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Calabar: o elogio da traição: o teatro (re)contando a história do Brasil

Mário Jorge Barbosa1, Evandro Gonçalves Leite2


1
Bolsista de Iniciação Científica PIBIC-EM/CNPq – IFRN Campus Pau dos Ferros. e-mail: mariojorgebarbosa@hotmail.com
2
Professor de Língua Portuguesa e Literatura – IFRN Campus Pau dos Ferros. e-mail: evandro.leite@ifrn.edu.br

Resumo: Este trabalho tem por tema a investigação de críticas sociais veiculadas na obra Calabar: o
elogio da traição, dos escritores Chico Buarque e Ruy Guerra. Sendo assim, procedemos à análise da
obra, relacionando-a ao contexto histórico de sua produção (a ditadura militar) e ao período histórico a
que ela faz referência (as invasões holandesas no Brasil). O trabalho é fundamentado em estudos
acerca do texto teatral e na relação que o mesmo estabelece com a literatura; na relação entre arte e
sociedade; na compreensão dos contextos históricos a que ela faz referência. Através da ficção, os
autores tentam desconstruir a visão de que Calabar foi o maior traidor da Pátria: talvez essa não seja a
versão verdadeira da história. Todas as personagens do livro foram traidores; porém, apenas Calabar
foi punido. O livro expõe duas maneiras de se observar a mesma história, para que cada
leitor/expectador possa construir suas próprias conclusões a respeito de traição ou fidelidade, de
traidor ou herói. Muitas relações foram encontradas entre o enredo do livro e a ditadura militar, como
por exemplo, a repreensão, as guerrilhas, revoltas, torturas e traições. A obra, produzida num período
de repressão e censura dos meios comunicativos e artísticos, serviu como porta-voz de denúncia de
problemas sociais como, por exemplo, a própria censura, direitos negados e falta de liberdade.

Palavras–chave: Calabar: o elogio da traição, ditadura militar, invasões holandesas

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por tema a investigação de críticas sociais veiculadas na obra literária
Calabar: o elogio da traição, dos escritores Chico Buarque e Ruy Guerra. Pretendemos identificar
críticas feitas à sociedade colonial da época retratada no livro, mas temos foco maior em relacionar e
encontrar críticas feitas à ditadura militar, época em que o livro foi escrito e publicado. Visto que o
período em que os militares ficaram no poder do Brasil foi marcado pela censura e perseguições, os
escritores encontraram como forma de criticar indiretamente o governo retratar, mediante
acontecimentos de outras épocas, abusos do poder e revoltas. Dessa forma, é possível relacionar
diretamente os dois períodos, e é isso que faremos neste trabalho: analisar o livro Calabar como
manifestação artística e instrumento de protesto contra o período da ditadura militar e a versão oficial
da história do Brasil Colônia.
O estudo que faremos dessa obra focará a evidenciação de criticas e a relação entre os dois
períodos históricos. No decorrer desse trabalho, estão expostos conhecimentos sobre o texto teatral, a
ditadura militar e a arte de protesto, a literatura relacionada à sociedade. Em seguida, faremos a análise
do livro e, por fim, a conclusão.
Portanto, partindo do princípio de que a arte, e mais precisamente o teatro, pode constituir-se ao
mesmo tempo como manifestação artística e instrumento de protesto, buscaremos estudar a obra
dramática de Chico Buarque e Ruy Guerra, visando a analisar as críticas que promove à realidade
brasileira.

2. REFERENCIAL TEÓRICO
2.1 O texto teatral
De forma geral, os textos literários podem ser classificados em três gêneros: épico, lírico e
dramático, conforme Rosenfeld (1965). Mas isso não significa dizer que os textos obedeçam a um

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conjunto de normas/regras que resultem em obras totalmente puras que se encaixem perfeitamente em
determinado gênero, pois uma obra pode apresentar traços característicos e estilísticos de apenas um
dos gêneros acima, como também de todos ao mesmo tempo.
Entretanto, não é difícil classificar um texto literário num gênero, em virtude de cada um deles
possuir suas características próprias. A lírica é um gênero que tem por características: textos
geralmente pequenos, sem uma personagem nítida, somente uma voz exprimindo seu próprio estado
de espírito; trata de emoções e dramas psicológicos, de reflexões e de experiências vividas e
experimentadas. Já o gênero épico é mais objetivo, pois narra os ambientes, as paisagens, as
personagens, detalhando características destes; um narrador conta a história; os fatos acontecem no
passado; e o narrador conhece o destino de todas as personagens, pois conta fatos que já ocorreram.
No gênero dramático, as personagens apresentam-se por si sós, libertas de um narrador. A obra
constitui-se basicamente de diálogos e se destina a ser apresentada por meio de atores/atrizes que
interpretam cada uma das personagens. A dramática pode ser considerada como a mistura da épica
com a lírica, na medida em que as personagens descrevem estado emocional e narram um
acontecimento, por mais que não haja a figura do narrador.
Assim, desde o princípio de uma obra dramática, ela já é produzida com finalidade de
encenação, de modo que há quem considere que uma obra só está realmente completa quando ela é
apresentada, pois essa é sua finalidade primordial (cf. GRÉSILLON, 1995). Porém, isso não significa
necessariamente que essa obra não pode ser lida e interpretada apenas na imaginação, conforme nos
adverte Grazioli (2007). Através das rubricas, o leitor entende a situação que está se passando e o que
está acontecendo, pois elas proporcionam ao leitor o poder de imaginação. Com isso, é possível
concluir que uma obra não precisa necessariamente ser apresentada para ser entendida. Esse é um dos
pontos trabalhados nessa pesquisa, pois tentaremos através dessa tese realizar nossos estudos, já que
não há como assistir ao espetáculo.

2.2 A ditadura militar brasileira e a arte de protesto


O golpe militar foi o principal ocasionador da produção artística socialmente engajada. Essa
fase foi o auge das canções engajadas no mercado e o período em que os artistas procuraram novos
referenciais para suas expressões, não somente no campo musical, mas também em outras áreas
artísticas, como, por exemplo, o teatro. A própria peça Calabar, como já dito antes, é uma prova de
arte engajada no âmbito teatral, pois veicula críticas voltadas contra o regime militar, época na qual foi
escrita e censurada, tanto que só pôde ser apresentada anos mais tarde de sua produção.
Segundo Fausto (2001), por volta do ano de 1969, o governo do regime militar sentiu-se
ameaçado com tantos revolucionários e reagiu com a criação de um ato institucional, chamado AI-5,
que abriu um ciclo de cassação de mandatos, perda de direitos políticos e expurgos no funcionalismo,
abrangendo muitos professores universitários. Também estabeleceu na prática a censura aos meios de
comunicação e às artes, e a tortura passou a fazer parte integrante dos métodos de governo. Através do
AI-13 (décimo terceiro ato institucional), a junta criou a pena de banimento do território nacional,
aplicável a todo brasileiro que se tornasse inconveniente, nocivo ou perigoso à segurança nacional. De
acordo com Fausto (2001, p. 481):

Estabeleceu-se também pelo AI-14 (décimo quarto ato institucional) a pena


de morte para os casos de guerra externa, psicológica adversa, ou
revolucionária ou subversiva. A pena de morte nunca foi aplicada
formalmente, preferindo-se a ela as execuções sumárias ou no corredor das
torturas, apresentadas como resultantes de choques entre subversivos e as
forças da ordem ou como desaparecimentos misteriosos.
Muitos artistas foram banidos e punidos por expressarem suas opiniões e críticas em suas obras;
porém, isso não foi motivo suficiente para eles desistirem de lutar por mudanças, sempre procurando
tornar tais críticas o menos evidente possível.
Assim, artistas e intelectuais inconformados assumiram a responsabilidade de produzir uma arte
engajada nos anos que compreendem a ditadura militar brasileira. Baseando-nos em Napolitano (1997,
2004), observamos que muitos artistas tinham a preocupação de retratar em suas obras o pessimismo,
problemas e a própria realidade sem si. Para isso, inseriam em suas composições conteúdo político
com o objetivo de “acordar” a sociedade para o que estava sendo vivenciado. Como essa prática não
era bem-vista pelos militares, eles instalaram órgãos de controle com o poder de vetar as notícias em
certo veículo de comunicação, censurar peças de teatro ou impedir a gravação de uma determinada
música em um disco, por meio dos atos institucionais para punir e perseguir a todos que fossem contra
os princípios do regime.
Em função disso, alguns artistas começaram a utilizar construções artísticas mais rebuscadas
que pudessem, de certa forma, preservar o conteúdo político de suas obras e, ao mesmo tempo,
passarem despercebidas pela censura. Como exemplo, temos os escritores Chico Buarque e Ruy
Guerra, que escreveram o livro Calabar: o elogio da traição, com a finalidade de criticar,
indiretamente, a sociedade e o regime; ou seja, usaram a arte para reivindicar direitos e desnudar a
forma como o Brasil estava sendo administrado.
Portanto, o cerceamento de liberdades individuais fez com que artistas mudassem suas formas
de produção, criando textos mais complexos, com críticas ocultas, palavras com sentido ambíguo e
outros recursos poéticos. Essas mudanças tornaram o governo paranoico, ficando com a impressão de
que tudo era uma crítica ou uma desobediência às leis. Por esse motivo, passou-se a perseguir
estudantes e artistas e a vigiar os espaços públicos. O próprio livro Calabar ilustra essa ideia, já que
este utiliza como contexto outra época, o Brasil Colônia, para que assim as críticas não ficassem tão
explicitas, e sofreu com censura do período.

2.3 Relação entre literatura e sociedade


Nos dias atuais, dizer que a literatura reflete a sociedade é considerado algo óbvio, mas houve
um tempo em que essa concepção foi considerada inovadora.
Segundo Facina (2004), desde o século XIX, um debate marcou o campo artístico: de um lado
ficaram os que defendem a “arte pela arte”; de outro, os que defendem que a arte e a literatura devem
ser atividades politicamente engajadas. Os adeptos da “arte pela arte” acreditam que a principal tarefa
dos artistas e intelectuais é produzir obras que não envolvam assuntos públicos, tratem apenas de sua
competência específica: a estética. Já os simpatizantes do engajamento acreditam que artistas e
intelectuais têm a responsabilidade de assumir compromissos em relação à coletividade; ou seja, para
o escritor engajado, a obra literária não é uma “finalidade sem fim”, mas sim um meio de se combater
a injustiça, denunciando e criticando problemas sociais em suas obras e ideias.
Facina (2004, p.10) ainda assevera que: “toda criação literária é um produto histórico, produzido
numa sociedade específica, por um indivíduo inserido nela por meio de múltiplos pertencimentos”.
Isto é, a obra sofre influências do meio onde é produzida, pois quem a produz está situado nesse meio
e também recebe influências dele. Portanto, por mais que o artista se recuse a utilizar suas obras como
meio de expressão da sociedade, ele sempre o acaba fazendo, pois ele sofre influências dela e suas
obras também.
Nosso estudo toma a criação artística como objeto de estudo e busca identificar as influência do
meio social sobre ela. A esse respeito, Candido (2010) identifica os elementos que materializam, na
obra, as influências do meio. São eles: estrutura social, valores e ideologias e técnicas de
comunicação. Segundo Candido (2010, p. 40), “[...] os valores e ideologias contribuem para o
conteúdo, enquanto as modalidades de comunicação influenciam mais na forma”. Já a estrutura social
reflete-se no autor.
Portanto, fica claro que a literatura e as demais artes, enquanto formas de comunicação humana
inseridas num ambiente social, possuem relações com a sociedade. Candido (2010), por sua vez,
mostra como se dá essa relação, ao delinear os fatores socioculturais que se presentificam na obra
literária.

3. RESULTADOS E DISCUSSÕES
Nessa seção, faremos uma análise da obra Calabar: o elogio da traição, tentando evidenciar
críticas feitas à ditadura militar e também a aspectos da história oficial do Brasil Colônia relativos ao
período da ocupação holandesa. Tal estudo toma por base a leitura feita da obra, relacionando
literatura e sociedade, e trata-se ainda de uma interpretação preliminar, já que é fruto de uma pesquisa
ainda em andamento, intitulada “Arte engajada em cena: crítica social em Calabar: o elogio da
traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra”.
Calabar: o elogio da traição foi escrito no final de 1973. No ano seguinte, seria a estreia em
palcos, porém o regime militar desaprovou e proibiu a peça. Também impediu que o nome Calabar
fosse o título, já que ele é considerado um traidor a pátria e, portanto, não seria digno de tal
homenagem. Ela foi liberada para apresentação somente em 1980.
A obra retrata a época do Brasil Colônia, fazendo um panorama da sociedade brasileira, das
alianças de poder, das traições, histórias de amor, da Igreja, das revoltas e conquistas, da própria
história da nação. O tema principal é a invasão holandesa nas terras brasileiras, a qual foi favorecida
devido à criação das Companhias Holandesas das Índias Ocidentais. Os holandeses visavam à
ocupação de zonas de produção açucareira na América portuguesa e ao controle do suprimento de
escravos. Mas para isso era preciso dominar as terras e vencer guerrilhas contra os atuais donos na
época, os portugueses. Como estímulo para conseguir aliados, os holandeses passaram a oferecer
recompensas a quem com eles colaborasse. O próprio Domingos Fernandes Calabar aceitou o posto de
major que lhe foi oferecido, mas afirmou que passou do lado português para o holandês não como
traidor ou mercenário, e sim como patriota, vendo que os holandeses procuravam implantar melhorias
no Brasil, enquanto os portugueses e espanhóis tinham interesse em explorar o nosso país. Como
Calabar era conhecedor de todo o território, de informações e de táticas de guerras, sua mudança de
lado foi fator definitivo para as sucessivas derrotas dos portugueses e espanhóis e para a vitória e a
consequente colonização holandesa. Tempos depois, Calabar foi preso e condenado. Seu nome ficou
para sempre associado à ideia de traição. Um dos objetivos do livro é este: questionar se Calabar
realmente foi um traidor ou se tudo não passa de uma visão unilateral a partir da ideologia portuguesa,
para a qual Calabar é considerado o traidor da pátria.
Dessa forma, o livro apresenta antes de tudo uma reflexão sobre o ato de trair, prática tão
comum no período de colonização e também nas mais diversas épocas da história. A peça é dividida
em dois atos e traz personagens históricas.
No primeiro ato, predomina o colonizador português, expondo seus métodos e pontos de
vista, mostrando toda sua ira devido à traição sofrida. A personagem Calabar ainda está viva, porém
em momento algum fala. Nessa primeira parte, Mathias de Albuquerque tenta, através de uma carta,
reconquistar Calabar para o lado das tropas portuguesas, pois sua suposta traição custou para Portugal
a perda de batalhas e do domínio sobre cidades de Pernambuco para os holandeses. Porém, a
finalidade real seria punir o “traidor”. Devido a diversas traições e traidores – Camarão, Dias e Souto
– Calabar torna-se prisioneiro dos portugueses e é executado pelos seus antigos companheiros de
guerra. Mathias ainda afirma que essa punição deve servir de exemplo para os demais que ousem trair
a pátria. Bárbara, mulher do executado em questão, em um impulso de fúria, exprime todo seu
sentimento de revolta e deixa bem claro que todos são assassinos sem compaixão que não pouparam a
vida de um inimigo indefeso, mataram-no por covardia e, para manterem suas dignidades, iriam calar-
se e fingirem que nada aconteceu: “BÁRBARA: O que houve foi um assassinato! Um prisioneiro de
guerra morto a sangue frio!” (BUARQUE; GUERRA, 1993, p.48). O primeiro ato tem seu fim com
Bárbara mostrando toda sua revolta e indignação devido à morte de seu marido, pois para ela tudo não
passou de um ato de covardia.
No segundo ato, predomina o invasor holandês que foi contemplado pela mudança de lado
de Calabar, mostrando os benefícios que isso trouxe para os holandeses, como, por exemplo, a vitória
em várias batalhas e conquistas de varias cidades de Pernambuco. Entra em cena Maurício de Nassau,
proclamando que Calabar não morreu em vão, e que sua memória será sempre respeitada pelos
holandeses, que devem a ele o grande sucesso na guerra contra Portugal. Em seguida, reafirma ao Frei
Manoel, que traiu os portugueses, a liberdade de culto no Brasil e promete governar de uma forma
progressista e com construções arquitetônicas, como, por exemplo, uma ponte que atravessaria o rio
Capibaribe. Sem ter outra forma de sobreviver, já que virou viúva, Barbara torna-se prostituta e cansa
de tentar expor o heroísmo de Calabar, as suas ideias e objetivos. Aos poucos ela é convencida por
Anna de Amsterdam que seus esforços são em vão e que ela nunca passará de uma voz sem ouvidos
para escutá-la. O governo de Nassau e suas idealizações estavam custando muito caro, tanto que a
Companhia das Índias Ocidentais não estava satisfeita com sua administração. Nassau tem sonhos
considerados impossíveis de fazerem-se reais. Aos poucos, as companhias vão falindo e não dura
muito para que Nassau, assim como Mathias de Albuquerque, conheça o fracasso. Porém, despede-se
do Brasil levando em mente apenas pensamentos positivos e acreditando ter deixado seu nome na
história visto ter sido o maior dos sonhadores. A peça termina com Bárbara convidando o público a
fazer aquilo que todas as personagens melhor fizeram na história – trair: “BÁRBARA: […] Sede sãos,
aplaudi, bebei, vivei, votai, traí, oh! celebérrimos iniciados nos mistérios da traição.” (BUARQUE;
GUERRA, 1993, p.119).
Toda a história retrata Calabar e as consequências de sua suposta traição aos portugueses: se
ele prejudicou Portugal ao passar para as tropas holandesas, contribuiu para sucessivas vitórias da
Holanda e a formação de um novo governo. Ele traiu Portugal, porém morreu fielmente à Holanda e a
seus ideais, pelos quais ele imaginou tempos melhores para o Brasil. Assim, o livro retrata a história
de dois ângulos diferentes, deixando ao público a questão: traição ou não?
Calabar foi enforcado e teve seu corpo esquartejado e exposto em praça pública. Apesar de
Calabar ser considerado o traidor da história, o livro traz em suas páginas revelações que mostram que
ele não foi o único traidor. Todas as personagens cometeram traições, como por exemplo:
Matias de Albuquerque trai a coroa, ao continuar a resistência, quando a
metrópole fizera a paz; o coro dos “heróis” [...] trai os holandeses após
captar-lhes a confiança (traindo, pois, Portugal) [...]. Bárbara trai a memória
do finado marido após apaixonar-se por Sebastião do Souto; graças a ela,
este acaba morto pelos holandeses. Maurício de Nassau trai a Companhia
das Índias, ao imaginar uma espécie de capitalismo liberal para a colônia; a
Companhia o trai e à colônia, ao exigir a volta do príncipe. No meio de tudo
desfila, com sua inquebrantável capacidade de sobrevivência, a grã-
prostituta Anna de Amsterdã que “se trai” ao amar perdidamente Bárbara
Calabar. (AGUIAR, 1997, p. 34).
Não somente esses cometem traições. Até o próprio Frei Manuel do Salvador traiu seus
princípios religiosos e traía aos portugueses e holandeses diversas vezes, alternando-se sempre para o
lado que estivesse em determinada vantagem no desenrolar dos acontecimentos.
A intenção dos autores, porém, não era apenas de denunciar a versão oficial sobre um
episódio e uma personagem do período colonial brasileiro. O objetivo era também atingir o próprio
Regime Militar. Nessa época, tornou-se comum o uso das metáforas nas produções artísticas a fim de,
por um lado, enganar a censura rigorosa do sistema e, por outro, denunciar a situação da época. Chico
Buarque e Ruy Guerra utilizaram dessa figura no livro Calabar.
Assim, a relação existente entre o período da ditadura militar e o livro em estudo está na
analogia de imagens de ambos os períodos históricos que, após uma observação, ficam evidentes e
facilitam a identificação das críticas. Calabar pode representar os rebeldes, artistas, escritores,
estudantes e tantas outras classes que foram massacradas, punidas e censuradas pelo regime. No
contexto da ditadura militar brasileira, os “traidores” eram as pessoas que pensavam de forma
diferente, que discordavam dos métodos e da forma de governo da época. Assim como Calabar,
inúmeras pessoas foram presas e torturadas por serem consideradas traidoras da pátria, opositores ou
conspiradores. Artistas, estudantes, sindicalistas, membros da Igreja e a população em geral, todos
foram conduzidos por leis rígidas e cerceadoras de liberdades, de certa forma, manipulados por alguns
meios de comunicação e muitas vezes até forçados a acreditar que o regime seria o melhor para o
Brasil. Muitos foram espancados, exilados e até mortos pelo regime. Isso, porém, ocorreu em grande
segredo, já que a pena de morte nunca foi oficialmente implantada.
Já os comandantes da ditadura podem ser representados pelas figuras de Mathias de
Albuquerque, Felipe Camarão, Sebastião do Souto e personagens que apenas pensam em seus próprios
interesses e no poder que querem ter e exercer sem medir esforços para isso. Assim, a ditadura e os
militares podem ser comparados diretamente aos portugueses, pelo fato de estarem no poder e usarem
disso para explorar o país e também pelo fato de terem torturado e executado Calabar, igualmente ao
que era feito com aqueles que se posicionassem contra o regime e seus métodos de administrar. As
lutas armadas ocorridas no período da ditadura militar podem relacionar-se com as guerrilhas lideradas
por Calabar. Bárbara representaria os artistas engajados e tantos outros que enfrentaram o governo e
reivindicaram por melhorias, com um propósito fixo em mente de mudar para melhor, de buscar a
verdade e, acima de tudo, a justiça. Ela representaria também a consciência populacional, grito do
oprimido, voz de protesto. Porém, no decorrer da história, ela vai sendo calada igualmente a tantos que
lutavam contra o regime e foram sendo silenciados aos poucos.
O poder em ambas as épocas foi implantado, trazendo grande insatisfação. Contudo, a
medida tomada para resolver o problema foi o abuso de poder, a censura, a falta de liberdade de
expressão e até a morte, como por exemplo, Calabar, estudantes, sindicalistas, membros da igreja e
tantos outros que foram punidos por discordarem, questionarem, se oporem, pensarem diferente. Foi
preferível ir contra toda a população e adaptá-la ao regime, nem que fosse à base de torturas e mortes.
Mas nem todos aceitavam essa forma de viver: havia atos de rebeldia contra o regime, seja através da
arte engajada ou de tumultos, revoltas e guerrilhas. No livro isso é mostrado através de Bárbara que
encara os “chefões” e defende sem medir palavras seu ponto de vista, sua opinião. No período da
ditadura, também há tantas Bárbaras que foram silenciadas através da dor, pois essa “rebelião dos
opositores” muitas vezes custava a própria vida. Ambos os períodos ficaram marcados pela opressão,
pela censura. Talvez por isso, um sirva de pano de fundo quando se deseja criticar o outro.
Como vimos, Calabar mudou de lado em meio à batalha, e isso mudou o rumo da história.
Mas terá sido isso traição ou busca por melhorias? Será Calabar um injustiçado ou o traidor da pátria?
Essas são as questões que a peça discute: o verdadeiro sentido da palavra traição em diferentes épocas,
já que podemos transpor essa discussão sobre trair a pátria para o contexto da ditadura militar. A peça
definitivamente serviu de ferramenta de protesto, pois chegou a ser censurada devido à “insolência” de
criticar o regime e suas formas de governo.

4. CONCLUSÕES
Esse trabalho teve como objetivo analisar a obra Calabar: o elogio da traição como
manifestação artística no sentido de uma arte engajada que refletisse sobre a versão oficial da história
do Brasil Colônia e, ao mesmo tempo, denunciasse indiretamente o contexto da ditadura militar. Para a
realização desse trabalho, precisamos conhecer primeiramente algumas características do texto teatral
escrito. Estabelecermos relações entre literatura e sociedade. Realizamos um estudo a respeito da
história do Brasil Colônia e revisamos os conceitos de arte engajada e ditadura militar, pois
relacionamos os dois períodos históricos a fim de encontrar semelhanças que foram utilizadas como
forma de criticar, como, por exemplo, as lutas armadas e as guerrilhas, morte de Calabar e
punições/torturas.
Podemos afirmar que Chico Buarque e Ruy Guerra criticaram de forma sábia a ditadura militar,
pois eles fizeram uso das metáforas nas produções artísticas a fim de, por um lado, burlar a censura
rigorosa do sistema e, por outro, demonstraram um panorama social e político do período do regime,
usando como pano de fundo o período do Brasil Colônia, uma época que ficou marcada pelas mesmas
razões. A população estava vivendo um tempo de absoluta submissão, censura, falta de direitos e de
liberdade. Assim, através da arte engajada e de seus recursos estilísticos, os escritores conseguiram
expor suas motivações e seus pontos de vista.

REFERÊNCIAS
AGUIAR, F. Palavra no Purgatório: literatura e cultura nos Anos 70. São Paulo, Bom Tempo
Editorial, 1997.
BUARQUE, C.; GUERRA, R. Calabar: o elogio da traição. 14. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1993.
CANDIDO, A. A literatura e a vida social. In: Literatura e sociedade: estudos de teoria e história
literária. 11. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
FACINA, A. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
FAUSTO, B. História do Brasil. 9. ed. São Paulo: Edusp, 2001. p. 465-515. (Didática; 1).
GRAZIOLI, F. T. Teatro de se ler: o texto teatral e a formação do leitor. Passo Fundo: Ed.
Universidade de Passo Fundo, 2007.
GRÉSILLON, A. Nos limites da gênese: da escritura do texto de teatro à encenação. Estudos
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http://www.scielo.br/pdf/ea/v9n23/v9n23a18.pdf . Acesso em: 13 mai. 2011.
NAPOLITANO, M. A canção engajada no Brasil: entre a modernização capitalista e o
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______. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política
(1968-1981). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 24, n. 47, p.103-126, 2004. Disponível
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