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III Conferência Internacional em História Econômica &

V Encontro de Pós-graduação em História Econômica

Brasília, 23 e 24 de setembro de 2010 
 
 

Marc Ferrez & Filhos e as articulações da indústria


cinematográfica brasileira (1904-1921)
Julio Lucchesi Moraes1

O presente trabalho tem por objetivo analisar a trajetória da Firma Marc


Ferrez & Filhos (MF&F) sob o prisma da História Econômica. Queremos crer que um
estudo de tal natureza vem suprir uma série de lacunas bibliográficas, notadamente na
zona de interface entre as pesquisas econômicas e aquelas voltadas ao universo artístico.
Nosso recorte histórico destaca o período inicial do século XX. Tal opção dá-se em
primeiro lugar porque o momento concatena uma série de inflexões no campo da
História cultural brasileira, notadamente no campo do primeiro cinema. De fato, é com a
bibliografia da História do Cinema que nosso artigo mais dialoga, não deixando de lado,
todavia, outras discussões, como a da História da Fotografia.

A escolha do período analisado coincide, outrossim, com recorte de


pesquisa de mestrado Sociedades culturais, sociedades anônimas: aspectos econômicos
dos espaços culturais no Rio de Janeiro e em São Paulo (1904-1921) atualmente em
curso junto ao departamento de História Econômica da Faculdade de Filosofia, Ciências
Humanas e Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), sob orientação do
Prof. Dr. José Flávio Motta e com apoio da FAPESP. Tendo por objetivo reconstruir
histórica e economicamente elementos do campo cultural brasileiro em suas articulações
internas e externas, a pesquisa vem realizando análise e tabulação de fontes primárias –
notas, anúncios e crônicas de periódicos do período, atas de discussões públicas e,
material fundamental para o presente artigo, cartas, catálogos e documentação contábil
pertencentes ao Arquivo Família Ferrez, atualmente custodiado pelo Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro.

                                                            
1
Mestrando do Departamento de História Econômica da Faculdade de Filosofia, Ciências Humanas e
Letras da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), e-mail: julio.moraes@usp.br.

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O arquivo afigura-se como uma riquíssima fonte para as
reflexões históricas e econômicas do período, seja pelo bom estado de conservação dos
documentos, seja pela riqueza (e variedade) de documentação, sobretudo no que tange
ao material contábil, tipo de fonte que não costuma ser utilizada com freqüência das
reflexões da História cultural.

Além disso, inegável reconhecer que a Firma Marc Ferrez & Filhos
representou, na virada do século XIX um dos mais importantes nós da articulação
brasileira com o exterior em se tratando do fornecimento de equipamentos e filmes,
tendo exercido aliás, patente monopólio do setor até pelo menos a Primeira Guerra
Mundial. Com o intuito de analisar as características e peculiaridades de cada fase de
sua trajetória econômica, o presente artigo dividiu a análise em cinco etapas
cronológicas. Iniciaremos nossa análise ainda no século XIX, quando da constituição da
Marc Ferrez & Cia, no ano de 1867, terminando nossa análise com a constituição da
Marc Ferrez Cinemas e Eletricidade Ltda., na virada da década de 1920.

Do ponto de vista metodológico, perceber-se-á que a primeira parte de nossa


argumentação é muito mais centrada nas considerações das fontes secundárias,
enquanto a segunda se centra na documentação primária do Arquivo Família Ferrez já
mapeada ou tabulada para a pesquisa de mestrado.

Marc Ferrez fotógrafo: dissensos bibliográficos

Nosso resgate histórico sobre a trajetória econômica da Firma Marc


Ferrez & Filhos inicia-se pela constituição da firma Marc Ferrez & Cia, em 1867. Sobre
tal tema, as discussões mais interessantes são realizadas pela bibliografia voltada ao
campo da História da Fotografia, fato este que decorre do prestígio e do renome que
Marc Ferrez obteve no período. Nossa porta de entrada é o artigo Fotografia no Brasil e
um de seus mais dedicados servidores: Marc Ferrez, texto seminal publicado Gilberto
Ferrez, neto de Marc, na Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 1946.

Se bem esta primeira seção baseie-se sobremaneira nos fatos e


informações fornecidos pelo texto de Gilberto Ferrez, novas pesquisas e teses têm

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apontados dissensos dentro da análise da trajetória pessoal e
profissional do fotógrafo. O mais recente e completo levantamento crítico sobre esta
bibliografia encontra-se no álbum O Brasil de Marc Ferrez, realizado pelo Instituto
Moreira Salles (Reynaud et alli, 2005, pp.84-95). Obviamente, uma exaustiva
reconstituição de vida e obra do artista evade o escopo do presente artigo. Não
podemos, entretanto, nos furtar de apontar as principais leituras e interpretações da
biografia de Marc Ferrez, sobretudo no que tange ao contexto de criação de sua firma
nos anos 1860 e de sua atuação como importador de material e equipamento fotográfico
nas décadas seguintes.

Afirma Gilberto Ferrez que seu avô nasceu no Rio de Janeiro em 1843. O
pai, Zeferino Ferrez, francês, seria “um mestre de gravura de medalhas” tendo sido
chamado, juntamente com o irmão, Marc Ferrez [tio], quando da constituição da
Academia Imperial nos anos 1820, no âmbito da assim denominada “Missão Francesa”
(Taunay, 1983, p.330)2.

A despeito da especialização de Zeferino em gravuras e trabalhos em metal,


Gilberto nos fala que seu bisavô não seguiu adiante exclusivamente na carreira artística,
tendo investido seus recursos na construção de uma fábrica de papel no Andaraí
Pequeno (idem, ibidem)3. Em 1850, uma epidemia assolou a propriedade dos Ferrez,
dizimando escravos, trabalhadores e os pais de jovem Marc. Órfão, o garoto é enviado
para a França onde fica aos cuidados do escultor e amigo da família Alphée Dubois. É
talvez aí que Marc toma o primeiro contato com a fotografia (cf. Burgi e Kohl, 2005,
p.60). De volta ao Rio de Janeiro em 1859 é contratado pela oficina de Georges
Leuzinger (idem, pp.61-63). A análise da figura de Leuzinger é um primeiro ponto de
discórdia dentro da bibliografia. Retrata-o Gilberto Ferrez como imigrante francês
“tipógrafo e livreiro” (1997, p.299). Já Maria Inez Turazzi define a casa como:

                                                            
2
Para uma discussão sobre a Missão e suas implicações na produção artística brasileira há uma vasta
bibliografia, da qual destacamos os capítulos iniciais de A Forma Difícil de Rodrigo Naves ou o artigo Da
Missão Francesa de Mário Pedrosa.
3
Sobre a decisão de Zeferino dedicar-se a atividades industriais em detrimento das Belas Artes, afirma
Turazzi que “no Brasil, não é recente a necessidade de explorar outras ocupações para garantir o sustento
e a atividade artística” (2000, p.43). Outro exemplo de duplas atividades econômicas por parte de artistas
no período é o de Henry Klumb. De acordo com Gilberto Ferrez, Klumb, além da fotografia, dedicava-se
também ao comércio de importação de vinhos (1997, p.297).

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Uma espécie de papelaria e casa editorial da Rua do
Ouvidor, 36, dedicada à serviços de encadernação, douração
e litografia, assim como venda de álbums e outras publicações ilustradas4.

Por fim, Sérgio Burgi e Frank Kohl traçam um retrato mais completo do
comerciante. De acordo com sua análise, muito mais do que um tipógrafo, o imigrante
seria o “dono de um completo atelier fotográfico, especializado na produção de vistas e
paisagens” (2005, p.64). Ponto fundamental apontado pelos autores é que a casa
Leuzinger não tinha como clientes principais a sociedade carioca, dedicando-se, em
lugar disso, aos mercados editoriais europeu e norte-americano demandantes de fotos e
imagens dos trópicos para ilustração de trabalhos científicos e pesquisas naturalistas
(idem, ibidem). É, aliás, por motivo do grande volume de encomendas que Leuzinger
teria trazido da Alemanha o fotógrafo Albert Frisch, juntamente com seus dois filhos e
seu genro Franz Kellner, incumbindo-os de realizar fotos e paisagens da Amazônia para
expedições (idem, ibidem).

O papel da Casa Leuzinger e, mais especificamente, de Franz Kellner na


formação de Marc Ferrez é um segundo ponto de discordância dentro da bibliografia.
Afirma Gilberto Ferrez que Marc, aos 23 anos, teria se especializado, ainda como
funcionário da oficina no setor de “vistas e navios” e que Kellner teria sido seu tutor
(1997, p.63). Pedro Karp Vasques, contudo, afirma que Marc teria se instruído ainda
quando de sua estadia na França, não tendo jamais tomado parte do quadro de
funcionários de Leuzinger (2005, p.81).

Uma terceira leitura é proposta por Sérgio Burgi e Frank Stephan Kohl
quando do destaque às semelhanças e confluências estéticas e técnicas entre Marc
Ferrez e outros fotógrafos independentes da Corte no período, como Henry Klumb e
Robin Theodore. Se Leuzinger era o fotógrafo das “vistas e navios”, tendo como
público principal os editores do Velho Mundo, Henry Klumb teria se destacado como o
“fotógrafo da corte”. Ana Maria Maud destaca que Klumb não apenas realizou a maior
parte da fotografia retratística da Corte, mas que também atuou como professor
particular da Família Imperial (Maud, 1997, pp.197-198). O argumento de uma parceria
entre Ferrez e Klumb ganha força se tivermos em mente a opção inicial do nome da

                                                            
4
Turazzi (2000, p.112).

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firma criada por Marc no início de 1867: Marc Ferrez & Cia
mudada, meses depois, para apenas Marc Ferrez (Burgi e Kohl, 2005, pp. 60-61)5.

Por fim, propõe Maria Inez Turazzi que Marc Ferrez teria se destacado
como fotógrafo de barcos, atuando junto aos estaleiros imperiais, responsáveis pela
construção de embarcações para a Guerra do Paraguai. A base para tal afirmação é o
epíteto de fotógrafo da Marinha Imperial encontrado em alguns postais e cartões de
Marc no final dos anos 1860 (2005, p.18).

Seja como fotógrafo de vistas da Casa Leuzinger, seja como retratista da


corte ou fotógrafo de navios, Marc chega aos anos 1870 como o mais importante
profissional do ramo no Rio de Janeiro (cf. Burgi e Kohl, 2005, p.65). Aqui, não há
dissenso da bibliografia em destacar o papel fundamental dos grandes projetos e
encomendas do período para a trajetória profissional de Marc, sendo a Comissão
Geológica de 1875 o mais importante serviço realizado pela firma (Ferrez, 1997,
p.340)6. Além dos bons honorários que a participação em tal expedição devem ter
proporcionado à Marc, a participação em grandes comissões oficiais aumentava-lhe o
prestígio internacional, já que as fotos e painéis gerados em tais expedições eram
posteriormente enviados para concursos e exposições. Assim, na mesma década,
destacar-se-á Marc ao redor mundo, obtendo premiações em exposições na França,
Holanda, Bélgica, Argentina e Estados Unidos (idem, ibidem).

Marc Ferrez, importador de material e equipamento fílmico

A plena compreensão da trajetória econômica da Firma Marc Ferrez e,


conseqüentemente da MF&F precisa ir além da análise da biografia de Marc
exclusivamente como fotógrafo. Cabe aqui apontar uma segunda área fundamental de
atuação profissional, que é a de importador de material e equipamento fílmico. Sobre o
                                                            
5
Além das semelhanças técnicas entre Ferrez e Klumb, outro argumento subsidia tal aproximação. É que
estabelecimento comercial da Rua São José, 96, onde Marc Ferrez decidiu instalar sua oficina pertencia
antes a Paul Theodore Robin e a loja era dirigida por Klumb (idem, p.112).
6
“As encomendas – um expediente fundamental na realização da fotografia profissional – partiam de uma
clientela formada, basicamente, por membros da aristocracia, negociantes, cientistas, engenheiros,
funcionários públicos e estrangeiros e passagem pelo Rio de Janeiro, clientes que muitas vezes
representavam instituições públicas e privadas no país” (idem, p.24).

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tema, afirma Maria Inez Turazzi que logo no início dos anos 1870
Marc Ferrez teria estreitado laços com fabricantes franceses e ingleses após visita ao
Velho Mundo. A mediação teria ocorrido pela figura de Jules Claude Chaigneau, um
“comerciante de nacionalidade francesa que anunciava ter sempre a venda instrumentos
e todos os artigos próprios para daguerreótipos e fotografia” (2000, p.112). A relação
entre os dois, de acordo com Gilberto Ferrez, teria se intensificado após o incêndio da
oficina de seu avô, em 1873, uma vez que Marc teria perdido boa parte de seu estoque
de filmes e de material, necessitando de recursos e contatos de fornecedores para uma
viagem à Europa (1997, p.330).

Apenas uma análise mais acurada da contabilidade da firma no período


poderia nos indicar qual era a participação percentual da renda gerada no setor de
importação de equipamentos e filmes em comparação ao setor de encomendas e
fotografias7. Em todo caso, a lista de produtos trazidos ao Brasil por Marc, ainda nos
anos 1880, aponta relações da firma com comerciantes e grupos que, futuramente,
encabeçarão os grandes conglomerados cinematográficos8.

Em 1881, por exemplo, Marc introduz as primeiras chapas secas da


Lumière. Laurent Gervereau, aliás, pinta a relação de Marc com os irmãos Lumière
como bastante amigável, destacando-se uma série de contratos comerciais nos anos
subseqüentes (2005, p.112).

Será, entretanto, outro contato comercial estabelecido por Marc Ferrez no


período que alterará, em grande medida, o rumo da História do cinema no Brasil.
Referimo-nos à aproximação que a firma fez com Charles Pathé no ano de 1907,
obtendo, no ano seguinte, a representação exclusiva do fornecimento de fitas e
equipamentos da companhia francesa no Brasil. O ano marca também outra inflexão na
trajetória econômica da firma, que a alteração de sua razão social para Marc Ferrez &

                                                            
7
A interpretação de Maria Inez Turazzi é que já na virada do século o setor de importação da firma seria
majoritário. O argumento é de que o Almanaque Laemmert, principal catálogo de profissionais da área
correntes no período coloca Marc Ferrez na rubrica dos “fabricantes, depósitos, importadores,
exportadores e negociantes de objetos e artigos para fotografia” e não como fotógrafo (idem, p.120).
Também sobre o tema, ver Mauad (1997).
8
Além do material para uso propriamente fílmico, a firma era responsável pela importação e produção de
material para outros usos. Um exemplo disso era o papel ferroprussiato, utilizado para a confecção de
plantas para as construtoras de prédios da cidade (Ferrez, 1997, p.342).

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Filhos, passando o comando da firma para seus filhos Luciano e
Julio, então com 23 e 26 anos, respectivamente.

1907: o contrato com a Pathé

Típica firma familiar do começo do século XX, a diretoria da MF&F


possuía uma estrutura bastante simples. Marc, o patriarca, dividia seu tempo entre
estadias no Brasil e na Europa onde seguia realizando contatos com fornecedores e
produtores. Como veremos mais adiante, a atuação de Marc nesse período parece se dar
muito mais no sentido de uma utilização de seu “capital simbólico” do que
propriamente como negociador direto, papel que caberia aos agentes intermediários. Já
no escritório brasileiro, cujo endereço seguia sendo à Rua São José, Luciano e Julio
Ferrez dividiam as tarefas de gerência e contabilidade, respectivamente, embora
também eles realizassem constantes viagens à Europa, ora por motivos familiares (já
que parte da família lá habitava), ora para encontros e contatos profissionais. Como a
documentação é farta e a pesquisa segue em curso, pretendemos aqui apresentar as
principais linhas de atuação da firma e sobretudo a composição de suas atividades
comerciais no Brasil no período. Nossa opção argumentativa foi antes a de tentar expor
todo o rol de atividades realizadas pela firma no período em detrimento de promover
uma exaustiva exposição de tabelas, cifras e informações quantitativas, dados estes que
serão melhor trabalhados na dissertação de mestrado.

Isso dito, voltemos a 1907. Além do já mencionado contato com a Pathé, o


ano marca outro acontecimento importante na trajetória econômica da firma, que é o
arrendamento de uma sala de cinema no centro do Rio, o Cine Pathé. Os dois eventos,
inclusive na coincidência dos nomes, estão obviamente correlacionados, embora um
esteja subordinado ao outro. A tese que aqui propomos é que o contrato com o Pathé
representou, de longe, a atividade central (e mais lucrativa) dos negócios da MF&F no
período, em detrimento de sua atuação no setor exibidor. Nesse sentido, a dinâmica da
firma ter-se-ia orientado primeiramente por suas atividades como distribuidora e,
apenas secundariamente, junto ao braço exibidor.

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A razão disso não reside apenas na já discutida familiaridades dos Ferrez


com o ramo de importação e fornecimento de material e equipamento fílmico, mas na
própria distinção o perfil do setor exibidor e do setor distribuidor na década de 1900. A
chave para a compreensão de tal fato reside na diferença entre uma firma já estabelecida
e em grande medida consolidada, como é o caso da casa dos Ferrez em sua relação com
o empresariado exibidor dos anos 1900, centrado na emblemática figura do “nômade”.
Trabalhos como o de Françoise Garçon e Máximo Barro realizam a reconstituição
histórica do tipo ideal de empresário exibidor do período: trata-se, via de regra, de um
europeu, com pequeno ou médio capital e alguns contatos com os pólos produtores nos
EUA ou no Velho Mundo (cf. Garçon, 2005, pp.9-10 e Barro, 1996, p.23).

Tomemos, por exemplo, um dos mais emblemáticos casos brasileiros: o


italiano Pascoal Segreto. É na reconstituição da biografia do “ministro das diversões”,
desde sua chegada da Itália até a constituição de uma grande companhia teatral no final
dos anos 1910 que veremos a importância econômica do período de exibição nômade
(cf. Moraes, 2007, p.101 e Melo, 2004, pp.50-52). Vejamos numa passagem de Vicente
de Paula Araújo, a atuação de Segreto ainda na década de 1890:

Este novo gênero de diversão [o cinematógrafo – JLM] tornava-se tão popular a


ponto de seu proprietário, Pascoal Segreto, enviar um emissário ao Velho Mundo
para trazer novas fitas ou quadros, como se dizia na época: ‘partiu ontem para a
Europa o Sr. Spedirião Paulo, que ali vai fazer aquisiões de importante material para
o Animatographo do Sr. Pascoal Segreto9.

Ao que tudo indica a situação de Arnaldo Gomes, empresário exibidor que


firmou contrato com Julio Ferrez para a constituição do Cine Pathé, em 1907, não seria
distinta. Gomes, que se deve ter se dedicado à exibição nômade nos anos anteriores teria
se incumbido da “gerência, administração e direção” do local, cabendo à MF&F o
fornecimento de fitas e, mais especificamente, de fitas da Pathé10.

Essa ênfase do contrato na exclusividade do fornecimento da firma francesa


indica, aliás, uma importante tendência dos anos 1900. Isso porque já por esta época o
setor exibidor começa a registrar uma série de transformações e pela metade da década a
                                                            
9
Araújo (1985, p.95).
10
“Contrato de Escritura do Cine Pathé”, 21/03/1907.

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atividade dos exibidores nômades começa a se complicar. Robert
Sklar, analisando o caso norte-americano, aponta a atuação predatória da Motion Picture
Patents Company, o truste criado e liderado por Thomas Edison. De acordo com o
autor, o objetivo da companhia era controlar toda a cadeia cinematográfica, impondo
aos membros do consórcio pesadas taxas de licenciamento para a utilização dos
equipamentos da Patente Edison, até então a máquina mais utilizada nas filmagens. Aos
que se recusassem participar, as penas eram ainda maiores, com violentos ataques e
perseguições jurídicas (1975, p.50).

Mas é do outro lado do Atlântico que se desenrolarão as mais importantes


batalhas pelo controle dos rumos da nascente cadeia cinematográfica. O grande
protagonista dessas histórias será Charles Pathé. À maneira do que ocorre com Marc
Ferrez no Brasil, há, na França, uma extensa bibliografia dedicada à trajetória de vida
do cineasta e empresário francês11. Limitamo-nos, por tal razão, a destacar um único
tópico de sua biografia, certamente o mais relevante para um estudo do caso brasileiro,
que é a sua atuação no mercado distribuidor.

François Garçon, em livro sobre a História do setor distribuidor na França


afirma que em 1907 Pathé, já consagrado produtor de filmes e de material de filmagem,
revolucionou a indústria cinematográfica ao começar a praticar o aluguel de filmes em
lugar da venda (2005, p.10-11). A medida causava um completo rearranjo no setor: se
até então o pólo dinâmico da cadeia encontrava-se em sua “ponta final”, isto é, junto aos
exibidores nômades, a decisão promovia um deslocamento em direção ao elo anterior da
cadeia, isto é, ao núcleo da distribuição (idem, p.9).

São pelo menos dois os fatores responsáveis por tal inflexão. Primeiro, há,
pela metade da década de 1900, uma melhora das salas exibidoras proporcionada pelo
advento da eletrificação urbana. Mais do que um simples aprimoramento técnico, a
eletrificação trazia um ganho social ao cinema, já que as salas fixas, revestidas de status
e glamour teriam conseguido atrair um público maior, “mais familiar” e com renda mais
elevada do que o de suas concorrentes nômades (cf. Moraes, 2008 e Garçon, 2005, p.16-
17). Ora, acontece que esse súbito aumento e diversificação do público trazia novas
                                                            
11
Ver, por exemplo, a coletânea de textos Pathé, premier empire du cinema, organizada por Jacques
Kermabon.

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exigências ao setor: pela primeira vez, as salas passavam a
necessitar um fluxo constante de novas películas.

Alia-se a isto um bem-sucedido processo de regionalização das atividades


da Pathé, logo copiado por suas concorrentes, como a também francesa Gaumont.
Afirma François Garçon que Charles dividiu o território francês em uma série de
regiões, lá instalando escritórios para maximizar o controle, a administração, circulação
e distribuição de seus filmes (idem, p.30). O modelo é extremamente exitoso e o
empresário começa a exportá-lo para além das fronteiras nacionais: esta expansão
ocorre primeiramente rumo aos centros mais desenvolvidos da Europa e dos EUA,
como a Inglaterra e a Alemanha, mas avança rapidamente para todos os cantos do
globo. O resultado é surpreendente e já no início dos anos 1910 a Pathé detinha cerca de
50% do mercado de fitas no mundo inteiro e quase 80% no ramo de equipamentos
(Wenden, 1975, p.90).

O Brasil e a América Latina não constituirão exceção a essa tendência


expansiva. Em um relatório de atividades da Marc Ferrez, os filmes da Pathé e Gaumont
serão chamados de “a base de nossas compras”12. Também José Inácio de Melo Souza,
valendo-se de dados compilados por Jean Claude Bernardet, indica que os filmes
franceses mantiveram ao longo dos anos 1910 uma média de 50% do mercado de novos
títulos junto às salas fixas de São Paulo, sendo que só a Pathé responderia por 40% do
total de películas exibidas (2004, pp.176-177).

Parece, contudo, que a dinâmica da distribuição na América Latina


desenvolveu certas particularidades em relação a de outros pontos do globo. Ora,
François Garçon afirma que as companhias francesas, sobretudo a Pathé, instalavam
sucursais diretas em diversos pontos do globo, de onde ela mesmo poderia definir, sob
comando do escritório central parisiense, as quantidades e títulos a serem
disponibilizados para cada região (cf. 2005, pp. 32-33). Já no caso latino-americano, ou
pelo menos brasileiro, a intermediação não se dava de maneira direta, sendo triangulada
por um terceiro, no caso a MF&F, detentora de direitos de exclusividade dos produtos.

                                                            
12
“Relatório da Diretoria da CCB”, 29/11/1914.

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Esta firma, por sua vez, possuía agentes comissionados com
escritórios sediados no Velho Mundo, responsáveis por parte das negociações diretas
com fornecedores.

Se formos nos valer do volume de correspondências do Fundo Ferrez no


período, chegaremos a conclusão de que o escritório comissionado mais importante da
MF&F era o de A. Neviére, cujas rubricas ora vem com um endereço de Paris, ora de
Bordeaux, porto de onde, provavelmente, boa parte dos produtos da Pathé saíam para
chegar ao Brasil. A análise da Tabela 1 dá uma noção do volume das negociações:

Tabela 1: Fatura (em francos) de A.Nevière no ano de 1914

Gastos Filmes Pathé Filmes Gaumont Outros


Cartazes 9.729,40 5.773,15 5.331,55
Filmes 538.933,40 345.462,65 ‐
Vários ‐ ‐ 134.133,90
Materiais ‐ ‐ 81.752,80
Frete ‐ ‐ 44.069,10
Comissões ‐ ‐ 36,666,65
Total 548.662,80 351.235,80 265.287,35
Fonte: Arquivo Família Ferrez, tabulação própria.

Embora as cifras de transações com a Pathé sejam elevadas, não podemos


deixar de destacar a importância de filmes da Gaumont, bem como de material e
equipamentos de outras firmas, algumas delas de outras nacionalidades que não a
francesa13.

De fato, a despeito do primado cinematográfico da França e da Pathé ao


redor do globo, os contatos de representação da MF&F não se limitaram a ela. Além dos
já mencionados contratos com a Gaumont, encontraremos negociações sendo feitas por
agentes instalados em outras partes do Velho Continente. As coletâneas de
correspondências de Luciano Ferrez ao longo da década de 1910 indicam a existência

                                                            
13
“Cartas entre a firma Det Oversoiske Campagnie” e a MF&F, 15/09/1911 – 10/06/1912.

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da seguinte rede de agentes pela Europa: dois representantes na
França (A.Nevière e Levy), um em Londres (Juan Sala) e um em Milão (Enea
Malagutti)14.

Além de agirem como intermediários nas negociações de compra de


produtos, esses agentes atuavam como “correspondentes estrangeiros” da firma: assim,
veremos uma série de cartas dedicadas a atualizar Luciano e Julio sobre as novidades
tecnológicas da Europa, a lista de filmes e produtos de maior sucesso no continente e,
nos anos de Guerra, a situação de fábricas e portos para o embarque de fitas e
equipamentos. Sobre esse tipo de correspondência, o material mais interessante do
Arquivo são os catálogos de novos produtos e filmes, material este destacado como um
dos mais importantes canais de propaganda e de marketing das empresas
cinematográficas da Belle Époque (cf. Garçon, 2005, p.24).

Noutros casos as negociações eram feitas diretamente entre irmãos com os


produtores de equipamento e fornecedores, sem a intermediação dos agentes. É o caso
da troca de correspondências com a firma norueguesa Det Oversoiske, vendedora de
motores cinematográficos ou com a produtora francesa Dion Bouton15. Por fim, é
inegável a participação do próprio Marc em parte das negociações. A correspondência
entre o patriarca e seus filhos indica que Marc reservava-se às negociações de cunho
mais institucional, servindo, nesta época, como uma espécie de “relações públicas” da
firma junto aos grandes fornecedores e produtores. Não parece haver índice maior desse
papel do que uma troca de correspondências em Marc e o próprio Charles Pathé, quando
este informava ao amigo brasileiro sobre suas viagens aos EUA, anexando
recomendações de filmes e séries16.

Seja como for, toda essa rede de contatos no exterior permitiu à MF&F um
regime de patente monopólio no fornecimento de filmes e de equipamentos dentro do
território nacional. Assim, encontraremos contatos e negociações de Julio e Luciano
                                                            
14
“Correspondências de Luciano Ferrez ao irmão”, 30/11/1914 – 29/09/1915. “Cartas entre Luciano
Ferrez e A.Nevière”, 12/07/1914 – 12/06/1915. Há também referências, a partir de 1915, de um outro
agente na Itália, Salvador dell’Osso, atuante em Roma. “Cartas de Luciano Ferrez e Salvador dell’Osso,
12/07/1914”.
15
“Carta da firma MF&F à DET Oversoiske Compagnie”, 15/9/1911 e “Contrato com a Dion Bouton”,
Puteaux, 2/5/1912.
16
“Cartas de Charles Pathé a Marc Ferrez”, 02/11/1914.

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com os mais afastados lugares do país. Ao longo da análise de suas
correspondências comerciais, encontramos contatos em cidades como Maceió,
Salvador, Manaus, Belém e cidades do interior do Nordeste17.

Obviamente, o grosso da clientela da MF&F encontrava-se nos centros


urbanos do Sudeste. O Rio de Janeiro, pelo próprio volume do público, representou até
a metade da década de 1910 o destino principal do fornecimento de fitas e
equipamentos18. De fato, se a disputa empresarial junto ao setor exibidor carioca
avolumava-se ano a ano, com a entrada de novos empresários e grupos na disputa, o
núcleo fornecedor parecia afunilar-se no escritório da Rua São José. A documentação de
contratos no período menciona negócios com o já mencionado Arnado Gomes, mas
também com Pascoal Segreto e Jacomo Staffa19. Além do Rio de Janeiro, veremos uma
farta correspondência entre a MF&F com parceiros comerciais no sul do país. São
contratos de fornecimento de filmes da Pathé com firma como a casa Hirtz & Irmão, de
Porto Alegre, Annibal Rocha & Cia e Ildefonso & Cia, de Curitiba e com Paschoal
Limone, de Florianópolis20.

Também em 1908, a MF&F entabulava negociações com certo Antônio


Gadotti, procurador e contador da empresa de Francisco Serrador. O contrato, assinado
em maio daquele ano, assegurava fornecimento exclusivo de filmes e equipamentos aos
negócios de Serrador em São Paulo e no Paraná21. Iniciava-se aí uma lucrativa e
turbulenta parceria entre a maior casa importadora do país a aquela que em breve será a
maior cadeia exibidora do país, a Companhia Cinematográfica Brasileira.

                                                            
17
Carta de Abílio Monteiro, solicitando catálogo de material e preços a Marc Ferrez, Aracati, Ceará,
22/05/1913. “Cartas da MF&F aos proprietários da Empresa Cinematographica De Werk-Geskaft”,
19/11/1908, e também “Carta da MF&F a José Tous Rocca, agente da firma para as cidades do Norte e
Nordeste do Brasil”, 18/11/1908 – 25/02/1911.
18
“Relatório da Diretoria da CCB”, 29/11/1914.
19
“Cartas da MF&F a Paschoal Segreto”, 18 abr. – 1º jun. 1908”, “Cartas entre a firma MF&F e
Jacomo Rosario Staffa, proprietário do Cinematógrafo Parisiense”, 22 abr. – 16 out. 1908.
20
“Contratos, cartas de fiança, recibos etc. da MF&F”, datas diversas.
21
Idem, 30/05/1908.

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A MF&F e a Companhia Cinematográfica Brasileira

Francisco Serrador é uma das mais importantes figuras da História do


primeiro cinema brasileiro, senão a principal. O imigrante espanhol chegou ao país no
ano de 1887, fixando-se primeiramente em Santos e depois em Curitiba. Ao que tudo
indica, o empresário teria iniciado sua capitalização por atividades de natureza suspeita,
algumas delas ilegais, como os jogos de azar, sobretudo o jogo do bicho (Souza, 2004,
p.198). Passou, nos anos 1900 para o ramo das diversões e entre 1905 e 1907, percorreu
cidades do Paraná e de São Paulo levando atrações itinerantes pelo interior, tais como
rinques de patinação, estantes de tiro ao alvo ou aparelhos mecânicos (cf. Moraes, 2007,
p.117).

Na reconstituição biográfica de Serrador feita por José Inácio de Melo


Souza há um patente destaque à constituição, em julho de 1911, da Companhia
Cinematográfica Brasileira (CCB), sociedade anônima sediada em São Paulo e dedicada
à exibição fílmica (Souza, 2004, p.220). A constituição da CCB representava um passo
importante numa já ascendente trajetória de expansão do setor exibidor paulistano. Do
ponto de vista do passivo da empresa, vemos que a empresa valia-se basicamente de
capitais próprios de Serrador e de seus parceiros e sócios de negócios anteriores, bem
como das ações abertas no mercado, cujos principais acionistas eram grupos ligados ao
grandes capitais cafeeiros paulistas e aos interesses imobiliários em São Paulo (Moraes,
2007, pp.142-143). Já a carteira de ativos, com pouco mais de dois mil contos de réis de
réis dividia-se em: (i) 648 mil no estoque de filmes, (ii) 338 mil no contrato de
exploração do Cine Bijou em São Paulo, (iii) 297 mil em contratos de locação com
outros teatros, (iv) 246 posse de imóveis em Santos e em Curitiba e (v) 10 mil na “Ola
Giratória”, uma espécie de montanha russa pertence a Serrador22.

Em assembléia de 23 de junho de 1912 a diretoria da CCB resolvia expandir


o capital de empresa para quatro mil contos. Desse segundo lote de ações, a maior
subscritora foi justamente a MF&F (Souza, 2004, p.227). Pouco tempo depois, em
reunião de 5 de julho de 1912, sabemos a firma de Julio e Luciano “vendeu seu estoque

                                                            
22
“Relatório da Diretoria da CCB”, 29/11/1914.

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de filmes para a Companhia Cinematográfica Brasileira”23. O
momento é bastante importante pois indica uma possível reorientação das atividades da
MF&F.

Já por este período as atividades exibidoras da CCB espalhavam-se por


diversas cidades pelo Brasil, contanto a firma com salas em São Paulo, Santos, no Rio e
em Minas. Para a MF&F, uma aliança com a CCB significaria um incrível ganho de
escala no fornecimento de fitas para um cliente único, haja vista a dimensão e o ritmo
de expansão da companhia paulista24. Por outro lado, inegável reconhecer que a MF&F,
agora no papel de acionista da CCB, tornava-se dependente dos negócios da parceira.
Tratemos, antes de mais nada, de analisar os termos das negociações estabelecidas entre
as duas empresas.

Além da já mencionada venda de estoques de filme, menciona o contrato


que a MF&F tornava-se a sucursal da CCB no Rio de Janeiro. “À sucursal do Rio de
Janeiro”, afirma o documento, “competia o serviço de locação de filmes nos Estados do
Norte e Sul do Brasil (…) e o serviço de exibição nos três cinemas situados no Rio –
Avenida, Odeon e Pathé”25.

Outra parte da documentação, contudo, nos sugere que a sucursal seria ainda
responsável pela importação de fitas da Europa. Ao que tudo indica, este será um dos
pontos de maiores atritos entre a firma carioca e a firma paulista nos anos
subseqüentes26. No relatório da CCB de 1912, lemos que “a verba de despesa [com
aluguel de fitas – JLM] é a mais importante e é bem menor do que no outro exercício,
justamente porque a Companhia Cinematográfica Brasileira passou a negociar sem os
agentes de fábrica”27. A tese que aqui propomos é que a enorme taxa de expansão da
CCB no período só pode ter sido mantida pela manutenção do enorme fluxo de fitas dos
agentes da MF&F do outro lado do Atlântico. Se, por um lado, a MF&F via-se
dependente da CCB, também esta passou a ser demandante de um altíssimo e constante
volume de importações da Europa. A Tabela 2 dá um indício do tamanho desse fluxo:

                                                            
23
“Ata da reunião da Diretoria e do Conselho Deliberativo da CCB”, 05/06/1912.
24
Sobre a acentuada expansão da CCB no período, ver Moraes (2007, p.137).
25
“Documentos contábeis da Sucursal do Rio de Janeiro da CCB”, jan. – fev. 1915.
26
“Faturas da Firma A.Nevière”, 20/03/1915 – 31/03/1916.
27
Relatório da Diretoria da CCB”, 29/11/1914.

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Tabela 2: Entrada de filmes da Pathé em


metros de película (1912-1915)

Ano Programas Pathé Jornal

1912 581.360 35.639


1913 667.213 43.180
1914 551.558 44.930
1915 69.495 1.440
Fonte: Arquivo Família Ferrez, tabulação própria.

A tabela também revela outro momento interessante, que é o ano de 1915,


ano de uma súbita queda e até mesmo de interrupção nas importações. A bibliografia
ligada à História do Cinema é unânime em reconhecer neste ano uma crise de
abastecimento de películas no Velho Mundo, decorrência natural da conflagração da
Grande Guerra. A troca de correspondências entre Julio e Luciano Ferrez com seus
intermediários no período indica que esta queda abrupta no envio de películas para o
Brasil pode ter sido um dos principais motivos do rompimento entre a MF&F e
Serrador.

Para além de simples desavenças pessoais entre Serrador e os Ferrez, a


hipótese mais forte para o rompimento entre as duas partes é a de que Serrador,
valendo-se da instabilidade do mercado cinematográfico europeu, tentou passar por
cima dos irmãos, iniciando um movimento de negociações diretas com os fornecedores
europeus28.

Alia-se a isto a aproximação de Serrador com fornecedores norte-


americanos, notadamente com a Fox, uma das empresas que mais se beneficiou da
desestruturação francesa no período (Sadoul, 1951, pp.10-14). Ora, tal opção do
imigrante espanhol desagradou os Ferrez, tradicionais parceiros das companhias
francesas e sobretudo da Pathé. Sobre o assunto, manifesta-se Marc em patente oposição

                                                            
28
“Cartas de Marc Ferrez ao filho e nora Jules e Claire”, 2/10/1914 – 20/04/1915.

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à entrada de produtos norte-americanos29. A disputa, todavia, ainda
carece de melhor análise.

Cine Pathé e a Marc Ferrez Cinemas e Eletricidade Ltda.: a firma no pós-guerra

Seja qual tenha sido o motivo do rompimento, parece que a MF&F saiu
desgastada de sua querela com a CCB. A análise de documentação primária do período,
sobretudo dos anúncios em jornal, nos mostra que a companhia de Serrador não parou
de crescer no período que se seguiu à Guerra, motivada, em grande parte, pelo sucesso
dos filmes norte-americanos (Moraes, 2007, p.119).

Por sua vez, a MF&F optou por manter-se vinculada aos canais distributivos
europeus, tentando retomar seu regime de exclusividade do pré-guerra. O assunto surge
numa carta em que Luciano expõe a Julio os planos de retomar os negócios com a Pathé
e com a Gaumont, sem a intermediação da CCB, isto é, uma tentativa de voltar à
situação anterior ao contrato de 191230.

Parece, contudo, que já neste período a opção não se mostra das mais
lucrativas. Isto porque já no período a concorrência dos filmes norte-americanos é
bastante acentuada, diminuindo a taxa de lucros da firma. Soma-se a isto um aumento
no preço de produção dos filmes franceses e os custos de transporte. Em carta de 1916,
Marc Ferrez sugere aos filhos que mantenham a representação da Pathé, mas ressalta a
“necessidade de alugar uma sala de cinema para compensar as despesas devido ao
aumento de preço dos filmes”31.

Os irmãos decidem acatar a sugestão do pai e voltar ao setor exibidor. Tal


decisão representa um segundo momento de negócios entre os irmãos Ferrez e
Serrador32. Também este segundo ponto de contratos entre as firmas precisa ser melhor
analisado. Sabe-se que a MF&F arrenda, em 1917, o Cine Pathé, propriedade da CCB
                                                            
29
“Correspondências de Marc Ferrez a seus filhos”, 11/01/1916 – 23/06/1916 e 27/09/1916 –
30/01/1918.
30
“Correspondências de Julio Ferrez ao irmão Luciano”, 30/11/1914 – 29/09/1915.
31
“Correspondências de Marc Ferrez a seus filhos”, 11/01/1916 – 23/06/1916.
32
“Documentos do arrendamento do Cinema Pathé e de sua posterior venda à MF&F”, 20/07/1915 –
31/12/1917.

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passando, pela primeira vez, ao controle efetivo da direção de uma
sala exibidora. Uma vez mais, contudo, parece que o braço exibidor da firma não se
mostrará o mais representativo dentro do rol de ativos da empresa, conforme vemos na
Tabela 3 abaixo:

Tabela 3: Ativos da MF&F em 1921

Ativos Réis % do Total

Contrato Pathé 50:000$000 7,44%

Consignação de Filmes 
62:000$000 9,23%
em São Paulo

Equipamentos 58:038$600 8,64%

Filmes 311:472$410 46,36%

Ati vos  nã o rel a ci ona dos  à  


a ti vi da de fíl mi ca
190:285$610 28,32%

Ativo total 671:796$620 100%


Fonte: Fundo Família Ferrez, tabulação própria.

Como se vê, o ramo exibidor, representado pelo contrato de arrendamento


do Pathé no valor de 50 contos não ultrapassa a casa de 8% dos ativos da empresa. Os
equipamentos e sobretudo o estoque de filmes seguem atuantes nas atividades da firma,
respondendo por 8,64% e 46,36% do total. Contudo, enxergamos aqui uma última
inflexão da trajetória econômica da MF&F que é seu ingresso no ramo de equipamentos
elétricos. São indicativos dessa mudança e alta participação no balanço da empresa dos
“ativos não relacionados à atividade fílmica” (28,32%) e alteração da razão social da
firma para Marc Ferrez Cinemas e Eletricidade Ltda.

Conclusão

O trabalho buscou acompanhar a trajetória econômica da firma Marc Ferrez


& Filhos ao longo das primeiras décadas do século XX. Nossa análise iniciou-se ainda
na década de 1860, quando da constituição da Marc Ferrez & Cia. Vimos que embora
Marc tenha se destacado no ramo da fotografia, parte significativa da empresa adviria

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do setor de importação de equipamentos e material fílmico,
destacadamente a partir da década de 1870. No período estabelecem-se contatos de
Marc com grupos que, futuramente, comporão os grandes conglomerados
cinematográficos do Velho Mundo.

Em 1907 a firma altera sua razão social para MF&F e inicia uma seqüência de
parceiras e negócios comerciais no ramo da distribuição de fitas e no setor de exibição,
sendo o negócio mais importante do período o contrato com a Companhia
Cinematográfica Brasileira, liderada por Francisco Serrador, em 1911. Desavenças
pessoais e os efeitos da Grande Guerra causam o rompimento dos Ferrez com Serrador.
No ano de 1917, os irmãos retornam ao setor exibidor, embora a análise da
contabilidade da empresa indique que o foco da empresa a partir de então passe a
orientar-se para o comércio de equipamento elétrico.

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