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Violência Brasil PDF
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ARTIGO ARTICLE
políticas para a sua prevenção
Abstract This article is about the kind of vio- Resumo Este artigo trata da violência nos
lence that happens in Brazilian main urban principais centros urbanos do Brasil. Foi origi-
centers. It derived from a field research with nado de uma pesquisa de campo com visitas e
visits and interviews with different individuals entrevistas com diferentes indivíduos ligados,
linked, directly or indirectly, to the subject such direta ou indiretamente à questão, como fun-
as employees and representatives of public sec- cionários e representantes de setores públicos de
tions of several areas, researchers and special- várias áreas; pesquisadores e estudiosos do te-
ists, convicts and people involved in the drug ma; presidiários e pessoas ligadas ao narcotrá-
traffic, as well as community leaders. It presents fico, bem como líderes comunitários. Apresenta
a wide diagnosis of the main factors that make um amplo diagnóstico dos principais fatores
possible the growth of criminal violence in que possibilitam o crescimento da violência cri-
Brazil such as social and economic factors, minal no Brasil, ou seja, fatores sócio-econômi-
weakness and lack of confidence in the institu- cos, conjunturais e estruturais, a fraqueza e des-
tions and the difficulty of the state to avoid and crédito das instituições e a carência do Estado
prevent violence. The collected data allowed an para administrar a repressão e propiciar a pre-
analisis of the phenomenon in Brazilian reality, venção. Os dados coletados permitiram uma
compared with other international urban cen- análise do fenômeno na realidade brasileira
ters. The political recommendations, based on comparada com outros centros urbanos inter-
the observation of the evolution of other coun- nacionais. As recomendações políticas, basea-
tries, strongly point to the establishment of das na observação da evolução de outros países,
credibility of the state, starting from redistribu- são fortemente dirigidas ao restabelecimento da
tion of income; great investiment in social ar- credibilidade do Estado, a partir da redistribui-
eas, mainly health and education, and restruc- ção da renda; do grande investimento nas áreas
turing of their fundamental institutions as po- sociais, sobretudo de saúde e educação; e da
lice and school. reestruturação de suas instituições fundamen-
1 Instituto Nacional de Key words Violence; Criminality; Politic of tais, como a polícia e a escola.
Estudos Demográficos,
Universidade de Paris,
Prevention Palavras-chave Violência; Criminalidade; Po-
França. lítica de Prevenção
chesnais@ined.fr
Organizadora: Maria da
Conceição N. Monteiro
Tradutora: Ida Maria
Rebelo Pereira
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Jean Claude Chesnais
A escalada da violência criminal no Brasil Como qualquer visitante, para além do âm-
bito da nossa missão, ficamos chocados pela
No Brasil, a violência, sobretudo urbana, está obsessão com a insegurança que atinge a to-
no centro do dia a dia e ocupa as manchetes talidade dos habitantes das grandes cidades
dos jornais. Ela é assunto de especiais para a brasileiras. No centro de São Paulo, casas vi-
tv e, mais que tudo, assombra as consciências, giadas, cercadas por grades, protegidas por se-
de tal forma é ameaçadora, recorrente e gera- guranças, são igualmente sinais desta descon-
dora de um profundo sentimento de insegu- fiança das classes burguesas com relação às
rança. Essa evolução é sintoma de uma desin- classes ditas perigosas.
tegração social, de um mal-estar coletivo e de Tudo se passa como se os brancos tentas-
um desregramento das instituições públicas. sem reproduzir enclaves europeus, evitando
Assim como a Colômbia, lamentavelmen- o contato com descendentes de escravos ou
te conhecida pela carência de um Estado for- com os imigrantes, fugindo da miséria no seu
te e sobretudo pelas chacinas perpetradas pe- Nordeste natal. Muitos são os que ousam falar
los cartéis da droga (Medellin, Cali), entre os de um apartheid social pois, diante de tal se-
países de colonização européia, o Brasil é o gregação social, é inevitável lembrar daquela
mais atingido pela criminalidade assassina. O que existe em países com forte tensão entre
que se conhece é apenas a ponta do iceberg. negros e brancos, como os EUA, ou a África
A violência oculta atrás dos muros das ca- do Sul.
sas, a violência sexual, as rixas familiares e as A violência gera o medo, mas este gera
crianças espancadas só são conhecidas muito igualmente violência. Trata-se então de um
parcialmente, mesmo em caso de falecimento círculo vicioso que se instala, uma psicose co-
das vítimas; as circunstâncias das mortes são, letiva que é preciso romper a qualquer preço
então, esmagadas sob uma capa de silêncio. e cujos únicos beneficiados são certos lobbies
Além do mais, o controle pelo registro civil da segurança, como as firmas de vigilância, as
continua a ser falho, principalmente nas zo- milícias privadas, as companhias de seguros,
nas rurais mais pobres ou dentro de zonas ur- os esquadrões da morte, etc.
banas de instalação recente (subúrbios, fave- Assim, são atingidas a imagem e a reputa-
las e cortiços). O enterro oficial tem um custo ção internacionais do Brasil. Esse imenso país
com o qual as camadas mais desfavorecidas da de sonho e de riquezas fabulosas não conse-
população não podem arcar. gue “decolar” como prometido. Muitos res-
A situação atual no Brasil é, sem dúvida, ponsáveis estrangeiros que nele apostaram
atípica. As mortes violentas são a primeira cau- guardam da experiência uma certa amargura,
sa de falecimento entre os 5 e 45 anos. Essas tal é o desperdício, a corrupção e o corporati-
mortes prematuras, além de evitáveis, são alta- vismo que neutralizam a iniciativa e o esfor-
mente onerosas em termos de anos de vida ço de inovação.
perdidos. O homicídio intencional é, entre os Tendo em conta que a realidade ultrapassa
homens, a primeira causa de óbitos em termos os números oficiais, o número efetivo de víti-
de potencial de vida perdido. A situação no mas de homicídios é, hoje (1995), da ordem
Brasil é mais grave que nos Estados Unidos de 35.000 a 40.000 por ano. Na região metro-
(EUA) e mesmo que na Rússia, mergulhada politana de São Paulo (16 milhões de habitan-
no caos, numa deterioração e numa crimina- tes), somam-se mais de 60.000 mortes desde
lidade mafiosa indescritíveis desde a derroca- 1983, ou seja, mais baixas do que no exército
da do comunismo. americano no Vietnã (56.000 mortes, a maio-
Para estudar a especificidade brasileira, ria das quais em acidentes de transporte ou
contatamos interlocutores mais informados e retirada de minas e não em combate propria-
abertos, entrevistamos elementos dos mais va- mente dito). Uma tragédia que afeta centenas
riados meios (policiais, juizes, guardas peni- de milhares de pessoas.
tenciários, detentos, delinqüentes, médicos le- Essa situação só faz agravar-se a cada ano.
gistas, responsáveis políticos, especialistas, jor- Nessa mesma região de São Paulo, em meados
nalistas, diplomatas, empresários, trabalhado- dos anos 70, contavam-se 800 mortes por ho-
res sociais, etc.) e nos locais mais variados (es- micídio a cada ano. De 1989 para cá, esse nú-
colas, hospitais, cemitérios, delegacias de po- mero ultrapassa 6.500, ou seja, oito vezes mais.
lícia, escolas de tiro, penitenciárias, institutos Essa explosão da violência não está relaciona-
médico-legal, favelas, etc). da com o aumento da população, pois a taxa
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excesso de riqueza ostentada é vivido por mui- da nova leva de nordestinos, desempregados
tos como uma provocação, daí a tentação do ou mendigos na maioria.
roubo e do dinheiro fácil. Os aluguéis, depois do Plano Real, atingi-
ram um nível fora do alcance da classe pobre
e mesmo da classe média. Apesar da solidarie-
Fatores institucionais: dade familiar e do dinamismo da “auto-cons-
A omissão do Estado na prevenção trução”, o número de desabrigados cresce.
e repressão da violência Essa população flutuante, desenraizada, é,
ao mesmo tempo, ameaçada e ameaçadora
A Prevenção além de ser facilmente manipulável pelos che-
fes da droga e do crime que dela se servem pa-
A escola: “Abrir uma escola é fechar uma ra o roubo, para a prostituição e para a venda
prisão”, escreveu Victor Hugo. O sistema esco- de drogas.
lar brasileiro é notoriamente deficitário e tem Os meninos de rua são presa fácil de cer-
se deteriorado a partir dos anos 80. A pré-es- tos indivíduos sem escrúpulos que, em troca
cola praticamente inexiste; a escola primária de “proteção”, de um substituto de paternida-
começa muito tarde, aos sete anos somente. de, os exploram em proveito próprio, perver-
As crianças ficam, com freqüência, entregues tendo-os e os expondo à morte.
à própria sorte até essa época, pois a mãe tam- A periferia da grande São Paulo é onde as
bém tem de procurar um salário para garan- populações são mais vulneráveis e desvalidas.
tir a subsistência, uma vez que a moradia e a Trata-se do cinturão de pobreza, povoado de
alimentação são muito caras. recém-chegados, vindos do Nordeste, empur-
O ensino público é um desastre: os profes- rados pela fome, semi-analfabetos, sem qua-
sores, mal pagos e desmotivados, não fazem lificação, dispersos numa cidade ameaçadora,
um bom trabalho de pedagogos. Um grande instalados de forma precária numa terra de
número de crianças só vai à escola para comer ninguém, onde os serviços públicos são defi-
pois lhes é assegurada uma refeição. A escola cientes ou francamente inexistentes.
não garante mais a transmissão dos conheci- A saúde pública: o setor sanitário deixou
mentos básicos. Essa instituição não soube se de ser prioridade. A prefeitura de São Paulo
adaptar ao ensino de massa, as aulas limitam- prefere a construção civil, as obras públicas
se a quatro horas por dia, vinte por semana; (pontes e viadutos) e os transportes ao inves-
no resto do tempo os jovens ficam na rua, na timento social. Nos hospitais há falta de equi-
casa de vizinhos ou diante da televisão. pamentos e remédios, as filas de espera au-
A droga já conseguiu infiltrar-se nas esco- mentam; o preço dos tratamentos torna-se
las públicas. Estima-se que em São Paulo, um exorbitante; o orçamento da saúde foi corta-
quarto dos jovens já são parcialmente tóxico- do e, às vezes, até mesmo o dinheiro destina-
dependentes pois começaram a fumar, a be- do à saúde é desviado por burocratas sem es-
ber ou a se drogar. crúpulos.
Somente o ensino privado escapa ao nau- São precisamente os bairros mais necessi-
frágio, mas o preço é proibitivo. No estado de tados, onde as doenças infecciosas e as pato-
São Paulo apenas um, em cada dez jovens, vai logias crônicas estão mais propagadas, que pa-
para a escola particular no primário. O corte gam a conta do desperdício. Esse sentimento
tem se acentuado entre o público e o priva- de vulnerabilidade biológica modifica a per-
do; a segregação escolar amplia a segregação cepção que se tem do próprio corpo e tende a
social e mesmo a classe média está perdendo diminuir o valor da vida humana gerando es-
a esperança de ascensão social para os seus sa atitude de indiferença diante do sofrimen-
filhos. to e da morte.
A moradia: ter um abrigo, um teto, confe- O aumento da mortalidade adulta mascu-
re um sentimento de segurança e dignidade. lina é um sinal alarmante que deveria incitar
Atualmente a crise de moradia é patente. Além os governantes à prudência. O exemplo de paí-
de oferta insuficiente e políticas prediais ina- ses da esfera soviética onde os orçamentos foram
dequadas (ocupação ilegal, expulsão, retoma- cortados a partir dos anos 60, mostrou a que
da pela prefeitura, aumento abusivo de pre- ponto a condição sanitária pode retroceder: na
ços), o custo de acesso à propriedade ultrapas- Rússia atual a esperança de vida para os homens
sa os recursos dos mais pobres, especialmente é inferior à da Índia.
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mensagem de sonho e misticismo, paralela a um século mais tarde, em 1995, subiu para 16
um temor pelo apocalipse próximo. milhões. Entre 1970 e 1995, o número de habi-
Com o fim do regime militar, a Igreja per- tantes passou de 8 para 16 milhões. Mesmo se,
deu o seu papel de defensora dos oprimidos e ao longo dos anos 80, o saldo migratório fi-
se afundou em conflitos internos – planeja- cou negativo e o número de emigrantes maior
mento familiar, luta pelo poder – que arrui- que o de imigrantes – desindustrialização, con-
naram a sua credibilidade. trole de entradas, especulação imobiliária – o
fluxo continua intenso. Por outro lado, a bai-
xa idade dessa pirâmide e a alta fecundidade
Fatores culturais das periferias garantem um avanço demográ-
fico contínuo.
O Brasil é o lugar dos paradoxos, onde se pre- Em muitos bairros da grande São Paulo a
sencia o choque de duas culturas: a cultura do taxa de crescimento da população ultrapassa
primeiro mundo, da Europa rica e branca, e a 4% ao ano e é, precisamente, nessas zonas que
cultura do terceiro mundo, pobre e negra. É a taxa de homicídio é mais elevada. É, efetiva-
certo que há miscigenação e que a separação mente, nas áreas de povoamento exógeno, on-
entre negros e brancos não é como nos EUA, de a população de migrantes tem grande difi-
mas existem claramente dois universos dife- culdade de encontrar trabalho e moradia, que
rentes e, socialmente, pouco integrados. As re- a polícia encontra as maiores dificuldades de
lações sexuais mistas não excluem a cisão so- controlar a escalada do narcotráfico e de ou-
cial nem a discriminação em matéria de casa- tros crimes. Ao se especializar em centro fi-
mento, emprego ou moradia. nanceiro e de serviços, e contar com tecnolo-
A sociedade brasileira é feita de uma cu- gia de ponta, São Paulo viu aumentar a exclu-
riosa mistura de latinidade e negritude, onde são das camadas menos qualificadas.
os contrastes e a discriminação social não tar- Entre 1950 e 1995, o Brasil, que tinha a po-
dam a se revelar por trás da informalidade, jo- pulação de uma potência média, passou a ter a
vialidade e cordialidade. Para escapar à sua população de um gigante demográfico: 53,4
condição, o negro tem de ser rico e isso torna- milhões, em 1950 para 161,8 milhões, em 1995.
se tanto mais difícil na medida em que aumen- Ou seja, os efetivos triplicaram em menos de
tam as barreiras entre os dois mundos e as di- meio século.
ferenças de níveis de vida e mentalidade se Ainda hoje, apesar de uma forte desacele-
aprofundam. Nas prisões e necrotérios, a po- ração, o ritmo de crescimento da população é
pulação é, em geral, negra ou mestiça; nas uni- superior à média mundial e, até 1980, ultra-
versidades, ela é 95% branca. passava o dos países do terceiro mundo. Esse
índice de crescimento ficou em torno de 3%
ao ano durante o período 1950-1970 (ao in-
A demografia urbana vés de 2,2% observado em outros países pou-
co desenvolvidos) e, mesmo que ele tenha caí-
A explosão demográfica entre os anos 1950- do recentemente (2% em 1980-1990) e ficado
1970, juntamente com a queda da mortalida- na média do mundo em desenvolvimento, sua
de infantil, traduz-se por uma pressão sobre velocidade continua difícil de gerir, pois se
as infra-estruturas e orçamentos, e por uma aplica a um conjunto muito maior e mais com-
competição feroz por emprego, agravados pe- plexo que na sociedade passada.
la recessão econômica dos anos 80. A noção de limiar crítico deve ser lembra-
Durante o período 1950-1970, a América da aqui, principalmente no tocante ao núme-
Latina tinha o crescimento demográfico mais ro de jovens adultos na faixa etária de 15-24
veloz do mundo. O produto dessa onda de nas- anos. Trata-se de uma população em busca de
cimentos está hoje na adolescência, idade mui- identidade, que não é mais criança embora não
to conturbada. Essa população luta para so- totalmente adulta. Essa população está em bus-
breviver e, ao procurar um lugar na socieda- ca de referências sentimentais, familiares, pro-
de, abandona o campo vindo desaguar nas fissionais, residenciais, etc.
grandes metrópoles. De que maneira, a sociedade brasileira, sa-
O caso da Grande São Paulo é um dos mais cudida pelos choques econômicos, poderia ab-
espetaculares da história urbana. Em 1895, sua sorver, suavemente, essa onda demográfica?
população era de apenas 200 mil habitantes; Essa sociedade está, na verdade, em plena tran-
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banais: brigas em conseqüência do álcool e nações. É também nesses países que a situação
violência doméstica. A maioria das vítimas é econômica se deteriora e que as moedas são
morta com faca e não com arma de fogo; o cri- fracas.
me permanece individual, artesanal. Em contrapartida, em países com forte dis-
Nas grandes metrópoles como Rio e São ciplina coletiva, como Alemanha, Suíça ou Ja-
Paulo, ao contrário, a droga gera lucros imen- pão, o homicídio é raro, a prosperidade bem
sos e mergulha centenas de milhares de jovens estabelecida e a moeda é forte, o que torna des-
na toxicodependência e no crime. necessário remunerar o capital com taxas de
A cocaína provoca perda da noção de es- juros abusivas para atrair ou impedir a fuga
paço, tempo e distância, além de provocar alu- de investimentos.
cinações visuais. O crack, ainda mais perigo- A violência se inscreve então num clima psi-
so, leva à dependência imediata e a uma ma- cológico coletivo, cujos significado e preço são
nia de perseguição geradora de pulsões agres- muito pesados. A instabilidade e o descrédito
sivas incontroláveis. Nos dependentes de crack, pagam-se caro, em dinheiro e em vidas huma-
a necessidade da droga leva ao roubo, à vio- nas, ainda mais na fase atual em que os capitais
lência, ao endividamento e à prostituição e, internacionais nunca estiveram tão voláteis.
em certos casos, à morte com Aids. Quanto à escola com sua vocação para
Os doentes são submetidos a um círculo transmitir conhecimentos de base: leitura, es-
vicioso de despersonalização total. O jovem, crita, cálculo, deve acrescentar o aprendizado
delinqüente ou menino de rua, vende pedras do civismo, e da tolerância. Essa mesma esco-
de crack nos sinais, recebe o dinheiro e o en- la deve, também, oferecer formações de qua-
trega ao patrão; mas se ele recusar-se a entre- lificação profissional, sobretudo em trabalhos
gar o dinheiro da venda ou se endividar por manuais (o número de trabalhadores manuais
ter se tornado também dependente, corre o não é satisfatório).
risco de ser eliminado. Num país jovem, o aprendizado da cida-
São Paulo é o mais atingido pelas drogas. dania é mais delicado que nas montanhas suí-
Segundo um dos responsáveis da delegacia de ças onde gerações vêm se sucedendo, há mais
entorpecentes, o número de viciados em crack de mil anos, nos mesmos vales, com condutas
chega a 150 mil. Se essa avaliação é correta, há bem regradas, definidas pela experiência e tra-
urgência de providências pois essas pessoas dição. O respeito a si mesmo e aos outros, e
estão condenadas à morte em pouco tempo. até o orgulho nacional, traduzem-se nos cos-
Segundo um responsável da polícia local, tumes, e no respeito à constituição, às leis e aos
a situação atingiu um ponto tal que, na parte regulamentos. Casos tão diferentes como os do
sul da Grande São Paulo, onde o desemprego Canadá e de Hong Kong são a prova disto.
e a miséria são maiores, a droga é a causa de
duas em cada três mortes, vítimas de arma de
fogo, na maioria. Uma visita ao Instituto Mé- Criação de um Conselho Superior
dico Legal mostra que essas pessoas são, ge- de Audiovisual
ralmente, mortas com perfuração do tórax por
uma bala calibre 38 – a arma mais comum en- A televisão exerce uma enorme influência so-
tre policiais e marginais – provocando hemor- bre a formação das mentalidades. Ora, esse
ragia generalizada. meio de comunicação está longe de exercer o
papel educativo que se poderia esperar dele,
exceto entre os cidadãos melhor formados, que
Recomendações políticas fazem um uso seletivo.
A televisão tem, é verdade, a imensa virtu-
O crescimento da violência reflete, em primei- de de unificar o território veiculando a mes-
ro lugar, a crise do Estado. Só nessa circuns- ma língua, a mesma mensagem e as mesmas
tância há deterioração do Estado-Nação, en- imagens sobre o espaço nacional. Mas ela tem
quanto representante do bem comum, repo- o defeito de impor aos mais vulneráveis e, com
sitório legítimo do direito e da força em no- freqüência, nas horas de maior audiência, um
me do respeito à lei. Exatamente como aconte- quadro fascinante mas sangrento; alguns so-
ce na Itália, na Rússia, na Colômbia, em Ugan- ciólogos chegam até a falar de “telemassacre”
da ou no Zaire, onde as máfias locais tomam quotidiano. Esse fato não é privilégio do Bra-
o poder e arruinam a credibilidade política das sil, é praticamente mundial.
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regem o direito de cada um sobre si mesmo e conjunto da profissão. Ao longo de nossas an-
sobre seus bens. danças em cidades tão diferentes como São
Esse retorno à concepção original de Esta- Paulo, Rio, Fortaleza e Belo Horizonte encon-
do Moderno se impõe a fim de restaurar a cre- tramos, nas delegacias e penitenciárias, ho-
dibilidade nos pilares da república: a estatís- mens notáveis, desinteressados, dedicados à
tica, a polícia, a justiça, a escola, o sistema de causa pública e com um aguçado senso do de-
saúde pública, de transportes coletivos, etc. ver de proteger a sociedade, ainda que ao cus-
to da própria vida. Testemunhamos o descon-
A estatística forto, a insegurança, a miséria e a extrema pre-
cariedade das condições em que trabalham.
A estatística não é apenas uma redução en- Em Belo Horizonte, por exemplo, onde o
fadonha – é, antes de tudo, um instrumento recrutamento e a formação psicológica da po-
de avaliação e auxílio nas decisões. Em maté- lícia são mais bem feitos, a violência é menos
ria de criminalidade, é graças a ela que se po- freqüente. A imagem da polícia, em sua natu-
de determinar áreas de risco. Ela permite, reza profunda, é que tem de ser mudada; ela
igualmente, identificar categorias de pessoas não deve ser vista como parasita mas como
perigosas ou em perigo e, então, hierarquizar instância intermediária da república entre os
as prioridades e instalar dispositivos de vigi- cidadãos, como defensora dos fracos contra
lância policial. A existência de zonas “pardas” os fortes, das pessoas honestas contra os mar-
que escapam a qualquer controle do Estado, ginais.
onde o crime acontece impunemente, é pre- Torna-se urgente restaurar a imagem da
judicial ao respeito pela coisa pública. função policial. Isso seria feito através de cam-
Postos de observação valiosos como o IB- panhas publicitárias mas, também, de um es-
GE ou o Seade, que fornecem aos governantes forço de revalorização das qualificações. A
os indicadores de que necessitam para orien- imagem a ser divulgada é a de uma polícia “ci-
tar suas escolhas, devem, certamente, ser rees- dadã”, a serviço do bem público.
truturados a fim de aumentar sua eficácia e Informação objetiva pode ser produzida
utilidade. Essa reestruturação não deve, entre- pelos grandes meios e, sobretudo, pela televi-
tanto, ser feita com cortes de pessoal e mate- são, denunciando, sim, os abusos da polícia
rial pois colocaria em perigo sua produtivida- mas mostrando, também, sua face oculta, mais
de. A solidez de conhecimentos é a base da discreta e desconhecida: a dedicação extrema
qualidade das escolhas dos dirigentes. O que de milhares de profissionais anônimos cujo
é um navegador sem bússola? papel é imprescindível para impedir uma “co-
lombianização” da sociedade brasileira.
A polícia A revalorização da profissão só se torna
exeqüível com a adequação das perspectivas
A polícia brasileira tem má fama e é alvo de carreira, ou seja, das funções e salários re-
de descrédito. Em todas as camadas da socie- lativos dos corpos policiais. Ao se saber rejei-
dade, inclusive nos meios policiais, ouvimos tada, desprezada e pouco instruída, a polícia
repetidamente que a polícia civil é corrupta e não se sente segura de si e adota um compor-
a militar violenta. Trata-se, é claro, de uma ge- tamento de desafio e provocação. Tudo me-
neralização grosseira e é preciso levar em con- lhoraria com a redução desse mal estar.
ta o ambiente de trabalho, a frustração profis- O medo é gerador de violência, o diálogo,
sional e os salários insuficientes para as neces- redutor. A conversa, a negociação e a diplo-
sidades de uma família. macia sempre foram substitutos ao uso da for-
Além disso, a corrupção, assim como a vio- ça. A idéia de uma “polícia cidadã”, com res-
lência, só atingem uma parte minoritária des- peitabilidade, integrada nos bairros, traba-
ses grupos profissionais. Entretanto, o mal lhando a serviço da comunidade local deve
existe inegavelmente e tem um efeito desas- abrir caminho.
troso, junto à opinião pública, para a imagem As carências funcionais e organizacionais
das forças da ordem. Esses defeitos têm razões da polícia pública levam à proliferação das
históricas e econômicas objetivas, difíceis de “polícias” paralelas, privadas. Em São Paulo
apagar a curto prazo. existe o triplo de vigilantes particulares (em
É certo que os desvios de alguns, ainda que bancos, companhias de seguro, imóveis, etc.)
numerosos, não devem manchar a imagem do que de policiais civis ou militares e essa polí-
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king do crime. Sempre estiveram mergulhados uma maior adaptabilidade, fruto da qualida-
em condições de precariedade, física e mate- de da formação de base, para enfrentar a de-
rial, extremas; como, para eles, a vida não tem sestabilização gerada pela intensa concorrên-
valor – a deles ou a dos outros – não temem a cia. Como reaproveitar milhões de ex-agricul-
morte; sabem que, nesse meio, muitos têm vi- tores, ex-operários e ex-empregados se eles
da curta. O crime, a Aids, as drogas ou o ál- não têm nem mesmo os rudimentos dos co-
cool vão eliminá-los no limiar da vida adulta. nhecimentos de base necessários?
O próprio sistema penitenciário deve ser Ora, o ensino público brasileiro é notório
repensado e readaptado às exigências, atuais pela deficiência e pelo despreparo com rela-
e futuras, caso contrário, será elevado o preço ção às exigências do futuro. Os professores,
pago pela sociedade brasileira. cujos salários são irrisórios, não têm forma-
A elevação acelerada do crime organizado ção contínua, não conseguiram se adaptar à
fomenta a formação de uma nova classe cri- mudança do ensino de elite para o ensino de
minal recrutada entre os marginais, formada massa e sua função cívica – ensino das leis, da
e aperfeiçoada pelo contato com criminosos ética e de valores em geral – tende a desapare-
profissionais nas celas das delegacias e, a se- cer. Isso acontece exatamente quando essa fun-
guir, nas grandes penitenciárias. Durante uma ção é mais necessária, devido à crise da famí-
entrevista, um criminoso lançou de maneira lia, da sociedade e ao caos intelectual e moral
brutal: “Na escola pública eu fiz o primário, na provocado pelo desregramento dos meios de
prisão preventiva, o secundário e, depois de vá- comunicação.
rias passagens por Carandiru, fiz o curso supe- A escola deve, então, redefinir prioridades
rior. Tenho todos os diplomas da escola do cri- políticas. A violência é fruto, mais da ignorân-
me, conheço minha profissão e sou respeitado”. cia, que da pobreza. Quais são as referências
do analfabeto numa sociedade de sinais, de
A educação símbolos e de códigos cada vez mais comple-
xos? Como pode um governo, que prega a en-
O proveito econômico da formação de ba- trada no terceiro milênio pelo advento das no-
se em termos de crescimento e desenvolvimen- vas tecnologias, conceber esse salto para a mo-
to já foi determinado e é, regularmente, enfa- dernidade sem um investimento maciço em
tizado pelo Banco Mundial. Na sociedade do qualificação? A sociedade do futuro vai exigir
século XXI, os trabalhadores analfabetos ou maior flexibilidade e adaptabilidade que a do
semi-analfabetos estarão cada vez mais defa- passado, o que requer uma sólida formação de
sados: a mecanização, a automatização, a in- base para o maior número possível.
formatização e a globalização os marginaliza-
rão e excluirão. Então, o papel da escola é pre- Uma redefinição do Estado
parar o futuro, formando e enquadrando os
efetivos futuros. Duas tentações extremas devem ser evita-
A educação não deve limitar-se apenas à das: a de tudo pelo Estado, que desabou com
transmissão de conhecimentos fundamentais: o comunismo e a de nada pelo Estado, mais
leitura, escrita, aptidão à abstração matemá- na moda, mas igualmente perniciosa.
tica, conhecimento de línguas estrangeiras, etc. O neo-liberalismo atual consiste em se ga-
Ela inclui, também, o aprendizado de regras bar das vantagens do Estado mínimo, isto é,
de comportamento em sociedade, do civismo, em destruir, em última estância, o Estado, con-
do respeito pelo outro, pelas instituições e pe- siderado como parasita, como um polvo bu-
las leis, o conhecimento dos direitos e deveres rocrático e, em conseqüência, desmantelar os
do cidadão, o incentivo à inovação e à vida as- serviços públicos de base – educação, seguran-
sociativa e política local. Essas matérias são, ça, saúde, etc. É uma via sedutora pois, é fla-
igualmente, dimensões essenciais da recupe- grante o fracasso do comunismo, fundado so-
ração nacional. bre a negação do setor privado. O retorno do
A perda de prioridade pelo setor da edu- cripto-comunismo em vários países da esfera
cação, a partir do início dos anos 80, diz res- soviética, depois de um período de pseudo-
peito, sem dúvida, à crise da sociedade e da abertura, retarda a transição e desqualifica os
economia brasileiras. O choque da globaliza- países envolvidos.
ção foi melhor tolerado pelos países mais so- Trata-se, então, de fundar novamente um
lidários e preparados mentalmente, graças a Estado ideal, de maneira a permitir o equilí-
65
Referência
Locke J 1690. Second Treatise of Government, livre 11.