humanidade. O único
universalismo que podemos defender desde essa posição é um
universalismo a posteriori, um universalismo de chegada no
qual todas as culturas possam oferecer suas opções e discuti-
las em um plano, não de mera simetria, mas de igualdade. A
partir dessa opção, a única definição que pode ser defendida
é a que vê os direitos humanos como o sistema de objetos
(valores, normas, instituições) e de ações (práticas sociais,
institucionais ou não) que abram e consolidem espaços de
lutas. (FLORES, 2009, p. 264)
A perspectiva do universalismo a posteriori, apresentada por
Herrera Flores, demonstra que o autor não critica o universalismo por si
só, mas afirma que os direitos humanos têm uma potencialidade universal
desde que esta seja contextualizada. Nesse sentido, se opõe ao universalismo
tradicional imposto pelo mundo ocidental, que considera essencialista e
particularista, em um processo que define como “multiculturalismo crítico
ou de resistência” (FLORES, 2009, p. 164).
Portanto, para que um direito humano possa ser constituído, é
necessário que seja impulsionado por um espaço de luta, em um processo
de afirmação a algo que lhe foi negado em oposição ao discurso dominante.
A partir desse processo, serão criadas condições concretas para a dignidade
dos seres humanos (FLORES, 2009, p. 36). Para o estudo dos direitos
humanos e a possibilidade de exercê-los em sua pluralidade, o autor fala
em uma metodologia relacional, ou seja,

34 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
cada direito, cada interpretação e cada prática social que
esteja relacionada com os direitos não deve ser considerada
como resultado casual ou acidental do trabalho de indivíduos
os grupos isolados, mas parte de um processo amplo de
relações sociais, políticas, teóricas e produtivas. Isso não
significa que toda vez que analisarmos um direito, uma
interpretação ou uma ação política a ele dirigida tenhamos
de conhecer todas as suas relações, tanto internas quanto
externas. Isso conduziria a um efeito paralisante da análise.
Em outras palavras, um processo singular somente pode ser
entendido completamente nos termos do conjunto social
de que faz parte. Uma concepção isolada de um fenômeno
só nos conduzirá a mal-entendidos e a uma redução de sua
complexidade. (FLORES, 2009, p. 92)
Dessa forma, para superar os reducionismos da teoria tradicional
dos direitos humanos, uma metodologia relacional deve considerar a
interação entre ideias e instituições; e forças produtivas e relações sociais
de produção. Para trabalhar em torno de uma alternativa que supere os
reducionismos da teoria tradicional dos direitos humanos, a próxima seção
utiliza o método relacional de modo que a teoria crítica dos direitos humanos
e os estudos decoloniais convirjam como alternativa ao universalismo
tradicional.

2 UMA CRÍTICA DECOLONIAL AO UNIVERSALISMO DOS


DIREITOS HUMANOS

Como mencionado anteriormente, as outras epistemologias – os


vários conjuntos de saberes específicos de um grupo social ou de uma época –
foram excluídas do campo do conhecimento pela modernidade. Surge então
a necessidade de uma segunda descolonização, chamada decolonialidade,
para reavaliar as epistemos inviabilizadas pela racionalidade ocidental. A
emergência dos estudos decoloniais têm surgido nos debates acadêmicos
e objetiva “abrir o campo de visão, e, ao mesmo tempo, abrir espaço para
outras experiências e outras epistémes” (SILVA; BOFF, 2017, p. 84).
Essa observação é fundamental para os juristas internacionais, pois revela
valores subjacentes à adoção de instrumentos internacionais relativos à
proteção dos direitos humanos.
O termo “colonialidade” refere-se à incompletude da
descolonização, uma vez que o colonialismo não se inscreve apenas nas
relações políticas, econômicas e jurídicas, mas também nas relações de

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 35


relações internacionais
dominação epistêmica e cultural. Em um primeiro momento, a modernidade
realizou-se pela oposição à ideia de primitividade – no sentido de um
estágio inferior que deve ser superado para se alcançar a modernidade.
Segundo Walter Mignolo (2008), esse foi o princípio para se estabelecer
as condições de uma hegemonia epistêmica europeia.
O pensamento decolonial possibilita a busca por alternativas
frente a uma crítica contundente contra as formas de opressão geradas
pelo colonialismo e viabiliza a articulação de estratégias de luta e de
resistência a partir de um lugar de questionamento do eurocentrismo e
da universalidade dos direitos, assim como propõe o modelo relacional
de Herrera Flores (2009). A crítica decolonial ao eurocentrismo aborda
não somente uma discussão de natureza econômica, mas uma pauta de
questões que envolvem as subjetividades e elementos para questionar os
paradigmas dominantes.
As consequências do sistema colonial permanecem atualmente na
colonização do reconhecimento da humanidade, da produção do saber e do
controle político (QUIJANO, 2000; MIGNOLO, 2003; BALLESTRIN,
2013). Dessa forma, quem fala e quem está autorizado a falar sobre os
outros ocupa um lugar epistemologicamente privilegiado. A produção
de conhecimento no campo dos direitos humanos traduz justamente essa
lógica: um conceito-chave da cultura ocidental que consolida o imaginário
segundo o qual o ocidente é o locus legítimo de enunciação e de produção
de conhecimento. Isso está no cerne do projeto homogeneizante de negação
da diversidade cultural.
A forma como as bases epistêmicas dos estudos decoloniais
desafiam o regime internacional dos direitos humanos é uma oportunidade
para considerar a sua transformação. Nesse sentido, a teoria crítica de
Herrera Flores contribui para a compreensão sobre como o arcabouço
conceitual dos direitos humanos se expressa dentro das relações sociais e
como as adaptações locais podem influenciar as formulações conceituais
internacionais dos direitos humanos. Essa perspectiva interessa ao presente
estudo pois permite a interpretação intercultural das normas internacionais
de direitos humanos, possibilitando a análise de como os ideais universais
consagrados em textos jurídicos podem se adaptar às normas locais e às
práticas sociais. Por exemplo, o reconhecimento das subjetividades dos
povos indígenas nos leva a repensar as injunções epistêmicas ocidentais
relativas, como o meio ambiente, a propriedade da terra e a educação.

36 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
O pensamento decolonial implica em considerar uma variedade
de agentes que, cultural e socialmente, contribuem para alterar a ideia de
direitos humanos em direção a uma perspectiva plural. Essa pluralidade
refere-se, portanto, não somente à sociedade ocidental, mas possibilita que
todas as sociedades e comunidades humanas se identifiquem com o seu
conceito e contribua para seu conteúdo normativo. Os avanços sobre o
respeito aos direitos humanos são mais resultado dos movimentos sociais
do que da ação normativa da comunidade internacional. O universal
encontra seu significado a nível local e a resultante é uma orientação acerca
de trajetórias normativas que estimulam um regime pluralista dos direitos
humanos. Assim, a categoria de colonialidade permite uma releitura dos
direitos humanos, que rejeita as dicotomias e hierarquizações próprias do
projeto moderno, e permite uma proposta em direção ao reconhecimento e
respeito das subjetividades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No início deste estudo foi proposta uma análise das vertentes


teóricas crítica dos direitos humanos e da teoria decolonial para
evidenciar o sistema de opressão perpetuado por um discurso hegemônico
universalizante dos direitos humanos. As duas teorias convergem na crítica
às perspectivas eurocêntricas e hegemônicas e argumentam a favor de
evidenciar outras especificidades epistêmicas que favoreçam uma análise
decolonial dos direitos humanos.
A crítica proposta neste estudo foi postulada no sentido de repensar
a transformação dos direitos humanos, para a nossa realidade histórica.
Dessa forma, ela é feita não somente no sentido de uma desconstrução,
mas como uma possibilidade de expressão da transformação. Se a crítica
não é emancipadora, ela não alcança o sentido de transformação. Portanto,
foram analisados os aspectos da teoria crítica dos direitos humanos e
dos estudos decoloniais para propor ferramentas de análise dos direitos
humanos mais alinhadas à realidade social do subalterno. A análise dos
aportes teóricos possibilita pensar e trabalhar no sentido de propiciar
condições e identificar locais de subalternidade que recebam efetivamente
práticas decolonizantes que rompam com a lógica colonial.
Portanto, por meio das ferramentas teóricas utilizadas neste
estudo, conclui-se que, de fato, as perspectivas decoloniais contribuem
para compreender o apagamento epistêmico e outros tipos de violências

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 37


relações internacionais
estruturais que encontram suas origens no colonialismo e foram perpetuadas
por um discurso universalizante dos direitos dos seres humanos.
Conclui-se que a articulação das teorias possibilita perpetuar
os caminhos para que as subjetividades sejam instrumentalizadas e
estendidas ao sistema internacional. Entretanto, isso só será possível
com a emancipação individual dos subalternados, com a organização e
instrumentalização de práticas descolonizadoras a nível doméstico e
internacional, que cumpram a decolonialidade em todas as suas esferas, no
poder, no saber e no ser.
O intento de articular um diálogo entre pensamentos tão amplos
e complexos neste espaço limitado foi modesto, mas de significativa
importância: de demonstrar a compatibilidade, e mais, a complementaridade
entre as perspectivas da teoria crítica dos direitos humanos e dos estudos
decoloniais para se repensar os direitos humanos através de práticas
efetivamente decolonizantes, que permitam o rompimento com a lógica
colonial. Colocar em pauta as insuficiências do regime internacional dos
direitos humanos é pensar uma ética de cuidado da vida humana e das
suas condições de sobrevivência. Em meio à crise atual, se torna cada
vez mais necessário desenvolver instrumentos teóricos que possam não
apenas dar conta das diversas opressões e injustiças, mas respondê-las.
É significativo, portanto, o processo de ressignificar e de reordenar a
afirmação histórica e política de direitos humanos como estratégia de luta,
de renúncia e resistência.

REFERÊNCIAS

BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista


Brasileira de Ciência Política, Brasília, v. 1, n. 11, p. 89-117, 2013.
BRAGATO, Fernanda Frizzo; DAMACENA, Fernanda Dalla Libera.
Das insuficiências do discurso dominante à contribuição latino-
americana para a afirmação dos direitos humanos. Revista de Direitos
Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 313-331, jul./
dez. 2013.
BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos
direitos humanos: contribuições da descolonialidade. Revista Novos
Estudos Jurídicos, v. 19, n. 1, p. 201-230, jan./abr. 2014.

38 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da
modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.
DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. In: LANDER,
Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
FLORES, Joaquín Herrera. A reinvenção dos direitos humanos. Trad.
Carlos Roberto Diogo Garcia, Antônio Henrique Graciano Suxberger e
Jefferson Aparecido Dias. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
FLORES, Joaquín Herrera. Teoria crítica dos direitos humanos: os
direitos humanos como produtos culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009.
MIGNOLO, Walter. Desafios decoloniais hoje. Revista Epistemologias
do Sul, v. 1, n. 1, p.12-32, 2017.
MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o
significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF, v. 1,
n. 34, p. 287-324, 2008.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América
Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos
Aires: CLACSO, 2005.
QUIJANO, Aníbal. Coloniality of power and eurocentrism in Latin
America. International Sociology, v. 15, n. 2, p. 215-232, 2000.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos humanos, democracia e
desenvolvimento. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; CHAUÍ, Marilena.
Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez,
2013.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de
direitos humanos. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 1, n.
48, p. 11-32, 1997.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá ser o direito emancipatório?
Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 1, n. 65, p. 3-76, 2003.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Epistemologies of the South and the
future. From the European South: A Transdisciplinary Journal of
Postcolonial Humanities, v. 1, n. 1, p. 17-29, 2016.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 39


relações internacionais
SANTOS, Boaventura de Sousa. Más allá de la imaginación política y
de la teoría crítica eurocéntricas. Revista Crítica de Ciências Sociais,
Coimbra, v. 1, n. 114, p. 75-116, 2017.
SILVA, Karine de Souza; BOFF, Ricardo Bruno. Nós, os povos das
Nações Unidas: do eurocentrismo excludente à pluriversidade da ONU.
In: SCHMITZ, Guilherme de Oliveira; ROCHA, Rafael Assumpção
(Orgs.). Brasil e o Sistema das Nações Unidas: desafios e oportunidades
na governança global. Brasília: Ipea, 2017.
WOLKMER, Antônio Carlos. INTRODUÇÃO ao pensamento jurídico
crítico. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
WOLKMER, Antônio Carlos; LIPPSTEIN, Daniela. Por uma educação
latino-americana em direitos humanos: pensamento jurídico crítico
contra-hegemônico. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, v.
18, n. 1, p. 283-301, 2017.

40 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
PARTE II

(RE) VISITANDO A DIMENSÃO PRÁTICA


DOS DIREITOS HUMANOS: GRUPOS
VULNERÁVEIS E MINORITÁRIOS NA
AMÉRICA LATINA
NICARÁGUA: SOB AS BASES DA REPRESSÃO

NICARAGUA: UNDER THE BASIS OF REPRESSION

Jonas de Paula Vieira*


Elias Venancio de Souza**
Diego Andrade Cavalcante***
Angelo Rocha Paschoaleto****
Guilherme Henrique Pinto****
RESUMO: No contexto atual, salvar vidas e reduzir os impactos da pandemia da COVID-19 tornou-se
prioridade dos governos, organizações internacionais e grupos da sociedade civil em diversas partes
do mundo. Contudo, sob a névoa da pandemia, a democracia, a igualdade e os direitos humanos têm
sido duramente atacados na Nicarágua. A situação dos direitos humanos no país continua crítica desde
a crise sociopolítica que eclodiu em abril de 2018, a qual se desdobrou ao longo dos anos em diferentes
fases de repressão, violência e agressão por parte do governo vigente. Nesse sentido, este artigo visa
discutir quais elementos dão sustentação ao atual regime de violações de direitos humanos na Nicarágua,
partindo de um estudo bibliográfico e documental de caráter exploratório. Os resultados apontam que
o cenário de violência e repressão no qual se encontra o Estado nicaraguense antecede aos protestos
de abril e são resultantes da erosão sistemática e contínua dos direitos humanos, das instituições e do
estado de direito que, após o início das manifestações, cederam espaço a instrumentalização dos órgãos
públicos em favor dos interesses de Daniel Ortega como forma de perpetuá-lo no comando do país.
Palavras-chave: Nicarágua. Violações de direitos humanos. Daniel Ortega.
*
Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)
– Campus de Franca/SP. Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança
Internacional (GEDES). Redator do Observatório Sul-Americano de Defesa e Forças
Armadas (ODeFA). Redator do projeto “As Relações Internacionais e o Novo Coronavírus”
do Laboratório de Relações Internacionais (LabRI). E-mail: jonas.vieira@unesp.br
**
Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) –
Campus de Franca/SP. Pesquisador associado ao Laboratório de Novas Tecnologias em
Relações Internacionais (LANTRI). Bolsista na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo (FAPESP). Trabalha com estudos nos campos dos movimentos migratórios,
integração regional, política e segurança internacional. E-mail: elias.souza@unesp.br.
***
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)
– Campus de Franca/SP. Assessor de Investimentos e Head de Renda Variável na
Terracotta Investimentos Agente Autônomo de Investimentos Sociedade Simples Ltda.
E-mail: diego.andrade.1997@gmail.com.
****
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) –
Campus de Franca/SP. Graduado em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade
de São Paulo (USP) – Campus de Ribeirão Preto/SP. Servidor da Câmara Municipal de
Ribeirão Preto. Trabalha com as áreas de meio ambiente, governança internacional, segurança
ambiental e temas correlatos. E-mail: angelo.paschoaleto@unesp.br.
*****
Graduado em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)
– Campus de Franca/SP. Pesquisador PIBIC-CNPq de política externa, integração
regional, e tecnologia. Pesquisador do Laboratório de Pesquisas associado ao Laboratório
de Novas Tecnologias em Relações Internacionais (LANTRI). Membro do Laboratório
de Relações Internacionais (LabRI). Membro do Centro de Estudos Multidisciplinares
em Sociedade da Informação. E-mail: gh.pinto@unesp.br

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 43


relações internacionais
ABSTRACT: In the present moment, saving lives and reducing the impacts of the COVID-19
pandemic has become the number one priority to many governments, international organizations
and civil society throughout the world. However, in spite of the pandemic, democracy, equality and
human rights have been under heavy attack in Nicaragua. The human rights situation in the country
is critical since the start of a socio-political crisis, in April 2018, that unfolded throughout the
years along many levels of repression, violence and aggression by the current government. Along
those lines, this paper seeks to discuss which elements sustain the current regime of human rights
violations in Nicaragua based on bibliographical and exploratory research. The results suggest that
the violence and repression that currently plagues Nicaragua precedes the April protests and are the
result of a continuous and systematic erosion of human rights, institutions and rule of law, and that
after the beginning of the social unrest gave way to the instrumentalization of the state in favor of
Daniel Ortega’s interests as a way to perpetuate his hold on power.
Keywords: Nicaragua. Human rights violations. Daniel Ortega.

INTRODUÇÃO

A Nicarágua é um Estado sui generis na América Latina, tanto pelo


seu processo histórico de revoluções quanto por suas lutas pela democracia.
Todavia, a estabilidade e a legitimidade do atual governo, sob a presidência
de Daniel Ortega, fora sendo corroída, ao passo que o chefe do executivo se
afastava da ideologia sandinista em prol de sua permanência no poder. Aos
poucos, a insatisfação social ganhou corpo através de uma série de protestos
e manifestações no país, com especial destaque para os atos iniciados em
abril de 2018. Como consequência de duras reformas na seguridade social e
do aumento das contribuições empregatícias e trabalhistas (FERNÁNDEZ;
WIMER, 2019). A resposta do Estado às inquietações sociais traduziu-
se em diversos atos de repressão, de violência e de agressão aos direitos
fundamentais do país e ao Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Daniel Ortega é líder do partido político socialista Frente Sandinista
de Libertação Nacional (FSLN), uma “sucessora espiritual” do movimento
social iniciado por Augusto César Sandino (1895-1934), em um contexto de
luta contra as forças imperialistas estadunidenses que ocuparam a Nicarágua
entre 1912 a 1933. A FSLN ganhou proeminência no país na década de 1960,
em decorrência das lutas armadas contra o governo ditatorial da Família
Somoza, conduzindo Anastasio Somoza Debayle (1925-1980) à renúncia
da presidência da Nicarágua em 1979 (NIETSCHMANN, 2021). O que
contribuiu para a ascensão da FSLN ao poder, governando o país entre 1979
a 1990, período que ficou conhecido como Revolução Sandinista.
No entanto, a perda da FSLN nas eleições presidenciais de 1990
para o partido de oposição União Nacional Opositora (UNO), abriu espaço
para uma sucessão de governos liberais à frente do país (NIETSCHMANN,

44 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
2021), posição que só foi retomada em 2007 com a vitória de Daniel Ortega
nas eleições presidenciais de 2006. Com o mandato em vista de acabar, o então
chefe do executivo, passou a realizar reformas constitucionais entre 2011 e
2014 como forma de dirigir o Estado por tempo indeterminado, contrariando
o princípio de legitimidade democrática nicaraguense (FERNÁNDEZ;
WIMER, 2019). Paulatinamente, o governo passou a flertar com ações de
espectro liberal, aceitando as contrapartidas do Fundo Monetário Internacional
(FMI) para que Ortega realizasse reformas na seguridade social, ou apoiando
o Tratado de Livre Comércio entre Estados Unidos, América Central e
República Dominicana (CAFTA), o qual abriria a economia nicaraguense à
entrada de capital estrangeiro (FERNÁNDEZ; WIMER, 2019).
Esse afastamento de Daniel Ortega e da FSLN do movimento
que lhes trouxe ao poder, somado às insatisfações geradas pela proposta
de reforma da seguridade social, do projeto de construção do Canal da
Nicarágua, bem como o incêndio da Reserva Indio Maíz, colocaram a
legitimidade do governo em xeque, ainda mais com a resposta truculenta
às manifestações populares, produzindo um cenário grave de violações de
direitos humanos da sociedade nicaraguense.
Nesse sentido, o artigo fora estruturado em dois breves capítulos,
os quais objetivam debater os principais elementos que validam o atual
regime de violações de direitos humanos instaurado na Nicarágua, cuja
metodologia está alicerçada em um estudo de cunho bibliográfico e
documental de caráter exploratório. De tal modo que, o primeiro capítulo
procura examinar os fatores que incidiram sobre a eclosão da crise
sociopolítica na Nicarágua. Enquanto o segundo capítulo, por sua vez,
analisa quais são os eixos que dão sustentação ao sistema político de
violações de direitos humanos no país, os quais, portanto, asseguram a
permanência de Daniel Ortega no poder.

1 OS FATORES QUE IMPULSIONARAM A ATUAL CRISE


SOCIOPOLÍTICA NA NICARÁGUA

Desde o início do século XX projetava-se a construção de um canal


interoceânico na Nicarágua, anseio que também era compartilhado pelos
EUA, contudo, em razão dos eventos da ocupação militar estadunidense no
país entre 1912 a 1933 e das Guerras das Bananas (1898-1934), os Estado
Unidos optaram pela construção do Canal do Panamá (1914) em detrimento
da Nicarágua, após comprarem as participações francesas na obra.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 45


relações internacionais
No entanto, com a ascensão de Daniel Ortega ao poder da
Nicarágua em 2007, as discussões acerca da construção do canal
ressurgiram, e em junho de 2012 a Assembleia Nacional aprovou a Lei nº.
800, que estabeleceu a rota do canal como interesse supremo pelo Estado
nicaraguense (FERNÁNDEZ; WIMER, 2019). Assim, em 2013 a empresa
HK Nicaragua Canal Development Investment Co. Ltd. (HKND Group),
com sede em Hong Kong, foi outorgada pelo governo nicaraguense para
iniciar as obras do canal, recebendo concessão para operá-lo por 100 anos
(GOMES, 2015). Tal ação só foi possível devido a aprovação da Lei n°
840 pela Assembleia Nacional, que permite a realização de outros projetos
(oleodutos, hidrelétricas, aeroportos, etc.) independentes do canal, assim
como a expropriação de terras próximas à rota do mesmo, nas quais vivem
indígenas e pequenos agricultores, e que são ricas em recursos naturais
(FERNÁNDEZ; WIMER, 2019).
A construção da rota do canal estava prevista para ser finalizada
em 2020, entretanto, desde 2016 as obras estão paradas e não há indícios de
que sejam retomadas. Mesmo assim, o governo nicaraguense tem mantido
o regime de expropriação de terras. A Lei n° 840 prevê o pagamento de
indenizações para os expropriados, considerando o valor venal de suas
residências e não o valor de mercado, o que muito os prejudica. De acordo
com a lei, o Estado não precisa indenizar as pessoas que têm somente
a posse de terras (sem propriedades), uma vez que foi estabelecido que
as terras públicas devem ser entregues gratuitamente ao intervencionista
(FERNÁNDEZ; WIMER, 2019). Esse fato não só representa a
expropriação de terras comunais de pequenos agricultores, mas também,
de povos indígenas, ao ameaçar os seus modos de vida ancestrais, como é
o caso da comunidade Rama-Kriol, que pode perder 52% de seu território
(ANTUNES, 2018).
Essas ações levaram a organização de comitês regionais por
setores da sociedade lesados pelas atitudes do Estado, sobretudo, os
pequenos agricultores e os povos indígenas, conduzindo a manifestações
que solicitavam a revogação da expropriação (FERNÁNDEZ; WIMER,
2019). Todavia, é somente em dezembro de 2014, que se iniciou a primeira
grande mobilização nacional (Primeira Marcha) em oposição à construção
do canal, ocorrida em Manágua (capital da Nicarágua), a qual obteve
apoio de estudantes universitários e de ativistas dos direitos humanos
(FERNÁNDEZ; WIMER, 2019). Como o governo rejeitou as proposições
dos manifestantes, novos protestos eclodiram no mesmo ano, com destaque

46 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
para os ocorridos nas localidades de Tule e Rivas, nas quais as manifestações
duraram cerca de oito dias e foram violentamente reprimidas pela polícia
com o auxílio das forças especiais, que empregaram gás lacrimogêneo e
balas de borracha contra os manifestantes (CENIDH, 2015).
Apesar da violação de direitos humanos e da coerção estatal,
as manifestações contrárias à construção do canal se tornaram cada vez
mais recorrentes, e em 2015 ocorreram a Segunda e Terceira Marchas,
que foram igualmente reprimidas, entretanto, o governo também tentou
impedir a entrada e o translado dos manifestantes na capital do país, uma
vez que utilizou de partidários da FSLN e da Juventude Sandinista para
o bloqueio das principais vias de entrada na cidade, além da ocupação
dos espaços públicos (CENIDH, 2016). Dessa maneira, evidencia-se que
o Estado nicaraguense empregou um novo mecanismo de intimidação e
repressão aos protestos.
Já em 2016, realizaram-se a Quarta e Quinta Marchas, com
destaque para esta, pois as forças policiais formaram barreiras no entorno
de Manágua e destruíram as pontes que davam acesso à mesma, além de
usarem balas de borracha contra os protestantes (FERNÁNDEZ; WIMER,
2019). Por fim, as duas últimas grandes mobilizações sociais (Sexta e Sétima
Marchas) que pediram a revogação da Lei n° 840 aconteceram em 2017, e
foram marcadas pelas detenções ilegais de manifestantes (FERNÁNDEZ;
WIMER, 2019). Infere-se, portanto, que os atos em oposição à construção
do canal representam a conflagração social pela qual a Nicarágua vem
passando na última década, e a luta de seus variados setores sociais contra
o regime de violação de direitos humanos do governo Ortega.
Por sua vez, o caso do incêndio da Reserva Indio Maíz, foi o
acontecimento e antecedente mais imediato à atual crise sociopolítica da
Nicarágua. A reserva se encontra no sudeste do país, e é um componente-
chave do Corredor Biológico Mesoamericano, sendo habitada em sua
grande maioria pela comunidade Rama-Kriol. No começo de abril de 2018,
iniciou-se o incêndio na reserva, e o Governo Territorial Rama e Kriol
solicitou a ajuda do governo federal para extingui-lo. No entanto, o Estado
nicaraguense somente agiu três dias depois do pedido, quando o fogo já
havia se espalhado por toda a reserva (FERNÁNDEZ; WIMER, 2019).
A negligência da Nicarágua para combater o incêndio, assim
como a sua atitude negacionista sobre o ocorrido, impedindo o apoio da
comunidade internacional para combatê-lo, gerou a indignação de estudantes
universitários e de ambientalistas, que convocaram manifestações em

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 47


relações internacionais
Manágua. Tal ação, levou o governo a organizar uma contramarcha, visando
reprimir os manifestantes, os quais foram agredidos pelas forças de choque em
cumplicidade com a Polícia Nacional (CENIDH, 2018). Alguns manifestantes
classificaram o incêndio da reserva como criminoso, resultado da invasão da
mesma por pecuaristas para a pastagem de gado, sem monitoramento algum
por parte do Estado (FERNÁNDEZ; WIMER, 2019).
Em decorrência da invasão destas terras, foi formado um
movimento indígena na Costa Atlântica do país entre 2014 e 2018, para
dirimir a violenta “colonização” dos agropecuaristas nos territórios
indígenas, mas o governo não se mostrou a favor desta ação, priorizando a
defesa dos interesses do agronegócio, ao passo que combatia os protestos
(FERNÁNDEZ; WIMER, 2019). Cabe destacar, que o incêndio na reserva
reavivou o sentimento de insatisfação da população nicaraguense com o
Estado, e apesar da repressão deste, as manifestações ganharam força, pois
passaram a abarcar novas reivindicações, como a revogação da reforma da
seguridade social (BENITES, 2018).
Além dos dois casos acima mencionados, faz-se necessário
apresentar o contexto econômico do Estado nicaraguense, e os fatores
que levaram à proposta da reforma da seguridade social em 2018. Como
decorrência da crise sociopolítica, a Nicarágua sofreu, principalmente, com
a fuga de capital estrangeiro, já que perdeu a confiança de seus investidores,
refletindo no Produto Interno Bruto (PIB) do país, o qual teve contração
de 3,9% em 2019 (NICARAGUA: ECONOMIC..., 2020). Essa recessão
agravou a desigualdade socioeconômica entre as classes rural e urbana,
dado que 50% dos moradores das zonas rurais passaram a viver abaixo
da linha da pobreza. A lacuna entre as partes não é aparente somente na
renda per capita, mas também na falta de acesso a recursos básicos, como
saneamento, eletricidade, telefonia, educação e saúde (FMI, 2017).
A seguridade social nicaraguense é administrada pelo Instituto
Nicaraguense de Seguridad Social (INSS), baseando-se, sobretudo, na
aposentadoria por tempo de contribuição, além de apresentar auxílio-doença
e programas para sobreviventes feridos durante o serviço militar (FMI, 2017).
Em 2013, foi feita uma reforma da previdência que, entre outras coisas,
incluía o aumento de contribuição dos trabalhadores de 7% para 10%, e o
pagamento de uma dívida do Governo ao INSS de US$ 10 milhões anuais
pelo período de 50 anos (FMI, 2017). Apesar da reforma, o envelhecimento
da população continuou sendo um desafio à sustentabilidade do sistema
no longo prazo e dois fatores colaboraram para uma nova deterioração do

48 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
sistema de seguridade social no curto prazo: a ingerência dos ativos do INSS
e a introdução da pensión reducida (FMI, 2017).
Os ativos foram usados para a concessão de financiamentos
imobiliários subsidiados, privando o INSS de fundos necessários para
evitar uma crise em seu sistema de pensão (FMI, 2017). Já a inclusão da
pensión reducida, englobando trabalhadores com 250 a 750 semanas de
contribuição, criou um rombo monetário na seguridade devido à insuficiência
das contribuições exigidas para dar direito ao benefício e um número de
beneficiários maior do que o esperado (FMI, 2017). A soma desses dois
fatores levou a um cenário em que o INSS ficaria sem reservas líquidas para
cobrir a diferença entre contribuições e benefícios já em 2019 (FMI, 2017).
Para lidar com a crise na seguridade social, em 2018 o governo
Ortega resolveu reduzir as aposentadorias em 5%, ao passo que aumentou
as contribuições dos trabalhadores e das empresas para resgatar o
INSS (MALDONADO, 2018a). Todavia, nas semanas subsequentes à
proposta, a ideia foi amplamente rejeitada, e protestos foram rapidamente
organizados pela população, os quais foram aderidos por vários grupos
sociais (MALDONADO, 2018b). Após a movimentação inicial, Ortega
cancelou as propostas de reforma da seguridade social, mesmo assim,
seguiram-se as manifestações.
Em conformidade com o que já vinha acontecendo em anos
anteriores, como demonstrado pela reação truculenta do governo contra
os manifestantes, as forças policiais responderam às manifestações mais
uma vez de maneira repressiva. No geral, foram 100 dias de protestos
ininterruptos, nos quais lentamente a sociedade nicaraguense passou a se
identificar com as pautas levantadas pelos estudantes, já que foram os mais
engajados nos inícios das movimentações sociais (MALDONADO, 2018b).
Devido a esse cenário caótico vivenciado pela Nicarágua, entre abril de
2018 e dezembro de 2019, mais de 600 nicaraguenses foram assassinados
pelas forças nacionais, e opositores políticos foram torturados, ou sofreram
ameaças de morte pelo governo Ortega (OEA, 2019), agravando a violação
de direitos humanos no país. Além disso, deve ser ressaltado que mais de
100 mil pessoas fugiram da Nicarágua (DOIS ANOS…, 2020), incluindo
os maiores adversários políticos do governo nicaraguense.
Por fim, destaca-se que o PIB nicaraguense sofreu uma nova
retração em 2020, em razão da pandemia da COVID-19 somada às crises
vividas pelo país (PIB DE NICARAGUA…, 2020). Ademais, como
consequência dessa, as manifestações se tornaram mais escassas em 2020,

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 49


relações internacionais
já que o governo estabeleceu novas medidas restritivas e punitivas para
aqueles que as incitarem, como forma de proibir as aglomerações (COHEN,
2020a). Ressalta-se, também, que as próximas eleições presidenciais estão
previstas para novembro de 2021, entretanto, o governo é quem decide
quais serão os seus adversários na campanha presidencial, com a maioria
destes se encontrando em exílio (COHEN, 2020b).
A partir do que foi exposto, pode-se inferir que as manifestações
geradas pela construção do canal interoceânico e, principalmente, pelo
incêndio da Reserva Indio Maíz, agiram como um estalido social na
Nicarágua, detonando a crise sociopolítica no país, a qual foi aprofundada
pela proposta de reforma da seguridade social, demonstrando a perda
de legitimidade de Daniel Ortega, que governa através de ações que
violam os direitos humanos de sua população, e aprofunda o cenário de
conflitualidade social.

2 OS ALICERCES DO PODER, CONTROLE E REPRESSÃO

Desde que Daniel Ortega chegou à presidência em 2007 diversos


dispositivos de controle e repressão social foram instaurados para silenciar
e ocultar as expressões e traços de agitação social. Com a eclosão da onda
de ações sociais que abalou o país, entre os meses de abril e julho de 2018,
esses dispositivos de coerção e violência estatal se multiplicaram, dando
forma e consolidação a um regime de violação de direitos humanos. O
governo passou a combinar diversas ferramentas de dissuasão em gradativos
níveis de violência, como a incorporação de forças paramilitares à polícia
regular, as detenções em massa e seletivas e a perseguição e destituição
de autoridades do poder judiciário contrárias a Ortega, como constata no
relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)1,
publicado em outubro de 2020.
A falta de independência no sistema de administração da justiça
na Nicarágua permitiu que o direito penal fosse usado e manipulado
para criminalizar e processar vozes críticas ou contrárias ao governo,
levando a centenas de processos judiciais por acusações infundadas e
desproporcionais, bem como graves impactos sobre os direitos judiciais
dos detidos. Construiu-se no país um violento e repressor processo legal,
o qual se legitimou não só através da narrativa de combate a um suposto
1
O relatório Persons Deprived of Liberty in Nicaragua in connection with the Human
Right Crises that began on April 18, 2018 pode ser acessado no seguinte link: http://www.
oas.org/en/iachr/reports/pdfs/Nicaragua-PPL-en.pdf.

50 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
golpe de Estado posto em marcha por agentes estrangeiros e nações
hegemônicas, como os Estados Unidos, historicamente, um dos maiores
interventores no território nicaraguense; mas também, como resultado
lógico do acúmulo de transformações institucionais antidemocráticas,
políticas, sociais e econômicas unilaterais e autoritárias em curso durante
os sucessivos mandatos de Daniel Ortega.
Nove meses após o início da grave crise de direitos humanos
no país, em 9 de janeiro de 2019, a Assembleia Nacional da Nicarágua
aprovou a “Lei para uma Cultura de Diálogo, Reconciliação, Segurança,
Trabalho e Paz na Nicarágua” (LEY, 2019a). A qual foi acompanhada,
em 29 de maio de 2019, pela lei que implementou o Plano de Atenção
Integral às Vítimas (LEY, 2019b) e pela “Lei de Anistia” aprovada em 8
de junho de 2019 (LEY, 2019c) por meio de um procedimento acelerado
no Congresso Nacional que durou apenas 24 horas. Não houve consultas
sobre a lei com a sociedade civil ou mesmo com as vítimas das graves
violações perpetradas por agentes da segurança pública.
Embora todas essas medidas possam transparecer vontade política
do Estado da Nicarágua de empreender ações de reparação, reconstrução
e indenização às vítimas pelos danos sofridos, elas mascaram, em
seu conjunto, o amplo e ambíguo conteúdo das leis e reproduzem uma
narrativa que estigmatiza, revitimiza e desacredita as vítimas da repressão
estatal, aos protestos e suas famílias. Esses complexos legais se desviam
dos padrões internacionais em matéria de verdade, justiça e reparação ao
omitir elementos centrais como: processos de esclarecimento da verdade
sobre violações de direitos humanos, suas causas e consequências;
procedimentos criminais diligentes e imparciais que permitam identificar,
processar e, se for o caso, punir os responsáveis ​​ por tais violações;
programas abrangentes de reparações e garantias de não repetição.
O que se vê no país são ações claras para reprimir as vozes
dissidentes na Nicarágua, as quais estão sendo institucionalizadas sob a
égide de um corrompido estado de direito, o que pode ser exemplificado
com o projeto de lei sobre os agentes estrangeiros (LEY, 2020a). Tal lei
tem por objetivo regular e controlar os chamados agentes estrangeiros,
implicando negativamente sobre o trabalho das organizações nicaraguenses
que recebem financiamento ou apoio do exterior para perseguir causas como
o desenvolvimento e a defesa dos direitos humanos. O conteúdo da lei afeta
os direitos à liberdade de associação e de defesa de direitos humanos, bem
como o exercício do direito de participação nos negócios públicos.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 51


relações internacionais
O que foi reafirmado com a aprovação da “Lei de Defesa dos
Direitos dos Povos à Independência, Soberania e Autodeterminação para
a Paz” pela Assembleia Nacional em 21 de dezembro de 2020 (LEY,
2020b). De acordo com o artigo 1º, a lei impede que os nicaraguenses
concorram a cargos eletivos se, na opinião das autoridades, “lideraram
ou financiaram um golpe de estado”, “promoveram atos terroristas”,
“incitaram a ingerência estrangeira nos assuntos internos”, “organizou e
implementou atos de terrorismo e desestabilização com financiamento de
potências estrangeiras”, ou “acolheu e aplaudiu as sanções contra o Estado
da Nicarágua e seus cidadãos”.
Apesar das duras críticas da CIDH (2020) e de instituições dos
direitos humanos, a comunidade internacional segue como um observador
passivo e indiferente enquanto a Nicarágua continua a declinar para um
estado falido, corrupto e ditatorial. Por um lado, há o receio de interferir
nos assuntos internos de um Estado soberano e, por conseguinte, violar
a Carta das Nações Unidas (SECURITY COUNCIL..., 2018); por outro,
estão as preocupações domésticas de cada líder político com os efeitos da
pandemia da COVID-19, o que tem garantido impunidade aos massacres
perpetrados por Ortega.
Socialmente, ele se mantém no poder, destarte os contínuos
abusos aos direitos humanos por meio de três medidas complementares: um
populismo inspirado (e deturpado) dos movimentos sandinistas do século
XX, do qual o próprio é parte; o aparato da violência, sobretudo, paralegal;
e um controle bem estabelecido acerca das redes de informações, tanto
através do controle às redes sociais quanto à imprensa. Essas medidas
geram relativa estabilidade ao regime, apesar das constantes denúncias
que se têm feito.
O orteguismo se aproveitou do sandinismo2 para a manutenção de
seu status quo, enquanto segue uma lógica que visa beneficiar a “burguesia
sandinista”, resultante das ações de Ortega durante a primeira fase da FSLN
ao poder (FERNÁNDEZ, WIMER, 2019). Este orteguismo, entendido

2
Os princípios do sandinismo estão vinculados ao socialismo, anti-imperialismo e
nacionalismo que visava promover a integração latino-americana. Por outro lado,
“o orteguismo remete a um pragmatismo político que mescla religiosidade popular,
conservadorismo, esoterismo, corporativismo, caudilhismo e fanatismo com discurso de
esquerda como véu para ocultar uma práxis política e econômica neoliberal” (BENITES,
2018, p. 134, tradução nossa), decorrente da evolução do FSLN para um partido que se
fundamenta exclusivamente na figura de seu líder.

52 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
também como uma forma clara de populismo3, conforme expressa
Aleksander Antunes (2018), estabelece a coesão do grupo pró-Ortega, o
que pode ser estendido também à sua habilidade dentro do Legislativo,
que tem aprovado importantes projetos ligados ao plano do presidente.
O movimento sandinista, entendido como um “movimento de liberdade”
ao povo nicaraguense foi deturpado em prol de interesses particulares
e externos, gerando insatisfação dentro da população. Cabe ressaltar,
conforme aponta Antunes (2018), que o sandinismo se apresenta como
“acima do governo e dos partidos”, de tal forma que a própria ideologia é
utilizada como oposição às ações do presidente. Um exemplo disto está na
insurreição de Monimbó (BENITES, 2018). Todavia, Ortega permanece
como forte influência do movimento, reconhecido por toda a América
Latina, agregando apoiadores que minimizam os eventos no país, a exemplo
de Moisés Fuentes (2019), em contrariedade ao que reporta, por exemplo, a
Anistia Internacional (NICARAGUA: GOVERNMENT..., 2021).
O controle social por meio da violência física é talvez uma das
medidas que mais tem chamado a atenção da comunidade internacional, visto
que o emprego das tropas policiais, militares e paramilitares por Ortega são
uma prática recorrente desde que subiu ao poder em 2007 para o controle de
manifestações e opositores, por vezes indo além das fronteiras, ao perseguir
e eliminar corpos dissidentes que buscaram se refugiar na Costa Rica ou
em outros Estados (POLICIAIS DA COSTA..., 2019). A composição dessas
tropas paramilitares é vasta: desde antigos militantes do FSLN à própria
população civil favorável ao regime, que buscam “libertar a população”.
A violência, de ambos os lados, por sinal, tem prejudicado qualquer
possibilidade de volta à normalidade, uma vez que a única solução para eles
é a dizimação do “outro”, conforme reportado por Guillermo Ampié (2018).
Como último mecanismo, o controle midiático é talvez uma das
ferramentas mais importantes, sobretudo, hodiernamente. A vastidão de
informações através das redes amplia o cinismo e a dúvida quanto à real
situação dos eventos, o que favorece extremismos, tanto para a manutenção
do governo de Ortega quanto para os dissidentes (IRAHETA, 2018).
Temendo a expansão dos grupos opositores, Ortega agiu sabiamente
apregoando uma visão que demonizava os protestantes, através das
3
Cabe destacar que o populismo aqui não está empregado na expressão frequentemente
utilizada, negativa, mas sim como um ato político e social a partir do qual se fornece a
coesão. Segundo Antunes (2018, p. 156, tradução nossa), “o populismo não é uma tosca
operação ideológica, mas um ato performativo de racionalidade intrínseca que se encontra
com características que fazem parte da própria realidade social. Essa é a condição de
possibilidade para a construção de significados políticos relevantes”.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 53


relações internacionais
manifestações contra um suposto golpe, enquanto reprimia jornais e
veículos de mídia opositores, culminando na lei de crimes cibernéticos,
que aplica o enclausuramento àqueles que forem entendidos como
disseminadores de notícias falsas (CONGRESSO DA NICARÁGUA...,
2020). Por outro lado, o controle ao financiamento externo restringe as
possibilidades de manutenção da mídia mais tradicional dentro do país, já
que o governo passou a controlar quais veículos se mantêm ativos.
Há um interesse claro em se reduzir a capacidade da população
de exercer seus direitos políticos e participar das decisões públicas. Por
meio deste misto de populismo e carisma, repressão violenta e controle das
informações, o orteguismo segue forte, ao passo que a nação nicaraguense
segue a índices sociais e econômicos dramáticos, violada em sua integridade
física, psicológica e social.
No âmbito econômico, por sua vez, os conflitos sociais iniciados em
abril de 2018 levaram à deterioração da confiança dos agentes econômicos e
à imposição de sanções por parte de países, como os Estados Unidos (FMI,
2020). A combinação desses fatores reduziu substancialmente o acesso ao
financiamento externo. Dado o sistema de bandas cambiais adotado na
Nicarágua e o déficit na conta corrente, essa redução do financiamento
externo era potencialmente catastrófica. Entre abril de 2018 e setembro de
2019, os depósitos bancários e as reservas internacionais caíram em mais
de 30% (FMI, 2020). Ademais, com a queda na atividade econômica, caiu
a arrecadação, o que fez piorar a situação fiscal no país.
Apesar da crise econômica, o governo nicaraguense foi capaz
de adotar medidas efetivas para evitar o seu agravamento. O Banco
Central atuou no sentido de prover liquidez aos bancos, com o uso
de operações compromissadas e redução de compulsórios (FMI,
2020). Além de sinalizar seu compromisso com o controle da inflação
ao reduzir a taxa de desvalorização cambial, de 5% para 3% (FMI,
2020). Por outro lado, o governo foi rápido em aprovar um pacote de
aumento de impostos para controlar o aumento do déficit fiscal e a
queda nas importações, o que transformou o déficit na conta corrente
em um superávit, ajudando, assim, a compensar a deterioração na conta
financeira (FMI, 2020). Além disso, o perfil da dívida pública, com
vencimento longo e juros subsidiados, faz com que o risco de crédito
soberano seja apenas moderado (FMI, 2020).
Sem embargo, o país tem alguns problemas macroeconômicos
a resolver. Como a redução no potencial de crescimento do PIB a médio

54 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
prazo, devido a queda no financiamento externo; os questionamentos
quanto à sustentabilidade fiscal; a demanda de direcionar os gastos do
governo para o suporte dos mais pobres; e a necessidade de se aumentar as
reservas internacionais de forma a garantir a manutenção do regime cambial
(FMI, 2020). De qualquer forma, o sucesso das medidas de estabilização
macroeconômica reduz substancialmente a pressão sobre o governo Ortega
e se torna um fator importante para a manutenção do seu poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que foi exposto, evidencia-se que as violações de


direitos humanos por parte do Estado nicaraguense não se iniciaram
com a resposta aos protestos de 2018, mas são resultado de uma lógica
construída e consolidada pelo governo Ortega na última década. Tais
ações, apresentam-se, por exemplo, pelas expropriações de terras de
povos indígenas e de pequenos agricultores para a construção do canal
interoceânico e de seus projetos adjacentes; a negligência do governo em
combater o incêndio da Reserva Indio Maíz, assim como de fiscalizar a
expansão desordenada do agronegócio sob os territórios de importância
socioambiental; e a repressão violenta às manifestações contrárias à
reforma da seguridade social. Isto é, os casos analisados denunciam o
enfraquecimento das instituições democráticas e do estado de direito
nicaraguenses o que, por sua vez, acabou favorecendo o processo de
violações de direitos humanos no país.
Tanto os fatores externos quanto os domésticos permitiram que
Daniel Ortega continuasse no poder. Por um lado, a fraca pressão da
comunidade internacional devido ao conturbado contexto mundial, por
outro, o controle da justiça, da mídia, a perseguição de opositores políticos,
e a estabilização econômico-financeira, por meio do socorro ao sistema
bancário e o controle do déficit fiscal, foram essenciais para reduzir a tensão
doméstica contra o seu governo. Soma-se a isso, a pandemia da COVID-
19, que foi usada como fator justificante para restringir a livre circulação e
reprimir os protestos, com o pretexto de evitar as aglomerações.
Por fim, deve-se ressaltar que a análise de eventos da
contemporaneidade implica em uma série de desafios, entre os quais a
impossibilidade de garantir uma distância crítica em relação ao objeto
estudado e de se chegar a uma conclusão definitiva, uma vez que os eventos
de violação de direitos humanos na Nicarágua ainda estão em curso, apesar

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 55


relações internacionais
de terem sido arrefecidos em decorrência da pandemia da COVID-19,
como apresentado acima. O que, por conseguinte, abre margem para que
novos elementos explicativos surjam, conduzindo a investigação da crise
sociopolítica a novas interpretações e novos resultados, os quais podem ou
não se diferenciar.

REFERÊNCIAS

AMPIÉ, Guillermo Fernández. Algunos elementos para comprender


mejor lo que ocurre en Nicaragua. In: ANTUNES, Aleksander Aguilar;
DE GORI, Esteban; VILLACORTA, Carmen Elena (Orgs.). Nicaragua
en crisis. Buenos Aires: Sans Soleil Ediciones Argentina, 2018.
ANTUNES, Aleksander Aguilar. Del Canal al Espejo: ¿quién es el pueblo
en Nicaragua? In: ANTUNES, Aleksander Aguilar; DE GORI, Esteban;
VILLACORTA, Carmen Elena (Orgs.). Nicaragua en crisis. Buenos
Aires: Sans Soleil Ediciones Argentina, 2018.
BENITES, Darvin Antonio Sánchez. Protesta social en Nicaragua:
¿derecho o delito? In: ANTUNES, Aleksander Aguilar; DE GORI,
Esteban; VILLACORTA, Carmen Elena (Orgs.). Nicaragua en crisis.
Buenos Aires: Sans Soleil Ediciones Argentina, 2018.
CENIDH. Centro Nicaraguense de Derechos Humanos. Derechos
humanos en Nicaragua: informe anual 2014. Managua: CENIDH, 2015.
CENIDH. Centro Nicaraguense de Derechos Humanos. Derechos
humanos en Nicaragua: informe anual 2015. Managua: CENIDH, 2016.
CENIDH. Centro Nicaraguense de Derechos Humanos. Seis meses de
resistencia cívica frente a la represión gubernamental. Managua:
CENIDH, 2018.
CIDH. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Persons
Deprived of Liberty in Nicaragua in connection with the Human
Rights Crisis that Began on April 18, 2018. Washington D.C.:
Comisión Interamericana de Derechos Humanos, 2020.
COHEN, Sandra. Ditador Ortega da Nicarágua age como se a pandemia não
existisse. G1 Globo, 06 de maio de 2020a. Disponível em: g1.globo.com/
mundo/blog/sandra-cohen/post/2020/05/06/ditador-ortega-da-nicaragua-
age-como-se-a-pandemia-nao-existisse.ghtml. Acesso em: 3 fev. 2020.

56 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
COHEN, Sandra. Nova lei na Nicarágua fecha espaço para opositores.
G1 Globo, 23 de dezembro de 2020b. Disponível em: g1.globo.com/
mundo/blog/sandra-cohen/post/2020/12/23/nova-lei-na-nicaragua-fecha-
espaco-para-opositores.ghtml. Acesso em: 27 fev. 2021.
Congresso da Nicarágua Confirma Lei que Controla Imprensa e Redes
Sociais. Folha de São Paulo, 27 de outubro de 2020. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/10/congresso-da-nicaragua-
confirma-lei-que-controla-imprensa-e-redes-sociais.shtml. Acesso em: 26
fev. 2021.
Dois Anos de Crise na Nicarágua Vorçaram 100 mil Pessoas a Fugirem
do País. ONU News, 10 de março de 2020. Disponível em: https://news.
un.org/pt/story/2020/03/1706731. Acesso em 01 fev. 2021.
FERNÁNDEZ, Paula; WIMER, Fernando. Crisis política en Nicaragua:
un análisis para su comprensión. Tensões Mundiais, Fortaleza. v. 15, n.
28, p. 273-298, 2019.
FMI. Nicaragua: 2019 Article IV Consultation-Press Release; Staff
Report; and Statement by the Executive Director for Nicaragua.
Washington. DC. 27. fev. 2020. Disponível em: https://www.imf.org/
en/Publications/CR/Issues/2020/02/27/Nicaragua-2019-Article-IV-
Consultation-Press-Release-Staff-Report-and-Statement-by-the-49129.
Acesso em: 15 fev. 2020.
FMI. Nicaragua: Selected Issues. Washington. DC. 27. jun. 2017.
Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/CR/Issues/2017/06/27/
Nicaragua-Selected-Issues-45009. Acesso em: 15 jan. 2020.
FUENTES, Moisés Elías. Golpe blando en Nicaragua: la rebelión
prefabricada. Archipiélago Revista Cultural de Nuestra América, v.
26, n. 103, p. 10-13, 2019.
GOMES, Gabriel Galdino. O Canal Interoceânico da Nicarágua: um
empreendimento da China junto com a Rússia na América Latina.
Revista Brasileira de Estudos Latino-Americanos (REBELA),
Florianópolis, v. 5, n. 1, p. 179-188, jan./mar. 2015.
IRAHETA, Iván Castro. Nicaragua: comunicación y redes en la crisis. In:
ANTUNES, Aleksander Aguilar; DE GORI, Esteban; VILLACORTA,
Carmen Elena (Orgs.). Nicaragua en crisis. Buenos Aires: Sans Soleil
Ediciones Argentina, 2018.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 57


relações internacionais
LEY para una Cultura de Diálogo, Reconciliación, Seguridad, Trabajo y
Paz. Asamblea Nacional de la República de Nicaragua, Managua, 9
jan. 2019a. Disponível em: http://legislacion.asamblea.gob.ni/normaweb.
nsf/3133c0d121ea3897062568a1005e0f89/5b219b60a3e3cfc30625839
1005a061f?OpenDocument. Acesso em 27 jan. 2021.
LEY de Atención Integral a Víctimas. Asamblea Nacional
de la República de Nicaragua, Managua, 29 maio 2019b.
Disponível em: http://legislacion.asamblea.gob.ni/Normaweb.
nsf/164aa15ba012e567062568a2005b564b/47aaf8021b8439
680625840e0061315f?OpenDocument&Highlight=2,v%C3%ADctima.
Acesso em: 27 jan. 2021.
LEY de Amnistía. Asamblea Nacional de la República de Nicaragua,
Managua, 08 jun. 2019c. Disponível em: http://legislacion.asamblea.
gob.ni/normaweb.nsf/3133c0d121ea3897062568a1005e0f89/
e077ec7257ded9b406258415007b6225?OpenDocument. Acesso em: 27
jan. 2021.
LEY de Regulación de Agentes Extranjeros. Diario Oficial, Managua, 19
out. 2020a. Disponível em: http://www.pgr.gob.ni/PDF/2020/GACETA/
OCTUBRE/GACETA_19_10_2020.pdf. Acesso em: 27 jan. 2021.
LEY de Defensa de Los Derechos del Pueblo a La Independencia,
La Soberanía y Autodeterminación para La Paz. Asamblea Nacional
de la República de Nicaragua, Managua, 2020b. Disponível
em: http://legislacion.asamblea.gob.ni/SILEG/Iniciativas.nsf/
C4084E2665A5610F06258642007E9C3F/$File/Ley%20N%C2%B0%20
1055,%20Ley%20Defensa%20de%20los%20Derechos%20del%20
Pueblo.pdf?Open. Acesso em: 27 jan. 2021.
MALDONADO, Carlos Salinas. Presidente da Nicarágua cancela
polêmica reforma da Previdência Social que causou protestos. El País,
Managua, 22 de abril de 2018a. Disponível em: brasil.elpais.com/
brasil/2018/04/22/internacional/1524431569_880896.html. Acesso em:
27 fev. 2021.
MALDONADO, Carlos Salinas. Cem dias de protestos e repressão na
Nicarágua. El País, Managua, 26 de julho de 2018b. Disponível em:
brasil.elpais.com/brasil/2018/07/25/internacional/1532533355_700173.
html. Acesso em: 27 fev. 2021.
NICARAGUA: ECONOMIC OUTLINE. Nordea, 2020. Disponível
em: www.nordeatrade.com/en/explore-new-market/nicaragua/economy.
Acesso em: 14 fev. 2021.

58 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
Nicaragua: Government Tactics to Silence Criticism and Social Demands
Deepen Human Rights Crisis. Amnesty International, 15 de fevereiro
de 2021. Disponível em: www.amnesty.org/en/latest/news/2021/02/
nicaragua-tacticas-gobierno-profundizan-crisis-derechos-humanos/.
Acesso em: 23 fev. 2021.
NIETSCHMANN, Bernard et al. Nicaragua. Britannica, 2021.
Disponível em: https://www.britannica.com/place/Nicaragua. Acesso em:
28 fev. 2021.
OEA. Report of the high-level commission on Nicaragua of the
Organization of American States. Organization of American
States (OAS), 2019. Disponível em: http://scm.oas.org/pdfs/2019/
CP41661EREPORTCOMMISSIONONNICARAGUA.pdf. Acesso em:
27 fev. 2021.
PIB de Nicaragua Caerá -2,5% en 2020 y crecerá 1% en 2021. El
Dinero, Managua, 17 de diciembre de 2020. Mercado Global. Disponível
em: www.eldinero.com.do/131627/pib-de-nicaragua-caera-2-5-en-2020-
y-crecera-1-en-2021/. Acesso em: 27 fev. 2021.
Policiais da Costa Rica são Enviados à Fronteira da Nicarágua. Estado
de Minas, 27 de agosto de 2019. Disponível em: www.em.com.br/
app/noticia/internacional/2019/08/27/interna_internacional,1080256/
policiais-da-costa-rica-sao-enviados-a-fronteira-da-nicaragua.shtml.
Acesso em: 25 fev. 2021.
Security Council Takes up Nicaragua Crisis, with some Reservations.
United Nations (UN) News, 2018. Disponível em: news.un.org/en/
story/2018/09/1018442. Acesso em: 26 jan. de 2021.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 59


relações internacionais
AS MIGRAÇÕES VENEZUELANAS NO BRASIL E O
REGIME INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS

VENEZUELAN MIGRATIONS IN BRAZIL AND THE


INTERNATIONAL HUMAN RIGHTS REGIME

Felippe Miguel Fontana*


Júlia dos Santos Silveira**
Luís Felipe Pellison***
Maria Luís Cuoco Casimiro****
Matheus Cerruti*****
RESUMO: A partir da notável crise econômica, política e humanitária na Venezuela, marcada
principalmente pela escassez de bens de consumo e inflação descontrolada, é percebida uma
diáspora da população para os países da América do Sul, em especial para o Brasil. Dessa maneira,
revisitando os estudos migratórios e sua relação com os direitos humanos e analisando as jurisdições
brasileira diante do tema, propõe-se compreender, de maneira básica e introdutória, através de
pesquisas em artigos científicos e jornais, as violações do Brasil frente à crise humanitária e
aos refugiados venezuelanos. Nesse sentido, o Brasil acata as declarações de direitos humanos
desde 1997, institucionaliza e legisla. Todavia, ainda é claro o amadorismo e ineficácia nas ações
brasileiras quanto a esse tema.
Palavras-chave: Venezuela. Brasil. Migração. Refugiado. Direitos humanos.
ABSTRACT: From the notable economic, political and humanitarian crisis in Venezuela, involving
shortage of consumer goods and uncontrolled inflation, there has been a noticeable diaspora of
the population towards the countries in South America, especially towards Brazil. Thus, revisiting
migratory studies and their relationship with human rights and analyzing Brazilian jurisdictions
on the subject, it is proposed to understand, in a basic and introductory way, through research in
scientific articles and newspapers, the violations of Brazil in the face of humanitarian crisis and
Venezuelan refugees. In this sense, Brazil, complies with human rights declarations since 1997,
institutionalize and legislates, however, amateurism and ineffectiveness in Brazilian actions on this
topic are still clear.
Keywords: Venezuela. Brazil. Migration. Refugee. Human rights.

*
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: felippe.fontana@unesp.br.
**
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E- mail: julia.s.silveira@unesp.br.
***
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: felipe.pellison@unesp.br.
****
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: m.casimiro@unesp.br..
*****
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: matheus.cerruti@unesp.br.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 61


relações internacionais
INTRODUÇÃO

Estado que já foi o mais rico da América Latina, segundo o jornal


americano The Washington Post, a Venezuela se transformou, a partir de 2013,
em um cenário desolador em termos econômicos, políticos e humanitários.
Durante anos, o país lutou contra a escassez de bens de consumo como
alimentos e remédios, bem como contra a inflação descontrolada que atinge
o bolívar venezuelano. A desvalorização da moeda nacional chegou a um
ponto em que a população precisava carregar pilhas de dinheiro para adquirir
produtos de primeira necessidade. Ademais, a economia do país dependia
em torno de 95% do petróleo, também segundo o The Washington Post.
Essa matéria prima é encontrada em abundância no território venezuelano.
Entretanto, o preço do insumo despencou no mercado internacional, o
que causou um grande encolhimento do PIB e esgotamento das reservas
internacionais que eram usadas para importar alimentos e produtos básicos.
Em decorrência disso, o presidente Nicolás Maduro chegou a
anunciar que todas as notas de 100 bolívares deixariam de ter curso legal.
Tal medida impossibilitou que milhões de venezuelanos comprassem até
mesmo os bens ainda disponíveis nos mercados. Essa conjuntura acarretou
fome, saques e tumultos em diversas cidades.
A situação política do país também se encontra em estado crítico.
O Partido Socialista Unido da Venezuela, do qual faz parte o presidente,
controla todas as instituições nacionais, exceto a Assembleia Nacional. Tais
circunstâncias fizeram com que os níveis de aprovação do governo pela
população civil atingissem níveis baixíssimos, chegando a apenas 19%.
Como efeito, houve uma verdadeira diáspora com venezuelanos
migrando em direção a outros países da América do Sul em busca de
condições dignas de vida. O Brasil, em especial, chegou a receber 30.000
refugiados em uma única cidade no estado de Roraima. Esse grande fluxo de
pessoas levou o caos para os lugares que as recebiam: os níveis de roubo e
violência cresceram significativamente. Além do mais, os recém-chegados
não possuem moradia ou trabalhos estáveis, no geral, o que também
aumentou o número de moradores em situação de rua nesses locais.
Em suma, os indivíduos mais abastados que têm condições de
conseguir empregos de mão de obra qualificada e remuneração elevada
como engenheiros petrolíferos e médicos partem em direção aos territórios
que oferecem maior prosperidade econômica como Estados Unidos,
Canadá e Noruega. No entanto, profissionais que incluem contadores,

62 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
comerciantes e professores apostam em destinos mais modestos: República
Dominicana, Panamá e Brasil. Outros ainda se veem na necessidade de
cruzar a fronteira de ônibus ou até mesmo a pé em busca de arroz, açúcar,
óleo de cozinha e remédios que não encontram em casa. Contudo, com
a frágil situação dos mercados de trabalho latino-americanos, as nações
nem sempre recebem os refugiados de braços abertos. A Guiana ordenou a
deportação de imigrantes ilegais, e a principal escola de direitos do Panamá
determinou a invalidade dos diplomas venezuelanos em direito no país.
No Brasil, a reação não foi diferente. O Estado brasileiro e, em
específico, os governantes dos estado de Roraima, estado brasileiro em que
se concentra a maior parte dos imigrantes venezuelanos, afirmaram que
esse movimento gera uma sobrecarga nos serviços públicos brasileiros e
que a demanda gerada a partir da chegada dos imigrantes não é capaz de
ser suprida pelo Brasil. Além disso, foi declarada a incapacidade de inserir
os imigrantes em programas de educação, saúde e mercado de trabalho;
também, o discurso político e a inoperância do Brasil frente a essa crise
humanitária salientam quadros de xenofobia.
Nesse sentido, o artigo tem o objetivo de relacionar o estudo do
movimento migratório de venezuelanos para o Brasil, que se intensificou em
2015, com o contexto histórico-jurídico dos direitos humanos, expondo a
trajetória de criação de documentos e organizações que visavam à proteção
dos direitos humanos no Brasil e no mundo. Ademais, também será exposto
o contexto econômico e político da Venezuela no momento em que os
movimentos migratórios se intensificaram, as consequências e desafios
enfrentados pelo Estado brasileiro com a chegada dos venezuelanos e de
que forma esse Estado respondeu à crise humanitária que se produziu.
O artigo está dividido em três seções para além desta introdução.
A primeira seção trata das perspectivas dentro dos estudos migratórios, a
segunda aponta o cenário jurídico brasileiro em torno da questão imigratória
e a terceira apresenta de que forma a resposta do Estado brasileiro viola
os direitos humanos. Por fim, uma sessão para as considerações finais
demonstrando o caráter ineficaz e amador da legislação brasileira para a
questão dos refugiados.

1 ESTUDOS MIGRATÓRIOS E OS DIREITOS HUMANOS

Historicamente, as sociedades sempre foram marcadas por


movimentos de mobilidade entre as pessoas, e hoje, as migrações desafiam

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 63


relações internacionais
diversos campos de estudo que buscam métodos e teorias para compreender
esse fenômeno. Contudo, a sociedade passa por um processo de mutação
constante, e as mudanças ocorridas nas últimas décadas, principalmente
as vinculadas ao modo capitalista e seu processo de acumulação, trouxe
consigo um “conturbado período de reestruturação econômica e de
ajustamento social e político” (HARVEY, 1994, p. 140), dando novas
dinâmicas no fenômeno de mobilidade da população.
Dentro dos estudos migratórios, pode-se destrinchar as análises
em “três troncos teóricos” (MONDARDO, 2007, p. 58), em que o primeiro
deles é a concepção neoclássica dos espaços e migrações, o segundo é
nomeado por diversos autores como concepção histórico-estrutural da
migrações, e o terceiro baseia-se numa concepção marxista, e dá enfoque
na questão da mobilidade do trabalho.
Primordialmente, a concepção neoclássica das migrações,
interpreta os movimentos populacionais como correspondentes à
mobilidade geográfica dos trabalhadores. Para Salim (1992, p. 122), esses
movimentos surgem pelos desequilíbrios dos fatores de produção: terra,
capital e também recursos naturais. A visão neoclássica traz implícita a
ideia de recusa da imperfeição causada pela desigualdade estrutural e da
propensão natural da força de trabalho ao movimento migratório. Ou seja,
o indivíduo é o ponto principal na análise, e sua propensão ao movimento
é um pressuposto, pois ele busca um retorno mais expressivo ao seu
“investimento”, que é a sua força de trabalho. Portanto, essa concepção
considera o “econômico” na análise das migrações, e principalmente
pela vontade do indivíduo em exercer sua força de trabalho com maior
remuneração, e consequentemente, uma melhoria de sua qualidade de vida.
Em segundo lugar, a concepção histórico-estrutural insere em
sua análise questões sociais, históricas e geográficas, colocando grupos
e classes sociais no ponto central da análise. Se, para os neoclássicos,
a decisão e vontade do indivíduo é vista como ponto-chave, para os
históricos-estruturalistas o enfoque é feito naquela parcela que sofre
com a força de estruturas sociais e econômicas, e que levam uma maior
propensão às migrações. Desse modo, a migração é vista como um
fenômeno social, no qual os indivíduos mais vulneráveis (imigrantes)
sofrem a consequência de falhas no sistema estrutural, e principalmente
pelo desenvolvimento desigual capitalista. Portanto, nessa abordagem o
indivíduo que se vê obrigado a migrar, é um simples fruto e consequência

64 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
de uma estrutura capitalista, que hegemonicamente “desloca” as pessoas
no espaço. (VAINER, 2005, p. 263).
A terceira concepção coloca como enfoque a mobilidade do
trabalho, principalmente presente na teoria marxista. Nesse conceito,
as migrações não devem ser dissociadas da realidade do trabalho social,
mas sim como pressupostos econômicos do mesmo. Segundo Póvoa
Neto (1997, p.19), em outras palavras, a mobilidade está intrinsecamente
ligada à produtividade e à expansão física do capital, e se torna condição
e consequência no desenvolvimento das forças produtivas. Basicamente,
o trabalho e a força de trabalho se tornam uma mercadoria, pois o
desenvolvimento do capitalismo é o motor da mobilidade, e os movimentos
migratórios são fenômenos de submissão ao capital, e não de liberdade.
De fato, dentro do debate acerca das migrações, existem muitas
críticas a essas correntes teóricas, justamente por sua inconsistência em
abarcar de forma mais abrangente a realidade. E, assim como nas ciências
gerais, os movimentos migratórios e a sociedade no geral estão em constante
mudança, e nesse sentido, nos estudos das migrações, também vem se
desenvolvendo outras maneiras de conceber e interpretar esse fenômeno.
Após um panorama acerca dos estudos teóricos das migrações, é
necessário apresentar um contexto jurídico sobre os direitos humanos, e
como eles se relacionam ao fenômeno migratório. Após o final da Segunda
Guerra Mundial, diversos Estados se uniram, e uma visão mais humana
tomou conta da sociedade. Em 1948, foi adotada pela Organização das
Nações Unidas (ONU), a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH), após um cenário de caos e desrespeito a qualquer direito humano
trazido pela guerra.
Dentre o texto da declaração, cabe aqui destacar o artigo 13,
que garante que “todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção
e residência dentro das fronteiras do Estado, e que todo ser humano tem
direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio e a este regressar”. O
direito à livre locomoção é exatamente o que está sendo tratado neste artigo,
e a liberdade de forma geral é um dos pilares da dignidade e da cidadania.
Portanto, quando esse direito está sendo violado (dentro de seu próprio país,
por exemplo) uma das consequências é o movimento migratório, como
veremos adiante nos casos de migração de venezuelanos para o Brasil.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 65


relações internacionais
2 JURISDIÇÃO BRASILEIRA E AS MIGRAÇÕES
VENEZUELANAS NO BRASIL

Os direitos humanos internacionais têm sido discutidos no mundo


todo há muitas décadas, principalmente após o término da Segunda Guerra
Mundial, tendo em vista as consequências catastróficas que a mesma
causou em diversas regiões do globo. Por esse motivo, foi estabelecido
o Direito Internacional dos Direitos Humanos, que tinha como intuito
estabelecer os direitos básicos de todos os seres humanos e impulsionar
a garantia de condições mínimas de sobrevivência e de preservação da
dignidade do ser. Além disso, os direitos internacionais garantem que os
direitos básicos de um indivíduo não devem ser limitados pelo controle
estatal. Por conseguinte, esses direitos serviram de base para o Direito
Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Refugiados. Essas
duas categorias são de extrema importância para entender os direitos dos
indivíduos em status de refugiado, isso porque
[...] apresentam o mesmo objeto – a proteção da pessoa humana
na ordem internacional; o mesmo método – regras internacionais
a fim de assegurar essa proteção; os mesmos sujeitos – o ser
humano enquanto beneficiário e o Estado enquanto destinatário
e obrigado principal das regras; os mesmos princípios e
finalidades – a dignidade da pessoa humana, [...] a garantia
do respeito a esta e, consequentemente, a não-discriminação,
diferindo apenas no conteúdo de suas regras, em função de seu
âmbito de aplicação. (JUBILUT, 2007, p. 60)
Os direitos humanos internacionais que dizem respeito
aos refugiados se espalharam pelo mundo, tendo sido base para o
desenvolvimento de leis nacionais. Em 1997, a Lei Brasileira de Refúgio,
formalmente denominada de Lei 9.474, entrou em vigor no Brasil e tinha
como intuito elaborar os mecanismos de refúgio no país, além de esclarecer
quais indivíduos poderiam ser considerados refugiados.
Segundo essa lei, considera-se refugiado todo aquele que está
tendo seus direitos e condições básicas de sobrevivência ameaçados dentro
de seu país de origem, podendo, portanto, procurar e solicitar refúgio no
território brasileiro. Por consequência, foi criado o Comitê Nacional para
os Refugiados (CONARE), órgão responsável em apresentar as conclusões
dos pedidos de refúgio. Mais tarde, em 2017, houve o sancionamento da
Lei da Migração, oficialmente conhecida como Lei nº. 13.445, que tem
como interesse explicitar e garantir os direitos dos refugiados no Brasil.

66 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
Pode ser entendido que as problemáticas referentes ao processo
migratório no território brasileiro não são atuais e que as questões referentes
a refúgio são importantes para todos os países, tendo em vista que essas
problemáticas podem atingir qualquer Estado-nação, mas as propostas de
soluções e de ajuda são notavelmente recentes no país. Dito isso, é necessário
reconhecer que as resoluções e propostas de soluções a esses problemas são
limitadas e ainda muito amadoras e isso ficou mais evidente com o surgimento
de novas questões a serem levadas em consideração, por exemplo, a crescente
crise migratória venezuelana que se agravou no ano de 2015, tendo em vista
que a Venezuela passava por uma grave crise humanitária. Em primeiro
momento é fundamental reconhecer o caráter amador das leis brasileiras com
relação aos refugiados para poder tentar compreender a problemática das
infrações na garantia dos direitos humanos para os refugiados venezuelanos.
A maior parte dos venezuelanos que requisitam refúgio no Brasil
estão localizados no estado de Roraima (MILESI; COURY; ROVERY,
2018). Por esse motivo, há cerca de 13 abrigos voltados para a proteção
dos recém-chegados nessa região, esses foram apresentados pelo Governo
Federal com o apoio da Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR), porém quase todos se encontram lotados, fazendo
com que muitos venezuelanos se encontrem em situação de rua. Além do
mais, foi proposto a resolução de interiorização, onde as cidades de destino
podem demonstrar interesse em abrigar os refugiados.
Ademais, as estatísticas apontam que o governo brasileiro
oferece abrigo para mais de 8.500 venezuelanos, mas ainda assim não se
disponibilizam a financiar a ajuda de modo integral e nem estudam de forma
afincada a garantia de abrigo para os outros venezuelanos que se encontram
desabrigados (MILESI; COURY; ROVERY, 2018). Consequentemente,
muitos venezuelanos ainda se encontram em situações precárias e não
possuem acesso a direitos básicos, como a garantia de acesso à educação,
trabalho e saúde (ALVES, 2019).
Outra problemática importante para entender a situação, seria o baixo
nível de apoio local para garantir os direitos dos novos refugiados. Há diversos
relatos do aumento de violência nas regiões mais afetadas pela crescente
presença de refugiados, além da crescente de atitudes e opiniões xenofóbicas.
Isso acontece porque muitos brasileiros se sentem ameaçados com a chegada
do “desconhecido”, eles levam em consideração a falta de direitos humanos
que são concebidos a eles próprios e acabam levando a tentativa de inserção
dos venezuelanos na sociedade brasileira como uma ameaça.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 67


relações internacionais
Para Arielle Carvalho,
A negação do indivíduo, todavia, gera na vítima consequências
desastrosas, porque este, sem o devido reconhecimento
de seus pares, alista-se em uma busca da reconstrução do
reconhecimento e, nesta batalha, está disposto a colocar a
própria vida em risco. Assim, este duelo se torna uma espécie
de espiral, no qual um busca a aniquilação do outro, num
processo sem fim. (CARVALHO, 2019, p. 34)
Portanto, os conflitos derivados dos problemas interpessoais
entre os refugiados venezuelanos e os brasileiros estão gerando problemas
de diferentes níveis de complexidade. De modo geral, o maior efeito
e a consequência mais grave seria a perpetuação do ódio entre as duas
populações, causando conflitos e acentuando os problemas referentes à
necessidade de sobrevivência.

3 VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS DOS MIGRANTES


VENEZUELANOS

Atualmente, a Venezuela passa por uma forte crise econômica


e política que tem sido conhecida mundialmente como uma crise
humanitária, e a inflação do país tem diminuído cada vez mais o poder de
compra da população (MILESI; COURY; ROVERY, 2018). A Venezuela
tem experienciado a lacuna do auxílio estatal e uma violação dos direitos
fundamentais dos seus cidadãos, uma vez que não há alimentos, saúde, ou
auxílio de qualquer tipo.
O Brasil tem sido um país de destino frequente aos venezuelanos
que buscam refúgio. Segundo dados da ACNUR (2018), 32.744
venezuelanos solicitaram refúgio no país desde 2016. O maior desafio
dessa movimentação se dá em razão da concentração dos refugiados no
estado de Roraima, que faz fronteira com a Venezuela. Sendo Roraima o
menor estado brasileiro em questões populacionais (aproximadamente 500
mil habitantes), tornou-se evidente a falta de condições locais para acolher,
abrigar e oferecer alternativas de trabalho a um contingente tão grande de
pessoas (MILESI; COURY; ROVERY, 2018), o que fez com que o estado
recorresse à União para medidas restritivas para a imigração.
[...] Neste contexto, em 13 de abril de 2018, o governo de
Roraima entrou com a Ação Civil Originária 3121 (ACO
3121), solicitando que o Supremo Tribunal Federal (STF)
determine que a União assuma efetivamente o controle

68 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
policial e sanitário na entrada dos migrantes no Brasil,
inclusive com o fechamento temporário da fronteira com a
Venezuela (RORAIMA, 2018).
Na ação, o estado de Roraima faz referência e pede que a união
resguarde as fronteiras nacionais, com o objetivo de controlar o fluxo,
e pede o “[...] fronteira Brasil-Venezuela a fim de impedir que fluxo
migratório desordenado produza efeitos mais devastadores aos brasileiros
e estrangeiros residentes no estado de Roraima [...]” (RORAIMA, 2018,
p. 35). A intenção do estado de Roraima, com a ACO 3121, é denunciar a
omissão da União no controle das fronteiras nacionais, que seguidas vezes
ignorou a situação vivida no território da região Norte, além disso, para
alguns parlamentares, a ACO 3121 é classificada como um “pedido de
socorro” do estado de Roraima à União.
No entanto, após um maior entendimento sobre a Ação, e sua
relação com a União, é possível notar que está ocorrendo uma “queda de
braços” entre o estado de Roraima e o ente federativo. Em diversos trechos
da ACO 3121, o governo do estado visa culpar os imigrantes venezuelanos
por problemas estruturais que permeiam o estado já há muito tempo. Como
exemplo, pode-se citar o risco de epidemias e aumento da criminalidade. Ou
seja, ao invés de focar em medidas de controle de doenças, como a vacinação
e conscientização da população, o estado de Roraima usa os imigrantes
como bodes expiatórios e como solução para controle do problema, quer
fechar suas fronteiras, além de relacionar problemas de segurança pública –
existentes não só no estado, mas em todo o Brasil –, como o crime organizado
e facções criminosas, com o fluxo de entrada dos refugiados venezuelanos.
De fato, ambos são problemas estruturais presentes muito antes
da entrada de qualquer refugiado. Portanto, a ACO 3121, possui um
caráter xenófobo e que visa a transferência de responsabilidade somente
para a União, quando o que deveria ser feito, é o trabalho conjunto entre os
poderes para uma melhor articulação na resolução dos problemas não só
dos refugiados, mas também as questões estruturais presentes em Roraima
(MILESI; COURY; ROVERY, 2018, p. 65).
Tal ação também viola os compromissos internacionais que o Brasil
assume por ser signatário da Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados
(1951). Nesse documento, é explicitado que o princípio do non-refoulement
(não-devolução) é um dos pilares da proteção internacional dos refugiados
(UNHCR, 2007). Esse princípio explicita que nenhum Estado signatário

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 69


relações internacionais
da Convenção deve expulsar ou rechaçar um refugiado para as fronteiras
de seu país “de origem”.
Pode-se concluir que de acordo com os compromissos
assumidos pelo Brasil de garantir o acesso à pessoa refugiada, respeitar
a dignidade humana e promover o acolhimento humanitário não reflete
às ações demandadas pelo estado de Roraima através da ACO 3121, e
consequentemente à posição do Estado brasileiro frente à situação
venezuelana. A atuação tardia e insuficiente do Governo Federal, em conjunto
com a busca das autoridades locais em se eximir das responsabilidades,
demonstra claros fatores de violações dos direitos humanos, além de criar
um ambiente muito mais propício a ataques xenofóbicos, muitas das vezes
lideradas até mesmo por lideranças políticas da região.
Cabe finalmente ressaltar, a importância em se desenvolver
políticas públicas efetivas para lidar com a questão dos refugiados,
que contribuam com uma visão mais realista da sociedade da migração
como um fato social, e que reconheçam que um bom manejo da situação
pode gerar desenvolvimento, acolhida humanitária e principalmente o
progresso econômico e social da região que historicamente sempre lidou
com problemas estruturais graves. Desse modo, lidar com as questões dos
refugiados não é só um dever humanitário, mas também algo resguardado
na Constituição Federal de 1988, atribuindo-se assim, o tratamento jurídico
adequado a todos os refugiados (NASCIMENTO, 2014, p. 5).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com início da crise econômica, política e humanitária instaurada


na Venezuela a partir do início dos anos 2013 foi possível observar
uma incontestável diáspora com venezuelanos migrando para países,
principalmente, da América do Sul e o Brasil se tornou um dos destinos
mais evidentes, recebendo mais de 30.000 refugiados em uma única cidade
no estado de Roraima que faz fronteira com a Venezuela. Nesse sentido,
nota-se que a preocupação do Estado brasileiro com o tema dos refugiados
e, por consequência, em matéria de Direitos Humanos, deixou a desejar,
quando, através de discursos políticos e poucas ações práticas, indicou
que seria incapaz de incorporar os imigrantes em programas de saúde,
educação e de mercado de trabalho, além de fomentar a xenofobia.
Nesse sentido, é possível salientar que o Brasil, correspondendo
aos movimentos internacionais de legislar sobre migrações e refugiados,

70 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
reconhecendo o direito da livre locomoção e residência, pautado pela
dignidade e cidadania, sinaliza logo em 1997 a criação da Lei Brasileira
de Refúgio, cria o Comitê Nacional para os Refugiados e, em 2017,
sanciona a Lei da Migração que possui como interesse explicitar e garantir
os direitos dos Refugiados no Brasil. Contudo, afirma-se que, apesar dos
processos migratórios no território brasileiro não serem um problema
exclusivamente atual, as resoluções e propostas de soluções para tratar
dessa temática ainda se encontra limitada e ineficiente visto os reflexos das
migrações venezuelanas no Brasil.
Dessa maneira, reconhecendo que as leis brasileiras com relação
aos refugiados possuem um caráter amador e ineficaz, é possível afirmar
que em caráter político e nas ações humanitárias o Brasil viola a garantia
dos direitos humanos dos imigrantes venezuelanos que se encontram em
território brasileiro. Nesse aspecto, as ações do estado de Roraima, por
exemplo, com a tentativa de tornar a imigração mais restritiva, demonstra
a violação dos compromissos internacionais que o Brasil reconhece da
Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados. Assim, ainda que amplo e
com posições divergentes sobre o tema de migrações e refugiados, cabe
ao Brasil rever suas ações e comprometer-se com os temas em que se
encontra como signatário, garantindo ao refugiado a dignidade humana, o
acolhimento humanitário e seus direitos violados.

REFERÊNCIAS

ALVES, Thiago Augusto Lima. Imigrantes venezuelanos: o Brasil


e sua política de proteção aos direitos dos refugiados. In: Anais do
AXVII Congresso Internacional do Fórum Universitário Mercosul
(FoMerco): América Latina: resgatar a democracia, repensar a
integração. Foz do Iguaçu, 2019.
BRASIL. Lei nº. 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos
para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina
outras providências. Brasília: Casa Civil, 1997.
BRASIL. Lei nº. 13.445, de 24 de maio de 2017. Institui a Lei de
Migração. Brasília: Casa Civil, 2017.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 71


relações internacionais
CARVALHO, Arielle. A crise humanitária na Venezuela: refúgio no
Brasil e a atuação do Estado brasileiro na efetivação dos direitos sociais.
In: POMPEU, Gina Vidal Marcílio; QUEIROZ, Daiane de (Orgs.).
Direito constitucional comparado na América Latina: entre o
crescimento econômico e desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2019.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as
origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1994.
JUBILUT, Liliana Lyra. O direito internacional dos refugiados e sua
aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método,
2007.
MILESI, Rosita; COURY, Paula; ROVERY, Júlia. Migração venezuelana
ao Brasil: discurso político e xenofobia no contexto atual. AEDOS –
Revista do Corpo Discente do PPG-História da UFRGS, Porto Alegre,
v. 10, n. 22, p. 53-70, ago. 2018.
SALIM, Celso Amorim. Migração: o fato e a controvérsia teórica.
In: Anais do VIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais,
Associação Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, 1992.
VAINER, Carlos Bernardo. Reflexões sobre o poder de mobilizar
e imobilizar na contemporaneidade. In: PÓVOA NETO, Helion;
FERREIRA, Ademir Pacelli (Orgs.). Cruzando fronteiras disciplinares:
um panorama dos estudos migratórios. Rio de Janeiro: Revan, 2005.
UNHCR. United Nations High Commissioner for Refugees. Venezuela
situation: responding to the need of people displaced from Venezuela.
Geneva: United Nations, 2018.

72 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
A MORTE DE VLADIMIR HERZOG E OS DIREITOS
HUMANOS NA DITADURA MILITAR NO BRASIL (1964-1985)

THE DEATH OF VLADIMIR HERZOG AND THE HUMAN RIGHTS


IN THE MILITARY DICTATORSHIP IN BRAZIL (1964-1985)

Alexandre Diniz Santiago*


Bianca Adam Amaral**
Danielle Elis Alves Valdívia***
Isabela de Oliveira Guariza****
Sofia de Paula Taveira*****
RESUMO: A sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) em
2018, mediante a qual declarou responsável o Estado do Brasil pela falta de investigação, julgamento
e punição dos responsáveis pela tortura e assassinato de Vladimir Herzog abarca a problemática
do respeito aos direitos humanos em tempos de regimes militares. Assim, este trabalho objetiva
analisar o caso Vladimir Herzog perante a Corte IDH e refletir sobre sua repercussão internacional
levando em conta as violações cometidas. Para isso, adota-se um percurso metodológico baseado
na análise crítica do significado de direitos humanos e suas violações durante os anos de ditadura,
além de levar em contas instrumentos históricos importantes como a Lei da Anistia e a Comissão
Nacional da Verdade. Conclui-se que, em termos das violações de direitos humanos cometidas pelo
regime militar no Brasil, o trabalho da Comissão Nacional da Verdade é fundamental para uma
revisão, por parte do judiciário, de atrocidades acobertadas pelos militares. A partir do trabalho da
CNV, surgem novos documentos que embasam as acusações de violações dos direitos humanos
pelo regime militar e auxiliam o trabalho de outros órgãos, como a Corte IDH, trazendo à tona
o debate cada vez mais relevante envolvendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a
história política do Brasil. Assim, nota-se que o caso Vladimir Herzog expressa as mazelas deixadas
pelo regime militar que ainda são visíveis após mais de quatro décadas do ocorrido.
Palavras-chave: Direitos humanos. Violação. Ditadura militar. Vladimir Herzog. Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
ABSTRACT: The judgment handed down by the Inter-American Court of Human Rights (I/A Court of
Human Rights) in 2018, in which the State of Brazil was declared responsible for the lack of investigation,
trial and punishment of those responsible for the torture and murder of Vladimir Herzog, covers the
problem of respect for human rights in times of military regimes. Thus, this paper aims to analyze the
case of Vladimir Herzog before the Inter-American Court, and discuss its international repercussion,
taking into account the violation committed during the dictatorship. In order to do so, a methodological
approach is adopted based on a critical analysis of the meaning of human rights and their violations
*
Graduando em Relações Internacionais pela FCHS-UNESP. E-mail: alexandre.diniz@
unesp.br.
**
Graduanda em Relações Internacionais pela FCHS-UNESP. E-mail: bianca.amaral@
unesp.br.
***
Graduanda em Relações Internacionais pela FCHS-UNESP. E-mail: danielle.elis@
unesp.br.
****
Graduanda em Relações Internacionais pela FCHS-UNESP. E-mail: i.guariza@unp.
br.
****
Graduanda em Relações Internacionais pela FCHS-UNESP. E-mail: sofia.taveira@
unesp.br

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 73


relações internacionais
during the years of military rule, in addition to taking into account important historical instruments, such
as the “Lei de Anistia’’ and the National Commission of the Truth (NCT). It is concluded that, in terms
of human rights violations committed by the military regime in Brazil, the work of the National Truth
Commission is essential for a review by the Judiciary of the atrocities perpetrated by the military. New
documents emerge from the work of the NCT that supports the complaints of human rights violations by
the dictatorship and assists the work of other bodies, such as the Inter-American Court of Human Rights,
bringing to light the increasingly relevant debate that involves the Universal Declaration of Human
Rights and the political history of Brazil. Thus, it is noted that the Vladimir Herzog case expresses
problems left by the military regime that are still visible after over four decades.
Keywords: Human rights. Violation. Military dictatorship. Vladimir Herzog. Inter-American Court
of Human Rights.

INTRODUÇÃO

Tratar sobre os direitos humanos em meio a contemporaneidade


implica em tratar sobre suas recorrentes violações. A problemática da
violação dos direitos humanos nos leva diretamente para uma questão
importante no caso trabalhado: a omissão do Estado diante da obrigação
jurídica de investigar, processar, punir e reparar tais violações. Em um
cenário de opressão e ataques generalizados contra a população civil
considerada como “opositora” da ditadura brasileira, ocorreram diversos
crimes contra os direitos humanos por parte de agentes do Estado brasileiro.
A partir desse panorama, a proposta deste trabalho é analisar o
caso Vladimir Herzog e seu impacto na discussão dos direitos humanos
na atualidade, tendo em vista um contexto de ditadura militar vivida
pelo Brasil no momento em que ocorreu o assassinato do jornalista e,
consequentemente, o debate sobre a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. A qual expõe artigos que versam sobre o direito à vida,
segurança pessoal e liberdade, além do direito de não ser submetido à
tortura, os quais foram todos violados pelo Estado brasileiro na execução
do jornalista Vladimir Herzog.
Além disso, o trabalho busca refletir sobre a postura brasileira diante
do julgamento do caso pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em
maio de 2017 e a situação de impunidade em que se encontrava a detenção
arbitrária, tortura e morte de Herzog. Em decorrência dos reflexos do caso
nas recorrentes questões de violação dos direitos humanos, em situações de
ditadura militar, e dos consequentes impactos negativos para a imagem do
Estado brasileiro posteriormente. O tema ainda é considerado relevante nos
dias atuais por sua repercussão internacional, por isso é bastante estudado,
apresentando uma diversidade de fontes e materiais para tal, e também

74 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
revelando uma abundância de pesquisas na área que levam em conta os
direitos humanos no caso Vladimir Herzog e seus desdobramentos.
Metodologicamente, o trabalho se fundamenta na pesquisa
descritiva documental, em que o desenvolvimento é realizado de acordo
com a literatura específica sobre o tema, a qual não se concentra apenas no
âmbito jurídico, dos direitos humanos, mas também contempla estudos em
artigos e documentos, emitidos tanto pelo instituto Vladimir Herzog quanto
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além disso, o presente
trabalho se baseia no escrito elaborado pelo Grupo de Pesquisa Direito à
Memória e à Verdade e Justiça de Transição da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, publicado em 2018.
Para a discussão do tema proposto, o trabalho está dividido em
quatro capítulos. No primeiro, aborda-se o panorama histórico, abrangendo
a lei da anistia e seus reflexos na análise e julgamento do caso décadas
depois, além de explicitar a conjuntura nacional da ditadura militar e a
comissão nacional da verdade como uma de suas consequências. No
segundo, a análise recai sobre a questão das cortes e os Direitos Humanos,
abordando a relação entre esses direitos e suas violações no âmbito jurídico.
No terceiro, trata-se de descrever o caso julgado pela Corte Interamericana
de Direitos Humanos (Corte IDH), além de traçar uma reflexão sobre a
postura brasileira perante o caso e o impacto de seus desdobramentos para
a discussão de direitos humanos nos dias de hoje.

1 PREMISSAS HISTÓRICO-JURÍDICAS: A DITADURA


MILITAR E A LEI DE ANISTIA

A ditadura militar brasileira, vivenciada entre os anos de 1964


e 1985, evidenciou o conceito da doutrina de segurança nacional que
permanece vigorando na estrutura dos sistemas de segurança e acaba
por expor o dilema da política de segurança pública no Brasil. No ano
de 1979, a Lei da Anistia foi promulgada visando reverter punições aos
cidadãos brasileiros que, entre os anos de 1961 e 1979, foram considerados
criminosos políticos pelo regime militar. Entre outros direitos, a lei garantia
o retorno dos exilados ao país, o restabelecimento dos direitos políticos e
a volta ao serviço de militares e funcionários da administração pública,
excluídos de suas funções durante a ditadura.
A validade dessa lei notadamente no contexto brasileiro é contestada
diante do quadro teórico entendido pela Corte IDH. Sua interpretação é

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 75


relações internacionais
sustentada na sentença do caso Júlia Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do
Araguaia”) vs. Brasil, julgado em 24 de novembro de 2010, a partir da qual as
leis de anistia ou “autoanistia”, no caso brasileiro trata-se da Lei n.º 6.683/79,
são inválidas e não obstante vigentes em relação aos atos desumanos,
generalizados ou sistemáticos, praticados contra a população civil, durante a
ditadura militar, pelos agentes públicos ou aqueles que promoveram a política
arbitrária do Estado ditatorial, com conhecimento desses agentes.
Ademais, no entendimento do Instituto Vladimir Herzog
(VILAVERDE, 2018), a jurisprudência internacional aponta a impossibilidade
de existir uma lei interna que afaste a obrigação jurídica do Estado de investigar,
processar, punir e reparar tais crimes. Tomando como base tal consideração, a
impunidade se torna incoerente, uma vez que a Lei foi aprovada no período da
ditadura, período marcado pela ausência de liberdades democráticas. Por fim,
o entendimento e recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV)
aponta que a lei não poderia incluir agentes públicos que realizaram crimes
como detenções arbitrárias, tortura, execuções ou ocultação de cadáveres,
pois tais violações são incompatíveis com o direito brasileiro e a ordem
jurídica internacional, por se tratarem de crimes contra a humanidade, sendo
então imprescritíveis e não passíveis de anistia.

2 OS DIREITOS HUMANOS E A CORTE INTERAMERICANA


DE DIREITOS HUMANOS

Os direitos humanos são, de acordo com Carlos André Cavalcanti


(2004), frutos de uma história, sendo possível reconstruir sua trajetória
nas sociedades ocidentais. Hannah Arendt (1989) afirma que os direitos
humanos são uma invenção humana em constante processo de construção
e, considerando sua historicidade, os direitos humanos possuem
uma pluralidade de significados. Destaca-se, entre eles, a concepção
contemporânea introduzida pela Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH) (1948) e a Declaração de Direitos Humanos de Viena
(1993). Essa concepção nasce da internacionalização dos direitos humanos,
iniciada como resposta à Segunda Guerra Mundial e as ações do regime
nazista, no qual o Estado foi o violador de direitos humanos.
Flávia Piovesan (2004) afirma que os direitos humanos, na
contemporaneidade, são garantias jurídico-sociais caracterizadas pela
universalidade e pela indivisibilidade. Eles clamam por sua extensão
universal, com a única exigência para possuir direitos sendo a condição

76 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
de pessoa, e garantem que os direitos civis e políticos são condições
para o respeito dos direitos sociais, culturais e econômicos e vice-versa
(PIOVESAN, 2004). Junto disso, os direitos humanos integram uma
unidade indivisível e interdependente, já que a “garantia dos direitos civis
e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos
e culturais – e vice-versa” (PIOVESAN, 2004, p. 22). Assim, os direitos
humanos, são universais, indivisíveis e interdependentes.
Além disso, a DUDH fortalece a ideia de que a proteção dos
direitos humanos não deve se limitar à competência nacional, ao Estado,
pois são de interesse legítimo internacional acarretando na relativização
do conceito tradicional de soberania estatal, com a possibilidade de
intervenções em planos nacionais e a cristalização de que na condição de
sujeito de direito, os direitos do indivíduo devem ser protegidos no âmbito
nacional (PIOVESAN 2004). Dessa forma, é iniciado o direito internacional
aos direitos humanos, diante da adoção de tratados internacionais, que
buscam a proteção dos mesmos, e os sistemas regionais de proteção, que
buscam internacionalizar os direitos fundamentais.
Os diversos sistemas regionais e globais, fundamentados
nos princípios da DUDH, são instrumentos de proteção dos direitos
fundamentais internacionais (baseados no princípio da dignidade humana),
interagindo em benefício dos sujeitos e possuindo como propósito de sua
coexistência dos instrumentos jurídicos, a ampliação e o fortalecimento de
sua proteção (PIOVESAN, 2004).
Diante disso, diversos órgãos internacionais foram criados a
fim de garantir os direitos que vão além do plano doméstico. No caso do
continente americano, foram adotados diversos instrumentos internacionais
que constituem a base de seu sistema regional de proteção e promoção dos
direitos humanos, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Este, por
sua vez, é formulado no âmbito da Organização dos Estados Americanos
(OEA) – uma organização institucional criada, de acordo com o Art. 1º da
Carta da OEA, com o objetivo de alcançar “uma ordem de paz e de justiça,
para promover sua solidariedade, intensificar sua colaboração e defender
sua soberania, sua integridade territorial e sua independência” nos seus
Estados membros. Foi formalmente iniciada com a adoção da Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem, que havia sido previamente
aprovada pela Nona Conferência Internacional dos Estados Americanos,
em Bogotá (abril de 1948), oito meses antes da DUDH (SIKKINK, 2015).

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 77


relações internacionais
A adoção da Declaração Americana pela OEA ocorreu cerca de três
meses antes da aprovação da DUDH por parte da Assembleia Geral da ONU,
assim, a Declaração Americana foi a primeira articulação detalhada dos direitos
humanos adotada por uma organização intergovernamental (SIKKINK, 2015).
A Declaração Americana e a Carta da OEA iniciaram o desenvolvimento
interamericano de proteção aos direitos humanos (CORTE IDH, 2020).
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos é formado por dois
órgãos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Corte
IDH. O primeiro órgão, de acordo com seu Estatuto (1960), possui como
função precípua a promoção dos direitos humanos. Após a adoção do Protocolo
de Buenos Aires (1976), a Carta da OEA foi emendada, tornando a Comissão
o principal órgão da organização. De acordo com a Convenção Americana de
Direitos Humanos (1968), a Comissão deve promover a defesa e a observância
dos direitos humanos consagrados nesta e na Declaração Americana, tendo
competência para examinar casos submetidos por indivíduos, grupos de
indivíduos e organizações não governamentais que contenham denúncias de
violações de direitos humanos por parte de um Estado-parte da Convenção
Americana bem como os Estados-membros da OEA.
De acordo com seus mandatos e funções, a CIDH é o primeiro
órgão a processar as petições de denúncia de violação aos direitos
humanos, que podem ser realizadas por qualquer pessoa, em representação
pessoal ou de terceiros. Existem três condições para a apresentação diante
a CIDH, se a conjuntura que a suposta vítima está inserida às permitir:
se Estado acusado violou os direitos da Declaração ou Convenção
Americana, se todos os recursos legais disponíveis no Estado da violação
foram explorados e se a petição não está pendente em outro procedimento
internacional (CORTE IDH, 2010).
A CIDH então examina a petição, inicia a investigação do caso
e contata o Estado acusado para que este responda a acusação. Se for
determinada a culpabilidade do Estado, a CIDH recomenda reparações à
vítima e encoraja a não violação dos direitos no futuro, incentivando um
acordo amistoso entre as partes. Se as recomendações não forem seguidas,
a CIDH publica suas conclusões para o público geral e leva o caso perante
a Corte IDH (2010), já que indivíduos, grupos de indivíduos ou entidades
não estatais não possuem a capacidade de requerer casos junto à Corte IDH.
A Corte IDH tem sua origem na proposta exposta pela delegação
brasileira na IXª Conferência Interamericana, em Bogotá no ano de 1948
(CORTE IDH, 2020). Ela surge como um órgão autônomo e principal da
OEA e suas funções constam na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos e na Carta da OEA, dessa forma, sua função é apresentar

78 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
soluções necessárias para eventuais conflitos sobre os direitos humanos
(CORTE IDH, 2020). A Corte IDH é formada por sete juízes de Estados
membros da OEA, com mandatos de seis anos eleitos por título pessoal
dentre juristas de elevada autoridade moral e competência reconhecida
no âmbito dos direitos humanos, não podendo haver mais de um juiz da
mesma nacionalidade (CORTE IDH, 2020).
A Corte IDH é um órgão jurisdicional e consultivo, com caráter
punitivo, educacional e protetivo (CORTE IDH, 2020). Se a Corte entender
que houve em um de seus casos houve alguma violação dos direitos
humanos consagrados na Convenção e na Carta da OEA, essa determina que
o Estado-membro garanta os direitos à vítima, sendo possível determinar
que o Estado institua medidas para evitar infrações dos direitos humanos
como tal e uma indenização por parte do Estado pelos danos sofridos da
vítima (CORTE IDH, 2020). No plano jurisdicional, suas decisões são
definitivas e inapeláveis e, no plano consultivo, devem emitir parecer
declaratório pelo Plenário da Corte quando consultados pelos Estados-
membros (CORTE IDH, 2020).
ACorte IDH possui competência litigioso-contenciosa e consultiva,
a fim de conhecer todo caso relativo à Convenção Americana a que lhe
for submetido, sendo necessário o reconhecimento por parte dos Estados-
partes de sua jurisdição. Um exemplo seria o Brasil, que reconheceu a
jurisdição da Corte em 10 de dezembro de 1998 (CORTE IDH, 2020). Seu
procedimento termina com uma sentença judicial motivada, obrigatória,
inapelável e definitiva e os Estados-membros e os órgãos da OEA podem
consultar a Corte sobre a interpretação da Convenção Americana e de
outros tratados em relação à proteção dos direitos humanos no continente
americano (CORTE IDH, 2020).

3 VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS NO CASO HERZOG E


OUTROS VS. BRASIL

O caso Vladimir Herzog e Outros vs. Brasil1 foi julgado no dia


15 de maio de 2018 pela Corte IDH. De acordo com a sentença,
Vladimir Herzog nasceu em 27 de maio de 1937, na antiga
Iugoslávia (atual Croácia) e chegou ao Brasil em 1946, aos
nove anos de idade, junto com os pais, Zigmund e Zora
Herzog. Naturalizou-se brasileiro e estudou na Faculdade de
Filosofia. Iniciou a carreira de jornalista em 1959, no jornal
“O Estado de São Paulo”. Casou-se com Clarice Ribeiro
1
Este capítulo faz referências diretas à sentença da Corte IDH no caso Vladimir Herzog
e Outros vs. Brasil, que constitui a base construtiva da argumentação.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 79


relações internacionais
Chaves pouco antes do golpe de Estado, em 15 de fevereiro
de 1964. Logo após o golpe, em 1965, instalaram-se ambos
em Londres, por pouco mais de dois anos, durante os quais
Vladimir trabalhou como produtor e locutor da BBC e
tiveram seus dois filhos: André e Ivo. Em 1968, voltou ao
país e trabalhou como editor cultural da revista “Visão”. Em
1972, ocupou o cargo de secretário do programa “Hora da
Notícia”, no canal de televisão TV Cultura, e, em seguida,
assumiu o posto de diretor do Departamento de Jornalismo
do mencionado canal. Além de jornalista e dramaturgo,
Herzog também era membro do Partido Comunista Brasileiro
(PCB). (CORTE IDH, 2018, p. 25)
Vlado Herzog e sua família refugiaram-se na Itália devido à
Segunda Guerra Mundial, antes de vir para o Brasil, onde passou a se
chamar Vladimir e estudou na Universidade de São Paulo (USP). Em 1968,
Herzog começou a dar aulas nas universidades Faap e USP e, no ano de
1975, foi convocado pelo secretário de Cultura de São Paulo, José Mindlin,
para dirigir a TV Cultura. Segundo o Instituto Vladimir Herzog, foi nesse
período em que apoiadores da ditadura começaram a denunciar o jornalista
por sua postura política e por seu compromisso com a divulgação das
notícias do Brasil real. Em seguida, o jornalista foi chamado para prestar
esclarecimentos sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro
(PCB) no dia 25 de outubro de 1975, em uma das detenções da Operação
Radar, conduzida pelo Destacamento de Operações de Informação - Centro
de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) (SILVA FILHO et al, 2018).
Tal operação é descrita na sentença do caso pela Corte IDH da
seguinte maneira:
A Operação Radar surgiu como uma ofensiva dos órgãos
de segurança para combater e desmantelar o PCB e seus
membros, mas a Operação não se limitava a deter, tendo
também como objetivo matar seus dirigentes. A Operação
teve início em 1973, conduzida pelo Centro de Informação
do Exército (CIE), em conjunto com o DOI-CODI do II
Exército. A ofensiva funcionou entre março de 1974 e
janeiro de 1976. O DOI do II Exército foi, notoriamente,
um dos piores e mais violentos centros de repressão política
do regime ditatorial, sobretudo no período em que Carlos
Alberto Brilhante Ustra esteve no comando, época em
que se registrou o maior número de casos reconhecidos de
tortura, execução sumária e desaparecimentos de opositores
políticos. O DOI do II Exército deteve 2.541 pessoas e

80 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
recebeu 914 presos enviados por outros órgãos. Foram 54
as vítimas reconhecidas como executadas pelo DOI e 1.348
os presos transferidos ao Departamento Estadual de Ordem
Política e Social (DEOPS).61118. Estima-se que o “ataque
final” contra o PCB em São Paulo tenha começado em 29
de setembro de 1975, quando José Montenegro de Lima
foi detido, torturado e morto. Nos dias seguintes dezenas
de pessoas foram detidas. Muitas vítimas foram executadas
em centros clandestinos utilizados para torturar, assassinar
e ocultar cadáveres pelos agentes do DOI-CODI/SP. A casa
de Itapevi, localizada na região metropolitana de São Paulo,
foi apontada como o centro clandestino utilizado pelo DOI-
CODI do II Exército e pelo CIE para torturar e executar
os presos da Operação Radar (especialmente membros do
PCB). Assim, paulatinamente, os militantes do PCB foram
detidos, torturados ou executados pela Operação Radar,
entre os anos de 1974 e 1976.65 Segundo o Ministério
Público Federal brasileiro, provas obtidas sobre os anos
1970 a 1975 mostram a prática sistemática de execuções e
desaparecimentos dos opositores, com um registro de 281
mortes ou desaparecimentos de opositores, ou seja, 75%
do total dos mortos e desaparecidos em todo o período da
ditadura no Brasil. (CORTE IDH, 2018, p. 25-26)
Em seguida, ainda na sentença da Corte IDH, são descritos os
acontecimentos do dia 25 de outubro de 1975 da seguinte forma:
Na noite de 24 de outubro de 1975, dois agentes do DOI/
CODI apresentaram-se na sede da TV Cultura, onde Vladimir
Herzog se encontrava trabalhando. O senhor Herzog foi
intimado a acompanhá-los à sede desse organismo, a fim de
prestar declaração testemunhal. Após a intervenção da direção
do canal, as forças de segurança aceitaram notificar o senhor
Herzog para que “voluntariamente” depusesse na manhã do
dia seguinte. Vladimir Herzog se apresentou na sede do DOI/
CODI na manhã do sábado, 25 de outubro, voluntariamente.
Ao chegar, foi privado de sua liberdade, interrogado e
torturado. O jornalista Rodolfo Osvaldo Konder, que, na data
em questão, já se encontrava detido no DOI/CODI, registrou:
no sábado pela manhã percebi que Vladimir Herzog tinha
chegado […]. Ao meu lado estava sentado George Duque
Estrada, do “Estado de São Paulo”, e eu comentei com ele
que Vladimir Herzog estava ali presente. […] Algum tempo
depois, Vladimir foi retirado da sala. Nós continuamos
sentados lá no banco, até que veio um dos interrogadores,

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 81


relações internacionais
levou a mim e ao Duque Estrada a uma sala de interrogatório
[…]. Vladimir estava lá, sentado numa cadeira, com o
capuz enfiado. Assim que entramos na sala, o interrogador
mandou que tirássemos os capuzes, por isso nós vimos que
era Vladimir, e vimos também o interrogador […] Tanto eu
como Duque Estrada, de fato, aconselhamos Vladimir a dizer
o que sabia […]. Vladimir disse que não sabia de nada e nós
dois fomos retirados da sala e levados de volta ao banco de
madeira onde nos encontrávamos, na sala contígua. De lá,
podíamos ouvir nitidamente os gritos primeiro do interrogador
e depois de Vladimir e ouvimos quando o interrogador pediu
que lhe trouxessem a “pimentinha” e solicitou ajuda de uma
equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio, e os gritos
de Vladimir se confundiam com o som do rádio […]. [...]
naquele momento Vladimir estava sendo torturado e gritava.
A partir de determinado momento, o som da voz de Vladimir
se modificou, como se tivessem introduzido alguma coisa
em sua boca […], como se lhe tivessem posto uma mordaça.
Mais tarde os ruídos cessaram. Depois do almoço, […] o
mesmo interrogador veio […] me apanhar pelo braço e me
levar até a sala onde se encontrava Vladimir, permitindo mais
uma vez que eu tirasse o capuz. Vladimir estava sentado na
mesma cadeira, [...] mas agora me parecia particularmente
nervoso. Na tarde desse mesmo dia, Vladimir Herzog foi
assassinado pelos membros do DOI/CODI que o mantinham
preso. Segundo perícia da Comissão Nacional da Verdade,
determinou-se que foi estrangulado. Vladimir Herzog tinha 38
anos. Nesse mesmo dia, o Comando do II Exército, mediante
comunicado, divulgou publicamente a versão oficial dos fatos.
Afirmou que Vladimir Herzog se suicidara, enforcando-se com
uma tira de pano. O comunicado informava que Herzog havia
sido convidado a comparecer, já que fora citado por Konder e
Duque Estrada como militante do PCB. Segundo essa versão,
durante uma acareação com os jornalistas mencionados,
Herzog teria confessado sua participação no partido, e teria
feito, inclusive, uma declaração por escrito. Finalmente, o
comunicado afirmou que uma perícia técnica teria confirmado
a morte por suicídio. (CORTE IDH, 2018, p. 26-27)
O caso Herzog foi remetido à Corte IDH no dia 22 de abril de
2016, depois de tramitar desde 2009 na CIDH, na qual foi reconhecida
a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela tortura e
execução da vítima. Então, foi determinado que o Brasil promovesse a
investigação dos fatos para identificar os responsáveis por tais crimes, e

82 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
que retirasse os efeitos da Lei de Anistia brasileira, concedendo reparações
materiais e simbólicas à família da vítima. Devido ao descumprimento das
recomendações, o caso foi encaminhado à Corte IDH.
Em consequência, no dia 24 de maio de 2017, houve uma
audiência pública envolvendo os representantes da vítima, a CIDH e
representantes do Estado, na qual foi avaliada a situação de impunidade
dos agentes públicos envolvidos sem responsabilização. No dia 4 de julho
de 2018 houve outro julgamento pela Corte IDH. Decidiu-se que o Estado
brasileiro era responsável pela falta de investigação, de julgamento e
de punição dos responsáveis pela tortura e pelo assassinato de Vladimir
Herzog, assim como pela aplicação da Lei nº 6.683/79 (“Lei de Anistia”)
neste caso. A Corte IDH também responsabilizou o Estado pela violação
dos direitos de conhecimento da verdade e de respeito à integridade pessoal
dos familiares da vítima em questão2 (CORTE IDH, 2018, p. 82).

4 REFLEXÕES SOBRE A POSTURA BRASILEIRA NO CASO


HERZOG E OUTROS VS. BRASIL

Para analisar o caso a fundo, é importante considerar o contexto


autoritário do Estado brasileiro nessa época. A ditadura militar no Brasil
teve seu início após um golpe em 1964 - orquestrado não só pelos militares
como pela elite do empresariado e por forças estrangeiras - em meio ao
governo de João Goulart (1961-1964), e definiu-se por um período de
drástica diminuição da participação política da sociedade civil. Em meio
a esse cenário, inúmeros acontecimentos levaram a perdas significativas
das liberdades individuais, as quais se manifestaram, majoritariamente,
através dos Atos Institucionais (AI).
Estes, por sua vez, são diplomas legais estabelecidos pelo poder
executivo, editados pelos Comandantes-Chefes do Exército, da Marinha,
2
Com base nas considerações acima, a Corte Interamericana conclui que, em razão da
falta de investigação, bem como de julgamento e punição dos responsáveis pela tortura e
pelo assassinato de Vladimir Herzog, cometidos num contexto sistemático e generalizado
de ataques à população civil, o Brasil violou os direitos às garantias judiciais e à proteção
judicial, previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação aos
artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento, e em relação aos artigos 1, 6 e 8 da Convenção
Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, em detrimento de Zora, Clarice, André
e Ivo Herzog. A Corte conclui também que o Brasil descumpriu a obrigação de adequar
seu direito interno à Convenção, constante do artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e
1.1 do mesmo tratado, e aos artigos 1, 6 e 8 da CIPST, em virtude da aplicação da Lei de
Anistia No. 6683/79 e de outras excludentes de responsabilidade proibidas pelo direito
internacional em casos de crimes contra a humanidade, de acordo com os parágrafos 208
a 310 da presente Sentença” (CORTE IDH, 2018, p. 82).

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 83


relações internacionais
Aeronáutica ou pelo próprio presidente da República. A problemática
dessas medidas se debruça no fato de elas estarem acima dos outros
dois poderes – Legislativo e Judiciário – e até mesmo da Constituição
vigente (1946). Foram decretados dezessete AI, como são comumente
denominados, em sua maioria em prol da remodelação das normas federais
- como o Código Eleitoral, a suspensão do Congresso e outras imposições
- para a instauração do Estado que a ditadura viria a ser.
Assim, faz-se fundamental ter conhecimento da dimensão que o
aparato repressivo da ditadura militar apresentava, sendo responsável por
centenas de mortes, desaparecimentos e prisões de pessoas que compunham
a oposição. Os números ainda não são certos, mesmo com a criação da
Comissão Nacional da Verdade (CNV), em 2011, com o objetivo primeiro
de investigar e esclarecer crimes cometidos por agentes do Estado durante
o governo ditatorial. No entanto, as evidentes violações contra os direitos
humanos empenhadas pelos militares no poder não tinham limites legais,
tampouco morais, por estarem sob a fabricada legalidade autoritária: a Lei
de Segurança Nacional. Esse mecanismo legal teve por serventia oficial a
tipificação dos crimes de segurança nacional, conferindo à Justiça Militar
a jurisdição de processamento e julgamento de infrações dessa natureza.
A CNV demonstra em seus relatórios que, além da hierarquia
que se formou no sistema político brasileiro durante a ditadura, na
qual o poder executivo se sobressaia sobre o legislativo e o judiciário,
ainda havia mecanismos que possibilitavam certo controle por parte do
executivo sobre procedimentos internos dos outros dois poderes. Isso é
explicitado, por exemplo, quando se analisa casos em que, segundo a
CNV, o Supremo Tribunal Federal declarou-se inapto para julgar pedidos
de habeas corpus realizados por adversários do regime militar. Trata-
se de um período de transição nos primeiros anos do regime, em que
o STF tomou decisões oscilantes em relação às violações de Direitos
Humanos, ora se posicionando contrário às mesmas, ora se omitindo. O
cenário mudou, no entanto, após o AI-5, em que a suspensão do direito
ao habeas corpus diminuiu significativamente o poder do judiciário para
coibir as atrocidades do regime militar (COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE, 2014, p.935).
A partir disso, cabe acrescentar a hibridez que o ordenamento
jurídico do governo militar incorporava, uma vez que os Atos Institucionais
eram complementares à Constituição que fora formulada durante o
período ditatorial, no ano de 1967. É importante ressaltar este ponto pois

84 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
nessas ordens de base institucional, de caráter transitório, em conjunto
com as ordens de base constitucional, de caráter permanente, apoiavam-
se o projeto político do totalitarismo do Estado brasileiro, assolado pela
margem legal fornecida pela junção de ambas. Isto é, houve abertura
para a continuação do processo de fortalecimento do Poder Executivo em
detrimento das estruturas do Poder Judiciário, tornando a Justiça Militar
autônoma da divisão democrática dos poderes.
Diante do aparato legal descrito, convém destrinchar as violações
de Direitos Humanos que foram por ele permitidas. Primeiramente,
é importante destacar que no período da ditadura militar, os direitos
humanos já eram pauta de grande relevância a nível internacional: além
da Declaração Internacional dos Direitos Humanos, adotada pela ONU em
1948, houve inúmeros outros documentos que se preocuparam em ampliar
os Direitos Humanos e tratar de aspectos mais específicos dentre eles.
Nesse sentido, cabe destacar o Pacto Internacional sobre Direitos Civis
e Políticos (1966) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(1969). Tendo em vista esse contexto, nota-se que durante a ditadura os
direitos humanos já eram uma temática amplamente difundida, de modo
que se tornam injustificáveis as violações a serem descritas a seguir.
Ademais, ao longo da redação do relatório da CNV destacam-
se quatro modalidades de grave violação dos direitos humanos, são
elas: a detenção ilegal ou arbitrária, tortura, execução em todas as suas
formas imputadas ao Estado e o desaparecimento forçado - incluindo
ocultação de cadáveres.
Em primeiro lugar, as prisões deferidas na ditadura se apresentam
como uma infração profunda no conceito de liberdade, cujo suporte se
apresenta no direito fundamental à dignidade humana, por conta de ser
realizada sem ordem expressa de autoridade competente e em situação
que não constitua flagrante – considerada ilegal – ou com a utilização de
meios e procedimentos desproporcionais e desnecessários - considerada
arbitrária. Ou seja, a privação de liberdade, em meio ao contexto exposto,
foi intensamente dada em moldes que ferem as normas previstas pelo
direito internacional consuetudinário, já que se mostram alicerçadas em
fundamentos discriminatórios. No que refere à prática das Forças Armadas
de aplicar critérios arbitrários e ilegais para com a liberdade da população
civil, a CNV constata a presença de crime contra a humanidade.
Ressalta-se, também, a utilização da tortura e de outros tratamentos
desumanos ou degradantes pelos militares em cunho de ação punitiva, sendo

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 85


relações internacionais
inclusive expressamente vetada tanto pelo direito internacional quanto pelo
direito brasileiro. É o tipo de medida que nenhuma circunstância pode
ser invocada em virtude de justificativa, mesmo que a pessoa esteja em
situação de privação de liberdade legítima, o respeito à dignidade inerente
ao ser humano deve ser mantido. E no caso ditatorial, reitera-se que a
tortura “praticada em contexto de ataque sistemático ou generalizado a uma
população civil, configura ainda crime contra a humanidade” (COMISSÃO
NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 287).
Destacam-se também os casos de execução sumária, arbitrária
ou judicial, assim como outros episódios de mortes atribuídas ao Estado
brasileiro. Além das execuções, incluem-se nesse tópico de violações
de direitos humanos as mortes decorrentes de conflitos armados (por
exemplo, de manifestantes com a polícia) e os inúmeros casos de suicídios
dentre os presos políticos da ditadura militar, os quais se deram tanto por
conta diretamente da tortura aplicada por agentes públicos, quanto por
problemas psicológicos adquiridos em decorrência do tratamento abusivo
dado aos presos pelo regime militar. Nesses casos, trata-se de violação do
direito à vida, um dos mais fundamentais dentre os direitos humanos e que
é pré-requisito para todos os outros.
Em se tratando das especificidades das execuções, a CNV define
as sumárias como “[execuções sumárias] compreendem os casos de
privação da vida resultante de sentenças ditadas por tribunais especiais
ou militares em expressa violação às garantias judiciais e processuais da
vítima” (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p.289), as
arbitrárias ou extrajudiciais como “homicídios perpetrados por agentes
do Estado ou por terceiros, que agem com apoio ou tolerância estatal”
(COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 289) e as extralegais
como “todas as mortes realizadas fora da proteção legal” (COMISSÃO
NACIONAL DA VERDADE, 2014, p. 289).
Segundo a sentença do dia 15 de março de 2018 da Corte IDH no
caso Herzog e Outros vs. Brasil, a violência policial no Brasil no período
não pode ser justificada como meio de garantir a ordem pública, uma vez
que houve violação dos direitos prescritos nos artigos I, IV, VII, XVIII,
XXII e XXV da Declaração Americana, aprovada em Bogotá no ano de
1948 (CORTE IDH, 2018, p. 3) . Os direitos feridos são, respectivamente,
o direito à vida, à liberdade, à segurança e integridade da pessoa, o direito
de liberdade de investigação, opinião, expressão e difusão, o direito de
proteção à maternidade e à infância, o direito à justiça, o direito de associação

86 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
e o direito de proteção contra prisão arbitrária (ORGANIZAÇÃO DOS
ESTADOS AMERICANOS, 1948).
Em último lugar, cabe explicitar o desaparecimento forçado como
violação dos direitos humanos. Esta foi uma prática aplicada de forma
sistemática na maior parte dos regimes ditatoriais da América Latina no
período e, justamente por ser uma questão crescente na região, passou a
atrair olhares de organizações internacionais, que, preocupando-se com a
proporção que esse problema vinha tomando, fomentaram debates visando
coibir os desaparecimentos. Dessa forma, trata-se de uma prática que hoje
em dia é unanimemente considerada privação de liberdade e, portanto,
violação aos direitos humanos.
A partir dos elementos jurídicos expostos, é possível analisar o
caso Herzog e suas especificidades, traçando precisamente as diversas
transgressões aos direitos humanos que o mesmo representou. Sabe-se
que Vladimir Herzog teve alguns de seus direitos fundamentais violados,
considerando a prisão arbitrária, a tortura e a execução, levando o Estado
brasileiro à condenação por sentença judicial. Sob a ótica afunilada pela
Declaração Universal dos Direitos Humanos, o primeiro crime contra a
humanidade ocorrido durante o caso Herzog foi a sua prisão.
Com efeito, a prisão de Herzog foi deferida sem a presença de uma
ordem judicial devida, uma vez que o mesmo fora citado a comparecer no
DOI-CODI apenas para esclarecer seus vínculos com o PCB, posicionando
essa detenção confortavelmente no termo “arbitrário”. Isto é, a privação da
liberdade do jornalista foi decretada sem nenhuma justificativa legítima,
além do descontentamento do Estado para com a militância de Herzog.
Para mais, apontou-se para a presença de um bilhete encontrado rasgado
na cela, que admitia a participação e articulação de Herzog no PCB, o qual
representou o motivo oficial declarado pelos militares pela detenção. No
entanto, a CNV constatou, após análise em perícia do recado, que este fora
ditado ou copiado de algum modelo, em especial porque as “alterações
de calibre e espaçamento inter literais e inter vocabulários, bem como
variações de pressão e de tonalidades do traçado, configuram falta de
fluidez própria das escritas espontâneas” (COMISSÃO NACIONAL DA
VERDADE, 2014, p. 475).
Em 2012, foi dado um importante passo para a apuração da
verdade sobre o caso. A CNV recomendou uma revisão da certidão de
óbito de Herzog ao judiciário. A pauta era um pedido antigo da família
do jornalista, e, ao incluir na causa de morte lesões e maus tratos sofridos

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 87


relações internacionais
nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo, o judiciário proporcionou
uma visão oficial sobre a morte de Herzog mais justa e condizente com
a realidade. Isso porque, com as novas informações acrescentadas,
pode-se finalmente compreender o caso como uma execução arbitrária ou
extrajudicial, ao passo que se enquadra na definição:
[...] a morte de uma pessoa detida sob tutela do Estado,
resultante tanto de condições inadequadas da privação de
liberdade como de situações não esclarecidas que trazem à
tona o dever de garantia do Estado; a morte de uma pessoa
como resultado de tortura ou outros tratamentos e penas
cruéis, desumanos ou degradantes perpetrados por agentes
do Estado. (COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE,
2014, p. 288)
Igualmente, o diagnóstico da Corte IDH descrito anteriormente
prevê a categorização de réu do Estado brasileiro perante o caso da prisão,
tortura e morte de Vladimir Herzog. Diante de informações obtidas através
das partes sobre a atuação das forças de segurança brasileiras no período
do governo autoritário, além de fontes do direito internacional e direito
comparado, a Corte IDH concluiu que não há dúvidas de que o Estado
brasileiro era responsável por violações de normas imperativas (jus cogens)
de lesa-humanidade. De acordo com a sentença do presente caso, consta-
se que “a tortura e morte de Vladimir Herzog não foram um acidente, mas
a consequência de uma máquina de repressão extremamente organizada e
estruturada para agir dessa forma e eliminar fisicamente qualquer oposição
democrática ou partidária ao regime ditatorial” (CORTE IDH, 2018, p. 4).
Constatadas as violações à humanidade, a Corte IDH impôs ao
Brasil a obrigação de investigar, julgar e punir os responsáveis, já que tal
conduta representa ameaças à comunidade internacional. Além disso, a
Corte IDH declarou que o Estado-Parte não poderá invocar medidas como
as leis de anistia que eximam sua responsabilidade de cumprir seu dever de
investigar e punir os responsáveis. Nesse sentido, a Lei de Anistia brasileira
foi considerada carente de efeitos jurídicos, de modo que a figura da coisa
julgada não é absoluta e o habeas corpus aplicado não possui validade.
Em contrapartida, a Corte IDH estabeleceu que o direito das vítimas
de informar-se acerca da verdade foi violado, uma vez que o Estado não
esclareceu e nem determinou as responsabilidades individuais dos indivíduos
relacionados aos crimes contra Herzog. Além disso, foi atestado que “foram
transcorridos vários anos desde que o Brasil reconheceu a competência
contenciosa da Corte, sem que a verdade dos fatos conste oficialmente”

88 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
(CORTE IDH, 2018, p. 5). Por fim, apontou-se os danos à integridade da
vítima e de todo o seu núcleo familiar por conta da difusão de uma versão
falsa da detenção, tortura e execução de Herzog e, também, pelos esforços
frustrados de seus familiares de reivindicar judicialmente seus direitos.
As reparações determinadas pelo julgamento da Corte IDH,
portanto, constituíram-se em:
i) reiniciar, com a devida diligência, a investigação e o
processo penal cabíveis pelos fatos ocorridos em 25 de
outubro de 1975, para identificar, processar e, caso seja
pertinente, punir os responsáveis pela tortura e morte de
Vladimir Herzog, em atenção ao caráter de crime contra
a humanidade desses fatos e às respectivas consequências
jurídicas para o direito internacional; ii) adotar as medidas
mais idôneas, conforme suas instituições, para que se
reconheça, sem exceção, a imprescritibilidade dos crimes
contra a humanidade e internacionais; iii) realizar um
ato público de reconhecimento de responsabilidade
internacional pelos fatos do presente caso, em desagravo à
memória de Vladimir Herzog ; iv) publicar a Sentença em
sua integridade; e v) pagar os montantes fixados na Sentença,
a título de danos materiais e imateriais, e de reembolso de
custas e gastos. (CORTE IDH, 2018, p. 5)
Ademais, o órgão judiciário se colocou à disposição de
supervisionar o cumprimento integral das medidas reparatórias indicadas,
conforme o previsto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O
caso de Vladimir Herzog só se dará por concluído, aos olhos mandatórios
da Corte IDH, quando o Estado brasileiro cumprir cabalmente o que a
sentença redigida em 2018 dispõe.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensando em termos das violações de direitos humanos cometidas


pelo regime militar no Brasil (neste caso em específico, tortura e execução),
percebe-se como o trabalho da CNV é fundamental para uma revisão, por
parte do judiciário, de atrocidades que foram acobertadas pelos militares.
A colocação de informações falsas em laudos periciais, sobretudo
atestando como suicídios, mortes que na realidade foram execuções sob
responsabilidade do Estado, foi, segundo apuração da CNV, prática comum
durante a ditadura militar. A partir do trabalho da CNV, surgem novos
documentos oficiais dando embasamento às acusações de violações dos

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 89


relações internacionais
direitos humanos pelo regime militar, o que auxilia no trabalho de outros
órgãos, como a Corte IDH, e traz à população um conteúdo de extrema
relevância a respeito da história política do Brasil.
Sob este prisma, conclui-se que, como o caso de Vladimir Herzog,
existem mazelas deixadas pelo regime militar que não se dissiparam, ainda
que após mais de quatro décadas do ocorrido. O assassinato de Herzog
foi o destaque simbólico da luta que se empenhou contra os preceitos
antidemocráticos da ditadura e que se empenha atualmente a favor da
verdade, sendo crucial aos direitos humanos de toda uma nação brasileira.
Em outras palavras, trata-se de um trabalho que deve ser enaltecido e
constantemente valorizado, pois é de suma importância esse resgate
histórico para a garantia dos direitos humanos no Brasil.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo.


São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Brasília: CNV, 2014. v. 1.
CAVALCANTI, Carlos André. História moderna dos direitos humanos:
uma noção em construção. In: TOSI, Giuseppe (Org.). Direitos
humanos: história, teoria e prática. João Pessoa: Editora da UFPB, 2004.
CORTE IDH. ABC de la Corte Interamericana de Derechos
Humanos: el cómo, cuándo, dónde y por qué de la Corte Interamericana
de Derechos Humanos. San José, Costa Rica: Corte Interamericana de
Derechos Humanos, 2020.
CORTE IDH. Caso Herzog e Outros vs. Brasil. Sentença de 15 de
março de 2018 (exceções preliminares, mérito, reparações e custas). San
José, Costa Rica: Corte Interamericana de Direitos Humanos, 2018.
ONU. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Paris, 1948. Disponível em: un.org/en/universal-
declaration-human-rights/. Acesso em 15 fev. 2021.
Organização dos Estados Americanos. Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem. Bogotá, 1948. Disponível em: cidh.oas.
org/basicos/portugues/b.declaracao_americana.htm. Acesso em 27 fev.
2021.

90 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
PIOVESAN, Flávia Cristina. Direitos sociais, econômicos e culturais
e direitos civis e políticos. SUR – Revista Internacional de Direitos
Humanos, v. 1, n. 1, p. 20-47, 2004.
SIKKINK, Kathryn. Protagonismo da América Latina em direitos
humanos. SUR – Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 12, n.
22, p. 215-227, 2015.
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da et al. Caso Vladimir Herzog na
Corte Interamericana de Direitos Humanos: escrito de amicus curiae
elaborado pelo Grupo de Pesquisa Direito à Memória e à Verdade e
Justiça de Transição da PUCRS. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.
VILAVERDE, Carolina. Corte Interamericana de Direitos Humanos
condena Brasil por não investigar e punir a morte de Vladimir Herzog.
Instituto Vladimir Herzog, 17 de julho de 2018. Disponível em:
vladimirherzog.org/corte-interamericana-de-direitos-humanos-condena-
brasil-por-nao-investigar-e-punir-a-morte-de-vladimir-herzog/. Acesso
em 27 fev. 2021.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 91


relações internacionais
O CRIME DE TORTURA E A DITADURA MILITAR
BRASILEIRA: UMA ABORDAGEM A PARTIR DOS
DIREITOS HUMANOS

THE CRIME OF TORTURE AND THE BRAZILIAN MILITARY


DICTATORSHIP: A HUMAN RIGHTS APPROACH

Guilherme Nóbrega França*


Huiguis Cailis de Camargo Silva**
João Lucas da Silva***
Lara Papesso****
RESUMO: A prática da tortura é conhecida de longa data na história da humanidade, assumindo
diversas formas com o passar dos anos e se escondendo (ou não) atrás de discursos que buscavam a
legitimação do atentado à dignidade humana que tais ações representam. Mesmo na atualidade estas
práticas insistem em se fazer presentes, ainda que existam diversas organizações internacionais
que condenam veementemente a tortura e que lutam para combater a mesma. No Brasil, a
memória recente da ditadura militar no país deixa ainda suas marcas que muitas vezes podem ser
identificadas no cotidiano do brasileiro, mesmo que o aparato jurídico-legal condene tais ações a
crimes inafiançáveis e sem chance de anistia, na prática encontram-se casos nos quais a tortura
permeia e que passam pelo Estado sem a devida importância.
Palavras-chave: Brasil. Direitos humanos. Proteção. Tortura. Violação.
ABSTRACT: The practice of torture has been known for a long time in the humanity history, taking
several forms over the years and hiding (or not) behind speeches that sought to legitimize the attack
on human dignity that such actions represent. Even today, these practices insist on being present,
although there are several international organizations that strongly condemn torture and struggle
to combat it. In Brazil, the recent memory of the military dictatorship in the country still leaves its
marks that can often be identified in the daily life of Brazilians, even though the legal apparatus
condemns such actions to crimes with no bail and no chance of amnesty, in practice there are cases
in which torture permeates and passes through the State without due importance.
Keywords: Brazil. Human rights. Protection. Torture. Violation.

*
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: guilherme.nobrega@unesp.br.
**
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: huiguis.cailis@unesp.br.
***
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: joao.l.silva@unesp.br
****
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Membro do Grupo de Estudos em Tecnologia e Defesa e a Evolução do Pensamento
Estratégico (GETED). Estagiária no Consulado Geral Britânico em São Paulo. E-mail:
lara.papesso@unesp.br.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 93


relações internacionais
INTRODUÇÃO

No aspecto ético-teórico, a tortura pode ser compreendida como


um ato que deturpa princípios morais de convivência em sociedade gerando
diversas problemáticas que influenciam diretamente no desenvolvimento
da organização social e da dignidade humana. Partindo dessa perspectiva,
a tortura pode ser compreendida como
A capacidade por parte dos seres humanos de infligirem
sofrimento a outros seres humanos, em nome da lei, do Estado,
ou simplesmente por satisfação pessoal, é algo tão generalizado
e persistente que escolher um dos aspectos para discussão [...]
pode parecer injusto ou pretensioso [...]; a tortura começou
como uma prática jurídica e teve sempre na sua essência o
seu caráter público, quer como incidente no processo judicial
quer como uma prática de funcionários do estado à margem do
poder judiciário. (PETERS, 1985, p. 10-11).
Sob a ótica da ditadura como forma de controle e poder, o
objetivo deste trabalho é entender a perspectiva da tortura, no contexto
histórico brasileiro, por meio das ações desenvolvidas pelos organismos
internacionais que lutam pelos direitos humanos. Dessa forma, o primeiro
capítulo narra a ditadura militar no Brasil entre 1964 e 1985 e suas
consequências políticas e sociais, somado à atuação da Organização das
Nações Unidas (ONU) e do governo brasileiro no aspecto jurídico.
No segundo capítulo, a análise recai sobre como a tortura se
perpetua no Brasil contemporâneo mesmo com toda a estrutura jurídica
que considera tal ato como crime incontestável. Complementar a esse
aspecto, o terceiro capítulo aborda reflexões entre os direitos humanos e a
tortura, em uma análise crítica sobre a relação com o Estado e a sociedade
no tocante à temática.
O objetivo geral do trabalho é entender como as práticas da tortura
aconteciam no contexto de formação histórico brasileiro, mais precisamente
no período da Ditadura Militar entre 1964 e 1985, e como essa temática
tem se perpetuado até os dias atuais de uma forma mais sutil e menos
escancarada. Nesse contexto, os organismos de direitos humanos atuam
como peça chave na manutenção de políticas e ferramentas institucionais
que visam condenar tais atos.

94 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
1 A ABORDAGEM DA TORTURA A PARTIR DOS
ORGANISMOS DE DIREITOS HUMANOS

De acordo com Araújo, Silva e Santos (2013) historicamente o


período que mais marcou o Brasil em relação aos processos de tortura
humana ocorreu na ditadura militar entre 1964 e 1985. Essa organização de
caráter militar surgiu a partir de um golpe de Estado organizado tanto pelos
militares quanto por civis que apoiavam os novos ideais disseminados para
conduzir o governo brasileiro naquele período. O golpe ocorreu em 31 de
março de 1964 como estratégia para retirar do poder o presidente João
Goulart e eliminar seu projeto político que buscava o desenvolvimento
econômico e social.
Esse período, portanto, é caracterizado pelo forte autoritarismo
e pela repressão a fim de manter a paz e a segurança nacional e, além
disso, pela concentração por parte da elite resultante das modernizações
do sistema capitalista de produção. De acordo com Ferreira Júnior (2000,
p. 3), “o golpe militar de 1964 foi fruto, mais uma vez, da velha tradição
do ‘arranjo político’ que, desde o período da Independência (1808-
1822) sempre marcou o tipo de poder exercido pelas classes superiores
brasileiras” (FERREIRA JÚNIOR, 2000, p. 3).
Como forma de manter o controle impositivo sobre o Estado
e sobre a população, os militares desenvolveram uma série de políticas
jurídicas para que não houvesse qualquer tipo de contrariedade aos modos
de gestão desenvolvidos. Assim, tais políticas forneciam aos militares o
suporte jurídico e institucional necessário para repreender, agredir, prender
e torturar toda e qualquer pessoa que fosse contra ao sistema do governo.
No que diz respeito à tortura, pode-se depreender que ela foi
a estratégia mais utilizada para punir aqueles que eram considerados
opositores e também como forma de obter informações de pessoas
suspeitas na ótica política. Dentre todos os militares, foi reputado como o
principal torturador brasileiro foi Sérgio Paranhos Fleury, que era delegado
no Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) em São Paulo e
utilizava de ações brutais como, por exemplo, choques elétricos, palmatória
e afogamentos deixando sérias lesões físicas e psicológicas nos torturados.
De acordo com dados do Human Rights Watch (HRW)5, cerca de 434
pessoas foram mortas ou continuam desaparecidas desde a ditadura, fato

5
A Human Rights Watch é uma organização internacional de caráter não governamental
que trabalha realizando pesquisas sobre os direitos humanos.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 95


relações internacionais
que evidencia como os procedimentos de tortura desenvolvidos na época
eram graves e desumanos (HUMAN RIGHTS WATCH, 2019, online).
Neste contexto, é válido destacar que a Constituição Federal de
1988 incorporou no sistema jurídico brasileiro direitos que abarcam aspectos
de saúde, educação, moradia trabalho e também aspectos relacionados à
tortura. A Constituição Federal definiu qualquer ato de tortura como crime
inafiançável e sem possibilidade de anistia, sendo estes pontos legitimados
pelo art. 5º, inciso XLIII6.
Em 1987, a ONU criou a Convenção das Nações Unidas Contra a
Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes,
que visava criminalizar qualquer atitude de tortura por parte dos Estados.
O Brasil, após todo o massacre político coordenado pela ditadura militar,
ratificou essa Convenção em 1989 legitimando as diretrizes discorridas no
documento. O art. 1º da Convenção afirma que
Art. 1º. Para os fins da presente Convenção, o termo “tortura”
designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos,
físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma
pessoa a fim de obter, dela ou de uma terceira pessoa,
informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela
ou uma terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de
ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras
pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação
de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são
infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no
exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com
o seu consentimento ou aquiescência. Não se considerará
como tortura as dores ou sofrimentos que sejam consequência
unicamente de sanções legítimas, ou que sejam inerentes
a tais sanções ou delas decorram (Convenção das Nações
Unidas Contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, 1989).
Contudo, embora o sistema jurídico brasileiro tenha compreendido
a tortura como um grave crime contra a humanidade e tenha se juntado a
diversos outros Estados para legitimar às diretrizes formuladas pela ONU em
1987, na prática a realidade se difere de tal aspecto. Essa irrelevância para
com os acontecimentos do período pode ser explicada pela Lei da Anistia que
entrou em vigor em 1979, anos antes da criação da Convenção das Nações
6
Art. 5º, XLIII. A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia
a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os
definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os
que, podendo evitá-los, se omitirem.

96 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
Unidas Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos
ou Degradantes. Tal lei foi sancionada pelo presidente João Batista
Figueiredo e visava perdoar crimes de caráter político que haviam ocorrido
em determinado período de tempo, como é o caso da Ditadura Militar.
Neste contexto, a ONU entende que os Estados devam ser
transparentes acerca das realidades históricas em períodos de tortura e crise
política. Essa transparência deve, também, se direcionar não apenas para a
situação dos agressores e torturados, mas também para todos aqueles que
desapareceram sem uma devida explicação perante a sociedade. No Brasil,
por exemplo, a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos
do Instituto de Estudo da Violência do Estado (IEVE)7 desenvolveu um
dossiê relatando a história e o contexto enfrentado por diversos mortos e
desaparecidos no Brasil e no Exterior entre 1964 e 1985.
De acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos
(DUDH)8,
Art. 19. Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião
e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado
pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem
consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer
meio de expressão.
O artigo busca, em sua essência, legitimar que todo ser humano tem
o direito à memória e à verdade, ou seja, a transparência nas ações estatais
são extremamente importantes para a manutenção da cidadania e para o
funcionamento democrático da sociedade, pois todos têm o direito de saber.
Dessa forma, em agosto de 2009, a ONU disponibilizou um
relatório desenvolvido pelo escritório do Alto Comissariado para Direitos
Humanos das Nações Unidas, contendo diversas percepções que visavam
proteger os direitos humanos por meio de ações concretas para o combate a
não transparência e ao “esquecimento” da memória daqueles que sofreram
com a tortura. De acordo com Arantes e Pontual (2010, p. 46), o relatório
em questão abrange também “as necessidades específicas dos países que
viveram períodos de graves violações de direitos humanos e seus processos
de transição, bem como do direito de acesso a informações, abordagens
que se complementam na ótica do direito à verdade”.
7
O IEVE tem por objetivo promover e divulgar a continuidade das investigações dos
crimes, mortes e desaparecimentos ocorridos na Ditadura Militar brasileira entre 1964 e
1985.
8
A DUDH foi adotada pela ONU em 1948 a fim de concentrar os ideais básicos de vida
para todos os povos e nações do mundo.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 97


relações internacionais
Em suma, depreende-se que o processo de evolução institucional
brasileiro, a partir da Constituição de 1988, evidenciou as sérias
problemáticas que a prática da tortura pode causar para o desenvolvimento
humano e social. Entretanto, embora o sistema judiciário tenha trabalhado
para enfrentar esse impasse, ainda há uma grave lacuna no que diz respeito
à sinalização de informações que apontem a gravidade da tortura na
sociedade e também da manutenção da memória daqueles que sofreram
durante esse regime opressor.

2 A TORTURA NO ESCOPO DE ANÁLISE BRASILEIRO

Ainda que o período militar brasileiro tenha acumulado um número


exorbitante de casos de tortura – segundo relatório “Brasil Nunca Mais”9,
apenas entre prisioneiros políticos mais de 1900 atestam ter sofrido tortura
–, esta prática não se encerra com a volta do país à democracia. Porém, o
modo em que tal ato é visto e praticado aparenta ter se alterado conforme
as suas circunstâncias. Enquanto no período ditatorial a perseguição e a
tortura se mostravam com um viés ideológico, no Brasil contemporâneo e
democrático, a tortura se faz pautada em questões sociais amparadas pela
injustiça social e o despreparo de um Estado punitivista.
É perceptível que o país não se compromete o suficiente com o
enfrentamento da questão ao analisar sua postura mesmo após o fim do
período militar que propagava abertamente essa política, seja com a
reparação dos males causados pelos governos autoritários ou com o combate
às práticas que ainda ocorrem em seu território. O primeiro ponto é indicado
através das condenações que o Brasil recebeu na Corte Interamericana de
Direitos Humanos (Corte IDH) – por exemplo, pelo assassinato de Vladimir
Herzog10 – mesmo anos após os ocorridos, ou ainda com a Lei nº 6.683, de
28 de agosto de 1979, popularmente conhecida como Lei de Anistia.
Quanto ao combate aos novos casos que ocorrem no país, mesmo
que não sejam por políticas diretas do Estado, existem diversos relatos que
mostram que a prática ainda não está apenas no passado. O Estado muitas
vezes aparece como instrumento torturador por meio de seu policiamento
violento e autoritário. Um dentre os casos que exemplifica essa realidade
é o de Amarildo de Souza, que ficou conhecido por todo o país depois
9
Brasil Nunca Mais” (BMN) compreende uma ampla pesquisa realizada pela sociedade
civil sobre a tortura política no país na década de 1980.
10
A sentença da Corte IDH no caso Herzog e Outros vs. Brasil declarou o Estado
responsável pela ausência de investigação e julgamento dos envolvidos na tortura e
assassinato do jornalista.

98 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
de ser torturado e morto por oficiais de uma UPP (Unidade de Polícia
Pacificadora) na favela da Rocinha, no ano de 2013. O pedreiro na época
foi confundido com um traficante de drogas e foi levado aos containers
pela polícia militar do Rio de Janeiro, a qual testemunhas relataram a
tortura do homem de 47 anos.
Há um paralelo entre esse caso e ocorridos durante a ditadura,
ilustrado por um Estado policialesco que, mesmo agora de forma mais
encoberta, continua violentamente apagando corpos que não servem
aos seus propósitos (COIMBRA, 2001). A contemporaneidade usa
de um artifício de violação de direitos, como uma política higienista e
preconceituosa. Os direitos humanos, mesmo com tantos artifícios para
serem defendidos, não alcançam uma expressiva parcela da população, a
parcela periférica e pobre, que só tem visibilidade quando as proporções
tomadas chocam de modo extravagante alcançando a mídia.
Além disso, os últimos anos no país evidenciam uma crescente
relativização do uso da violência, sobretudo após a eleição do atual
presidente Jair Messias Bolsonaro em 2019. O chefe do Executivo do
país, que é também um ex-militar, já fez diversas referências positivas à
ditadura, exaltando o período e chegando até mesmo a elogiar torturadores
do governo, inclusive chamando um deles de “herói nacional”11. Como
exposto por Priscilla Dibai,
A temática militar é tão importante na visão de mundo de
Bolsonaro que aparece em 86,3% dos 22 materiais pesquisados.
A defesa da memória/legado da ditadura é, de longe, o tema
mais falado, ocupando 79,5% das entrevistas. O interessante
é que os posicionamentos assumidos em relação ao regime
militar são todos voltados para protegê-lo ou reconstruí-lo
positivamente, nunca como uma crítica, um pedido de desculpa
ou uma autorreflexão dos equívocos. Sempre a postura
assumida é a de defesa dos militares/regime, seguida do ataque
a seus adversários diretos. (DIBAI, 2019, p. 95)
Dessa forma, a partir da simpatia externada pelo Governo Federal
em relação aos tempos de vigência da ditadura militar no Brasil, não é
esperado que o governo de Bolsonaro venha a tentar reparar as violências
do período que ainda deixam suas marcas ou ao menos reconhecer estas e,
principalmente, atuar de modo a evitar que tais abusos voltem a acontecer
durante sua ocupação do cargo.
11
Discurso proferido na saída da residência oficial do Palácio da Alvorada aos jornalistas,
na quinta-feira, dia 08 de agosto de 2019.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 99


relações internacionais
3 PERCEPÇÕES SOBRE DIREITOS HUMANOS E TORTURA

A universalização dos direitos humanos como prática no sistema


internacional pode ser analisada a partir da exposição desenvolvida nos
capítulos anteriores. O pilar estruturante dessa internacionalização é visto
na criação de organismos de proteção desses direitos, tanto na esfera
internacional como na regional, além da implementação dessa lógica no
Brasil, através do aparato jurídico-legal.
As dinâmicas dos tratados internacionais referentes à violação dos
direitos humanos são fundamentadas, principalmente, na ação do Estado
como entidade contemporânea consciente e ética. É através dos debates
entre Estados Nacionais que as determinações sobre direitos humanos
são concentradas, apesar de no contexto latino americano, por exemplo,
os mesmos serem os responsáveis pelas mais eminentes violações de tais
direitos, por meio de tortura, violência policial, discriminação étnico-racial e
outras formas de transgressão aos direitos humanos (VENTURI, 2010, p. 11).
Especificamente no escopo de análise da tortura, apesar do Estado
brasileiro ter ratificado Convenções, como a Convenção contra a Tortura em
1989 e seu Protocolo Facultativo, o âmbito jurídico-legal do país perpetua
aspectos autoritários da época ditatorial, como a já citada Lei de Anistia
de 1979. Nesse sentido, aponta-se uma dificuldade na implementação dos
direitos humanos: por um lado, o Estado concentra a maior parte do poder
decisório, enquanto o mesmo ator mantém ideologias inversas aos direitos
conquistados, como no trecho, já que “a anistia perdoou a estas e não a
aqueles; perdoou as vítimas e não os que delinquem em nome do Estado.
Ademais, é inadmissível que o crime de tortura seja concebido como crime
político, passível de anistia e prescrição” (PIOVESAN, 2009, p. 181).
Na maioria dos casos de tortura no Brasil, os crimes são
relacionados à lesão corporal ou constrangimento ilegal, não sendo utilizada
a Lei nº. 9.455/97. A lei de tortura foi empregada nos primeiros cinco anos
de vigência, 524 vezes, sendo 15 os casos julgados e 9 resultando em
condenação de torturadores (CARVALHO, 2004, p. 38).
Complementar a essa questão, ainda que a construção da lógica
dos direitos humanos no país seja vinculada ao formalismo da legalidade
dos direitos, principalmente no exposto sobre a anistia, diferentes formas
de contraposição influem como resistência a tais parâmetros. Um exemplo
de movimento que surgiu da luta pela memória coletiva é a dos Grupos
Tortura Nunca Mais, que visam esclarecer crimes na época da ditadura,

100 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
assim como os desaparecimentos e a banalização da tortura (ARAÚJO;
ARNS; ALENCAR, 1995).
Com o objetivo de desenvolver uma cultura dos direitos humanos,
perpassada não somente pelas leis, mas também pelos aspectos sociais, se faz
necessário uma justiça de transição consolidada. Segundo Kathryn Sikkink
e Carrie Booth (2008), tal movimento é possível a partir da compreensão
do direito à verdade, o direito à justiça, o direito à reparação e reformas
institucionais. Nessa perspectiva, as práticas de tortura confrontam não apenas
direitos individuais, mas também os direitos coletivos de acesso à verdade.
De forma tangente a esse debate, a tortura pode ser analisada como
um fator que perpassa as diferentes dimensões históricas sobre os direitos
humanos. Desde a primeira visão de liberdades públicas fundamentais,
passando dos direitos sociais, econômicos e culturais e chegando aos
direitos difusos e coletivos no instante imediatamente posterior à Segunda
Guerra Mundial. A tortura se apresenta, à vista disso, como uma violação
que se adequa nos parâmetros de cada dimensão de estudo, por se tratar de
uma questão tanto coletiva, como individual.
Considerando as exposições apontadas, a Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) apresentou
uma pesquisa sobre as percepções da população brasileira em relação
à cidadania, aos direitos humanos e às violências. No que diz respeito
às violências que deveriam ser combatidas com maior rigor no país, os
dados indicam que o abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes
liderava com 67% de indicações (VENTURI, 2008, p. 24-25). Na
sequência, a violência doméstica contra crianças, adolescentes e idosos
alcançou a marca de 59%, seguido da violência doméstica contra
a mulher, com 44% (VENTURI, 2008, p. 25). A violência policial
atingiu a marca de 34%, enquanto o trabalho infantil marcou 27% de
indicações (VENTURI, 2008, p. 25). Em relação à tortura, apenas 12%
dos entrevistados indicaram como a forma de violência que deveria ser
extirpada do país (VENTURI, 2008, p. 25).
A partir de tais informações, uma reflexão perante a definição e
inter-relação entre as violências citadas é exposta
Quando, por exemplo, verifica-se que apenas 12% consideram
a tortura como prática a ser combatida, não se lê o conteúdo
implícito de que as demais formas de violência também
supõem, em sua prática, a tortura. Dentre as violências a ser
combatidas, a policial – apontada por 34% do respondentes
– frequentemente se materializa como tortura, como maus-

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 101


relações internacionais
tratos e abuso do poder, todos os quesitos que fazem parte
do campo da tortura conforme a legislação internacional e a
brasileira. (ARANTES; PONTUAL, 2010, p. 49)
O debate envolvendo a tortura no Brasil pode ser caracterizado,
considerando as exposições, a partir de duas lentes de análise: a concepção
institucional da violação dos direitos humanos, vinculada principalmente
ao Estado, assim como a visão da população brasileira sobre as práticas
de violência contemporâneas. Baseado nesses aspectos, faz-se necessário
abordar essas duas premissas para o desenvolvimento de uma cultura dos
direitos humanos no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A utilização de práticas de tortura, como instrumento de


mantimento do poder de determinado grupo, aponta-se como difusa
entre as manifestações históricas documentadas (OLIVEIRA, 2011).
Especificamente no caso brasileiro, é no período da ditadura militar que
os casos de violação dos direitos humanos a partir de atos de tortura
ocorreram de maneira sistematizada, através do aparato estatal. Como
desenvolvido, as características jurídicas e políticas dessa época tiveram
mudanças na legislação brasileira, ainda que determinadas práticas mais
enraizadas permaneçam. O Estado, nesse caso, é o ator que perpetua
posicionamentos e condutas que validam violações aos direitos humanos
por meio da tortura, da repressão policial e da discriminação jurídica, por
exemplo. A partir disso, são necessárias mudanças institucionais legais
no aspecto jurídico brasileiro a fim de anular os aspectos autoritários
herdados da ditadura. Ademais, movimentações populares na educação
pelos direitos humanos são essenciais na construção de uma cultura
baseada na dignidade humana, reivindicando os direitos conquistados
pelas lutas sociais e suplantando a tortura como forma de violação.

REFERÊNCIAS

ARANTES, Maria Auxiliadora A. Cunha; PONTUAL, Pedro. Direitos


humanos: percepções da opinião pública: análises de pesquisa nacional.
Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República,
2010.

102 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
ARAÚJO, Maria do Amparo A.; ARNS, Dom Paulo Evaristo;
ALENCAR, Miguel Arraes. Dossiê dos mortos e desaparecidos
políticos a partir de 1964. Pernambuco: Tortura Nunca Mais, 1995.
ARAÚJO, Maria Paula; SILVA, Izabel Pimentel; SANTOS, Desirrée.
Ditadura militar e democracia no Brasil: história, imagem e
testemunho. Rio de Janeiro: Ponteio, 2013.
CARVALHO, Sandra. Direitos humanos no Brasil 2003: relatório anual
do Centro de Justiça Global. Trad. Carlos Eduardo Gaio. Rio de Janeiro:
Justiça Global, 2004.
COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Tortura ontem e hoje: resgatando uma
certa história. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 11-19, jul./
dez. 2001.
DIBAI, Priscilla Cabral. A direita radical no Brasil pós-
redemocratização: o caso de Jair Bolsonaro. 154 f. Dissertação
(Mestrado em Ciência Política) – Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019.
FERREIRA JÚNIOR, Amarílio. Tortura no contexto do regime militar.
Revista Olhar, v. 2, n. 4, p. 1-13, dez. 2000.
OLIVEIRA, Luciano. Ditadura militar, tortura e história: a vitória
simbólica dos vencidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 26, n.
75, p. 7-25, 2011.
PETERS, Edward. História da tortura. Trad. Pedro Silva Ramos.
Alfragide: Editorial Teorema, 1985.
PIOVESAN, Flávia. Direito internacional dos direitos humanos e lei de
anistia: o caso brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da FMP, v.
1, n. 4, p. 117-134, 2009.
SIKKINK, Kathryn; WALLING, Carrie Booth. Do human rights trials
improve human rights? In: STEINER, Henry J.; ALSTON, Philip;
GOODMAN, Ryan. International human rights in context: law,
politics, morals. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2008.
VENTURI, Gustavo. O potencial emancipatório e a irreversibilidade dos
direitos humanos. In: VENTURI, Gustavo (Org.). Direitos humanos:
percepções da opinião pública: análises de pesquisa nacional. Brasília:
Secretaria de Direitos Humanos, 2010.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 103


relações internacionais
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA SOB A
PERSPECTIVA DO ESTADO BRASILEIRO E O CONSELHO
DE DIREITOS HUMANOS DAS NAÇÕES UNIDAS

HOMELESS PEOPLE FROM THE PERSPECTIVE OF


BRAZILIAN STATE AND THE UNITED NATIONS HUMAN
RIGHTS COUNCIL

Larissa Prudêncio Menezes Ferreira*


Marcela Rodrigues da Cunha Oliveira Carvalho**
Priscila Helena Rosa***

RESUMO: O presente artigo analisa o cenário de pessoas em situação de rua no Brasil e expõe as
discriminações sofridas por esta população. Com isso, o texto busca identificar formas de solucionar
o problema e levar mais dignidade à vida do grupo. Para isso, são revisadas a Constituição Federal
de 1988 e as recomendações de órgãos internacionais sobre o tema. Desta forma, as propostas são
retiradas tanto do cenário brasileiro quanto internacional.
Palavras-chave: Pessoas em situação de rua. Direitos humanos. Brasil.
ABSTRACT: This article analyzes the scenery of homeless people in Brazil and expose the
discrimination suffered by this population. Thereby, the text tries to identify ways of solving the
problem and give more dignity to the life of this group. For that, the Brazilian Federal Constitution
of 1988 and the recommendations of the international institution about the topic are revised.
Therefore, the proposals are taken from the Brazilian and international sceneries.
Keywords: Homeless people. Human rights. Brazil.

INTRODUÇÃO

O artigo abordará a situação da população em situação de no Brasil,


tendo o respaldo do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas
para fundamentar a análise, uma vez que esta situação é considerada como
uma crise global, possuindo uma agenda com metas definidas para 2030. A
escolha do tema justifica-se pelo aumento de moradores de rua, que estão
à margem da sociedade, sem qualquer auxílio ou assistência estatal; e pela
falta de políticas públicas para assegurar direitos básicos.
Dessa forma, observa-se a desigualdade social e legal conduzindo
a discussão a fim de vislumbrarmos possíveis soluções nacionais e
*
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
**
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).:
***
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 105


relações internacionais
internacionais. Para isso, o artigo organiza-se nas caracterizações jurídico-
sociais da população em situação de rua, na contextualização da situação
dessa população no Brasil e no posicionamento que o Relatório do Conselho
de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas traz acerca dessa
população em âmbito internacional. Ademais, o artigo possui caráter
qualitativo, na qual analisamos leis, decretos, reportagens e relatórios.

1 CARACTERIZAÇÃO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE


RUA PELAS LENTES SOCIAIS E JURÍDICAS

Estigmatização, discriminação e exclusão: três palavras que há


muito assombram diversos indivíduos, fragilizam sua saúde mental e
física, realizam uma constante manutenção do terror de viver nas ruas e
estarem invisíveis para uma sociedade da qual não se sentem mais parte.
Ser um, dos milhares espalhados pelo globo, que vive nas ruas significa ter
sua humanidade esquecida, seus direitos humanos e de cidadão refutados,
aspectos básicos e primordiais para sua subsistência negligenciados por
governos e grupos sociais.
Ao passar a vida ou boa parte dela marginalizado pelo meio em
que está inserido, não há um sentimento de pertencimento e identificação de
ser um sujeito detentor de direitos, uma vez que eles não parecem abranger
essas pessoas. Segundo um relatório do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea)1, a população brasileira em situação de rua entre os anos
de 2012 e 2020 cresceu cerca de 140%, quase 222 mil compartilhando esse
contexto de agressões diárias e em múltiplas formas. Seres humanos com
acesso difícil e restrito quando não inexistentes, a moradia, segurança, bem
estar social, alimentação, saúde, entre outros. Em plena pandemia mundial
do COVID-19, muitos não conseguem acesso ao sistema de saúde. O quão
bem tal situação expõe as mazelas e aspecto tendencioso da sociedade e
sistema brasileiro de execução de leis?
O artigo dispõe os sujeitos “invisíveis” no centro do debate e
discorre sobre a aplicação questionável e manipulada das leis brasileiras
referente à proteção da vida e dignidade desses sujeitos. O próprio termo
“população em situação de rua” precisa ser compreendido criticamente.
Leilani Farha2 destaca o fato de atores poderem criar diferentes definições
1
Dados divulgados no relatório “População em situação de rua cresce e fica mais exposta
à Covid-19” baseado em análises realizadas entre setembro de 2012 a março de 2020 a
partir do estudo “Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil” pelo IPEA.
2
Leilani Farha foi Relatora Especial da ONU – Habitat entre os anos de 2014 e 2020.
Nesse período, buscou ressignificar a compreensão da moradia como um direito humano.

106 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
a partir de propósitos específicos que gerariam distintas percepções e
prioridades sobre o assunto.3 A possibilidade de caracterizar alguém e sua
existência por meio de um termo mutável por interesses hierarquizados,
respalda atitudes que ferem a cidadania desses indivíduos.
Subjugados por preconceitos e reduzidos a uma identidade social
imposta pela desigualdade econômica e estrutural, suas vidas são movidas
por outros. Estigmados, discriminados e excluídos, não são poucos os casos
nos quais são tratados como objetos que precisam ser movidos do lugar
por desvalorizar a paisagem total ou ferir os bons costumes de pessoas
de bens, detentoras de moral. Passagens na história do Brasil, como a
construção imaginária dos cortiços como abrigo das mazelas, pobrezas e
sujeiras humanas4, demonstram atitudes e mecanismos desenvolvidos para
“higienizar” o meio ameaçado pelo o que não lhe convém. Ferramentas
essas repletas de conservadorismo, intolerância e ódio.
Um dos exemplos mais concisos dessas ferramentas e da
desapropriação de direitos é a Lei de Contravenções Penais de 1941,
no que diz respeito à vadiagem: “entregar-se alguém habitualmente à
ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure
meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante
ocupação ilícita” (Art. 59). Promulgada durante o governo de Getúlio
Vargas no Estado Novo, seus indícios são antigos, especificamente, tem
seus primeiros movimentos no governo de Floriano Peixoto, no início
dos anos 1890. Sob essa Lei, policiais têm amparo para deter e prender
qualquer pessoa com o argumento de estarem entregues ao ócio.
Uma das problemáticas do Artigo 59 está na lente discriminatória
e opressora colocada conforme propósitos pré-determinados, que buscam
criminalizar e não assumir as falhas enraizadas dos governos e da sociedade
brasileira. A Contravenção Penal da Vadiagem se aplica a quem? Àqueles que
não trabalham e consequentemente não produzem para a sociedade, todavia
possuem renda fixa e moradia? Neste artigo, nós nos posicionamos que esta
Contravenção cabe somente a aqueles deixados à margem, o “objeto” que
macula o espaço e fere a dignidade do outro, sem um teto para se abrigar das
ações da natureza, do terrorismo humano - a moral é ajustável e subjetiva

Leilani Farha desenvolve essa passagem no intitulado “Relatório da Relatora Especial


sobre moradia adequada como componente do direito a um padrão de vida adequado e
sobre o direito a não discriminação neste contexto”, direcionado ao Conselho de Direitos
Humanos.
4
Afonso Soares de Oliveira Sobrinho (2013) explana de forma aprofundada em seu artigo
“São Paulo e a Ideologia Higienista entre os séculos XIX e XX: a utopia da civilidade”.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 107


relações internacionais
ao atear fogo em um morador de rua, tal como os bons costumes – e, muitas
vezes sem conexões sociais para auxiliar no seu desenvolvimento.
A população em situação de rua5 é extremamente vulnerável.
Quando não desenhada como empecilho para a vivência pacífica e
harmoniosa dos atores à sua volta, é a evidência crua e perigosa da
incapacidade e corrupção dos governos (municipais, estaduais, federais)
e agentes do sistema internacional. No mundo do capitalismo, hierarquia
de poder e da dicotomia rico x pobre, os indivíduos obrigados a viverem
nas ruas assistem seus direitos fundamentais expressos pela Constituição
Federal de 1988 e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos,
assinada pelo Brasil em 1948, desrespeitados e massacrados. Devido
ao isolamento imposto, muitos não sabem e conhecem os direitos que
deveriam protegê-los e aqueles que detém essas informações, não
conseguem ou podem fazer muito para fomentar a discussão e levar a
julgamento enquanto vítima e não, criminoso.
No decorrer do texto, esperamos evidenciar as contradições das
leis tanto na esfera nacional quanto na internacional. A imparcialidade
de julgamento e o direito de toda e qualquer pessoa a aspectos básicos e
essenciais à sobrevivência e dignidade, estão a nível escrito e no campo dos
discursos politicamente corretos. As próprias leis utilizadas para estruturar
esse artigo são evidências de que cada ator escolhe como e a quem aplicá-las.

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE


RUA NO BRASIL

É imprescindível analisarmos como o Estado brasileiro atua em


relação à população em situação de rua. Para isso, será apresentado o
posicionamento do país perante a lei, quais as políticas públicas aplicadas e
os projetos existentes; e, posteriormente como realmente se apresenta, com
aspecto punitivo em que revela a ineficiência estatal na implementação dos
serviços sociais responsáveis para o exercício de direitos.
5
Compartilhamos a definição apresentada no Relatório de Leilani Farha sobre quais
indivíduos se caracterizam em situação de rua: “3. Ao mesmo tempo, a situação de rua
é uma experiência individual de alguns dos membros mais vulneráveis da sociedade,
caracterizada pelo abandono, desespero, baixa autoestima e negação da dignidade,
consequências graves para a saúde e para a vida. O termo ‘situação de rua’ não só descreve
a carência de moradia, como também identifica um grupo social. O estreito vínculo entre
a negação de direitos e uma identidade social distingue a falta de moradia da privação
de outros direitos socioeconômicos. As pessoas que carecem de água ou alimentos raras
vezes são tratadas como um grupo social da mesma maneira que as pessoas em situação
de rua. As pessoas em situação de rua são objeto de estigmatização, exclusão social e
criminalização” (ONU, 2015, p. 2-3).

108 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
Quando se fala em direitos recorre-se à Constituição Federal de
1988, a maior garantidora de direitos e deveres dos cidadãos, nela está
ancorada as leis fundamentais do Estado. No art. 5° observa-se a compilação
dos direitos essenciais a serem assegurados para os indivíduos: “Todos são
iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade [...]”.
Assim, a fim de assegurar os direitos previstos no art. 5° à população
marginalizada, o Governo Federal instituiu o Decreto nº. 7.053/09, na qual
estabelece a Política Nacional para a População em Situação de Rua e
o Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento para essa
população (Ciamp-Rua). A política é considerada um marco na luta pelos
direitos da população de rua, pois determina as diretrizes que garante
os direitos fundamentais, tal como a dignidade. Segundo o Decreto,
considera-se população de rua o grupo populacional heterogêneo que
possui em comum: pobreza extrema, vínculos familiares interrompidos
ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular e que
utiliza os locais públicos e áreas degradadas como espaço de moradia e
de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades
de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória
(SENADO FEDERAL, 2019).
A Política Nacional para a População em Situação de Rua tem
como objetivo criar serviços e programas que integrem as políticas públicas
de saúde, educação, previdência, assistência social, moradia, segurança,
cultura, esporte, lazer, trabalho e renda; estabelecer a capacitação e
formação dos profissionais para atuação de políticas públicas direcionadas
às pessoas em situação de rua e instituir a contagem oficial dessa população.
O art. 136 do Decreto 7.053/09 previa, antes de ser revogado pelo Decreto
nº. 9.894/2019, o apoio do IBGE e do IPEA ao Ciamp-Rua. Apesar da
revogação, o art. 8º, o texto legal se manteve idêntico.
Todavia, a população de rua não é incluída no censo do IBGE,
pois não há uma metodologia adequada para a inclusão e os órgãos
enfrentam restrições orçamentárias, sendo impossibilitados até mesmo
de realizarem o censo dos brasileiros domiciliados. Por outro lado há
um grupo de técnicos empenhados em encontrar uma metodologia capaz
de mensurar de maneira confiável os contornos da população que tem
6
Art. 13 A Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e a Fundação
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA prestarão apoio necessário ao Comitê
Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População
em Situação de Rua, no âmbito de suas respectivas competências.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 109


relações internacionais
localização incerta, é encontrável no período noturno e requer abordagem
especializada devido aos problemas mentais e químicos.
Atualmente existem centros de assistência social que já são bem
fundamentados, porém falta investimento para que possam se manter e
para que haja contratação de novos profissionais. Essas instituições são o
Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que
trata das consequências da introdução do sujeito nas ruas e acompanha
famílias e indivíduos que já tiveram seus direitos violados; os Centros
de Referência Especializados para a população em situação de risco
(Centro-Pop), ponto de apoio para as pessoas que sobrevivem nas ruas;
e os Centros de Convivência para Crianças e Adolescentes. A expansão
desses projetos para os vários municípios do Brasil e a informação sobre
a existência deles poderiam aumentar a “qualidade de vida” e o acesso a
direitos pela população marginalizada, lembrando que sem a presença e o
apoio do Estado na efetivação das políticas públicas, tais projetos não são
suficientes e nem eficazes. O próprio Senado Federal é uma das instituições
que defende e luta por políticas integradas.
Observa-se a ineficiência do Estado com relação às políticas
públicas, mas também, ressalta-se seu caráter punitivo. Ao longo dos anos,
tiveram vários momentos históricos nos quais o próprio Estado agiu de
modo a discriminar socialmente os menos favorecidos, utilizando-se da Lei
para justificar seus atos e intensificar a marginalização. A exemplo disso
foi o art. 59 da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº. 3.688/41), na
qual diz respeito à vadiagem.
A vadiagem, contravenção prevista no artigo mencionado acima,
afetava diretamente a população em situação de rua e sua captura pode ser
entendida como um projeto de higienização da população marginalizada
pelo próprio Estado. Isto é, ao invés do governo oferecer meios para
integrá-los à sociedade, ele brutalmente os excluía ferindo a dignidade e o
direito de ir e vir garantidos pela constituição. Em 2012, o Projeto de Lei
nº. 4.668/04, do ex-deputado José Eduardo Cardozo, submetido à Câmara,
propunha o fim da prisão por vadiagem, uma vez que as discriminações
não paravam e ainda não param de ocorrer. Tal projeto foi aprovado com
maioria na Câmara.
Em 2017, presenciou-se o caso da Guarda Civil Municipal (GCM)
de São Paulo em ações da Cracolândia, em que realizaram o confisco de
bens pessoais da população em situação de rua, utilizando-se de truculência
e mecanismos policiais. Essas ações foram recorrentes posteriormente.

110 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
Vale lembrar que o papel da GCM se restringe a proteger os trabalhadores
e agentes públicos que realizam operações junto a moradores em situação
de rua, ademais, sua ação não condiz com seu lema: amiga, protetora e
aliada. (BASSO; CAVICCHIOLI; JUNQUEIRA, 2017).
As ações da GCM foram analisadas pelo Ministério Público e
Defensoria Pública, como também contestada pelo defensor público
Carlos Weis, coordenador do núcleo de Direitos Humanos da Defensoria
Pública, na qual afirma que os confiscos de objetos são completamente
ilegais. Além disso, acrescentou que essas práticas são de um Estado de
exceção que lembram governos autoritários e desrespeitam o art. 5° da
Constituição Federal, que garante que todos são iguais perante a lei e o
art. 7°, na qual assegura o direito à propriedade (BASSO; CAVICCHIOLI;
JUNQUEIRA, 2017).
De acordo com o Promotor de Justiça Eduardo Valério, que
presidiu o inquérito civil, a GCM não tem poder de polícia e a intenção
do inquérito foi de juntar provas de que houve um desvio de função e
discriminação. Em 2018, a GCM foi obrigada a devolver os pertences
pessoais dos moradores (G1SP, 2018).
Assim, observa-se que o Estado agiu e ainda age com relação
à população em situação de rua com descaso, violência e discriminação.
Cria-se um estado de marginalização ainda maior. Porém, temos instâncias
como o Ministério Público e a Defensoria Pública que podem ser acionados
em caso de negligência, assegurando os direitos dessas populações.
Entretanto, quantos casos como esses acontecem diariamente sem o
respaldo legal? O caso mencionado foi na capital de São Paulo. Será que
no interior teríamos o mesmo julgamento ou o caso passaria despercebido?
É preciso refletir até que ponto a lei e a defesa conseguem alcançar a todos.
Também é importante lembrar que mesmo com falhas temos avanços, por
exemplo, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo elaborou cadernos7
com artigos que discutem profundamente sobre as diversas situações e
problemas enfrentados pela população de rua, possibilitando a construção
de políticas públicas direcionadas para essa população.
Ademais, o governo brasileiro tem que se empenhar na produção
de políticas públicas e encontrar o mais rápido possível metodologias
para que essa população não fique excluída do censo, sendo mais fácil de
articular programas de desenvolvimento e integração social.

7
Disponível em: defensoria.sp.def.br/cadernos_defensoria/volume3.aspx

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 111


relações internacionais
3 SOLUÇÕES PARA O TEMA DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO
DE RUA A PARTIR DO CENÁRIO INTERNACIONAL

Nesta subdivisão, o objetivo é analisar como o tema da população


em situação de rua é analisado pelo cenário internacional. Para isso, é
utilizado o Relatório do Conselho de Direitos Humanos da Organização
das Nações Unidas (2015), que aborda o tema supracitado. O Conselho
interpreta a situação de rua como uma crise global dos Direitos Humanos
e alega a necessidade de uma resposta de nível global com urgência.
A partir do princípio de que a situação da população de rua é
um problema internacional, o órgão compreende que habitações são um
princípio inalienável com relação à qualidade de vida de todos. Em seguida,
o Conselho expõe a desigualdade social como origem do problema, aliado
ao desconhecimento dos Estados sobre como agir diante da situação, assim
como a negligência estatal com relação ao assistencialismo social.
Para compreender melhor o assunto, o Departamento de Assuntos
Econômicos e Sociais das Nações Unidas identifica duas classificações
de populações de rua: a) situação de rua primária: pessoas que vivem de
abrigos e/ou lugar habitável; b) situação de rua secundária: falta de acesso a
um lugar habitual de moradia. Com isso, as pessoas que vivem em abrigos,
ou diversos abrigos distintos, mesmo assim são inseridas no princípio de
vulnerabilidade para o cenário internacional (ONU, 2015).
As definições que se referem unicamente à falta de refúgio
físico tampouco levam em conta a perda de conexão social – o
sentimento de “não pertencer a lugar algum” – da qual sofrem
as pessoas em situação de rua. Vários Estados abordaram
esta preocupação fazendo referência à ruptura da família
ou das conexões sociais em suas definições da condição da
população em situação de rua. Porém, a inclusão de aspectos
mais qualitativos da exclusão social vinculada à carência de
moradia fixa pode fazer com que as definições sejam muito
imprecisas para alguns propósitos. (ONU, 2015, p. 5)
Para começar a solucionar o problema, é interessante desenvolver
um padrão internacional quanto à definição do que é compreendido como
situação de rua. Desta forma, a Relatora Especial argumenta a favor de
um enfoque flexível e contextual da definição. A partir da padronização, é
possível facilitar as práticas governamentais e desenvolver objetivos reais
para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.

112 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
A fim de viabilizar esta definição única, são recomendadas
as três dimensões seguintes: a) aqueles que não têm acesso à moradia,
tanto de forma material e social; b) situação de rua é uma discriminação
sistêmica, sendo responsabilidade do Estado em minimizar a conjuntura;
c) reconhecer que as pessoas sem lar têm a legitimidade de lutar por seus
direitos e são os atores principais na descrição de suas necessidades e
dificuldades (ONU, 2015).
Uma definição da situação de rua baseada nos direitos
humanos tende a eliminar as explicações “morais” da
situação de rua como fracassos pessoais que devem ser
resolvidos com atos de caridade e, em contrapartida, revela
padrões de desigualdade e injustiça que negam às pessoas em
situação de rua seus direitos a serem membros da sociedade
em pé de igualdade. (ONU, 2015, p. 5)
O relatório expõe soluções que envolvem os direitos humanos
como forma de buscar amparar as pessoas em situação de rua. O texto
apresenta que o Estado tem a obrigação de: a) implementar estratégias com
objetivo e prazo concreto para erradicar a situação de rua; b) combater
a discriminação acerca desta população e oferecer amparo jurídico; c)
garantir que os despejos conduzam uma pessoa à situação de rua; d) buscar
alternativas ao despejo; e) cuidar para que os projetos e políticas públicas
sejam convergentes à luta pela erradicação da situação de rua; f) cooperar
com órgãos não-estatais para garantir que suas políticas contribuam para
o direito à moradia adequada; g) possibilitar a disponibilidade de recursos
efetivos na erradicação da situação de rua. (ONU, 2015)
Além disso, para complementar a solução, ao regular os órgãos
privados, o Estado deveria incluir prescrições voltadas aos construtores e
investidores. Desta forma, é possível abordar as pessoas em situação de
rua e contribuir com o colaborar com o provimento de moradia acessível
em todos os empreendimentos. Isto porque a situação de rua se agrava a
partir da conivência dos Estados ao lidar com a especulação imobiliária
e desregulamentação dos mercados. A partir disso, a moradia passa a ser
vista como mercadoria, e não como direito humano. Ademais, os tribunais
e organismos internacionais de direitos humanos precisam contribuir de
forma mais ativa no acesso à justiça e proteção dos direitos humanos da
população em situação de rua.
O Comitê esclareceu que oferecer garantia judicial efetiva
para o direito a uma moradia adequada é uma obrigação

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 113


relações internacionais
imediata dos Estados, posto que “não pode haver um direito
sem uma garantia que o ampare”, e declarou que o Estado
havia violado a obrigação de oferecer uma garantia efetiva
no contexto dos procedimentos de execução hipotecária.
(ONU, 2015, p. 13-14).
Com isso, a Relatora Especial argumenta que, para que uma
estratégia seja efetiva, é necessário que ela tenha diversas vertentes e
associe múltiplas políticas e programas que abordem de forma conjunta a
exclusão social e a privação de moradia. Além disso, é essencial que tais
estratégias sejam guiadas por partes interessadas, aliando a mobilização
social às reformas legislativas e políticas (ONU, 2015).
Por fim, a Relatora Especial define a meta de que todos os
Estados erradiquem a situação de rua até 2030. Desta forma, os governos
devem atuar em conformidade com os direitos humanos internacionais e
os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável desenvolvidos pela ONU.
Além de solucionar a questão, o ideal é que os Estados desenvolvam
projetos a fim de prevenir que mais pessoas cheguem até a situação de rua
(ONU, 2015).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A população em situação de rua enfrenta diversos percalços e


têm sua existência sob constante insegurança, temor e precarização de
diversos segmentos imprescindíveis à vida de qualquer ser humano. Em
muitos momentos reduzidos a algo indesejável, precisam sobreviver em
um cenário que não consegue identificar a importância de sua personagem
e a conexão dela com o enredo. As relações pautadas por hierarquização
e interesses são fomentadores para encontrar brechas nas leis e moldá-las
de uma forma determinada, cujo resultado seja o esperado para o ator ou
atores de maior influência no espaço.
As brechas tornam-se empecilhos para órgãos e grupos de apoio
desenvolverem suas atividades de assistência a esses indivíduos, visto
que alguns vão de encontro a planejamentos e estratégias com objetivos
políticos e financeiros. O direito constitucional e humano à moradia é
subvertido pelo Estado e pelo mercado financeiro. De direito primário
para qualquer um e intransponível, é transformado em mercadoria em um
sistema que visa os maiores lucros para os sujeitos que coordenam a tudo
e todos e possuem o capital mais expressivo. Constrói-se um imaginário
de perdas sobre as pessoas; invisíveis sociais que não trabalham para o

114 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
desenvolvimento do país, pelo contrário, acarreta despesas para o Estado e
colocam os que estão no centro da sociedade em perigo.
São necessárias inúmeras quebras de paradigmas e construções
para que as pessoas em situação de rua possam ser integradas plenamente e
de forma segura aos círculos sociais. A desconstrução da estigmatização e a
tratativa dos organismos internacionais representam importantes caminhos
para perceber e reconhecer esses indivíduos e procurar meios de devolver a
dignidade humana e bem estar social que lhes foi renegado. Não são peças
atrapalhando o mercado imobiliário ou a convivência de uma comunidade
em sintonia perfeita, são seres humanos flagelados por outros homens e
governos que deveriam priorizar sua vida ao invés de uma venda lucrativa.

REFERÊNCIAS

G1SP. Justiça manda GCM devolver bens apreendidos de morador


de rua em SP. Disponível em: www.g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/
justica-manda-gcm-devolver-bens-apreendidos-de-morador-de-rua-em-
sp.ghtml. Acesso em: 28 de fev. 2021.
ONU. Relatório da Relatora Especial sobre moradia adequada como
componente do direito a um padrão de vida adequado e sobre o
direito a não discriminação neste contexto. Nova Iorque: Conselho de
Direitos Humanos, 2015.
SENADO FEDERAL. Invisível nas estatísticas, a população de rua
demanda políticas públicas integradas. Disponível em: www.12.
senado.leg.br/noticias/especiais/especial-cidadania/especial-cidadania-
populacao-em-situacao-de-rua. Acesso em: 24 fev. 2021.
SOBRINHO, Afonso Soares de Oliveira. São Paulo e a ideologia
higienista entre os séculos XIX e XX: a utopia da civilidade. Sociologias,
Porto Alegre, v. 15, n. 32, p. 210-235, jan./abr. 2013.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 115


relações internacionais
A INOBSERVÂNCIA DO DIREITO À SAÚDE ÀS PESSOAS
EM SITUAÇÃO DE RUA

THE FAILURE TO ACHIEVE THE RIGHT TO HEALTH TO


HOMELESS PEOPLE

Rodrigo Dutra Gonçalves*

RESUMO: O presente artigo propõe explicar, através de um estudo de caso, como se manifesta
a dificuldade de pessoas em situação de rua em acessar o Sistema Único de Saúde. A burocracia,
na forma de solicitação do comprovante de residência, é o principal obstáculo enfrentado. O artigo
também buscou identificar por que, apesar de legislação dispensando tal exigência, o problema
ainda segue ocorrendo no Brasil. Utilizaram-se métodos de pesquisa exploratória e explicativa.
Palavras-chave: Pessoas em situação de rua. Direito à saúde. Acesso a direitos. Comprovante de
residência. Direitos humanos
ABSTRACT: The present article has as objective to do a study of case in which is observed
difficulties by homeless people to access the unique health system. The bureaucracy, in the way to
requisite residence proof is the main obstacle faced. The article intended to identify why, although
having legislation dismissing this proof, the problem still being occurring in Brazil. Exploratory
and explanatory research methods were used.
Keywords: Homeless people. Right to health. Access to rights. Residence proof. Human rights.

INTRODUÇÃO

No ano de 2011, a Câmara dos Deputados editou um projeto


de lei que buscava padronizar a identidade visual do Sistema Único de
Assistência Social (SUAS), enviado posteriormente ao Senado apenas
em 2014. Quando passou a tramitar na comissão de assuntos sociais desta
casa, em 2018, o Senador Eunício Oliveira (MDB/CE) apresentou uma
proposta de emenda.
Ocorre que a matéria da emenda não tinha relação com o referido
projeto de lei, mas aproveitou a oportunidade para propor outra adição
à Lei Orgânica de Assistência Social, que consistia em desobrigar a
apresentação de comprovante de residência para indivíduos em situação
de vulnerabilidade.

*
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Oficial de Promotoria no Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP). E-mail:
rodrigo.dutraag@gmail.com.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 117


relações internacionais
Dentre os quais, destacou os moradores de rua, justificando da
seguinte forma1:
Nesse sentido, propomos que as pessoas em situação de
vulnerabilidade social, sobretudo aquelas em situação de
rua, possam ser atendidas pelo SUS independentemente da
apresentação de documentação que comprove domicílio
ou inscrição no cadastro no sistema. [...] Tais exigências
eventualmente ocorrem na prática, tolhendo sobremaneira a
já dificultosa atenção à saúde desse segmento da população.
(PLC 112/14, 2018, Senado Federal)
O tema para este estudo de caso surgiu, a partir de um caso concreto
ocorrido no município de Batatais, SP em 2020. Na ocasião, o Ministério
Público recebeu informações de uma entidade que presta auxílio a pessoas
em situação de rua, e esta noticiava que não estava conseguindo agendar
atendimento médico a seus favorecidos.
Na prática, essa situação se consumava quando os postos de
saúde impediam os moradores de rua em cadastrar-se no cartão SUS.
Segundo a Secretaria de Saúde, a ausência de comprovante de residência
era responsável pelo impedimento. E por sua vez, o cartão era requisito
para o agendamento de consulta médica na rede pública.
Foi empreendida, então, uma investigação jurídica para aferir a
legalidade do ato em questão e observou-se que, embora a Portaria que
regulamenta o cartão SUS2 preveja a necessidade do comprovante de
residência para a realização do cartão, também previa a sua dispensa para os
grupos nômades e pessoas em situação de rua. Portanto, esse impedimento
constituía um ato ilegal, mas que foi rapidamente solucionado através da
intervenção ministerial. Partindo do pressuposto de que poderia se tratar
de uma questão generalizada, este autor buscou aprofundar no assunto a
fim de examinar as motivações que poderiam implicar nesta ocorrência.
Passando por questões referentes ao federalismo, insuficiência
orçamentária dos municípios e elementos de interesses políticos e eleitorais,
o estudo de caso procurou estabelecer uma relação de casualidade entre
esses elementos.
Desta forma, foi dividido em introdução, três capítulos e
considerações finais. A introdução apresenta os objetivos e a estrutura do
texto. O primeiro capítulo é uma análise de conjuntura, onde são definidos
objetivamente os principais atores, o cenário e a legislação pertinente.
1
Proposta de Lei Complementar 112/14.
2
Trata-se da Portaria nº. 940/11, do Ministério da Saúde.

118 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
No capítulo seguinte, é pontuado como o pacto federalista interfere na
autonomia dos municípios, trazendo questões jurídicas recentes, bem
como analisa as disposições orçamentárias enfrentadas, passando pela
judicialização da saúde.
O terceiro capítulo procura dissertar sobre como as motivações
políticas e eleitorais contribuem para a inobservância da dispensa do
comprovante de residência aos grupos de pessoas em situação de rua e
nômades. Ainda, são exploradas algumas opções que poderiam resultar
positivamente na garantia do direito ao acesso à Saúde por parte das
pessoas em situação de rua. Nas considerações finais, são apresentadas as
conclusões do autor a respeito deste estudo de caso.

1 ESTABELECENDO AS BASES DO CASO CONCRETO:


PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA E ACESSO À SAÚDE

O cenário se dá no âmbito da jurisdição municipal. Os elementos


constituintes que o delimitam compreendem: o orçamento público para a
saúde; a legislação federal; a discricionariedade3 do Executivo Municipal
no tocante à gestão da saúde pública; E o ato da recusa do atendimento ao
indivíduo em situação de rua pelo Agente de Saúde, no cumprimento de
determinações do Agente Político Municipal.
Em relação ao orçamento público, ele ocorre na forma de repasses
nos três níveis de jurisdição, da União aos Estados, e destes aos Municípios,
com percentual definido em lei para cada Ente. De forma comparativa a
outros países, observa-se que este percentual não é insuficiente, conforme
explicitado no decorrer do texto. No entanto, há a ocorrência de um
fenômeno, a judicialização da saúde, que tem contribuído muito para um
panorama deficitário.
No tocante à Legislação Federal, esta é responsável tanto por
regular os repasses orçamentários, quanto estabelecer as regras para a
apresentação do comprovante de residência.
Por fim, o poder discricionário do Prefeito em gerir os dedicados
à atividade finalista, isto é, a prestação do serviço de saúde, inclusive a
destinação de produtos correlatos como medicamentos, e questões relativas
à estrutura e infraestrutura dos postos de saúde.
Os atores, para os fins de conceituação e exemplificação do
presente estudo de caso, possuem a seguinte definição, não compreendendo
3
O Poder Discricionário é aquele no qual é permitido a Administração Pública praticar
atos com a liberdade de escolha, pautada na conveniência e oportunidade.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 119


relações internacionais
(ao menos em sua totalidade) a definição jurídica do termo. O Legislador
Federal abrange tanto os membros do Congresso Nacional quanto os
elaboradores de normas técnicas e diretrizes no âmbito do Poder Executivo
Federal, concentrado especificamente, no Ministério da Saúde.
O Agente Político Municipal representa o Prefeito e seu
respectivo Secretário Municipal da Saúde. Cumpre apontar que este ator
tem interesses orçamentários, políticos e eleitorais nas questões tratadas
nesse estudo de caso. O Agente de Saúde é o intermediário entre o agente
político municipal e as pessoas em situação de rua. São os funcionários
administrativos responsáveis por autorizar ou não o atendimento específico
aos usufrutuários do SUS. Não constituem atores com poder decisivo,
cabendo a estes cumprir determinações do agente político municipal.
As pessoas em situação de rua representam o elo fraco desta
interação. São pessoas que, por não possuírem residência fixa, tem maior
dificuldade em acessar os mais diversos sistemas de acesso a direitos,
desde a saúde à justiça. O Decreto 7.053/09, art. 1º, parágrafo único, que
institui a política nacional para população em situação de rua, postula o
seguinte conceito:
Grupo populacional heterogêneo que possui em comum a
pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou
fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular,
e que utiliza logradouros públicos e as áreas degradadas
como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária
ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para
pernoite temporário ou como moradia provisória. (Brasil,
2021, online).
De forma esquematizada4, a conjuntura apresenta a seguinte
forma:
FIGURA 1 – Esquema da conjuntura no atendimento ao indivíduo em
situação de rua

Fonte: elaborado pelo autor.


4
Legislação regra: necessidade de comprovante de residência; Legislação exceção:
dispensa deste documento.

120 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
A legislação pertinente no dispositivo constitucional compreende
especificamente os arts. 1965 e 198, I e §1º6. O primeiro refere-se à
definição da saúde enquanto direito de todos e dever do Estado, devendo
este garantir acesso universal e igualitário; O outro estabelece a saúde
pública como um sistema único regional e hierárquico, descentralizado e
financiado com recursos da Seguridade Social, União, Estados Municípios
e Distrito Federal, além de prever a possibilidade de fonte diversa.
No âmbito da legislação ordinária federal, há a Lei Federal 8.080/90
que regulamenta a Saúde Pública, reafirmando a letra e o mérito dos artigos
da Constituição da República supracitados, inclusive os preceitos de
universalidade e igualdade na assistência à saúde7. Uma atenção especial
merece ser dada à Lei Federal 13.714/18, bastante recente, que adiciona
o parágrafo único abaixo na lei que regulamenta a Assistência Social no
Brasil. Em suma, este parágrafo reafirma a dispensa do comprovante de
residência para atendimento na saúde a grupos vulneráveis.
Parágrafo único. A atenção integral à saúde, inclusive a
dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a
saúde, às famílias e indivíduos em situações de vulnerabilidade
ou risco social e pessoal, nos termos desta Lei, dar-se-á
independentemente da apresentação de documentos que
comprovem domicílio ou inscrição no cadastro no Sistema
Único de Saúde (SUS), em consonância com a diretriz de
articulação das ações de assistência social e de saúde a que se
refere o inciso XII deste artigo. (BRASIL 2021)
A utilização do termo “reafirma” encontra respaldo pelo fato de
que, em 2011, sete anos antes, a portaria MS 940/11 que viria a regulamentar
o cartão SUS já previa a dispensa do referido comprovante em seu Artigo
5
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação.
6
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e
hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes
diretrizes:
I - Descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
§ 1
º O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos
do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, além de outras fontes.
7
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou
conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo
com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos
seguintes princípios:
I - Universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
IV - Igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie;

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 121


relações internacionais
23, parágrafo 1º. Enquanto o caput deste artigo obriga a apresentação
do comprovante de residência, o §1º desobriga especificamente para
moradores de rua e nômades8.
Finalmente, há ainda o Código Civil de 2002, dezesseis anos
antes da lei de referência, que já havia disposto no artigo 73 uma solução
para casos com esta mesma pertinência. Afinal, qual o domicílio de quem
não tem casa? A solução encontrada foi considerar domicílio o local onde
a pessoa for encontrada.

2 ELEMENTOS TÁCITOS QUE PODEM DIFICULTAR O


ACESSO À SAÚDE PELAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE
RUA: FEDERALISMO E ORÇAMENTO

No portal do Projeto Jovem Senador, há uma explicação


sintética e bastante didática que conceitua o federalismo “como
uma forma de organização e de distribuição do poder estatal em que
a existência de um governo central não impede que sejam divididas
responsabilidades e competências entre ele e os Estados-membros”
(BARBOSA, s.d.), e complementa:
Em suma, as competências estaduais são as que ficaram
de fora da área de atuação do Governo Federal e que não
tenham sido expressamente proibidas pela Constituição. Em
relação ao Município, a Constituição inova, identificando-o
como um dos entes integrantes da Federação. Entre outras
atribuições, os Municípios podem legislar sobre assunto de
interesse local, além de complementar, quando possível, a
legislação federal e estadual. (BARBOSA, s.d.)
Para os fins de interesse desse artigo, a explicação satisfaz o
entendimento necessário. O fundamento no federalismo, especialmente
no que trata da saúde pública, é bastante explicitado na Constituição da
República de 1988 em seu Artigo 30, inciso VII, ao trazer a responsabilidade
Municipal em “prestar, com a cooperação técnica e financeira da União
e do Estado, serviço de atendimento à saúde da população” (BRASIL,
1988, grifos nossos). Nota-se que, a partir deste dispositivo acima,
compete ao município a prestação de serviços relativos à saúde, enquanto
8
Art. 23. Durante o processo de cadastramento, o atendente solicitará o endereço do
domicílio permanente do usuário, independentemente do Município em que esteja no
momento do cadastramento ou do atendimento.
§1
º Não estão incluídos na exigência disposta no caput os ciganos nômades e os moradores
de rua.

122 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
a responsabilidade da União e Estados abrange a destinação de recursos
e ao desenvolvimento e elaboração de normas, planejamentos e outros
procedimentos de natureza técnica. A gestão do atendimento à saúde,
portanto, cabe exclusivamente ao Poder Executivo Municipal, cabendo a
este apenas acatar os requisitos definidos pelo Legislador Federal.
Durante os estágios iniciais da pandemia de Covid-19,
especificamente em abril de 2020, o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil (CFOAB) ajuizou no Supremo Tribunal Federal uma
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Cumpre
destacar que a ADPF trata de preceitos constitucionais, embora não
previstos expressamente na Constituição da República de 88 ou abordando
assuntos anteriores a ela, mas que constitui elemento intrínseco.
No caso da ADPF 672, o preceito fundamental suscitado foi o
federalismo, em atenção à situação fática do Presidente da República e os
Governadores Estaduais divergirem sobre medidas de segurança sanitária
durante a pandemia, evocando a discricionariedade e autonomia dos Estados
para determinar e categorizar parâmetros para instauração de quarentena.
Nesse sentido, foi decidido que não cabe ao Presidente da República
interferir nas decisões dos governos estaduais para implementação
da quarentena, reforçando o pacto federalista e, consequentemente, a
autonomia e discricionariedade dos Estados e Municípios.
No entendimento do Ministro Alexandre de Moraes, relator, “não
compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões
dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas
competências constitucionais, [...] adotaram ou venham a adotar” [para
reduzir o número de óbitos e infectados] (BRASIL, 2020). Ainda, houve outra
ação de mérito similar, na forma de Ação Direita de Inconstitucionalidade
(ADI) nº 6.341, também no contexto da pandemia, reforçando o pacto
federativo. A decisão afastou a obrigatoriedade dos Estados e Municípios
a seguir as normas federais de política de enfrentamento à pandemia
introduzidas pela Medida Provisória nº. 926/2020.
No relativo ao orçamento da saúde pública, temos a seguinte
disposição, estabelecida no dispositivo constitucional e na forma da Lei
Complementar nº 141/12: a União responsabilizar-se-á pelo montante de
15% da receita corrente líquida, no mínimo, sendo acrescido do percentual
correspondente à variação nominal do PIB do ano anterior. Esses valores
compreendem tanto os gastos diretos da União quanto dos repasses aos
estados e municípios; os Estados e o DF devem providenciar no mínimo

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 123


relações internacionais
12% do orçamento anual dos recursos e impostos taxativamente definidos
nos artigos 155, 157 e 159, I, “a”; e II, da CF/88, sendo deduzidos os
repasses aos municípios; e os Municípios e o DF devem garantir o piso de
15% de sua arrecadação total, de acordo com a previsão constitucional nos
artigos 156, 158 e 159, I, “b”; e §3º.
O orçamento em si não aparenta ser tão determinante pela falta
de recursos na saúde pública, basta observar, por exemplo, que enquanto
o Brasil destina algo em torno de 8% do PIB [total, do Brasil], países
com sistema universal de saúde de boa qualidade como Canadá e Reino
Unido, despendem 10,4% e 9,9% do PIB, respectivamente, enquanto
países mais pobres como Libéria e Serra Leoa destinam em torno de
15,2% e 18,3%, respectivamente (SALVIDA; VERAS, 2018, p. 50). Os
autores dessa pesquisa ainda destacam: “que a solução para o adequado
funcionamento do sistema de saúde de um país depende de dois fatores:
financiamento suficiente e gestão adequada dos recursos obtidos. O Brasil
precisa melhorar nesses dois quesitos” (SALVIDA; VERAS, 2018, p. 50).
Aproblemática ainda abarca um financiamento predominantemente
no sistema privado de saúde, além de uma parcela de contribuição
relativamente baixa, conforme destacado: “A fração da contribuição do
sistema público para o custeio da saúde – atualmente em pouco menos
de 50% do PIB [do sistema de saúde] – contrasta com aquela presente
nos países que têm sistemas eficientes de saúde com acesso universal,
como Reino Unido (94,2%), Suécia (84%) e França (81%)” (SALVIDA;
VERAS, 2018, p. 51-52). Isto é, metade do total de investimentos públicos
em saúde vai para a iniciativa privada no Brasil.
Para elucidar esse emaranhado de percentuais, é importante
observar que os 8% de destinação do PIB à Saúde Pública, conforme
apontada pelos autores do estudo acima, compreende a soma dos
percentuais de arrecadação com impostos mais a variação do PIB no ano
anterior. Isto é, o PIB está servindo como referência apenas, tendo em
vista que o PIB total não é calculado a partir de arrecadações, mas do valor
de bens e serviços produzidos. Diferentemente, quando se fala em 50%
do PIB em financiamento à saúde, compreende uma referência do total de
investimentos públicos na saúde, seja privada ou pública.
Apresentado o suficiente para destacar que o orçamento sozinho não
é o responsável pela falta de recursos na saúde, mas gestão e investimento,
é importante salientar um fenômeno que tem sido encarregado de agravar
o quadro de insuficiência do erário municipal: a judicialização da saúde.

124 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
Embora à época da pesquisa o autor tenha concluído “ainda ser difícil”
avaliar os resultados em relação aos municípios (WANG, 2014, p. 1193),
é confiante acerca da profundidade do impacto nos recursos público, que
invariavelmente, é repassado aos municípios. Segundo o autor, o judiciário
é tendencioso a desconsiderar os impactos orçamentários de uma decisão
que obriga atendimento à saúde (WANG, 2014, p. 1193), e ainda traz
exemplos desses impactos:
O gasto do Ministério da Saúde com medicamentos passou
de R$ 2,5 milhões em 2005 para aproximadamente R$
266 milhões em 2011. No mesmo período, o número de
medicamentos fornecidos judicialmente pela Secretária
de Saúde de São Paulo subiu 1.722,65%. A estimativa
mais recente de gastos com demanda judicial pela SES-SP
representa o equivalente a 90% do gasto anual do SUS em
diagnósticos no Estado de São Paulo. Estes dados apontam
de forma inequívoca dois fatos relevantes: (1) existem cada
vez mais ações contra o sistema público de saúde pedindo
tratamentos médicos e (2) o impacto das decisões judiciais no
orçamento público de saúde está longe de ser insignificante.
(WANG, 2014, p. 1193)
Em termos práticos, tanto o Ministério Público, na observância
dos direitos de pessoas em situação de vulnerabilidade, quanto particulares
via advocacia, ajuízam ações que podem gerar obrigações judiciais que
incidem, sobretudo aos municípios, a prestação de atendimento médico
hospitalar, procedimentos cirúrgicos, fornecimento de medicamento ou,
ainda, na internação compulsória para dependentes químicos, deficientes
mentais com elevada periculosidade e/ou correlatos. Em relação aos
indivíduos em situação de rua, em decorrência da dificuldade em acessar
a Defensoria Pública, também pela necessidade de apresentação de
comprovante de residência, os retira dessa equação.
Nessa esteira, acaba recaindo sobre o município os encargos
decorrentes da judicialização da saúde, gerando imprevisibilidade de
gastos na saúde, promovendo dívidas ou colocando o município em risco
de descumprimento de responsabilidades fiscais. Além disso, ainda que se
considere a solidariedade jurídica do Estado e União para o pagamento das
custas, a obrigação de fazer recai sobre o município, que precisa sozinho
encontrar meios de cumprir a determinação judicial sem o apoio financeiro
imediato dos demais Entes.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 125


relações internacionais
3 MOTIVAÇÕES POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS PARA
PROMOVER O ACESSO À SAÚDE DE PESSOAS EM
SITUAÇÃO DE RUA

Segundo estudo recente, o “Censo Pop Rua”, realizado em 71


cidades brasileiras, sendo 23 capitais e as demais cidades com mais de 300
mil habitantes, estima-se que 76% das pessoas em situação de rua possuem
familiares nas cidades em que se encontram, contrariando, a priori, o senso
comum de que as pessoas na referida situação possuem hábitos nômades.
(CORTIZO, 2019, p. 6)
Dentre os pressupostos de natureza política, foi possível inferir três
possíveis explicações. A primeira é a de que o Agente Político Municipal
sob influência da tese equivocada, no sentido de que pessoas em situação
de rua são necessariamente nômades, opta por atender apenas os cidadãos
domiciliados, arrazoando-se pelo senso comum de que um atendimento
facilitado às pessoas em situação de rua poderia motivar uma migração
elevada deste grupo e promover uma sensação de insegurança pública no
município. Por extensão, perda de eleitorado ao ser responsabilizado pelo
aumento no número de pessoas em situação de rua durante sua gestão.
A segunda motivação converge aos gastos públicos. Certamente,
ao incluir os indivíduos em situação de rua, o município deve avaliar
os impactos financeiros para atender demandas de um grupo altamente
necessitado dos mais diversos serviços de saúde. Nesse sentido, uma
análise com frieza de moralidade avaliaria a decisão de incluir este grupo
vulnerável como de alto custo e retorno nulo, ou até negativo (neste caso,
pelos argumentos elencados no parágrafo anterior).
Ou então, o mero desconhecimento legal, que logicamente não o
isentaria das devidas responsabilizações decorrentes da recusa do atendimento,
mas que, ainda assim, deve ser considerado como possível causa.
De qualquer forma, presume-se uma certa conveniência entre
a existência de um interesse puramente eleitoral e outro de ordem
financeira, podendo – mas não necessariamente – ser referendada por um
pressuposto de que os indivíduos em situação de rua não seriam munícipes,
ocasionando na inobservância do dispositivo que dispensa a apresentação
de comprovante de residência para o referido grupo.
O Desembargador do TRT-SC, José Ernesto Manzi, publicou um
artigo, em revista jurídica online, no qual confere ao judiciário brasileiro
a existência de um “senso comum ordinário juridicamente aplicado”, que
consiste em conceder autoridade à constatações que não passaram pelo

126 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
etapa da investigação científica com a finalidade de preservar a “duração
razoável do processo, celeridade e praticidade jurídica” (MANZI, 2012,
online, com adaptação). Em termos práticos, significa que juízes dispensam
etapas processuais para encerrá-los mais rápido. E para isto, procedem à
inobservância da lei.
A razão pela qual foi suscitado o estudo acima é a realização de um
paralelo com o poder executivo municipal. Há a inferência de que juízes
optam por ignorar dispositivos legais – seu principal objeto ontológico –
em virtude de elementos também jurídicos tidos como prioritários, como
o caso da celeridade.
Desta forma, o objetivo deste paralelo é justamente considerar
que o Agente Político Municipal proceda de forma ainda mais negligente
na observância da lei, sobretudo quando embasada no senso comum.
Primeiro porque sua função típica é administrar e não aferir a cientificidade
da lei. Segundo porque a política é orientada em larga escala ao senso
comum do eleitor. E terceiro que a má conduta do judiciário nesse sentido
legitima a escolha do atendimento prioritário ao munícipe em detrimento
do suposto forasteiro – os indivíduos em situação de rua – em virtude
de um suposto cumprimento jurídico prevalente, que seria a assistência
médica ao cidadão legalmente residente no município (afinal, foram eles
que o elegeram). Para essa ocorrência basta que este grupo vulnerável seja
deduzido como nômade ou não residente.
No tocante às estratégias para garantia do acesso à saúde pelos
moradores de rua, a primeira consideração a ser feita é a de que os dados
censitários no Brasil não consideram os indivíduos em situação de rua porque
a coleta é realizada a partir da base familiar. (GUERRA; FIGUEIREDO,
2016, pág. 3) (CORTIZO, 2019, pág. 49). Isto cria uma dificuldade em
dimensionar e elaborar políticas mais assertivas em relação ao grupo em
questão, cabendo apontar ainda que as pesquisas nesse sentido são ou
limitadas – haja vista, inclusive, a heterogeneidade do grupo – ou então
elaboradas a partir de estimativas. Ainda, sendo a saúde uma questão mais
de necessidade do que de direito propriamente dito, utilizar justamente do
SUS para elaborar um censo mais preciso seria uma forma interessante de
aliar a necessidade da informação pelo governo com a do direito à saúde
pelo morador de rua. Ou então do político que se interesse nesse eleitorado.
A segunda consideração é de que a edição de Lei, se não aplicada,
é inútil. Observa-se que a portaria MS 940/11 Art. 23, §1º e a Lei Federal
13.714/18 contém o mesmo mérito. Tem-se que, pelo menos, entre os anos

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 127


relações internacionais
de 2011 e 2018, não houve o cumprimento do disposto na portaria, caso
contrário, não haveria a necessidade de editar a legislação federal citada.
Isso implica inclusive no fato de que esta última também não garante
seu efetivo cumprimento. Nesse sentido, a fiscalização pelo Legislativo
Municipal e, principalmente, pelo Ministério Público, produziria mais
efeito do que promulgar leis natimortas.
A terceira é de que, seja por decorrência da judicialização da
saúde, seja por insuficiência financeira, enquanto recair ao município a
oneração financeira do atendimento desse grupo menos assistido pelo
Estado, haverá argumento para a recusa do atendimento. A Lei Federal nº.
8.742/93 que regulamenta o SUAS faz diversas referências aos indivíduos
em situação de rua e inclusive destina verba especificamente para esse fim.
Porém falta uma norma que especifique e obrigue os Estados e/ou União
a repassar, especificamente, verbas aos municípios no âmbito da Saúde,
para atendimento exclusivo para este grupo em questão. Cumpre ainda
incluir uma estatística relevante: 89% dos entrevistados no Censo Pop Rua
afirmaram não receber qualquer tipo de benefício. (CORTIZO, 2019, p.
6). Ou seja, os gastos públicos destinados à sobrevivência dessas pessoas
ainda estão muito aquém para uma política pública eficiente.
Por fim, a quarta consideração é a de que, havendo a possibilidade de
isso ocorrer pelo mero desconhecimento da desobrigação da apresentação do
comprovante de residência para este grupo vulnerável, seja pelo Executivo
Municipal em seu exercício, seja pelas Câmaras Municipais de Vereadores
em suas atribuições de fiscalização, a publicidade e conscientização sobre
o fato em tela é medida imperiosa para evitar novas ocorrências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo de caso buscou, partindo de uma situação fática para


uma hipótese geral, apresentar os motivos que poderiam contribuir para a
inobservância da garantia do direito à saúde aos indivíduos em situação
de rua. Diversos elementos elencados não dizem respeito especificamente
a este grupo, mas interferem de maneira relevante quando analisados
conjuntamente. O que fica bastante evidente é que, embora as problemáticas
abranjam a população de forma generalizada, aqueles que se encontram
em situação de rua vive de forma ainda mais dramática o acesso à saúde.
Inobstante, a exigência de comprovante de residência se apresenta como
um mecanismo de exclusão para o acesso a direitos fundamentais, dentre

128 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
os quais, foi destacado a saúde pelo fato de que este mecanismo afronta
diretamente o modelo universal o qual o SUS se propõe a estabelecer, além
de ter sido o ponto de partida que motivou a elaboração do presente estudo.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Antônio José. O federalismo brasileiro. Brasília: Senado


Federal, s.d.
CORTIZO, Roberta Mélega. População em situação de rua no Brasil:
o que os dados revelam? Brasília: Ministério da Cidadania; Secretaria de
Avaliação e Gestão da Informação, 2019.
FIGUEIREDO, Eduardo Henrique Lopes de; GUERRA, Daniela de Lima
Ranieri. Da população em situação de rua: a criminalização do invisível.
Revista do Instituto de Pesquisa e Estudos, Bauru, v. 50, n. 66, p. 160-
176, jul./dez. 2016.
GOMES, Kamila Gabriely de Souza; GOUVEIA, Carlos Alberto Vieira
de. Os limites do poder discricionário. Âmbito Jurídico, 2017.
MANZI, José Ernesto. Senso crítico, senso comum, argumentação
jurídica e decisões judiciais. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n.
3151, 16 fev. 2012.
SALDIVA, Paulo Hilário Nascimento; VERAS, Mariana. Gastos
públicos com saúde: breve histórico, situação atual e perspectivas futuras.
Estudos Avançados, São Paulo, v. 32, n. 92, p. 47-61, abr. 2018.
WANG, Daniel Wei L.; VASCONCELOS, Natália Pires de; OLIVEIRA,
Vanessa Elias de; TERRAZAS, Fernanda Vargas. Os impactos da
judicialização da saúde no município de São Paulo: gasto público e
organização federativa. Revista de Administração Pública v. 48, n. 5, p.
1191-1206, 2014.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 129


relações internacionais
GÊNERO ENTRE COLCHETES: DISPUTAS E CONSENSOS
SOBRE DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

GENDER BETWEEN BRACKETS: DISPUTES AND CONSENSUS


ON WOMEN HUMAN RIGHTS

Letícia Cardoso Ferreira*

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apontar discussões sobre as posições assumidas
pela comunidade internacional em torno dos direitos humanos das mulheres, e os entraves
criados pela negação do gênero como conceito central da temática. Para tanto, utilizamos como
enfoque os encontros e documentos celebrados no âmbito das Nações Unidas e partimos das
posições assumidas pelo Brasil como referência de análise. Buscamos apresentar uma evolução
do uso do gênero tanto na teoria feminista quanto nas discussões internacionais para, então,
chegar ao cenário atual, assumindo o termo gênero como um conceito em disputa nesses
espaços. Para tal análise nos valemos de revisão bibliográfica dos trabalhos de autoras que
discutem o tema, além da busca por notícias em páginas da web de reconhecida confiabilidade
e com acesso aberto, a fim de entender as posições assumidas pelo Brasil, no ano de 2020, em
eventos internacionais, bem como seus efeitos para as interpretações sobre direitos humanos
das mulheres. Concluímos que as posições de negação ao gênero assumidas por alguns Estados
na década de 1990, momento de apogeu dos direitos humanos das mulheres, permanecem
vigentes trinta anos depois, com configurações semelhantes. Neste cenário, o Brasil tem sido
um dos precursores desse movimento. Entendemos, ainda, ser importante aos consensos
globais sobre o tema a adoção de uma postura responsável quanto ao uso do gênero, que esteja
alinhada às teorias feministas.
Palavras-chave: Gênero. Direitos Humanos. Nações Unidas. Teoria Feminista. Conservadorismo
de gênero.
ABSTRACT: This paper aims to point out discussions about the positions taken by the international
community on women’s human rights, and the obstacles created by gender denial as a central
concept of the theme. To this end, we use the meetings and documents produced by United Nations,
and we start from the positions assumed by Brazil as a reference for analysis. We seek to present an
evolution of the use of gender both in feminist theory and in international discussions to reach the
current scenario, assuming the term gender as a concept in dispute in these spaces. For this analysis
we use a bibliographic review of the works of authors who discuss this subject, in addition to the
search for news on web pages of recognized reliability and open access, in order to understand the
positions taken by Brazil, in 2020, in international events, as well as their effects on interpretations
on women’s human rights. We conclude that the denial of gender, position assumed by some states
in the 1990s, the moment of growth of women’s human rights, remain thirty years later, with similar
configurations. In this scenario, Brazil has been one of the precursors of this movement. We also
believe that it is important for global consensus on the theme to take a responsible stance on the use
of gender, by aligning with feminist theories.
Keywords: Gender. Human Rights. United Nations. Feminist Theory. Gender conservatism.

*
Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Graduada em
Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – USP. Membra do Núcleo de Pesquisa
em Aprisionamento e Liberdades (NEPAL). Bolsista FAPESP. E-mail: leticia.c.ferreira@
unesp.br.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 131


relações internacionais
INTRODUÇÃO: PORQUE FALAR EM DIREITOS HUMANOS
DAS MULHERES

Desde uma concepção historicizada dos direitos humanos,


costuma-se ligar o processo de internacionalização destes à busca por
respostas às violações de direitos perpetradas por Estados, fortalecendo-se
a ideia de que “a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao
domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse
internacional” (PIOVESAN, 2014, p. 22). Apesar de essa história ser alvo
de disputas1, especialmente por autoras e autores que buscam decolonizar
o conhecimento sobre o tema, podemos considerar a Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948 como um marco para uma “concepção
contemporânea de direitos humanos” (PIOVESAN, 2014, p. 22).
Este documento, assim como outros que a ele se seguem – como
os Pactos dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais – partem de uma concepção de direitos humanos marcada
pela universalidade e indivisibilidade (PIOVESAN, 2014, p. 22). A
universalidade, que mais nos interessa, se materializaria no fato de que
os direitos humanos deveriam ser reconhecidos a qualquer pessoa, pelo
simples fato de ser (humano), sem distinções e discriminações de qualquer
natureza. A ideia de igualdade, concebida de forma geral e abstrata, é a
tônica desses documentos (PIOVESAN, 2014, p. 23).
Se há a garantia da proteção dos direitos humanos de todas as
pessoas, justificada apenas por existirem, por que falamos de direitos
humanos das mulheres? Essa é uma questão que passou a ser feita logo
nos primeiros anos de existência da Organização das Nações Unidas,
com a participação de mulheres em encontros e conferências dos mais
variados temas, e por mulheres ativas na pesquisa e nos movimentos
sociais. Essa pergunta, por sua vez, diz respeito à discussão sobre o que
está compreendido nas concepções universais de direitos humanos e de
pessoa como sujeito de direitos.
Kimberlé Crenshaw (2002) explica que, apesar de os documentos
citados terem mencionado o princípio da igualdade de gênero como
essencial para a proteção dos direitos de todas as pessoas, seria necessária
uma mudança de perspectiva, para encarar as diferenças (e discriminações)
de gênero como fatores que impediam a materialização desse direito
humano universal. Isso porque tais concepções universais se ligavam,
1
Sobre uma concepção decolonial de direitos humanos ver: PIRES, 2020; BRAGATO,
2014.

132 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
na prática, a experiências masculinas de violação de direitos, colocando
como marginais as circunstâncias específicas em que mulheres tinham
seus direitos violados (CRENSHAW, 2002, p. 171-172). O exemplo dado
pela autora ilustra bem como essa marginalização se dá:
[…] quando mulheres eram detidas, torturadas ou lhes
eram negados outros direitos civis e políticos, de forma
semelhante como acontecia com os homens, tais abusos
eram obviamente percebidos como violadores dos direitos
humanos. Porém, quando mulheres, sob custódia, eram
estupradas, espancadas no âmbito doméstico ou quando
alguma tradição lhes negava acesso à tomada de decisões,
suas diferenças em relação aos homens tornavam tais
abusos “periféricos” em se tratando das garantias básicas
dos direitos humanos. (CRENSHAW, 2002, p. 172)
A inserção do conceito de gênero nos estudos feministas e a
introdução do termo nos encontros e conferências internacionais deu
destaque a essas invisibilidades, fazendo com que novos temas fossem
colocados em pauta, considerados questões de interesse geral, e não apenas
internos aos Estados ou mesmo desinteressantes no contexto público
(BARSTED, 2001; CRENSHAW, 2002). Nesse sentido, o reconhecimento
dos direitos das mulheres como direitos humanos, em 1993, na Conferência
Mundial de Direitos Humanos de Viena, foi um passo importante no
plano internacional, para a formação de consensos em torno de termas
reivindicados pelas mulheres2 e para a introdução de uma perspectiva de
gênero no âmbito da ONU.
Entretanto, este não foi um processo linear, simples, ou que
sempre caminhou “para frente”. Gênero foi e ainda é um conceito em
disputa nesses espaços, o que pode, em muitos casos, impedir o avanço nas
discussões sobre “direitos das mulheres” e, no caso específico do Brasil,
tem significado um retrocesso em relação às conquistas dos movimentos
feministas. É possível perceber, nesse sentido, a resistência de alguns
grupos em incorporar os debates feministas como pautas políticas que
interessam a todos, e não apenas às mulheres.
Tendo em vista este cenário, este trabalho busca analisar as
discussões desenvolvidas em torno dos direitos humanos das mulheres
2
Importante destacar que o uso do termo “mulheres” não busca universalizar as pautas
feministas. Devemos, então, compreender as demandas por direitos a partir do contexto
histórico em que se situam e da composição dos grupos de mulheres que tinham acesso
aos espaços de discussão. Também é importante levar em consideração uma perspectiva
interseccional em torno do tema, a fim de buscar as violações de direitos que ficam nos
“vazios do gênero” (CRENSHAW, 2002).

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 133


relações internacionais
no sistema das Nações Unidas e os entraves criados pela negação ou
relativização do gênero como um conceito importante para a formação
de consensos sobre o tema, utilizando como referência algumas posições
adotadas pelo Brasil neste âmbito. Para tanto, buscamos analisar, de
forma indireta, por meio de produções bibliográficas, as posições
assumidas pelos atores políticos, sobre o gênero e os direitos humanos
das mulheres, em Conferências e Encontros da ONU, bem como alguns
consensos assumidos na forma de documentos internacionais. Além
disso, buscamos posicionar o Brasil nos debates mais atuais (durante o
ano de 2020), coletando posicionamentos assumidos pelo país que têm o
gênero como um fator central.
O artigo está dividido nas seguintes seções. Além desta introdução,
que buscou posicionar os direitos humanos das mulheres como pauta
relevante no contexto internacional, apresentamos algumas das formulações
da teoria feminista sobre o “gênero”, como forma de localizar as discussões
promovidas no âmbito da ONU. Após, apresentamos o cenário político
internacional de incorporação dos direitos humanos das mulheres como
pauta, bem como a contribuição dos movimentos feministas para tanto.
Por último, discutimos a persistência do gênero como conceito “entre
colchetes”, por meio da análise de algumas pautas em disputa no contexto
internacional, através das posições assumidas pelo Brasil neste espaço.

1 GÊNERO: UM CONCEITO EM DISPUTA

Nesta seção, buscamos apontar as construções da teoria feminista


em torno do termo “gênero”. O objetivo não é repassar toda a história do
conceito, o que já foi feito por algumas autoras3, mas demarcar alguns
significados e usos que este assume, a fim de argumentar que o gênero
não tem uma forma única, ou é um conceito dado, mas que foi construído,
possui uma história política (HARAWAY, 2004, p. 209). Assim, sua
mobilização enquanto conceito, ferramenta analítica ou política deve ser
feita de forma consciente, a fim de não o transformar em uma categoria
vazia de significado. Cláudia de Lima Costa (2003) explica que “gênero”
pode ser traduzido como
uma característica individual, como uma relação interpessoal,
como um modo de organização social, como uma estrutura
da consciência, como uma psique triangulada, ideologia
3
Podemos citar, por exemplo, os trabalhos de Adriana Piscitelli (2009), Donna Haraway
(2004) e Cláudia de Lima Costa (2003).

134 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
internalizada, relações de poder manifestas na dominação
e subordinação, como diferença sexual, ou também em
termos de status, de papéis sexuais e de estereótipos sexuais.
(COSTA, 2003, p. 169)
A primeira localização do gênero na teoria feminista se deu com
Gayle Rubin, em O tráfico de mulheres: notas sobre a economia política
do sexo, escrito em 1975. No desenvolvimento de seu conceito de “sistema
sexo-gênero”, a autora busca separar as esferas da natureza e da cultura,
colocando o gênero nesta segunda classe, enquanto uma construção social.
Conforme explica Adriana Piscitelli (2009), o fator mais importante de
seu trabalho está na articulação entre gênero e sexualidade, colocando o
primeiro como parte de um constructo político.
O trabalho de Rubin foi criticado por autoras como Linda
Nicholson, que rotulou a “corrente” de pensamento sobre gênero
inaugurada por Rubin de “fundacionalismo biológico”. Para Nicholson
(2000) o sistema sexo-gênero mantinha ambas as categorias imbricadas,
de forma que as construções sociais do gênero estariam dependentes da
fixidez do sexo, ou seja, o sexo mantinha o papel de “provedor do lugar
onde o ‘gênero’ seria supostamente construído” (NICHOLSON, 2000, p.
11), em uma “noção porta-casacos da identidade”:
o corpo é visto como um tipo de cabide de pé no qual são
jogados diferentes artefatos culturais, especificamente os
relativos à personalidade e comportamento. […] Quando
se pensa o corpo como um “cabide” no qual são “jogados”
certos aspectos de personalidade e comportamento, pode-se
pensar no relacionamento entre os dados do “cabide” e aquilo
que nele é jogado como algo mais fraco do que determinista,
porém mais forte do que acidental. Não se é obrigado a
jogar sobretudos e cachecóis num porta-casacos; pode-se,
por exemplo, jogar suéteres e até diferentes tipos de objetos,
basta mudar suficientemente a natureza material do cabide.
Mas se sempre vemos um porta-casacos cheio de sobretudos
e cachecóis, não exigimos muita explicação, afinal trata-se
de um porta-casacos (NICHOLSON, 2000, p. 12).
Há, portanto, uma tentativa das autoras feministas de afastar o
conceito de gênero de determinações fixas e essencialistas relacionadas
à sexualidade e aos binarismos do masculino e do feminino. O objetivo da
construção do gênero é “contestar a naturalização da diferença sexual em
múltiplas arenas de luta” (HARAWAY, 2004, p. 211). Judith Butler, em
Problemas de gênero, conduz esse distanciamento ao extremo, ao inserir o

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 135


relações internacionais
conceito de “performatividade”, que relativiza a ideia de identidade de gênero
(BUTLER, 2003, p. 48), e questionar o caráter imutável do sexo, colocando-o,
tanto quanto gênero, como um constructo cultural (BUTLER, 2003, p. 25).
A associação entre gênero e “mulher” ou “mulheres” também é
discutida pelas autoras feministas. De um lado, nega-se a identificação
de gênero e mulher como sinônimos, estabelecendo-se o gênero como
“um sistema de relações sociais, simbólicas e psíquicas no qual homens
e mulheres estão diferentemente alocados” (HARAWAY, 2004, p. 235).
De outro, há um questionamento em torno do que estaria compreendido
dentro do conceito de “mulher” da forma como desenvolvido pelo
feminismo (marcado pela presença de mulheres brancas), bem como da
mulher como um corpo único, marcado pelas mesmas características ou
opressões comuns, nas quais outros fatores seriam adicionados. Desde
essa discussão, gênero e corpo seriam variáveis, negando-se espaço para
“os aspectos comuns emanados da biologia” (NICHOLSON, 2000, p. 14).
Essas pautas foram impulsionadas especialmente pelo feminismo
negro (HOOKS, 2019; DAVIS, 2016), que questiona o lugar da raça e da
classe como fatores que moldam o “ser mulher” e as demandas de mulheres
por direitos, refutando a ideia de uma opressão comum, a qual a raça e
classe vêm somar, e afirmando a existência de modos de subordinação
diferenciados. Além delas, as feministas decoloniais colocam o próprio
uso do “gênero” em xeque, entendendo-o como um conceito moldado
pelas experiências ocidentais (OYEWÙMÍ, 2020, p. 85).
Uma última concepção interessante para o trabalho é aquela
desenvolvida dentro das epistemologias feministas, que colocam o gênero
como uma categoria de análise de relações sociais, capaz de proporcionar
um “um reexame crítico das premissas e dos critérios do trabalho científico
existente” (SCOTT, 1995, p. 73). Joan Scott, em 1986, trabalhou o gênero
como categoria de análise importante para transformar paradigmas, e não
apenas como forma de acrescentar novos temas aos debates.
Scott posiciona sua “definição de gênero” como uma forma de
“conceber uma realidade social em termos de gênero” (SCOTT, 1995,
p. 83). Ela seria dividida em dois núcleos conectados. O primeiro, do
gênero como um elemento que constitui as relações sociais baseadas na
diferença, em que a autora busca olhar para os símbolos culturais que
evocam representações de gênero, os conceitos normativos que restringem
possibilidades alternativas de interpretação, as concepções políticas por
trás dessas interpretações limitativas e a identidade subjetiva. O segundo,

136 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
de que o gênero é uma fonte primária de significação das relações de poder,
e que possibilitaria uma “teorização do gênero”. Nesse sentido, o gênero
não estaria presente apenas quando se discute temas ligados ao feminino,
mas é fator relevante em qualquer análise histórica, política, jurídica etc.
Possível perceber, portanto, que o gênero não é um termo estático
e que as definições em torno dele não são pacíficas na teoria feminista.
Ele assume significados diversos, mais ou menos amplos, a depender
do contexto histórico e geográfico em que sua interlocutora se situa, e
dos interesses por trás de sua mobilização. As ideias de diferença e
desigualdade, fundantes na trajetória do gênero, permanecem presentes,
enfatizando o caráter político do termo. Esse é, inclusive, uma significação
muito utilizada dentro dos movimentos feministas e nas demandas
de mulheres por direitos. Entretanto, o gênero em muitos aspectos se
descola do “feminino” e do binarismo “homem” e “mulher”, para tratar
de como “as construções de masculinidade e feminilidade são criadas na
articulação com outras diferenças” (PISCITELLI, 2009, p. 146) e podem
ser subvertidas por corpos que manifestam o gênero para além delas.

2 GÊNERO NOS CENÁRIOS POLÍTICO E DO DIREITO E OS


DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

Assim como nos movimentos feministas, o uso do termo gênero e


sua complexificação em termos de significado aconteceu de forma gradual
nos cenários de discussão dos direitos humanos em sede internacional. Em
uma primeira fase, a ausência do termo gênero em documentos, como a Carta
das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948, era acompanhada da preocupação com a igualdade entre “homens” e
“mulheres”. Nelas, o uso do termo “mulher” é demarcador de uma linguagem
consonante a esse preceito, afastando o emprego da expressão “homem”
como sinônimo de humanidade (GUARNIERI, 2010, p. 05).
A preocupação em alcançar a “igualdade entre homens e mulheres”
foi foco central das Conferências Mundiais sobre a Mulher, a primeira
delas realizada em 1975, consagrado pela ONU como o ano internacional
da mulher. Conforme explica Miriam Abramovay (1995), o tema desta
e das outras três conferências realizadas até 1995 foram “Igualdade,
Desenvolvimento e Paz”. Apresentaram, entretanto, aprofundamento
gradual dos temas, para tratar de educação, saúde, violência, conflitos
armados, ajustes econômicos, meio ambiente, meios de comunicação e

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 137


relações internacionais
situação das meninas, em um processo de “amadurecimento e de uma
visão renovada da problemática da mulher sob a perspectiva de gênero”
(ABRAMOVAY, 1995, p. 214).
Mesmo a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) de 1979, primeiro tratado
internacional que dispõe amplamente sobre os direitos humanos da mulher,
e considerada a “carta magna dos direitos das mulheres” (PIMENTEL,
2013, p. 15), não utilizava o conceito de gênero em nenhuma de suas
disposições. Ao contrário, mantinha a distinção baseada no sexo como
fator de discriminação contra a mulher4. O uso do termo gênero e de outros
conceitos trabalhados pelas teorias feministas só aparece posteriormente,
em documentos e protocolos complementares ao texto original.
O processo de inclusão do gênero e uma interpretação mais
abrangente (ou mais profunda) de seu significado foi impulsionado pela
participação ativa de movimentos feministas, movimentos de mulheres
e movimentos feministas negros nos espaços internacionais. Autoras
que trabalham o desenvolvimento de assuntos atinentes ao gênero em
conferências e documentos internacionais5 são unânimes em falar da
presença desses grupos, em número cada vez maior e ocupando espaços
mais centralizados nas tomadas de decisão6 sobre quais pautas deveriam
estar presentes nos encontros.
Nesse sentido, a introdução de uma perspectiva de gênero no
plano internacional se consolida no chamado “Ciclo de Conferências de
Direitos Humanos das Nações Unidas”, durante a década de noventa, que
engloba não apenas aquelas com escopo de tratar de temas de mulheres,
mas também eventos de outros segmentos, como o meio ambiente
(Rio 92) e a Conferência do Cairo sobre população e desenvolvimento
(BARSTED, 2001, p. 04). Passo importante para isso se deu em Nairóbi,
4
O primeiro artigo da Convenção dispõe que: “Para os fins da presente Convenção, a
expressão ‘discriminação contra a mulher’ significará toda a distinção, exclusão
ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular
o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado
civil com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades
fundamentais nos campos: político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer
outro campo” (grifo nosso).
5
Podemos citar os textos de Matilde Ribeiro (1995), Sueli Carneiro (2002), Tatiana
Guarnieri (2010), Léa Epping e Jussara Prá (2012).
6
Essa centralização pode ser vista nos espaços físicos que movimentos e ONGs ocuparam
nas conferências. No Rio, em 1992, eles se concentraram no Aterro do Flamengo, espaço
separado da conferência sobre o meio ambiente; já em 1993, em Viena, eles ocuparam
espaço próprio no mesmo local em que se davam as discussões da conferência sobre
direitos humanos.

138 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
na III Conferência Mundial sobre a Mulher, quando se começa a desenhar
“uma visão mais global, reconhecendo que o papel da mulher no processo
de desenvolvimento tem relação direta com o desenvolvimento de toda a
sociedade” (ABRAMOVAY, 1995, p. 214).
A conferência inaugural do ciclo, sobre meio ambiente e
desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, em 1992, não abordou gênero
ou temas relacionados à sexualidade, incluindo a “definição clássica de
igualdade entre os sexos” (CORRÊA, 2018, p. 190). Entretanto, pode ser
considerada um marco para o fortalecimento da participação de mulheres
e movimentos sociais nestes eventos, uma vez que elas são chamadas a
discutir temas que não estavam diretamente ligados ao que se entendia
como pautas feministas (GUARNIERI, 2010, p. 14).
Além disso, o início dos debates sobre autonomia reprodutiva e
planejamento familiar em 1992 é uma porta de entrada para embates, mesmo
que implícitos, em torno do gênero, os quais vão ganhando contornos
mais explícitos com a Conferência sobre População e Desenvolvimento
realizada no Cairo, em 1994. Conforme explica Sonia Corrêa:
Essa decisão [de inserir pautas de gênero na CPD de 1994],
tomada no calor do Aterro do Flamengo, está na origem da
complexa dinâmica de embates que transcorreu ao longo dos
dois anos de preparação para o Cairo, da qual resultaram
definições e recomendações de política que são hoje alvos
principais das multifacetadas cruzadas contra gênero.
(CORRÊA, 2018, p. 191)
Essa conferência marca o primeiro uso do conceito de gênero em
um documento internacional7, além de legitimar uma série de discussões
feministas relevantes, como direitos reprodutivos, aborto, educação em
sexualidade e formas plurais de família (CORRÊA, 2018, p. 191). As
reações ainda tímidas de alguns representantes de países e as reservas
apresentadas a alguns trechos dos documentos originados da conferência
eram o presságio das resistências manifestadas na IV Conferência Mundial
sobre a Mulher de 1995 (GUARNIERI, 2010, p. 17).
O ataque ao gênero perpetrado em 1995 diz respeito à sua
concepção pluralista sobre a manifestação de identidade e sexualidade. A
7
Sonia Corrêa (2018, p. 191) explica que a terminologia “status das mulheres” foi
usada inicialmente, mas esta foi amplamente contestada pelas participantes, uma vez
que o termo não abarcava as relações de poder e desigualdade de gênero, o qual era
o foco da discussão. Em suas palavras: “o gênero ‘do Cairo’ vinha do campo gênero e
desenvolvimento, […] gênero como camada cultural sobreposta ao sexo biológico e que
ordena papéis e esferas do masculino e do feminino” (CORRÊA, 2018, p. 192).

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 139


relações internacionais
reivindicação feita pelo Vaticano (CORRÊA, 2018, p. 193), acompanhada
por países islâmicos (GUARNIERI, 2010, p. 22) e com eco em países
latino-americanos (ABRAMOVAY, 1995, p. 217) foi de que o gênero
“deveria ser compreendido como estando ancorado na identidade sexual
biológica” (CORRÊA, 2018, p. 193). Nesse sentido, desde as conferências
preparatórias para Pequim, diversos temas relacionados a questões
de gênero foram colocados “entre colchetes”8: o próprio significado
da expressão “gênero”, o termo “equidade”, os temas relacionados aos
papéis da mulher na família, as discussões sobre direitos reprodutivos,
em especial a palavra “aborto”, e temas relacionados à educação sexual
(ABRAMOVAY, 1995, p. 216-217).
Guarnieri (2010) enfatiza que, em alguns casos, parágrafos
inteiros do projeto da Plataforma de Ação da Conferência de Pequim
estavam entre colchetes, como o que garantia à mulher “direito a ter
controle sobre as questões relativas à sua sexualidade, inclusive sua
saúde sexual e reprodutiva, e decidir livremente com respeito a essas
questões, livres de coerção, discriminação e violência” (GUARNIERI,
2010, p. 22). Para Miriam Abramovay (1995, p. 217), essas posições
conservadoras concebem tais temas como um suposto perigo para os
valores sociais. Também podem ser vistas como posições ideológicas
que se pautam na negação do gênero como mecanismo de manutenção
de pautas moralistas.
Apesar de tais posições conservadoras terem sido derrotadas ao
final da conferência, com a sedimentação do gênero em diversas partes
dos documentos finais, as disputas em torno da expressão e de seus
significados continuaram surgindo em encontros posteriores, em 1999 e
2000 (CORRÊA, 2018, p. 193-194), amparadas pela suposta luta contra
a “ideologia de gênero”9. Esta pauta segue forte no plano internacional,
assumindo novas nuances nos anos 2020, como veremos mais à frente.

8
Conforme explica Guarnieri (2010, p. 21), o uso dos colchetes representa que determinado
tema ou expressão é polêmico, de difícil negociação, simbolizando dúvida e a recusa de
determinado(s) país(es) em acatar determinada proposta.
9
Estudos indicam que a expressão “ideologia de gênero” foi idealizada pela ativista católica
Dale O’Leary, no período posterior ao ciclo de conferências da ONU dos anos 1990, para
explicar a onda de movimentos que levaram à consolidação dos “novos direitos” das
mulheres. O termo, entretanto, passou a ser utilizado de forma ampla, condensando em
uma fórmula acessível uma (contra) política sexual e de gênero (VAGGIONE, 2020, p. 55).

140 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
3 GÊNERO (AINDA) ENTRE COLCHETES: DISCUSSÕES
SOBRE DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES NO
CENÁRIO INTERNACIONAL

No plano interno brasileiro, Sueli Carneiro (2002) destaca a


força dos movimentos feministas nacionais, vistos como uma referência
internacional pelas conquistas (legislativas) que impulsionaram desde a
redemocratização do país. Nesse momento (década de 1980 em diante), os
movimentos de mulheres se colocaram como atores políticos, voltando-se
especialmente para o Estado, na busca pela inclusão de pautas amplas na
Constituição e na forma de políticas públicas (BARSTED, 2011, p. 18).
A agenda feminista abrangia temas como trabalho, renda,
participação política e social, saúde, sexualidade e aborto, discriminação
étnico-racial, acesso à terra e direito à vida sem violência. Nas palavras
de Barsted (2011), tais organizações se consagraram, nesse período, como
“um sujeito coletivo que alargou o campo democrático” (BARSTED,
2011, p. 14). Nos anos que se seguiram à nova Constituição, foi possível
perceber um avanço gradual nas pautas, com alterações de legislações
civis e penais e a criação de normas visando à proteção de mulheres
contra a discriminação10.
Tais conquistas, entretanto, não foram lineares ou consensuais,
pelo contrário, muito rapidamente passaram a ser alvo de manifestações
reativas, por parte da população, por atores políticos e no direito, por meio
de demandas pela “renaturalização dos direitos” (VAGGIONE, 2020).
Esse cenário de aumento do conservadorismo se desenhou com maior
força, no Brasil, nos últimos dez anos e ganhou maior relevância com
o governo eleito em 201811. Essa onda conservadora, que tem o gênero
como um fator central, também se mostra no cenário internacional e pode
ser materializada pela análise das posições de países como o Brasil, a
Polônia, o Afeganistão, dentre outros, nas discussões sobre direitos
humanos das mulheres na ONU.
Ao mesmo tempo em que alguns temas importantes nas pautas
feministas, como a violência doméstica, aparecem, em um primeiro
10
Sobre o tema ver BARSTED, 2011 e CAMPOS; SEVERI, 2019.
11
Biroli, Machado e Vaggione (2020) apontam os primeiros sinais de um conservadorismo
de gênero no Brasil desde 2009, com disputas sobre os limites do que se entenderia por
direitos humanos. Em 2014 e 2016, novas manifestações se dão com o questionamento
do uso do “gênero” no Programa Nacional de Educação. Em 2018, a eleição de Jair
Bolsonaro e ocupação da pasta de direitos humanos e mulheres por Damares Alves
“coroa” esse processo, o que tem significado retrocesso nestes temas nos últimos anos.
Sobre este último assunto ver CUNHA, 2020.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 141


relações internacionais
momento, e desde a perspectiva brasileira, como consenso12, manifestações
dos representantes nacionais em eventos das Nações Unidas revelam
incongruências no cenário mais amplo. Novamente, o termo “gênero”
parece ser fator central de disputas, além de outras expressões que a ele se
relacionam, especialmente as que fazem referência aos direitos sexuais e
reprodutivos, também apontadas por Miriam Abramovay, em 1995, como
causadoras de divergências.
Em 2020, a postura contrária à promoção de direitos às mulheres
foi observada em diversas tratativas. Sem a intenção de esgotá-las,
selecionamos três momentos ilustrativos dessa posição, assumida por um
grupo bem determinado de países. Os dois primeiros se referem a discussões
que teriam espaço no Conselho de Direitos Humanos da ONU, realizado no
primeiro semestre de 2020. A primeira delas, proposta por países africanos,
para banir a mutilação genital feminina, e a segunda, apresentada pelo
México, sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra
mulheres e meninas como um dos objetivos para 2030.
Em ambas as discussões, o Brasil, juntamente com outros
países considerados “ultraconservadores”, como a Arábia Saudita, Catar,
Bahrein, Iraque, Paquistão, Nigéria, e Rússia, buscou a reforma dos textos,
a fim de excluir terminologias consideradas “subjetivas”, que abordassem
“temas delicados” (CHADE, 2020a, online), ou que pudessem ser usadas
para “justificar práticas de aborto” (CHADE, 2020b, online). O pedido
envolveu a retirada de “saúde sexual e reprodutiva” da resolução sobre
mutilação genital, considerada pela Organização Mundial de Saúde um
direito instrumental para a interrupção de tais práticas de violência.
Já no projeto submetido pelo México, que focava nas sobreposições
de discriminação sofrida por mulheres, o Brasil se mostrou contrário ao uso
do conceito de “intersecção”; de expressões que denotassem promoção de
direitos reprodutivos e saúde sexual; de um parágrafo inteiro que tratava
do acesso ao planejamento familiar e métodos modernos de contracepção;
e se opôs a referências sobre educação sexual e serviços de informação
sexual. Solicitou que o termo “igualdade de gênero” fosse substituído
por “igualdade entre homens e mulheres”, reforçando a ideia de que
12
Em dois eventos da ONU realizados em 2019, a 40ª Sessão do Conselho de Direitos
Humanos, em Genebra, e a 63ª Sessão da Comissão sobre o Estatuto da Mulher, a Ministra
da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, enfatizou a importância das
discussões sobre violência contra a mulher, especialmente o feminicídio e o abuso
sexual, colocando-os como temas de interesse global (ONU, 2019, online). Da mesma
forma, defendeu políticas em favor da igualdade “entre homens e mulheres” (AGÊNCIA
BRASIL, 2019).

142 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
existe apenas a realidade biológica, e solicitou a inclusão de referência
às organizações religiosas como agentes na promoção de direitos, em um
trecho que fazia alusão ao feminismo (CHADE, 2020a, online).
A partir da análise dessas posições, encabeçadas pela Brasil
em muitos casos, mas apoiadas por um grupo crescente de países, é
interessante ressaltar, em primeiro lugar, que não se trata apenas de
expressões, terminologias ou conceitos, mas de traduções linguísticas de
direitos e de posições que buscam ampliar o espectro de pessoas que são
por eles contemplados – o emprego do gênero e da interseccionalidade
nestes textos é exemplo disso, e se mostra alinhado aos estudos feministas.
Em segundo lugar, esses dois “acontecimentos” colocam em xeque a ideia
de que existe um consenso com relação a temas como combate à violência
e à discriminação, uma vez que os instrumentos para se chegar a um
patamar de maior igualdade são negados. Nesse sentido, o Brasil se coloca
em uma posição contraditória, ao negar a instrumentalização de direitos
básicos para a proteção de temas que defende, como é o caso da abolição
à mutilação genital.
O último evento comentado não se insere nos ciclos de
conferências da ONU, mas ganhou repercussão neste espaço, por se
mostrar como uma forma de oposição às formulações das Nações Unidas
sobre direitos humanos das mulheres. Trata-se do evento que ganhou o
nome de Consenso de Genebra, ocorrido no final de 2020 e que contou
com a participação de 32 países, como Hungria, Polônia, Belarus, Egito,
Arábia Saudita, Líbia, Paquistão, Zâmbia, Congo, Bahrein, Níger e Omã,
além do Brasil e dos EUA, sob o governo Trump. O encontro teve como
pauta central a negação de direitos reprodutivos e ao planejamento familiar,
especialmente o aborto.
Críticas às posições da ONU sobre o tema também apareceram,
com declarações de que a ONU e outras entidades não poderiam interpretar
direitos ou usar determinada linguagem em textos internacionais em
contrariedade às posições dos países-membros. O objetivo do “consenso”
formulado em Genebra é criar uma via paralela às Nações Unidas e
pode ser interpretado como “um desafio claro às Nações Unidas de que
esses governos não mais aceitarão orientações que partem das entidades
internacionais” (CHADE; TREVISAN, 2020, online).
Apesar de as pautas levantadas por esses países serem, em geral,
derrotadas nas discussões da ONU, elas são preocupantes. Isso porque
enfraquecem os consensos globais sobre temas discutidos há décadas,

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 143


relações internacionais
impossibilitando a adoção de políticas generalizadas em favor dos direitos
humanos das mulheres, principalmente aqueles relativos à autonomia sexual
e reprodutiva, o qual, por sua vez, é face fundamental dos direitos à igualdade
e não discriminação perseguidos pela ONU desde sua criação. Além disso,
transforma em letra morta, nestes Estados, as resoluções formuladas em
âmbito internacional, uma vez que estas tendem a ser desconsideradas no
plano interno, local de concretização de políticas públicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, buscamos discutir os (des)alinhamentos entre


o desenvolvimento entre a teoria feminista, especialmente no que
concerne ao uso do “gênero” como conceito central e seu emprego nas
pautas internacionais em favor de direitos humanos das mulheres. A
partir da apresentação de alguns trabalhos feministas sobre o tema, foi
possível perceber que o gênero não é um conceito fixo e estável, mesmo
na teoria feminista, uma vez que assume diferentes posições e pode ser
instrumentalizado a partir dos marcadores e interesses de quem o mobiliza.
Neste sentido, não entendemos ser necessário buscar um
consenso unitário no plano internacional sobre o que significa o gênero
ou mesmo sobre o que compreendem os “direitos humanos das mulheres”.
A pluralidade e a abertura a novas posições fazem parte da demanda
feminista. Entretanto, o que temos observado nos últimos anos é uma
postura crescente de negação do gênero e, consequentemente, de todos
os direitos consagrados pelas Nações Unidas como direitos humanos das
mulheres. Nesse sentido, as pautas conservadoras que, na década de 1990,
colocaram o gênero “entre colchetes”, seguem o fazendo.
Este cenário contribui para a estagnação do tema a nível global,
especialmente no que concerne à questão dos direitos sexuais e reprodutivos,
pauta especialmente contestada e que gera reflexos na promoção do
ideal de igualdade e não discriminação consagrado pela ONU. Diante
disso, para que a comunidade internacional trabalhe o gênero como uma
categoria importante das discussões sobre direitos, é importante que ela
esteja alinhada à teoria feminista e assuma uma posição responsável, a fim
de evitar seu emprego de forma esvaziada, ou mesmo abrir espaço para
interpretações moralistas e ideológicas que em nada contribuem para o
avanço na promoção dos direitos humanos.

144 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
REFERÊNCIAS

ABRAMOVAY, Miriam. Uma conferência entre colchetes. Revista


Estudos Feministas, ano 3, p. 212-218, 1995.
AGÊNCIA BRASIL. Na ONU, Damares defende políticas para
promoção da igualdade de gênero. 2019. Disponível em: https://
agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2019-03/na-onu-
damares-defende-politicas-para-promocao-da-igualdade-de. Acesso em:
24 mar. 2021.
BARSTED, Leila Linhares. Os Direitos Humanos na Perspectiva de
Gênero. I Colóquio de Direitos Humanos. São Paulo, 2001. Disponível
em: http://dhnet.org.br/direitos/textos/a_pdf/barsted_dh_ perspectiva_
genero.pdf. Acesso em: 11 jul. 2020.
BARSTED, Leila Linhares. Lei Maria da Penha: uma experiência bem-
sucedida de advocacy feminista. In: CAMPOS, Carmen Hein (org.). Lei
Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 13-38.
BIROLI, Flávia; MACHADO, Maria das Dores Campos; VAGGIONE,
Juan Marco. Gênero, neoconservadorismo e democracia. São Paulo:
Boitempo, 2020.
BRAGATO, Fernanda Frizzo. Para além do discurso eurocêntrico dos
direitos humanos: contribuições da descolonialidade. Revista Novos
Estudos Jurídicos, v. 19, n, 01, p. 201-230, jan./abr. 2014.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da
identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
CAMPOS, Carmen Hein de; SEVERI, Fabiana Cristina. Violência contra
as mulheres e a crítica jurídica feminista: breve análise da produção
acadêmica brasileira. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n.
02, p. 962-990, 2019.
CARNEIRO, Sueli. A batalha de Durban. Revista Estudos Feministas,
ano 10, p. 209-214, 1. sem. 2002.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Revista Estudos
Avançados, v. 17, n. 49, p. 117-132, 2003.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 145


relações internacionais
CHADE, Jamil. Com islâmicos, Brasil tenta esvaziar resolução sobre
direito das mulheres. Uol, 2020a. Disponível em: https://noticias.uol.
com.br/colunas/jamil-chade/2020/07/03/com-islamicos-brasil-tenta-
esvaziar-resolucao-sobre-direito-das-mulheres.htm?cmpid=copiaecola.
Acesso em: 27 mar. 2021.
CHADE, Jamil. Cruzada ultraconservadora do Brasil na ONU afeta
até resolução contra mutilação genital feminina. El País, 2020b.
Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-09/cruzada-
ultraconservadora-do-brasil-na-onu-afeta-ate-resolucao-contra-mutilacao-
genital-feminina.html. Acesso em: 27 mar. 2021.
CHADE, Jamil; TREVISAN, Maria Carolina. Brasil, EUA e ditaduras se
aliam: “jamais haverá direito ao aborto”. Uol, 2020. Disponível em: https://
noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/10/22/brasil-eua-e-ditaduras-
se-aliam-jamais-havera-direito-ao-aborto.htm. Acesso em: 27 mar. 2021.
CORRÊA, Sônia. A “política do gênero”: um comentário genealógico.
Cadernos Pagu n. 53, p. 185-301, 2018.
COSTA, Cláudia de Lima. Paradoxos de gênero. Revista Gênero, v. 04,
n. 01, p. 169-177, 2. sem. 2003.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em
aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos
Feministas, ano 10, n. 01, p. 171-188, 1. sem. 2002.
CUNHA, Leonam Lucas Nogueira. A antipolítica de gênero no
governo Bolsonaro e suas dinâmicas de violência. Revista de Estudios
Brasileños, v. 07, n. 14, 2020, p. 49-61.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
E-book.
EPPING, Léa; PRÁ, Jussara Reis. Cidadania e feminismo no
reconhecimento dos direitos humanos das mulheres. Revista Estudos
Feministas, v. 20, n. 01, p. 33-51, jan./abr. 2012.
GUARNIERI, Tathiana Haddad. Os direitos das mulheres no contexto
internacional: da criação da ONU (1945) à Conferência de Beijing
(1995). Revista Eletrônica da Faculdade Metodista Granbery, n. 08,
p. 01-28, jan./jun. 2010.
HARAWAY, Donna. “Gênero” para um dicionário marxista: a política
sexual de uma palavra. Caderno Pagu, n. 22, p. 201-246, 2004.

146 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
HOOKS, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. São Paulo:
Perspectiva, 2019.
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Revista Estudos
Feministas, ano 08, p. 09-41, 2. sem. 2000.
ONU NEWS. CSW63: ministra Damares Alves diz que alvo do Brasil
é “erradicar violência doméstica”. 2019. Disponível em: https://news.
un.org/pt/story/2019/03/1663851. Acesso em: 24 mar. 2021.
ONU NEWS. Ministra do Brasil promete país com “os mais altos
padrões de direitos humanos”. 2019. Disponível em: https://news.
un.org/pt/story/2019/02/1661402. Acesso em: 24 mar. 2021.
OYEWÙMÍ, Oyèrónké. Conceituando o gênero: os fundamentos
eurocêntricos dos conceitos feministas e o desafio das epistemologias
africanas. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.). Pensamento
feministas hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do
Tempo, 2020, p. 84-95.
PIMENTEL, Elaine. Apresentação. In: ORGANIZAÇÃO DAS
NAÇÕES UNIDAS. Convenção sobre a Eliminação Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
(Cedaw, 1979), 2013. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/
wp-content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf. Acesso em: 22 mar.
2021.
PIOVESAN, Flávia. A proteção internacional dos direitos das mulheres.
Cadernos Jurídicos, ano 15, n. 38, p. 21-34, jan./abr., 2014.
PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Por uma concepção amefricana
de direitos humanos. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org.).
Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, 2020, p. 298-319.
PISCITELLI, Adriana. Gênero: a história de um conceito. In:
BUARQUE DE ALMEIDA, H.; SZWAKO, J. (org.). Diferenças,
igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. p. 116-148.
RIBEIRO, Matilde. Mulheres negras brasileiras: de Bertioga a Beijing.
Revista Estudos Feministas, ano. 03, p. 446-457, 2. sem. 1995.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação
e Realidade, v. 15, n. 02, p. 71-99, jul./dez., 1995.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 147


relações internacionais
OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA:
MOBILIDADE URBANA, DIREITO À CIDADE E
INCLUSÃO SOCIAL

THE RIGHTS OF PEOPLE WITH DISABILITY: URBAN


MOBILITY, RIGHT TO THE CITY AND SOCIAL INCLUSION

Edmundo Dantez Costa Neto*


Lucas Laino**
Victória Guimarães de Souza***

RESUMO: O artigo procura analisar os direitos da pessoa com deficiência, com especial destaque
ao seu direito de acesso à cidade e mobilidade urbana, com objetivo de esclarecer a importância de
repensar não só a construção das estruturas urbanas, mas também das estruturas do próprio Estado, a
fim de incluir as pessoas com deficiência em seu projeto político. Por meio da análise bibliográfica é
apresentada uma recapitulação histórica, são delineados alguns marcos jurídicos importantes, através
dos quais serão problematizados o direito à cidade e a mobilidade urbana por parte das pessoas com
deficiência. Por fim, são levantados alguns pontos para alternativas quanto às possibilidades de inclusão
das pessoas com deficiência na sociedade como um todo, evidenciando o seu direito a uma vida digna.
Palavras-chave: Pessoas com deficiência. Direitos humanos. Inclusão. Direito à cidade.
ABSTRACT: The article aims to analyze the rights of the person with disability, in particular the
right to access the city and urban mobility, in order to clarify the importance of rethinking not only
the construction of urban structures, but also the structures of the State itself in order to include
person with disability in its political project. Through bibliographic analysis, a historical review is
presented, some important legal frameworks are outlined, through which the right to the city and
urban mobility by the person with disability will be problematized. Finally, some points are raised
for alternatives regarding the possibilities of including person with disability in the society as a
whole, highlighting their right to a dignified life.
Keywords: People with disability. Human rights. Inclusion. Right to the city.

INTRODUÇÃO
O presente artigo busca realizar uma reflexão acerca dos direitos da
pessoa com deficiência4 no ordenamento jurídico, considerando questões sobre
mobilidade urbana, o direito à cidade e a inclusão social. Desde os primeiros
*
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: edneto97@hotmail.com.
**
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: lucaslaino@live.com.
***
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
E-mail: victoria.guimaraes.8861@gmail.com.
1
Segundo o Estatuto da Pessoa com Deficiência, considera-se “pessoa com deficiência aquela
que tem impedimento de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o
qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva
na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas” (BRASIL, 2015).

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 149


relações internacionais
registros da humanidade sobre as pessoas com deficiência é possível interpretar
a rejeição das comunidades para com os indivíduos com alguma deficiência,
marginalização essa que se estendeu ao longo da história da humanidade,
ainda que assumindo diversas faces. Com o avanço do debate e da luta por
espaço político, o Estado e sua extensão jurídica passam a prever a inclusão
dessas pessoas na articulação da democracia (PEREIRA; SARAIVA, 2017).
No Brasil, um marco importante desse movimento crescente foi
o regimento da Constituição Federal que incluiu pautas de pessoas com
deficiência com a participação das mesmas, devido ao desenvolvimento de
organização política desse grupo (DICHER; TREVISAM, 2016). Quanto ao
âmbito internacional, este foi marcado pela Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), organizada pela Organização
das Nações Unidas (ONU), a fim de promover a garantia dos direitos do grupo.
Com isso, o artigo se estende a questão do direito à cidade e
mobilidade urbana, sendo este um direito coletivo e fundamental da
sociedade, e que deveria se estender às suas pluralidades, assim, cabe
refletir acerca da construção do modelo urbano excludente diante da lógica
de produção do capitalismo e a necessidade da construção de espaços
que permitam acessibilidade de todos os componentes sociais, ou seja,
também, de pessoas com deficiência, tornando possível devolver a esses
sujeitos sua independência e autonomia.

1 O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DOS DIREITOS DAS


PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Desde os primeiros registros históricos, as pessoas com deficiência


eram apontadas como um inconveniente ao coletivo. Na Grécia Antiga,
Aristóteles (2003, p. 150) discorreu sobre pessoas com deficiência da seguinte
forma: “Com respeito a conhecer quais os filhos que devem ser abandonados
ou educados, precisa existir uma lei que proíba nutrir toda criança disforme”.
Na Idade Média eram tidos como “castigo divino” ou necessitado de caridade.
É só em meados da Idade Moderna que a pessoa com deficiência começa a
exercer maior atenção da comunidade científica a fim de buscar compreensão
da realidade dessa população, ainda assim mantinha um caráter excludente,
de modo que tal grupo era demonizado, visto como um peso para o Estado
e, cuja capacidade produtiva era nula (PEREIRA; SARAIVA, 2017, p. 174).
De acordo com as autoras Pereira e Saraiva (2017), a partir do século
XIX, os avanços nas pesquisas sobre as dificuldades enfrentadas pelas pessoas

150 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
com deficiência começam a se desdobrar em considerações racionalistas,
e que tentavam se distanciar da ortodoxia discriminatória da época, que
previa medidas paliativas e de caridade. Somente no século XX que há de
fato uma mobilização reconhecida, por meio de congressos e conferências
internacionais, que se amplia o debate acerca de “pessoas deficientes”, termo
usado na época, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos em
1948, a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada
em 1975, e o Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência
aprovado pelas ONU em 1982 (TAVARES, 2012, p. 4).
Cabe salientar aqui os impactos das grandes guerras para o debate
em dois pontos: a) durante o período nazista, quando o chanceler da
Alemanha, Adolf Hitler, instaurou o Programa de Eutanásia que objetivava
o extermínio dos próprios alemães idosos, pessoas com deficiência física
e mental e pessoas com doenças crônicas (PEREIRA; SARAIVA, 2017,
p. 175); e b) devido aos numerosos soldados enviados às batalhas que
voltaram com alguma mutilação e sequelas físicas, com isso, eram
denominados como pessoas com deficiência (TAHAN, 2012, p. 21).
Foi nesse período, em meados do século XX, que se ergueu o
lema “Nada sobre nós, sem nós” (CHARLTON, 2000), e deu-se um
momento de transição de segregação dessa população para integração
das mesmas na sociedade, que consistia na premissa de que a pessoa com
deficiência poderia ser parte, e participar de fato, da sociedade. Até os anos
2000, a responsabilidade que cabia ao lema e toda luta por essa integração
se sustentou por meio de diversos protestos e manifestações no mundo
todo, esse mecanismo de organização política das pessoas com deficiência
buscava se pautar por uma simples questão: exercer seus direitos garantidos
enquanto cidadãos e previstos em lei, fazer parte das decisões da sociedade,
principalmente às que cabiam a si, e não ficar à margem do Estado.

2 MARCOS JURÍDICOS (INTER)NACIONAIS REFERENTES


ÀS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Como foi apresentado, ao longo da história, os Estados


tiveram diferentes posições e entendimentos acerca dos direitos das
pessoas com deficiência. Nas últimas décadas, muitos direitos foram
assegurados no Brasil e no mundo por meio de alguns marcos jurídicos
que merecem análise.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 151


relações internacionais
2.1 Constituição Federal brasileira

Marcada pelo contexto da redemocratização, a Constituição


Federal de 1988 contou com a participação de diversas associações de
defesa de direitos das pessoas com deficiência, o que assegurou a garantia
de muitos direitos a esse grupo. O tema é especificamente tratado ao
longo de sete artigos, salientando e assegurando a proteção constitucional.
Dentre os dispositivos de proteção, citam-se: a proibição de quaisquer
discriminações salariais e em critérios de admissão do trabalhador com
deficiência; garantia de cuidados da saúde e assistência pública ao grupo em
questão sob competência da União, Estados, Distrito Federal e Municípios;
garantia da proteção e integração social; e, reserva de percentual de vagas
de empregos públicos para o grupo (FARIAS; SOARES JÚNIOR, 2020).
Em diversos dispositivos, a Constituição Federal se refere às
pessoas como “portadoras de deficiência”, terminologia fundamentada no
modelo médico da deficiência, “que enfatizava a pessoa e não a deficiência,
enunciando que esse grupo deveria se adaptar ao meio social” (FARIAS;
SOARES JÚNIOR, 2020, p. 67). Essa terminologia foi alterada e adaptada
com o advento da ratificação, em 2008, da CDPD, que passou a ter força
de emenda constitucional.

2.2 Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com


Deficiência
A Assembleia Geral das Nações Unidas realizou em 2007 a CDPD,
com o objetivo de proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas
com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente. Nesse
sentido, o Brasil, tendo feito parte da convenção e firmado compromisso
em garantir esses direitos, ratificou em 2008 o documento internacional.
Internacionalmente, a questão da deficiência e os esforços para
garantir direitos ao grupo em questão passaram a ser visualizados e
tratados como problema de direitos humanos (SPINIELI; CAMARGO,
2021, p. 86). Essa nova abordagem para a questão confere mais aderência
e compromisso dos Estados membros, dado o peso do não cumprimento de
direitos humanos no sistema internacional.
Nesse sentido, pode-se citar o primeiro capítulo do documento,
que tem por objetivo salientar o propósito da convenção, descrito como
“promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de

152 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por parte de todas
as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade
inerente”. Dessa maneira, o texto faz uma reafirmação dos princípios da
Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), explicitando o fato
de que os direitos do homem são os mesmos direitos das pessoas com
deficiência, que devem desfrutá-los em plenitude e sem discriminação
(CAIADO, 2009, p. 331).

2.3 Estatuto da Pessoa com Deficiência

A Lei nº. 13.146, de 2015, instituiu o Estatuto da Pessoa com


Deficiência, cujo objetivo é garantir uma aplicação mais efetiva dos
ditames sobre a inclusão e acessibilidade para as pessoas com deficiência.
O estatuto institucionaliza um leque de garantias, e representa uma
importante ferramenta para atribuir responsabilidade ao poder público
em relação ao desenvolvimento de estratégias para garantir o direito à
mobilidade e inclusão:
O documento busca assegurar um quadro de direitos que
tenham por objeto conduzir a pessoa com deficiência à
situação de inclusão social, de igualdade e, consequentemente,
operando estruturalmente a diminuição da ausência das
diferentes formas de acessibilidade nos espaços sociais.
(SPINIELI; CAMARGO, 2021, p. 86)
Segundo Farias e Soares Júnior (2020), o Estatuto da Pessoa com
Deficiência e a CDPD desempenharam um papel de promover mudanças
significativas na legislação infraconstitucional, impactando na promoção e
interpretação dos direitos do grupo.

3 MOBILIDADE URBANA E ACESSIBILIDADE

A mobilidade urbana e a acessibilidade estão profundamente


atreladas ao direito à cidade em geral, mas que é de especial importância
para as pessoas com deficiência. Destarte, são necessárias algumas
definições. O direito à cidade, de acordo com David Harvey, é “muito
mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que
a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de
acordo com nossos mais profundos desejos” (HARVEY, 2014, p. 28).
Dessa forma, o direito à cidade se constitui como um direito coletivo, ou

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 153


relações internacionais
difuso, e fundamental. É fundamental no sentido de que provê as bases
para a preservação da dignidade das pessoas como um todo, e das pessoas
com deficiência em particular. É difuso, pois, é um direito transindividual,
de natureza indivisível, que são titulares pessoas indeterminadas e ligadas
por circunstância de fato (LEITE; PIVA, 2019, p. 344).
Enquanto que a mobilidade urbana,
[...] desempenha um papel fundamental na determinação
das oportunidades aos cidadãos, tornando-se um meio para
ação de grande importância para a interação do indivíduo
com o contexto urbano na construção do direito à cidadania
e inclusão social (PUCCI; VECCHIO, 2018 apud SPINIELI;
SOUZA, 2020, p. 2).
Assim, vemos que, para que seja possível o exercício da sua
cidadania, a acessibilidade se torna de fundamental importância para o
grupo em questão, visto que, sem os meios adequados para o trânsito
dessas pessoas pelos espaços públicos em geral, restringe-as dos espaços de
convivência, das instituições assistencialistas, o que reduz a sua autonomia
e independência, diminuindo as possibilidades de convivência com outras
pessoas, bem como o acesso à educação, saúde, cultura, trabalho, isto é, o
pleno exercício de sua cidadania (BARBOSA, 2015, p. 148).
Nesse sentido, a formulação do direito à cidade por Harvey vai
ao encontro da necessidade de se repensar o modelo de urbanização das
cidades. O processo de formação das cidades se deu a partir da “concentração
geográfica e social de um excedente de produção” (HARVEY, 2014, p. 30).
Assim, a urbanização e o capitalismo estão profundamente entrelaçados, de
forma que, a formação espacial urbana se dá em consonância com o ímpeto
de crescimento econômico, o que acabou por preterir espaços acessíveis.
Da mesma forma em que construiu uma mentalidade específica contrária
a inclusão e o exercício da cidadania pelas pessoas com deficiência2.
Acrescenta-se, atualmente, um crescimento exponencial da mobilidade
urbana, e a sua consequente complexificação devido à dispersão urbanística
residencial, e à desnuclearização das atividades profissionais, o que
provocou um aumento das distâncias a serem percorridas diariamente e,
2
Como pode ser visto, por exemplo, no que Charlton chamou de comoditização das
pessoas com deficiência, isto é, quando sua disfunção adquire um valor de troca a partir
do qual é possível a geração de lucro. Processo através do qual foram criados complexos
industriais com o objetivo de “reabilitar, transportar, educar, abrigar, empregar e atender
pessoas com deficiência de forma segregada” (CHARLTON, 2000, p. 47). Essas
empresas, enquanto empresas capitalistas, procuram o lucro e não adequação de seus
produtos às especificidades das pessoas com deficiência.

154 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
assim, um aumento do uso de automóveis, assim como também ocasionou
a desorganização do espaço público, a criação de barreiras urbanísticas
que impedem o livre trânsito das pessoas com deficiência e, portanto,
fomentam a sua exclusão (BARBOSA, 2015, p. 147).
Dessa forma, compreendemos o direito à acessibilidade como
um direito que possibilita que as pessoas com deficiência exerçam a
sua cidadania, isto é, a acessibilidade possibilita a realização dos seus
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Pois, “sem
os espaços adaptados, não se tem acessibilidade, e, sem esta, não há
direitos iguais, não há inclusão social” (LEITE; PIVA, 2019, p. 332).
Nesse sentido, devemos salientar que a opressão por deficiência, de
acordo com James Charlton (2000), se dá através de três componentes: o
político-econômico; o cultural; e o psicológico. Destacamos o primeiro
desses componentes, que demonstra que as pessoas com deficiência estão
inseridas em um contexto, majoritariamente, de pobreza (CHARLTON,
2000, p. 37). Isso vai significar piores condições de vida para essas
pessoas, piores condições de acesso aos espaços públicos, sejam eles
de sociabilidade ou de assistencialismo, piores condições de acesso à
tecnologia, à educação, ao trabalho.
Por outro lado, ainda que a urbanização tenha se tornado um
fenômeno totalizante, cabe notar alguns aspectos sobre a mobilidade e
acessibilidade no campo. Em consequência da urbanização, os espaços
rurais se mostram cada vez mais distantes das políticas sociais públicas,
em virtude de uma visão dualista que contrapõe o campo, como o lugar
do atraso, e a cidade, como lugar do progresso (KRAEMER, 2013, p.
20-21 apud GARCIA, 2015, p. 44). O que contribui para a exclusão social
das pessoas com deficiência que habitam o campo. Acrescentando-se a
esse contexto uma perspectiva racial, de gênero e de classe, vemos que a
exclusão desse grupo dos projetos políticos estatais é ainda mais grave.

4 ELEMENTOS PARA ALTERNATIVAS

Cabe delinear alguns elementos para alternativas no que tange


aos direitos das pessoas com deficiência. Primeiramente, é importante
destacar a mudança do paradigma biomédico em direção a um modelo
social de entendimento sobre as pessoas com deficiência, isto é, neste
modelo biológico, em consonância com os desenvolvimentos das ciências
médicas, a deficiência era caracterizada como algo cuja responsabilidade se

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 155


relações internacionais
devia somente a essas pessoas (SPINIELI; SOUZA, 2020, p. 3). Através de
tal mudança de paradigma, a forma como é entendida as deficiências desse
grupo e das formas como se pode realizar o enfrentamento sociojurídico se
deslocaram para uma base mais ampla, constituindo assim, a possibilidade de
que tais pessoas pudessem reivindicar a inclusão social em todos os âmbitos da
vida social. Nesse sentido, a acessibilidade urbanística ganha relevo enquanto
arena de disputa pelos direitos humanos das pessoas com deficiência, visto
que “apenas é possível falar em plena inclusão da pessoa com deficiência na
medida em que há um plano de acessibilidade em todos os âmbitos da vida
comum dessas pessoas” (SPINIELI; SOUZA, 2020, p. 3).
A partir de então, em concordância com Adriana Barbosa, devemos
reconhecer a mobilidade como condição estratégica para a inclusão das
pessoas com deficiência, visto que a mobilidade urbana acessível é condição
indispensável para a sua inclusão na sociedade, para que a sua cidadania possa
ser exercida, e para que possam exercer seus papéis sociais com dignidade.
Esse reconhecimento perpassa por uma necessidade de reurbanizar as
cidades; por uma reivindicação das estratégias de acessibilidade, isto é, pela
luta dos movimentos sociais integrados; pela identificação das dificuldades
de mobilidade, levando em conta a complexidade da mobilidade urbana no
contexto contemporâneo. Além disso, o uso da tecnologia para promover
a mobilidade urbana, com mais investimentos e financiamentos, levando
iniciativas de mobilidade para as áreas periféricas das cidades, assim como
para o campo (BARBOSA, 2016, p. 145).
Nesse sentido, “uma política de mobilidade urbana que contemple
as pessoas com deficiência não pode estar dissociada de desafios mais amplos
que envolvem a reformulação de valores hegemônicos e práticas sociais”
(IMRIE, 2000 apud BARBOSA, 2016, p. 148). Assim, faz-se necessário a
contestação dos valores culturais hegemônicos que fomentam a opressão
por deficiência. O empoderamento desse grupo, portanto, vai contra a falsa
consciência, ou alienação, que obscurece a origem da sua opressão, que
constrói uma autoimagem distorcida, fazendo-os acreditarem serem seres
inferiores (CHARLTON, 2000, p. 27). Esse empoderamento transforma a
visão da deficiência de uma condição médica para uma condição humana,
que vai deslocar a percepção de seus direitos, isto é, passaria de uma ideia
de “bem-estar dos deficientes”, para uma ideia de direitos humanos das
pessoas com deficiência (CHARLTON, 2000, p. 115).
Assim, compreendendo este problema a nível coletivo, tornar
efetivo o que está posto formalmente nos documentos jurídicos é de

156 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
primeira importância. Além disso, a adequação dos espaços públicos e
privados ao desenho universal permitiria a construção de ambientes que
possam ser acessados e compreendidos pelo máximo de pessoas possível,
contribuindo para a inclusão do grupo em questão. Mas, mais do que isso, é
necessária uma atuação conjunta da sociedade civil com o Estado de forma
a transformar a mentalidade capacitista da sociedade atual, constitui-se
como um passo necessário para a realização dos direitos das pessoas com
deficiência, como cidadãos e como sujeitos de direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A inclusão das pessoas com deficiências na sociedade


contemporânea ainda esbarra em construções culturais capacitistas, de uma
sociedade capitalista e excludente. Ainda que existam marcos jurídicos
importantes a que essas pessoas possam recorrer, a estrutura social e
cultural da sociedade atual inibe a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária, que se mostra ainda mais grave quando levado em consideração
recortes de classe, gênero e raça. Podemos dizer, no entanto, de acordo com
o que foi exposto, que houve um significativo avanço quanto aos direitos das
pessoas com deficiência, quanto às legislações, ao compromisso do Estado
com seus direitos, e à consideração dos direitos das pessoas com deficiência
como direitos humanos; avanços estes sintetizados, especialmente, na
CDPD e no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Desse modo, o lema “nada sobre nós, sem nós” marca uma
importante mobilização política quanto à mudança da mentalidade atual.
Nesse sentido, esse lema vai contra a opressão por deficiência em seus
aspectos culturais, psicológicos e políticos, visto que torna essas pessoas
atores essenciais na construção de iniciativas referentes às pessoas com
deficiência, demonstrando a sua capacidade – até então negada – de atuar
como sujeitos de direitos.
Portanto, projetos inclusivos de mobilidade urbana, a construção
de projetos urbanísticos inclusivos que integrem o desenho universal,
tendo em vista o direito à cidade como um direito coletivo e fundamental,
sem o qual a cidadania não pode ser exercida de fato e, portanto, que
impede a realização de seus papéis sociais de forma digna. Soma-se a isso,
a aplicação, de fato, das legislações sobre os direitos do grupo em questão,
como iniciativas que visam à construção de uma sociedade mais inclusiva
e igualitária, na qual as pessoas possam realizar suas atividades cotidianas
com autonomia e dignidade.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 157


relações internacionais
REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Política. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin


Claret, 2003.
BARBOSA, Adriana Silva. Mobilidade urbana para pessoas com
deficiência no Brasil: um estudo em blogs. Urbe: Revista Brasileira de
Gestão Urbana, v. 8, n. 1, p. 142-154, 2015.
BRASIL. Lei nº. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira
de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 6 jul. 2015.
CAIADO, Kátia. Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas
com deficiências: destaques para o debate sobre a educação. Revista
Educação Especial, v. 35, n. 1, p. 329–338, 2009.
CHARLTON, James. Nothing about us without us: disability
oppression and empowerment. Berkeley: University of California Press,
2000.
DICHER, Marilu; TREVISAM, Elisaide. A jornada histórica da pessoa
com deficiência: inclusão como exercício do direito à dignidade da
pessoa humana. In: CONPEDI/UFPB (Org.). Direitos fundamentais e
democracia. João Pessoa: CONPEDI, 2015.
FARIAS, Alanna Larisse Saraiva de; SOARES JÚNIOR, Carlos Alberto.
Evolução histórica dos direitos das pessoas com deficiência e questões
associadas no Brasil. Id On Line: Revista Multidisciplinar e de
Psicologia, v. 14, n. 52, p. 59–76, 2020.
GARCIA, Sandrine de Canes. Condições de vida das pessoas com
deficiência no meio rural. 2015. 90 p. Trabalho de Conclusão do Curso
(Graduação em Serviço Social) - Universidade Federal do Pampa,
Campus São Borja, São Borja, 2015.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução
urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
LEITE, Flávia Piva Almeida; PIVA, Rui Carvalho. Direito fundamental
difuso de acesso das pessoas com deficiência a espaços urbanos e sua
tutela jurídica coletiva. Revista Jurídica UniCuritiba, Curitiba, v. 2, n.
55, p. 328-350, 2019.

158 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
PEREIRA, Jaqueline de Andrade; SARAIVA, Joseane Maria. Trajetória
histórico-social da população deficiente: da exclusão à inclusão. SER
Social, Brasília, v. 19, n. 40, p. 168-185, jan./jun. 2017.
SILVA, Otto Marques da. Epopeia ignorada. São Paulo: Editora Faster,
2009.
SPINIELI, André Luiz Pereira; CAMARGO, Milena dos Santos. Pessoas
com deficiência e a Agenda 2030 da ONU: desafios contemporâneos
frente ao direito à educação inclusiva. Boletim de Conjuntura (BOCA),
Boa Vista, v. 5, n. 13, p. 85-93, 2021.
SPINIELI, André Luiz Pereira; SOUZA, Letícia de Paula. A dimensão
cidadã do direito à cidade: mobilidade urbana para as pessoas com
deficiência. RELACult - Revista Latino-Americana de Estudos em
Cultura e Sociedade, v. 6, n. 1, p. 1-11, 2020.
TAHAN, Adalgisa Pires Falcão. A universalidade dos direitos humanos.
In: SILVEIRA, Vladimir Oliveira da; CAMPELLO, Lívia Gaigher Bósio
(Orgs.). Estudos e debates em direitos humanos. São Paulo: Letras
Jurídicas, 2012. v. 2.
TAVARES, Luzia Helena Galaxe de Lima. PCD e o SUAS: uma
história de inclusão? In: V JUBRA – Simpósio Internacional sobre a
Juventude Brasileira, Recife, 2012.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 159


relações internacionais
ANÁLISE SOBRE OS ATAQUES BOLSONARISTAS AOS
DIREITOS HUMANOS E A REAÇÃO INTERNACIONAL

ANALYSIS OF BOLSONARO’S ATTACKS ON HUMAN RIGHTS


AND THE INTERNATIONAL REACTION

Bruna Carbone*
Danielle Moura Santos**
Flávia Caldeira dos Santos***
João Victor da Silva Freitas****
Letícia Rodrigues Bernardino*****

RESUMO: A Declaração Universal dos Direitos Humanos é o documento que determina os


direitos básicos dos indivíduos a fim de garantir a dignidade humana. Apesar de dificuldades serem
inerentes à aplicação plena dos direitos, desde o início do governo do presidente Jair Bolsonaro, o
desprezo por essa pauta tem crescido exponencialmente. Neste artigo, buscamos expor o que está
por trás desse desinteresse, através de declarações, ações e omissões de Bolsonaro desde antes de
sua eleição até a pandemia da Covid-19.
Palavras-chave: Bolsonaro. Covid-19. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Direitos
humanos. Organização das Nações Unidas.
ABSTRACT: The Universal Declaration of Human Rights is the document that determines the basic
rights of individuals in order to ensure human dignity. Although rights are difficult to fully enforce,
since the beginning of Jair Bolsonaro’s government, the indifference for this agenda has grown
exponentially. In this article, we seek to show what is behind this disinterest, through Bolsonaro’s
statements, actions and omissions since before his election until the Covid-19 pandemic.
Keywords: Bolsonaro. Covid-19. Universal Declaration of Human Rights. Human rights. United
Nations.
*
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Participou do Centro de Estudo e Pesquisa sobre Corrupção (CEPC). E-mail: bruna.
carbone@unesp.br.
**
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Participou do Centro Acadêmico de Relações Internacionais (CARI), do grupo de
Marketing Internacional (MKI), do Núcleo de Estudos da Tutela Penal dos Direitos
Humanos (NETPDH) e do Observatório de Política Exterior (OPEX). E-mail: danielle.
moura@unesp.br.
***
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Faz parte do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas (NEPPs) e da ENACUTS.
Participou do Centro Acadêmico de Relações Internacionais (CARI), do Núcleo de
Estudos da Tutela Penal dos Direitos Humanos (NETPDH) e do Observatório de Política
Exterior (OPEX). E-mail: flavia.caldeira@unesp.br.
****
Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Faz parte da ENACTUS e participou do Núcleo de Estudos em Políticas Públicas
(NEPPs). E-mail: jv.freitas@unesp.br.
*****
Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).
Participou do Centro de Estudo e Pesquisa sobre Corrupção (CEPC) e do Observatório de
Política Exterior (OPEX). E-mail: leticia.bernardino@unesp.br.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 161


relações internacionais
INTRODUÇÃO

O Estado brasileiro, tendo sido um dos primeiros signatários da


Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948), se mostrou no
decorrer das décadas seguintes a redemocratização empenhado em aproximar
a estruturação do Governo à defesa dos direitos tidos como naturais e
irrenunciáveis – ainda que com suas limitações práticas –, fazendo jus a
intrínseca relação do Estado de Direito e os direitos humanos (SILVA, 2019).
Entretanto, esta proximidade se viu extremamente abalada e até
mesmo antagonizada com a ascensão ao poder de Jair Messias Bolsonaro,
tendo em vista que desde sua campanha eleitoral a propagação de discursos
de ódio (SILVA, 2019) e, após sua eleição, o evidente descaso com a pauta,
apesar de seu peso constitucional, evidenciado o ataque ou esquecimento de
diversos setores da sociedade civil, principalmente àqueles já considerados
em situação de vulnerabilidade social. Esta situação se viu agravada ainda
com a eclosão da pandemia do Covid-19, devido ao exacerbado negacionismo
de Bolsonaro quanto à gravidade da situação e sua negligência no que diz
respeito à atuação para mitigar o caos da pandemia vivida. Ademais, esta
situação aparenta uma cortina de fumaça para afetar núcleos da população
específicos, como, por exemplo, indígenas1.
Este artigo tem como objetivo aglutinar as principais evidências
da descredibilização aos Direitos Humanos e a sua importância pelo
Governo de Bolsonaro. Ainda que longe de ser uma análise exaustiva,
deseja apresentar análises iniciais de modo a incitar discussões acerca de
qual é o intuito desse posicionamento e a importância de espaços como
o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, tendo em vista o caráter
universal desta luta.
Para tal, o artigo é dividido em cinco outras partes para além desta,
sendo a primeira destinada a contrastar os direitos humanos no Brasil e
os valores, discursos e ações dissipadas pelo governo de Bolsonaro,
referenciado este conjunto como bolsonarismo. Além disso, levanta,
mesmo que de modo ligeiro, o histórico da relação do Estado brasileiro
com os direitos humanos.
A parte seguinte busca elencar algumas das infrações cometidas
pelo governo vigente. A terceira seção, por sua vez, se concentra em abordar
a repercussão das referidas infrações por meio da análise das principais
1
Esse efeito pode ser interpretado como meio para concretizar as promessas eleitorais
do atual presidente brasileiro, que desde sua campanha declarou seu intuito de reduzir as
áreas indígenas já demarcadas, além de explorar esses territórios.

162 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
denúncias feitas a órgãos internacionais. A penúltima seção procura fazer,
ainda que sem grandes pretensões, ponderações acerca do que pode se
esperar da relação entre o governo de Bolsonaro e os direitos humanos a
partir de então. E, por fim, a quinta parte se dedica a sintetizar a discussão
apresentando considerações finais sobre esta.

1 OS DIREITOS HUMANOS NO BRASIL E O BOLSONARISMO

O conjunto de ideias ao qual se refere o termo “bolsonarismo”


frequentemente encontra em sua semântica referências aos direitos humanos,
mais precisamente, à oposição e recusa destes direitos, em um movimento
estratégico para o fortalecimento de sua retórica política (SILVA, 2019, p.
148-149). O discurso de ódio e de banalização da violência entoado pelo
atual presidente da República Jair Messias Bolsonaro atenta diretamente
contra princípios norteadores da DUDH (1948), entre eles, e com especial
ênfase, o principal: o respeito à dignidade da vida humana. Uma das causas
mais prováveis para a negação dos direitos humanos ter ecoada na sociedade
civil está relacionada ao problema da segurança pública brasileira aliado ao
sentimento de antipetismo no qual se apoia o bolsonarismo.
Adotada e proclamada no dia 10 de dezembro de 1948, na
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), a DUDH
representa um marco legal fundamental à construção do horizonte
democrático. Ao longo de seus trinta artigos, a DUDH busca cobrir os
aspectos da vida humana que proporcionam condições básicas de dignidade
e que podem, e devem, ser reivindicados no exercício da cidadania. A DUDH
promove o reconhecimento do indivíduo como portador de direitos naturais
e irrenunciáveis que devem ser protegidos e assegurados pelo Estado,
consolidando a soberania da comunidade humana – concessora dos direitos
naturais – em relação à comunidade política. A partir do momento em que o
cidadão passa a ser reconhecido pelo seu direito a ter direitos (SILVA, 2019,
p. 136), a atuação na vida pública, seja por meio da participação ou da
expressão política, torna-se condição importante para a consolidação dessa
posição. Assim, é correto afirmar que os direitos humanos são tão cruciais à
democracia quanto o Estado democrático é aos direitos humanos.
Do ponto de vista internacional, a DUDH é o parâmetro
basilar para a elaboração de acordos e ações, uma vez que reconhece o
comprometimento dos atores signatários em adotar leis e políticas públicas
que contribuam para o pleno desenvolvimento dos povos. O Brasil foi

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 163


relações internacionais
uma das primeiras nações a ratificar a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, tendo a incorporado na Constituição Federal de 1988. Porém,
em se tratando da concretização efetiva destes direitos, o país se mostra
distante de uma sociedade justa e democrática.
Falar sobre o fracasso brasileiro diante dos direitos humanos
começa com as profundas desigualdades sociais e econômicas que assolam
o país e são perpetuadas pelo Estado. O projeto político conservador, elitista
e racista (resquícios da formação colonial) se mantém ativo no núcleo do
Estado e reproduz seus preconceitos por meio da distribuição de direitos.
A assistência estatal não alcança as populações periféricas e rurais - menos
ainda se forem nortistas ou nordestinas, situação que dificulta o acesso
dessas populações à direitos básicos, tais como educação, saúde, lazer e
cultura. As desigualdades estão presentes também no sistema judiciário. A
violência policial contra populações pretas e periféricas é uma constante
nos governos, independente de partidos.
Emanuel Freitas da Silva aponta que apesar dos avanços em
matéria de direitos humanos, os governos petistas protagonizaram recuos
significativos. A entrada de setores progressistas no governo federal a
partir da eleição de Lula em 2002 (SILVA, 2019, p. 139) proporcionou
a implementação de políticas públicas favoráveis à promoção de direitos
humanos, como por meio da redução das desigualdades, do combate ao
racismo, da defesa das mulheres, da diminuição do desmatamento da
Amazônia, entre outros. Porém, alianças políticas entre as gestões petistas
e governos estaduais encobriram a brutalidade dos agentes do Estado
(SILVA, 2019, p. 139). Estudo publicado em 2017 afirma que entre 2003
e 2015, 11.343 pessoas foram mortas em consequência de ações policiais,
sem que houvesse algum tipo de medida estatal para barrar o avanço destes
números (JATOBÁ, 2017, p. 207-214). Além disso, o mesmo estudo
aponta que a política de encarceramento lançou o país à quarta posição
mundial em relação à população carcerária. Entretanto, estes dados em
nada ajudaram a conter os números de crimes violentos, segundo Jatobá
também em estudo de 2017. Ao final de 2014, a taxa era de 29,4 mortes
violentas por 100.00 habitantes (JATOBÁ, 2017, p. 207-214).
A reação da sociedade civil diante do que está acima exposto
seguiu duas linhas de raciocínio: por um lado, para os ativistas de direitos
humanos tornava-se imperativo advogar em prol da defesa dos grupos
vitimizados pela ação truculenta do Estado, representado pela polícia,
por outro lado, uma parcela considerável da população, motivadas pela

164 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
sensação de insegurança, ansiava por mais militarização e por punições
mais severas aos criminosos. É no choque entre estas duas linhas que nasce
o apoio bolsonarista (SILVA, 2019, p. 142). O grande apelo pela garantia
de direitos humanos fortemente atrelada aos direitos das populações
pretas, periféricas e carcerárias levou ao desinteresse da população em
compreender a extensão do que são os direitos humanos.
Uma pesquisa realizada em 2018 pelo Instituto Ipsos deixou
evidente esta relação: 66% dos entrevistados acreditam que os “direitos
humanos defendem mais os bandidos do que as vítimas”2. Nesse sentido,
a defesa dos direitos humanos hoje no Brasil está mais associada à defesa
de minorias por grupo de esquerda do que à garantia de uma vida digna aos
cidadãos em totalidade.
Bolsonaro, capitão reformado do exército, com 30 anos de
carreira parlamentar, ultradireitista, homofóbico, racista e tantas outras
atribuições correlatas, armado com o antipetismo e o olavismo (base
ideológica do governo inspirada pelas ideias de Olavo de Carvalho)3, é a
imagem de um governo infértil ao desenvolvimento dos direitos humanos
e de ameaça à democracia.

2 ATAQUES DIRETOS E INDIRETOS AOS DIREITOS HUMANOS

Figura saudosista à Ditadura Militar de 1964 e seus personagens4,


Bolsonaro que era considerado um parlamentar do baixo clero na Câmara
dos Deputados, conseguiu se eleger com um discurso anticorrupção,
à favor de medidas mais duras contra as pessoas que infringem a lei e
contra direitos humanos alegando que estes, no Brasil, se aplicam apenas
à “bandidos, estupradores, marginais, sequestradores e corruptos” 5. Tendo
isso em vista, fica nítido a relação entre o resultado da pesquisa do Instituto
Ipsos mencionada na última seção e o sucesso da campanha de Bolsonaro
em 2018. Dentre as diversas declarações desde à época de deputado até
o exercício pleno da presidência, o mandatário foi denunciado inúmeras
vezes em diferentes órgãos internacionais em razão de sua postura perante
2
O estudo pode ser localizado em: ipsos.com/pt-br/63-dos-brasileiros-sao-favor-dos-
direitos-humanos.
3
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: brasil.elpais.com/brasil/2018/10/19/
politica/1539969259_171085.html
4
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-afirma-que-
torturador-brilhante-ustra-e-um-heroi-nacional/
5
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: folha.uol.com.br/poder/2014/12/1559815-para-
rebater-deputada-bolsonaro-diz-que-nao-a-estupraria.shtml

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 165


relações internacionais
alguns grupos e suas infrações (diretas ou indiretas) aos Direitos Humanos.
Nesta seção, iremos elencar algumas dessas infrações.
A primeira infração seria aos arts. 19 da DUDH6 e 13.1 da
Convenção Americana dos Direitos Humanos (CADH)7. Ambos os artigos
dizem respeito à garantia da liberdade de expressão e da difusão de ideias e
informações por qualquer forma de manifestação. Dentre os vários setores
da sociedade apontados como “inimigos” pelo presidente, Jair Bolsonaro
tem uma relação especialmente conflituosa com a imprensa brasileira.
Um levantamento feito pela ONG Repórteres Sem Fronteiras, diz que o
Brasil caiu duas posições no ranking mundial de liberdade de imprensa
de 2019 para o ano seguinte. Além disso, a ONG ainda apontou 103
ataques do presidente à imprensa, entre ofensas, retirada de credibilidade,
impedimento de cobertura, entre outros, apenas em 2020. Há ainda
constantes questionamentos ao sigilo das fontes, sendo este resguardado
pela Constituição Federal de 1988, e processos judiciais contra jornalistas
investigativos tidos como abusivos8.
A segunda infração listada é sobre os arts. 5º tanto da DUDH9
quanto no 5.2 da CADH10. São esses artigos referentes à integridade pessoal
do indivíduo, sendo um direito deste não sofrer torturas e tratamentos
cruéis. Apesar de não ter efetivamente praticado à tortura física, o chefe de
estado brasileiro já se mostrou favorável à prática em mais de uma ocasião.
Entre elas, em 2016, o então deputado afirmou que o erro da ditadura foi
torturar e não matar, durante o programa Pânico, na rádio Jovem Pan.
No mesmo ano, Bolsonaro dedicou o voto a favor do impeachment da
então presidente Dilma Rousseff a Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel
reconhecido pela Justiça como torturador durante o período da Ditadura
Militar. E em 2020, ainda ironizou em frente ao Palácio da Alvorada as
torturas sofridas por Rousseff na Ditadura de 1964, dizendo que a mesma
6 “
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; esse direito inclui a
liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações
e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
7 “
Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito
compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda
natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma
impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”.
8
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/
deutschewelle/2020/04/21/com-bolsonaro-liberdade-de-imprensa-se-deteriora-no-brasil-
diz-ong.htm.
9
Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante”.
10
Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou
degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à
dignidade inerente ao ser humano”.

166 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
deveria mostrar o raio-X da fratura da mandíbula que a ex-presidente
afirmou ter sofrido11.
A terceira infração diz respeito ao art. 25.1 da DUDH12 que fala
sobre as condições mínimas que devem ser asseguradas como assistência
médica e serviços sociais básicos para a garantia do bem-estar dos
indivíduos. Neste parágrafo podemos evidenciar o descaso de Bolsonaro
em relação à pandemia da Covid-19. Destacam-se as declarações contrárias
à vacina e às recomendações da OMS como o uso da máscara e a ineficácia
do tratamento precoce com cloroquina e outros medicamentos13. E a
irresponsabilidade em ações que poderiam ter poupado vidas, como a
demora na compra das vacinas14. Tudo isso culminou em uma perda na
qualidade de vida e bem-estar que deveriam ser garantidos.
A última citação é à infração a alguns artigos da Declaração
das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007). Essa
declaração nasceu após anos de negociações, nas quais os indígenas
foram resistentes em ceder às pressões de países como Estados Unidos e
Austrália15. Entre os artigos, podemos citar os artigos 7º, 8º, e 26. O 7º é em
relação a preservação da integridade física e mental dos indígenas, assim
como o direito à paz e a proteção a genocídios16. O 8º remete a constituição
de mecanismos eficazes para prevenir ações de indivíduos que queiram

11
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: valor.globo.com/politica/noticia/2020/12/28/
bolsonaro-debocha-de-tortura-sofrida-por-dilma-que-responde-sociopata.ghtml.
12
Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua
família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos
e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego,
doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em
circunstâncias fora de seu controle”.
13
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: folha.uol.com.br/poder/2021/03/relembre-o-
que-bolsonaro-ja-disse-sobre-a-pandemia-de-gripezinha-e-pais-de-maricas-a-frescura-e-
mimimi.shtml.
14
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: bbc.com/portuguese/brasil-56160026.
15
Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Declaracao_da_ONU_sobre_direitos_
dos_povos_indigenas.
16
Os indígenas têm direito à vida, à integridade física e mental, à liberdade e à segurança
pessoal. 2. Os povos indígenas têm o direito coletivo de viver em liberdade, paz e
segurança, como povos distintos, e não serão submetidos a qualquer ato de genocídio ou
a qualquer outro ato de violência, incluída a transferência forçada de crianças do grupo
para outro grupo”.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 167


relações internacionais
subtrair terras, territórios e recursos indígenas17. E, por fim, o 26º afirma
que os indígenas têm direito às terras, territórios e recursos de locais que
já ocupam ou que lhes foram concedidos de alguma maneira18. Todas essas
garantias e direitos devem ser assegurados pelo Estado, de acordo com a
Declaração de 2007.
Podemos exemplificar as infrações com alguns aspectos de
comportamento e ações. O presidente Jair Bolsonaro afirmou durante
sua campanha eleitoral que não demarcaria mais terras indígenas e
buscaria reduzir as áreas já demarcadas. Apesar de não ter cumprido a
segunda promessa, a primeira, de fato, foi consumada, não havendo
novas demarcações desde o início de seu governo. Além da contrariedade
à demarcação, é conhecido o desejo do presidente em explorar as terras
indígenas com a mineração e a expansão do agronegócio. Outro exemplo é
a baixa fiscalização no interior do Brasil, especialmente nas regiões Centro-
Oeste e Norte, culminando em queimadas que prejudicam as terras e os
recursos indígenas. Isso tudo provoca desequilíbrio, mortes e perseguições
a esses povos de modo a não haver a garantia de direitos que são dever do
Estado brasileiro prover.
Em suma, essas são algumas das infrações cometidas ou
incentivadas, direta ou indiretamente, por Jair Messias Bolsonaro. Essas
infrações são reflexos de uma figura que cresceu em popularidade dizendo
ser contrário aos direitos humanos, durante a corrida presidencial, em
2018. Como aponta Emanuel Freitas da Silva (2019), há uma relação entre
os discursos contrários aos direitos humanos proferidos por Bolsonaro, e
o resultado de pesquisas realizadas em 2018 de eleitores que reproduziam
e concordavam com o mesmo tipo de narrativa contrária aos direitos
17
Os povos e pessoas indígenas têm direito a não sofrer assimilação forçada ou a
destruição de sua cultura. 2. Os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a
prevenção e a reparação de: a) Todo ato que tenha por objetivo ou consequência privar os
povos e as pessoas indígenas de sua integridade como povos distintos, ou de seus valores
culturais ou de sua identidade étnica; b) Todo ato que tenha por objetivo ou consequência
subtrair-lhes suas terras, territórios ou recursos. c) Toda forma de transferência forçada
de população que tenha por objetivo ou consequência a violação ou a diminuição de
qualquer dos seus direitos. d) Toda forma de assimilação ou integração forçadas. e) Toda
forma de propaganda que tenha por finalidade promover ou incitar a discriminação racial
ou étnica dirigida contra eles”.
18
Os povos indígenas têm direito às terras, territórios e recursos que possuem e ocupam
tradicionalmente ou que tenham de outra forma utilizado ou adquirido. 2. Os povos
indígenas têm o direito de possuir, utilizar, desenvolver e controlar as terras, territórios e
recursos que possuem em razão da propriedade tradicional ou de outra forma tradicional
de ocupação ou de utilização, assim como aqueles que de outra forma tenham adquirido.
3. Os Estados assegurarão reconhecimento e proteção jurídicos a essas terras, territórios
e recursos. Tal reconhecimento respeitará adequadamente os costumes, as tradições e os
regimes de posse da terra dos povos indígenas a que se refiram”.

168 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
humanos. Nota-se que o discurso do presidente além de não apoiar, ainda
promove um grande descaso em relação aos direitos humanos.

3 A ESCALADA DE DENÚNCIAS AOS ÓRGÃOS


INTERNACIONAIS

Desde a eleição do ex-deputado federal Jair Bolsonaro para a


presidência do Brasil observa-se um significativo aumento das denúncias
à órgãos internacionais em decorrência de violações dos direitos humanos
provocadas pelo presidente. A ONU e a Organização dos Estados
Americanos (OEA) foram as entidades internacionais que mais receberam
tais denúncias.
Em julho de 2020, mais de 60 organizações nacionais
encaminharam um documento ao Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos - órgão responsável pela proteção e promoção
da legislação internacional existente na DUDH - no qual, conjuntamente,
argumentam sobre as diversas violações de Bolsonaro (MANIERO, 2020).
O documento relata desde as ações governamentais que acentuaram os
riscos das populações mais vulneráveis à pandemia de Covid-19 até a falta
das mesmas em questões essenciais como o meio ambiente, a violência
contra os indígenas, o racismo institucional e políticas públicas no geral.
Além disso, afirmam que a pandemia está sendo encarada pelo governo
como uma oportunidade para violar os direitos humanos sem a atenção da
sociedade. A invasão de terras indígenas por garimpeiros e o aumento da
violência de gênero são alguns exemplos desse contexto.
As reações e denúncias existentes atualmente cerceiam
principalmente questões relacionadas à pandemia, aos ataques a jornalistas
nacionais, a população indígena e a defesa da ditadura e da tortura. Em
setembro de 2020, foram apresentados ao Conselho de Direitos Humanos
da ONU dados que somam um total de 449 ataques à imprensa desde
janeiro de 2019, atitude do governo que se tornou comum. Como resposta
ao relatório, os diplomatas do Ministério das Relações Exteriores do Brasil
argumentaram que a Constituição Federal defende a liberdade de expressão
à todos – incluindo o Chefe de Estado – e que estão “lutando para defender
os trabalhadores da imprensa”19.

19
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: noticias.uol.com.br/colunas/jamil-
chade/2020/09/28/denuncia-na-onu-bolsonaro-e-aliados-realizaram-449-ataques-contra-
imprensa.html

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 169


relações internacionais
Nesse contexto, a questão da pandemia está em grande parte das
denúncias. Em uma delas, entidades religiosas como o Conselho Nacional
de Igrejas Cristãs no Brasil (CONIC) e o Conselho Indigenista Missionário
(CIMI) relataram ao Alto Comissariado da ONU que a pandemia no
Brasil está sendo encarada com uma atuação econômica, política e
social negacionista. Tal posicionamento favorece a desinformação e não
salvaguarda os direitos da população brasileira. O objetivo central das
entidades é clamar por maior pressão internacional em direção ao governo
bolsonarista, uma vez que este falha com a sociedade e não se mostra
digno de confiança.
Em maio de 2020, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) da OEA recebeu relatos de uma série de violações do
governo Bolsonaro. Os relatores - lideranças de órgãos e organizações
nacionais - argumentaram que o presidente está agindo de uma maneira
que desprotege as populações mais vulneráveis ao contrariar as autoridades
sanitárias, aparecer em aglomerações e propagar a desinformação e o
negacionismo sobre a gravidade da pandemia. Além desta, o Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também apresentou
denúncia à OEA referente à atuação do presidente no combate ao covid-19.
Em janeiro deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos também recebeu denúncias contra Jair Bolsonaro pelos insultos
às vítimas da ditadura militar e por violações dos direitos humanos relatados
em uma carta feita pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), o Instituto
Vladimir Herzog e o Núcleo de Preservação da Memória Política. Além
dos insultos, a denúncia traz declarações como a negação da tortura na
ditadura e as homenagens a militares torturadores feitas pelo presidente20.
Os povos indígenas foram um dos mais atingidos pelas ações - e
falta de ações - de Bolsonaro. Desde 2019, os ataques violentos e invasões
às terras indígenas crescem de maneira descontrolada, principalmente pelo
abandono do governo federal e pela falta de políticas públicas voltadas à
proteção desses povos. Como consequência, a Procuradoria do Tribunal
Penal Internacional (TPI) decidiu, em dezembro de 2019, iniciar uma
investigação sobre as denúncias de violações contra os povos indígenas,
encaminhadas pela Comissão Arns e pelo Coletivo de Advocacia em
Direitos Humanos (CADHu). De acordo com um membro fundador da
20
Nesse sentido, ver a seguinte notícia sobre o episódio em que a Corte internacional
acatou a denúncia do PSOL e de entidades de direitos humanos contra governo Bolsonaro:
psol50.org.br/corte-internacional-acata-denuncia-do-psol-contra-governo-bolsonaro-
por-homenagem-a-torturadores/. Acesso em: 25 Fev 2021

170 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
Comissão Arns, Belisário dos Santos Júnior, as denúncias referem-se a
fatos cometidos e inclusive noticiados21.
O Tribunal Penal Internacional (TPI) é responsável pela
investigação e julgamento de pessoas acusadas por crimes que abalam
a comunidade internacional como crimes contra a humanidade e crimes
de guerra. Surgido em 1998, o tribunal entrou em vigor em 2002 quando
obteve a adesão de sessenta países. Apesar das inúmeras denúncias,
Bolsonaro não foi julgado por nenhuma entidade internacional.

4 O QUE ESPERAR?

Destarte todas estas acusações contra Jair Bolsonaro em diversos


órgãos internacionais, suas consequências para o país podem ser gravíssimas.
A posse de Joe Biden como 46º. Presidente dos Estados Unidos da América
mudou o panorama mundial, não só no âmbito dos direitos humanos,
como economicamente e socialmente, e se distanciando do espectro antes
paralelo entre Donald Trump e Bolsonaro. A aproximação entre os dois
chefes de Estado coloca em foco o despreparo e a desinformação pregada
por ambos, principalmente após a crise pandêmica de Covid-19.
De acordo com a projeção feita pela entidade Human Rights Watch
(HRW) em janeiro de 202122, a nova administração da Casa Branca deve
conduzir, como critério definidor de suas parcerias, em especial econômicas,
o respeito aos Direitos Humanos, se afastando de governos autoritários e
alinhamentos com governos de extrema-direita, como é o caso do Brasil.
A União Europeia também está tendo reações quanto a estas
denúncias, já que o acordo entre Mercosul e União Europeia estagnou,
em grande parte devido às políticas de desmatamento da Amazônia, e
o agronegócio nacional vem sofrendo abalos à medida que Bolsonaro
afrouxar as restrições de desmatamento e suas declarações ofensivas ao
direito dos povos indígenas e o respeito ao meio ambiente.
Internamente, importantes instituições brasileiras têm tomado
medidas para tentar conter os avanços de políticas contra os direitos humanos
propagados pelo governo de Bolsonaro. O Supremo Tribunal Federal (STF)
tem sido fundamental para impedir essas políticas genocidas de desinformação
disseminadas, como a suspensão da lei de acesso à informação, utilizada para
omitir casos de infecção e mortes por Covid-19 em todo o Brasil.
21
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: brasildefato.com.br/2020/12/18/tribunal-penal-
internacional-investiga-bolsonaro-o-que-isso-significa
22
Disponível em: hrw.org/pt/news/2021/01/13/377542

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 171


relações internacionais
Isto posto, torna-se evidente a influência da pressão internacional
na fiscalização da vitalidade dos direitos humanos diretamente lesados,
como ocasionado nos exemplos supracitados. No entanto, no que diz
respeito à gestão dos direitos já vigorados, a fiscalização é minada pela
discricionariedade do Poder Executivo e pode ser observada a negligência
nas questões de saúde pública desde o início do mandato presidencial.
De acordo com a Folha de São Paulo23, em 2019 o Brasil não
atingiu a meta de vacinação infantil pela primeira vez no século. O
cenário do primeiro ano de mandato já tornaria possível traçar uma análise
prospectiva do que seria uma pandemia sob condução de Jair Bolsonaro,
mas há de se dizer que só a mais precisa das análises poderia se aproximar
do contexto atual. Sua inércia em relação ao enfraquecimento do SUS,
a completa ausência de proteção para os trabalhadores e a resistência às
políticas restritivas, demonstram o descaso do presidente pela vida; saúde;
segurança, e desencadeiam uma série de lesões a direitos paralelos, que se
desmantelam como em efeito dominó.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio da análise trazida, a concepção errônea e distorcida do


conceito de direitos humanos demonstra uma interpretação subjetiva do
que é e a quem deve servir. Evidencia-se um esvaziamento da compreensão
do caráter humano e universal dos direitos humanos, em contrapartida
a incorporação rasa da suposta defesa de criminosos e bandidos. O
bolsonarismo, para além de ressaltar esse pensamento amplamente
difundido pela população brasileira, respaldou ataques diretos e indiretos
a esses direitos naturais.
O Brasil, assim como todos os Estados concordantes da DUDH,
deve possuir como diretrizes adotar leis e políticas públicas que contribuam
para o pleno desenvolvimento dos povos. Entretanto, mesmo durante os
governos tidos como progressistas, a defesa de direitos básicos e a garantia
à cidadania intercalaram-se entre avanços e regressos. Já no mandato de
Jair Messias, observamos que a questão foi lançada à queda livre.
As ações e medidas de Bolsonaro salientam seu Plano de Governo,
tendo se mostrado desde seus discursos iniciais, de cunho preconceituoso
nos mais variados âmbitos, indo do elitismo ao racismo, do preconceito
23
Nesse sentido, ver a seguinte notícia: folha.uol.com.br/cotidiano/2020/09/pela-
primeira-vez-no-seculo-brasil-nao-atinge-meta-para-nenhuma-das-principais-vacinas-
infantis.shtml

172 Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as


relações internacionais
religioso à xenofobia, entre outros. Seus ataques à liberdade de expressão,
à integridade pessoal do indivíduo e aos povos originários o despreparo e
desrespeito que não condiz com o cargo ao qual ocupa.
Nota-se não só um governo que é contra os Direitos Humanos
e sua defesa, como também se mostra intransigente quanto a seu
posicionamento. Nesse sentido, é de extrema importância a articulação de
organizações nacionais e internacionais para pressionar o cumprimento dos
direitos básicos dos cidadãos brasileiros. Além disto, o apelo a estes órgãos
pede por uma justiça, ainda que mínima, quanto ao não cumprimento dos
deveres como representante do Executivo brasileiro.
É necessário ainda destacar a proporção que tem um potência
regional como é o Brasil está regredindo em aspectos fundamentais como
os Direitos Humanos, sendo estes universais. Isso demonstra tamanho
despreparo do mandatário e o descredibilização da imagem do Estado
brasileiro frente a comunidade internacional, sendo sintomático em todos
os níveis da sociedade nacional, do social ao econômico, com sequelas
que podem perdurar por décadas se as ações - ou a falta destas - não forem
revogadas e tratadas com a devida importância.
Mesmo que não com o intuito de exaurir a discussão, o presente
artigo buscou incitar discussões diversas que se pode ter a partir do atual
governo e dos Direitos Humanos. Tendo como principais questões a
conceituação desta defesa e, também, retomar o papel de organizações,
da sociedade civil nacional e transnacional, além das organizações
governamentais.

REFERÊNCIAS

JATOBÁ, Edna. O cuidado para não jogar a água, a bacia e a criança. In:
MARINGONI, Gilberto; MEDEIROS, Juliano (Orgs.). Cinco mil dias: o
Brasil na era do lulismo. São Paulo: Boitempo, 2017.
MANIERO, Valéria. ONGs denunciam governo Bolsonaro na
ONU por violar direitos humanos na pandemia. UOL, 01 de julho
de 2020. Disponível em: noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/
deutschewelle/2020/04/21/com-bolsonaro-liberdade-de-imprensa-se-
deteriora-no-brasil-diz-ong.htm. Acesso em 16 jun. 2021.
SILVA, Emanuel Freitas da. Os direitos humanos no “bolsonarismo”.
Revista Conhecer, v. 9, n. 22, p. 133-163, abr. 2019.

Regimes Internacionais de Direitos Humanos: diálogos entre o direito e as 173


relações internacionais

Você também pode gostar