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Belo Horizonte
Novembro de 2011
1. Justificativa
Desde os primeiros atos de escrever realizados pelo homem, memória e escrita têm
caminhado juntas. Escreve-se para tornar perpétuo. Para que o objeto escrito seja lido e
relembrado. Registrado. Resgatado de um passado que, próximo ou distante, já não se pode
atingir. Atualizado, presentificado, rememorado. Seja em diários, cartas, testemunhos,
registros, livros de recordação, poemas ou romances, a escrita é ato carregado de memória.
Há, no entanto, uma outra força que move a escrita. Uma força que, a princípio, não se
apresenta ao olhos, por encontrar-se por detrás da memória. Não o seu avesso, oposto ou
contraparte - aquilo que, justamente por desfazê-la por dentro, torna-a possível: o
esquecimento. Proust já definiria a memória involuntária como aquilo que vem “numa dose
exata de memória e esquecimento”1. Borges nos apresenta ao esquecimento como “uma das
formas de memória”, o seu “secreto verso da moeda”2.
Partindo das concepções de ambos escritores, podemos afirmar que esquecer não é,
necessariamente, o antônimo de lembrar. De fato, essas duas forças – a da memória e a do
esquecimento – agiriam em concomitância, de maneira que uma só existe por conta da outra.
Nessa perspectiva, não seria possível uma memória total, como também nos demonstra
Borges com a inviável ultramemória de Funes, el memorioso – o homem que, ao lembrar-se
de tudo, torna-se incapaz de produzir pensamento abstrato. Também não haveria um
esquecimento absoluto, que nada mais seria que o vazio abismal, o não-texto. Memória e
esquecimento, dessa forma, alimentar-se-iam mutuamente e coexistiriam em diferentes
medidas.
Essas relações podem tornar-se mais ou menos evidentes nos textos literários. De um
lado, encontramos aqueles em que a escrita operara pela superação ou ocultamento das
lacunas abertas pelo esquecimento. De outro lado, os textos em que as lacunas não apenas são
visíveis, como podem ser objeto ou tema da escrita. É possível apontar, no entanto, um outro
grupo de textos literários que, escapando à dicotomia de superação ou evidenciamento dos
seus vazios, constóem-se justamente no limiar entre a memória e o esquecimento. Nesses
textos, a narrativa seria o relato dessa experiência no limite, trazendo à tona todas as tensões
inerentes a uma escrita que, simultaneamente, se ergue e se desmancha, movida pelas forças
Mais ou menos dos dezesseis aos vinte e nove anos passei no mínimo três a
quatro horas todos os dias, com exceção de um ou outro sábado e de certa segunda-
feira, escrevendo não me lembro bem se um romance ou um livro de crônicas.
Recordo com perfeição, porém, tratar-se de obra admirável, a pôr a nu de modo
confortavelmente melancólico, a condição humana universal e eterna, particularizada
com emoção discreta nas dimensões nacionais e de momento. Dei para um amigo
meu, funileiro, ler e ele achou muito bom.
Perdi os originais há muitos anos, em circunstâncias que não me convém
deixar esclarecidas. Do trabalho, tão importante, guardo apenas memória vaga; de
que havia, indubitavelmente, um tema, ou vários temas, e mesmo um ou outro
personagem, mas não consigo reproduzir um único gesto, nenhuma situação ou
frase.4
O romance se abre, dessa forma, sobre uma série de indefinições. Somos apresentados
a um protagonista que escrevera um livro “mais ou menos dos dezesseis aos vinte e nove
anos”, ao longo de todos os dias, com exceção de “um ou outro sábado”. O livro possuía “um
tema, ou vários temas”, escritos em torno de “um ou outro personagem”. As lembranças desse
livro, ainda, já assumem desde o início a condição de paradoxo: ao passo que o narrador
3 Referimo-nos, aqui, aos manuais de história literária e aos compêndios de obras canônicas produzidas no
período. O romance, entretanto, já foi objeto de análise da crítica especializada nas questões de ficção e
política e de literatura e loucura. Entre esses estudos críticos, destacamos o livro Itinerário político do
romance pós-64: a festa, de Renato Franco.
4 POMPEU. Quatro-olhos, p. 15.
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recorda “com perfeição” o valor estético da obra, ele guarda “apenas memória vaga” dela. De
fato, não consegue “reproduzir um único gesto, nenhuma situação ou frase”. Marca-se assim,
desde o início da narrativa, o seu movimento dual entre memória e esquecimento.
Na referida passagem, uma outra imprecisão nos chama a atenção: os originais desse
livro misterioso foram perdidos, nos relata o narrador, “em circunstâncias que não me convém
deixar esclarecidas”. Encontramo-nos, aqui, não com uma lacuna ou um espaço aberto, mas
com uma memória velada: o narrador de Quatro-olhos esconde voluntariamente as
circunstâncias de perda dos originais de seu livro.
Contudo, esse ocultamento não é sustentado por toda a narrativa. Após a leitura de
uma extensa primeira parte do romance - “Dentro” - finalmente descobrimos que o narrador e
protagonista encontrava-se casado com uma opositora ao regime militar que, certo dia,
abandonou sua casa em fuga da polícia. Os militares chegaram logo em seguida:
Com a narrativa do confisco dos originais pelos militares, encerra-se a primeira parte
do romance. Seguem-se a ele a segunda parte - “Fora” - que relata, em terceira pessoa, a
estadia do protagonista em uma instituição psiquiátrica e a terceira - “De volta”, em que o
narrador recebe alta e, incapaz de encontrar os originais perdidos, toma uma decisão: escrever
outra vez o livro.
Como se colocaria, dessa forma, o romance com relação à sua origem? Direcionando
um constante olhar para aquilo que se perdeu, que foi tragado, esquecido. Simultaneamente,
Portanto, para Benjamin, origem não é a gênese. Não nos diz um lugar de onde vem o
texto, mas aquele ponto de onde ele é colocado em devir, entre seu nascimento e sua morte.
Na colisão entre presente, passado e futuro, Proust não apenas ergueu, em sua
literatura, o tempo quebrado, transformado e multiplicado. Ao fazer com que todos os
instantes coincidissem com um só, movidos pela espera da escrita ainda por vir, o escritor fez
com que sua narrativa não fosse apenas o relato de um acontecimento, mas o acontecimento
em si. Proust descobrira, segundo Blanchot, a lei secreta da narrativa:
16
BLANCHOT. O livro por vir, p. 33.
17
Cf. PROUST. Em busca do tempo perdido, obra em 7 volumes.
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A narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso
a esse acontecimento, o lugar aonde ele é chamado para acontecer, acontecimento
ainda por vir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também
ela, realizar-se. Essa é uma relação muito delicada, sem dúvida uma espécie de
extravagância, mas é a lei secreta da narrativa. A narrativa é movimento em direção
a um ponto, [...] de modo que ela não pode nem mesmo “começar” antes de o haver
alcançado; e, no entanto, é somente a narrativa e seu movimento imprevisível que
fornecem o espaço onde o ponto se torna real, poderoso e atraente.
A narrativa de Proust, nesse sentido, seria não apenas o relato de sua espera, mas o
próprio acontecimento da espera. Espera que permeia o movimento em direção a um ponto: a
escrita. Em busca do tempo perdido seria, assim, o acontecimento da narrativa que permite-se,
finalmente, escrever-se.
Acreditamos não ser possível traçar uma relação unívoca entre a narrativa de Proust e
a de Pompeu. O acontecimento da espera pela escrita na obra proustiana constitui, em sua
magnitude, a narrativa de toda uma vida. Quatro-olhos, por outro lado, é uma narrativa
atormentada construída em torno de uma escrita ausente. Entretanto, ambas as narrativas
apresentam um ponto em comum, que se mostra fundamental a esta investigação: elas se
erguem sobre a espera por uma escrita e fazem, desse tempo de espera, a própria escrita. Em
Proust, uma escrita que seja capaz de apreender “o tempo em estado puro”, que só chega ao
término do Tempo Redescoberto. Em Pompeu, uma escrita que reconstrua um livro perdido,
sempre na iminência de surgir entre as ruínas da narrativa.
Nesse sentido, Quatro-olhos seria lugar de uma escrita em estado de espera, como a
proustiana, mas marcada profundamente pelo signo da ausência. Espera e ausência que
parecem acarretar o estabelecimento de outras relações entre tempo e narrativa. Relações não
pautadas na linearidade, na lógica de sucessão ou em uma pretensa continuidade. Como já
diria Blanchot sobre Joubert, outro escritor com trajetória de potência e espera, “relações que
escapam, portanto, ao que há de regularidade temporal nas relações lógicas da razão”18.
No entanto, a espera do narrador de Pompeu, em contraste à do narrador proustiano,
parece não ter mais fim. No paradoxo temporal que o romance constrói, o narrador está
sempre buscando seu livro perdido. Na medida em que a busca constitui o próprio
acontecimento da narrativa, o livro está sempre se reescrevendo. Justamente por isso, ele está
sempre por ser reescrito. No romance de Pompeu, dessa forma, sempre e nunca parecem não
se colocar em relação de antonímia: são, ao contrário, os termos complementares de uma
narrativa cuja realização é, justamente, sua impossibilidade.
18
BLANCHOT. O livro por vir, p. 88.
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2. Objetivos
Objetivo geral
Investigar as formas pelas quais a narrativa de Quatro-olhos, de Renato Pompeu, se
produz no encontro da memória com o esquecimento, lançando-se, por conta dessa
experiência no limiar, para fora de um tempo linear e em direção a um tempo outro, em que a
escrita se faz, desfaz e refaz infinitamente.
Objetivos específicos
• Identificar, no texto do romance, memória e esquecimento como forças propulsoras da
escrita;
• Relacionar a oscilação da escrita entre densidade narrativa e vazio referencial à
constante tensão entre memória e esquecimento, manifesta no texto;
• Analisar a chegada das memórias do protagonista à superfície do texto, assim como os
impactos que esse processo de emersão gera sobre a estrutura e a disposição da
narrativa;
• Compreender a estruturação da narrativa em torno de um livro perdido, motivadora do
mergulho do narrador nas profundezas de seu próprio esquecimento;
• Relacionar os complexos contornos temporais que o texto ganha ao seu constante
estado de espera pela reescrita do livro perdido, condição única à realização da
narrativa;
• Investigar de que maneira essa constante espera se coloca como resposta à experiência
no limiar do narrador entre os territórios da memória e os abismos do esquecimento;
3. Plano
Introdução
• Apresentação de Quatro-olhos e da obra do escritor Renato Pompeu;
• Abordagem da fortuna crítica do romance e inserção da corrente pesquisa no debate;
• Histórico da pesquisa e indicação do caminho percorrido para se chegar à questão.
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Capítulo 1 – Livro escrito, livro lembrado
• Apresentação da hipótese: a escrita do romance no limiar entre memória e
esquecimento;
• As escritas da memória na modernidade: a perda da experiência, a narração nas ruínas
da narrativa;
• Identificação dos pontos de ancoragem no texto de Quatro-olhos e de sua relação com
o processo de emersão das memórias no texto;
Conclusão
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4. Metodologia
Para a realização desta pesquisa, optamos por colocar em primeiro plano a própria
obra literária a ser estudada. Por tratar-se de um romance praticamente esquecido pela critica
literária e pelo público leitor, a proposta é abrir as suas possibilidades de leitura por meio da
investigação da tensão entre memória e esquecimento no texto - aspecto fundamental do
romance. Este estudo, portanto, terá como princípio e fim o próprio texto literário, trazendo,
sempre que necessário, contribuições da teoria e crítica literária, assim como de outros
campos de saber (em especial, a filosofia), com o objetivo de aclarar os pontos de obscuridade
na leitura.
5. Cronograma
2011 Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
2012 Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
Releitura da bibliografia
referente ao primeiro capítulo e
redação do mesmo.
Releitura da bibliografia
referente ao segundo capítulo e
redação do mesmo.
Releitura da bibliografia
referente ao terceiro capítulo e
redação do mesmo.
Releitura dos capítulos
anteriores, redação da
introdução e da conclusão
Defesa da dissertação.
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6. Bibliografia
______. Bartleby, escrita da potência. Trad. Pedro A.H. Paixão e Manuel Rodrigues. Lisboa:
Assírio & Alvim, 2008
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. Trad. Sergio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______. Obras escolhidas III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad.
José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.
______. Origem do drama barroco alemão. Trad. Sergio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
______. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
FRANCO, Renato. Itinerário político do romance pós-64: a festa. São Paulo: Ed. Unesp,
1998.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.
GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1997.
POMPEU, Renato. Quatro-olhos. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.
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PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: no caminho de Swann. Trad. Mario Quintana.
São Paulo: Globo, 2006.
______. Em busca do tempo perdido: o tempo redescoberto. Trad. Lucia Miguel Pereira. São
Paulo: Globo, 1995.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo:
Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
WEINRICH, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Ed. Civilização
Brasileira, 2001.
Teses:
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