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A neo-transferência*

Maria Angela Maia**


Em primeiro lugar chama a atenção o termo neo-transferência desenvolvido pela Seção clínica
de Angers na Convenção de Antibes, publicada com o título
La pychose ordinaire. Trata-se do terceiro volume de o Conciliábulo de Angers,
publicado com o título Os efeitos surpresa na clínica das psicoses, uma coleção
que abrange os trabalhos das Seções clínicas da França e da Bélgica, e da
Conversação de Arcachon, publicada com o título Os casos raros,
inclassificáveis da clínica psicanalítica.
Há algo novo na clínica das psicoses? A neo-transferência criou uma neoposição
do analista ou trata-se do contrário, a neo-posição do analista criou
uma neo-transferência1? Jacques-Alain Miller pensa que a questão é: “como
qualificar, teorizar, conceitualizar o par psicótico-terapeuta, quando esse
terapeuta é analista”2. Entendo que essa questão deveria ser vista de forma
ampla, implicando não apenas a clínica das psicoses, mas a clínica de nossos
dias, em que muitos pacientes se apresentam sem endereçamento ao saber
inconsciente: a articulação S1-S2 não opera claramente ou então opera, mas é
logo negada pelo paciente, cabendo ao analista o trabalho de sustentar o lugar
de crença no inconsciente. Se não é mais preciso demonstrar a existência do
inconsciente, tarefa de Freud, a crença no inconsciente como mola do
tratamento analítico é criada em cada um desses atendimentos.
A idéia é pensar a clínica da neurose segundo o paradigma da psicose que, no
último ensino de Lacan, é a estrutura clínica de base para suas formulações
teóricas, não mais como déficit, mas como parte da estruturação subjetiva.
Nessa direção, uma noção tão cara aos psicanalistas lacanianos, a de sujeito,
ganha relevo. Graciela Brodsky em sua conferência sobre a eficácia da análise,
no XIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, lembrou-nos um seminário de
Miller, como ela diz antigo e contemporâneo, Causa e consentimento, no qual
ele desenvolve o momento inicial decisivo do ensino de Lacan: a descoberta da
eficácia simbólica, termo tomado de Lévi-Strauss 3. Essa noção introduz um
determinismo, a causação significante do sujeito, S 1-S2 / $, o efeito sujeito.
Ela lembra que, nessa leitura, o sistema significante S1-S2 não necessita o
consentimento do sujeito para produzir o efeito sujeito. É um efeito automático
da cadeia. Disso, ela deduz que a eficácia analítica não é produzir o sujeito,
porque a causação do sujeito ex-siste enquanto há linguagem. Bem como, não
estaria bem formulado dizer que se busca nas entrevistas preliminares
produzir o efeito sujeito, porque o efeito sujeito é efeito da eficácia simbólica,
se produz porque se fala, ou porque se é sujeito de linguagem. O que se
produz, o que se busca, o que se avalia nas entrevistas preliminares é se o
sujeito é capaz de mudar de posição a respeito do que ele mesmo diz: se é
capaz de se ver em outra perspectiva, se é capaz de ficar desconcertado.
Porém, temos que partir da idéia de que há um sujeito, ela conclui.
Entendo que G. Brodsky nos esclarece a clínica da neurose, ou melhor, os
casos na clínica das neuroses em que há um endereçamento ao saber
inconsciente. Quando isso não ocorre, seja na clínica da neurose, seja na das
psicoses, não seria o sujeito suposto saber que motivaria a transferência. No
caso de psicose porque o saber “já está aí” do lado do psicótico, um saber
sobre o gozo, um saber fazer com lalíngua, e no caso da neurose porque o
paciente “não está nem aí”, não se importa, não se endereça ao saber
inconsciente, à linguagem inconsciente. Nesse sentido, uma diferença entre os
termos linguagem, lalíngua, sujeito e falasser seria profícua.
A Seção clínica de Angers propõe o par lalíngua-transferência, considerando
que lalíngua motiva a neo-transferência como “uma aplicação particular,
específica da prática com as psicoses, na qual a lalíngua da transferência
aparece como um novo tear para tecer o laço social” 4. A hipótese de criação e
de uso da “lalíngua da transferência” como neo-transferência nas psicoses tem
como ponto de partida a constatação de que o par sujeito suposto sabertransferência
funcionaria de maneira distinta nas psicoses. Se a lalíngua é uma
criação lingüística do paciente, seu aprendizado e prática pelo par pacienteterapeuta
introduzem a necessidade da “lalíngua da transferência” para forjar
o laço social. O trabalho da Seção Clínica de Angers cita Lacan: “É porque há o
inconsciente, isto é, lalíngua no que é por coabitação com ela que se define um
ser chamado falante, que o significante pode ser chamado a fazer sinal, a
constituir signo”.5
Entendo que se trata de uma discussão sobre a transferência que parte da
concepção de inconsciente e de sintoma, segundo uma perspectiva do gozo,
assim como da diferença entre lalíngua e linguagem. Para pensar essa
articulação, Lacan apresenta, no Seminário, livro 22: R.S.I, aula de 21 de
janeiro de 1975, o sintoma como uma função matemática que opera, no
inconsciente, o ciframento do significante “Um” que “não cessa de se escrever
desvinculado da cadeia associativa”. Na aula de 18 de fevereiro de 1975 do
mesmo seminário, esclarece que o “sintoma é o modo como cada um goza do
inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina”. Lalíngua é
composta pelos Uns (significante, letra ou número) que não fazem parte da
cadeia significante, esta constituinte da linguagem inconsciente.
Inicialmente, com a formulação “o inconsciente é estruturado como uma
linguagem”, Lacan enunciou que a estrutura do inconsciente segue as
dimensões sincrônica e diacrônica do discurso. As leis da metáfora e
metonímia indicam tanto como o sentido é produzido, como se torna fixo ou
como se desloca infinitamente. A operação da metáfora (substituição
significante) e a operação da metonímia (combinação significante) produzem
efeitos de sentido a partir da operação de retroação de um segundo
significante, S2, sobre um significante anterior, S1. Na metonímia há o
deslocamento de sentido de um significante para outro, produzindo um efeito
de sentido inerente à cadeia significante. Na metáfora, um segundo
significante, S2, substitui um primeiro significante, S1, ocupando seu lugar na
cadeia significante que fora tornado vazio em função do processo criador
engendrado.
Nessa perspectiva teórica, Lacan elaborou as teorias da construção do sujeito e
do sintoma. O conceito de sintoma foi concebido segundo a estrutura da
metáfora, em que um significante recalcado foi substituído por outro
significante que representa o sujeito. Logo, o significante recalcado poderia vir
a ser revelado pelo trabalho analítico, eliminando o sintoma e desvelando a
verdade do sujeito. Nessa via, a prática analítica opera a partir da demanda de
interpretação do saber inconsciente de um sujeito representado pelo
significante e endereçada a um Outro suposto saber sobre o sintoma.
Mas, encontrar-se-iam fora do dispositivo analítico aqueles que nada
demandariam ao lugar do Outro, senão a manutenção das suas formas de
gozar dos seus sintomas?
Em A psicose ordinária, Miller propõe a decomposição da linguagem em
lalíngua e laço social e demarca a operação que os liga como uma questão.
Considera também, conforme a conhecida frase de Lacan no Seminário 20,
“quando enunciei que a transferência era motivada pelo sujeito suposto saber,
isso era apenas uma aplicação particular, especificada, do que se faz nessa
experiência”6, que a generalização desse algoritmo não seria um caminho
adequado para se pensar neo-transferência, pois lalíngua não decorre da
relação entre um significante e outro, ela precede logicamente o
estabelecimento dessa relação. Ao mesmo tempo ele reputa a psicanálise
como uma forma de acesso à lalíngua.7
Podemos dizer que lalíngua é fundadora, assim como é fundador o inconsciente
estruturado como uma linguagem Miller nos lembra que “a lalíngua capta o
fenômeno lingüístico no nível onde ninguém compreende nada” 8. O relatório da
Seção clínica de Angers se vale das palavras de Miller, lalíngua “está feita de
aluviões acumulados com os mal-entendidos e com as criações da linguagem
de cada um”, para dizer que o “sedimento de lalíngua se faz com as marcas
deixadas por outros sujeitos”.9
Na conversação, Miller diz10 que lalíngua é constituída “a partir do significante
tal como ele já está presente antes da aparição do sujeito” e que “a partir do
significante falado pelos outros, normalizado pelo Outro ocorrem investimentos
singulares”. Por outro lado, Miller não deixa de enfatizar que o “aprendizado da
escritura provoca a expulsão desse verde paraíso das homofonias infantis”.
A hipótese da Seção de Angers é que o motor da neo-transferência não é o
sujeito suposto saber, e sim a lalíngua da transferência, vista como o que
permite a um significante fazer sinal daquilo que está fora do sentido:
onamatopéia, cifra, marca11. Eles lembram que Lacan, no Seminário 20,
distingue dois saberes inconscientes: o saber sobre lalíngua privativo da
linguagem, e o saber fazer com lalíngua privativo do inconsciente”12. Assim
eles enfatizam a distinção entre o inconsciente e a linguagem: o inconsciente é
um saber fazer com lalíngua, é o resultado de um trabalho sobre lalíngua,
enquanto a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua.
Penso que a diferença entre língua, linguagem e lalíngua poderia ser explorada
a partir do estudo crítico de Freud sobre as afasias 13. Ao demonstrar a
existência de sintomas afásicos independentes de lesões cerebrais, Freud
formula uma hipótese sobre a linguagem em que esta seria demarcada a partir
de associações e transmissões de imagens, na qual tanto poderia existir uma
afasia proveniente de lesões — suspendendo o encadeamento dessas
associações — quanto interrupções, que, não sendo provenientes de quaisquer
lesões, atestariam a existência de uma lógica intrínseca à linguagem.
É possível, a partir dessa construção de Freud, inferir que ele pressupõe que a
representação – Vorstellung, signo lingüístico – provoca uma afecção no corpo,
que é apreendida por meio de um processo de apresentação – Darstellung – no
qual há um desmembramento das imagens constituintes do signo lingüístico,
de modo que sua apreensão é desvinculada do código. Essa afecção deixaria
traços na topografia corporal.14
O aparelho da linguagem freudiano é formado por duas modalidades de
representação: representação de objeto — Objektvorstellung — e
representação de palavra — Wortvorstellung. Propomos pensar que a
representação de objeto freudiana, constituída por signos visuais, táteis,
acústicos, sinestésicos, corresponderia à lalíngua, ou seja, aos restos, aos
detritos dos significantes com os quais o infante entrou em contato, antes de
ser capaz de discernir suas significações e que se depositaram em seu corpo
tal como aluvião. Há um saber fazer com lalíngua, mas não um saber sobre
lalíngua”.
No que diz respeito ao sujeito nesse nível teríamos algo como uma “separação
falsa”, conforme Miller.
“Isso exige que se distinga duas coisas: primeiramente, sem dúvida o
sujeito como fala-ser (parlêtre) surge do nada, é uma criatura de
significante, mas é igualmente verdadeiro; em segundo lugar, que o
sujeito tem de emergir do ser vivo, que ele surge de seu status
primeiro de objeto. O sujeito tem de emergir da causa do desejo da
mãe pelo menos do causo [causette] do qual esse desejo é feito”. 15
Por outro lado, a associação por contigüidade (proximidade, avizinhamento) e
semelhança das representações de objeto constitui, para Freud, a modalidade
de linguagem que ele nomeia como linguagem asimbólica16. Essa modalidade
de linguagem é aberta a novas associações, uma vez que o homem se
encontra imerso em um mundo de estímulos que o afetam. Proponho então
sua articulação à formulação lacaniana de “linguagem como uma elucubração
de saber sobre a lalíngua”. Linguagem na qual Lacan sempre ressaltou a
primazia do significante, da articulação significante.
Finalmente, a representação de palavra é o efeito da associação da
representação do objeto visual com a acústica, formando o signo lingüístico. A
associação dos signos lingüísticos conforma a língua.
Por sua vez, Éric Laurent17 diz na Conversação que aprendemos a língua por
uma tradução permanente e constante, a partir de usos mais ou menos
regulamentados. No caso da psicose, há um problema quanto ao laço social,
“se tem sempre uma dimensão de língua privada”, de “ressonâncias
particulares”, e “informar-se sobre essa particularidade é o mesmo que se
entregar à tradução”. Lembra-nos que “começamos a nos acostumar a ver
lalíngua e todo o conjunto desses fenômenos a partir da psicose e não da
neurose”, e chega a formular que “a relação normal com lalíngua é a do
psicotizado”18. Nessa orientação ele esclarece ser preciso o seguinte:
[...] temos de nos ocupar da questão de saber como compreender o
que nos é dito, de como compreender a lalíngua do outro que está
afetada por uma significação pessoal a níveis inimagináveis.
Metodicamente, tratamos de compreender onde está essa
modificação, em que nível ela se produz por uma prática de
bricolagem generalizada”.19
Éric Laurent esclarece ainda que no momento em que Lacan refaz toda sua
teorização, ele observa, voando sobre a Sibéria, sulcamentos de significantes e
não “o arbitrário do signo e do mapa, os códigos, as mensagens” 20. Trata-se de
sulco, de “rota, rotina, de práticas”.
“[...] a única maneira de se assegurar que se fala uma língua, que se
fala um francês adaptado a um procedimento de tradução geral é
fazer chover a chuva de interpretações [...] o que permite lavrar mais
sulcos. O uso que o psicótico faz de nossa presença é lavrar mais uns
sulcos que outros. Nós temos que ajudá-lo, com método”.21
Como exemplo, Éric Laurent toma os “expedientes” dos quais um analista se
vale para manter contato com seu paciente: em certo momento na sessão eles
falam de literatura norte-americana. A “prática de sulcamento” começa a partir
daí, esclarece. O método não consiste em partir do mais secreto, do mais
profundo, do mais escondido, mas procede de um sulcamento operado pela
prática”.22
E conclui: “sem dúvida sempre é preciso que se pergunte que língua fala o
sujeito” – e aqui eu acrescento, qualquer sujeito e não apenas o psicótico –,
“sabendo que é uma bricolagem particular”. 23

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