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* Antropólogo, professor adjunto do curso de Ciências Sociais do Centro de Ciências Humanas e Sociais
da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (CCHS/UFMS).
1 Este artigo é fruto de minhas pesquisas de mestrado e doutorado em Antropologia Social pelo Museu
Nacional, realizadas entre os anos de 2002 e 2008. Desde então, aconteceram mudanças significativas no
governo do estado do Rio de Janeiro. A FEEMA (Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente)
citada neste artigo foi extinta, e entrou em seu lugar o INEA (Instituto Estadual do Ambiente).
6 COSTA, Gustavo Villela Lima da. Memória e mudança social no povoado do Aventureiro (RJ): o passado revisitado...
2 Povoado com pouco mais de 100 habitantes, está localizado na parte sul da Ilha Grande, voltado para o
mar aberto.
3 A tutela é entendida aqui como uma forma de dominação específica (Oliveira Filho, 1988; Souza Lima,
1995) que prevê a superioridade inquestionável dos “tutores” – neste caso os funcionários do órgão
ambiental, que passam a vigiar a conduta dos moradores. Além disso, nessa dinâmica tutelar, o terri-
tório da Reserva Biológica foi definido à custa de um processo de alienação das dinâmicas internas do
povoado do Aventureiro (Costa, 2010b).
4 Este artigo, entretanto, não se concentrará nas complexas e conflituosas relações que se estabeleceram
entre o órgão ambiental e a população do Aventureiro, abordadas em outras publicações (Costa, 2010a,
2010b).
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O cotidiano do Aventureiro
Luís – Era tudo improvisado aqui. Tudo improvisado. Por exemplo, pra
trazer água pra casa tinha que cortar um bambu grossão, lascar eles todos,
levar lá, 200 metros daqui e vinha botando um no rabo do outro. A água
12 COSTA, Gustavo Villela Lima da. Memória e mudança social no povoado do Aventureiro (RJ): o passado revisitado...
vinha passando por dentro do bambu até chegar aqui. O colchão era de
esteira, que tirava lá na praia do Sul. Tinha aquela taboa, já ouviu falar na
taboa? O morador ia lá, cortava aquilo, trazia, chegava aqui, fazia aquelas
esteiras. Todo mundo tinha a sua pra dormir, ninguém tinha colchão. Foi
com o dinheiro da pesca mesmo que começou a aparecer umas espumas,
mas era baratinho, as espumas. Você comprava as mais fininhas, começou a
juntar pra comprar. Hoje em dia neguinho não junta dinheiro pra comprar
um gerador? Naquela época eles juntavam, economizavam pra comprar
colchão.
Janete (esposa de Luís) – Antigamente a gente não comia arroz com feijão
todo dia, não. Agora é todo dia. Antigamente a gente comia mais peixe.
Agora a gente sempre come, mais carne, mais frango, mais linguiça do que
peixe, agora. Legume, sempre que vou em Angra, eu compro.
Pesquisador – Como foi sua infância?
D. Santinha (mãe de Luís) – Era uma vida difícil. O Aventureiro era com-
pletamente diferente. Quem não conheceu aquele Aventureiro diz que
nunca foi. O Aventureiro era diferente. Agora com esse negócio de turismo,
até mesmo o pessoal do lugar, ficam assim, mais, sei lá, sem querer mais, até
com o trabalho da roça. Nosso dia a dia, nem escola tinha.
porque era obrigado, pra não passar fome, mas dizer que eu gostava, que
era acostumado... Pô, a coisa que eu mais gosto de fazer é quando chega
a noite, dormir. Na pesca não podia fazer isto, levava quatro, cinco noites
sem dormir e às vezes dormia até demais da conta. Ficava o dia preso den-
tro, a bordo do barco. É uma prisão, né? O barco é uma prisão flutuante.
D. Santinha – Dinheiro quase não existia, meu pai saiu daqui do Aventu-
reiro com meu avô, foram trabalhar quando abriu a primeira estrada em
Angra, estrada de ferro, que ia pra Barra Mansa. Foram pra lá, trabalharam
lá, ganhar um dinheirinho. Trabalhou fora. Meu tio Zé Cardoso foi guarda
no Abraão. Pra ganhar um dinheirinho foi trabalhar na estrada do Abraão
até a Colônia [penal]. Qualquer trabalho pegava. Então era duro, era brabo
mesmo.
P – E faziam o que com o dinheiro? Compravam o quê?
Luís – Pouca coisa. Vendia, comprava outras coisas. E ia juntando o dinheiro.
Ia juntando. Também não tinha muita coisa pra comprar, porque tinha tudo
aqui. No Provetá também não tinha muita coisa a vender. Não adiantava se
você pegasse um dinheiro no Provetá pra gastar, que não tinha como você
gastar. Hoje em dia tem um monte de novidade que traz pra cozinha, que
naquela época não tinha. Não tinha nada. Naquela época era só feijão, arroz,
mesmo, que não tinha nada pra vender. Um biscoito, só isso.
Alguns trechos das entrevistas mostram de que forma esse passado é lem-
brado a partir de hoje: destacam-se as ideias de isolamento e da necessidade de
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“Vovô” – O que acabou tudo foi os presos. Era a trava da Ilha Grande. A
trava da Ilha Grande era o presídio. Mas não era só a Colônia, era a Ilha
Grande toda, era uma trava, não entrava ninguém. Depois do presídio
acabou a união no Aventureiro. Acabou não, diminuiu. Antes era todas
as mulheres lá com a Lúcia, a Bieca, a mulher do Nezinho. E os homens
vigiando. Com o dinheiro, depois do fim do presídio, é só meu camping pra
cá, o meu pra lá, cada um por si.
D. Célia – Ah, a vida aqui era triste né? A gente aqui vivia entre a cruz e a
espada. Porque tava vendo uma hora, você ser morto. Medo mesmo. Todo
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Sublinho também que o trabalho com o turismo acabou por criar uni-
dades familiares mais independentes, entendidas pela população como mais
“egoístas” e menos envolvidas nas relações de troca:
Luís – Tem certos lugares lá que passa na televisão, aí, né? Casinha de estu-
que, casinha de sapê, entendeu? O Aventureiro foi assim igual um lugar
daquele. Só que tem uma diferença que lá tem a seca, né? Aqui não tinha
seca, aqui ninguém passava fome, mas não comia o que come hoje em dia.
Hoje em dia a gente come, passa bem, mas naquela época não. Era só peixe.
Só peixe e farinha tinha que fazer aqui... Banana, fruta-pão, essas coisas aí.
Feijãozinho só no final de semana, no meio de semana só uma moqueca de
peixe mesmo. Não tinha luxo nenhum, cara! Não tinha banheiro, tinha que
ir no mato. Por isso que todo mundo se ajudava mais, que todo mundo era
igual. A partir da hora que uns começaram a subir mais, outros começaram
menos. Começou, tipo assim, mais uma desunião, quase. Eu sinto isso, eu
vejo isso. Se melhora o camping já fica meio falado, entendeu? Já fica uma
inveja, assim. Já não tem mais aquele negócio de um fazer visita na casa do
outro. Visitava mais. Se reunia mais.
Considerações finais
Referências
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MINTZ, Sidney. Worker in the Cane: a Puerto Rican life history. New Haven; London: Yale
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OLIVEIRA FILHO, João Pacheco. O nosso governo: os Ticuna e o regime tutelar. São Paulo:
Marco Zero; Brasília: CNPq, 1988.
SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e
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TONKIN, Elizabeth. Narrating our past: the social construction of oral history. Cambridge:
Cambridge University Press, 1992.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.
Fontes orais
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Lima da Costa. Angra dos Reis, 16 ago. 2005.
D. CÉLIA. [Sobre o presídio]. Entrevista concedida a Gustavo Villela Lima da Costa. Angra
dos Reis, 18 maio 2004.
JANETE. [Sobre sua infância]. Entrevista concedida a Gustavo Villela Lima da Costa.
Angra dos Reis, 17 maio 2004.
LUÍS. [Sobre sua infância]. Entrevista concedida a Gustavo Villela Lima da Costa. Angra
dos Reis, 17 maio 2004.
______. [Sobre o trabalho na pesca]. Entrevista concedida a Gustavo Villela Lima da Costa.
Angra dos Reis, 10 jan. 2006.
“VOVÔ”. [Sobre o mutirão e sobre o presídio]. Entrevista concedida a Gustavo Villela Lima
da Costa. Angra dos Reis, 18 maio 2004.
Resumo: Com base em pesquisa etnográfica, este artigo busca compreender o significado
social da produção de memórias sobre o passado recente no povoado do Aventureiro (Ilha
Grande, RJ), marcado por intensas mudanças econômicas e sociais. As principais questões
que me proponho a discutir aqui são: Como os moradores do Aventureiro interpretam e dão
significado a essas mudanças? Como o passado é ressignificado na construção de uma memória
“coletiva” que é utilizada politicamente pelos atores sociais? Os relatos orais, a memória e os
seus significados produzem símbolos que mobilizam uma “força inovadora”, que “inventa” em
alguma medida o passado (assim como a “cultura” ou a “tradição”). Nesse sentido, o estudo
procura contribuir, também, para a compreensão dos processos por meio dos quais as culturas
inventam a si mesmas e projetam, sobre essas bases, seu futuro.
Abstract: Based on ethnographic research, this paper seeks to understand the social significance
of the production of memories about the recent past in Aventureiro village in Ilha Grande
(Brazil), against a backdrop of intense economic and social changes. The main issues I want to
discuss here are: how do the locals interpret and give meaning to these changes? How is the past
resignified in the production of a “collective” memory used politically by social actors? Oral
26 COSTA, Gustavo Villela Lima da. Memória e mudança social no povoado do Aventureiro (RJ): o passado revisitado...
histories, memory and their meanings produce symbols that activate an “inovative force” that
in a certain extent “invents” the past (as well as “culture” or “tradition”). In this sense, we intend
also to contribute to the understanding of the processes by which cultures invent themselves
and project, on that basis, their future.
Recebido em 12/07/2013
Aprovado em 13/12/2013