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Fabiana Marion Spengler

Izabele Zasso
Janaína Soares Schorr

1
Fabiana Marion Spengler
Izabele Zasso
Janaína Soares Schorr

1ª edição

Santa Cruz do Sul

2015
2
CONSELHO EDITORIAL
Prof. Dr. Alexandre Morais da Rosa – Direito – UFSC e UNIVALI/Brasil
Prof. Dr. Alvaro Sanchez Bravo – Direito – Universidad de Sevilla/Espanha
Profª. Drª. Angela Condello – Direito - Roma Tre/Itália
Prof. Dr. Carlos M. Carcova – Direito – UBA/Argentina
Prof. Dr. Demétrio de Azeredo Soster – Ciências da Comunicação – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Doglas César Lucas – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Eduardo Devés – Direito e Filosofia – USACH/Chile
Prof. Dr. Eligio Resta – Direito – Roma Tre/Itália
Profª. Drª. Gabriela Maia Rebouças – Direito – UNIT/SE/Brasil
Prof. Dr. Gilmar Antonio Bedin – Direito – UNIJUI/Brasil
Prof. Dr. Giuseppe Ricotta – Sociologia – SAPIENZA Università di Roma/Itália
Prof. Dr. Gustavo Raposo Pereira Feitosa – Direito – UNIFOR/UFC/Brasil
Prof. Dr. Humberto Dalla Bernardina de Pinho – Direito – UERJ/UNESA/Brasil
Prof. Dr. Ingo Wolfgang Sarlet – Direito – PUCRS/Brasil
Prof.ª Drª. Jane Lúcia Berwanger – Direito – UNISC/Brasil
Prof. Dr. João Pedro Schmidt – Ciência Política – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Jose Luis Bolzan de Morais – Direito – UNISINOS/Brasil
Profª. Drª. Kathrin Lerrer Rosenfield – Filosofia, Literatura e Artes – UFRGS/Brasil
Profª. Drª. Katia Ballacchino – Antropologia Cultural – Università del Molise/Itália
Profª. Drª. Lilia Maia de Morais Sales – Direito – UNIFOR/Brasil
Prof. Dr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão – Direito – Universidade de Lisboa/Portugal
Prof. Dr. Luiz Rodrigues Wambier – Direito – UNIPAR/Brasil
Profª. Drª. Nuria Belloso Martín – Direito – Universidade de Burgos/Espanha
Prof. Dr. Sidney César Silva Guerra – Direito – UFRJ/Brasil
Profª. Drª. Silvia Virginia Coutinho Areosa – Psicologia Social – UNISC/Brasil
Prof. Dr. Ulises Cano-Castillo – Energia e Materiais Avançados – IIE/México
Profª. Drª. Virgínia Appleyard – Biomedicina – University of Dundee/ Escócia
Profª. Drª. Virgínia Elizabeta Etges – Geografia – UNISC/Brasil

COMITÊ EDITORIAL
Profª. Drª. Fabiana Marion Spengler – Direito – UNISC e UNIJUI/Brasil
Prof. Me. Theobaldo Spengler Neto – Direito – UNISC/Brasil

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Prefixo Editorial: 67722


Número ISBN: 978-85-67722-39-9

Bibliotecária responsável: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406


Catalogação: Fabiana Lorenzon Prates - CRB 10/1406
Correção ortográfica: Rodrigo Bartz
Diagramação: Daiana Stockey Carpes

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SUMÁRIO

Prefácio 7

Apresentação 10

CAPÍTULO 1 12
A REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA DA JUSTIÇA E A MEDIA-
ÇÃO COMO FORMA DE TRATAMENTO DE CONFLITOS:
uma análise a partir da proposta de Boaventura de
Sousa Santos
Janaína Soares Schorr

CAPÍTULO 2 28
MEDIAÇÃO: o consenso como arte diante da insufi-
ciência do Estado em resolver conflitos
Jaqueline S. M. Roberto

CAPÍTULO 3 44
A MEDIAÇÃO E A BUSCA DA RESOLUÇÃO DOS CONFLI-
TOS COM BASE NA ÉTICA DA AMIZADE: o respeito e
a consideração do outro como fator determinante na
solução de conflitos
Ilise Senger

CAPÍTULO 4 62
MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA x VIOLÊNCIA: tratamento
do conflito por meio do princípio da não violência e
do estabelecimento da cultura da paz
Luana Rambo Assis

CAPÍTULO 5 80
INTERLOCUÇÃO DO DIREITO COM A PSICANÁLISE: a
mediação como possibilidade de se compreender os
arranjos familiares nas práticas jurídicas
Izabele Zasso

As autoras 96

5
XXIX
Caminante, son tus huellas
el camino y nada más;
Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.
Al andar se hace el camino,
y al volver la vista atrás
se ve la senda que nunca
se ha de volver a pisar.
Caminante no hay camino
sino estelas en la mar.

XLIV
Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar.

(Antonio Machado - Provérbios y Cantares XXIX)

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PREFÁCIO

Alegra-me muito ver o resultado do esforço singular e do trabalho


da colega Professora Dr. Fabiana Marion Spengler junto ao Mestrado em
Direitos Humanos da Unijuí e dos mestrandos, que, a várias mãos e com
energia vital, participam desta obra com seus capítulos. Mas, mais do
que uma alegria, sinto-me também privilegiada por ter sido convidada a
prefaciar este livro que tem como título “A justiça brasileira em debate:
desafios da mediação” e como organizadoras a Dra. Fabiana Marion Spen-
gler e as quase mestres em Direito Izabele Zasso e Janaína Soares Schorr.
O que me deixa igualmente feliz é ver aqui demonstrado o quanto o
curso de Mestrado em Direitos Humanos da Unijuí está evoluindo
no estabelecimento de sua identidade universitária e se auto-
construindo por meio de sua potencialidade de produção do co-
nhecimento e da capacidade de interação deste entre o ensino
e a realidade de seu entorno.
Os sentimentos que me movem ao estar escrevendo
este prefácio também são de esperança, quiçá os mesmos
de uma poetisa, que por meio da linguagem, utilizando ape-
nas uma folha de papel e uma caneta, procura transferir sen-
tido. A mediação - tema principal deste livro -, tem um sen-
tido, um significado que está intimamente ligado ao acesso
a justiça, este, muitas vezes um ato concreto de poesia1
por nós impulsionado no dia a dia, por que não de utopia
(?), que seria, segundo Édouard Herriot “uma realidade em
potência”, já que visa a garantir uma sociedade mais justa
e igualitária.
Outro motivo para minha satisfação em prefaciar
esta obra é que minha dissertação de Mestrado em Desen-
volvimento da Universidade Regional do Noroeste do Esta-
do do Rio Grande do Sul – Unijuí teve como tema o acesso
à justiça, temática de fundo das discussões travadas neste
livro, bem como pelo fato de que, com a publicação deste
estar-se-á contribuindo ao debate acerca de um assunto
largamente discutido, mas que, por sua importância, per-
manece atual, especialmente quando se está na iminência

1 Parafraseando Maria Elisa Carpi, Defensora Pública e escritora,


Disponível em: http://www.defensoria.rs.gov.br/conteudo/23720/a-
defensoria-publica-e-a-poesia Acesso em: 12 jun. 2015.

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da vigência do novo Código de Processo Civil, no qual estão previstos
diferentes mecanismos para viabilizar o acesso à justiça, dentre eles a
mediação, que passará a integrar o rito processual.
Nos capítulos deste livro, as autoras conseguem expressar, com
infinita atitude e autonomia, fazendo uma leitura de diferentes autores,
sintonizada com as discussões de ponta no cenário jurídico, os conflitos
sociais cada vez mais complexos que ao Direito estão ligados em razão
de ser este o porta-voz do seu tratamento e que podem encontrar na me-
diação um caminho. Também retratam os problemas que enfrentam as
pessoas ao buscar a tutela judicial que é prestada pelo Poder Público por
meio do Judiciário.
A mediação é para mim uma forma de viabilizar o acesso à justiça.
Mais, é um mecanismo que exige maior participação das partes na cons-
trução de uma possível solução à celeuma que originou o processo judi-
cial (quando judicializado), o que por si só demonstra ser ele um método
democrático e que traz em si um forte sopro de pacificação social e de
auxiliador da cidadania. Ele pode ser utilizado não somente no Judiciário,
mas e, inclusive, preventivamente à propositura de uma demanda judi-
cial, como forma de evitar esta.
O acesso à justiça, por sua vez, é um direito fundamental, um direi-
to humano e deve preponderar nas sociedades democráticas, já que, por
meio dele, consegue-se a proteção e efetivação de outros direitos. Ele não
significa apenas o acesso ao Judiciário, mas a uma ordem jurídica justa, à
Justiça como um todo e aos seus diferentes mecanismos, de cujo sistema
os sujeitos não podem deixar de participar como atores, limitando seu
papel a meros coadjuvantes.
Tanto a expressão “direitos humanos” quanto o termo “justiça” têm um
significado de difícil definição. Os direitos do homem atendem a um caráter
universal dos direitos naturais e também histórico. Em um sentido mais am-
plo e moderno, são considerados direitos dos cidadãos, previstos na Decla-
ração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Se assim compreendidos, eles
não seriam criação do Estado, mas decorrentes de exigências universais, com
validade para todos os povos em todos os tempos. Já o conceito de justiça,
extraído da expressão “acesso à justiça”, pode ser resumido com algumas de
suas características principais: equidade e imparcialidade, as quais devem es-
tar presentes no acesso à justiça para a proteção dos direitos humanos. Essas
características também fazem parte dos objetivos da mediação.
O conceito de acesso à justiça como o acesso aos tribunais, aos
mecanismos substantivos e processuais para solução dos conflitos é, por-
tanto, um conceito estrito. Um conceito mais amplo, que deve preponde-
rar, é aquele que trata do acesso à justiça como o acesso aos meios de
desenvolvimento social, político e econômico de um Estado, ou seja, a

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uma justiça social, distributiva.
Diferentes são, então, as formas de se efetivar o acesso à justiça e
uma delas é a mediação, que vem expressamente prevista no novo Códi-
go de Processo Civil que entrará em vigor em 2016, o qual é considerado
um avanço para a sociedade por alguns doutrinadores justamente por
trazer mecanismos alternativos de solução dos conflitos, com uma pre-
tensão de transformar a vigente cultura do litígio em cultura do diálogo,
da conciliação e também da utópica paz.
A inclusão da mediação em uma fase inicial do tramitar do proces-
so civil demonstra que os exercitores do Direito estão conseguindo com-
preender a evolução das relações sociais, bem como o alargamento de
sua complexidade, o que exige não somente novos olhares para superar
o positivismo jurídico reinante, mas também novos instrumentos para au-
xiliar na solução dos conflitos. Nada melhor, salvo melhor juízo, para que
os processos sejam mais democráticos, que o diálogo, que a participação
ativa das partes na solução dos seus problemas, o que é proporcionado
pela mediação.
Vê-se, pois, que a constante reinvenção do sistema jurídico para tor-
ná-lo mais participativo e democrático, garantindo efetivamente o acesso
à justiça e a participação popular, é necessária para o reconhecimento e
efetivação dos direitos humanos, dos novos direitos e para a valorização
do pluralismo social.
Por derradeiro, tenho que, em sua medida, os capítulos que com-
põem este livro estão sintonizados com as linhas de pesquisa do Mestra-
do em Direitos Humanos da Unijuí e trazem uma problemática de pesqui-
sa que poderá ser utilizada por outros pesquisadores, que, assim como
nós, andam rumo a um lugar sem perspectiva de chegar ao final, simples-
mente no anseio por percorrer um caminho e por buscar um horizonte.
Portanto, fica o convite a que os privilegiados leitores possam encontrar
um entre-lugar que medeie o texto/mundo da vida de modo a injetar nas
veias do conhecimento uma pulsante atitude provocadora e, por conse-
quência, transgressora e libertadora, porque acreditamos que o caminho
se faz caminhando, como diziam Eduardo Galeano e Antonio Machado.
Desejo a todos e a todas uma ótima leitura e convido-o(a)s à reflexão.

Angelita Maria Maders2

2 Doutora em Direito pela Osnabrück Universität, Alemanha. Pós-doutorado na Universi-


dade de Santiago do Chile. Professora da Universidade Regional Integrada do Alto Uru-
guai e das Missões – URI Santo Ângelo e da Universidade do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul – UNIJUÍ. Defensora Pública do Estado do Rio Grande do Sul.

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APRESENTAÇÃO

Atualmente, muito se fala em mediação. Especialmente no Brasil


onde é possível vislumbrar a sua explosão. Porém, o maior risco é a
banalização do termo que vem sendo utilizado de forma equivocada em
muitas ocasiões. Porém, “fazer mediação” é algo maior do que a definição
estreita contida em um conceito. Mediação é também uma cultura para e
pela paz que objetiva lidar com os conflitos de maneira harmônica e ade-
quada. Assim, empregar o termo “mediação” é ação cuidadosa cujo objeti-
vo central é achar meios para responder a um problema real: uma enorme
dificuldade de se comunicar; dificuldade esta paradoxal numa época em
que a mídia conhece um extremo desenvolvimento.
A palavra mediação evoca o significado de centro, de meio,
de equilíbrio, compondo a ideia de um terceiro elemento que se
encontra entre os conflitantes, não sobre, mas entre eles. Evoca
a postura intermediária de alguém que está em “ação”. Essa
ação é qualificada pela facilidade de abrir canais de comu-
nicação inexistentes ou interrompidos, restituir laços rotos
ou melhorar a convivência. Por isso, a mediação é vista
como um processo no qual um terceiro (o mediador) auxilia
os participantes de uma situação conflitiva a tratá-la, o que
se expressa em uma solução aceitável e estruturada de ma-
neira que permita ser possível a continuidade das relações
entre as pessoas envolvidas no conflito.
Esse movimento é a gestão de conflitos pela catá-
lise de um terceiro mediante a utilização de técnicas nas
quais as pessoas buscam lidar com seus conflitos com
a ajuda do mediador que é imparcial e não tem poder/
legitimidade para decidir.
Lidar com o conflito utilizando a mediação é proce-
dimento que pode acontecer mediante uma pluralidade
de técnicas que vão da negociação à terapia. Os contex-
tos nos quais é possível aplicá-la são vários: mediação
judicial e extrajudicial, nas relações trabalhistas, familia-
res, escolares, dentre outros. A mediação assim aplicada
possui como base o princípio de religar aquilo que se
rompeu, restabelecendo uma relação para, na continui-
dade, tratar o conflito que deu origem ao rompimento.
Conhecedoras da mediação com essa perspectiva,
um grupo de alunas do Mestrado em Direitos Humanos
da UNIJUI, participantes dos seminários junto à disciplina
de Sistema de Justiça e suas Instituições, se debruçaram
sobre o tema e produziram os textos que deram origem

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ao livro que agora se apresenta. Muito me honrou o convite para apresen-
tar essa obra. Mais ainda, porque percebo nos textos o conhecimento e
as experiências compartilhadas e o amadurecimento de um debate que
começou nos seminários da disciplina e que, certamente, se estenderá
pela vida pessoal e profissional das autoras. A produção textual fez jus
ao debate produzido em sala de aula e espelha as ricas e profundas dis-
cussões lá desenvolvidas.
A abordagem é interdisciplinar assim como foi o grupo de mestran-
das, contando com interlocuções das ciências jurídicas e sociais, da psi-
cologia, do serviço social e da licenciatura em história. Debater e escrever
sobre mediação em um contexto multidisciplinar, tão amplo e rico, além
do debate acalorado, gerou várias visões e conclusões sobre o assunto.
O primeiro texto, produzido por Janaína Soares Schorr aborda a re-
volução democrática da justiça e a mediação como forma de tratamento de
conflitos numa análise a partir da proposta de Boaventura de Sousa San-
tos. No texto seguinte, de autoria de Jaqueline S. M. Roberto, a mediação
é discutida como meio de alcançar o consenso diante da insuficiência do
Estado em resolver conflitos. Adiante, o terceiro capítulo aborda a media-
ção e a busca da resolução dos conflitos com base na ética da amizade,
analisando o respeito e a consideração do outro como fator determinante
na solução de conflitos; esse capítulo foi produzido por Ilise Senger. Já a
mediação comunitária como meio de tratar conflitos por meio do princípio
da não violência e do estabelecimento da cultura da paz foi elaborado por
Luana Rambo Assis. Por fim, Izabele Zasso escreve sobre a interlocução do
direito com a psicanálise apresentando a mediação como possibilidade de
compreender os arranjos familiares nas práticas jurídicas.
No contexto de produção dos textos mencionados observa-se que
a mediação é considerada como maneira ecológica de tratar conflitos so-
ciais e jurídicos, um mecanismo no qual o intuito de satisfação do desejo
substitui a aplicação coercitiva e terceirizada de uma sanção legal. Diz-se
que é uma forma consensuada de tratamento do litígio, uma vez que o
terceiro mediador tem uma legitimidade limitada e não autoritária, e que
ajuda os conflitantes a chegarem voluntariamente a um acordo. Por isso,
não se pode perder de vista a importância desta prática em uma socieda-
de cada vez mais complexa, plural e multifacetada, produtora de deman-
das que a cada dia se superam qualitativa e quantitativamente.

Santa Cruz do Sul, outono de 2015.

Fabiana Marion Spengler


Professora Universitária

11
CAPÍTULO 1

A REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA DA
JUSTIÇA E A MEDIAÇÃO COMO
FORMA DE TRATAMENTO3
DE CONFLITOS:
uma análise a partir da
proposta de Boaventura
de Sousa Santos

Janaína Soares Schorr4

3Neste trabalho, seguindo entendimento defendido por Spengler


(2010), ao qual nos filiamos, utilizar-se-á “tratamento” em lugar de
“resolução”, em virtude de que normalmente os conflitos não são re-
solvidos pelo Judiciário, e, assim sendo, toda e qualquer medida que
tenha por intuito de discutir o conflito com fulcro a alcançar uma res-
posta satisfatória deve ser tratada como uma forma de tratamento do
mesmo.
4Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Instituto de Ensino Su-
perior de Santo Ângelo – IESA e especialista em Direito Processual:
Grandes Transformações pela Universidade do Sul de Santa Catarina
– UNISUL. Pós-Graduanda Lato Sensu em Docência para o Ensino Supe-
rior pelo Senac, Campus Santo Amaro/SP. Mestranda em Direitos Hu-
manos na Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
– UNIJUÍ. Membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Relações
Internacionais e Equidade”, vinculado ao CNPq, atuando na linha de
pesquisa “Democracia, Regulação Internacional e Equidade”. Bolsista
do Programa de Bolsas do Mestrado da UNIJUÍ. Advogada e orientadora
educacional profissional do Senac, unidade Santo Ângelo/RS. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1364458511266927 E-mail: janaschorr@yahoo.
com.br

12
“Excesso de processos não é si-
nal de democracia plena. Ao contrário:
é sintoma patológico, de uma socieda-
de enferma, que não sabe conversar!”

(José Renato Nalini5)

1. Introdução

O homem vive em sociedade, e vivendo em sociedade, vive envolto


em conflitos. Assim, conflito e convivência humana andam lado a lado,
sempre tendo existido e por todo o sempre, provavelmente, existirão. Po-
rém, o que normalmente se vê é uma reação negativa ao conflito, o que,
em verdade, não está totalmente correto. Estes poderão ser, ao contrário
do pensamento geral, positivos ou negativos, vindo a auxiliar ou prejudi-
car quem ou o que eles alcancem, direta ou indiretamente.
Ao lado disto, desde que aderiu ao contrato social, o homem dele-
gou ao Estado a tarefa de resolver estes conflitos, que o faz através do
instituto da jurisdição, agindo a partir de normas e regulamentos que
devem ser cumpridos por todos, adaptadas ao local onde estão inseridas,
de acordo com os costumes e a cultura do povo.
Atualmente, vive-se uma crise na jurisdição, que se agrava a cada
ano e que beira ao colapso do sistema como um todo, em razão de vários
fatores, dentre os quais a incapacidade do ser humano de resolver seus
litígios sem a presença do Estado, causando um grande número de ações
judiciais, e, por consequência direta, a morosidade dos processos, além
da falta de estrutura judiciária para comportar tão alto número de autos
processuais.
Após a análise desta realidade, o ensaio parte para o estudo do
direito ao acesso à justiça, garantido pelo nosso ordenamento, e trazido
à tona, pela primeira vez, pelo jurista italiano Mauro Cappelletti (1998),
considerado, mundialmente, um dos principais estudiosos do assunto.
Como proposta para diminuição da crise se apresenta a ideia defen-
dida principalmente pelo professor português Boaventura de Sousa Santos
(2011), a chamada revolução democrática da justiça, que propõe sérias e
importantes modificações, tendo como intuito a transformação do sistema
judiciário, através da criação de uma nova cultura jurídica e judiciária.
Ao final, perpetra-se estudo a respeito da mediação, “o ato de com-
partir”, mediar, intervir no conflito, apresentando-a e analisando-a, em

5 Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Biênio 2014/2015.

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virtude de ser hoje a mais eficiente, ecológica e completa forma de trata-
mento de conflitos.
Assim, o que se busca é a consolidação da mediação como uma
das melhores dentre as formas existentes de resolução de conflitos, com
o mínimo de consequências para as partes, e o máximo de atuação delas,
vez que estas passam a ser as responsáveis pelo tratamento da dificulda-
de em que se encontram.
Para tanto, a partir da pesquisa bibliográfica em obras que dão a
base teórica para o seu desenvolvimento, foi utilizado o método de abor-
dagem hipotético-dedutivo, partindo-se de uma proposição geral a fim de
construir uma premissa a ser utilizada para o estudo em particular.
Há muito que caminhar em relação ao tema em apreço, objetivando
este ensaio ser mais uma forma de discussão e pesquisa, em razão de
que só se vencerá a crise que assola o Poder Judiciário quando houver
união de forças em prol da construção de um mundo mais fraterno e jus-
to, em que as pessoas sejam também responsáveis pela resolução das
dificuldades que as envolvem.

2. A crise existente na jurisdição

Com o Estado sendo responsável pela segurança do cidadão, res-


ponsabilidade esta adquirida a partir do contrato social, ele possui o di-
reito a resolver os litígios, mas também a obrigação de aumentar a segu-
rança e diminuir a violência, possuindo o Poder Judiciário como um dos
meios para alcançar estes fins. Porém, com o passar do tempo, se verifica
que há uma crise presente na jurisdição, com um número cada vez maior
de processos, que são a cada dia mais morosos, acarretando uma popu-
lação que se torna descrente em relação à Justiça.
Conforme Spengler:

A principal atribuição desse Leviatã consistia em fazer cumprir


a lei fundamental da natureza: a busca da paz. Por meio des-
sa criação o homem superou a guerra de todos contra todos,
pactuando condutas que limitassem o direito natural, que nada
mais era do que a liberdade de cada homem usar do seu próprio
poder, da maneira que melhor lhe aprouvesse para a preservação
de sua vida (2006, p. 36).

Dessa forma, o Estado passou a ser responsável pela resolução dos


problemas, o que antes era feito através da “justiça pelas próprias mãos”.
Contudo, mesmo que possua autoridade legítima para isso, não conse-
gue realizar de maneira satisfatória esta atribuição. Hodiernamente, veri-

14
ficamos uma grande disparidade entre o que a sociedade exige e o que o
Poder Judiciário oferece, tendo como consequência lógica a ineficácia do
Estado para a solução dos litígios.
Em outras palavras, quando algum ato contrário ao ordenamento
ocorre, cabe ao Estado dar a resposta imediata, de forma exclusiva, atra-
vés do “dizer o Direito”, e agindo para isso de forma neutra e imparcial,
autônoma e externa (SPENGLER, 2010).
O indivíduo que possui qualquer tipo de pendência a ser resolvi-
da, seja com outro indivíduo, seja com uma empresa, ou mesmo com
alguma organização estatal, amparando-se exatamente na outorga au-
ferida, busca que o Poder Judiciário, através de um juiz togado, resolva
o seu “problema”, e “diga o Direito”, de forma que não se busca mais
o resolver de um conflito de outra forma que não a partir de uma ação
judicial interposta.
A crise atual é de identidade e de eficiência. Não havendo a tenta-
tiva de acordo prévio, vai se esvaziando cada vez mais a finalidade da
jurisdição. Ao lado disso, em decorrência da crise de identidade, os julga-
mentos acabam sendo cada vez menos eficientes, em virtude da comple-
xidade social e litigiosa que os ampara e que, em razão da quantia cada
vez maior de ações, retira a possibilidade do julgamento eficiente como
deveria ser (SPENGLER, 2014).
Há que, também, se levar em conta que a crise de eficiência está
ligada à crise na estrutura da jurisdição, cada vez mais sucateada e com
falta de pessoal, equipamentos e melhorias nas instalações. As estatís-
ticas realizadas demonstram que há um número cada vez maior de ser-
vidores com problemas de saúde, ocasionando baixas que acabam por
agravar ainda mais o problema.
A descrença em relação à justiça não ocorre apenas pela distân-
cia entre ela, o cidadão, os ritos e a linguagem utilizada nos processos,
tendo em vista o tempo, normalmente longo, que envolve cada proce-
dimento, a falta de adequação das decisões em face do litígio que o en-
volve e a impossibilidade que, muitas vezes, ronda o seu cumprimento
(SPENGLER, 2014).
Mas a crise não retira o protagonismo e a relevância do Poder Judi-
ciário, em razão da importante função política e jurídica que possui e do
seu papel fundamental na contemporaneidade, como forma de efetivação
dos direitos fundamentais (BEDIN; BEDIN, 2014).
É necessário cada vez mais, e de forma urgente, a desburocratiza-
ção deste Poder, aproximando a justiça do cidadão comum; que se torne,
realmente, acessível e democrática, garantindo a este a resolução de seu
conflito, não necessitando, em todos os casos, de um processo judicial.
Spengler refere a respeito da crise subjetiva que afeta a jurisdição:

15
Nessa mesma esteira, a crise subjetiva ou tecnológica se verifica
ante a incapacidade dos operadores jurídicos tradicionais lida-
rem com novas realidades fáticas que exigem não só reformula-
ções legais, mas também uma mudança cultural e de mentalida-
de, especialmente quanto ao mecanismo lógico-formal que não
atende - se é que algum dia atendeu - as respostas buscadas para
os conflitos contemporâneos (SPENGLER, 2014, p. 31).

A solução, neste caso, seria a mudança das grades curriculares dos


cursos de Direito espalhados pelo país, com a implantação de disciplinas
que, ao contrário das atuais, tratem o conflito, dando ênfase à opinião
das partes envolvidas, e não apenas ensinem a analisar o ordenamento
jurídico buscando uma solução legal para o caso (SPENGLER, 2014).
Além dela, também está presente a crise paradigmática, vinculada
aos métodos e conteúdos que são utilizados pela área jurídica para paci-
ficar as lides existentes, e que necessita, para seu combate, que o direito
passe a humanizar os conflitos, tornando as partes não mais números de
um processo, e sim integrantes de uma relação que deve ser resolvida
(SPENGLER, 2014).
A crise da jurisdição, aliada ao aumento dos litígios entre os in-
divíduos, principalmente ocorrido na modernidade e pós-modernidade,
acabou por tornar o sistema estatal obsoleto, em razão de não conseguir
mais, por si só, resolver as controvérsias existentes, reduzir os anseios
da população e diminuir os conflitos (WUST, 2014).
A necessidade que cresce a cada dia é no sentido de que, deixan-
do de promover o litígio, se promova e incentive o consenso entre os
homens, com o desenvolvimento do diálogo e da compreensão, formas
através das quais se alcançará a conciliação entre os homens.
Ao introduzir a obra “Acesso à justiça, direitos humanos e media-
ção”, Humberto Dalla assim se manifesta:

O crescente acesso à justiça para a solução de conflitos de inte-


resse em áreas socialmente impactantes evidencia que o termo
jurisdição não pode mais se restringir ao clássico dizer o Direito,
ou seja, não basta a garantia do acesso à justiça, mas à essa
liberdade pública deve-se agregar o direito a um provimento ju-
risdicional idôneo a produzir os efeitos práticos a que ele se
preordena (SPENGLER; BEDIN, 2013, p. 10).

Estudos realizados pela sociologia em diversos países revelam que


é mais cara a justiça para cidadãos que são economicamente menos abas-
tados. Isso ocorre, conforme as pesquisas, em razão de que eles são
os sujeitos ativos das ações de menor valor, e, no caso delas, de forma
proporcional, são maiores as custas processuais. Se analisarmos, conjun-

16
tamente, a morosidade que está presente no Judiciário, a vitimização au-
menta, pois haverão custos adicionais e uma maior demora na concessão
do direito, o que eleva ainda mais as estatísticas (SANTOS, 2010).
Um alerta deve ser feito:

Pode-se afirmar que as modernas promessas do Estado-juiz são


incapazes de abarcar a complexidade dos conflitos atuais. Ora,
enquanto estes conflitos não reconhecem o limite das fronteiras
dos Estados-nação, o Judiciário mantém-se fiel a uma noção de
competência essencialmente territorial; enquanto a economia
globalizada opera em tempo real, primando pela rapidez das
relações e das trocas, o tempo dos procedimentos judiciais é
o tempo do retardamento, o tempo diferido; enquanto prolife-
ram conflitos sociais de massa, próprios de uma realidade social
cada vez mais excludente, o Poder Judiciário permanece operan-
do com um referencial teórico-prático que desconhece o conflito
e reconhece apenas uma luta processual entre sujeitos iguais de
direitos; enquanto as Constituições contemporâneas consagra-
ram positivamente princípios e escolhas morais publicamente
construídos, valorizando as experiências e os valores históri-
cos, o Judiciário permanece administrando os conflitos sociais
da mesma forma que protegia a propriedade e a liberdade no
século XVIII, isto é, apenas racionalizando e institucionalizando
os conflitos em vez enfrentá-los em suas complexidades (LUCAS;
BEDIN, 2013 p. 47).

A jurisdição tem em seu foco ser um local para debate, para


exposição das ideias e diferenças que geraram o conflito. Não pode
servir como um local onde as pessoas não sejam aceitas ou ouvidas.
Para que haja, realmente, democracia, deve se aceitar as diferenças
de opiniões, pensamentos e atos, pois que em um conflito os envol-
vidos são seres humanos, agentes vivos, e não apenas números de
um processo.
Para que se possa diminuir a crise presente na jurisdição, necessá-
rio se faz um esforço contínuo de todos os envolvidos: Poder Judiciário,
população e do próprio ordenamento, que deverá ser modificado e rein-
terpretado, criando-se uma cultura de tratamento de conflitos que ocorra
antes da sua chegada a um processo judicial.
Com isso, também se deverá mudar a forma como ocorre o acesso
à justiça, que, nos dias atuais, é realizado sem nenhum tipo de critério,
o que gera, por consequência, um número cada vez maior de lides judi-
ciais, muitas sanáveis através do diálogo entre os envolvidos.

17
3. O direito do acesso à justiça

A expressão “acesso à justiça” foi usada pela primeira vez pelo ju-
rista italiano Mauro Cappelletti que dedicou grande parte da sua trajetória
de vida ao seu estudo e a sua defesa.
Esta expressão é de difícil definição e serve para “determinar duas
finalidades básicas do sistema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas
podem reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os aus-
pícios do Estado” (CAPPELLETTI, 1998, p. 8). O sistema, assim, deve ser
acessível a todos, e garantir que o resultado da lide seja justo e realizado
de forma individual.
Nas palavras de Cappelletti, “o acesso à justiça pode, portanto, ser
encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos huma-
nos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir,
e não apenas proclamar os direitos de todos” (1998, p. 12).
E ele faz ressalvas:

Os juristas precisam, agora, reconhecer que as técnicas proces-


suais servem a funções sociais; que as cortes não são a única
forma de solução de conflitos a ser considerada e que qualquer
regulamentação processual, inclusive a criação ou o encoraja-
mento de alternativas ao sistema judiciário formal tem um efeito
importante sobre a forma como opera a lei substantiva – com
que freqüência ela é executada, em benefício de quem e com
que impacto social (CAPPELLETTI, 1998, p. 12-13).

Para que se efetive os direitos humanos, seja no âmbito nacional,


seja no âmbito internacional, é necessário que seja garantido o acesso à
justiça, por estar diretamente vinculado aos meios de proteção dos direi-
tos e garantias fundamentais e, por via reflexa, à manutenção da sobera-
nia (MADERS, 2005).
Não se pode apenas possuir uma Constituição Cidadã, deve tam-
bém o Judiciário ser tido como um Poder Cidadão, que sustente e garanta
as liberdades e os direitos dos indivíduos, de forma eficiente, eficaz e
compreensível a todos. Apenas assim estaremos vivendo em uma socie-
dade realmente democrática (MADERS, 2005).
Acessar a justiça não quer dizer, apenas, ingressar com um pleito
judicial. É muito mais do que isso. É efetivamente garantir-se a proteção
dos direitos constantes no ordenamento jurídico, a partir de resultados
que sejam realmente justos àqueles a quem envolve.
Warat (2001) defende que, no momento em que o Estado demora
vinte anos para julgar uma lide, ele não respeita o indivíduo como um ci-
dadão, e viola, principalmente, a razão de ser dos direitos humanos, que

18
é o seu maior propósito e significado.
Alguns dos fatores que acabam por impedir um acesso a uma or-
dem jurídica que realmente seja justa é a morosidade do Judiciário, o cus-
to de uma ação judicial, a falta de informação que ainda existe em relação
aos direitos, a burocratização e a falta de estrutura administrativa, que
acabou por não acompanhar a evolução e o aumento de processos nas
Comarcas (CAOVILLA, 2003).
Porém, a cultura da demanda que está presente, hoje, na sociedade,
faz com que a garantia constitucional de acesso à justiça seja utilizada de
forma indiscriminada e, muitas vezes, diversa daquela que é seu objetivo
inicial. Toda e qualquer pretensão, hoje, acaba gerando um processo judicial,
o que gera, por consequência, muitas ações que não precisariam existir.
Inúmeros doutrinadores e juristas, em razão disso, defendem que
as partes devam possuir a obrigação prévia de demonstrar que tentaram
uma solução pacífica para o conflito, antes do ingresso efetivo em juízo,
sem o que, a ação não seria aceita.
Ao longo do tempo houve profundas transformações neste direito
constitucional, partindo de um mero direito formal e abstrato, como o era
no início, para tornar-se uma das garantias essenciais à manutenção do Es-
tado Democrático de Direito, como um dos bens mais fundamentais para
que se efetive a garantia dos demais direitos (BEDIN; SPENGLER, 2013).

4. A revolução democrática da justiça proposta


por Boaventura de Sousa Santos

A democratização tem, na visão de Boaventura de Sousa Santos,


duas vertentes:

A primeira diz respeito à constituição interna do processo e in-


clui uma série de orientações tais como: o maior envolvimento e
participação dos cidadãos, individualmente ou em grupos orga-
nizados, na administração da justiça; a simplificação dos actos
processuais e o incentivo à conciliação das partes; o aumento
dos poderes do juiz; a ampliação dos conceitos de legitimidade
das partes e do interesse em agir. A segunda vertente diz res-
peito à democratização do acesso à justiça [...] que garanta a
igualdade do acesso à justiça das partes das diferentes classes
ou estratos sociais (SANTOS, 2010, p. 177).

Sustenta, este professor, que a crise presente na jurisdição decorre


exatamente da falta de capacidade para cumprir as três funções ditas
essenciais, quais sejam: a instrumental, a política e a simbólica. A pri-

19
meira é relacionada a ser o Judiciário a esfera responsável pela resolução
de todo e qualquer conflito, de forma geral. A segunda é ligada ao fato
de que o controle social é feito por ele, através dos direitos e obrigações
impostos a todos os indivíduos (ANTUNES, 2010).
Quanto a terceira função da jurisdição, a sua função simbólica, ela
está diretamente ligada com o sentido de equidade e justiça que embasa
os atos do Judiciário, e que é o desejo da sociedade como um todo, ser-
vindo ele como intérprete da ordem jurídica e o grande garantidor da paz
social (ANTUNES, 2010).
Este Poder possui, assim, relevante papel no modelo de um Estado
Democrático de Direito, sendo ele o responsável pela garantia dos direi-
tos fundamentais, e representando o fim da barbárie que reinou na civili-
zação até a poucos séculos atrás, substituída pela segurança jurídica, que
hoje deve reinar.
Contudo, com a crise instalada na jurisdição, ocasionada por to-
dos os fatores já referidos, as promessas que permeiam a modernidade,
dentre elas a igualdade e a homogeneização dos indivíduos, acaba por
não conseguir ser cumprida, facilitando que ocorram casos gritantes de
desigualdade, exclusão social e degradação ecológica.
A proposta, assim, é que se desenvolva uma nova cultura jurídica e
judiciária:

A revolução democrática do direito e da justiça só faz verdadei-


ramente sentido no âmbito de uma revolução mais ampla que in-
clua a democratização do Estado e da sociedade. Centrando-me
no sistema jurídico e judicial estatal, começo por chamar a aten-
ção para o fato de o direito, para ser exercido democraticamen-
te, ter de assentar numa cultura democrática, tanto mais precio-
sa quanto mais difíceis são as condições em que ela se constrói.
Tais condições são, efetivamente, muito difíceis, especialmente
em face da distância que separa os direitos das práticas
sociais que impunemente os violam. A frustração sistemática
das expectativas democráticas pode levar à desistência da
democracia e, com isso, à desistência da crença no papel do
direito na construção da democracia (SANTOS, 2011, p. 8).

As sociedades contemporâneas estão cada vez mais desiguais, so-


cialmente e economicamente, e isto tende a aumentar a descrença na
democracia e a consciência social da injustiça. Porém, por outro lado,
longe de ficarem na inércia, as pessoas estão buscando, individual ou
coletivamente, os seus direitos, passando a possuir consciência deles.
Esta consciência é extremamente complexa, porque de um lado
ela compreende tanto o direito à igualdade quanto o direito à diferença
(sendo ela étnica, cultural, de gênero, de orientação sexual); e, por outro,

20
reivindica o reconhecimento dos direitos individuais e dos direitos cole-
tivos, ou seja, o direito dos camponeses sem terra, dos povos indígenas,
dos afrodescendentes, das comunidades quilombolas, entre outros (SAN-
TOS, 2011).
A partir do final da década de 1980, o sistema judicial adquiriu forte
proeminência em muitos países da América Latina, Europa, África e Ásia.
O Judiciário passou a assumir-se como poder político, colocando-se em
confronto com os demais poderes, especialmente o Executivo, e sobretudo
em três campos: no garantismo de direitos, no controle da legalidade e dos
abusos do poder e na judicialização da política (SANTOS, 2011).
Este protagonismo dos tribunais emerge através de duas vias, con-
sequência da mudança política ocorrida:

(...)por um lado, o novo modelo de desenvolvimento assenta nas


regras de mercado e nos contratos privados e, para que estes
sejam cumpridos e os negócios tenham estabilidade é necessá-
rio um judiciário eficaz, rápido e independente, por outro lado,
a precarização dos direitos econômicos e sociais passa a ser um
motivo de procura do judiciário. Muita da litigação que hoje che-
ga aos tribunais deve-se ao desmantelamento do Estado social
(direito laboral, previdência social, educação, saúde, etc.) (SAN-
TOS, 2011, p. 13).

O direito deve auxiliar para a construção de uma sociedade mais jus-


ta. Em nível de interesses econômicos, reclama-se por um sistema que seja
eficiente, rápido e que permita previsibilidade nos negócios, segurança
jurídica e a salvaguarda dos direitos de propriedade. As grandes reformas
do sistema estão, inclusive, neste campo. Igualmente, temos cidadãos
cada dia mais conscientes dos seus direitos, contudo ainda presente está
a exclusão social.
Isto se deve ao sistema social que é injusto e iníquo e que acaba
por deixar estes seres vulneráveis, a mercê de violências e arbitrarieda-
des, mas que não retira deles a consciência de que possuem direitos e
que estes devem ser respeitados. Para que se reconheça a presença des-
tas pessoas e se satisfaça essa procura suprimida é necessário a profunda
transformação do sistema judiciário, com a criação de uma outra cultura
jurídica e judiciária, que, ao invés de buscar o acesso a algo que já existe,
causará o acesso a mudança da justiça (SANTOS, 2011).
Amparado nestas reflexões, o professor Boaventura propõe uma
profunda reforma processual que sirva para diminuir a morosidade sistê-
mica e ativa que existe nos tribunais espalhados pelo país. Um processo
que é moroso acaba acarretando a falta de confiança nos tribunais e no
Judiciário, o que retira sua credibilidade diante da população e, por via

21
reflexa, o respeito a este poder.
Aliado a esta reforma, deverá haver uma ainda mais ampla, vincula-
da ao acesso à justiça, às inovações institucionais ocorridas junto ao Poder
Judiciário e à mudança do ensino do direito e da formação profissional,
com uma ruptura do sistema atual e o surgimento de uma formação que
seja permanente, que gere uma “consciência complexa, feita da dupla aspi-
ração de igualdade e de respeito da diferença” (SANTOS, 2011, p. 55).
Ademais, os tribunais e os movimentos sociais necessitam um
novo tratamento por parte do sistema judiciário, havendo o imperativo
de “dirigir-se aos marginalizados e excluídos do contrato social, atacando
as desigualdades estruturais e os danos de natureza sistemática que lhes
vitimizam” (SANTOS, 2011, p. 74).
É necessária a busca por uma nova cultura jurídica, como meio de
aproximação dos cidadãos à justiça. A revolução democrática da justiça
proposta por Boaventura é uma tarefa extremamente exigente, mas
igualmente simples e revolucionária. Ela é embasada na defesa de que
“sem direitos de cidadania efetivos a democracia é uma ditadura mal dis-
farçada” (2011, p. 84).
A democracia, efetivamente, deve garantir os direitos a que se pro-
põe, e, para tanto, deve haver a união da sociedade como um todo, e uma
reforma de todo o sistema e entendimento jurídico, com o direito saindo
de seu “mundo egoísta” e compartilhando com as demais ciências.
Necessário se faz, cada vez mais, que a alteridade esteja presente
em nossos atos e em nosso sistema judicial, que ampliem-se as vias de
acesso à justiça, mas que esta seja feita de forma consistente, e que as
resoluções de conflitos não precisem ser feitas apenas dentro de um pré-
dio de um Foro, e sim, possam ser praticadas e incentivadas antes da sua
judicialização.

5. A mediação como uma efetiva forma


de tratamento de conflitos

Vivemos em conflito! E com o conflito instalado, ocorre um rompi-


mento ou ruído na comunidade dos envolvidos, que pode ser minimizado
ou resolvido através da mediação, que estimula o diálogo e a discussão
do problema.
Para Spengler:

O desejo é comumente o motor dessa máquina tenso/conflitiva.


Quando dois desejos se chocam, nasce o conflito. Dessa desarmo-
nia nascida do choque de desejos resulta, muitas vezes, a submis-
são de um aos desejos do outro, de modo que se pode distinguir

22
um ganhador (aquele que se sobrepõe) de um perdedor (aquele
cujos desejos são sublimados pelo outro) (2010, p. 247).

Os meios alternativos que são buscados para o tratamento de um


conflito não são atentatórios à democracia, e sim são agentes para a de-
mocratização da sociedade, servindo eles como um meio para que as
pessoas auxiliem na resolução de seus problemas. Ela é democrática, vez
que ela acolhe a desordem e o conflito, considerando este como uma
forma de evolução da sociedade, como uma forma passível de desenvol-
vimento de uma cultura de paz (SANTOS, 2010).
Portanto, “o principal desafio que a mediação enfrenta não é o de
gerar relações calorosas e aconchegantes, sociedades isentas de litígio
ou uma ordem de mundo harmoniosa”, e sim “encontrar mecanismos que
possibilitem uma convivência comunicativamente pacífica” (SPENGLER,
2012, p. 94).
É necessário que a conversa entre as partes seja restabelecida, a
fim de que, deixando de lado preconceitos, julgamentos e opiniões, que
sejam próprias de cada um, se busque um mínimo denominador comum
e que possa, se não sanar o conflito, pelo menos minimizá-lo de forma a
não causar mais danos do que os já existentes.
O objetivo não é buscar culpados ou inocentes, e sim reconhecer
o Outro como um ser também portador de direitos e deveres, que possui
interesses e vontades próprias, devendo estas ser respeitadas. Busca-se,
enfim, que se possa desenvolver uma cultura de paz, ao invés da guerra
gerada pelo conflito.
A mediação é, além de um meio de tratamento de conflitos, uma
possibilidade estatal que pode oferecer uma jurisdição que seja adequada
quantitativa e qualitativamente, quando o indivíduo torna-se responsável
por suas escolhas e decisões, passando a ser um agente ativo no trata-
mento do conflito existente, e não mera parte de um conflito a ser resol-
vido por um terceiro, no caso, o Juiz togado (SPENGLER, 2012).
Ela procura a recuperação do respeito e o reconhecimento da ética
da alteridade, através da responsabilização dos conflitantes, para que,
com o auxílio do mediador, as arestas existentes possam ser aparadas, as
emoções possam ser compreendidas e o consenso e a harmonia possam
ser alcançados. Não haverá uma mediação bem-sucedida quando houver
desequilíbrio entre os envolvidos.
Logo,

A mediação é a melhor fórmula até agora encontrada para su-


perar o imaginário do normativismo jurídico, esfumaçando a
busca pela segurança, previsibilidade e certeza jurídicas para
cumprir com objetivos inerentes à autonomia, à cidadania, à

23
democracia e aos direitos humanos. Portanto, as práticas so-
ciais de mediação configuram-se em um instrumento de exercí-
cio da cidadania, na medida em que educam, facilitam e ajudam
a produzir diferenças e a realizar tomadas de decisões, sem a
intervenção de terceiros que decidem pelos afetados em um
conflito. Falar de autonomia, de democracia e de cidadania, em
certo sentido, é ocupar-se da capacidade das pessoas para se
autodeterminarem na relação com os outros; autodetermina-
rem-se na produção da diferença (produção do tempo com o
outro) (SPENGLER, 2014, p. 49).

É necessário que se diga que o tempo do processo tradicional e o


tempo da mediação não são os mesmos. O primeiro, enquanto rito que
é, segue uma série de fórmulas, procedimentos e atos determinados, que
durarão um tempo de acordo com o tipo de litígio e o ritmo em que as
situações forem ocorrendo e sendo ou não resolvidas (RESTA, 2014).
Destarte, não se pode confundir tempo do processo com tempo do
conflito, sendo eles “temporalidades diversas e, por isso, nem sempre
o primeiro é o modo mais adequado para tratar o segundo” (SPENGLER,
2012, p. 135).
Por outro lado, o tempo da mediação, como as partes passam a
ser protagonistas da experiência, não necessitando da representação por
terceiro, dependerá do tempo necessário para que as partes cheguem ao
reconhecimento do Outro e ao tratamento do conflito que os envolve. Se
diz, neste caso, que é necessário “perder tempo” para que se resolva a
questão litigiosa (SPENGLER, 2012).
De acordo com Spengler, “o mediador tem como função principal
o reforço da parte frágil do conflito, reequilibrando, de forma ecológica,
a posição dos conflitantes” (2012, p. 139). Tem o poder de reequilibrar
as desigualdades existentes entre as partes, reforçando o lado mais frá-
gil, contendo o mais forte e agindo em prol de que o consenso possa
ser alcançado.
Por este motivo é considerada a maneira ecológica de resolução
de um conflito ocorrido dentro da sociedade, porque, ao ser implantada,
substitui a pena coercitiva que seria aplicada a alguém, a favor de outro
alguém ou mesmo da sociedade como um todo, para satisfazer a todos
os abarcados de um modo geral (WARAT, 1998).
O mediador não tem, como o Juiz, a função de ser imparcial e de
decidir dentro do que diz o ordenamento, de forma cega, permitindo-se a
ele realmente agir, verificando as diferenças que existem entre as partes,
e trabalhando para que ocorra o equilíbrio entre elas, atuando de forma a
que restabeleçam a comunicação perdida, com uma solução que seja boa
para ambos.

24
6. Considerações Finais

Há uma crise no sistema jurisdicional causada por uma série de


fatores e, especialmente, resultado de um acesso à justiça que, hodierna-
mente, serve muito mais para discutir pequenos conflitos causados pela
falta de diálogo entre os envolvidos do que para tratar grandes litígios de
difícil resolução.
Embasado no direito constitucional de acesso à justiça muitos dei-
xam de tentar resolver a dificuldade existente sem auxílio do aparato
estatal, e vão ao Poder Judiciário requerer que o Estado assuma a res-
ponsabilidade por sua resolução, abarrotando a cada dia mais os nossos
tribunais. Aliado a isso, temos a falta de estrutura judiciária, em razão de
não ter acompanhado o aumento do número de ações judiciais, e a con-
sequente morosidade processual.
Assim, resta a premente necessidade de alternativas que possam
auxiliar a diminuir a crise, auxiliando não para a extinção dos conflitos,
porém para que possam ser tratados de forma que se reconheça a dife-
rença e o Outro como um ser de valores diversos que o meu, mas igual-
mente portador de direitos.
Neste estudo apresentou-se a proposta inaugurada pelo professor
Boaventura de Sousa Santos – a revolução democrática da justiça –, que
se embasa no desenvolvimento de uma cultura realmente democrática,
incentivando-se acessos alternativos à justiça e que não necessitem, ne-
cessariamente, da jurisdição propriamente dita, contudo que igualmente
sejam efetivos para o tratamento dos conflitos.
A mediação, como forma efetiva de tratamento de conflito, serve
como instrumento de paz e de consolidação da democracia, e torna, ao
contrário do processo judicial, a parte envolvida responsável pela resolu-
ção da dificuldade existente, como partícipe ativo e não apenas seguidor
da decisão de um terceiro sobre a questão.
É sabido que a discussão não encerra aqui, tendo como objetivo o
presente trabalho ser mais um meio de discussão deste tema que é deve-
ras importante, tendo em vista a realidade atual brasileira.

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faces da metamorfose social. [recurso eletrônico]. Santa Cruz do Sul: Es-
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27
CAPÍTULO 2

MEDIAÇÃO:
O consenso como arte diante
da insuficiência do Estado
em resolver conflitos

Jaqueline S. M. Roberto6

6 Mestranda em Direitos Humanos na Universidade Regional do Noro-


este do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, mesma universidade
onde cursou Licenciatura em História. Professora de História do Ensino
Fundamental da Rede Pública Municipal de Ijuí. Na UNIJUÍ integrou o
projeto de extensão ITECSOL - Incubadora de Economia Solidária, De-
senvolvimento e Tecnologia Social ITECSOL/UNIJUÍ, atuou como con-
sultora do Programa Redes de Cooperação, em convênio estabelecido
a UNIJUÍ e a SEDAI – Secretaria do Desenvolvimento e dos Assuntos
Internacionais do Rio Grande do Sul e assessorou a Vice-Reitoria de
Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão. Desenvolve pesquisas ligadas
ao trabalho cooperativo, associativo, direito ao trabalho, educação,
economia solidária, cidadania e desenvolvimento. Atualmente é Bol-
sista CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5754607120969034 E-mail:
jaqueroberto@gmail.com

28
“Ninguém nasce odiando outra
pessoa pela cor de sua pele, por sua
origem ou ainda por sua religião. Para
odiar, as pessoas precisam aprender,
e se podem aprender a odiar, elas po-
dem ser ensinadas a amar.”
(Nelson Mandela)

1. Introdução

Este estudo tem como norte reflexões a respeito de conflitos oriun-


dos das relações interpessoais. O homem, cada vez mais, desenvolve
tecnologia de ponta, produz Código de Ética e profere discursos emo-
cionantes centrados na paz. Não obstante toda essa construção huma-
nística, os conflitos não diminuíram. Às vezes, a vida é mostrada como
um labirinto, cuja busca de saída está à mercê do acaso. O Estado, com
toda a organização que a sociedade constituída comporta, não consegue
uma resolução sine qua non para todas as demandas judiciais. Na busca
est modus in rebus de soluções plausíveis, surge a mediação, objeto de
estudo deste artigo, centrado na pesquisa realizada por Fabiana Marion
Spengler (2010).
Quanto ao modus operandi, o texto divide-se em três partes: a pri-
meira, denominada - Em algum momento subentende-se que o Estado re-
solve tudo, discute as razões do cidadão pretender um Estado protetor
lato sensu. A segunda parte, Porque nem todos os conflitos devem ser
jurisdicionados e submetidos a um juiz, parte da vagueza que toda a lei
comporta e que acarreta pontos de carência no Direito, na jurisdição e na
própria justiça, todos compreendidos sob a tutela do Estado. Já a terceira
parte, Mediação: consenso como arte e alternativa à jurisdição, centra-se
na mediação como um modelo alternativo e possível fator consensual na
resolução de conflitos.

2. Em algum momento subentende-se que o


Estado resolve tudo

As pessoas em geral são tomadas pelo senso comum de que devem


amar-se mutuamente. Entretanto, há controvérsias, pois onde existe um
grupo organizado ou não, há discordância, acertos, ajuda mútua, confli-

29
tos em geral. E diante de conflitos interpessoais ou institucionais devem
submeter seus problemas ao Estado, através de lides encaminhadas ao
Poder Judiciário. Sendo assim, conferem dilemas, dos mais variados, a
juízes e tribunais. Muitas vezes, essas competências seriam de simples
resolução através do diálogo. Com o aumento dos litígios, o Poder Judi-
ciário torna-se moroso quando não, inoperante; não obstante, ainda há
uma forte crença neste Poder, bem como, uma dependência do sistema
jurídico formal para resolução de conflitos.
A propósito dessa teoria, Norberto Bobbio (1995, p. 27) considera a
sanção jurídica válida somente quando institucionalizada. Segundo escla-
rece o seu texto: “[...] para que haja Direito, é necessário que haja, grande
ou pequena, uma organização, isto é, um completo sistema normativo”.
Sendo assim, estruturam-se normas, vinculadas a uma norma superior,
que é a Constituição Federal. As normas e leis, em geral, são criadas pe-
los legisladores que, escolhidos e legitimados, formam o Ordenamento
Jurídico. Bobbio lembra que aquilo que muitos compreendem ser o direito
pode ser apenas uma característica de certo ordenamento.
Já Roberto Portugal Bacellar (2012, p. 08) esclarece que nem sem-
pre o Estado definiu direitos, mas com a evolução dos tempos e para evi-
tar a lei do mais forte assumiu a função de aplicar a lei nos conflitos que
surgissem do relacionamento entre as pessoas. “A ideia do monopólio do
Estado surgiu exatamente para limitar o poder do mais forte, evitando
abusos e a aplicação generalizada daquilo que se denominava autotutela
pelo exercício de uma forma de aplicação de justiça privada”.
Conforme Caroline Wüst (2014)7, autotutela é uma forma de so-
lução de conflitos existente desde os primórdios da civilização, com o
emprego de meios violentos para impor suas vontades e alcançar objeti-
vos. Haja vista ser atávica a pretensão para garanti-la de forma unilateral,
implica sobreposição de vantagens de um ente em relação ao outro. Wüst
enuncia ainda a autocomposição como outra maneira clássica de resolver
controvérsias, cujas diferenças eram deliberadas da seguinte maneira:
desistência, submissão ou transação. Na desistência, ocorre abdicação
do autor de uma pretensão em favor da parte antagônica. Enquanto que
a submissão admite que a pretensão é do antagonista. Já a transação en-
volve reciprocidade das partes.
Ao encontro dessas reflexões, Bacellar (2012, p. 08) postula ser
incontestável a importância do monopólio jurisdicional, o sentimento de
que o Estado assegura aos cidadãos tranquilidade de não precisar se ar-
mar para a luta ou fazer valer seus direitos através da força. Ou seja, esse

7Cuja pesquisa é pautada em grande parte nas obras da Professora Dra. Fabiana Marion
Spengler.

30
status quo mantém a convivência pacífica entre as pessoas. O autor com-
plementa, “diante do juiz, como diante da lei, não há pobres nem ricos,
nem pequenos, nem grandes, plebeus nem nobres; só é forte quem tem
por si o Direito”. Deste modo, o monopólio jurisdicional permite convi-
vência pacífica entre as pessoas, ou seja, vale a força da lei, porém há
interdependência ao caso concreto. Essa é a materialização do poder de
império do Estado, que atua na coordenação dos interesses privados em
busca da paz social. Propõe, então, que os conflitos sejam resolvidos além
do julgamento dos autos redundantes em punição e possam, também,
agir sob a malha social, buscando a cidadania.
O exposto significa que contar com o poder e a violência legítima
do Estado pode gerar tranquilidade, mas, por outro lado, “perde a possi-
bilidade de tratar seus conflitos de modo mais autônomo e não violento,
mediante outras estratégias” (SPENGLER, 2010, p. 283). Esse monopólio
absoluto, no dizer da autora, pode tanto sufocar como exasperar a vio-
lência, pois, muitas vezes, incita o sentimento de vingança, mormente
quando se sentir injustiçado.
Wüst (2014) demonstra que o Estado detém o monopólio da força
dentro de um determinado território e isso facilita a coesão social e as
controvérsias são de sua jurisdição. Em vista disso, tanto a autoridade
como as relações por ele estabelecidas são sempre de superioridade e
subordinação. E mais, o controle é exercido por ordens e proibições e a
desobediência leva a sanções. Por conseguinte, o ente estatal torna-se o
meio legal e ordinário de resolver conflitos, devendo o Judiciário aplicar o
direito ao caso concreto. Essa atribuição é tácita e se origina do contrato
social, quando os cidadãos atribuem ao Estado a função de gerir a coleti-
vidade. Não obstante essas considerações, há que se eliminar as causas
que geram o conflito para solucioná-lo, não ocorrendo, a expressão que
traduz essa prática, segundo a autora, seria “tratamento do conflito”, pois
uma solução implicaria em relação de causalidade (causa e consequên-
cia), de relações conflituosas.
É mister referir que o Estado, criado pela própria sociedade, possui
poder e coerção para garantir os interesses de todos. O Estado Contempo-
râneo eclode juntamente com as indústrias de massa e as transformações
socioeconômicas do século XIX e XX. Essa realidade propala a separação
entre capital industrial, comercial e bancário (SPENGLER, 2010).
O capital financeiro altera as relações entre Estado e economia. Isso
cria medidas protecionistas, intervenções legislativas e organização de
programas sociais, recebendo nomes como Estado de Bem-Estar, Estado
de Providência ou Assistência. Economicamente, importa o fim, o desa-
parecimento ou a morte do Estado e a desregulamentação das relações
sociais, porque há Estado em demasia ou demasiadamente pouco (SPEN-

31
GLER, 2010). A autora considera Estado um paradoxo e que, segundo ela,
resulta na multiplicação dos loci de poder.
Hoje, nega-se o Estado como única e exclusiva fonte de direito e
prioriza-se a produção normativa gerada por movimentos organizados
que compõe a vida social. O direito torna-se um produto espontâneo da
sociedade. É o direito vivo, da vida concreta das pessoas. “A falta de ins-
tituições legislativas fortes, capazes de criar um direito durável e coeso,
é a principal responsável pelo atual pluralismo das fontes cuja legitima-
ção não vem assegurada pelo consenso de uma coletividade” (SPENGLER,
2010, p. 87).
Ainda assim, o Estado exerce o monopólio jurisdicional, adverte Ba-
cellar (2012), haja vista que há meios de resolução de conflitos judiciais
e extrajudiciais, tanto na esfera privada quanto na pública, com métodos
consensuais ou adversariais. As soluções podem ocorrer através da von-
tade das partes, pelo estímulo de um mediador ou conciliador ou ainda
pela imposição de um terceiro (juiz ou árbitro).

Já as formas pelas quais se manifestam e se configuram essas


soluções podem ser: autocompositivas ou heterocompositivas.
Como sabemos, as soluções podem ser encontradas sem neces-
sidade de ajuizamento de demanda perante o Poder Judiciário, e
até mesmo diretamente pelas partes. É o que ocorre nos meios
ou mecanismos extrajudiciais (BACELLAR, 2012, p. 09).

O ajuizamento da demanda e o direito de ação são mecanismos


judiciais, levados ao Poder Judiciário, mas os conflitos podem ser solucio-
nados de maneira informal no âmbito familiar, da vizinhança, da escola
ou da empresa. Conflitos (privados) sem resolução no âmbito informal
podem procurar meios mais formais, como uma assembleia de condomí-
nios, meio formal, porém, extrajudicial. Deste modo, o consenso é um
método, na forma autocompositiva, quando as próprias partes decidem.
Já a decisão advinda de um conselho comporta o método adversarial, na
forma heterocompostitiva. A esfera privada tem recorrido a serviços de
resolução de conflitos internos, assim como a esfera pública organiza
comissões e conselhos que facilitam a resolução de conflitos internos,
a prestação de serviços públicos e atendimento aos cidadãos. “O campo
destinado à resolução de conflitos por meio extrajudicial (privado ou pú-
blico) é muito amplo e deve ser estimulado” (BACELLAR, 2012, p. 09).
Todavia, as formas autocompositivas devem respeitar à legalidade
e à igualdade, com a livre manifestação das partes. Caso não se estabe-
leça um equilíbrio de força entre os cidadãos, então haverá necessidade
da intervenção do Poder Judiciário, para situações de ilegalidade, abusos
e desequilíbrios nas relações negociais (BACELLAR, 2012).

32
É mister referir que o Direito deverá ser aperfeiçoado e assim tam-
bém todo o sistema de justiça, a fim de proporcionar o bom desempenho
e atuação do Estado no âmbito judicial. No item a seguir, serão estudados
os embaraços do direito produzido pelos entes estatais, com o aval do
cidadão, apontando para a premência de ser cada vez melhorado; men-
cionado os indícios que demonstram possíveis formas alternativas de re-
solução de conflito.

3. Porque nem todos os conflitos devem


ser jurisdicionados e submetidos a um juiz

Tendo em vista que este estudo trata de comunidade, mediação e


jurisprudência, o papel do juiz é preponderante. A esse respeito, Spengler
(2010, p. 119) salienta que é visto como “(...) um tipo ideal ao qual sua
existência concreta jamais se adapta totalmente”. Há uma independência
do magistrado e o hábito, a repetição e as pilhas de processo se tornam
para os juízes condição de trabalho tranquilo, assim, ele não vive a an-
gústia da sua tremenda responsabilidade a cada processo. Nestas rotinas
e páginas processuais ele não vê os rostos e dessa maneira, os humanos,
no Judiciário, perdem a face. Esse sistema parece feito justamente para
dar tranquilidade aos juízes.
O Judiciário está em crise, necessita de reformas estruturais de
caráter físico, pessoal e político. Perdeu espaço de atuação judicial para
privados, inclusive para um direito não oficial e isso é um risco para a
democracia. A sociedade é complexa, novos papéis são desempenha-
dos, constituem-se novas relações. Há um descompasso entre a função
jurisdicional e o nível de complexidade social. “A jurisdição (monopólio
estatal de aplicação do direito) se mune de poder e coerção” (SPENGLER,
2010, p. 102).
O direito objetivo, utilizado para tratar o conflito de forma imparcial
e neutra, está carente. Desse atenuante, nem todos os conflitos devem
ser jurisdicionados e submetidos a um juiz, vejamos ao longo deste item
as insuficiências do direito, da jurisdição e da própria justiça, sempre vin-
culados à figura do Estado e a constatação de que maneiras alternativas
de acesso à justiça devem ser incentivadas.
Boaventura de Sousa Santos (2007, p. 09-10) explicita três premis-
sas críticas. A primeira é o monopólio estatal e jurídico do direito. A se-
guir, o seu caráter despolitizado e, para completar, a terceira premissa
entende o direito como princípio e instrumento universal de transforma-
ção social, cujo olhar deveria ser voltado, prioritariamente, para grupos
e classes reprimidas. Sua obra, resultado de uma palestra, consiste em

33
análises que suscitam um posicionamento no mínimo crítico quanto a
ordem vigente. Questionando o direito enquanto poder emancipatório,
conclui que sim, desde que ocorra uma revolução democrática da justiça,
através da luta por direitos mais justos, acessíveis e inteligíveis. Quanto
ao direito e a justiça nas sociedades contemporâneas, indaga “Por que ra-
zão estamos hoje centrados na ideia do direito e do sistema judicial como
fatores decisivo da vida coletiva (...) na ideia de levar a sério o direito e os
direitos?” (p.10) E responde que isso ocorre por ignorância do que seja a
operacionalidade da justiça, pois até bem pouco tempo juízes e tribunais
eram figuras distantes das pessoas comuns.
E continua suas reflexões revelando debilidades do neoliberalismo
(p. 20 e 21) que influenciaram as crises do Judiciário, em dois grandes
campos: primeiro um campo hegemônico e segundo um campo contra
-hegemônico. Este é o campo do cidadão que tem consciência de seus
direitos. Aquele é o campo que serve aos que detêm o poder.
Quanto ao direito e a justiça nas sociedades contemporâneas, Boa-
ventura indaga-se “se o direito tem desempenhado uma função crucial
na regulação das sociedades, qual sua contribuição para a construção de
uma sociedade mais justa?” (2007, p. 20). Remete duas respostas, uma
fraca e outra forte. A primeira, diz respeito à importância do Estado de
Direito e das instituições jurídicas para assegurar o desenvolvimento eco-
nômico. A segunda é sobre as condições para a construção de um novo
senso comum jurídico e o seu papel para emancipação social.
A justiça é morosa e muitas vezes tendenciosa:

Há um rol de variáveis relativas à complexidade ou simplicidade


de uma causa. Essas variáveis incluem valores, número de inter-
venientes (partes, autores, réus, assistentes, Ministério Público),
lealdade ou deslealdade no comportamento processual (das par-
tes e dos advogados), atuação do juiz, adequada condução dos
trabalhos decorrentes da serventia (servidores públicos e auxi-
liares da justiça), recursos interpostos, dentre outras (BACELLAR,
2012, p.19).

Para solucionar o problema que contém erros crassos e falta de es-


crúpulo, o autor propõe “um portfólio de métodos” que utilizem a forma
autocompositiva que promova conciliação. Há que se proclamar que o
acesso à ordem judicial é um caminho para a justiça.
A ausência de um poder central na solução de conflitos abre espa-
ço para a atuação de poderes privados, pois não há como saber quem
realmente detém razão ou quem é mais forte. A crise da jurisdição é
aprofundada pela cultura, política, economia e crise do Estado. A partir
disso, entende-se que um direito não oficial, como meio de tratamento
de conflitos, ganha espaço à medida que a função jurídica se desgasta. É,

34
portanto, atribuído valor a um novo direito, mesmo que oficialmente não
legitimado. E esta inversão deve ser atribuída ao próprio direito oficial,
que se torna cada vez mais burocratizado, autônomo e sistemático, tendo
como consequências a padronização, a impessoalização dos procedimen-
tos, a falta de celeridade e a ineficácia da lei (SPENGLER, 2010).
O Estado perdeu a exclusividade de dizer o direito e tornou-se uma
estrutura fechada, que necessita alargar os limites de sua jurisdição, mo-
dernizar suas estruturas. Suas barreiras geográficas vem sendo supera-
das pela informática, pelas comunicações e transportes. “O tempo do
processo judicial é o tempo diferido. O tempo da economia globalizada é
o tempo real” (SPENGLER, 2010, p. 102-103). A jurisdição deve, portanto,
acompanhar a multiplicidade de lógica da economia globalizada.
Toda estrutura funcional do Estado está em crise, reforça Spengler
(2010) em resumo, pela perda de centralidade, acentuada globalização,
abertura de fronteiras, desregulação e lex mercatória. Isso facilita o apa-
recimento de instâncias alternativas de resolução de conflitos, como a
arbitragem, a mediação, a conciliação e a negociação. Novas categorias
de direito e novos sujeitos de direito surgem a todo instante. Demandas
sociais que antes não eram jurídicas adquirem status jurídico.
O Estado necessita superar os limites de suas funções tradicionais
diante das inovações tecnológicas e da transnacionalização dos mercados
para resguardar os direitos dos cidadãos, não apenas individuais, mas so-
ciais. Tem a responsabilidade de promover programas sociais, alargando
horizontes e lidando com os novos direitos.
A crise do Estado se reflete no Judiciário, com vestes do Estado
Liberal – indeterminação e indefinição. O papel do legislador passa para
o Judiciário e isso a autora denomina de judicialização da política en-
quanto outros chamam de ativismo judicial. “A Justiça passa a encarnar,
assim, o espaço público neutro, o direito, a referência da ação política,
e o juiz, o espírito público desinteressado” (GARAPON apud SPENGLER,
2010, p. 136).
A divisão de poderes (Legislativo, Executivo, Judiciário) assim foi
feita para evitar a concentração e o abuso de um poder sobre o outro.
Contudo, o juiz e a lei tornam-se referência de esperança para indivíduos
excluídos socialmente. “O espaço simbólico da democracia migra do Esta-
do executor para a Justiça. (...) O Judiciário se transforma no guardião das
promessas da modernidade (...) Não será a justiça em sua atual confor-
mação, além de substituta do imperador, o próprio monarca substituído?”
(SPENGLER, 2010, p. 140-141).
A mídia tem demonstrado, constantemente, exemplos em que a
justiça é requerida quando ainda não existem leis para análise dos res-
pectivos casos. O Caderno PrOA, do Jornal Zero Hora, através de Itamar

35
Melo (Zero Hora, 21 set. 2014, p. 06-07) escreveu uma matéria, cuja man-
chete apresenta “A Justiça vai à frente – Como o Judiciário se tornou o
grande motor por trás das mais controversas questões sociais e compor-
tamentais nos últimos anos no país”.
A seguir são relacionados exemplos de algumas áreas em que os
juízes tomaram decisões que ajudaram a mudar a sociedade brasileira
(MELO, Zero Hora, 21 set. 2014, p.07):
1) No começo da década de 1990, a juíza Maria Berenice Dias
deu ganho de causa a uma mãe de cinco filhos, abandonada pelo marido,
mas não divorciada dele, que cuidou sozinha de seus filhos e amealhou
alguns bens, incluindo uma casa. Após algum tempo, o marido voltou
exigindo a sua parte. Pela lei ele teria esse direito. Como a legislação es-
tava em conflito com o mundo real, o marido perdeu a causa.
2) O polêmico caso de Santana do Livramento – RS, onde reali-
zar-se-ia um casamento coletivo em um CTG e um dos casais era formado
por duas mulheres. A juíza Carina Labres, que já vinha promovendo ca-
samentos gays, assumiu o caso. O CTG foi incendiado, mas o casamento
realizou-se no prédio do fórum.
3) Multiparentalidade– decisões judiciais recentes ampliaram os
tipos de paternidade. Além do pai biológico, os juízes acolheram também
a noção de pai socioafetivo – aquele que exerce afetivamente a função. O
juiz de Santa Maria-RS, Rafael Pagnon Cunha, tomou uma decisão inédita
em setembro de 2014, determinando que uma criança recém-nascida te-
nha o nome do pai e de duas mães na certidão de nascimento. As mulhe-
res formam um casal e acertaram a concepção da criança com o homem,
que engravidou uma delas.
4) União Homossexual - Em 2011, o Supremo Tribunal Federal
reconheceu como estável a união entre homossexuais e ano passado,
a justiça ordenou todos os cartórios a aceitar o registro de casamentos
gays.
5) Componentes da Maconha – Desde abril de 2014, juízes tem
liberado a importação da canabidiol, uma substância encontrada na ma-
conha, proibida no país, com base em pesquisas que demonstram sua
eficácia no tratamento de diversas doenças.
6) Aborto de anencéfalos – O Código Penal Brasileiro, de 1940,
permite o aborto apenas em casos de estupro ou risco de vida para a mãe.
Com o aprimoramento da ciência e o surgimento de novos exames, que
permitiram avaliar de forma mais eficaz a saúde do feto, aumentaram os
pedidos junto ao Poder Judiciário para que se autorize o aborto de anen-
céfalos. Em 2002, por oito votos a dois, o STF decidiu que a interrupção
da gravidez nesses casos não é crime – ampliando-se as situações em que
o aborto é autorizado.

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7) Famílias Simultâneas – Uma questão polêmica que começa
a avançar e pode chegar ao STF é o reconhecimento de famílias simul-
tâneas, superando o princípio da monogamia. Já há decisões que con-
cedem direitos iguais aos dois núcleos. No Maranhão o STF reconheceu
como estável a união que uma mulher manteve com um homem casado
por 17 anos.
Hodiernamente, o advento das redes sociais e o número crescente
de aparelhos eletrônicos utilizados para agilizar a comunicação, permite
as mais diversas tomadas de posição8. Nesse ínterim, o acontecimento
evoca a memória e o conhecimento da realidade que inclui a história,
mais do que nunca a mídia coloca-se como formadora de opinião e mobi-
lização. O Judiciário para não ficar fora de moda deve antever a comple-
xidade social.
Os exemplos falam mais que os argumentos e existem muitos na
mídia e a qualquer momento podem ser recuperados. Isso significa que o
Estado é, ao mesmo tempo, produtor e produto da crise do Direito. Mui-
tas vezes, diante da crise, há insuficiência do imaginário dos juristas em
relação às mudanças sociais dos tempos modernos. É válido acrescentar,
ainda, a insuficiência dos legisladores em prever certas situações. Em
todo caso, Spengler (2010) destaca que a judicialização da política daria
um livro pela densidade e profundidade do tema.
Além disso, a autora destaca que a crise do Poder Judiciário tem
duas vertentes: a crise de eficiência e a crise de identidade. Ambas rela-
cionadas ao positivismo jurídico que leva ao esmagamento da justiça e a
descrença das pessoas. Os descompassos entre as leis e os problemas so-
ciais fazem sobressair a figura do juiz, pessoa que responderá, uma vez
que não pode se omitir diante das lacunas legais. Sem generalizar, mas
alguns juízes associam esse poder profissional à vida privada e acabam
extrapolando suas atribuições na vida social. No Brasil, por exemplo, há
inúmeros profissionais que ficaram conhecidos pelo flagrante abuso de
suas funções na sociedade (SPENGLER, 2010).
A cultura profissional dos operadores do direito, com excessivo indi-
vidualismo e formalismo contribuem para a crise. O individualismo no sen-
tido de fechar-se as demais estruturas socioeconômicas e o formalismo no
que diz respeito à burocracia. O Poder Judiciário está propenso a desapare-
cer? Não, mas para que isso não ocorra, dependerá do comportamento do
próprio Judiciário diante de quatro áreas: (01) globalização econômica que

8 A comunicação é uma relação, hoje certamente uma das comunicações mais persuasi-
vas e abrangentes. Como todas as relações, essa comunicação pode ajudar na construção
de um ser autônomo, equilibrado, democrático, cooperador ou, de outra parte, de um ser
humano dependente, submisso, massificado, robotizado (GUARESCHI, 1991, p. 20).

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gera excluídos de direitos básicos; (02) relativização da economia, também
relacionada com a globalização econômica; (03) importância da certeza ju-
rídica garantida pelos tribunais; (04) atuação conforme padrões da justiça
corretiva e da justiça retributiva (SPENGLER, 2010).
O Judiciário não é uma instituição descartável; contudo, necessita
de novas estratégias de atuação para que os cidadãos voltem a crer na
justiça e se envolvam nela. Ele está envolto em um controle social não
jurídico, permeado pela tecnologia, pelo controle informal e pelos meios
de comunicação; ideal seria a participação popular, aliada à abertura do
Judiciário. Sobre a participação popular, o que se pretende é automatizar
os cidadãos, para que eles cheguem ao consenso, jurisconstruindo o tra-
tamento do conflito (SPENGLER, 2010)
Diferente de recorrer ao Judiciário, atribuindo a ele a decisão de
quem ganha ou perde (SPENGLER, 2010, p. 216 -217).

4. Mediação: consenso como arte e alternativa


à jurisdição

Conflito possui muitas faces, a qualquer momento novas verdades


são mostradas ou apagadas. É necessário paciência para emboscá-las e
tempo para descobrir o ângulo certo. É como poetiza Pablo Neruda (2006)
“(...) um poço/ onde a claridade está presa/ há que sentar-se à beira do
poço/ e pescar luz caída com paciência”. Ou, simplesmente, contemplar
uma obra de arte, cuja beleza nem todos enxergam.
Esta reflexão desencadeia muitas visões, para Dostoiévski, com um
excerto epigrafando este capítulo, aposta em relações interpessoais, vi-
ver o coletivo em detrimento do eu.
O modelo conflitual, com o Estado detentor do monopólio da ju-
risdição está posto em xeque, experiências diversas se sobressaem co-
locando em pauta o consenso como instrumento para resolução das de-
mandas. José Luis Bolzan de Morais fala de um novo conceito jurídico, a
juriscontrução, termo aprofundado por Spengler (2010) que ao desen-
volver a necessidade da instituição do consenso na complexidade social
contemporânea sugere a mediação como uma relevante prática comuni-
cativa no tratamento de conflitos. Diante de problemas e divergências,
a autora vislumbra caminhos possíveis, jurisconstruindo encruzilhadas.
Nesta construção, o mediador e a mediação tem destaque em benefício
não apenas do Judiciário, mas da sociedade como um todo.
O conflito para Spengler (2010, p. 311) “não é necessariamente
ruim, anormal ou disfuncional”, no entanto, se gerar dano em alguém,
seja físico ou psicológico, deverá ter um tratamento eficiente. Por essa ra-

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zão, os procedimentos de resolução podem ser judiciais ou extrajudiciais,
sugerindo a autora, no último caso, ás chamadas Resoluções Alternativas
de Conflitos (ADR), com a mediação sendo tratada como “fio condutor do
restabelecimento da comunicação entre as partes” (SPENGLER, 2010, p.
312). Regras e métodos alinhados e pré-estabelecidos são deixados de
lado e a informalidade, o acolhimento da diferença e a diversidade pas-
sam a ser valorizados.
A mediação deve ser vista como um meio de alcançar um consenso
entre as partes. Seu local de atuação é a sociedade como um todo, por-
tanto, é um meio não só quantitativo, mas qualitativamente mais eficaz,
quando as partes lançam um novo olhar sobre seus problemas, conse-
guindo organizar seu tempo e suas práticas e se permitindo reflexões que,
anteriormente, não poderiam sequer ser cogitadas (SPENGLER, 2010).
Com relação ao tempo, Spengler (2010) diferencia o tempo dos
processos e o tempo da mediação, o primeiro segue um rito, como o
próprio nome, uma processualidade, com limitações genéricas ou espe-
cíficas, já o tempo da mediação é o tempo de cada caso concreto, um
tempo próprio, de acordo com a singularidade. No tempo da mediação,
quando apenas o mediador deverá saber como compor o tempo e obter
êxito. A morosidade judicial é antiga, segundo Bacellar (2012, p. 19) com
“notícias que em 1912, Ruy Barbosa já fazia críticas exatamente sobre a
demora na prestação jurisdicional e teria afirmado que: justiça atrasada
não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta”.
Para se chegar a um consenso através da prática da mediação,
Spengler (2010, p. 315) sugere a investigação de alguns meios: em pri-
meiro lugar, análise de práticas de mediação consensuais possíveis, em
seguida, os limites e possibilidades à esfera do agir comunicativo e por
último, encontro de outras respostas diferentes daquelas do poder esta-
tal. Essa forma de pensar a mediação, se aproxima da teoria habermasia-
na da ação comunicativa na medida em que “a sociedade existe porque
resulta de um possível entendimento entre os sujeitos, por intermédio
da linguagem, uma vez que toda a comunicação objetiva a busca de um
acordo”. Reforça ainda que o direito se distancia da complexidade social,
porém a mediação permite essa aproximação.
Para Bacellar (2012, p. 19), “a melhor justiça será encontrada no
consenso”. Lembra bem Spengler (2010) que o consenso obtido através
da mediação é o resultado da participação dos atores sociais que impri-
mem suas vontades, já o consenso político que é abordado sob o ponto
de vista do contratualismo clássico e exige a concordância não é neces-
sariamente unânime a um contrato social, em que o consenso é induzido
e normatizado e aí reside a crítica, inclusive quanto à organização do
Estado, ou a escolha dos representantes políticos, quando há o desejo de

39
uma maioria e não necessariamente de todos. Já nos acordos mediados,
faz-se a vontade específica das partes.
A pesquisadora exemplifica que o Estado é a suprema manifesta-
ção da inteligência e da virtude humana, no entanto, o Estado é uma
estrutura de poder consensualmente criado. O consenso se manifesta e
se exaure no momento constitutivo do Estado, tornando-se o poder dos
governantes fundado na força, podendo ser representado na educação e
na manipulação. O homem não deveria ser constrangido a obedecer a lei,
mas a amar a obediência. Cada obrigação existe mediante o consenso do
obrigado. A teoria da autorização é um engano, que induz o cidadão a
permanecer de fato excluído, alimenta nos súditos a ilusão de poder. Na
mediação, a aceitação é espontânea e o consentimento é comum (SPEN-
GLER, 2010).
Para Spengler, mediação é a arte de “estar no meio”, é um compro-
misso com a alteridade, é o verdadeiro consenso. Na década de 1980 o
termo mediação passou a ser mais empregado e entendido como uma
forma de superar a dificuldade de comunicação, mesmo em tempos de
extraordinário desenvolvimento dos canais de comunicação. Mediar pro-
vém do latim mediare, que significa mediar, intervir, dividir ao meio. “A
mediação não deve concluir nem decidir nada, deve apenas fazer com
que as partes conflitantes estejam em condições de recomeçar a comuni-
cação” (2010, p. 318).
A arte de estar no meio é desempenhada principalmente pelo me-
diador que, estrategicamente, ajuda a tratar as situações conflitivas, en-
quanto são as partes que resolvem o conflito, portanto, o mediador, não
pode decidir, seu poder é limitado não lhe cabendo ser autoritário. Co-
loca-se no meio das partes, não em local superior ou inferior. Seu papel
é pacificar sem decidir, enquanto o papel do juiz é decidir sem pacificar
(SPENGLER, 2010).
O mediador apenas informa o que é proibido, determinado ou per-
mitido. “A mediação corresponde a um jogo sem árbitro e sem pontua-
ção: são sempre os jogadores que controlam a partida” (SPENGLER, 2010,
p. 332). Abre-se à participação e a tomada de decisão entre as partes, a
comunicação de necessidades e de sentimentos, possibilita a reparação
do mal, mais que a punição de quem praticou.
A mediação pode desenvolver variadas técnicas que vão desde ne-
gociação à terapia, podendo igualmente ocorrer em diferentes espaços,
como judicial, escolar e comunitário. Tem boa aplicabilidade no Direito
do Trabalho e no Direito Familiar. Objetiva-se religar o que se rompeu,
estabelecendo uma relação de continuidade (SPENGLER, 2010). Corro-
borando, Bacellar (2012) defende a posição de modelos, instrumentos,
mecanismos, processos, técnicas e ferramentas para indicação e escolha

40
adequada na resolução de conflitos nas suas mais diversas manifestações
e ambientes.
“Os homens não são fragmentos sem conexão. Cada um é interde-
pendente e produto forçado das interações com a sociedade que é unica-
mente o produto da complexidade desses vínculos” (WARAT apud SPEN-
GLER, 2010). A humanidade reflete conexão e interdependência, diante
disso, Spengler propõe um olhar às definições de alteridade e outridade
e suas diferenças. No primeiro, a concepção parte do pressuposto básico
de que todo o homem social interage e interdepende de outros indiví-
duos, reforça a existência do “eu-individual” que só é permitida mediante
um contato com o outro, sendo o outro inferior. A outridade é desenvolvi-
da pela autora no sentido de captar a essência e os sentimentos do outro,
com responsabilidade, valorizando-o antes mesmo do que a si próprio e
à sua liberdade e autonomia e está é a lógica da mediação, o reconheci-
mento da importância do outro.
Há dois tipos de mediação, a institucional e a autônoma, nesta úl-
tima formam-se mediadores naturais, que nascem no próprio grupo so-
cial, onde a autoridade é meramente moral. “Os mediadores cidadãos são
os cidadãos entre os cidadãos” (SPENGLER, 2010, p. 323). “Ser mediador
cidadão é uma arte que, como todas as artes, não termina jamais de se
refinar” (FRANÇOIS apud SPENGLER, 2010, p. 324).
Entre as características da mediação estão a privacidade, a econo-
mia financeira e de tempo, a oralidade e a informalidade. Caso se produ-
za decisão injusta ou imoral, é porque alguma falha ocorreu ao longo do
procedimento da mediação, destaca Spengler (2010). É necessário ainda,
que se proporcione equilíbrio entre as partes, pois uma das prioridades é
a restauração da harmonia.
Por se tratar de um instrumento novo algumas críticas são dirigidas
à mediação por operadores do direito, relacionando-se eles à informalida-
de, a insegurança e a incerteza jurídica. Três motivos podem ser elenca-
dos para a resistência, primeiro porque é um instrumento novo, segundo,
por não estar disciplinado juridicamente em alguns países e o último, de
maior relevância, por ser uma verdade consensual e não processual. Foge
a regra clássica do que não está nos autos não está no mundo, possibilita
a escolha das partes ao mesmo tempo que retira do Judiciário o poder de
decisão. Alguns sugerem que a mediação seja inserida no sistema jurisdi-
cional, porém, Spengler (2010, p. 329) demonstra o risco de “reduzi-la à
condição de um mero instrumento a serviço de um Sistema Judiciário em
crise, mais do que a favor da paz social”.
A justiça sede lex, ainda que dura, aparentemente é verdadeira,
como questiona Dostoiéwisky, na obra Crime e Castigo, em que o juiz
se vê diante de um opositor que o confunde quanto à autoria do crime

41
(Seria o crime perfeito?). E ainda mais, a obra põe em questão homicídios
versus genocídios. A contradição revelada se refere aos grandes crimes
da humanidade como os praticados por Napoleão e César, considerados
conquistadores. Esses antecedentes colocam em voga o sistema em vigor
e justificam a defesa da mediação para resolução de conflitos.

5. Considerações Finais

Há que se concluir que todo conflito possui atenuantes; possui his-


tória; pulsa sobre ele sentimentos contraditórios que se mesclam com a
Psicologia, com a Teologia, com a Sociologia, entre outras ciências. Então,
as ideias movem os homens; não são os homens que as movem. Pois
quando um indivíduo nasce encontra uma história em processo. Sendo
assim, as relações sociais são relações de sujeitos e seus sentidos são
variados. Da mesma forma, os conflitos são atos humanos que advêm de
um processo no qual estão inclusas muitas variantes e a ideologia é uma
delas. Pensar na jurisdição, e, a partir dela na mediação enquanto cultura
para tratar conflitos é pensar Direitos Humanos.
Por conseguinte, as relações de poder incluindo posições que o
indivíduo ocupa na pirâmide social em busca da arte de promover justiça
entre os seres constituem a matéria prima para a mediação de conflitos.

Referências

BACELLAR, Roberto Portugal. Mediação e arbitragem. São Paulo: Sarai-


va, 2012.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 6ª ed. Brasília:


Editora Universidade de Brasília, 1995.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e Castigo. São Paulo: 34 LTDA, 2001.

GUARESCHI, Pedrinho A. A realidade da comunicação – visão geral do fe-


nômeno. In: Comunicação e Controle Social. Petrópolis: Vozes, 1991.

MELO, Itamar. Vendada, mas sem amarras. Zero Hora, Porto Alegre, p.
06-07, 21 set. 2014.

NERUDA, Pablo. Cem Sonetos de amor. Porto Alegre: Editora L&PM Po-
cket, 2006.

42
SPENGLER, Fabiana Marion. Da jurisdição à mediação: por uma outra
cultura no tratamento de conflitos. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010.

SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para uma revolução democrática da


justiça. São Paulo: Cortez, 2007.

WÜST, Caroline. Mediação comunitária e acesso à justiça: as duas


faces da metamorfose social [recurso eletrônico]. Santa Cruz do Sul: Es-
serenel Mondo, 2014.

43
CAPÍTULO 3

A MEDIAÇÃO E A BUSCA
DA RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS
COM BASE NA ÉTICA
DA AMIZADE:
o respeito e a consideração do
outro como fator
determinante na solução de
conflitos

Ilise Senger9

9 Advogada. Professora da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB.


Especialista em Direito Processual Civil, pelo Instituto de Ensino Su-
perior de Santo Ângelo – IESA; Mestranda em Direitos Humanos, pela
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
– UNIJUÍ. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2561358778439820 E-mail: ili-
sesenger@gmail.com

44
“De fato, eu diria que a princi-
pal esperança de harmonia no mundo
contemporâneo se encontra na plura-
lidade de nossas identidades, que se
cruzam umas com as outras e agem
contra as divisões rígidas em torno de
uma linha única e endurecida de divi-
são impenetrável.”
(Amartya Sen)

1. Introdução

A dificuldade em perceber o outro e a consequente falta de entendi-


mento das razões alheias são, hoje, um grande problema que a humanida-
de, de uma maneira geral, enfrenta. O culto ao individualismo e a conside-
ração exagerada daquilo que é ‘meu’, das ‘minhas ideias’ e do ‘meu ponto
de vista’ tornam difícil o diálogo, o entendimento e o respeito ao semelhan-
te, ou ao “diferente”. Diante dessa situação os conflitos gerados na socie-
dade cada dia mais tomam ares de luta, quando os adversários são vistos
como inimigos e não apenas como pessoas com interesses distintos. Esse
modo de pensar e agir é perigoso, pois gera intolerância e insatisfação.
É certo que o conflito é algo inerente à vida em sociedade, podendo
inclusive ser positivo na medida em que contribui à evolução social, pois
é resultado da interação entre os indivíduos, uma vez que nenhuma
sociedade é perfeitamente homogênea, salvo aquelas utópicas. O diferen-
cial capaz de tornar o conflito bom ou mau para a sociedade será a forma
como ele será tratado. Se for bem manejado ele assume o seu caráter
afirmativo, evolucionista; todavia, não sendo bem tratado, o conflito se
torna uma ameaça à paz dos indivíduos envolvidos e, de maneira reflexa,
da sociedade como um todo.
Dentre as formas de tratamento dos conflitos atualmente se so-
bressai a jurisdição, monopólio do Estado para a resolução dos litígios.
Mas, paralelamente à tradicional forma de solução dos conflitos, cada
vez mais existe um movimento de busca por alternativas capazes de res-
ponder às carências apresentadas pelo Sistema Judiciário, que vive uma
notória crise de efetividade e de qualidade.
Por meio da pesquisa de bibliografia especializada em resolução de
conflitos e mediação, o presente artigo busca analisar a mediação como
mecanismo apto a resolver os conflitos, especialmente por respeitar a
ética da amizade em seu mecanismo de realização.

45
2. Possibilidades de tratamento dos conflitos

Originária do antigo latim, a palavra conflito traz em sua raiz eti-


mológica a ideia de choque, ou a ação de chocar, de contrapor ideias,
palavras, ideologias, valores ou armas (Spengler, 2010). Ainda segundo
a Autora, “para que haja conflito, é preciso que as forças confrontantes
sejam dinâmicas, contendo em si o sentido da ação, reagindo umas sobre
as outras” (p. 242). A vontade de conflitar, de contrapor, é uma caracterís-
tica do conflito. Nesse sentido,

(...) a intencionalidade conflitiva implica a vontade hostil de pre-


judicar o outro, porque é considerado um inimigo ou porque
assim se quer que seja. A hostilidade pode ser uma simples ma-
levolência ou refletir aspectos mais graves, como uma briga ou
uma guerra. Outro aspecto é o objeto do conflito, que geralmen-
te é um direito entendido não apenas como uma disposição for-
mal, mas também como uma reivindicação de justiça (SPENGLER,
2010, p. 243).

Com o conflito tem-se a necessidade de destruir a resistência do


oponente, uma vez que se trata do confronto entre duas vontades distin-
tas, uma querendo impor suas razões e suas vontades. A necessidade de
domínio do outro pode se realizar por meio da violência, seja ela direta
ou indireta. Trata-se de um procedimento contencioso no qual os antago-
nistas se tratam como adversários ou inimigos. Pode ser considerado um
enfrentamento entre dois seres ou grupos que manifestam, uns a respeito
dos outros, uma intenção hostil, geralmente com relação a um direito.
Para manter esse direito, afirmá-lo ou restabelecê-lo, muitas vezes, lan-
çam mão de violência, o que pode trazer como resultado o aniquilamento
de um dos conflitantes (SPENGLER, 2010).
Muito embora seja o conflito considerado uma perturbação capaz
de romper com a harmonia e equilíbrio social, ele é relevante consideran-
do sua qualidade de impedir o ostracismo social. Em razão disso Spengler
assevera (2010, p. 245): “o conflito não pode ser visto somente como
uma patologia social: conflito também é vitalidade”. Uma sociedade sem
conflitos é estática, todavia, onde há conflito, existe tensão.
Perceber o conflito como algo natural, inerente às relações sociais,
é uma forma de perceber seu caráter positivo. Mas somente assumirá
essa característica benigna se for manejado de maneira adequada. Nas
palavras de Spengler (2010, p. 248), “(...) o conflito pode ser classificado
como um processo dinâmico de interação humana e confronto de poder
no qual uma parte influencia e qualifica o movimento da outra”.
Para o desenvolvimento social e para a realização e perpetuação da

46
democracia é importante a presença do conflito como parte das intera-
ções sociais. Tanto é assim que Spengler (2010, p.246) afirma ser o confli-
to inevitável e salutar (especialmente na democracia), além de fazer parte
da vida em sociedade, sendo necessário“ (...) encontrar meios autônomos
de manejá-lo fugindo da ideia de que seja um fenômeno patológico e
encarando-o como um fato, um evento fisiológico importante, positivo
ou negativo conforme os valores inseridos no contexto social analisado”.
Considerando o conflito sob o seu viés negativo é importante des-
tacar a teoria da “espiral do conflito”, que explica como muitas vezes o
embate em si se torna mais importante do que o fato que o originou. De
acordo com a teoria, o conflito, quando não manejado adequadamente,
pode alcançar proporções maiores na medida em que o tempo passa,
havendo uma valorização exacerbada do conflito em si, considerado
diante de sua causa. De acordo com Azevedo (2012) essa progressão
conflituosa significa uma escalada (ou crescimento) do conflito, sendo
que as suas causas originárias passam a assumir relevância secundária
a partir do momento em que as partes se mostram mais preocupadas
em responder a uma ação de seu oponente do que em resolver a que
deu início ao embate.
Conflito muitas vezes envolve violência. Esta pode ser considera-
da um instrumento utilizável num conflito social ou político, mas não o
único e nem, necessariamente, o mais eficaz. A violência consiste em
uma relação de poder; uma imposição de vontade que se dá por meio de
ameaças, de intimidação, de meios agressivos ou repressivos, capazes de
atentar contra a integridade física ou moral do outro, contra seus bens
materiais ou contra suas ideias. Ela desenvolve uma relação entre pode-
res e não entre forças.
Com relação à violência, o conflito pode se manifestar como luta
ou combate. A luta constitui uma forma indeterminada de conflito, mui-
tas vezes confusa, feroz e desmensurada, que pode se apresentar me-
diante violência direta ou mediante procedimentos mais dissimulados,
inclusive insidiosos, porque seu objetivo é a longo prazo. Já o combate
é o tipo de conflito regulamentado. O principal papel do combate é su-
bordinar a violência a um fim necessário de modo que ela esteja regula-
mentada e vigiada, criando estratégias para que tal intento se concreti-
ze (SPENGLER, 2010).
Assim sendo, o combate se apresenta como uma forma de moderar
um conflito impondo uma disciplina aos que se enfrentam, submetendo
suas vontades a uma vontade estranha ou superior. No tratamento con-
temporâneo dos conflitos essa limitação tem sido possível recorrendo-se
ao direito, pois o Estado, por meio do direito processual, impõe regras
que devem ser obedecidas pelos litigantes para a resolução de suas lides.

47
Os processos de solução de conflitos podem ser considerados cons-
trutivos ou destrutivos, na medida em que podem ajudar a construir uma
situação melhor do que aquela que originou a disputa ou podem destruir
a relação entre as partes litigantes. Quando o procedimento de resolução
contribui para o enfraquecimento ou para o rompimento da relação social
preexistente, está-se diante de um processo destrutivo. Se, ao contrário,
o procedimento de resolução da disputa auxilia as partes para que essas
saiam do processo com sua relação social fortalecida, está-se diante de
um processo construtivo. Em um processo destrutivo o conflito frequen-
temente torna-se independente de suas causas iniciais, assumindo feição
de competição, quando o que interessa à parte é apenas vencer. O pro-
cesso construtivo caracteriza-se pela capacidade de estimular as partes
a desenvolver soluções que permitam a compatibilização de interesses
aparentemente contrapostos, além de propiciar uma resolução destituída
de culpa (AZEVEDO, 2010).
Ao perceber a sociedade como uma cadeia de relações humanas
que está em constante transformação, o conflito deve, obrigatoriamente,
fazer parte dessa constatação como sendo o meio pelo qual muitas des-
sas alterações acontecem. A heterogeneidade social resulta em desacor-
dos, discórdias, controvérsias, turbulências, além de choques e enfren-
tamentos. Toda ordem social é, a respeito de uma desordem, ao menos
latente, uma circunstância que pode ameaçar a coesão social. O conflito
está, assim, destinado a resolver dualismos divergentes; é um modo de
conseguir algum tipo de unidade. Nesse sentido é que Spengler (2010)
explica que tanto o conflito quanto o desacordo são partes integrantes
das relações na sociedade e não necessariamente sinais de instabilidade e
rompimento: o conflito traz mudanças e estimula inovações. Lewis Coser
(1967), citado por Spengler (2010, p. 263), define o conflito como uma
forma de manutenção da coesão do grupo no qual ele explode. “As situa-
ções conflituosas demonstram, desse modo, uma forma de interação in-
tensa, unindo os integrantes do grupo com mais frequência que a ordem
social normal, sem traços de conflituosidade”.
O conflito e seu movimento transformador acabam por ser uma
forma de manutenção da vida em sociedade, na medida em que conferem
mobilidade e possibilitam a transformação, a mudança, o que é salutar
para o desenvolvimento social. Além disso, tem o conflito a característica
de mudar as pessoas, seja em relação a elas mesmas, seja em relação
aos demais. Nas exatas palavras de Spengler (2010, p. 265): “O conflito
transforma os indivíduos, seja em sua relação uns com os outros, ou na
relação consigo mesmo, demonstrando que traz consequências desfigu-
radoras e purificadoras, enfraquecedoras ou fortalecedoras. [...] Assim, o
conflito promove a integração social”.

48
Mesmo considerando a relevância social e as contribuições que o
conflito pode proporcionar ao indivíduo, importante lembrar a ligação en-
tre conflito e poder. Nesse aspecto, necessário demonstrar a forma como
os conflitos são tratados pelo poder oficial na atualidade.

2.1. A jurisdição como forma de tratamento


dos conflitos

A partir dos contratualistas, principalmente a partir de Hobbes


(2012), o Estado tornou-se o centro do poder institucionalizado, respon-
sável por conceder segurança aos seus cidadãos, monopolizando a força
e a prerrogativa de ‘dizer o direito’, bem como de solucionar os conflitos
gerados no seio da sociedade, com base em suas normas pré-estabele-
cidas. Dentro da estrutura do poder estatal, o Poder Judiciário é o órgão
legitimado a tratar dos conflitos. Dessa forma, por meio da jurisdição, o
Estado exerce seu poder de resolver os conflitos gerados na sociedade, a
fim de eliminar o embate direto entre indivíduos, que passa a ser substi-
tuído pelo combate regrado (processo).
Delegando a tarefa do tratamento dos conflitos ao Judiciário, o ci-
dadão ganha a tranquilidade de não precisar deter a vingança privada
para se submeter à vingança estatal; em contrapartida, perde a possibi-
lidade de tratar seus conflitos com autonomia e obriga-se a passar a um
‘terceiro’ o poder de decidir o ‘seu’ conflito. “Unidos pelo conflito, os liti-
gantes esperam por um terceiro que o solucione. Espera-se pelo Judiciário
para que este decida quem tem mais direitos, mais razão ou quem é o
vencedor da contenda” (SPENGLER, 2010, p. 284).
No Sistema Judiciário as atenções são voltadas ao juiz, que é o res-
ponsável em dar a última palavra, responsável por decidir a demanda,
independentemente de solucionar o conflito das partes litigantes. Sua
decisão é inquestionável (quando em última instância) e vinculante.
O que preocupa é a forma como o Poder Judiciário vem tratando os
conflitos que lhes são submetidos. Seja em razão da grande demanda,
seja em razão do procedimento judicial, o que acontece é que as partes,
os conflitantes, ocupam um lugar muito pequeno no processo judicial,
sem que suas palavras, suas impressões ou sua história sejam levadas
em consideração. Em nome da celeridade (que na maioria das vezes não
passa de utopia) e do respeito às formas, pouca ou nenhuma oportunida-
de têm as partes de expor seus desejos e seu ponto de vista. O processo
é formal, nada pessoal e muito frio. Geralmente, leva em consideração o
que diz a lei sobre a questão e o restante é desconsiderado. E o restante

49
é simplesmente a vida das pessoas.
As contendas levadas ao Judiciário são decididas, todavia, geral-
mente, o conflito não é solucionado, pois a origem, a causa do litígio não
é tratada. Corroborando, temos a afirmação de Spengler (2010, p. 288):
“Como certos remédios, o Direito parece capaz de tratar, sobretudo, os
sintomas e não as causas de um mal-estar”.
Isso acontece talvez em razão de os juízes tratarem os processos
com certo distanciamento, seja das partes, seja do conflito que lhe é sub-
metido, tendo em vista que na maioria das vezes a preocupação consiste
em adequar o caso à norma e, a partir disso, resolver a questão. Na visão
de Spengler, os juízes:

(...) decidem sem responsabilidade, porque projetam a respon-


sabilidade na norma. Decidem conflitos sem relacionar-se com
os outros. As decisões dos juízes são sem rosto. [...] A tal ponto
que, em alguns casos, a distribuição de justiça termina sendo
uma violação para com uma das partes. Quando um juiz se preo-
cupa em analisar se seu conceito abstrato de justiça corresponde
às expectativas do que é justo para as partes? (2010, p. 291).

Dessa forma, torna-se necessário repensar o tratamento dos confli-


tos pelo Estado, que aposta todas as fichas em um sistema que não vem
respondendo como deveria. Tratar o conflito adequadamente se mostra
vital na resolução de qualquer desavença, principalmente das levadas ao
Judiciário, considerando que muitas vezes o que ocorre ao final de um
processo judicial é apenas uma decisão, mesmo que alheia à efetiva so-
lução do conflito.
A sociedade clama por mudanças, pois é senso comum que quem
busca o Judiciário não está contente com o modo com que é tratado.
Além disso, outro fato que incomoda em demasia os litigantes é o tempo
que suas ações demoram em ser julgadas.
Quanto ao tempo do processo Resta explica:

A duração média dos procedimentos é insuportável e existem


muitas razões endógenas e exógenas que explicam este modo
de ser do processo. Algumas pertencem à organização judiciá-
ria, e aos singulares comportamentos das castas (magistrados,
advogados, em geral, “jogadores habituais”). Outras são internas
do mecanismo processual, já sobrecarregado de reformas e de
regras que se sobrepõem e que deveria ser simplificado. Outras
ainda, pertencem a variáveis exógenas que são aquelas “ecoló-
gicas” (nem todos os conflitos devem se juridificados e submeti-
dos a um juiz) (2014, p. 19).

Ainda segundo o Autor (Ibidem, 2014), a fim de evitar que se deva

50
caso a caso investigar a capacidade de cumprir atos juridicamente rele-
vantes, e então para evitar uma insuportável cognição, “o juiz encontra
na norma uma grande muleta”, passando ao legislador a responsabilida-
de, de maneira a se isentar de compromisso.
Na medida em que o Judiciário se preocupa em adequar o caso aos
contornos da norma, independente das causas e da história de vida de
cada envolvido, de suas percepções e desejos, o juiz evita o envolvimen-
to com as pessoas e passa a ter responsabilidade com o processo. Nesse
sentido é que se fala em decisões ‘sem rosto’, pois o que conta são os
números. O indivíduo chega ao Judiciário com um nome, uma história e
uma vida, e, após o protocolo de seu processo, passa a ser um número a
mais nos cartórios judiciais.
Com efeito, é preciso buscar alternativas à jurisdição, com o intuito
de oferecer uma saída à crise pela qual o Sistema Jurisdicional atualmente
vem atravessando, seja pelo excesso de demandas, seja pela pouca efe-
tividade de suas decisões (que diversas vezes nem chegam a ser cumpri-
das), seja pelo afastamento que o rigor formal impõe aos indivíduos.

2.2. A mediação como mecanismo


de tratamento de conflitos

Estudos acerca da impressão do jurisdicionado sobre a jurisdição


e o devido processo legal apontam que a satisfação do ‘usuário’ é pro-
porcional à sensação de justiça. Os mesmos estudos revelaram que uma
dose de participação do jurisdicionado nos processos em que estejam
envolvidos aumenta essa sensação de justiça (AZEVEDO, 2012).
Diante dessa realidade, a conclusão a que se chega é que, na reso-
lução dos conflitos, devem ser valorizados os mecanismos que privile-
giem a participação efetiva do jurisdicionado.
Seguindo essa linha de entendimento, ao lado da jurisdição surgem
possibilidades não jurisdicionais de tratamento de conflitos, nas quais
se atribui legalidade à voz de um conciliador/mediador, que auxilia os
conflitantes a compor o litígio (Spengler, 2010). Podem ser citadas como
alternativas à jurisdição a negociação, a conciliação, a arbitragem e a me-
diação. Todas têm em comum o fato de serem alheias, mas não estranhas
ao Judiciário. Buscam, contrariamente o que acontece na jurisdição (que
transforma as partes em números processuais), valorizar a face perdida
dos litigantes.
Tais práticas compartilham a valorização da singularidade dos en-
volvidos no conflito e o diálogo, além de privilegiarem a possibilidade de

51
‘ganhar conjuntamente’, em oposição ao ‘ganhar ou perder’ presente na
jurisdição:

O contexto cultural contemporâneo fomentou o surgimento de


outras práticas de tratamento de conflitos, possibilitando o diá-
logo e promovendo uma mudança de paradigmas. Essas práti-
cas passam a observar a singularidade de cada participante do
conflito, considerando a opção de ‘ganhar conjuntamente’, cons-
truindo em comum as bases de um tratamento efetivo, de modo
colaborativo e consensuado (SPENGLER, 2010, p. 294-295).

Essas novas práticas de tratamento dos conflitos representam uma


possibilidade de alívio ao congestionamento existente atualmente no Po-
der Judiciário, com a consequente facilitação do acesso à Justiça. Também
pode ser citado como ponto positivo o maior comprometimento das pes-
soas no tratamento de seus próprios conflitos, o que traria uma maior
qualidade nas decisões, pois representariam de forma mais efetiva a
vontade dos envolvidos. Nesse sentido Spengler (2010) afirma que essas
estratégias permitem aumentar a compreensão e o reconhecimento dos
participantes, construir possibilidades de ações coordenadas, incremen-
tar diálogos e a capacidade de pessoas e comunidades que queiram com-
prometer-se responsavelmente com decisões e acordos participativos.
Todavia, necessário se faz diferenciar a solução, a administração e
o tratamento dos conflitos. De acordo com a Autora, havendo a solução
de um conflito, ele será extinto, sendo que o objetivo não é o resultado
positivo ou negativo do conflito, mas, sobretudo, seu fim. Já na adminis-
tração de um conflito, há um realinhamento ou convergência dos propó-
sitos ou meios para submeter as forças opostas a um acomodamento. E
na resolução de um conflito acontece a manipulação das relações sociais
por meio de técnicas de interação, objetivando restaurar essas relações
no plano da legitimidade (SPENGLER, 2010).
Considerando a busca pela resolução do conflito Grosman (2011)
enfatiza a importância do gerenciamento das diferenças que levam ao
conflito, afirmando que para que seja eficaz é preciso compreender a
origem da discórdia e atuar de maneira organizada e coordenada, facili-
tando o diálogo dos envolvidos.
Como existe mais de uma forma alternativa de tratar os conflitos,
é preciso entender no que elas diferem. Então, far-se-á uma breve expla-
nação acerca do que consiste a negociação, a conciliação, a arbitragem e
a mediação.
A negociação pode ser feita com ou sem intermediário, podendo
ser indireta ou direta, e é a maneira mais comum de resolução de confli-
tos, eis que está presente durante toda a vida das pessoas. Chega-se à

52
resolução do conflito por meio da autocomposição.
A conciliação tem como objeto e finalidade o acordo entre as par-
tes, a fim de evitar um processo judicial ou extingui-lo quando já inicia-
do. É realizada com o auxílio de um conciliador que interfere e aconse-
lha as partes.
Já a arbitragem se assemelha bastante à jurisdição, uma vez que
em ambos os procedimentos as partes entregam o seu conflito para ser
solucionado por um terceiro, abdicando da possibilidade de participar
mais efetivamente da construção da decisão. A diferença principal exis-
tente entre ambas é que na arbitragem o conflito é entregue a um juiz
privado, enquanto na jurisdição o responsável pelo julgamento é um re-
presentante do Estado.
Na mediação há a presença de um terceiro - o mediador - que tem
a função de aproximar as partes, privilegiando o diálogo e o respeito
mútuo. De acordo com Spengler (2010), a mediação busca o restabeleci-
mento da comunicação entre as partes, sem a imposição de regras, auxi-
liando-as a chegarem a um reconhecimento recíproco que produza uma
nova percepção do conflito.
A partir da prática da mediação proporciona-se às partes a rea-
propriação de seu problema, organizando o tempo e as práticas do seu
tratamento. As partes passam a se responsabilizar por suas escolhas e
constroem conjuntamente os caminhos possíveis. Ao colocar-se entre as
partes, a mediação age como instrumento de justiça social, podendo or-
ganizar as relações sociais, na medida em que auxilia os conflitantes a
tratarem seus problemas com autonomia, e com a consequente redução
da dependência do Judiciário (SPENGLER, 2010).
Atualmente, a grande maioria dos conflitos são levados ao Judiciá-
rio para serem decididos pelo Estado, com pouca participação das partes,
sendo que existe dentro do procedimento a previsão da conciliação. To-
davia, essa prática não vem sendo manejada, na maioria das vezes, de
forma correta, não alcançando, por conseguinte, toda sua potencialidade.
Importante a busca de alternativas ao Poder Judiciário para a reso-
lução dos conflitos. Todavia, cumpre deixar claro que não se está aqui
defendendo a extinção da jurisdição, ou ainda a negação da importância
do Judiciário para o Estado Democrático de Direito. Além disso, alguns
litígios, em razão de sua natureza, devem ser julgados pelo Estado. Con-
tudo, muitos conflitos que hoje estão abarrotando os cartórios judiciais
poderiam estar sendo resolvidos de maneira alternativa e com maior qua-
lidade por meio da mediação, por exemplo.
Mas para que os métodos alternativos possam ser postos em prá-
tica, necessário se faz abrir mão da lógica processual judiciária de ga-
nhador/perdedor e passar a trabalhar com a lógica ganhador/ganhador

53
desenvolvida por outros meios de tratamento, sempre levando em conta
o fato de que o Poder Judiciário é um meio de solução, administração ou
resolução dos conflitos, porém não o único e com certeza não o mais de-
mocrático (SPENGLER, 2010).
Conforme sustenta Lucas (2011, p. 153): “O julgamento jurídico
tradicional não se ocupa do outro em sua “outridade”, não se importa
com as diferenças em conflito e tampouco valoriza a dimensão identitária
que velada ou escancaradamente constituem os sujeitos do processo.” O
Autor ainda afirma que,

(...) invariavelmente as formas modernas e estandartizadoras


de se dizer o direito escondem os rostos, valorizam conceitos
abstratos que impedem a visibilidade histórica das demandas e
contribuem para velar as diferenças simbólicas que permeiam
todo e qualquer tipo de conflito social. A dogmática jurídica tra-
dicional castra os sentidos, reduz acessos e diminui a possibili-
dade de se compreender a complexidade existente nos litígios
(2011, p. 149).

De acordo com Lucas (2011), se as formas tradicionais de jurisdi-


ção afastam a complexidade e negam a diferença que envolvem os con-
flitos, a mediação pode ‘descortinar novos rostos’, permitindo, por meio
do diálogo, o vir à tona das diferenças.
Para Resta (2014) a mediação indica um complexo de atividades,
voltadas a ligar dois termos distantes, mas conexos entre si. Religa aqui-
lo que está desconexo, justo pelo fato de que compartilham exatamente
aquilo que os separa. O mediador não deve estar distante, mas próximo,
devendo “sujar as mãos” na sua função de auxiliar as partes, renuncian-
do à neutralidade. Só assim faz a diferença em relação ao juiz super
partes e, ao mesmo tempo, faz a diferença como identidade em relação
às partes. O juiz se reivindica competente justamente porque estranho
e superior às razões dos contendentes. A sua neutralidade é importante,
mas, alerta o Autor, nem tudo pode ser remetido à neutralidade sem o
risco de abstração.
A mediação surge como possibilidade de tratamento mais adequa-
da à complexidade conflitiva atual, pois vai além da jurisdição tradicional,
inovando mediante práticas consensuadas e autônomas que devolvem ao
cidadão a capacidade de lidar com a litigiosidade inerente a sua existên-
cia (SPENGLER, 2011). De certa forma, a mediação responsabiliza o indiví-
duo, que passa a ter a obrigação de lidar com seus conflitos, ao invés de
passar essa responsabilidade a um terceiro.
Essa responsabilização pode ser encarada em um primeiro momen-
to como um fardo, na medida em que o indivíduo poderia outorgá-la ao

54
Estado para que este resolva o seu conflito. Todavia, como já explanado,
a decisão jurisdicional não se preocupa necessariamente em resolver o
conflito, apenas decide a questão. Assim, quando as partes se envolvem
e se dedicam a realmente resolver a contenda, orientados por um media-
dor sério, é certo que a resolução do conflito será efetiva e satisfatória
para todos.
Com efeito, a efetividade é uma das vantagens da mediação, visto
que quem fica satisfeito com a decisão certamente irá cumpri-la. Mas,
a efetividade apenas é possível em razão da valorização das causas do
conflito e da busca por sua solução baseada na vontade das partes en-
volvidas, considerando o pluralismo de valores e buscando estabelecer
ou (re)estabelecer a comunicação entre as partes. O diálogo constitui um
dos pilares do método. Nesse sentido: “a mediação é uma maneira de
instaurar a comunicação rompida entre as partes em virtude da posição
antagônica instituída pelo conflito” (Spengler, 2011, p. 204).
Conforme Cezar-Ferreira (2011) a mediação admite a existência de
diferenças, respeita as individualidades e ajuda os envolvidos no conflito
a encontrarem soluções para seus problemas com vistas a melhorar seu
relacionamento. Por meio da prática é possível produzir mudanças efeti-
vas na qualidade do vínculo de forma a evitar reedições do conflito.
Assim, considerando a resolução efetiva do conflito e a valorização
das partes envolvidas, a mediação se apresenta como a melhor opção,
uma vez que ela pode ser capaz de mudar o foco do tratamento dos con-
flitos, que hoje está direcionado ao processo e à lide, redirecionando-o
para as partes e seus anseios.

3. Mediação e ética da amizade

Conforme mencionado, o conflito, quando bem tratado, é vital para


a sociedade mover-se, transformar-se, evoluir. Faz parte do desenvolvi-
mento e está presente em todas as sociedades, principalmente nas de-
mocráticas. Partindo desse princípio, para que o conflito assuma seu viés
positivo, deve ser bem tratado. Assim como o conflito é algo metabólico
na sociedade, a mediação também, porque vive no mesmo ambiente em
que os conflitos se produzem, devendo estar entre os conflitantes e não
estranha e separada (RESTA, 2014).
Com efeito, o conflito constitui uma forma de interação entre os
indivíduos, sendo que essa interação pode ter um resultado positivo ou
negativo, dependendo de como ele será tratado.
Ao tratar do conflito e como ele interfere na vida dos conflitantes,
Spengler (2010, p. 267) ensina: “Aquilo que os separa, a ponto de justifi-

55
car o litígio, é exatamente aquilo que os aproxima, no sentido de que eles
compartilham a lide em um intenso mundo de relações, normas, vínculos
e símbolos que fazem parte daquele mecanismo”.
Isso quer dizer que o conflito é muito mais do que o objeto em dis-
puta, seja ele um bem ou um direito. Ele envolve sempre mais. Olhando
de fora, alguém desavisado pode pensar que o litígio tem a ver apenas
com a propriedade de certa coisa, mas essa ‘propriedade’ pode represen-
tar muito mais do que o seu valor pecuniário. Muitas vezes é a vida das
pessoas, seus valores, seus sonhos, suas expectativas que acabam vindo
à tona no conflito.
É justamente em razão disso que, muitas vezes, apenas o que diz a
lei não é suficiente para resolver o conflito – resolver efetivamente. Nesse
aspecto a mediação pode agregar qualidade, ao privilegiar o diálogo e a
participação efetiva das partes na resolução de seus problemas.
Mas para que a mediação tenha sucesso, além das práticas relacio-
nadas ao bom andamento do procedimento de mediação e de um media-
dor capaz de encaminhar um entendimento entre as partes, é vital que os
envolvidos estejam abertos ao diálogo. Esse nem sempre é um objetivo
fácil de ser alcançado, principalmente no estado atual da sociedade, na
qual cada dia existe menos espaço para ouvir o outro, quando o culto ao
individualismo dispensa a percepção e o entendimento do outro.
Repensar o modo como vemos o mundo e como vemos o outro é
questão de grande relevância para a resolução dos conflitos. Ao tratar da
importância do outro para a afirmação de nossa própria identidade, Lucas
(2011, p. 142) ensina que “(...) o outro é a pré-condição ética da iden-
tidade. O ‘eu’ decorre de sua implicação prévia com outros. Os outros,
entretanto, não são aqueles diferentes de mim, adverte Heidegger, mas
aqueles entre os quais também se está”.

O outro, semelhante ou diferente, é condição indispensável para


o ser compreender-se como é, para situar-se no mundo, para
tornar possíveis os olhares que desvelam o estranho e que aju-
dam a dar sentido à pluralidade de horizontes empíricos. Essa
conexão com o outro, no entanto, não é lógica, mas éti-
ca; reclama uma solidariedade autêntica, uma convivên-
cia que é capaz de nos corrigir ou nos confirmar. Enfim, o
outro define nosso limite, o nós, o alcance das diferenças e das
igualdades, define a cultura e a identidade como sua visão das
coisas em perspectiva (LUCAS, 2011, p. 137-138).

Certo é que todos têm sua individualidade e suas diferenças, his-


tórias de vida únicas, que acabam por diferenciar e afastar os indivíduos.
Contudo, “não é menos verdadeiro, no entanto, que partilhamos uma hu-
manidade comum que permite e dá sentido às diferenças que demanda-

56
mos” (LUCAS, 2011, p. 143). Essa humanidade comum que deve pautar
as relações sociais. Afinal, inobstante as diferenças, todos fazem parte da
raça humana, todos compartilham humanidade.

Quando o homem se dá conta de que é subjetiva e culturalmente


resultado de suas interações históricas com a tradição, lugares,
realidades, prazeres, encontros e desencontros, percebe, com
certa facilidade, que sua relação com o outro semelhante e ao
mesmo tempo diferente é a condição constitutiva do ‘nós’ ou do
‘eu’ em si. Definitivamente não se pode fugir de si mesmo. Tam-
pouco se pode fugir do outro, da condição de se perceber como
uma individualidade que se constitui pela alteridade. À condição
humana não é dada a possibilidade ética de desconhecer o ou-
tro. Trazer o outro para frente de si e reconhece-lo como parte
de minha humanidade comum é aceitar que minha existência
somente poderá ser compreendida da forma que é pelo fato de o
‘eu’ me ver no ‘outro’ semelhante (LUCAS, 2011, p. 148).

De acordo com Lucas, para que seja possível a prática da mediação


é indispensável que o sujeito seja afetado pelo outro, que receba o outro
em si mesmo numa relação que promova encontros entre ‘eus’ diferentes
que se reconhecem numa dimensão ética de responsabilidade de ‘um-pa-
ra-o-outro’ e não de um em direção ao outro. Um apelo ético ao outro se
faz necessário. “Mediar, nesse caso, é fazer eco de uma obviedade: somos
iguais e diferentes; somos iguais nos direitos de exercermos nossa dife-
rença desde que não aviltemos a condição de dignidade do outro diferen-
te” (2011, p. 153).
Agamben (2013, p. 9) em A Comunidade que Vem elabora uma vi-
são de como seria uma comunidade pautada pela ética da amizade. Na
qual aborda que para a consideração do outro não é necessário que esse
‘outro’ preencha algum tido de requisito ou tenha determinadas qualida-
des. Segundo o Autor, “o ser que vem é o ser qualquer”.
E continua:

(...) qualquer é a figura da singularidade pura. A singularidade


qualquer não tem identidade, não é determinada relativamente
a um conceito, mas também não é simplesmente indetermina-
da; ela é, antes, determinada somente através da sua relação
com uma ideia, isto é, com a totalidade de suas possibilidades
(AGAMBEN, 2013, p. 63).

Wermuth (2014, p. 236) esclarece que o ser que vem “é aquele que
permanece, ao mesmo tempo, aberto e singular. Ele se funde no geral
preservando sua singularidade. Em síntese, é o ser inacabado, aberto a
outras possibilidades. Este ser amável definido por Agamben (2013) é o

57
ser com todos os seus predicados, o ser tal qual é.” O ser que faz parte
da comunidade que vem é o ser que não é nem há de ser ou realizar ne-
nhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum des-
tino biológico, pois se o “homem fosse ou tivesse que ser esta ou aquela
substância, este ou aquele destino, não haveria nenhuma experiência éti-
ca possível – haveria apenas tarefas a realizar” (AGAMBEN, 2013, p. 45).
Uma vez que a mediação exige uma postura de diálogo e de res-
peito recíproco, nada melhor do que imaginar a mediação como forma
de resolução dos conflitos em uma comunidade pautada pela ética da
amizade, considerada esta como uma comunidade que respeita o outro
independente de qualquer requisito ou condição, que respeita o outro
apenas por ser alguém.
A aceitação do outro apenas como ‘ser’ é fundamental para a forma-
ção de uma comunidade na qual a comunicação é possível. Se as pessoas
pudessem não ser-deste-jeito, possuir esta-ou-aquela identidade, mas
pudessem assumir a sua essência humana simplesmente, haveria uma
comunidade na qual as pessoas seriam respeitadas apenas por serem
pessoas e o diálogo seria possível. Nesse sentido Agamben (2013, p. 90)
afirma que “eu não sou jamais isto ou aquilo, mas sempre tal, assim”.
A ética da amizade então existe quando as pessoas são capazes de
enxergar o outro para além de suas características e lugares que ocupam,
além do preto, branco, amarelo ou vermelho, além do rico, pobre, africa-
no ou americano, cristão, judeu ou muçulmano. A ética da amizade per-
mite considerar o outro como “ser amável”, digno de afeto e de respeito,
justamente por fazer parte desta mesma comunidade gerida pela ética.
De certo modo, a ideia da comunidade que vem, de Giorgio
Agamben se assemelha ao direito fraterno, de Eligio Resta, na medida
em que ambos estão assentados na ética da amizade como condutor
das relações.
Ao conjugar direito e fraternidade, o direito fraterno o faz com base
na amizade. Spengler (2012, p. 70), com propriedade, ressalta a interde-
pendência entre amizade e respeito, ao dizer que “a Filosofia de Derrida
ressalta no pensamento iluminista de Kant o respeito enquanto condição
para a verdadeira amizade. Kant confere originalidade a este conceito,
ligando-o a outra palavra importante no contexto da amizade: responsa-
bilidade.” Assim, a amizade terá como consequência o respeito, que, por
sua vez, irá proporcionar a comunicação:

Desse modo, percebe-se que não existe respeito, sem uma visão
clara, para a qual é necessária certa distância e espaço próprio;
da mesma forma, não pode haver responsabilidade sem respos-
ta, sem comunicação, sem esse receber que toma o tempo, que
faz perde-lo para depois ganha-lo (SPENGLER, 2012, p. 70).

58
Isso quer dizer que a amizade irá gerar o respeito que, por sua vez,
abrirá espaço à comunicação. E é justamente neste ponto que a media-
ção se faz possível, visto que tem sua base no diálogo e no respeito ao
outro. Outrossim, o respeito ao outro e o reconhecimento da alteridade é
o espaço que proporciona a mediação, pois onde não há reconhecimento
do outro não há espaço para respeito às necessidades e vontades alheias.

5. Considerações finais

Fundamental destacar que o conflito pode ser algo positivo na di-


nâmica social, uma vez que a democracia é fundamentada na ideia de
conflituosidade, sendo que o conflito é inexistente apenas em sociedades
totalitárias. Dessa forma, o que distingue o conflito ‘saudável’ do ‘mau’
conflito é a forma como ele será tratado pela sociedade.
Hoje, em razão do contrato social, delineado por Hobbes, o tra-
tamento dos conflitos é feito pelo Estado, por meio do Poder Judiciário.
Dessa forma, outorgamos a um terceiro a obrigação de resolver os nossos
problemas. Todavia, o juiz, como agente estatal, não está obrigado a re-
solver a situação. A única obrigação que lhe cabe é acabar com o conflito,
por meio de uma sentença, que nada mais é do que uma palavra final
sobre a questão e que muitas vezes não soluciona o problema das partes.
Isso pode acontecer em razão da desconsideração das causas do
problema e também em razão de que quando se busca o judiciário, as
partes “perdem a face”, uma vez que se transformam em números, iguais
a tantos outros que abarrotam a rotina estatal. Além disso, a realidade
processual atual constitui um problema na medida em que se preocupa
mais com o rito em si do que com o direito substancial que está sendo
manuseado pelos ‘lidadores’ do direito.
É certo que a forma de tratamento dos conflitos oferecida pelo Estado
está em crise e não vem funcionando como deveria. Mas, paralelamente
ao judiciário, existem outras opções de manejo dos conflitos. São formas
de tratamento de conflitos que privilegiam o diálogo e a singularidade de
cada envolvido. Promovem uma mudança de paradigmas, pois consideram
a opção de ‘ganhar conjuntamente’ em contraposição ao ‘ganhar e perder’,
que constitui a lógica do Judiciário.
Para a resolução de conflitos podem ser utilizadas a negociação,
com ou sem intermediário, a mediação, a conciliação, o arbítrio e a juris-
dição. Sendo que a arbitragem funciona com um terceiro alheio ao con-
flito que irá decidir a contenda, a única diferença do Judiciário é que o
terceiro não representa o Estado. Na conciliação objetiva-se o acordo. O
conciliador interfere e aconselha as partes. Na mediação o mediador tem

59
a função de aproximar as partes, privilegiando a comunicação e o respei-
to entre todos.
Com efeito, considerando a resolução efetiva do conflito, e levando
em consideração a valorização das partes envolvidas, a mediação constitui
a melhor maneira de tratamento dos conflitos. Mas para que a mediação
tenha possibilidade de ser realizada é necessária uma nova postura dos
indivíduos envolvidos, no sentido de estarem dispostos a dialogar, ouvir e
respeitar o seu oponente. Apenas assim, a mediação pode acontecer.
Tornam-se necessárias novas práticas que permitam às partes re-
solverem suas disputas construtivamente, fortalecendo suas relações so-
ciais e promovendo sentimentos de cooperação a fim de evitar futuros
embates.
Desse modo, considerando que a finalidade da mediação é chamar
os conflitantes para tratar do problema que os une (e ao mesmo tempo
os separa), utilizando técnicas calcadas no respeito mútuo, por meio da
comunicação (diálogo), para que, com a ajuda de um mediador, os en-
volvidos cheguem a um entendimento capaz de atender os interesses de
ambos, a ética da amizade, seja aquela visualizada por Agamben na ‘co-
munidade que vem’, seja aquela que norteia o direito fraterno, é a melhor
maneira de contribuir para isso.
Certo é que não se está diante de tarefa fácil quando se propõe
uma forma de resolução de conflitos baseada na amizade, considerando
que vivemos em uma cultura de desconfiança e de medo do outro que
já se perpetua em nosso meio há muito tempo. Todavia, as mudanças,
inclusive as que acontecem na sociedade, mesmo que demorem a ser
implementadas, primeiramente acontecem no plano da proposição, para,
aos poucos, transformarem-se em uma mudança de cultura.
Dessa forma, pensar na resolução dos conflitos privilegiando o res-
peito ao outro e a valorização da participação das partes envolvidas, com
base na mediação, representa uma tentativa legítima que pode resultar
em uma resposta à atual forma de tratamento de conflitos pelo Estado,
por meio da jurisdição.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. A Comunidade que Vem. Cláudio Oliveira (trad.).


Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

AZEVEDO, André Gomma (org.). Manual de Mediação Judicial. 3ª ed.


Brasília, DF. Ministério da Justiça, 2012.

60
CEZAR-FERREIRA, Verônica A. da Mota. Família, Separação e Media-
ção: uma visão psicojurídica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

GROSMAN, Claudia (org.). Mediação no Judiciário: teoria na prática.


São Paulo: Primavera Editorial, 2011.

HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado


eclesiástico e civil. Rosina D’Angina. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret,
2012.

LUCAS, Doglas Cesar. Conflitos Identitários e Mediação: o vir à fala


das diferenças. In: Justiça Restaurativa e Mediação: políticas públicas no
tratamento dos conflitos sociais. Fabiana Marion Spengler e Doglas Ce-
sar Lucas (orgs.). Ijuí, RS: Editora Unijuí, 2011.

SPENGLER, Fabiana Marion. Da Jurisdição à Mediação: por uma outra


cultura no tratamento de conflitos. Ijuí, RS: Editora Unijuí, 2010.

__________. Fundamentos Políticos da Mediação Comunitária. Ijuí,


RS: Editora Unijuí, 2012.

__________. Mediação e Alteridade: a necessidade de “inovações co-


municativas” para lidar com a atual (des)ordem conflitiva. In: Justiça
Restaurativa e Mediação: políticas públicas no tratamento dos conflitos
sociais. Fabiana Marion Spengler e Doglas Cesar Lucas (orgs.). Ijuí, RS:
Editora Unijuí, 2011.

RESTA, Eligio. Tempo e Processo. Santa Cruz do Sul, RS: Esserenel


Mondo, 2014.

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. A Produção da Vida Nua no Pa-


tamar de (In)distinção entre Direito e Violência: a gramática dos
imigrantes como “sujeitos de risco” e a necessidade de arrostar a mixo-
fobia por meio da profanação em busca da comunidade que vem. São
Leopoldo, RS, UNISINOS, 2014. 272 p. Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu – Doutorado, Linha de Pesquisa Hermenêu-
tica, Constituição e Concretização de Direitos da Universidade do Vale
do Rio dos Sinos.

61
CAPÍTULO 4

MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA x VIOLÊNCIA:


tratamento do conflito por meio
do princípio da não violência
e do estabelecimento
da cultura da paz

Luana Rambo Assis10

10 Assistente Social. Graduada URI São Luiz Gonzaga. Mestranda em


Direitos Humanos UNIJUI. Bolsista Integral da CAPES. Lattes: http://la-
ttes.cnpq.br/1357986952336492 E- mail: luanarambo@yahoo.com.br

62
“A violência jamais resolve os
conflitos, nem sequer diminui suas
consequências dramáticas.”
(João Paulo II)

1. Introdução

A violência é um assunto que desperta a preocupação e o interes-


se de grande parte da população brasileira. Os meios de comunicação
de massa contribuem, de certa forma, com este medo cósmico disse-
minado por esse fenômeno, pois, ao invés de refletir acerca das causas
da violência e apontar caminhos para a prevenção, noticia os fatos de
forma sensacionalista e desprovida de conhecimento científico. Para
compreender a violência e os reflexos que a mesma proporciona é
importante atentar para o estudo das múltiplas facetas do fenômeno,
afinal, a violência não se resume somente aos ataques e agressões físi-
cas, há ainda o lado silencioso e invisível que é muito mais complexo
de perceber e diagnosticar.
Vive-se em uma sociedade na qual o conflito faz parte das rela-
ções humanas, é algo constitutivo do ser humano. Frente ao exposto o
conflito não assume unicamente uma conotação negativa, ao contrário,
é positivo, pois permite que os sujeitos possam dialogar e expor suas
ideias e concepções. Portanto, o conflito evita a estagnação e a passivi-
dade. No entanto nem sempre as pessoas conseguem resolver os con-
flitos de forma pacífica e em alguns casos recorrem ao uso da violência
e da força para impor sua vontade, dessa forma o conflito assume um
lado negativo e a mediação comunitária como mecanismo complemen-
tar de acesso a justiça poderá, com seus métodos e ferramentas, tratar
o conflito de maneira qualitativa e contrária ao modo de resolução do
sistema de justiça convencional que estabelece um ganhador e um per-
dedor e, na maioria dos litígios, mesmo com a sentença do magistrado,
o conflito continua latente.
A mediação comunitária objetiva tratar os conflitos de forma a
atender os desejos de ambas as partes envolvidas buscando com isso
a supressão do conflito e a prevenção da violência, contribuindo no
sentido de evitar a judicialização de conflitos que podem ser tratados
de maneira bem mais eficaz e qualitativa. Os sujeitos envolvidos na
mediação acabam por compreender que quem deve resolver os proble-
mas são eles próprios e que a figura do mediador auxilia no processo

63
de comunicação e diálogo bem como na busca pela autonomização
dos sujeitos. Dessa forma a mediação comunitária, além de propor-
cionar espaços para a comunicação não violenta, contribui de maneira
significativa com o estabelecimento da cultura da paz no momento em
que objetiva não a supressão dos conflitos, afinal estes são necessá-
rios em uma sociedade democrática, mas o tratamento dos mesmos de
forma séria, competente e ética levando em conta o respeito e o reco-
nhecimento do outro enquanto sujeito detentor de direitos e deveres
de cidadania.

2. A violência e suas múltiplas facetas:


repensando alguns conceitos

Antes de adentrar especificamente nas múltiplas facetas da vio-


lência, faz-se necessário, a título introdutório, destacar alguns con-
ceitos prevalentes no que concerne a definição do problema em ques-
tão. A intenção não é definir conceitos estanques até porque isso
seria inviável em uma sociedade em constantes processos de trans-
formação e mudança, a pretensão é apontar e lançar pontos para
discussões e debates.
Para a Organização Mundial da Saúde (2002) a violência carac-
teriza-se como o uso intencional da força física ou do poder, real ou
ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo
ou comunidade que resulte ou tenha grande probabilidade de resultar
em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou
privação.
Nilo Odalia contribui com o presente debate quando relaciona o
conceito de violência à ideia de privação, destituição, sendo assim o autor
enfatiza:

Com efeito, privar significa tirar, destituir despojar, desapossar


alguém de alguma coisa. Todo ato de violência é exatamente
isso. Ele nos despoja de alguma coisa, de nossa vida, de nossos
direitos como pessoas e como cidadãos [...]. A idéia de privação
parece-me, portanto, permitir descobrir a violência onde ela esti-
ver por mais camuflada que esteja sob montanhas de preconcei-
tos, de costumes ou tradições, de leis e legalismos (2004, p. 86).

De acordo com o pensamento supra toda vez em que o sujeito


sentir-se privado de algo está acometido de algumas das formas da
violência. A privação permite desvendar a violência onde quer que a
mesma se encontre mesmo que encoberta por atitudes de justificação

64
e naturalização.
A violência em suas diferentes facetas (estrutural, social, políti-
ca, física, psicológica, sexual) está na agenda do dia, presente nas di-
ferentes classes sociais, etnia, idade, cor, orientação sexual. Por isso,
como enfatiza Odalia (2004), vivemos a “democracia da violência”,
pois, esta se faz presente nos diversos espaços, estando nas favelas,
cortiços e nos grandes centros urbanos habitados por pessoas com
elevado poder aquisitivo. Os sujeitos mais abastados têm como se
proteger, mascarar o ato de violência, já as pessoas em situação de
vulnerabilidade social não possuem meios de encobrir a mesma, pelo
contrário acabam vivenciando em suas facetas mais degradantes e
humilhantes.
Na grande maioria das vezes, os atos violentos não são explíci-
tos, não possuindo uma etiqueta de identificação e havendo sempre
o risco de considerá-la um fato natural. Assim, é preciso um olhar
crítico e cauteloso para identificá-la. A postura critica impede a ten-
dência de buscar justificativas para as ações violentas. É sabido que
não interessa o motivo que levou à prática de violência, o que não
deve ocorrer jamais são formas de justificação/banalização e natura-
lização (ODALIA, 2004).
Odalia (2004) no decorrer de sua obra explicita que a violência não
é um fenômeno contemporâneo, a mesma remonta a história da humani-
dade, estando presente desde a idade média quando o homem descobriu
que de um osso poderia produzir uma arma mortal até os dias atuais no
qual assumiu outras feições.
A violência precisa ser compreendida como um produto social e
histórico, produzida socialmente nas relações humanas. Quem organiza a
estrutura é o próprio homem, tornando a violência um fenômeno mutável
e multifatorial, como explica Maldonado:

As pesquisas sobre as causas da violência, feitas em vários


países, apontam para um grande número de fatores: a excessi-
va exposição de crianças e jovens a cenas violentas, na mídia;
o abuso de álcool e outras drogas (especialmente a cocaína e
o crack); o fácil acesso a armas; o crime organizado; o abuso e
a negligência de crianças; a impunidade e a falta de assistên-
cia do governo; a miséria e o desemprego. Isso significa que
a violência não tem uma causa simples e, portanto, não se
pode encontrar uma solução simples, o controle da violência
instituída precisa do trabalho coordenado de muita gente, em
várias frentes (1997, p. 6).

Sendo a violência um fenômeno complexo e multifacetado as


formas de enfrentamento a essa situação devem atingir um grau de

65
complexidade capaz de não apenas resolver atos pontuais, mas sim
produzir conhecimento e utilizar ferramentas que possam dar conta
de sanar o problema nas suas raízes, ou seja, eliminando seus fatores
desencadeantes.
Para compreender a violência na sua essência é fundamental o em-
basamento teórico proposto por Nilo Odalia (2004) no qual o autor dis-
cute algumas das diversas facetas da violência presentes no imaginário
social, tais como, a violência institucionalizada, a violência social, a vio-
lência política.
Para Odalia (2004), a violência estrutural ou institucional está pre-
sente em todas as sociedades e se manifesta por meio das desigualdades
sociais, ou seja, riqueza e pobreza, as quais caracterizam a sociedade
atual, na qual alguns têm em demasiado enquanto outros têm de menos,
a pobreza e a riqueza por si só já é uma relação violenta.
A falta dos mínimos sociais (alimentação, vestimenta, habitação,
educação, lazer, esporte) fere a dignidade humana, pois danifica o ser hu-
mano. A desigualdade em relação à renda/poder aquisitivo leva algumas
pessoas a atos desesperados de violência e resistência.
No decorrer da análise, Odalia, em se tratando da desigualdade
como uma forma de violência menciona que:

O ato rotineiro e contumaz da desigualdade, das diferenças


entre os homens, permitindo que alguns usufruam á sacieda-
de o que á grande maioria é negado, é uma violência. São os
hábitos, os costumes, as leis, que a mascaram que nos leva a
suportá-la como uma condição inerente ás relações humanas
e uma condição a ser paga pelo homem, por viver em socie-
dade. Agimos como se a desigualdade fosse uma norma es-
tabelecida pela natureza da sociedade e contra á qual pouco
é possível enquanto o mundo for o mundo. Essa maneira de
pensar e agir institucionaliza a desigualdade e faz aparecer
como natural a distinção entre os homens que possuem e os
que não possuem (2004, p. 30).

Naturalizar a violência é andar no movimento contrário ao da so-


ciedade. Afinal se a sociedade é histórica e mutável, a violência também
não deixa de ser.
Neste ínterim toda violência é social, porque é produzida social-
mente e disseminada dentro de uma dada sociedade. Faz parte deste
cenário a precariedade da saúde pública, marcada por uma política
que não atende toda a demanda necessária, pela falta de infraestrutu-
ra adequada, pela escassez de recursos humanos e pelo atendimento
que, em determinadas situações, é totalmente desumano e desprovido
de qualidade.

66
Dessa maneira, verifica-se que a violência social traz inúmeros im-
pactos nos diferentes setores da vida, visando ser combatida por inter-
venções interdisciplinares, envolvendo o aperfeiçoamento na qualifica-
ção da educação, da saúde, da habitação e de todas as demais áreas,
assegurando a qualidade de vida a todos os seres humanos.
Já a violência política atinge todos os sujeitos sociais em suas re-
lações políticas, concebendo-se a política como elemento que organiza e
regula o convívio de indivíduos diferentes. Arendt (2004) relaciona polí-
tica, liberdade e pluralidade, destacando que o livre agir é agir público, e
público é o espaço original do político.
A violência política vai além da corrupção. Esta possui mil fa-
ces, o assassinato político é uma faceta, pois, muitos homicídios são
executados com vistas à manutenção de determinado partido político
nas instâncias do poder. As fraudes nos processos eleitorais é uma
manifestação da violência política, pois, mascara a realidade, e frauda
a opinião pública.
A erradicação da violência política está diretamente ligada à ética, à
capacidade de priorizar valores humanísticos e princípios éticos. Isso su-
põe que somente poderão ser superados os atos politicamente violentos
agindo eticamente e assegurando que a convivência seja norteada pela
cidadania e pela defesa da dignidade humana (ODALIA, 2004).
Apenas para elucidar e sem a pretensão de exaurir o tema faz-se
relevante no presente trabalho explanar algumas das principais facetas
da violência existentes na sociedade tais como, a violência física, psicoló-
gica, sexual, a negligência entre outras.
Os atos fisicamente violentos se concretizam através de dano ao
corpo, expressando-se através de surras, tapas, empurrões, socos, até
lesões graves, como ossos fraturados, olho roxo, equimoses pelo corpo,
braço quebrado, enfim, inúmeras formas de ataque ao corpo. A violência
física é entendida também como ação ou omissão ação (bater, omissão -
deixar de ministrar algum medicamento necessário) que venha a trazer
malefícios à saúde física da pessoa, por exemplo. As causas de tais atos
são inúmeras e demandam um olhar aguçado para seu reconhecimento e
combate (MALDONADO, 1997).
Por sua vez, a violência psicológica é silenciosa, não deixando
marcas visíveis. Porém, fere a alma da pessoa, denigre, machuca a
dignidade do ser humano. Manifesta-se por meio de xingamentos,
humilhações, ridicularizações, inibições, gritos, ameaças, constran-
gimento, chantagem, que estigmatiza muito mais do que a violência
física. Segundo estudos realizados pelo Conselho Federal de Psicolo-
gia (CRP), a pessoa vítima de violência psicológica, na grande maioria
das vezes, transforma-se em uma “morta-viva”, pois, a autoestima

67
fica fortemente fragilizada.
Sobre esse fenômeno, Maldonado (1997) exorta que:

O abuso psicológico referente às formas de comunicação “de-


molidoras” é o tipo menos reconhecido de violência, porque
o “corpo” não fica marcado e nenhum osso é fraturado. No
entanto, em consequência de ter sido xingada, humilhada,
depreciada e rejeitada, a criança cresce com marcas profun-
das em seu psiquismo e com sua auto-estima gravemente
fraturada. A sensação constante de estar “por baixo” origina
em muitas pessoas, sentimentos de revolta e desejos de vin-
gança que podem, mais tarde, motivar condutas violentas.
(1997, p. 21)

Muitas vezes torna-se difícil, até mesmo para os profissionais,


identificar a violência psicológica, exigindo sensibilidade e capaci-
dade de escuta especializada para dar visibilidade a essa faceta da
violência, e, consequentemente, para que se possa atender de forma
eficiente às vítimas.
Já a violência sexual acontece quando determinada pessoa é for-
çada a satisfazer os desejos sexuais de outrem. Como esclarece Odalia
(2004), o abuso sexual acontece de duas formas: com contato sexual,
quando a vítima é forçada a realizar sexo vaginal, oral ou anal; ou sem
contato, em episódios de exibicionismo, exposição e carícias nas partes
íntimas, Voyeurismo.
A violência sexual é um tema que desperta curiosidade, necessi-
dade de entendimento, no entanto é um assunto difícil de ser abordado
principalmente para suas vítimas, pois, na maioria dos casos o abusador
é alguém próximo a vítima ou tem vínculos afetivos, o que gera um pacto
de silêncio (MALDONADO, 1997).
Problematizar acerca dos inúmeros aspectos da violência é algo
necessário e urgente a fim de que, por meio do conhecimento adqui-
rido, se viabilize pensar formas qualificadas e competentes de inter-
vir em um fenômeno extremamente complexo e desafiador como a
violência. A intervenção deve se pautar no sentido da prevenção bus-
cando encontrar formas de evitar os episódios violentos que tanto
assombram a população, medidas extremas e sensacionalistas ape-
nas agravam ainda mais o problema que carece de aprofundamento
e estudos comprometidos com a qualidade de vida e o principio da
dignidade humana.

68
3. Do sistema de justiça convencional a mediação:
o tratamento dos conflitos por meio de métodos
dialógicos e participativos

O conflito é algo que sempre esteve presente na história da hu-


manidade, os seres humanos, constantemente, divergem em relação aos
mais diversos fatores. Porém, o conflito não deve ser visto somente pelo
viés negativo, pois possui uma dimensão positiva no momento em que
evita a passividade e estimula o diálogo. Assume proporções negativas
quando os sujeitos conflitantes não conseguem dar conta de resolver
suas divergências de maneira pacífica e utilizam-se da força e da violência
para impor suas vontades e desejos. Dessa forma, corroborando com a
temática, Spengler enfatiza:

A importância do conflito para o desenvolvimento e amadureci-


mento democrático das relações sociais almeja demonstrar não
somente os aspectos negativos, mas também aqueles positivos
da interação conflitiva. Assim não obstante todo conflito ser con-
siderado uma perturbação que rompe com a harmonia e equilí-
brio constituidores do estado normal da sociedade, ele é impor-
tante, uma vez que impede a estagnação social. Por conseguinte
o conflito não pode ser visto somente como uma patologia so-
cial: conflito é também vitalidade. Uma sociedade sem conflitos
é estática (2010, p. 245-246).

Frente ao exposto pode-se aferir que o conflito é algo constitu-


tivo e necessário em uma sociedade que se diz democrática, afinal, se
os sujeitos não conflitassem a sociedade estaria fadada a estagnação.
O conflito quando tratado de maneira saudável contribui com o pro-
cesso dialógico e ao mesmo tempo possibilita o reconhecimento do
outro, e da diferença. A comunicação estabelecida no tratamento dos
conflitos permite aos conflitantes reconhecer o outro como alguém
que pensa e concebe o mundo de uma forma diferente e, a partir des-
sa relação torna-se propenso que ambas as partes tendam a encarar o
objeto alvo do conflito sobre diversos pontos e fatores. O problema se
instala quando os sujeitos envolvidos na lide não conseguem resolver
a contenda de forma pacifica e dialogada, recorrendo muitas vezes a
medidas extremas.
Um dos meios possíveis e viáveis de se resolver um conflito é
a judicialização do problema, neste caso o magistrado, após compor
todas as provas, irá decidir com quem fica o direito. Acontece que
o Poder Judiciário vem passando por uma crise jurisdicional na qual
não vem conseguindo contemplar os anseios de quem busca uma

69
decisão eficaz.
O sistema de justiça convencional vem passando por uma crise
sem precedentes em grande parte decorrente da “explosão de litigiosi-
dade”, ou seja, o Judiciário está abarrotado de processos e conflitos para
decidir e sentenciar e frente a isso a qualidade da ação fica completamen-
te comprometida, levando muitos sujeitos a desacreditar na sua função
de viabilizar a justiça. Diante disso, concorda-se com Spengler quando
afirma que:

A crise do poder judiciário pode ser identificada ainda como de


identidade e de eficiência. Enquanto crise de identidade pode-
se vislumbrá-la por certo embaçamento do papel judicial como
mediador central de conflitos, perdendo espaço para outros cen-
tros de poder, talvez mais aptos a lidar com a complexidade
conflitiva atual, mais adequados em termos de tempo e espaço.
Intimamente ligada à crise de identidade encontra-se a crise de
eficiência, uma vez que, impossibilitado de responder de modo
eficiente a complexidade social e litigiosa com a qual se depara,
o judiciário sucumbe perante a inovadora carga de tarefas a ele
submetidas (2010, p. 109-110).

O sistema de justiça convencional devido à crise em que se encon-


tra não consegue dar respostas satisfatórias aos litigantes e o conflito
continua latente e com grandes probabilidades de assumir proporções
dantescas. A morosidade e a falta de aprofundamento na realidade viven-
ciada pelas partes que constituem o processo levam ao descrédito peran-
te a instituição judiciária.
O tempo de espera, até que a sentença do magistrado seja pro-
clamada, na maioria dos casos, já não mostra-se relevante, pois as
relações sociais e a própria sociedade passa por processos de mutação
e transformação e o conflito pode não ser mais o mesmo. A ausência
de conhecimento aprofundado da situação a ser sentenciada é um as-
pecto extremamente relevante a ser abordado, devido à alta demanda
de processos e litígios. O Judiciário por sua vez, não consegue dar a
devida atenção aos processos os quais requerem um olhar complexo,
em decorrência disso muitas vidas são fragilizadas por falta de eficiên-
cia e comprometimento com os casos que chegam ao conhecimento
do Judiciário.
Diante da crise do Judiciário, com o passar do tempo, foram sur-
gindo alternativas de se lidar com o conflito, dentre elas, a mediação que
vem apresentando resultados positivos e satisfatórios em relação às de-
mandas que lhes são apresentadas. Em se tratando da mediação Spengler
menciona que:

70
A mediação difere das práticas tradicionais de jurisdição justa-
mente porque o seu local de atuação é a sociedade, sendo a sua
base de operações o pluralismo de valores, a presença de siste-
mas de vida diversos e alternativos, e sua finalidade consiste em
reabrir os canais de comunicação interrompidos e reconstruir
laços sociais destruídos. O seu desafio mais importante é aceitar
a diferença e a diversidade, o dissenso e a desordem por eles
gerados. Sua principal aspiração não consiste em propor novos
valores, mas em restabelecer a comunicação entre aqueles que
cada um traz consigo (2010, p.312-313).

A mediação enquanto mecanismo complementar de acesso a jus-


tiça é constantemente exaltada por proporcionar entre os sujeitos uma
forma não violenta de tratamento dos conflitos. Prima pela comunicação,
pois, entende que o processo interativo é fundamental no que concerne
ao reconhecimento do outro e a possibilidade de falar e ser ouvido enri-
quece a relação entre os sujeitos contribuindo com a análise qualitativa
do conflito bem como estabelece o respeito pela outridade.
No sistema de justiça convencional o magistrado é quem decide
acerca da contenda, as partes possuem um papel passivo; já na mediação,
o mediador facilita e coordena a comunicação, mas não emite opinião,
juízo de valores e nem aconselha, são os sujeitos envolvidos que preci-
sam de forma autônoma responsabilizar-se pelo conflito em questão.
Ainda referente à mediação Calmon aponta:

O papel do mediador é o de um facilitador, educador, ou comuni-


cador, que ajuda a clarificar questões, identificar e manejar sen-
timentos, gerar opções, e assim se espera, chegar a um acordo
sem a necessidade de uma batalha adversarial nos tribunais. É
papel do mediador ser facilitador, criador e canais de comunica-
ção, tradutor e transmissor de informações, reformulador e dife-
renciador de posição e interesses, criador de opções e agentes
da realidade (2008, p.123-124).

Pode-se alegar a partir do estudo realizado até então que o papel


do mediador se difere do papel do magistrado em inúmeros aspectos.
Enquanto o juiz decide, defere a sentença baseado nas provas colhidas e
não no diálogo entre as partes, o mediador em momento algum decide,
aconselha, interfere no desfecho do conflito, sua função é moderar, fa-
cilitar a comunicação, possibilitando que ambos possam expressar seus
sentimentos, desejos e emoções, em um ambiente de profundo respeito
e comprometimento com o teor da comunicação. Por meio da mediação
é possível desenvolver a escuta e o reconhecimento do outro como ser
humano que apesar de pensar ou agir de modo diverso é um ser portador
dos mesmos direitos e deveres de cidadania.

71
No que concerne a responsabilidade referente ao trato dos conflitos
Warat esclarece que:

A meta da mediação é exatamente responsabilizar os confli-


tantes pelo tratamento do litígio que os une a partir de uma
ética da alteridade, encontrar com o auxilio do mediador,
uma garantia de sucesso, aparando as arestas e divergên-
cias, compreendendo as emoções reprimidas e buscando um
consenso que atenda aos interesses das partes e conduza à
paz social (2004, p. 145).

A mediação ao oferecer a possibilidade da comunicação e do diálo-


go entre os sujeitos contribui ainda com o empoderamento dos mesmos
enquanto cidadãos de direitos e deveres de cidadania, pois, desperta uma
postura ativa em relação ao conflito no momento em que responsabiliza
os próprios sujeitos pelo desfecho da história, tornando-os seres huma-
nos comprometidos com a realidade que os cerca.

4. Mediação comunitária: a comunidade


como protagonista e gestora dos conflitos

A mediação enquanto mecanismo complementar de acesso à


justiça poderá ser utilizada nos diversos espaços, na esfera judicial
como a mediação institucional envolvendo casos ligados a questões
familiares, conflitos interpessoais, bem como por meio extrajudicial
realizados nas escolas, nos espaços de trabalho, nas desavenças en-
tre vizinhos, enfim, a mediação é um recurso cabível nos diversos
lugares e conflitos.
A mediação comunitária difere da mediação institucional justamen-
te pelo fato de acontecer dentro da própria comunidade objeto do con-
flito e não no espaço reservado de uma sala como ocorre no Judiciário. A
mediação comunitária tem o lócus da comunidade, o local como objeto
de estudo e fonte de intervenção, ela é desenvolvida por um mediador
comunitário, ou seja, alguém que faz parte da determinada realidade, co-
nhece as relações sociais, políticas, econômicas, culturais e ambientais. É
um cidadão da casa.
Em se tratando do papel do mediador comunitário Spengler expli-
ca que:

A mediação comunitária é conduzida por mediadores comuni-


tários que são membros da comunidade, é mediação para, na,
e, sobretudo, pela comunidade. Assim os conflitos endereçados

72
a mediação comunitária contam com a presença de um terceiro
que conhece a realidade, os valores e os hábitos dos conflitan-
tes. Fala a mesma linguagem que eles e possui uma legitimidade
que não é atribuída pelo Estado e sim pelas próprias partes, em
função de suas características, da sua conduta, do seu código de
ética e de moral (2012, p. 73).

É na instância da comunidade que os indivíduos edificam suas


relações sociais e podem participar de forma mais ativa das decisões
políticas. É nesse cenário que se estimula a capacidade de autodeterminação
do cidadão e de apropriação do protagonismo de sua própria história
(ALMEIDA, 2007).
O mediador comunitário por ser um cidadão da “casa” conhece
os valores, os princípios, os costumes, as relações sociais, políticas,
econômicas, culturais e ambientais que fazem parte do cotidiano da
realidade de vida vivenciada pelos sujeitos conflitantes. Por possuir
conhecimento da realidade, bem como da história de vida de cada
integrante da comunidade é bem mais provável que o conflito seja
tratado de maneira plena e satisfatória para ambas as partes, pois,
como apontado anteriormente a finalidade da mediação comunitária é
estabelecer um jogo no qual primeiramente o conflito seja superado e,
por conseguinte, que ambos sujeitos saiam ganhadores. O estabeleci-
mento de um ganhador e um perdedor não condiz com os princípios
da mediação comunitária.
No que refere ao papel do mediador comunitário Falsarella es-
clarece:

Tal qual um pastor que, em sua tarefa religiosa dedica-se a aten-


der às necessidades espirituais, o mediador comunitário deve
ouvir as partes, reconhecer os seus clamores e suas emoções, e
ao fornecer um ambiente seguro, permitir que as raízes do con-
flito floresçam. Nesse sentido, há um aspecto restaurativo na
justiça comunitária pelo qual os disputantes podem reconhecer
uns aos outros, e desenvolvendo aptidões para a comunicação,
trabalham na direção da cura dos danos causados pelo conflito,
assim como na aptidão para evitar problemas futuros (2003,
p.92).

O mediador comunitário por ser um mediador cidadão, ou seja,


inserido no espaço da comunidade e conhecedor das relações que são
estabelecidas pelos sujeitos envolvidos na lide, tem a possibilidade de
produzir um conhecimento aprofundado e detalhado das raízes dos
conflitos, suas causas, fatores desencadeantes e diante disso pensar
formas de enfrentamento aos problemas, facilitando a comunicação
entre as partes.

73
O magistrado no momento em que profere a sentença não pos-
sui conhecimento aprofundado do conflito, desconhecendo, na maio-
ria das vezes, suas causas e raízes, julga de acordo com o conjunto
de provas que lhes foram colhidas. Já o mediador comunitário não
profere sentença, nem julga os conflitantes, mas transmite confiança,
seriedade e comprometimento com realidade em questão, no decor-
rer da mediação, o mediador facilita a discussão levando os conflitan-
tes a rever o problema sobre diversos ângulos e a partir daí encontrar
formas para solucionar a contenda de maneira que todos saiam satis-
feitos e felizes com o desfecho.
O conhecimento de realidade aprofundado que o mediador pos-
sui por ser um cidadão da “casa” faz com que o conflito seja tratado de
maneira complexa e não de forma superficial e desprovida de análise
qualificada.
Faz-se mister ressaltar, que o mediador comunitário é um pessoa
qualificada e preparada para mediar conflitos, através de cursos de me-
diação aprende que a mesma necessita de técnicas, ferramentas de tra-
balho para que possa desenvolver uma intervenção comprometida com
a cidadania e a dignidade da pessoa humana. O mediador comunitário é
alguém altamente preparado e qualificado para exercer a função ao qual
se propõem. Além de utilizar de um arsenal de técnicas, dispõe de conhe-
cimento aprofundado de realidade, que lhe permite facilitar o diálogo de
forma competente e ética.
Corroborando com a discussão, Spengler reforça o papel da media-
ção comunitária enfatizando que:

A mediação comunitária pretende desenvolver entre a popu-


lação valores, conhecimentos, crenças, atitudes e comporta-
mentos conducentes ao fortalecimento de uma cultura políti-
co-democrática e uma cultura de paz. Busca ainda enfatizar a
relação entre os valores e as práticas democráticas e a convi-
vência pacífica, contribuir para um melhor entendimento de
respeito e tolerância e para um tratamento adequado daqueles
problemas que, no âmbito da comunidade, perturbam a paz
(2012, p. 227).

A mediação comunitária ainda é uma importante ferramenta na


busca pelo estabelecimento de uma cultura de paz, no momento em que
prima pelo tratamento dos conflitos por meio de ações não violentas e
que respeitem os direitos humanos e estimula o reconhecimento do outro
e da diferença.

74
5. Mediação comunitária e o fenômeno da violência:
tratamento dos conflitos por meio de métodos
não violentos na busca do estabelecimento
de uma cultura da paz

Vivemos em uma sociedade na qual a diferença faz parte do coti-


diano do ser humano, as pessoas pensam diferente, agem e reagem de
forma diversa, enfim, é uma pluralidade de emoções, sonhos, desejos
e aspirações que tornam a sociedade cada vez mais diversificada e
heterogênea. Porém, em decorrência dessa pluralidade e diversidade
humana, ocorre que, em determinados casos, o conflito se instala, e,
sendo em uma sociedade dita democrática, e de sujeitos em tese li-
vres, é fundamental e necessário, não podendo ser visto apenas pelo
viés negativo. Ademais, uma sociedade sem conflitos está fadada à es-
tagnação. Por outro lado, não conseguindo resolver o conflito de forma
não violenta, alguns sujeitos acabam recorrendo a atos extremados de
violência e uso da força, na tentativa da sua resolução.
Desta forma, Muller discorre acerca do princípio da não violência e
menciona que:

a não violência não pressupõe um mundo sem conflitos. Ela


não tem como projeto político construir uma sociedade onde
as relações entre os homens assentem exclusivamente na
confiança. Esta só pode ser estabelecida através das relações
de proximidade, só pode ser instaurada para com o próximo.
Regra geral, na sociedade, qualquer relação com o longínquo,
com o outro que não conheço, é um desafio, e é conveniente
enfrentá-lo com desconfiança. Assim a organização da vida
em sociedade não assenta na confiança, mas sim na justiça
(1995, p. 19).

A mediação comunitária é um mecanismo que tem grandes pro-


babilidades de contribuir com o enfrentamento e a prevenção da vio-
lência, pois, utiliza-se de métodos não violentos para tratar o conflito,
ao invés de recorrer ao uso da força e da violência, a mediação comu-
nitária pauta seu trabalho na busca pelo estabelecimento do diálogo e
da comunicação.
Por meio da comunicação e do diálogo os sujeitos passam a com-
preender o outro com um ser humano que tem aspirações e desejos di-
versos e que o respeito deve ser um fator basilar e fundamental. A media-
ção comunitária por meio de suas técnicas possibilita fazer com que os
conflitantes canalizem os seus sentimentos de raiva, revolta, ódio, ciúme
e decepção em tolerância e respeito pelo diferente, e desta forma, contri-

75
bui com a prevenção da violência.
Acerca da mediação comunitária e o fenômeno da violência Oliveira
pontua que:

A escuta dos problemas, intervir e ponderar junto às partes so-


bre uma dada realidade conflituosa oportuniza a erupção de al-
ternativas antes invisíveis para seus participantes. Essa ação se
torna, assim, complexa e ao mesmo tempo, capaz de empoderar
o sujeito social que a partir de então, pode assumir outras res-
ponsabilidades diante da vida, família, e comunidade. Essas res-
ponsabilidades são alicerçadas em perspectivas paradigmáticas
para a pacificação de comunidades não violentas e incutem no
cidadão o conceito de que a violência e o crime não são as únicas
respostas possíveis à exclusão, às condições vulneráveis de vida
e aos conflitos (2012, p. 45).

Os estudos de Oliveira apontaram que a mediação comunitária


como mecanismo de enfrentamento e prevenção da violência poderá ser
utilizada nos mais diversos conflitos, tais como:
- Conflitos entre vizinhos: o conflito pode surgir por motivos nos
quais uma comunicação bem conduzida poderá restabelecer os laços fra-
gilizados, como por exemplo, problemas envolvendo briga de crianças,
delimitação de terras para construção de moradias, espaços utilizados
por animais, enfim, são diversos os atritos que acometem o cotidiano das
pessoas e se não houver uma intervenção pautada nos direitos humanos
terá chances de assumir dimensões desastrosas para ambos os envolvidos
(OLIVEIRA, 2012).
- Conflitos entre membros da família: problemas envolvendo guar-
da de crianças, separações, heranças, posse de terras, dentre outros, por
meio da mediação comunitária os conflitantes terão a oportunidade de
compreender a face oculta do conflito, ou seja, os fatores invisíveis, os
sentimentos de amor, afeto, fraternidade que ficam soterrados pelo ódio
e o desejo de vencer o outro (IBIDEM, 2012).
A mediação comunitária possibilita por meio de suas técnicas de
trabalho colocar-se no lugar do outro e tentar olhar o problema partindo
da realidade e do ponto de vista alheio. Esta inversão de papéis é funda-
mental no processo de compreensão do conflito sobre os mais variados
ângulos e permite tratar dos mesmos de maneira comprometida com o
estabelecimento de uma cultura de paz.
Em se tratando da cultura da paz Maldonado reforça as característi-
cas básicas das pessoas que procuram resolver os conflitos de modo não
violento, dentre elas:

76
Utilizam-se diversas estratégias para resolver os conflitos, de-
pendendo da circunstância e da natureza do problema; encaram
o problema de cabeça fria, procurando perceber aspectos da si-
tuação que possam ser úteis para resolver o conflito; levam em
consideração o ponto de vista dos outros com relação ao pro-
blema e, portanto, conseguem vê-los sobre diferentes ângulos;
são capazes de buscar soluções onde ambas as partes obtenham
vantagens; conseguem ter senso de humor para neutralizar ou
diluir a tensão e a hostilidade; colocam-se com tato numa posi-
ção assertiva defendendo seus direitos e mantendo a dignidade
(1997, p. 89).

Portanto, para construir a paz, é preciso ser ativo, criativo, em-


preendedor, tomar iniciativas inovadoras, reconhecer o outro, respeitar
a diferença, ser solidário, colocar-se no lugar do próximo. E a mediação
comunitária poderá contribuir com o estabelecimento da cultura da paz
na qual os sujeitos apreendem a tratar os conflitos por meio de métodos
não violentos tendo como escopo a primazia da dignidade humana e da
cidadania.

6. Considerações finais

Considerando o arcabouço teórico mencionado no decorrer do


presente trabalho pode-se aferir que hodiernamente a violência está na
agenda do dia, os meios de comunicação de massa com frequência estão
divulgando casos nos quais os conflitos chegam a proporções alarmantes
e desumanas devido à sua má condução e gestão.
O conflito é algo constitutivo do ser humano, sem ele a sociedade
está fadada a estagnação social, o que ocorre é que em muitos casos os
sujeitos não conseguem canalizar seus sentimentos e o conflito se instau-
ra necessitando de uma intervenção competente e eficaz.
O sistema de justiça convencional está abarrotado devido à
alta demanda que compõe o universo jurídico, o mesmo não conse-
gue responder de forma qualitativa e eficiente aos processos, sendo
assim, surgem outros meios de acesso à justiça, tais como, a me-
diação.
A mediação enquanto mecanismo complementar de acesso à
justiça contribui de forma significativa no tratamento dos conflitos,
uma vez que não busca somente a sua supressão e sim coloca os
conflitantes como protagonistas e atores encarregados de tratar a
contenda.
Já a mediação comunitária exercida por mediador da “casa”, ou seja,
que faz parte da comunidade, que conhece as relações sociais estabele-

77
cidas, poderá por meio de suas ferramentas de trabalho proporcionar o
enfrentamento e a prevenção da violência no momento em que se utiliza
de métodos não violentos de tratamento de conflitos, respaldados na co-
municação e no diálogo.
Por meio da comunicação e do diálogo os sujeitos conflitantes po-
derão ter a oportunidade de reconhecer o outro como alguém que pensa,
age e reage de modo diverso, e assim encontrar, de maneira conjunta e
articulada, caminhos para tratar o conflito levando em consideração os
interesses de ambos.
Portanto, a mediação comunitária é compreendida como um ex-
celente mecanismo de enfrentamento e prevenção da violência, bem
como do estabelecimento de uma cultura da paz, na qual o respeito
pelo outro, a tolerância, a solidariedade e a fraternidade sejam bandei-
ras de luta.

Referências

ALMEIDA, Guilherme Assis de. Mediação, Proteção Local dos Direitos


Humanos e Prevenção da Violência. Revista Brasileira de Segurança
Pública. Ano 1. 2ª ed. São Paulo, 2007.

ARENDT, Hannah.O que é política? 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 2004.

CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio


de Janeiro: Forense, 2008.

FALSARELLA, Foley Gláucia. Justiça Comunitária, por uma Justiça de


Emancipação. Belo Horizonte: Fórum, 2003.

MALDONADO, Maria T. Os Construtores da Paz: Caminhos da pre-


venção da violência. São Paulo: Editora Moderna, 1997.

MULLER, Marie Jean. O Princípio de Não Violência. Percurso Filosófi-


co. Lisboa: Instituto Piaget, 1995.

OLIVEIRA, Wanderlei Abadio de. Enfrentamento da Violência: mediação


de conflitos e cultura de paz. Pesquisas e Práticas Psicossociais. N.
07. Rio de Janeiro, 2012.

ODALIA, Nilo. O que é Violência. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004.

78
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório Mundial sobre Violên-
cia e Saúde. Genebra, 2002.

SPENGLER, Marion Fabiana. Da Jurisdição à Mediação. Por uma outra


Cultura no Tratamento de Conflitos. Ijuí: Unijuí, 2010.

SPENGLER, Fabiana Marion. A mediação comunitária como política públi­


ca em prol da cidadania. In: BEDIN, Gilmar Antonio (Org.). Cidadania,
direitos humanos e equidade. Ijuí: Unijuí, 2012.

SPENGLER, Marion Fabiana. Fundamentos Políticos da Mediação Co-


munitária. Ijuí: Unijuí, 2012.

WARAT, Luiz Alberto. Surfando na Pororoca: o ofício do mediador. Flo-


rianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

79
CAPÍTULO 5

INTERLOCUÇÃO DO DIREITO
COM A PSICANÁLISE:
a mediação como possibilidade
de se compreender os arranjos
familiares nas práticas
judiciais


Izabele Zasso11

11 Mestranda em Direitos Humanos na Universidade do Noroeste do


Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Graduada em Psicologia pela Uni-
versidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI, Cam-
pus Santo Ângelo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8517583845637095
E-mail: izabelezasso@outlook.com

80
“Ótimo que tua mão ajude o
voo...mas que ela jamais se atreva a
tomar o lugar das asas.
(Dom Helder Câmara)”2

1. Introdução

Notadamente, o título proposto para o trabalho infere duas áreas


do saber tidas, aparentemente, como desconformes. Enquanto o Direito
articula códigos binários (certo/errado e lícito/ilícito), e se pauta no po-
sitivismo pela estabilidade de seus conceitos, a psicanálise de Sigmund
Freud, possibilita a ampliação dos modos de pensar o universo da vida
psíquica do sujeito. É importante salientar que mesmo passados 100
anos de seu surgimento, a psicanálise ainda encontra recursos para seu
uso na contemporaneidade, mesmo diante das transformações ocorri-
das na sociedade.
A psicanálise, desde sua criação no final do século XIX, tem co-
laborado significativamente para a compreensão do ser humano. Seus
conceitos acerca da vida psíquica, tais como o significado dos sonhos, os
atos falhos e a história e adaptação do clássico de Sófocles para a elabo-
ração do conceito Complexo de Édipo, marcaram de maneira indelével as
produções humanas, das ciências à filosofia e artes. A verdade desta pre-
missa se materializa, pois, atualmente, não há quem não tenha noções,
mesmo que rudimentares, de Inconsciente, Pré-consciente e Consciente,
ou de Id, Ego e Superego. Luiz Zanin Oricchio (2000) acertou ao dizer que
“Freud tornou-se um clássico, digamos, como Nietzsche, Weber ou Marx
– o que significa dizer que se pode pensar contra ele, mas não se pode
pensar sem ele”.
A partir desta frase pode-se pensar que as ciências, como um todo,
foram influenciadas pela psicanálise, e o Direito não ficou alhures disso.
Porém ainda encontra percalços em seu caminho, uma vez que,
ao excluir o sujeito do processo decisório, quando este busca a ma-
nutenção de sua dignidade nos confins do Judiciário, está negando a
individualidade que é inata ao sujeito. Então, como garantir os direitos
do cidadão que se insere na trama judicial, excluindo-o de todo pro-
cesso decisório? Eis aqui, uma das inquietudes da autora que vos fala
e que será discutida ao longo do ensaio, tendo como base um caso de
divórcio e disputa de guarda.
Num primeiro momento, abordar-se-á o surgimento da psicanálise
como teoria e prática, algumas de suas técnicas e conceitos, com o in-

81
tuito de clarifica-la e compreendê-la primeiramente para somente depois
articulá-la com o direito.
Na segunda seção, com a mesma intenção do primeiro momento,
retratar-se-á os procedimentos jurídicos e o dispositivo institucional do
Judiciário e as condições concretas de seu exercício. Após, na finalidade
de interseção dos conceitos, trabalhar-se-á as diretrizes do que se com-
preende por conflito, mediante ao subtítulo “Instaurado o conflito! Entre o
direito e a psicanálise: do intersubjetivo ao intrasubjetivo”.
Na quarta parte, falar-se-á da “Família (des)estruturada?”. Neste
segmento discutir-se-á as transformações que a família e, consequente-
mente, o Direito de Família sofreu nos últimos tempos e se cabe inferir
que se trata de uma desestruturação familiar.
Para corroborar com o subtítulo anterior, esboçar-se-á um fragmen-
to de caso clínico, cujo nome se intitula: “Caso Princesa Jujuba: a hora da
aventura”.
Por fim, como alternativa para a discussão proposta, abordar-se-á a
“Mediação: uma possibilidade de devir na/da família.”, que poderá servir
como possibilidade da conexão entre as práticas psicológicas e jurídicas,
cujo fator determinante é a capacidade de escutar o outro na sua diferen-
ça, seja ela, intrasubjetiva ou intersubjetiva, valorizar a história pessoal
de cada parte, bem como de contribuir para a autonomia e a responsa-
bilidade social dos cidadãos envolvidos nos bastidores da cena jurídica.

2. A psicanálise

Sigismund Schlomo Freud nasceu em Freiberg, na Alemanha, no


ano de 1856. Nascido de família judaica, filho de Amalia Nathansohn e
Jacob Freud, um comerciante de lãs pobre, Freud recebeu uma educação
judaica não tradicional. Em outubro de 1859, sua família deixou Freiberg,
onde os negócios não prosperavam em virtude, principalmente, do de-
senvolvimento da industrialização. Instalaram-se em Leipzing, esperando
encontrar nessa cidade melhores condições para o comércio de têxteis
(GAY, 1989).
Um ano depois, não tendo conseguido modificar sua má situação
econômica, Jacob Freud decidiu estabelecer-se com sua família em Viena.
Em meio às incertezas políticas do Império Austro-Húngaro, os primeiros
anos de Freud em Viena foram cruciais para sua formação pessoal e inte-
lectual (GAY,1989).
Nessa sua jornada intelectual, escolheu exercer a Medicina, con-
tudo, aos poucos foi percebendo que algumas doenças, ditas “nervosas”
não tinham explicação biológica. Foi a partir de então que iniciou seus es-

82
tudos com Jean Charcot, médico francês que utilizava o método hipnótico
no tratamento da histeria. Os sintomas histéricos variavam desde vômitos
persistentes à alucinações da senso-percepção, contrações, paralisias fa-
ciais, ataques nervosos, cegueira, surdez e afins. Charcot descobriu que,
durante o processo hipnótico, os sintomas apareciam e desapareciam na
mesma proporção, o que levou Freud a pensar que não se tratava de ne-
nhum comprometimento orgânico das pacientes, mas sim de conteúdos
psíquicos (GAY, 1989). Elaborou que os sintomas histéricos das pacientes
estavam relacionados a conteúdos recalcados, reprimidos, provenientes
de traumas de natureza infantil depositados num lugar denominado de
Inconsciente (FREUD, 1996). A partir disso, Freud elaborou sua primeira
teoria acerca da natureza psíquica da histeria. Para ele, o sintoma aparece
ou como uma manifestação de um desejo sexual, ou como uma tentativa
de “eliminá-lo”, e que devido ao recalque, é identificado de forma substi-
tutiva. O sintoma, muitas vezes aparece no corpo, pois para a histérica o
corpo é o seu palco.
Mediante a constatação da histeria, Freud apresentou ao mundo
uma primeira concepção sobre a estrutura e o funcionamento da perso-
nalidade. Essa teoria apresentava três instâncias psíquicas do aparelho
mental: Inconsciente, pré-consciente e consciente. Logo descobriu a se-
gunda tópica, contemplando também três instâncias: Id, Ego e Superego
(FREUD, 1996).
O método psicanalítico, basicamente se dá na direção de uma con-
versa, caracterizada pela manutenção da regra da “associação livre”. Isso
significa dizer que o paciente deve comunicar ao analista tudo aquilo que
lhe vier à cabeça, sem se preocupar com possíveis julgamentos morais
ou com um discurso racional e lógico, pois se trata de um discurso do
inconsciente, em que estão em pauta os devaneios e as fantasias que são
as formações mais próximas do conteúdo recalcado. Ressalta-se que a
regra da associação livre foi primordial para que Freud elaborasse suas
teorias acerca da histeria.
Outra grande contribuição de Freud, e que causou imenso furor
para a época, foi a descoberta da sexualidade infantil. Naquele período as
crianças estavam associadas a criaturas puras e ingênuas. Freud (1996)
constatou que o indivíduo, em seu processo de constituição psíquica,
passa por fases de desenvolvimento da organização sexual, denomina-
das pré-genitais. A primeira delas se refere à zona oral, momento em que
a atividade sexual se ocupa da nutrição e o alvo sexual consiste na incor-
poração do objeto (corresponde aos dois primeiros anos de vida da crian-
ça). A segunda é a organização sádico-anal, estágio em que os opostos
da vida sexual circulam em ativo e passivo. A atividade é produzida pela
pulsão de dominação, por meio da musculatura do corpo, e o alvo sexual

83
é a mucosa erógena do intestino, pois a retenção e posterior evacuação
são fontes de prazer (a partir de quando a criança começa a ter o controle
esfincteriano).
O complexo de Édipo, correspondente a fase fálica, os filhos cons-
troem relações de amor e ódio com os pais, que irão, segundo Nasio
(2007), constituir o desejo sexual. A criança edipiana deseja sexualmente
seus pais, fantasia-os como seus objetos de desejo. Porém, esse desejo e
esse prazer assustam a criança, que vê sua relação com os pais também
como perigosa. Mas que perigo é esse pressentido pela criança? Nasio
responde,

O perigo de ver seu corpo desgovernar-se sob o ardor de seus


impulsos; o perigo de ser punida pela Lei do interdito do incesto,
por ter tomado os pais como parceiros sexuais. Excitada pelo
desejo, feliz com suas fantasias mas igualmente angustiada, a
criança sente-se perdida e completamente desamparada. A crise
edipiana é um insuportável conflito entre o prazer erótico e o
medo, entre a exaltação de desejar e o medo de se consumir nas
chamas do desejo (2007, p. 10-11).

O complexo de Édipo tem início na relação simbiótica e narcísica


da criança com a mãe. O pai aparece como agente de castração, talvez
um mediador, representante das exigências da sociedade e da cultura; é
ele que irá fazer a separação mãe e bebê. Segundo Freud (1996), o com-
plexo de Édipo marca dois desejos recalcados: o desejo de matar o pai e
o desejo de incesto. É justamente por marcar o interdito desses desejos,
que o complexo torna-se universal, pois possibilita a vida em sociedade.
Assim, o complexo de castração é, para Freud, o dispositivo que
explica as razões da sujeição do sujeito à lei do pai. Como a criança não
pode ter o objeto irá identificar-se com o detentor dele.
A respeito da possibilidade de vida em civilização, Freud (1996)
aponta para a renúncia como a viabilizadora da vida em sociedade. Ao
trazer o mito do pai totêmico, Freud retoma a história ontogenética.
Quando os filhos se unem e matam o pai há o surgimento de sentimen-
tos ambivalentes. Ao mesmo tempo em que tentam edificar essa figura
que todos os membros do clã amavam e queriam ser igual, surge o ar-
rependimento e a culpa. Concomitante a isto os desejos sexuais pelas
mulheres do clã se intensificam, sendo necessário a instauração da proi-
bição do incesto, senão geraria uma matança sem fim na disputa pelo
poder do clã e pelas mulheres.
Ao instituir a proibição o clã nutre uma dívida ao pai fazendo-o se
tornar mais forte morto do que o fora vivo, segundo Freud (1996). Houve
um desenvolvimento da corrente afetuosa dos sentimentos para com o

84
pai, mas os impulsos que levaram ao parricídio permanecem. Simultanea-
mente desenvolvem-se os sentimentos fraternais chegando num proces-
so de santificação dos laços de sangue e numa exaltação da solidariedade
dentro do próprio clã. Dessa forma garantem a manutenção da vida uns
dos outros na medida em que evitam a repetição do acontecimento que
ocasionou a morte do pai. Na esteira desses acordos, Freud em Totem e
Tabu (1996), aponta para a origem do “Não matarás”, pois o que se res-
tringia ao pai se estende aos irmãos no contrato social estabelecido por
eles próprios. E com isso, possibilitando a vida em civilização.

Em suma, a travessia do Édipo pode ser lida como o encontro de


uma criança com as três figuras do pai – simbólico, real e imagi-
nário: um pai que representa a Lei, outro que a faz ser respeitada
e, finalmente, aquele, invejado e contestado, que detém o Poder.
Eis as três figuras paternas introjetadas que, conjugadas, forma-
rão o super eu do menino(Nasio, 2007, p. 122-123).

As contribuições de Freud acerca do entendimento da vida psíquica


e de como a vida psíquica se estende para a vida em sociedade, pode-
se pensar nas aproximações existentes entre a lei jurídica e a lei do pai.
Além disso, possibilita pensar se o pai não atua como um mediador na
medida em que viabiliza o sujeito para a entrada na cultura e no mundo
da linguagem, da comunicação e o coloca em direção a sua autonomia e
cidadania.

3. O direito

O direito foi, desde a modernidade pautado em pressupostos posi-


tivistas, dogmáticos visando a cientificidade e a racionalidade. Esta ciên-
cia jurídica é trabalhada como algo já dado, previamente estabelecido,
já definido e, portanto, inquestionável e engessado (REBOUÇAS, 2010).
Diferente da psicanálise, ela é uma ciência objetiva, vinculada a fatos e
realidades concretas, enquanto a primeira se vale de processos, muitas
vezes, inconscientes, onde o “homem não é senhor de sua própria mora-
da” (FREUD, 2001/1905). Não são poucas as diferenças, mas também não
são poucas as aproximações possíveis.
A ação humana, a partir das diretrizes do operador do direito, é
vista como um procedimento normativo, sancionador e coercitivo (RE-
BOUÇAS, 2010). No que se refere aos procedimentos jurídicos quando na
abertura de um processo judicial, as partes devem eleger seus represen-
tantes jurídicos que são os advogados. Estes, por sua vez, são os agentes
especializados no manejo da linguagem jurídica, linguagem técnica e per-

85
meada de formalidade e dramaticidade e que segue rituais e protocolos
bastante característicos (REBOUÇAS, 2010). Durante todo o processo ju-
dicial não são as partes que falam diretamente sobre seus conflitos, salvo
as audiências, nas quais se posicionam frente ao Juiz, tido, muitas vezes,
como senhor da verdade.
Os advogados se apropriam do discurso de seus clientes para ela-
borar estratégias de defesa e/ou acusação, e que resulta em distorções,
acréscimos maiores ou menores dos fatos, fazendo de tudo para compor
e se ajustar à estratégia da argumentação jurídica. Para isso, a parte deve
abrir mão da fala em primeira pessoa, e outorgar a responsabilidade de
sua fala pra outro, isto é, seu advogado.
Além disso, durante o processo jurídico convencional, verifica-se
que as partes precisam manter um discurso objetivo, coeso e racional,
tentando deixar de lado as emoções e sentimentos. Ainda, parte-se do
pressuposto de que, quando a demanda cai no judiciário, a comunicação
entre as partes fora interrompida, e, por isso, espera-se e supõe-se que
um terceiro, o juiz, decida sobre o conflito gerado entre as partes, exau-
rindo dos sujeitos a responsabilidade por seus desentendimentos.
Outra questão importante a ser trabalhada trata sobre o tempo do
processo. Uma vez instaurado um prazo, dá-se também um prazo para
que a comunicação seja reestabelecida. Pode-se dizer que o que marca os
processos judiciais é um tempo lento e burocrático (RESTA, 2014).
Diante disso, trabalhar-se-á no próximo segmento, as característi-
cas dos conflitos, tanto pelo viés jurídico como pelo psicanalítico e suas
possíveis interlocuções e aperfeiçoamento.

4. Instaurado o conflito! Entre o direito


e a psicanálise: do intersubjetivo ao intrasubjetivo

Após lançar a luz algumas ideias acerca da teoria psicanalítica e de


sua técnica, bem como das técnicas utilizadas pelo operador do direito
no processo judicial, esboçar-se-á agora algumas diferenças quanto a na-
tureza de um conflito psicanalítico e um conflito jurídico.
Para iniciar esta discussão, se faz necessário discutir um pouco so-
bre o significado da palavra conflito. Müller (1995) propõe, em seu livro
“O Princípio de Não-Violência”, que o conflito é uma das etapas que com-
põe o que para ele significa violência. O Autor explica que mesmo o con-
flito sendo inato ao homem, ele se instaura mediante a chegada de outro
que lhe traga insegurança ou medo, ou seja, o confronto com aquilo que
lhe é diferente gera conflito, pois duela a minha vontade com a vontade
do outro e a necessidade de poder e de resistência de ambos. Contudo,

86
mesmo Müller trabalhando o conflito como uma das etapas da violência,
pode-se pensar que nem todo conflito é de cunho negativo ou violento
(SPENGLER, 2010). Há conflitivas que são positivas, como a democracia e
como a interlocução da prática jurídica com a prática psicanalítica.
Além disso, há diversas teorias que trabalham com o conflito de
maneiras distintas. A esfera jurídica, por exemplo, lida com o conflito
intersubjetivo, expressado a partir da comunicação social entre os sujei-
tos que têm seus interesses colididos, e que pedem uma decisão judicial.
Já a psicanálise trabalha com o conflito que se manifesta no plano da
subjetividade. Este conflito gera oposição no interior do próprio sujeito,
cujos duelos são de representações e forças psíquicas contrárias e que
procuram satisfação. Ademais, o conflito judicial se expressa em termos
de decisão, enquanto que o psicanalítico requer a interpretação.
Outra conflitiva, entre as ciências, exposta é que, enquanto a psi-
canálise lida com a compreensão dos problemas do homem, a ciência do
Direito busca sua solução. No direito

(...) fala-se em conclusão do processo, “solução de conflitos”,


mas de fato sabe-se que a sentença judicial conclui o processo
“intramuros”, no âmbito restrito daquele espaço-tempo recorta-
do de um todo ilimitado. De um todo, cujo tempo tem mais de
mítico que de cronológico, cujo espaço é mais simbólico que
real. Pois é o espaço-tempo das emoções. Tempo dos projetos
desfeitos, das vidas fracassadas, das esperanças roubadas, a
que solução judicial não põe termo (NAZARETH, 2011, p. 160).

Diante disso, nota-se que há muitas conflitivas entre as práticas ju-


rídicas e práticas psicanalíticas. Contudo, isso não as impede de dialogar.
O sujeito, quando toca a campainha do Judiciário pede, demanda, solicita
e com urgência a compreensão, mas também a solução de seus proble-
mas e impasses. E quando estes impasses não são da ordem financeira?
Não são da ordem trabalhista? Mas sim da ordem do reconhecimento?
Dos sonhos falidos? Das promessas descumpridas? Do amor jurado que
se foi, mas que não consegue de fato ir? Da família que se (des)estrutu-
rou? E quando esse amor tem provas? Filhos?
A partir de estudos nos seminários de Jacques Lacan, nos livros de
Zygmund Bauman, Chistopher Lasch, Luc Ferry, Eugéne Henriquez e Elisa-
beth Roudinesco e mesmo da experiência enquanto psicóloga avaliadora
em casos de guarda percebe-se que as transformações ocorridas na estru-
tura familiar, modificaram a forma de lidar com os conflitos dessa esfera.
Nunca se teve tantas solicitações de guarda como na atualidade, porém
quase sempre envoltas nas artimanhas jurídicas. Porque tanto interesse
no filho e tamanha dificuldade de suportar as diferenças. Trabalhar-se-á,

87
nas próximas seções o sentimento de família e amor aos filhos e se este
sentimento está se perdendo com o tempo. Além de um estudo de caso
de disputa de guarda, respectivamente.

5. A família (des)estruturada?

A forma como se conhece a família, hoje, é consequência do proces-


so histórico que constitui transformações sutis a essa instituição. “A famí-
lia altera a sua estrutura e função, de acordo com determinados períodos
e grupos sociais. Sofreu especialmente importantes transformações sob
a influência do desenvolvimento industrial” (HORKHEIMER, 1983, p.128-
129). Transformações ocorridas entre os séculos XVI e XVII marcaram o
rompimento com o modelo de família da Idade Média, engendrando o iní-
cio da família moderna e, consequentemente, com um sentimento novo:
o sentimento de família.
Segundo Rousseau, a forma mais natural e mais antiga de estabele-
cimento de vínculos é a família (ROSSEAU apud ROUDINESCO, 2003). Pri-
meiramente, os laços afetivos nas instituições familiares não era algo vin-
culado ao amor ou a escolha pessoal, senão uma forma de se perpetuar
os dotes, como na Idade Média, a partir do casamento arranjado. No que
tange a educação dos filhos nesta época, a família “não podia, portanto,
alimentar um sentimento existencial profundo entre pais e filhos” (ARIÈS,
1981). Contudo, isso não significava que os pais da época não amassem
seus filhos. Segundo Ariès, os pais:

(...)se ocupava de suas crianças menos por elas mesmas, pelo


apego que lhes tinham, do que pela contribuição que essas
crianças podiam trazer à obra comum, ao estabelecimento da
família. A família era uma realidade moral e social, mais do que
sentimental (1981, p. 15).

Philippe Ariés fez um extenso trabalho iconográfico em que percor-


reu a trajetória da família desde a Idade Média até os tempos modernos. O
autor aponta o sentimento de infância como principal agente de transfor-
mação que culminou para que o sentimento de família fosse despertado.
A partir da segunda metade do século XVIII, as esposas passaram,
lentamente, a ocupar o lugar de companheiras e o casamento o lugar pri-
vilegiado da felicidade, da alegria e da ternura. Essa nova família passa a
ser considerada “uma unidade sentimental que engloba marido, esposa e
filhos. É o nascimento da moderna família nuclear que constrói pouco a
pouco o muro de sua vida privada para se proteger contra toda intrusão
possível da grande sociedade” (BADINTER, 1985, p. 179).

88
Com a prática de casamento arranjado sendo deixada de lado em
nome do amor e de um novo conceito de família como refúgio frente ao
mundo que começava a se delinear da competitividade e da brutalidade,
a promessa era a de que essa moderna família encontrasse alívio, felici-
dade e ternura. Segundo Christopher Lasch (1991), a criação dos filhos
se converteu em algo mais exigente e os laços entre pais e filhos se in-
tensificaram, sendo uma fonte de tensão na família, dada à sobrecarga
emocional na relação entre pais e filhos. Ainda de acordo com Lasch é nas
relações com entes queridos e suas figuras de autoridades, que a criança
tem suas primeiras experiências. “A socialização faz com que o indivíduo
queira fazer o que deve fazer e a família é o agente ao qual a sociedade
confia essa tarefa complexa e delicada” (p. 26).
Com o advento da modernidade e da consequente contemporanei-
dade, novas famílias foram surgindo, desde homoafetivas até famílias
monoparentais, o que necessitou de uma mudança quanto a sua legitimi-
dade. Foi em 2002, que os direitos obtidos na Carta Magna passam a ser
incorporados no novo Código Civil. Segundo Bucher-Maluschke

A legitimação da união dita “livre” ocorreu a partir da regulamen-


tação do direito dos companheiros a alimentos e a sucessão,
com a Lei nº. 8.071 de 29 de dezembro de 1994. Enquanto isso,
a Lei nº. 9.278, de 10 de maio de 1996, legitimou a segunda
forma de constituição da entidade familiar ao considerar a união
estável como legalmente constituída (2007, p. 90).

Além disso, a partir da modificação da Constituição Federal em


1988, foi reconhecida a pluralidade de entidades familiares. O casamen-
to deixou de ser a forma exclusiva de constituição familiar, passando o
Estado a proteger igualmente as famílias constituídas pela união estável,
através do parágrafo 3º do artigo 226 e a família monoparental, formada
por um dos pais e seus descendentes no 4º parágrafo do artigo 226 (BU-
CHER- MALUSCHKLE, 2007).
Como esboço de resposta à pergunta (subtítulo) que inaugura este
segmento, parece que a família ainda é a mais forte e consolidada insti-
tuição da contemporaneidade, não estando desestruturada. Essa família
contemporânea é uma família horizontal e em “redes” e tudo bem. O
que se perdeu foi aquela concepção de família nuclear e, supostamente,
eterna. Acredita-se que o que está em defasagem nos dias atuais, é a
responsabilidade dos pais para com seus filhos, diante de um processo
judicial de divórcio e disputa de guarda. No discurso que inúmeras vezes
se vislumbra na clínica psicanalítica nestes casos, é que “se faz de tudo
em nome da criança” ou “que é só pelo bem da criança”. Será mesmo que
se deve fazer de tudo em nome da criança? Será mesmo que se deve abrir

89
um processo judicial em “nome da criança?”. Pensa-se que essa defesa
está muito mal empregada. Adiante um caso clínico a partir do exposto.

6. Caso princesa jujuba: a hora da aventura

Em meados de 2013, chega a uma instituição pública da cidade


de Santo Ângelo- RS um ofício do Conselho Tutelar solicitando avalia-
ção psicológica para uma pré-adolescente de 12 anos de idade, cujos
pais estavam em processo litigioso de divórcio. Parecia mais um caso
corriqueiro, mas não. Mas não mesmo! Primeiro, porque a família, agora
esfacelada, era de excelente condição financeira e de prestígio frente a
sociedade local; segundo, porque não se tratava apenas de um divórcio
litigioso, mas sim de uma disputa narcísica e violenta, por vezes até
chegando à agressão física, entre os pais, que duelavam para garantir
seu direito de guarda.
A pré-adolescente, em suas primeiras entrevistas frente a psicóloga
da instituição pública, não conseguia dirigir seu olhar, senão para o chão
e para suas unhas roídas. Os pais, nas entrevistas individuais, pouco fala-
vam da filha. Ambos discorriam sobre o passado em família e os defeitos
de cada cônjuge. Agrediam-se! Muito! Tanto que foi necessária diversas
intervenções da psicóloga a fim de recolocar o discurso para o que real-
mente interessava ali, naquele momento: a filha.
A mãe, psicóloga reconhecida na cidade. O pai, médico. Ambos
com sérios problemas: egos inflados. Ambos influenciavam a filha a fa-
lar apenas o que era necessário no atendimento psicológico. Necessário
para eles, afinal, pouco se preocupavam com o bem estar da filha. A mãe,
reiteradas vezes, dizia que a filha era quem deveria decidir com quem
gostaria de ficar. O pai, tentava comprar a psicóloga, dizendo que se fos-
se necessário a pagaria “por fora”. Mais um ponto em comum o ex-casal
apresentava: nenhum estava disposto a pagar com o preço da responsa-
bilidade do que significa ser “pais”. Mas chega de falar dos pais. Já ocupa-
ram espaço demais neste relato.
Helena12 aos poucos foi contando sua história. Para isso, utilizava-
se da narrativa de um desenho animado: a hora da aventura. Nos primei-
ros momentos, identificou-se com o personagem Fin. Este é um menino
que está em coma e que está preso no mundo dos sonhos. Não é muito
melhor viver num mundo de sonhos do que numa realidade que só con-
tem brigas e ofensas? Creio que sim!

12 Nome Fictício utilizado para resguardar a família e a pré-adolescente. O motivo pela


escolha do nome de Helena, foi embasado no Clássico de Homero, cuja disputa pela
jovem e seu rapto ocasionou a guerra deTróia.

90
Notava-se que a pré-adolescente era muito intelectualizada, lendo
livros do Augusto Cury e, eventualmente, relatava suas experiências
científicas. Após alguns meses de atendimento, a pré-adolescente passa
a narrar o desenho em questão, trazendo como foco a princesa Jujuba.
Esta é uma princesa que pouco fala sobre seu passado e, além disso, en-
contra seu refúgio na ciência. É uma princesa muito inteligente, porém
precisa sempre ser salva por Fin. Ademais, princesa Jujuba é disputada
por vários reinos.
Não é à toa que Helena, a princesa deste relato, refugiou-se em um
mundo de fantasia, na qual havia alguém para salvá-la dos perigos da
disputa entre os reinos.
Após alguns meses Helena não compareceu mais aos atendimentos
da Instituição em pauta, pois a mãe (dessa vez), achou melhor, pagar
alguém “por fora” para dar seguimento aos atendimentos psicológicos
da filha.
Por fim, com este fragmento de caso clínico, pode-se responder
temporariamente, as questões levantas na seção anterior do artigo, ao se
questionar o bem estar da criança e a responsabilização desta no proces-
so decisório. Acredita-se que o que a criança e o adolescente precisam é
que seus pais se reconheçam mutuamente, nas suas diferenças e impas-
ses, mesmo que separados.
Ainda, que estes compreendam suas necessidades no lugar de ape-
nas satisfazê-las. Nada de fazer tudo em seu nome. O bem estar do filho
só será atendido quando o bem estar de todos os pertencentes a família
estiverem atendidos. Por isso, a mediação se torna a interlocução possí-
vel entre as práticas do Direito e as práticas da Psicanálise, na qual o inte-
resse de todos possam ser contemplados, e as esperanças restabelecidas
e fortalecidas.

7. Mediação: uma possibilidade de devir


da/na família

Quando um conflito é mediado, ele possibilita o crescimento, pois


transforma o impasse em diálogo. Por falar em transformação, adotar-
se-á a perspectiva de mediação transformadora, proposta por Warat em
contraposição a àquela mais voltada para o acordo.
Segundo Warat (1998), a mediação transformadora ocorre, como
um processo psíquico de reconstrução simbólica da adversidade, ou seja,
a partir do diálogo e do reconhecimento mútuo entre os envolvidos que
se pode reconstruir o conflito e colocá-lo em outra ordem que não a do

91
confronto.
Para ele, “quando, digamos, se resolve um conflito é porque os
interessados envolvidos puderam reconstruí-lo simbolicamente, conse-
guiram transformá-lo por tê-lo interpretado na reconstrução (1998, p.
10)”. Mais do que capazes de reconstruir o conflito simbolicamente, a
mediação possibilita que o sujeito seja competente para decidir sobre sua
própria vida, sobre suas próprias relações.
Quanto ao papel do mediador, “sua tarefa é criar o canal de comuni-
cação e permitir que as partes transformem o conflito (REBOUÇAS, 2010,
p. 182)”. Ainda, contribui para um olhar sobre o conflito, e possibilita
aos envolvidos visualizar o conflito como um espaço de reconstrução, de
aprendizagem (WARAT, 1998).
Warat compreende que:

(...)a mediação pode ser vista como um processo de reconstrução


simbólica do conflito, no qual os interessados tem a oportunida-
de de resolver suas diferenças reinterpretando, no simbólico, o
conflito com o auxílio de um mediador, que as ajuda, com sua
escuta, interpretação e mecanismo de transferência, para que
elas encontrem os caminhos de resolução, sem que o mediador
participe da resolução ou influa em decisões ou mudanças de
atitude (1998, p. 31).

Esta prática de mediação transformadora pode ser enriquecida pela


psicanálise, no momento em que esta pretende reestabelecer os lugares
simbólicos dentro de uma família, pois somente quando estes estiverem
claros e evidentes que as funções de cada integrante poderão se assentar.
Outra contribuição da psicanálise e talvez a mais importante para esta
prática jurídica, é relacionada a sua atenção aos conteúdos inconscientes
dos envolvidos, bem como recoloca a subjetividade em jogo nas tramas
do judiciário, que costumeiramente exclui a singularidade dos envolvidos
nos processos. Essa possibilidade de abertura de acesso à justiça

(...) reconfigura o próprio direito, alojando a discussão não mais


numa perspectiva abstrata e normativa de busca de segurança e
estabilidade, mas no seio das relações mesmas da gente, onde
irrompem elementos irracionais, subjetivos, emotivos, onde a
sensibilidade ocupa a ordem do dia, com ou sem romantismo
(REBOUÇAS, 2010, p. 190).

Por estas características e pela sua aproximação com conceitos da


psicanálise, pensa-se que, em processos de divórcio que contenham con-
flitos relacionados a guarda do infante ou adolescente, a mediação é a
melhor ferramenta de intervenção, por exemplo, o fragmento do caso

92
exposto anteriormente.
Contudo, após sancionada a lei, no final do ano de 2014 que de-
termina que a guarda, mesmo em casos no qual o divórcio é litigioso, e
sem acordo, deve ser compartilhada, não exclui a possibilidade do uso da
mediação, pois a responsabilidade parental é conjunta, não individual e
que portanto, deve ser promovido o diálogo entre os pais. Vale ressaltar
aqui, a importância de se distinguir três conceitos: conjugalidade, pater-
nidade e parentalidade. Nestes casos, a psicanálise utilizando o lugar de
mediador pode contribuir para delinear e distinguir os papeis (conjugal),
funções (paterna e materna) e atribuições (tutela) de cada um.
Acredita-se que a guarda compartilhada será a melhor forma de
não transformar o filho(a) num processo judicial em que se fará tudo em
nome dele. Contudo, é importante o uso da mediação, bem como da es-
cuta psicanalítica nos processos de divórcios, pois como Spengler, muito
bem menciona:

(...) aquilo que os separa, a ponto de justificar o litígio, é exata-


mente aquilo que os aproxima, no sentido de que eles comparti-
lham a lide em um intenso mundo de relações, normas, vínculos
e símbolos que fazem parte daquele mecanismo (2010, p. 267).

Por fim, mesmo que em termos jurídicos o conflito seja extinto, sa-
be-se que em termos de lei simbólica, muitas vezes, não é findado, nem
resolvido, podendo ser repetido. E ainda, conforme propõe Rebouças

O sujeito da mediação é a metamorfose. É desta necessidade


de mutação, de não permanecer sempre o mesmo, e de fugir de
uma identidade, deste risco incomodo da mudança, de deslocar,
de subjetividades, do não lugar, que pensamos. É este ser dife-
rente, que não implica antítese (ser/não ser), mas dissonância
(2010, p. 209).

Partilhar as diferenças é o desafio da mediação.

8. Considerações finais

Tudo mudou. O tempo, o espaço, a estética, os padrões, e as re-
lações em sua sequência. A contemporaneidade tem sido acompanhada
dessas transformações. Estas fazem reflexo em todos os campos da so-
ciedade. Na medida em que a sociedade se transforma, são exigidos do
homem respostas que conformem as alterações implicando novas pos-
turas frente à realidade. Estas respostas nem sempre ocorrem de modo
linear e, muitas das vezes, esbarram nas dificuldades impostas pelos

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novos arranjos estabelecidos.
Numa tentativa de dar conta das novas problemáticas, tentou-se
articular as práticas jurídicas e psicanalíticas, em especial relacionadas
ao Direito de Família, o uso da mediação. Esta foi o instrumento mais
adequado para esta articulação, aparentemente oposta e distante, pois
enquanto o Direito apregoa o uso da objetividade no seu discurso, a psi-
canálise vale-se das questões subjetivas do sujeito.
A partir desta interlocução pode-se perceber que na maioria das
vezes, os sujeitos que se dirigem ao Judiciário buscando a solução de seu
conflito, só querem se fazer ouvidos e reconhecidos na sua diferença. E
sabendo-se disso, é necessária uma mudança de postura ética, pois com-
preendendo os conflitos humanos à luz da psicanálise, se é possível res-
tituir o ethos (morada) nas relações humanas e fornecer condições mais
dignas àqueles que se dirigem ao Judiciário para ser reconhecido.

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AS AUTORAS

Janaína Soares Schorr

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Instituto de Ensino


Superior de Santo Ângelo – IESA e especialista em Direito Processual:
Grandes Transformações pela Universidade do Sul de Santa Catarina –
UNISUL. Pós-Graduanda Lato Sensu em Docência para o Ensino Superior
pelo Senac, Campus Santo Amaro/SP. Mestranda em Direitos Huma-
nos na Universidade do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
– UNIJUÍ. Membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Humanos, Rela-
ções Internacionais e Equidade”, vinculado ao CNPq, atuando
na linha de pesquisa “Democracia, Regulação Internacional e
Equidade”. Bolsista do Programa de Bolsas do Mestrado da
UNIJUÍ. Advogada e orientadora educacional profissional
do Senac, unidade Santo Ângelo/RS. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/1364458511266927 E-mail: janaschorr@yahoo.
com.br

Jaqueline Schimanoski Machado Roberto

Mestranda em Direitos Humanos na Universidade


Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul –
UNIJUÍ, mesma universidade onde cursou Licenciatura em
História. Professora de História do Ensino Fundamental
da Rede Pública Municipal de Ijuí. Na UNIJUÍ integrou o
projeto de extensão ITECSOL - Incubadora de Economia
Solidária, Desenvolvimento e Tecnologia Social ITECSOL/
UNIJUÍ, atuou como consultora do Programa Redes de
Cooperação, em convênio estabelecido a UNIJUÍ e a SEDAI
– Secretaria do Desenvolvimento e dos Assuntos Interna-
cionais do Rio Grande do Sul e assessorou a Vice-Reito-
ria de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão. Desenvolve
pesquisas ligadas ao trabalho cooperativo, associativo,
direito ao trabalho, educação, economia solidária, cida-
dania e desenvolvimento. Atualmente é Bolsista CAPES.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5754607120969034 E-mail:
jaqueroberto@gmail.com

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Ilise Senger

Advogada. Professora da Universidade Católica Dom Bosco – UCDB.


Especialista em Direito Processual Civil, pelo Instituto de Ensino Superior
de Santo Ângelo – IESA; Mestranda em Direitos Humanos, pela Univer-
sidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2561358778439820. E-mail: ilisesenger@
gmail.com

Luana Rambo Assis

Assistente Social. Graduada URI São Luiz Gonzaga.


Mestranda em Direitos Humanos UNIJUI. Bolsista Integral da
CAPES. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1357986952336492.
E- mail: luanarambo@yahoo.com.br

Izabele Zasso

Mestranda em Direitos Humanos na Universidade


do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Gra-
duada em Psicologia pela Universidade Regional Integra-
da do Alto Uruguai e das Missões – URI, Campus Santo Ân-
gelo. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8517583845637095.
E-mail: izabelezasso@outlook.com

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