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Ética

As fronteiras da ética
O Debate Cohen/Regan sobre o Estatuto Moral dos Animais
Pedro Galvão

A minha contribuição para este colóquio resulta sobretudo da leitura de um livro que foi
publicado no ano passado. O livro chama-se The Animal Rights Debate(1) e tem dois
autores: um deles é Tom Regan, que dispensa apresentações; o outro é Carl Cohen, um
crítico da perspectiva de Regan que se tem destacado como defensor da experimentação
animal. Neste livro centrado no problema de saber se os animais têm direitos morais,
Cohen e Regan defendem separadamente a sua perspectiva num ensaio; depois cada
autor responde ao ensaio do outro. O livro é um dos melhores no seu género, e julgo que
constitui mesmo uma excelente introdução às questões éticas sobre o tratamento dos
animais, mas nenhuma das perspectivas nele apresentadas me deixou convencido. Vou
aqui tentar explicar porquê.

Comecemos pela perspectiva de Cohen. Tal como Regan, Cohen pensa que existem
direitos morais e que um ser possuir tais direitos faz uma grande diferença para definir o
seu estatuto moral. Mas afirma que só os seres humanos têm direitos — e que todos os
seres humanos os têm. Ainda assim, Cohen não coloca os animais totalmente fora do
domínio da ética, pois admite que temos em relação a eles algumas obrigações, que na
verdade parecem reduzir-se a isto: não devemos fazê-los sofrer injustificadamente. No
entanto, na medida em que é claro Cohen parece presumir que praticamente qualquer
inflicção de sofrimento é justificável se dela resultar algum benefício para os seres
humanos. Embora o sofrimento animal deva ser levado em conta nas nossas
deliberações morais, não merece o mesmo peso que o sofrimento humano similar.
Cohen não pensa que, para determinar quando é aceitável infligir sofrimento aos
animais, temos de apreciar a situação numa perspectiva estritamente imparcial na qual
os interesses de todos os envolvidos (sejam eles animais ou seres humanos) estão em pé
de igualdade. Ele declara-se especista — e de facto é especista, embora por vezes revele
não compreender o significa aceitar o especismo.(2) Mas em seu entender o que faz o
sofrimento animal contar menos que o sofrimento humano? A única justificação que
encontramos é esta: os interesses dos seres humanos, incluindo o interesse em não
sofrer, estão protegidos por direitos, mas os animais não possuem tal protecção
decorrente da posse de direitos, pois não os possuem nem os podem possuir. Mas
porquê? Por que razão a classe dos que possuem direitos, e que por esse motivo têm um
estatuto moral muito superior, coincide exactamente com a classe dos seres humanos?
No capítulo “Why Animals Do Not Have Rights”, Cohen tenta dar uma resposta
satisfatória a esta pergunta. Infelizmente, em vez de argumentos claramente estruturados
encontramos apenas várias considerações vagas e dispersas. Ainda assim, tais
considerações não deixam de ser sugestivas, e uma leitura atenta permite identificar três
argumentos distintos.(3)

No primeiro argumento, Cohen presume que a origem do conceito de direito na


comunidade humana é relevante para determinar quem tem direitos. Ele afirma o
seguinte: “Os animais não podem ser portadores de direitos porque o conceito de direito
é essencialmente humano; está enraizado no mundo moral humano e só tem força e
aplicabilidade nesse mundo” (p. 30). Mais à frente reforça esta ideia quando diz: “os
direitos são universalmente humanos, surgem na esfera humana, aplicam-se ao seres
humanos em geral” (p. 37). Vale também a pena citar um outro ensaio de Cohen, onde
este declara que os seus críticos: “supõem erradamente que os direitos estão ligados a
certas capacidades ou sensibilidades individuais identificáveis, e não conseguem ver
que os direitos surgem apenas numa comunidade de seres morais, e que por isso há
esferas em que os direitos se aplicam e esferas em que não se aplicam”.(4) Se tentarmos
tornar explícito o argumento de Cohen, chegaremos a algo como o seguinte:

O argumento da comunidade

1. A ideia de direitos só pode surgir numa comunidade de seres morais.


2. Logo, a ideia de direitos só pode ser aplicada a membros de uma comunidade de
seres morais.
3. Pelo menos na Terra, a única comunidade de seres morais é a comunidade
humana.
4. Logo, pelo menos na Terra, a ideia de direitos só pode ser aplicada a seres
humanos.

Há dois grandes problemas neste argumento. Em primeiro lugar, não se pode inferir 2 a
partir de 1 sem uma premissa suplementar como esta:

 Se uma ideia só pode surgir num certo tipo de comunidade, então só pode ser
aplicada a membros de uma comunidade desse tipo.

É óbvio que esta premissa tem de ser rejeitada, como podemos constatar tomando como
exemplo o conceito de gene: o conceito de gene surge apenas em comunidades de seres
racionais, mas é claro que se aplica a muitos seres que não fazem parte de qualquer
comunidade desse tipo. Isto mostra que Cohen faz uma confusão lamentável entre as
condições de formação de uma ideia e o domínio de objectos a que uma ideia pode ser
inteligivelmente aplicada. Se ele pensa que no caso da ideia de direitos morais (por
oposição à ideia de gene) as suas condições de formação determinam o domínio de
objectos a que esta pode ser aplicada, tem de explicar esta estranha conexão, coisa que
não faz.

O outro problema do argumento torna-se manifesto se nele substituirmos “comunidade


humana” e “seres humanos” por, respectivamente, “comunidade dos agentes racionais e
autónomos” e “agentes racionais e autónomos”. O argumento obtido desta maneira
exclui do núcleo central da ética todos os seres humanos que não são racionais ou
autónomos. É claro que Cohen não o aceitaria, mas por que razão devemos considerá-lo
pior que o seu argumento? Cohen diria que a comunidade relevante para traçar as
fronteiras da ética não é a dos seres racionais e autónomos, mas a comunidade humana.
Esta ideia, no entanto, tem de ser justificada,

O segundo argumento de Cohen parte da afirmação de que os animais vivem num


mundo amoral, isto é, num mundo em que nada é certo ou errado e em que, portanto,
não há quaisquer direitos a respeitar: não faz sentido dizer que uma zebra tem o direito
de não ser morta por uma leoa, nem que uma leoa tem o direito de matar uma zebra.
Mesmo admitindo que alguns animais (estou a pensar nos grandes símios) não vivam
num mundo inteiramente amoral, no essencial tudo isto me parece incontroverso. Mas
Cohen presume que da amoralidade dos animais se segue que estes não têm direitos. O
seu argumento é este:

O argumento da amoralidade

1. Os animais vivem num mundo amoral.


2. Não podem existir direitos entre aqueles que vivem num mundo amoral.
3. Logo, não podem existir direitos entre os animais.
4. Logo, os animais não têm direitos que possamos desrespeitar.

Uma vez mais, o argumento só se torna logicamente aceitável com a introdução de uma
premissa suplementar, que é esta:

 Se não podem existir direitos entre os animais, estes não têm direitos que
possamos desrespeitar.

E também uma vez mais a premissa suplementar é falsa, ou pelo menos não deve ser
aceite sem uma boa justificação. Além disso, como Regan salienta, uma pessoa como
Cohen, que acredita que temos deveres em relação ao animais, não pode aceitar
coerentemente o argumento da amoralidade, pois se nele substituirmos as ocorrências de
“direitos” por ocorrências de “deveres” — e “desrespeitar” por “infringir” —
chegaremos à conclusão de que não temos tais deveres. Vale também a pena observar
que, se substituíssemos antes as ocorrências de “animais” por ocorrências de “recém-
nascidos humanos”, chegaríamos à conclusão, que Cohen também não quer aceitar, de
que os recém-nascidos humanos não têm direitos. Em ambos os casos, o desafio que se
coloca a Cohen é explicar por que razão os argumentos obtidos através das substituições
são piores que o argumento original.

Examinemos agora o terceiro argumento. Este é talvez o mais importante, até porque
quem o aceitar poderá evitar parte das objecções aos outros dois, e surge nesta
passagem:

As crianças humanas, tal como os adultos de idade avançada, têm direitos porque são
seres humanos. A moralidade é um aspecto essencial da vida humana; todos os seres
humanos são criaturas morais, crianças e senis incluídos. Não é estabelecendo a
presença de uma certa capacidade específica nesta ou naquela pessoa individual que se
atribuem direitos. Esta visão errada resultaria na concessão selectiva de direitos a alguns
indivíduos, ficando outros excluídos, e ao cancelamento dos direitos quando a
capacidade cessasse. [...] A capacidade de fazer juízos morais que distingue os seres
humanos dos animais não é um teste a ser administrado aos seres humanos um por um.
As pessoas que, por causa de uma deficiência, são incapazes de desempenhar todas as
funções morais naturais nos seres humanos não são por essa razão excluídas da
comunidade moral. A distinção crucial é de tipo. Por serem seres de um certo tipo os
seres humanos têm direitos lhes pertencem enquanto seres humanos; os seres humanos
vivem vidas que serão, foram ou permanecem essencialmente morais. É disparatado
supor que os direitos humanos podem flutuar em função da saúde do indivíduo ou
dissipar-se com o seu declínio. Os direitos em questão são direitos humanos. Por outro
lado, os direitos nunca pertencem aos animais em virtude de estes serem seres de um
certo tipo; aquilo que os seres humanos preservam mesmo quando ficam incapacitados,
os ratos nunca chegam a possuir. (p. 37)

Este argumento é especista — não estou a dizer isto para afastá-lo liminarmente, mas
apenas para caracterizá-lo. E para caracterizá-lo adequadamente é preciso distinguir
dois tipos de especismo. O especismo básico é a ideia de que o simples facto de um
indivíduo pertencer a uma certa espécie, independentemente de quaisquer outras
considerações, é relevante para determinar o seu estatuto moral ou o modo como deve
ser tratado. Não é este o tipo de especismo que Cohen subscreve, e ainda bem, porque
não se percebe como é que a propriedade de pertencer a uma certa espécie poderia ser
em si moralmente relevante. Ao argumento de Cohen subjaz um especismo qualificado.
Quem é especista neste sentido pensa que a pertença a uma espécie pode ser importante
porque uma tal propriedade, mesmo não sendo em si moralmente relevante, pelo menos
no caso dos seres humanos está fortemente correlacionada com propriedades
moralmente relevantes. Segundo este ponto de vista, o que nos torna superiores
enquanto humanos não é o simples facto de pertencermos à espécie Homo sapiens, mas
o facto de existir uma forte correlação entre pertencer a esta espécie e, por exemplo, ter
a propriedade de ser racional e autónomo, de ser capaz de fazer juízos morais ou de ter
uma vida essencialmente moral. É certo que alguns seres humanos não possuem
propriedades como estas, mas como pertencem a um grupo de indivíduos que por norma
as possuem devem ser tratados como se também as possuíssem. Parece ser este o tipo de
perspectiva que subjaz ao argumento de Cohen, que podemos agora apresentar assim:

O argumento da espécie

1. Um indivíduo tem direitos se, e apenas se, é membro de um grupo de indivíduos


que por norma têm uma vida moral.
2. Todos os seres humanos, e apenas eles, fazem parte de um grupo de indivíduos
que por norma têm uma vida moral. (Esse grupo é a espécie Homo sapiens.)
3. Logo, todos os seres humanos, e apenas eles, têm direitos.

Podemos questionar a segunda premissa fazendo notar que há grupos mais abrangentes
de indivíduos que por norma têm uma vida moral, como o grupo constituído pelos seres
humanos e respectivos animais de companhia. Tendo em mente esse grupo, poderíamos
construir um argumento semelhante chegando à conclusão de que alguns animais têm
direitos, e uma vez mais Cohen teria de explicar por que razão não deveríamos aceitar
esse argumento.

O problema principal do argumento, no entanto, reside na primeira premissa. Contra


esta premissa podemos, e devemos, defender o individualismo moral: a ideia de que o
estatuto moral de um indivíduo é determinado não pela sua pertença a qualquer grupo,
mas pelas características que possui enquanto indivíduo. Quem, como qualquer
especista (e qualquer racista), rejeita esta ideia presume que devemos tratar um
indivíduo não em função das suas características, mas em função das características de
outros indivíduos. Este pressuposto tem consequências absurdas. Suponha-se, por
exemplo, que os seres humanos da raça x são em geral mais dotados para a matemática
que os seres humanos da raça y. João, que é da raça y, candidata-se a um curso de
matemática, e nas provas de admissão tem melhor nota que todos os candidatos da raça
x. Certamente consideraríamos inaceitável que recusassem a sua admissão dizendo que
os membros da raça y são em geral menos dotados para a matemática. Diríamos que o
que interessa é aquilo que João sabe de matemática — não aquilo que os da raça de João
ou de outras raças sabem de matemática. Nestas circunstâncias julgo que, para
permanecermos coerentes, temos de pensar o seguinte: para definir o estatuto moral de
um indivíduo devemos ver se ele possui as capacidades ou características consideradas
relevantes — não se os membros de um grupo a que ele pertence possuem essas
capacidades ou características. Somos assim levados a rejeitar o especismo, mesmo
qualificado, e a aceitar o individualismo moral.

Mas talvez o argumento de Cohen possa ser reconstruído de uma maneira individualista.
Vejo uma maneira de fazer isso, que é esta:

1. Um indivíduo tem direitos se, e apenas se, tem uma vida que foi, será ou
permanece essencialmente moral.
2. Todos os seres humanos, e apenas eles, têm uma vida que foi, será ou permanece
essencialmente moral.
3. Logo, todos os seres humanos, e apenas eles, têm direitos.

Está aqui presente um tipo de individualismo muito peculiar, pois tomam-se como
relevantes não só as propriedades que um indivíduo efectivamente possui, mas também
as propriedades que ele poderá vir a possuir ou já possuiu num momento anterior da sua
vida. Este argumento, no entanto, não serve os propósitos de Cohen, pois a segunda
premissa é falsa: há seres humanos, como os deficientes mentais profundos, cuja vida
não é, nem foi, nem nunca será essencialmente moral.

O fracasso dos argumentos de Cohen deixa-nos sem qualquer razão acreditar que todos
os seres humanos, e apenas eles, têm direitos. Não parece pura e simplesmente existir
qualquer maneira plausível de excluir do núcleo central da ética todos os animais sem
excluir também muitos seres humanos.

II

Vejamos agora se a perspectiva de Regan nos proporciona um modo satisfatório de


traçar as fronteiras da ética. É óbvio que não posso discutir aqui esta perspectiva de uma
forma razoavelmente detalhada, mas para o que pretendo basta destacar três dos
aspectos principais do pensamento de Regan.

O primeiro desses aspectos é um absolutismo quanto a direitos. No seu longo


argumento a favor dos direitos dos animais, Regan examina algumas das teorias morais
mais influentes, como o contratualismo ou o utilitarismo, acabando por concluir que a
única teoria defensável é aquela que nos diz que há direitos morais, mais precisamente o
direito à vida, à integridade corporal e à liberdade. Regan pensa que estes direitos são
absolutos: não podemos desrespeitá-los sejam quais for os benefícios em vista.

O individualismo moral é o segundo aspecto da teoria de Regan que importa destacar.


Para Regan um ser tem direitos em virtude daquilo que é enquanto indivíduo, e aqui a
ideia central que encontramos é a de que uma condição suficiente para um indivíduo ter
direitos é ele ser sujeito de uma vida. Quem satisfaz esta condição não se limita a estar
vivo: tem uma vida mental unificada, e essa vida pode correr melhor ou pior para si
próprio. Neste sentido, são sujeitos de uma vida — e consequentemente têm direitos —
não só quase todos os seres humanos, mas também uma grande parte dos animais.
Podemos chamar igualitarismo radical ao terceiro aspecto da teoria de Regan que aqui
nos interessa. Aceitar este igualitarismo é pensar que todos os sujeitos de uma vida têm
exactamente o mesmo estatuto moral: a vida de uma pessoa adulta tem tanto valor ou
merece tanto respeito como a vida de qualquer outro ser que possua direitos, seja ele um
cão, um recém-nascido humano, um chimpanzé ou um rato. Entre os que estão dentro
das fronteiras da ética, não há quaisquer discriminações a fazer.

Vou agora sugerir que a perspectiva de Regan, mesmo que possa parecer atraente, tem
algumas consequências práticas que a tornam extremamente implausível, para não dizer
completamente absurda.

 Alguns pessoas de outras culturas só conseguem sobreviver incluindo na sua


dieta e no seu vestuário alimentos de origem animal. Se Regan tivesse razão, a
obrigação moral dessas pessoas seria deixarem-se morrer de fome e frio. Afinal,
por maiores que sejam os benefícios em vista, nunca se pode matar qualquer
animal que seja sujeito de uma vida.
 Há organizações de combate à pobreza, como a Oxfam, que enviam alimentos a
quem precisa deles para não morrer à fome. Seguramente muitos desses
alimentos são de origem animal. Por isso, se Regan tivesse razão, seria
profundamente errado contribuir para organizações como a Oxfam. Também
julgo que Regan teria de condenar muitas das organizações de defesa dos
animais, nomeadamente todas aquelas que recolhem animais abandonados e os
alimentam com carne ou outros produtos de origem animal.
 Se Regan tivesse razão, seria errado vacinar as crianças, pois vaciná-las é estar a
alimentar uma prática de exploração dos animais. Também seria errado,
obviamente, usar quaisquer medicamentos testados em animais mesmo quando
usá-los se revelasse necessário para salvar vidas. Isto inclui os medicamentos
disponíveis nas clínicas veterinárias.
 A actividade humana tem resultado por vezes na propagação indevida de certas
espécies de animais. Os sapos que foram introduzidos na Austrália pelos seres
humanos, por exemplo, estão aí produzir uma catástrofe ecológica que conduzirá
extinção de muitas espécies. A única maneira de evitar essa catástrofe passa por
matar os sapos. Se Regan tivesse razão, aqueles que tentam repor o equilíbrio
ecológico matando os sapos estão a proceder mal — deviam permitir a extinção
das espécies nativas.
 Regan é a favor da abolição do uso de animais na investigação médica. Saber se
o uso de animais nesse contexto traz grandes benefícios que não poderiam ser
alcançados de outra maneira é uma questão muito complexa. Mas a perspectiva
de Regan não podia ser mais clara: mesmo que seja necessário matar animais (e
estamos a falar sobretudo de ratos e outros roedores) para conseguir avanços
decisivos no combate a doenças como o cancro ou Alzheimer, não matar esses
animais é em todo o caso uma exigência ética. É preciso avançar o mais
depressa possível para a abolição do uso de animais na investigação médica,
mesmo que isso implique a morte prematura de milhões de pessoas.

Se não estou enganado e a perspectiva de Regan tem pelo menos algumas destas
consequências práticas, julgo que nos resta concluir que há nela algo de profundamente
errado. Admito, sinceramente, que não sei o que dizer aos simpatizantes de Regan que
se revelem dispostos a pagar o preço da coerência aceitando tais consequências. Mas
seria interessante ver o que essas pessoas teriam a dizer a alguém que, depois descobrir
que sofrerá de Alzheimer dentro de alguns anos, deposita toda a sua esperança em
escapar a uma morte humilhante na investigação médica em curso, que envolve a morte
de ratos.

III

Critiquei a perspectiva de Cohen por carecer de uma justificação teórica satisfatória; a


de Regan por ter consequências práticas inaceitáveis. Para terminar, gostaria de esboçar
aquela que me parece ser a melhor maneira de entender o estatuto moral dos animais. A
minha sugestão principal é esta: devemos, contra os especistas como Cohen, subscrever
o individualismo moral, mas isto sem aceitar o igualitarismo radical de Regan.
Admitamos então que o estatuto moral de um ser, seja qual for a sua espécie, é
determinado pelas suas características individuais. Não pelas suas características
estritamente biológicas, que em si seguramente não têm relevância moral, mas pelas
suas capacidades mentais. A partir daqui podemos defender — como Peter Singer ou
mesmo John Stuart Mill — que em geral aqueles seres que têm uma vida mental mais
rica ou um nível mais elevado de consciência possuem, por essa razão, mais valor que
os seres dotados de uma mente mais elementar. (E importa sublinhar que podemos
defender esta ideia sem aceitar o utilitarismo de Singer e Mill.) Num extremo
encontramos aqueles seres cuja vida mental quase se resume sensações muito limitadas
de dor e prazer, que nem sequer são, presumo, “sujeitos de uma vida” no sentido de
Regan; no outro extremo encontramos os seres humanos plenamente conscientes de si,
racionais e autónomos — ou seja, as pessoas.

Parece-me que adoptar este tipo de perspectiva é a única maneira de evitar conclusões
práticas absurdas sem incorrer no especismo. Podemos pensar, no entanto, que ao
adoptá-la somos conduzidos ao elitismo moral e, em última análise, a uma tirania dos
mais inteligentes ou algo do género. Podemos pensar, enfim, que ao seguir este caminho
acabamos também por chegar a conclusões inaceitáveis. Afinal, não teremos assim que
defender, por exemplo, que os deficientes mentais ou as crianças muito jovens têm um
estatuto moral inferior ao dos seres humanos adultos sem deficiências mentais? Não
necessariamente. Podemos defender que todos os que estão acima de um certo nível —
todos os que seres que têm consciência de si, por exemplo — têm direito ao grau mais
elevado de protecção moral. Além disso, importa não esquecer que o modo como um
ser deve ser tratado não tem de depender apenas do seu estatuto moral. Podemos dizer,
por exemplo, que os recém-nascidos ou os seres humanos com deficiências mentais
muito profundas, mesmo que tenham um estatuto moral inferior ao dos seres humanos
adultos, em virtude daquilo que representam para os que lhe são próximos devem ser
tratados com muito mais respeito que os animais com um nível de consciência similar.

Como espero ter deixado claro, há aqui muitas hipóteses para desenvolver e examinar
cuidadosamente. A situação é bem mais complexa do que Cohen e Regan presumem:
para sabermos como tratar os animais, não basta traçar uma linha que separe quem tem
de quem não tem importância moral, e ver depois de que lado estes ficaram.

Pedro Galvão
p.m.galvao@gmail.com

Notas
1. Carl Cohen e Tom Regan (2001) The Animal Rights Debate, Lanham, Rowman
& Littlefield Publishers.
2. Cohen presume que quem afirma, por exemplo, que os cães têm mais valor que
as ostras está a ser especista. No entanto, como se tornará claro as afirmações
deste tipo são consistentes com a rejeição do especismo.
3. A identificação dos argumentos, bem como a sua apresentação estruturada, é
realizada por Regan no final do livro. Vou aqui basear-me bastante nesse
trabalho de análise de Regan.
4. Carl Cohen, “Do Animals Have Rights?” Ethics and Behavior, 7, N.º 2, pp. 94-
5.

Comunicação apresentada no colóquio "A Ética e a Defesa dos Animais não Humanos"
(Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 21 e 22 de Maio de 2002)
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