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“FECHAR A FRONTEIRA”: RITUAIS, ESTRATÉGIAS POLÍTICAS E

MOBILIZAÇÃO SOCIAL EM ARROYO CONCEPCIÓN/ PUERTO QUIJARRO -


BOLÍVIA

Gustavo Villela Lima da Costa1

A região de Corumbá/ Ladário – Puerto Quijarro/ Puerto Suarez na fronteira


Brasil-Bolívia tem em torno de 150 mil habitantes e pode ser considerada como um
dos principais núcleos urbanos de fronteira da América do Sul. Essas cidades estão
localizadas em um importante ponto estratégico, conectando portos dos oceanos
Pacífico e Atlântico, integrado através de diferentes meios de transporte, como
rodovias, ferrovias, hidrovia e aeroportos, que favorecem a circulação de
mercadorias e pessoas. As interações entre grupos sociais e indivíduos que ocorrem
nesta região são muito complexas, mobilizando atores sociais que estão muito além
da escala local, e obviamente, não estão isentas de conflitos. A passagem de
mercadorias considerada pelos Estados como contrabando; os crimes de fronteira
(tráfico de armas ou drogas e roubo de veículos); a regulamentação do trabalho dos
imigrantes fronteiriços (e demais situações jurídicas referentes à cidadania); os
atendimentos médicos em redes públicas nos dois lados da fronteira são alguns dos
eventos mais agudos, que geram conflitos entre a lógica do Estado e a lógica dos
moradores locais, em uma vida fronteiriça que se situa, em muitos momentos, entre
o poder de controle do Estado e a possibilidade de sua evasão (GRIMSON, 2000).

Esta tensão entre as legislações dos Estados Nacionais e a vida cotidiana na


fronteira gera inúmeras demandas por parte de moradores que dependem do
diferencial fronteiriço (econômico e social) para trabalhar e viver. Entre as
reivindicações, destacamos os pedidos para a implantação de acordos e legislações
específicas que levem em conta a “lógica fronteiriça” (OLIVEIRA, 2010) e que
flexibilizem ou adaptem leis de caráter nacional às fronteiras. A principal
manifestação pública e política de reivindicação de demandas fronteiriças, que
ocorre de forma organizada, entre Puerto Quijarro e Corumbá é o “fechamento” da
fronteira, ou “paros cívicos”. Esta manifestação possui grande visibilidade local e
gera impactos econômicos, políticos e sociais que vão além da escala local. Essa é

1
Antropólogo, Professor Adjunto da UFMS/CPAN/Corumbá
uma estratégia política adotada principalmente do lado boliviano da fronteira (ainda
que comerciantes brasileiros possam participar dessas manifestações).

Para compreender os significados e sentidos atribuídos a esta prática, pelos


atores sociais responsáveis pelas manifestações de “fechamento” da fronteira Brasil-
Bolívia em Arroyo Concepción2, utilizaremos uma abordagem antropológica do ritual
como um modelo para analisar esses eventos sociais. Peirano (2001) entende que
os rituais são tipos especiais de eventos,

“mais formalizados e estereotipados e, portanto, mais


suscetíveis à análise porque já recortados em termos nativos.
Em outras palavras, tanto eventos ordinários, quanto eventos
críticos e rituais partilham de uma natureza similar, mas os
últimos são mais estáveis, há uma ordem que os estrutura, um
sentido de acontecimento cujo propósito é coletivo, e uma
percepção de que eles são diferentes” (PEIRANO, 2001: 4).

Neste sentido, procuraremos demonstrar alguns elementos que ordenam a


ação coletiva do “fechamento da fronteira” e cuja recorrência em Puerto Quijarro-
Corumbá nos sugere a existência de uma estrutura e a produção de significados que
transcendem as reivindicações pontuais que estão em jogo. Os rituais para Geertz
(1989) dão sentido aos fatos da vida social, sendo eles mesmos um meio de
expressão social, que deve ser interpretado, etnograficamente, em suas três
dimensões: em sua forma dramática (fechar a fronteira com carros e ônibus,
impedindo o trânsito), em seu conteúdo metafórico (por que fechar a fronteira?
Quais os significados da fronteira nessas ações políticas?) e em seu contexto social
(quais são as demandas pontuais, os contextos políticos e econômicos em que se
dão os “fechamentos”?).

A modalidade de ação política coletiva “fechar a fronteira”, recorrentemente


utilizada por moradores de Arroyo Concepción, portanto, produziu um capital
simbólico conquistado ao longo dos anos, revelando seu potencial de agregação
popular e sua legitimação junto aos órgãos de governo da Bolívia e organizações
sociais, atingindo grande repercussão nesta fronteira e além dela também. Podemos
notar que as reivindicações, - sejam elas por melhores condições de trabalho, contra
medidas da Receita Federal do Brasil, ou por demandas políticas internas bolivianas

2
Arroyo Concepción é um distrito do município de Puerto Quijarro.
que não são necessariamente questões fronteiriças - são feitas através de uma
performance que utiliza carros e ônibus atravessados e bandeiras da Bolívia (como
notamos nas fotografias abaixo). A repetição e a forma desses eventos nos indicam
um padrão e um sentido neste tipo de ação, que nos levam a indagar as seguintes
questões: o que está em jogo no fechamento da fronteira para os manifestantes?
Por que esta e não outra manifestação política coletiva se cristalizou como ação
efetiva para requerer demandas na fronteira? De acordo com Sigaud (2005), estes
são atos que tornam legítimas as pretensões dos manifestantes, o que reforça a
crença na eficácia desta forma de manifestação, explicando sua recorrência.
Entender o “fechamento” da fronteira representa muito mais do que observar a
reunião de pessoas para reivindicar situações concretas de demandas conjunturais,
pois esta ação compreende técnicas ritualizadas para realizar o “fechamento”, uma
organização espacial, um vocabulário próprio e possui elementos dotados de forte
simbolismo como a bandeira da Bolívia dependurada nos ônibus, os automóveis e
ônibus cruzados na pista, demonstrando que “ninguém passa”, como marcos
distintivos deste ritual político.

Anderson Gallo23/02/2011 Anderson Gallo 18/05/2011

Anderson Gallo. 14/07/2009 Anderson Gallo. 20/05/2010 (Fonte:


WWW.diarionline.com.br).

Uma Breve Cronologia dos “Fechamentos” da Fronteira Brasil-Bolívia


Em primeiro lugar, é preciso destacar que os bloqueios de estradas são uma
das formas de mobilização política e de pressão junto ao poder público,
historicamente utilizados na Bolívia, dentro das quais se inserem também os
“fechamentos” da fronteira. Para entendermos localmente quais são os motivos para
“fechar” a fronteira, utilizaremos um breve histórico dessas manifestações a partir do
ano de 2009. Destacamos, entretanto, que esta forma de paralisação antecede às
datas citadas abaixo, para as quais utilizamos o arquivo digital do jornal “Diário de
Corumbá”, na busca de entender a cronologia recente dos “fechamentos” e suas
diversas demandas. Notamos que as mais variadas questões são reivindicadas a
partir dessa estratégia, o que demonstra não apenas sua eficácia simbólica e prática
mas também que há um impacto econômico e político neste “fechamento”, que faz
com que os manifestantes sejam ouvidos. É preciso destacar também que grande
parte dessas paralisações conta com o apoio do governo local a partir de suas de
alcaldias (prefeituras), de organizações sociais (sindicatos, cooperativas entre
outros) e da própria polícia boliviana, que não rechaçou os manifestantes nos casos
aqui apresentados3.

No dia 14 de julho de 2009, por exemplo, a fronteira Brasil-Bolívia foi fechada


para pressionar do Governo de Evo Morales, (que esteve na fronteira no dia 30 de
junho de 2009) sobre o problema do desemprego e falta de infraestrutura na região.
Para os manifestantes, então, a empresa indiana Jindal Power, que obteve licença
para explorar a reserva mineral do Morro de Mutún, já deveria estar em
funcionamento e empregando a mão-de-obra local.

No dia 20 de maio de 2010, integrantes de uma cooperativa de transporte


boliviano fecharam a fronteira durante 24 horas por não concordarem com o governo
da Bolívia que desejava liberar a licença de mais quatro empresas de transporte
para atuarem no departamento de Santa Cruz. Os manifestantes, de acordo com a

3
Não se deve deixar de notar também, de acordo com os valiosos comentários da professora Suzana Mancilla
da UFMS/ DHL/ CPAN, que não há um consenso no lado boliviano sobre essas paralisações, que estão associadas,
como coisa de “collas”, por alguns setores sociais, identificados como “cambas” de Puerto Quijarro e Puerto Suarez,
apontando para conflitos internos (camba x colla, oriente x ocidente) que se manifestam de forma extrema no
departamento de Santa Cruz e na própria Bolívia como um todo e que escapam aos objetivos deste artigo (ver
SOUCHAUD e BAENINGER, 2008).
reportagem do jornal, afirmaram que não havia, no momento, mais espaço para
concorrências. Ruben Flores, presidente da Cooperativa de Transporte Pantanal,
deu a seguinte entrevista: “Não somos contra, porém, este não é o melhor momento.
A estrada de acesso até Santa Cruz ainda não está pronta e por isso não temos
ônibus mais confortáveis. Assim que as obras terminarem vamos comprar novos
carros, mas precisamos de um compromisso formal do Governo dizendo que não vai
deixar outras empresas atuarem no departamento”, revelando ainda que as
empresas, que querem se instalar na região, não seriam do departamento e que
uma de suas demandas seria a de “valorizar as pessoas que já estão trabalhando
aqui”. Flores afirmou ao Diário de Corumbá que a decisão de fechar a fronteira foi
feita em conjunto com outras instituições de transporte do departamento de Santa
Cruz. “Este é um ponto muito importante porque nós pertencemos a um corredor
bioceânico, que aglutina mais de 27 instituições de transporte que levam de El
Pailón até Arroyo Concepción, está tudo paralisado. Esperamos que o governo nos
escute. Não estamos impedindo que outras empresas venham atuar aqui, mas hoje
temos oito empresas que estão querendo trabalhar”.

No dia 24 de maio de 2010, são retomadas as reivindicações sobre o atraso


nos investimentos no complexo siderúrgico de Mutún, em uma reunião do Comitê
Cívico de Puerto Suarez, para discutir a possibilidade de paralisação de 48 horas. A
assembléia contou com representantes cívicos de Puerto Suarez, Puerto Quijarro e
El Carmen Rivero Torrez. A fronteira da Bolívia com o Brasil amanheceu fechada
também no dia 02 de junho de 2010, para novamente cobrar do governo boliviano a
entrega de terras para a empresa indiana Jindal Steel & Power. O protesto incluiu
além do fechamento da fronteira com o Brasil, em Arroyo Concépcion, interdições do
aeroporto de Puerto Suarez e do transporte ferroviário e rodoviário.

No dia 18 de novembro de 2010, o bloqueio em Arroyo Concépcion, teve


como motivo a insatisfação dos comerciantes bolivianos com valores das cotas de
entrada de produtos em território brasileiro. De acordo com os manifestantes, os
valores não estariam atendendo as necessidades dos comerciantes bolivianos.
Havia também, na ocasião, um descontentamento com a medida que previa o
cadastramento de veículos internacionais que realizam transporte em feiras de
Corumbá. A iniciativa da Prefeitura de Corumbá visava coibir a prática de transporte
de passageiros considerada pelos brasileiros como ilegal.

No dia 23 de fevereiro de 2011, novamente os integrantes de uma


cooperativa de transporte boliviano fecharam o acesso à fronteira durante 24 horas
para chamar a atenção do governo central, que desejava liberar a licença de mais
uma empresa de transporte coletivo na região. É interessante notar que José Luiz
Ortiz, secretário da subprefeitura de Arroyo Concépcion, foi entrevistado pelo jornal,
demonstrando a participação do poder público neste “fechamento”.

Foi possível perceber neste pequeno histórico de “fechamentos” que, em


primeiro lugar, existe grande capacidade de mobilização e articulação de atores e
organizações sociais, desde cooperativas e sindicatos de transporte e comerciantes,
passando por autoridades e funcionários públicos, chegando à população em geral.
Em segundo lugar, nota-se que os manifestantes chamam a atenção para suas
demandas locais, sobretudo relativas ao trabalho e utilização de mão-de-obra local
(seja no caso do pólo siderúrgico, seja na questão dos transportes ou no comércio
de mercadorias). É possível perceber este fato no discurso do manifestante que
afirmou que é preciso “valorizar as pessoas que já estão trabalhando aqui”. Além
disso, os manifestantes estão cientes da importância econômica da fronteira para
setores sociais que estão situados muito além da escala local e dos impactos no
fluxo econômico, notadamente na passagem em que o manifestante diz que “este é
um ponto muito importante porque nós pertencemos a um corredor bioceânico”. Por
fim, percebe-se na diversidade de demandas que o “fechamento” da fronteira se
torna uma ação padronizada e organizada, instaurando um canal legítimo de
representação política.

O “Paro Cívico” de maio de 2011

Entre os dias 16 e 19 de maio de 2011, houve um “fechamento” da fronteira


que teve um caráter distinto das que citamos acima por reunir e concentrar
demandas distintas das mais variadas categorias e organizações sociais, com uma
duração maior de quatro dias, paralisando também o comércio local. Um de seus
principais resultados foi a vinda de uma comissão governamental de La Paz para a
fronteira, para negociar a reabertura da mesma junto aos manifestantes.
Para compreendermos interpretativamente o sentido da ação social dos
manifestantes, nos termos de Max Weber (2000), realizamos uma pesquisa de
campo no dia 19 de maio de 2011, durante a manifestação de “fechamento da
fronteira”, que foi chamada de “paro cívico”. Neste dia estivemos na linha de
fronteira, em Arroyo Concepción, onde se reuniam os manifestantes, justamente no
momento em que a fronteira foi reaberta. Soubemos, então, que os manifestantes
abriram a fronteira, pois foram atendidos em sua demanda de exigir a presença de
membros do governo boliviano, para participar de uma reunião. Esta comissão
incluiu uma vice-ministra, que veio de La Paz com a promessa de iniciar as
negociações com o governo brasileiro. Esta reunião teve lugar no auditório da
organização 12 de Octubre, de lojistas de Arroyo Concepción, lugar de forte
simbolismo por ser o centro nevrálgico do comércio e economia daquela localidade
na fronteira.

Esta paralisação teve algumas características peculiares, que confirmam o


sucesso da forma “fechamento da fronteira” como estratégia política. Neste período,
pela primeira vez, se juntaram antigas demandas internas de algumas organizações
sociais e da população em geral. Entre as demandas figuravam não apenas
questões locais dos “transportistas”, (como são chamadas as empresas de ônibus e
vans,) cujas reivindicações observamos no histórico acima, mas também pedidos
pelo fim do monopólio da empresa que presta o serviço de fornecimento de água na
cidade, por exemplo. Destacam-se, porém as demandas fronteiriças, propriamente
ditas, tanto de caráter prático, que pediam a negociação do governo boliviano com
autoridades brasileiras, criticando a Portaria 440 da Receita Federal do Brasil;
quanto de caráter simbólico, ao denunciar o preconceito de que são vítimas os
bolivianos na fronteira e em Corumbá. Durante toda a reunião ressaltou-se o
estigma que recai sobre os bolivianos, que estariam associados às práticas
comerciais consideradas como ilegais pelo Estado brasileiro. Marcos Aranibar,
presidente da organização 12 de Outubro, uma das instituições envolvidas na
manifestação, entrevistado pelo Diário de Corumbá (18/05/2011) afirmou:

"Queremos igualdade entre os povos, queremos ter os


mesmos direitos que os brasileiros. Estamos cobrando isso não
apenas nas questões de cotas de mercadorias, mas também
na questão social, pois muitas vezes somos mal tratados por
associarem nossa origem à questão de drogas e a questão de
contrabando. Nós bolivianos estamos nos sentindo injustiçados
e mal tratados pelo povo brasileiro. Ultimamente, as ações da
Polícia Federal têm desrespeitado muitos bolivianos que
trabalham legalmente no país. Podemos lembrar também que
os taxistas estão sendo lesados de trabalhar tranquilos na
fronteira. A mais importante das reivindicações desta
mobilização é a questão de cotas estabelecidas no último ano
no Brasil. Estamos insatisfeitos, porque os muitos brasileiros
trabalham tranquilos em nosso país e nada acontece. Nosso
valor de cotas de exportação foi diminuído e isso tem até
causado desemprego em nosso país, pois não adianta produzir
se não há para onde vender ”.

Manifestantes aguardando o início da reunião com representantes do governo boliviano e depois


dentro do salão da Organização 12 de octubre em Arroyo Concepción, no dia 19/05/2011. (fotos do
autor)

A partir do discurso do presidente da Organização 12 de Octubre e das


entrevistas realizadas durante a reunião, foi possível compreender alguns dos
significados dessa manifestação, a partir das premissas de Geertz de entender os
rituais em suas três dimensões (dramáticas, metafóricas e contextuais). Em primeiro
lugar, observaremos o contexto social, econômico e político em que ocorreram as
manifestações de maio de 2011. Ou seja, procuraremos entender quais eram as
demandas objetivas dos manifestantes em seus próprios termos.
Durante a reunião, Erika Dueña, vice ministra de seção institucional e
consular afirmou que toda uma cadeia de produtores e “transportistas” foi afetada
pela Portaria 4404 do Ministério da Fazenda do Brasil, instaurada a partir de 30 de

4
Art. 1º Os bens de viajante procedente do exterior, a ele destinado ou em trânsito de saída do País
ou de chegada a este serão submetidos ao tratamento tributário estabelecido nesta Portaria.
Art. 2º Para os efeitos desta Portaria, entende-se por:
I - bens de viajante: os bens portados por viajante ou que, em razão da sua viagem, sejam para ele
encaminhados ao País ou por ele remetidos ao exterior, ainda que em trânsito pelo território
aduaneiro, por qualquer meio de transporte;
II - bagagem: os bens novos ou usados que um viajante, em compatibilidade com as circunstâncias
de sua viagem, puder destinar para seu uso ou consumo pessoal, bem como para presentear,
julho de 2010, que modificou as regras para a declaração de mercadorias adquiridas
em viagens ao exterior. Em sua fala se referiu ao prejuízo também aos “turistas”
brasileiros que fazem compras em Arroyo Concepción, especialmente no comércio
de roupas. Destacamos que a categoria “turista”, não se refere exatamente aos
turistas que visitam Corumbá ou o Pantanal e que, eventualmente, fazem compras
na Bolívia. Esta categoria de compradores, a que se referem também os
comerciantes locais, corresponde, de fato, aos comerciantes brasileiros (ditos
“sacoleiros”) que vêm em ônibus fretados, para a fronteira especificamente para
adquirir roupas com menor custo para revender no Brasil. Esses compradores é que
sustentam e justificam a existência do comércio em Arroyo Concepción, como
afirmaram alguns lojistas.
Foi este o principal motivo que levou os manifestantes a pedirem, durante a
reunião, às autoridades bolivianas uma negociação e revisão desta Portaria 440,
especialmente em seu parágrafo 3º, que diz que a Receita Federal Brasileira (RFB)
“poderá estabelecer limites quantitativos diferenciados tendo em conta o tipo de
mercadoria, a via de ingresso do viajante e as características regionais ou locais”.
Este parágrafo abre uma importante prerrogativa para negociações específicas
locais e que considerem a condição específica de comércio em fronteiras,
entendendo as dinâmicas locais. A principal questão da Portaria 440, que afetou o
comércio em Arroyo Concepción, se refere aos seguintes itens referentes à isenção
de tributos por parte dos viajantes que são: “os bens não relacionados nos incisos I
a IV, de valor unitário inferior a US$ 10,00 (dez dólares dos Estados Unidos da
América): 20 (vinte) unidades, no total, desde que não haja mais do que 10 (dez)
unidades idênticas; e VI - bens não relacionados nos incisos I a V: 20 (vinte)
unidades, no total, desde que não haja mais do que 3 (três) unidades idênticas.”.

sempre que, pela sua quantidade, natureza ou variedade, não permitirem presumir importação ou
exportação com fins comerciais ou industriais;
III - bagagem acompanhada: a que o viajante levar consigo e no mesmo meio de transporte em que
viaje, exceto quando vier em condição de carga;
IV - bagagem desacompanhada: a que chegar ao território aduaneiro ou dele sair, antes ou depois do
viajante, ou que com ele chegue, mas em condição de carga;
V - bens de uso ou consumo pessoal: os artigos de vestuário, higiene e demais bens de caráter
manifestamente pessoal, em natureza e quantidade compatíveis com as circunstâncias da viagem; e
VI - bens de caráter manifestamente pessoal: aqueles que o viajante possa necessitar para uso
próprio, considerando as circunstâncias da viagem e a sua condição física, bem como os bens
portáteis destinados a atividades profissionais a serem executadas durante a viagem, excluídos
máquinas, aparelhos e outros objetos que requeiram alguma instalação para seu uso e máquinas
filmadoras e computadores pessoais.
Todas as pessoas entrevistadas durante a reunião em Arroyo Concepción,
afirmaram que a quantidade de três peças idênticas seria insuficiente para atrair os
“turistas” a fazer compras na fronteira, o que vem causando a diminuição do fluxo
dos compradores e uma crise no comércio local.
Em vários momentos durante a paralisação, ouvimos manifestantes e
autoridades bolivianas (inclusive no discurso proferido pelo Cônsul da Bolívia em
Corumbá durante a reunião) afirmando que o governo boliviano deveria fazer um
acordo igual “ao do Paraguai” com o Brasil. Além deste parágrafo 3º, que prevê
acordos específicos locais ou regionais, os manifestantes estavam se referindo à
“Lei dos Sacoleiros”, Lei nº 11.898/09, cuja Instrução Normativa RFB nº 1.098, foi
publicada pela Receita Federal, no dia 15/12/2010. Pela normativa em questão, fica
determinado que a partir de 1º de janeiro de 2011, os “sacoleiros” interessados em
aderir ao Regime de Tributação Unificada (RTU), criado pela nova lei, poderão
cadastrar suas microimportadoras junto à RFB. Além disso, podem fazer parte do
novo regime, que prevê alíquota de 25% para a importação de mercadorias de
extrazona (de fora do Mercosul), ofertadas no comércio do Paraguai, microempresas
aderidas ao SIMPLES Nacional. O teto anual para importações é de R$ 110 mil, tal
como disposto em normativa anterior. Esta lei estabelece, também, as regras para
credenciamento de representantes e cadastramento dos veículos para o transporte
de mercadorias entre Ciudad del Este e Foz do Iguaçu, ou seja, inicialmente apenas
a fronteira Foz do Iguaçu - Ciudad del Este foi habilitada ao trânsito das mercadorias
adquiridas sob este novo regime.

Durante a reunião, outros acordos comerciais foram postos em discussão, o


que demonstra também que os manifestantes dispõem de conhecimento jurídico e
que há propostas efetivas para solucionar seus problemas. Um manifestante, por
exemplo, falando ao microfone (aberto ao público pelas autoridades bolivianas),
perguntou por que não se exigia o cumprimento do tratado de Roboré, de 1958, que
trata do “trafico transfronterizo”. O tratado prevê em seu Artigo I, que os governos do
Brasil e da Bolívia isentam de direitos e impostos aduaneiros, “disposições cambiais
e consulares e de todo gravame fiscal, criados ou por criarem-se, o comércio a
varejo que se realiza entre as populações fronteiriças de ambos os países,
reduzindo-se ao mínimo os trâmites administrativos imprescindíveis”. No artigo II,
informa que as isenções previstas no artigo anterior abrangem, “com caráter
exclusivo, o tráfico de mercadorias de consumo que se exerça entre populações
limítrofes”. (sítio eletrônico do Ministério das Relações Exteriores:
www2.mre.gov.br/dai/biboliv.htm). O Diretor “General de Acuerdos Comerciales y
Inversion” do Ministério do Comércio Exterior e Integração da Bolívia, membro da
comissão que veio à fronteira, afirmou que o tratado de Roboré tinha muitos pontos
obsoletos, mas que, porém, consideraria incluir alguns dos termos do referido
tratado no recente acordo denominado ACE 36 que foi firmado em dezembro de
1996 entre o Mercosul e a Bolívia. Este acordo foi internalizado no Brasil pelo
Decreto nº 2.240, de 28/05/97 e visava a conformação de uma área de livre
comércio entre as partes, em um prazo máximo de 10 anos. Ao final deste período,
parte substantiva do comércio já deveria estar totalmente desgravada (remoção de
barreiras tarifárias), bem como eliminadas as restrições não-tarifárias que afetam o
comércio. De acordo com o Diretor, porém, seria muito mais produtivo a Bolívia
negociar diretamente com o Brasil, ao invés de negociar com todo o Mercosul e que
levaria as demandas locais à Brasília.

O que está implícito, a partir da análise das demandas dos manifestantes é o


fato de que, no contexto de integração sul-americana, através da ação do grande
capital, os acordos comerciais, assim como a construção de estradas e pontes não
buscam (assim como não buscaram no passado) beneficiar diretamente as
populações fronteiriças. Os acordos comerciais e obras de infraestrutura procuram,
de fato, promover o comércio terrestre (e fluvial) entre países atravessando cidades
fronteiriças, concebidas como “zonas de serviço”. (GRIMSON, 2000) Assim, são
criadas importantes facilidades para a circulação de mercadorias de grandes
empresas, abrindo as fronteiras ao grande capital, que tem peculiar interesse nas
áreas fronteiriças, porém raramente se consideram as necessidades de trabalho das
populações fronteiriças. Além disso, o controle das populações fronteiriças,
executado pelos Estados é exercido com força, em relação à circulação, tanto de
pessoas, quanto de pequenas mercadorias do chamado “contrabando formiga”. Ou
seja, quando o que está em jogo são as grandes operações comerciais ligadas ao
grande capital, os Estados abrem suas fronteiras, mas quando se trata das
populações fronteiriças, que dependem das condições favoráveis ao comércio na
fronteira, e que construíram suas vidas neste cenário comercial específico, observa-
se o recrudescimento do controle, que ignora as realidades, histórias e tradições
comerciais locais (ver COSTA 2010b).

Significados da Fronteira: metáforas sociais e novos sentidos políticos

“Fechar a fronteira”, não significa tão somente a reivindicação social de


questões específicas e de demandas pontuais. Há outros significados “metafóricos”
neste ritual que gostaríamos de ressaltar, a partir da reunião entre manifestantes e
funcionários do governo boliviano, sobretudo os significados políticos e simbólicos
da fronteira, construídos por funcionários do Estado boliviano. A “Directora de
Asuntos Bilaterales de La Cancillería”, diante da platéia, ressaltou, em suas palavras
que “viver numa fronteira é sempre uma relação de poder com o outro país e por
isso deveríamos pensar qual é o nosso poder como país”. Este poder é associado,
em seu discurso, à identidade do povo boliviano, que se encontra representado em
toda a sua diversidade em Arroyo Concepción. Existe, inserido neste discurso, a
plataforma do MAS (Movimiento al Socialismo) de reconstrução política e identitária
da Bolívia e que prevê nova postura diante de negociações internacionais com
outros países, redefinindo suas relações internacionais em outras bases, com forte
sentido de orgulho identitário e nacionalismo (como se percebeu no processo de
nacionalização dos hidrocarburos, em 2006, por exemplo). Nesta reunião, houve
várias acusações de violência e preconceito a respeito de funcionários da Polícia
Federal, (que teria agredido, recentemente, um comerciante boliviano) e sobre
membros da Receita Federal do Brasil. Ocorreu, portanto a produção de um
discurso de crítica ao “imperialismo” brasileiro por parte de manifestantes e
autoridades do governo boliviano, acusando o preconceito social e racial por parte
de autoridades brasileiras na fronteira.

A fronteira é então resignificada, pelos funcionários do governo, durante a


reunião, como um lugar aonde se afirmaria a nova identidade nacional multicultural,
representada pelos migrantes de várias regiões do país e como um lugar aonde se
afirmaria o “novo” Estado boliviano, que se recusa a estabelecer acordos
assimétricos com outros países. Este “novo” Estado boliviano é analisado por
Schavelzon, em seu estudo sobre o a Assembleia Nacional Constituinte da Bolívia
entendida por ele como se
“fuera una antesala de los proyectos políticos que buscan
transformarse en ley de un nuevo Estado, o un filtro donde la
disputa solo deja pasar lo que será consenso social una vez
legalizado. Algo de esto emerge en La llegada al Estado de los
sindicatos campesinos que hace unos años formaron El MAS y
que, con una nueva Constitución, se propusieron “refundar el
Estado” y “acabar con el Estado Colonial”. Algo de esta llegada
parece tener que ver con uma lucha que se presenta como
lucha por una verdad y que busca instaurar un marco jurídico
que inaugure un “tiempo nuevo”” (SCHAVELZON, 2008: 68).

A fronteira de “terra de ninguém” passa a ser percebida e construída


discursivamente, pela funcionária do governo, como um locus da “nova” identidade
multicultural boliviana, em que pessoas de várias partes do país aí estão reunidas,
unificadas como bolivianos, lutando contra adversidades comuns. Obviamente este
é um discurso governamental, interessado, que não reflete a realidade empírica na
fronteira, onde se refletem e reproduzem, em grande medida, diferenças identitárias
e étnicas. Esta ação dos manifestantes adquire, aos olhos de funcionários do
governo boliviano, um sentido de afirmação da cidadania e soberania nacional na
qual os atores sociais fronteiriços representam a “luta” contra a postura “colonial” e
subalterna do passado.

Neste mesmo sentido, a Diretora de “Asuntos Culturales de la Cancillería” se


referiu a esta fronteira como um local inóspito e de vida difícil, relevando o papel dos
seus moradores como defensores dos limites nacionais, quando diz que os
moradores da fronteira “são pessoas que vivem há anos e anos nesta região
suportando o calor e os mosquitos para conquistar a soberania em nosso país, que
muito poucos são capazes de fazer. E eles fazem e vão continuar a fazer apesar de
todos os problemas que podem ter. Mas isto é o de menos, pois vêm padecendo de
discriminação, não apenas dos brasileiros, mas de nossos compatriotas”. Este
discurso político inscreve os moradores da fronteira como desbravadores de uma
terra distante no território boliviano, como “heróis da ocupação nacional”,
resignificando a fronteira. Além disso, nota-se, neste discurso, que a fronteira
também é vista pelos próprios bolivianos de outras partes do território nacional,
como uma região “desterritorializada”, sem uma identidade própria, (sobretudo em
um país cujas identidades locais têm grande peso e estão associadas a
determinadas regiões e etnias, que em muitos sentidos se sobrepõem à identidade
nacional). Este é um processo muito interessante de ser estudado a partir do
encontro de diversas etnias e identidades locais bolivianas em Puerto Quijarro, cujo
ápice acontece no efervescente comércio de Arroyo Concepción. Este processo
demonstra também que o Estado não pode ser visto como o único agente produtor
de identidades, definidor dos seus limites territoriais e de sua própria história. As
regiões de fronteira (a partir da vida de seus moradores) representam, muitas vezes,
o papel de protagonistas na formação dos Estados nacionais e das identidades
nacionais, contribuindo para a redefinição de seus limites materiais e simbólicos,
ainda que as narrativas “oficiais” as considerem como áreas marginais e
coadjuvantes neste processo (COSTA, 2010).

Considerações Finais

Ao analisarmos o “fechamento” da fronteira em sua dimensão ritual, que têm


uma estrutura, uma recorrência e uma “forma”, assim como significados simbólicos e
metafóricos, foi possível entender também sua eficácia e seus efeitos sociais e
políticos, na prática. Os manifestantes que “fecham” a fronteira estão cientes de que
chamam a atenção para suas demandas locais ao interromper fluxos do grande
capital, afetando interesses globais e esse é um dos pontos chaves para o sucesso
de sua estratégia de mobilização política.

Este evento também joga por terra qualquer análise que suponha um
enfraquecimento ou desaparecimento das fronteiras nacionais. O capitalismo
sempre dependeu e se estruturou a partir da forma de governo do Estado Nacional,
como uma forma de associação política que detém um território soberano,
fetichizado em seus mapas e limites. Podemos considerar o comércio entre
fronteiras nacionais, (e não apenas nas zonas fronteiriças), como um dos elementos
chaves da acumulação capitalista ao longo de sua história (COSTA, 2010b). Desde
sua gênese, comerciantes e industriais, assim como os governos nacionais se
beneficiaram da existência dos vários sistemas de valor entre as nações para
acumular riquezas (MAGALHÃES FILHO, 2003; PIJNING, 2001). Os estudos em
áreas de fronteira tornam visíveis, neste sentido, as relações intrínsecas entre a
expansão do Capital e do Estado como forma de governo historicamente construída
e que garante a ordem pela coerção física e pela instituição das leis, dependendo de
um aparato burocrático para gerir e administrar este território.

Fechar a fronteira, como percebemos neste artigo, tem distintos significados


para os diversos grupos sociais, posicionados socialmente, a partir de seus
interesses (moradores, comerciantes e funcionários do governo) revelando sua
polissemia. A fronteira, tantas vezes negada e silenciada, quando é “fechada”, tem
sua existência “gritada” pelos manifestantes que explicitam tanto seu poder
simbólico quanto sua presença física. É a partir deste ritual político que a fronteira se
impõe além de seus sentidos metafóricos, deixando de ser apenas uma “linha
imaginária”, não apenas para os que dependem diretamente de sua existência
(comerciantes, “transportistas” e outros), mas também para os poderes centrais dos
Estados e para uma cadeia transnacional de agentes que transcendem o nível local.
Há muitos interesses em jogo no fluxo fronteiriço e os manifestantes sabem disso
melhor do que ninguém.

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