Em primeiro lugar chama a atenção o termo neo-transferência desenvolvido pela Seção clínica de Angers na Convenção de Antibes, publicada com o título La pychose ordinaire. Trata-se do terceiro volume de o Conciliábulo de Angers, publicado com o título Os efeitos surpresa na clínica das psicoses, uma coleção que abrange os trabalhos das Seções clínicas da França e da Bélgica, e da Conversação de Arcachon, publicada com o título Os casos raros, inclassificáveis da clínica psicanalítica. Há algo novo na clínica das psicoses? A neo-transferência criou uma neoposição do analista ou trata-se do contrário, a neo-posição do analista criou uma neo-transferência1? Jacques-Alain Miller pensa que a questão é: “como qualificar, teorizar, conceitualizar o par psicótico-terapeuta, quando esse terapeuta é analista”2. Entendo que essa questão deveria ser vista de forma ampla, implicando não apenas a clínica das psicoses, mas a clínica de nossos dias, em que muitos pacientes se apresentam sem endereçamento ao saber inconsciente: a articulação S1-S2 não opera claramente ou então opera, mas é logo negada pelo paciente, cabendo ao analista o trabalho de sustentar o lugar de crença no inconsciente. Se não é mais preciso demonstrar a existência do inconsciente, tarefa de Freud, a crença no inconsciente como mola do tratamento analítico é criada em cada um desses atendimentos. A idéia é pensar a clínica da neurose segundo o paradigma da psicose que, no último ensino de Lacan, é a estrutura clínica de base para suas formulações teóricas, não mais como déficit, mas como parte da estruturação subjetiva. Nessa direção, uma noção tão cara aos psicanalistas lacanianos, a de sujeito, ganha relevo. Graciela Brodsky em sua conferência sobre a eficácia da análise, no XIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, lembrou-nos um seminário de Miller, como ela diz antigo e contemporâneo, Causa e consentimento, no qual ele desenvolve o momento inicial decisivo do ensino de Lacan: a descoberta da eficácia simbólica, termo tomado de Lévi-Strauss 3. Essa noção introduz um determinismo, a causação significante do sujeito, S 1-S2 / $, o efeito sujeito. Ela lembra que, nessa leitura, o sistema significante S1-S2 não necessita o consentimento do sujeito para produzir o efeito sujeito. É um efeito automático da cadeia. Disso, ela deduz que a eficácia analítica não é produzir o sujeito, porque a causação do sujeito ex-siste enquanto há linguagem. Bem como, não estaria bem formulado dizer que se busca nas entrevistas preliminares produzir o efeito sujeito, porque o efeito sujeito é efeito da eficácia simbólica, se produz porque se fala, ou porque se é sujeito de linguagem. O que se produz, o que se busca, o que se avalia nas entrevistas preliminares é se o sujeito é capaz de mudar de posição a respeito do que ele mesmo diz: se é capaz de se ver em outra perspectiva, se é capaz de ficar desconcertado. Porém, temos que partir da idéia de que há um sujeito, ela conclui. Entendo que G. Brodsky nos esclarece a clínica da neurose, ou melhor, os casos na clínica das neuroses em que há um endereçamento ao saber inconsciente. Quando isso não ocorre, seja na clínica da neurose, seja na das psicoses, não seria o sujeito suposto saber que motivaria a transferência. No caso de psicose porque o saber “já está aí” do lado do psicótico, um saber sobre o gozo, um saber fazer com lalíngua, e no caso da neurose porque o paciente “não está nem aí”, não se importa, não se endereça ao saber inconsciente, à linguagem inconsciente. Nesse sentido, uma diferença entre os termos linguagem, lalíngua, sujeito e falasser seria profícua. A Seção clínica de Angers propõe o par lalíngua-transferência, considerando que lalíngua motiva a neo-transferência como “uma aplicação particular, específica da prática com as psicoses, na qual a lalíngua da transferência aparece como um novo tear para tecer o laço social” 4. A hipótese de criação e de uso da “lalíngua da transferência” como neo-transferência nas psicoses tem como ponto de partida a constatação de que o par sujeito suposto sabertransferência funcionaria de maneira distinta nas psicoses. Se a lalíngua é uma criação lingüística do paciente, seu aprendizado e prática pelo par pacienteterapeuta introduzem a necessidade da “lalíngua da transferência” para forjar o laço social. O trabalho da Seção Clínica de Angers cita Lacan: “É porque há o inconsciente, isto é, lalíngua no que é por coabitação com ela que se define um ser chamado falante, que o significante pode ser chamado a fazer sinal, a constituir signo”.5 Entendo que se trata de uma discussão sobre a transferência que parte da concepção de inconsciente e de sintoma, segundo uma perspectiva do gozo, assim como da diferença entre lalíngua e linguagem. Para pensar essa articulação, Lacan apresenta, no Seminário, livro 22: R.S.I, aula de 21 de janeiro de 1975, o sintoma como uma função matemática que opera, no inconsciente, o ciframento do significante “Um” que “não cessa de se escrever desvinculado da cadeia associativa”. Na aula de 18 de fevereiro de 1975 do mesmo seminário, esclarece que o “sintoma é o modo como cada um goza do inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina”. Lalíngua é composta pelos Uns (significante, letra ou número) que não fazem parte da cadeia significante, esta constituinte da linguagem inconsciente. Inicialmente, com a formulação “o inconsciente é estruturado como uma linguagem”, Lacan enunciou que a estrutura do inconsciente segue as dimensões sincrônica e diacrônica do discurso. As leis da metáfora e metonímia indicam tanto como o sentido é produzido, como se torna fixo ou como se desloca infinitamente. A operação da metáfora (substituição significante) e a operação da metonímia (combinação significante) produzem efeitos de sentido a partir da operação de retroação de um segundo significante, S2, sobre um significante anterior, S1. Na metonímia há o deslocamento de sentido de um significante para outro, produzindo um efeito de sentido inerente à cadeia significante. Na metáfora, um segundo significante, S2, substitui um primeiro significante, S1, ocupando seu lugar na cadeia significante que fora tornado vazio em função do processo criador engendrado. Nessa perspectiva teórica, Lacan elaborou as teorias da construção do sujeito e do sintoma. O conceito de sintoma foi concebido segundo a estrutura da metáfora, em que um significante recalcado foi substituído por outro significante que representa o sujeito. Logo, o significante recalcado poderia vir a ser revelado pelo trabalho analítico, eliminando o sintoma e desvelando a verdade do sujeito. Nessa via, a prática analítica opera a partir da demanda de interpretação do saber inconsciente de um sujeito representado pelo significante e endereçada a um Outro suposto saber sobre o sintoma. Mas, encontrar-se-iam fora do dispositivo analítico aqueles que nada demandariam ao lugar do Outro, senão a manutenção das suas formas de gozar dos seus sintomas? Em A psicose ordinária, Miller propõe a decomposição da linguagem em lalíngua e laço social e demarca a operação que os liga como uma questão. Considera também, conforme a conhecida frase de Lacan no Seminário 20, “quando enunciei que a transferência era motivada pelo sujeito suposto saber, isso era apenas uma aplicação particular, especificada, do que se faz nessa experiência”6, que a generalização desse algoritmo não seria um caminho adequado para se pensar neo-transferência, pois lalíngua não decorre da relação entre um significante e outro, ela precede logicamente o estabelecimento dessa relação. Ao mesmo tempo ele reputa a psicanálise como uma forma de acesso à lalíngua.7 Podemos dizer que lalíngua é fundadora, assim como é fundador o inconsciente estruturado como uma linguagem Miller nos lembra que “a lalíngua capta o fenômeno lingüístico no nível onde ninguém compreende nada” 8. O relatório da Seção clínica de Angers se vale das palavras de Miller, lalíngua “está feita de aluviões acumulados com os mal-entendidos e com as criações da linguagem de cada um”, para dizer que o “sedimento de lalíngua se faz com as marcas deixadas por outros sujeitos”.9 Na conversação, Miller diz10 que lalíngua é constituída “a partir do significante tal como ele já está presente antes da aparição do sujeito” e que “a partir do significante falado pelos outros, normalizado pelo Outro ocorrem investimentos singulares”. Por outro lado, Miller não deixa de enfatizar que o “aprendizado da escritura provoca a expulsão desse verde paraíso das homofonias infantis”. A hipótese da Seção de Angers é que o motor da neo-transferência não é o sujeito suposto saber, e sim a lalíngua da transferência, vista como o que permite a um significante fazer sinal daquilo que está fora do sentido: onamatopéia, cifra, marca11. Eles lembram que Lacan, no Seminário 20, distingue dois saberes inconscientes: o saber sobre lalíngua privativo da linguagem, e o saber fazer com lalíngua privativo do inconsciente”12. Assim eles enfatizam a distinção entre o inconsciente e a linguagem: o inconsciente é um saber fazer com lalíngua, é o resultado de um trabalho sobre lalíngua, enquanto a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua. Penso que a diferença entre língua, linguagem e lalíngua poderia ser explorada a partir do estudo crítico de Freud sobre as afasias 13. Ao demonstrar a existência de sintomas afásicos independentes de lesões cerebrais, Freud formula uma hipótese sobre a linguagem em que esta seria demarcada a partir de associações e transmissões de imagens, na qual tanto poderia existir uma afasia proveniente de lesões — suspendendo o encadeamento dessas associações — quanto interrupções, que, não sendo provenientes de quaisquer lesões, atestariam a existência de uma lógica intrínseca à linguagem. É possível, a partir dessa construção de Freud, inferir que ele pressupõe que a representação – Vorstellung, signo lingüístico – provoca uma afecção no corpo, que é apreendida por meio de um processo de apresentação – Darstellung – no qual há um desmembramento das imagens constituintes do signo lingüístico, de modo que sua apreensão é desvinculada do código. Essa afecção deixaria traços na topografia corporal.14 O aparelho da linguagem freudiano é formado por duas modalidades de representação: representação de objeto — Objektvorstellung — e representação de palavra — Wortvorstellung. Propomos pensar que a representação de objeto freudiana, constituída por signos visuais, táteis, acústicos, sinestésicos, corresponderia à lalíngua, ou seja, aos restos, aos detritos dos significantes com os quais o infante entrou em contato, antes de ser capaz de discernir suas significações e que se depositaram em seu corpo tal como aluvião. Há um saber fazer com lalíngua, mas não um saber sobre lalíngua”. No que diz respeito ao sujeito nesse nível teríamos algo como uma “separação falsa”, conforme Miller. “Isso exige que se distinga duas coisas: primeiramente, sem dúvida o sujeito como fala-ser (parlêtre) surge do nada, é uma criatura de significante, mas é igualmente verdadeiro; em segundo lugar, que o sujeito tem de emergir do ser vivo, que ele surge de seu status primeiro de objeto. O sujeito tem de emergir da causa do desejo da mãe pelo menos do causo [causette] do qual esse desejo é feito”. 15 Por outro lado, a associação por contigüidade (proximidade, avizinhamento) e semelhança das representações de objeto constitui, para Freud, a modalidade de linguagem que ele nomeia como linguagem asimbólica16. Essa modalidade de linguagem é aberta a novas associações, uma vez que o homem se encontra imerso em um mundo de estímulos que o afetam. Proponho então sua articulação à formulação lacaniana de “linguagem como uma elucubração de saber sobre a lalíngua”. Linguagem na qual Lacan sempre ressaltou a primazia do significante, da articulação significante. Finalmente, a representação de palavra é o efeito da associação da representação do objeto visual com a acústica, formando o signo lingüístico. A associação dos signos lingüísticos conforma a língua. Por sua vez, Éric Laurent17 diz na Conversação que aprendemos a língua por uma tradução permanente e constante, a partir de usos mais ou menos regulamentados. No caso da psicose, há um problema quanto ao laço social, “se tem sempre uma dimensão de língua privada”, de “ressonâncias particulares”, e “informar-se sobre essa particularidade é o mesmo que se entregar à tradução”. Lembra-nos que “começamos a nos acostumar a ver lalíngua e todo o conjunto desses fenômenos a partir da psicose e não da neurose”, e chega a formular que “a relação normal com lalíngua é a do psicotizado”18. Nessa orientação ele esclarece ser preciso o seguinte: [...] temos de nos ocupar da questão de saber como compreender o que nos é dito, de como compreender a lalíngua do outro que está afetada por uma significação pessoal a níveis inimagináveis. Metodicamente, tratamos de compreender onde está essa modificação, em que nível ela se produz por uma prática de bricolagem generalizada”.19 Éric Laurent esclarece ainda que no momento em que Lacan refaz toda sua teorização, ele observa, voando sobre a Sibéria, sulcamentos de significantes e não “o arbitrário do signo e do mapa, os códigos, as mensagens” 20. Trata-se de sulco, de “rota, rotina, de práticas”. “[...] a única maneira de se assegurar que se fala uma língua, que se fala um francês adaptado a um procedimento de tradução geral é fazer chover a chuva de interpretações [...] o que permite lavrar mais sulcos. O uso que o psicótico faz de nossa presença é lavrar mais uns sulcos que outros. Nós temos que ajudá-lo, com método”.21 Como exemplo, Éric Laurent toma os “expedientes” dos quais um analista se vale para manter contato com seu paciente: em certo momento na sessão eles falam de literatura norte-americana. A “prática de sulcamento” começa a partir daí, esclarece. O método não consiste em partir do mais secreto, do mais profundo, do mais escondido, mas procede de um sulcamento operado pela prática”.22 E conclui: “sem dúvida sempre é preciso que se pergunte que língua fala o sujeito” – e aqui eu acrescento, qualquer sujeito e não apenas o psicótico –, “sabendo que é uma bricolagem particular”. 23