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UNIVERSIDADE CATOLICA DE PELOTAS Chancelet: D. Jayme Henrique Chemello Reitor: Alencar Mello Proenga Vice-Reitor: Claudio Manoel da Cunha Duarte Pr6-Reitor Académico: Gilberto de Lima Garcias Pré-Reitor Administrativo: Carlos Ricardo Gass Sinnott Coordenadora do Curso de Mestrado em Letras: Carmen Liicia Matzenauer-Hernandorena Reviso: Susana Bornéo Funck Layout e editoragdo eletrénica: Nara Rejane da Silva ’ Capa ~ layout: Nara Rejane da Silva — Arte-final: Fernando Giusti Pesquisa de imagens: Susana Bornéo Funck Mustragao: Helen Turner, Morning News, 1915. Oil on canvas. Impresso no Brasil — Printed in Brazil Tiragem: 500 exemplares © Copyright 2001 - Universidade Cat6lica de Pelotas ~ EDUCAT Rua Félix da Cunha, 412 ~ Pelotas, RS - 96010-000 Fone: (53) 284.8297 — Fax: (53) 225.3105 E711 Emst-Pereira, Aracy A leitura e a escrita como praticas discursivas. / [ organizado por | Aracy Emnst-Pereira, Susana Bornéo Funck. ~ Pelotas : Educat, 2001. 224 p. 1. Leitura. 2. Escrita, 3. Lingiifstica aplicada. 4, Anélise de discurso. I. Funck, Susana Bornéo, IL. Titulo. CDD 401.41 Ficha catalografica: Bibliotecéria Cristiane de Freitas Chim — CRB 10/1233 2 DA HETEROGENEIDADE DO DISCURSO A HETEROGENEIDADE DO TEXTO E SUAS IMPLICACOES NO PROCESSO DA LEITURA Freda Indursky* Temos intengoes, pretensées intimeras, ‘Mas 0 que vio descobrir em nossos textos, nio sabemos. Orfio, O texto aguarda alheia paternidade. ‘a0, 0 autor considera entre o texto € 0 leitor —a desletrada solidao. Affonso Romano de Sant’Anna Ps: a Anilise do Discurso, falar em heterogencidade j ja é, desde algum tempo, um lugar comum.' F sabido que, sob nossas palavras, ressoam palavras-outras, palavras de outros sujeitos, pois o discurso é da ordem do repetivel e essa repeticio nao remete apenas aquilo que foi dito anteriormente pelo sujeito do discurso, no presente ou no passado. O repetivel é da ordem *Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul 1A nogao de heterogencidade do discurso foi desenvolvida ao longo de varios traba- Ihos: Pécheux, em Remontémonos de Spinoza a Foucault (1981); Courtine, em sua tese, reformulou fortemente a nogdo de formagio discursiva, mostrando que suas fronteiras sfio fundamentalmente instaveis, permitindo sua permanente configuragio (1981); Courtine e Marandin (1981); Authier, que mostra que sob as palavras do sujeito estéo as palavras do outro (...), para citar apenas alguns trabalhos que deram inicio a essa reflexao 28 | ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS. de um ja-dito, mais amplo e disperso, que remete para o dizer de outros sujeitos, em outros discursos, em outros espagos e em tempos diversos, que tanto podem estar inscritos na mesma Formagio Discursiva do sujeito que enuncia quanto em outra Formagao Discursiva, seja ela “amigavel” ou antagénica. Vale di- zer que 0 ja-dito remete para o interdiscurso, para a meméria do dizer. Assim, 0 estudo da heterogeneidade permite apreender tanto o contato entre Formagées Discursivas diferentes ¢ suas respectivas formas-sujeito, estabelecendo relagdes de confronto, de alianga, de exclusao, quanto 0 contato entre posigdes-sujeito, inscritas na mesma Formagao Discursiva, mas igualmente diver- sas, 0 que implica a concepg4o de uma Formagio Discursiva he- terogénea, em que 0 mesmo convive com a diferenca e a diver- géncia, dando origem a contradigao. O trabalho discursivo mobi- liza, pois, um discurso que é, em sua propria constituigao, hetero- géneo. Poderiamos dizer, juntamente com Courtine e Marandin, que “os discursos se repetem, ou melhor, ha repeticdes que fazem discurso” (1981, p. 28). E, se assim é, cabe perguntar: como tais saberes, que di- zem respeito ao discurso, afetam a leitura? Para responder a essa questo, € preciso iniciar pela no- cao de exo, que € o “objeto” a ser lido, que representa a materia- lidade lingiiistica através da qual se tem acesso ao discurso. O texto é, pois, uma unidade de anilise,? afetada pelas condigdes de sua produgio, a partir da qual se estabelecerd a pratica de leitura. Em fungo disso, podemos acrescentar, de imediato que, para a Anialise do Discurso, a organizacao lingiiistica interna ao texto é 0 que menos interessa. O que estd em jogo para a Anélise do Dis- curso € 0 modo como 0 texto organiza sua relacio com a discur- sividade, vale dizer, com a exterioridade e 0 modo como organiza internamente estes elementos provenientes da exterioridade para que produzam o efeito de um texto homogéneo. Orlandi (1987 ¢ 1988) produziu reflexdo consistente sobre a natureza do texto e sua relagdo com a produgao de leitura, inaugurando uma perspectiva discursiva da leitura. Da heterogeneidade do discurso a heterogencidade do texto... | 29 Ainda do ponto de vista da Analise do Discurso, é pos- sivel pensar 0 texto como um espaco simbédlico, nao fechado em si mesmo, pois ele estabelece relagGes com 0 contexto, com ou- tros textos e com outros discursos,’ 0 que nos permite afirmar que o fechamento de um texto é mero efeito, embora indispens4- vel. Um texto considerado nessa perspectiva nao se restringe a si proprio. Faz parte de sua constituigao uma série de outros fato- res, tais como os descrevemos a seguir. As relapées contextuais re- metem 0 texto para o contexto socioecondmico, politico, cultural e histérico em que é produzido, determinando as condigdes de sua produgao. Ja as re/agées textuais relacionam um texto com ou- tros textos. Estamos aqui face ao que ja estamos habituados a nomear de intertextualidade. Deslocando esta nog4o que nasce na literatura para a analise do discurso, a intertextualidade aponta nfo apenas para o efeito de origem, quando trabalha com a nogao de discurso fundador, mas aponta igualmente para outros textos que se inscrevem na mesma matriz de sentido. Refiro-me aqui as feescrituras ¢ as parddias j4 produzidas ¢ aquelas que ainda estao por serem produzidas, ou seja, penso aqui no que chamamos de Pparafrases discursivas, que retinem textos existentes, possiveis ou imagindrios. Por fim, as relagGes inéerdiscursivas aproximam o texto de outros discursos, remetendo-o a redes de formulagées tais que 4 nao é possivel distinguir 0 que foi produzido no texto € 0 que é _ proyeniente do interdiscurso. Dito diferentemente, o texto, nessa Petspectiva, possui sua materialidade lingiifstica, mas nao se reduz Em fungao dessas diferentes relagdes que 0 texto pode es- abelecer com a exterioridade, ele vai além de seu suporte mate- al. E a exterioridade (contexto, intertextualidade ¢ interdiscurso) ente no texto, embora nao seja transparente, é parte constitu- do mesmo. Talvez caiba dizer nesse momento de que modo dis- go intertextualidade de interdiscurso. Entendo por intertextua- @ retomada/releitura que um texto produz sobre outro ferit Texto, Contexto € Significagdo nos Processos de Produgdo de Sentido, (1989), | 30 | ALEITURA EA ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS texto, dele apropriando-se para transforma-lo e/ou assimila-lo. Dito de outra forma, o processo de intertextualidade langa o texto a uma origem possivel. Para a Andlise do Discurso, a inter- textualidade aponta nfo apenas para uma possivel origem, mas para outros textos que se inscrevem na mesma matriz de senti- dos. J4 0 interdiscurso, que pode ser entendido como a memoria do dizer, remete a redes discursivas tais que ja ndo é mais possivel jdentificar com precisdo, como no caso anterior, a origem de um texto, visto que o discurso esta disperso em uma profusio des- continua e dispersa de textos, relacionando-se com formagdes discursivas diversas, e mobilizando posigdes-sujeito igualmente diferentes. Estas sao, pois, no meu modo de ver, duas formas distintas de relagio com a exterioridade e que participam, a igual titulo, da constitui¢ao do texto. Decorre dai que nao é mais possivel pensar o texto como uma instAncia enunciativa homogénea. Um texto com tais caracteristicas, em que diferentes textos, diferentes discutsos ¢ diferentes subjetividades se fazem presentes € se fazem ouvir, s6 pode ser pensado como um esparo discursivo heterogéneo. "Todas essas formas de se relacionar com a exterioridade remetem pata 0 que designo genericamente de interdiscursividade. ‘Um texto com tais caracteristicas é produzido por um sujeito interpelado idcologicamente e identificado com uma posi- cio-sujeito inscrita em uma Formacio Discursiva, ou seja, 0 su- jeito produz seu texto a partir de um lugar social e, ao fazé-lo, exerce a func¢io enunciativa de autor. Esse sujeito-autor,’ em mi- nha perspectiva, mobiliza diferentes relacdes com a exterioridade € as organiza, dando-Ihes a configuracéo de um texto. Dito de outra forma: em seu trabalho de escritura, 0 sujeito-autor mobiliza varios e diversificados recortes textuais relacionados a 4A nogio de autor € introduzida na teoria do discurso pela retomada que Orlandi (1988) faz das reflexdes desenvolvidas por Foucault (1970). E a partir dessas duas referéncias que Gallo vai desenvolver a nogo de efeito AUTOR, em sua tese inti- tulada Texto: como apre(e)nder essa matéria?, IEL, UNICAMP, 1994. Para a au- tora, esse efeito consiste no “efeito de realidade de um sujeito produtor do discurso” Da heterogeneidade do discutso a heterogeneidade do texto... | 31 diferentes redes discursivas e diferentes subjetividades. Tal fazer o conduz a estabelecer uma trama entre diferentes recortes dis- cursivos, provenientes de diferentes textos afetados por diversas Formac6es Discursivas e diferentes posigGes-sujeito. Por conseguinte, podemos pensat que um texto, urdido dessa forma, consiste em uma /eferogeneidade estruturada pelo trabalho discursivo do sujeito-autor, a partir de sua posigdo- sujeito, decorrendo dai a tessitura € 0 efeito de unidade de sentido desse texto. Vale dizer que o sujeito-autor, ao produzir seu texto, produz significados. Ou seja, o sujeito-autor, ao reunir ¢ otganizar os recortes heterogéneos e dispersos provenientes do exterior, produz a textualizagao desses elementos que, ao serem af recontextualizados, se naturalizam, “apagando” as marcas de sua procedéncia, de sua exterioridade/heterogencidade/dispersio. Esse trabalho discursivo de textualizacio,’ em minha perspectiva, quando bem sucedido, é 0 responsavel pelo ¢feito de textualidade, do qual decorre um outro efeito essencial, 0 de ho- mogeneidade do texto.’ Esse efeito ¢ indispensvel para que 0 Sujeito-autor se constitua ¢ ¢ isto que o coloca na fun¢ao enuncia- tiva de autoria de um texto, E este trabalho discursivo de *A nogio de textualizacao foi introduzida na Anélise do Discurso por Solange Gallo em sua tese de doutorado (1994), referida em nota anterior. Para a autora, quando autor preenche os espacos cambidveis deixados em branco no texto, indicando a horaeo espago de determinado evento, contextualizando-o e tornando “publica” sua Produgio, dé-se a textualizacdo do texto, produzindo o seu fechamento. Chemo de efeito de textualidade para nfo confundir com textuatidade, que é quali- dade do texto, nocio formulada pela Lingtifstica Textual. Para esse campo do conhe- to, a textualidade é decorréncia da coesdo ¢ da cocréncia de um texto, ou seja, €uma qualidade textual que deriva de seu modo interno de organizagao, Enquanto efeito de texualidade, por mim proposto, vai muito além da organizagio lingiifstica interna do texto, embora passe por ela também. O efeito de textualidade € uma qualidade discursiva que deriva da insergao ¢ textualizagao de recortes discursivos Provenientes de outros textos, de outros discursos, enfim, do interdiscurso. 7 No momento em que os recortes discursivos sfo textualizados no texto, eles Parecem ali ter sido produzidos e ali encontram-se de forma téo natural que mM 0 efeito de homogeneidade. Ou seja, essa homogencidade textual € uma discursiva resultante do trabalho discursivo de textualizagio, tal como estou —_— 32 | ALLEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS jnternalizacio e organizacao da exterioridade que produz o que chamo de relagies textuais, Tais relacdes nao se confundem com as relacdes coesivas ¢ de coeréncia de que a Lingiiistica Textual se ocupa.® Logo, para que um texto seja considerado enquanto tal, faz-se necessatio que os recortes provenientes do exterior pare- cam ter sido ali produzidos; impGe-se que as marcas de “‘costura” dessas diferentes alteridades tornem-se imperceptiveis.’ A super- ficie textual precisa parecer perfeitamente plana, lisa, uniforme, en- fim, sem asperezas. So assim a ilusio de homogeneidade se ins- tauta € 0 efeito-texto’” se produz. Dito de outra forma: palavras ja-ditas em outro lugar, ao serem apropriadas pelo sujeito-autor, precisam ser atravessadas pela modalidade do esquecimento para que possam ressoar como novas no interior do texto que esta sendo produzido. ‘Acrescente-se ainda que, além de apresentar-se como se fosse um texto que esti na origem de seu autor, apagando os Spee Betas relagdes textuais, que nesta etapa de textualizacdo jé silo internas ao texto, rao se confundem com as relagdes de coesio de que se ocupa a Linguistica Textual (LT), porque, na perspectiva da Anilise do Discurso (AD), essas relages promovem a organizaco interna ao texto de saberes provenientes da exterioridade, do interdis- curso, dos quais 0 sujeito-autor inconscientemente se apropriou. Por conseguinte, para a AD, consiste em organizar internamente que é proveniente da exterioridade. vvata-se de sintagmatizar / linearizar /internalizar 0 que € otiginariamente de- sintagmatizado e externo. Enquanio, na perspectiva da LT, organizase 0 que jag, desde sempre, interno, 0 que foi produzido ali, apenas pelo autor, sem remeter, $M momento algum, a exterioridade, & alteridade. Ou seja, para a LT, 0 autor esté na origem plena do texto. Fazendo mais um contraste , para a ‘AD, trata-se de produzir crefeite de uma superficie plana e sem emendas, de produzir 0 efeito de homogeneizagio dessas helerogencidades e alteridades. Para a LT, tratase de relacionar o que precede com o que sucede no interior unfvoco do proprio texto, na sua linearidade natural. °Em A Fala do Quariéis ¢ as Outras Vozes (Indursky, 1997), trabalhei detidamenté essa forma particular de heterogeneidade que designei de incisas discursivas, justa- mente porque esse discurso-outro instaura-se NO discurso do sujeito sem nenhuma marca sintética de sua linearizagZo, parecendo af ter sido produzido. A costura per” feitamente invisivel das incisas discursivas oculta a sua natureza heterogénea ¢ Pro” duz 0 efeito de homogeneidade. 10para Gallo (1994), 0 efeito “TEXTO” é 0 efeito de realidade ¢ unidade do enum ciado. do discurso a heterogencidade do texto... : os de sua interdiscursividade e demarcando-se de todos os 1 tos, esse efeito-texto traz consigo outra caractertstica. apresenta como “uma peca de linguagem”" dotada de ide.'? Ou seja, o efeito-texto resulta da ilusio de que tudo a ser dito foi dito, nada faltando e nada sobrando. Ele é comero, meio ¢ fim. O efeito-texto apresenta-se, assim, a forma completa, acabada, fechada. Este efeito-texto et dito diferentemente: o efeito-texto é um espago discur- nbdlico porque seu fechamento é simbélico e sua com- também o é. E o autor necessita destas duas ilusées — e fechamento - tanto para dizer como para concluir Esse “fechamento”"? instaura para o autor a ilusio de dos sentidos, da qual decorre o oftito de consisténcia de ourtine, o qual se da sob a acio do “... interdiscurso nchimento do formulavel” (1999, p.22). Ou seja, o historiciza seu texto ao entretecé-lo de forma in- € indelével a teia discursiva do ja-dito. s, contraditoriamente, esse sujeito-autor é afetado rio de estar na origem de seu : ele esquece* que Preexistem e supde-se a fonte tinica de seu dizer e de ele sabe/controla/domina perfeita ¢ completa- ntidos que produziu em seu texto. Os sentidos “sao” autor pretendeu que fossem, absolutamente “seus” ¢ es” e, como tal, se cristalizam, nao podendo nunca , produzindo o “efeito de evidéncia”. Em sua ilusao, S4o estaveis, nunca derivam, nem podem deslizar.'® define texto como uma peca de linguagem. 3) trabalha essas duas dimensées do texto: a completude e a mtende que para que se instaure 0 efeito-texto € necessério que 0 € um “echo”, 1988, p.163, 0: estrutura ou acontecimento? (1990), trabalha com a funda- e dos sentidos, 34 | ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS Dessa ilusio, 0 sujeito-autor emerge como efeito-sujeito.'* Esse efeito estd plenamente atravessado pelo esquecimento da exterio- tidade e dos outros sentidos. E é sobre o efeito-texto, espago dis- cursivo simbdlico, dotado da ilusio de homogeneidade, comple- tude, fechamento e transparéncia, que vai instaurar-se a producio de leitura. Cabe, nesse passo, pensar como se processa a pratica da leitura sobre um texto dotado de tais caracteristicas, isto é, so- bre um texto que é uma heterogencidade estruturada, da qual decorre 0 efeito-texto. Para tanto, é necessério refletir um pouco sobre o leitor. Em primeiro lugar, é preciso frisar que o leitor também é um sujeito interpelado ideologicamente e identificado com uma Formacao Discursiva. Isso implica dizer que 0 sujeito-leitor vai ocupar uma posigdo-sujeito em relagao aquela ocupada pelo su- jeito-autor, com ela identificando-se ou nao. Ou seja, 0 sujeito- leitor vai produzir sua leitura desde seu lugar social e este pode ou nao coincidir com o lugar social a partir do qual o sujeito-autor produziu o texto. Por conseguinte, a produgio de leitura vai mobilizar, num primeiro momento, essas duas posi¢Ges-sujeito. Elas estabelecem entre si um processo de interlocugéo que é travado no interior do espaco simbélico desenhado pelo efeito- texto. Cabe 4 fungao-leitor concordar, identificando-se com a posigao-sujeito ocupada pelo autor, ou discordar, discutir, criticar a posi¢io-sujeito assumida pelo sujeito-autor."” Em ambos os "Cf. Pécheux (1988, p.163), esse esquecimento € indicativo de que a meméria discursiva nZo constitui um processo consciente dominado pelo sujeito. Ao contririo. O sujeito nao tem consciéneia das redes discursivas que atravessam e dao sustentagao ¢ consisténcia ao scu dizer. "Em A pratica discursiva da leitura, publicado em A Leitura e os Leitores (Orlandi, 1998), discuto esse movimento de leitura praticado pelo sujeito-leitor. Este, ao nao- identificar-se com o sentido produzido pelo sujeito-autor, produz um movimento de leitura de que resulta a desidentificagdo com os sentidos propostos pelo texto ¢ a construgao de um efeito de sentido antagénico que o inscreve em uma formagio discursiva de leitura, como discursiva distinta da qual o leitor emerge, nessa prat efeito-leitor. Da heterogeneidade do discurso a heterogeneidade do texto... | 35 casos, 0 leitor instaura 0 seu proprio trabalho discursivo, a pratica discursiva da leitura, Entender que o sujeito-leitor entra em interlocugao com © sujeito-autor através do ¢féifo-texto implica Pressupor também que © sujeito-leitor vai entrar em contato com uma heterogeneidade estrulurada pelo sujeito-autor e com ela interagir. Ou seja, o su- jeito-leitor, ao dialogar com o ¢feito-texto, tem a ilusio de que se trata de uma superficie homogénea e que a tinica voz com a qual se defronta é a do sujcito-autor, quando sabemos que ai estao também representadas outras vozes além daquela do autor, Re- firo-me As outras posi¢gdes-sujeito que af se fazem presentes atra- vés dos recortes que o autor mobilizou ¢ textualizou. Vale dizer: as vozes provenientes de outros textos, de outros discursos, de outras formacdes discursivas. Ou seja, a interlocugio estabelecida pela pratica discursiva de leitura lanca o leitor em uma interdis- cursividade insuspeitada, que o faz interagir com todos os outros Sujeitos inscritos no ¢eito-texto pelo viés dos recortes nele textua- lizados pelo sujcito-autor, e no apenas com o sujeito-autor. Por conseguinte, a natureza da interlocugao" instaurada pela produ- ao de leitura é bastante complexa e bem distante de uma interlo- cu¢ao intersubjetiva que poderia ser aqui entendida como sendo travada apenas entre as duas posi¢Ges-sujeito ocupadas pelo autor € pelo leitor. Essas posicdes-sujeito estio claramente postas nesse Pfocesso, mas, por tras delas, outras posi¢Ges-sujeito, outras vo- zes, embora muitas vezes andnimas e freqiientemente invisiveis, entram nessa interlocugo. E isso torna a interlocugio produzida Pela pratica da leitura altamente heterogénea também. Entretanto, é preciso pensar que essa interdiscursividade nao é dada diretamente pelo efeito-texto, pois foi cuidadosamente ae WEm A Fala dos Quariéis e as Outras Vozes (1997), trabalho detidamente 0 modo Aamo © sujeito do discurso estabelece a interlocugdo discursiva em seu discurso, » estou observando novamente esse processo, mas de seu outro extremo, do Ponto de vista do leitor, entendido aqui enquanto sujeito-leitor. & interessante, no ©a8o da leitura, pensar que 0 processo de interlocugao discursiva instaura-se a cada Nova producao de leitura. 36 | ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS ocultada pelo trabalho de textualizagio produzido pelo sujeito- autor. Dito de outra forma: o interdiscurso se atravessa e se pre- sentifica na materialidade textual sob a modalidade de uma pre- senga ausente. Ou, nas palavras de Courtine (1982), “ausente, porque ela funciona ai sob o modo do desconhecimento” (indursky & Leandro Ferreira, 1999, p.21). Presente mas invisivel, vale dizer, opaca. Em outras palavras, vai depender das condigées de produgao de leitura de cada sujeito-leitor reconhecer essa in- terdiscursividade. Ou seja, cada sujeito-leitor tem um dominio maior ou menor do contexto em que foi produzido o texto. Acrescente-se a isso que cada sujeito-leitor tem sua histéria de leituras, podendo ou nao identificar 0(s) texto(s) ou recortes tex- tuais que, conscientemente ou nao, o sujeito-autor mobilizou. Da mesma forma, podera ou nao reconhecer a rede interdiscursiva’’ que subjaz ao texto. E essa histéria de leituras pessoal do leitor vai determinar sua maior ou menor interag3o com a interdiscursi- vidade constitutiva do ¢féito-texto a set lido. Tais fatores consti- tuem as condigdes de produgao de leitura de cada sujeito-leitor. Vale dizer que o texto em si nao garante que o sujeito-leitor per- ceba toda a alteridade que o constitui. Acrescente-se a isso que cada sujeito-leitor, tendo sua prdpria historia de leituras, pode estabelecer relagdes diversas, mobilizando uma interdiscursivi- dade diferente daquela do sujeito-autor. Isso igualmente integra suas condigdes de produgao de leitura. Por conseguinte, a cada novo sujeito-leitor, novas relages podem ser estabelecidas, novas leituras podem ser produzidas, novos efeitos de meméria podem ser mobilizados, novas interpretagdes podem ser projetadas. EF. é esse trabalho discursivo de atribuicao de sentidos, instaurado pela producao da leitura, que © constitui em sujeito-leitor, Diria mesmo que a pratica discursiva da leitura instaura uma disputa de interpretagdes entre o sujeito-leitor, o sujeito-autor ¢ todas as 19 r Ae A Refiro-me aqui & extensa produgao discursiva que jé foi produzida em tomo de um mesmo tema, examinando-o sob Angulos convergentes, diferentes, divergentes, con- tradit6rios ou antagdnicos e que constituem a meméria social dessa rede discursiva, inscrevendo-a no seio de priticas discursivas. Da heterogeneidade do discurso & heterogencidade do texto... | 37 outtas vozes andénimas provenientes do interdiscurso, pelo viés do ¢feito-texto. Mas tentemos ver um pouco mais de perto o que sucede com 0 éfeito-texto quando submetido 4 pratica discursiva da lei- tura. Como vimos anteriormente, 0 sujeito-leitor aproxima-se do texto a partir de seu lugar social, de sua posicao-sujeito, e 0 ob- serva 4 luz de seu contexto sécio-histérico, cultural, politico e econdmico. Mas nao apenas isso. Aborda-o igualmente ao abrigo de sua histéria de leituras e de outros discursos que ressoam desde 0 interdiscurso, atravessando-se em sua leitura. Refiro-me, aqui, 4 memoria discursiva,” 4 memoria do dizer, onde saberes de diferentes ordens encontram-se reunidos, de forma fragmentada, contraditoria e lacunar,” onde encontram-se imbricados saberes mais 0u menos conscientes, mas também e, sobretudo, onde res- soam saberes andnimos, da ordem do inconsciente. Em suma, ler é mergulhar nessa teia discursiva invisivel, constituida de palavras anOnimas ja-ditas e j4 esquecidas que constituem um “corpo s6- cio-histérico de vestigios” a serem lidos (Pécheux, In: Maldidier, 1990, p.286). Trata-se do que Pécheux designou de “meméria so- cial inscrita em praticas” (Pécheux, 1984, p.262). E a leitura, tal como a proponho, é, sem divida, uma dessas praticas. Munido dessa “bagagem”, 0 sujeito-leitor passa a intera- git com 0 efeito-texto, este espago discursivo simbolicamente fe- chado, acabado e completo, com ele discutindo, debatendo, argu- mentando. Dele extraindo implicitos, pr dos. E essa postura critica do sujeito-leitor vai promovendo a ssupostos e subentendi- Memoria essa que pode estar mais ou menos explicitada, mais ou menos lembrada, mais ou menos esquecida, e que se reconstitui de forma fragmentada ¢ lacunar pelo Viés do proceso de leitura, ai produzindo 0 que Courtine (1981) designou de efeito de meméria, que faz ressoar de forma mais ou menos indistinta no texto que esti Sendo lido 0 ja-dito, o j-conhecido e o igualmente jé-esquecido. Para ampliar a reflexio a respeito do papel da meméria, conferir Courtine, La Toque de Clémentis. Trad. bras.: O Chapéu de Clémentis: observagoes sobre a Meméria e o esquecimento na enunciagdo do discurso politico”, tradugao de Marne Rodrigues de Rodrigues. In Indursky & Leandro Ferreira: Os Muiltiplos Territérios da Andlise do Discurso, 1999. ——y 38 | ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS “desconstrugao” do efeito-texto, ou seja, o sujeito-leitor, através da produgio da leitura, vai desestabilizando aquela superficie que parecia tao bem estruturada e homogénea, ai reconhecendo e/ou introduzindo elementos que lhe so externos. Em suma, seu tra- balho discursivo de leitura consiste em desestruturar o efeito- texto, por ser ele um espaco discursivo simbolicamente estrutu- rado. Decorre dai que, sob 0 efeito da produgao de leitura, aquele texto que parecia tio bem estruturado se desestrutura; que aquele efeito-texto que se apresentava tio homogéneo reaparece na ple- nitude de sua heterogeneidade; que aquela pega de linguagem, que parecia um espaco enunciativo dotado de completude, pode transformar-se em um espaco discursivo fortemente lacunar. La- cunas que af sc instauram apesar de todos os esforgos homoge- neizantes despendidos pelo sujeito-autor em seu trabalho discut- sivo de textualizacao. Persistem a sua revelia e retornam sob o efeito do trabalho discursivo da producao de leitura, realizado pelo sujeito-leitor. E, por serem o fechamento, a homogeneidade ¢ a completude do texto propriedades estritamente simbédlicas, pelo viés desse trabalho discursivo de desconstrugao do efeito- texto, 0 sujeito-leitor desestabiliza igualmente aqueles sentidos que pareciam tio bem estabilizados, tao consistentes, tao eviden- tes em seu ¢eito de transparéncia. Decorre dai o efeito de inconsistén- aid” de que fala Courtine. Esse é 0 resultado do trabalho discur- sivo da produgio de leitura: desestabilizar sentidos que parecem estabilizados, podendo mesmo leva-los ao deslocamento, a de- tiva, 4 ruptura. E, neste caso, produzindo uma leitura que se afasta fortemente dos sentidos pretendidos pelo sujeito-autor, que se afasta de uma leitura de identificagio com os sentidos produzidos a partir da posigdo-sujeito por ele ocupada, deriva que pode conduzir a atribuicao de sentidos por parte do sujeito-leitor produzida desde uma posicio-sujeito diversa e, freqiientemente, antagOnica, num claro movimento de contra-identificagio ou mesmo que desidentificagdo com os sentidos produzidos pelo 2, pe: Nesse caso, 0 interdiscurso aparece como vazio, espago de deslocamento, de rup- tura, de descontinuidade e de divisdo na cadeia do reformulavel (Courtine, 1999, p.22). | Da hetcrogencidade do discurso & heterogeneidade do texto... | 39 _ sujeito autor. Tais possibilidades decorrem do que chamei de _ movimentos de leitura. E esses movimentos sé podem ocorrer se entendermos 0 texto como um espaco discursivo simbélico, do- tado de todas as caracterfsticas de que tratei acima, ou seja, seu fechamento € puramente formal e imagindrio, nao oferecendo nenhuma garantia de manuten¢io de seus sentidos. ‘ Por essa razao, retomo, aqui, minha afirmacio anterlor, “quando dizia que 0 texto € uma heterogeneidade estruturada, para re- _lativiza-la nesse passo. Agora posso afirmar que 0 fexto é uma hete- cidade provisoriamente estruturada pelo trabalho discursivo de alizagio € essa estruturacao proviséria é responsavel pelo efeito-texto. Mas, no momento em que esse éfeito-texto & objeto de a producio de leitura, essa pretendida estruturacio se desva- €, ¢ 0 efeito-texto dissolve-se ao ser exposto a novas alterida- s, 4 luz da mem6ria discursiva do sujeito-leitor. Por esta mesma , reafirmo que o efeito-texto € um espago discursivo simbo- nente fechado, ilusoriamente dotado de homogeneidade e de mpletude. i Mas a producio discursiva da leitura nfo se limita a des- truit o éfeito-texto produzido pela fungio-autor. Para que ela mpta seu ciclo, impGe-se que o texto seja recomposto. Ao pre- cher as “brechas” produzidas por sua pratica discursiva de lei- © sujeito-leitor reconstrdi o texto, d4The uma nova estrutu- 40, igualmente heterogénea e provisdria. Esse é 0 trabalho dis- sivo do sujeito-leitor: desconstruir 0 efeito-texto, produzindo echas” em sua estruturacao, as quais se constituem pelo atra- nento da interdiscursividade na pratica de leitura realizada © efeito-texto. Essas “brechas” sao preenchidas pela pratica iva da leitura, 4 luz da memoria discursiva. Ou seja: 0 tra~ discursivo da leitura permite um novo processo de estrutu- ) da heterogeneidade, através do qual novamente se instaura ito de homogeneidade, onde os sentidos aparentemente se esta- me novamente respondem pelos ¢éitos de transparénca e éncia. E, desse trabalho discursivo de reestruturagio do duzido pelo trabalho discursivo da leitura, 0 texto é 40 | ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS resignificado, dele resultando a reconstrugio de um novo efeito- texto. Dito diferentemente: na pratica discursiva da leitura, 0 su- jeito-leitor precisa inscrever-se na ordem do memorial para en- tretecer o texto 4 teia discursiva do interdiscurso e percebé-lo em sua existéncia histdrica e, assim, poder signific4-lo, mas, ato con- tinuo, ja € imperioso esquecer-se dessa memoria para poder re- significar o texto, produzindo novas lagadas com a teia do inter- discurso. Ou seja: a produgao da leitura entrelaga inestricavel- mente memoria e esquecimento.”* Esquecimento que, freqiiente- mente, fica ressoando a distancia e que, por vezes, faz retorno. E este ciclo completo (produgdo do texto X produgao da keitura) que torna a leitura uma pratica social, porque plenamente historicizada. Neste sentido, podemos dizer, juntamente com Orlandi, que “... a leitura € 0 momento critico da constituicao do texto, pois € 0 momento privilegiado do processo de interagio verbal...” (1987, p.193). O sujeito-leitor emerge deste processo como um sujeito-autor, pois ele passa agora, por sua vez, a orga- nizar as diferentes vozes andnimas da interdiscursividade que atravessam ¢ dao sustentagao a sua pratica de leitura, assumindo a responsabilidade pela produgio de um novo efeito-texto, re-signi- ficado por sua produgio de leitura, tio heterogéneo e provisério quanto aquele que Ihe deu origem. Este momento de re-significa- a0 e de restabelecimento de uma nova estruturag’io proviséria do efeito-texto reinstaura o texto enquanto espaco discursivo simbolicamente fechado e completo. Pensar a pratica discursiva da leitura consiste, pois, em um trabalho intenso de desestruturagio/estruturagao do efeito- texto, ou, se preferirmos, de um tecer, destecer e retecer 0 texto, entrelacando-o inexoravelmente 4 teia do interdiscurso. SS Courtine (1981) fer a relandin entra mamAein a terogeneidade do discurso a heterogeneidade do texto. | 41 Este € 0 movimento que leva da heterogencidade do dis- a heterogeneidade do texto ¢ estas sio as implicagdes da rogeneidade textual na produgio discursiva da leitura. Parece-me dificil “ensinar” a produzir leitura tal como a concebendo aqui, pois essa leitura, ao ser “ensinada”, ja se- eitura do professor e nao a do aluno. Mas parece-me abso- wn trabalho discursivo que lanca 0 sujeito-leitor em um processo rico de compreensao/interpretacao/ disputa/producao de sentidos. -se de uma pratica social que mobiliza a interdiscursividade e nduz o aluno, enquanto sujeito histdrico, a inscrever-se em disputa de interpretacdes. Somente criando situagdes varia- e freqiientes que facultem aos alunos posicionarem-se cri diante dos textos, tornando-os capazes de produzir mo- de leitura,* possibilitando-lhes desconstruir 0 efeito-texto truir um novo efeito-texto, que nao é mais idéntico ao , € que teremos éeitores maduros, leitores que percebam que mantém relagGes indeléveis com uma rede de interdiscur- subterrinea ¢ invisfvel que lhe da sustentagio, Faz-se ne- , antes de mais nada, que o professor saiba isto para que © aluno a inscrever-se nessa pratica social que 0 con- a tornar-se um sujeito-leitor ativo e critico, capaz de emer- pratica discursiva da leitura como um sujcito-autor, pronto tar ¢ posicionar-se, historicizando, atribuindo e produ- sentidos, enfim, re-significando textos, tomados na fugaz dade simbolica do efeito-texto e seus possiveis efeitos ‘VUZ, Jacqueline, Heterogéneité montrée et hétérogencité i cn Pour une approche de I’autre dans le discours, DRLAV, SS rr 42 ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. 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R6le de la memoire. In; ACHARD, Pierre et alii (Org.). Histoire et linguistique. Paris: Ed. de la Maison des Sciences de I’ Homme, 1984, 9 ENSINO, DISCURSO E MUDANGA DA PRATICA DISCURSIVA E SOCIAL" Maria Cecilia de Lima’ Introdugao Hi indicagdes de que a emancipacio da mulher nao esteja ocorrendo de maneira uniforme e progressiva em todas as instdncias e instituigdes sociais brasileiras. Ea emancipagao desigual das mulheres contribui para a manuten- gio da relacio entre dominante e dominado, dificultando a mu- danga social. Verificamos, por meio de uma pesquisa etnografica colaborativa se, no contexto da escola e da familia, o discurso é emancipatorio ou nao no que se refere as relagdes de género so- cial' ¢ ainda averiguamos as praticas discursivas ¢ as praticas de letramento dentro da escola, certificando se as mesmas contri- buem para a mudanga ou para a reprodugao do status quo no que se refere as relacdes de género. “Este artigo é parte da dissertagao de mestrado defendida na Universidade de Brasilia sob a orientagao da Profa, Dra. Maria Izabel Santos Magalhies. “Doutoranda em Lingiifstica pela Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho (UNESP ~ Araraquara) 'Género social refere-se as categorias masculino e feminino, categorias estas que normatizam as relagdes sociais, pois, no nivel da sociedade, nao existem fenémenos naturais. 170 | A LEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS. Sabemos que o estudo de género por si s6 nao € sufici- ente para climinar as desigualdades existentes, pois outras catego- rias como raga, etnia, classe social também sao fontes segregado- ras que sepatam os grupos sociais ¢ até membros de um mesmo grupo. Mas interessa-nos analisar a categoria génera. " Para atingir tal objetivo, selecionamos, como dados: a) textos do livro didatico de portugués adotado na Es- cola Estadual Alda Mota Batista, em Uberlandia, Mi- nas Gerais; b) entrevistas com duas professoras de portugués; ©) redagées de alunas(os); € d) entrevistas com alunas(os). Focalizamos a quinta, sexta e sétima séries do ensino fundamental, com cinco turmas e alunas(os) na faixa etaria entre 12 € 24 anos. Buscamos analisar o discurso no que diz respeito as relagdes de poder, como também o seu potencial para mudar as priticas sociais e conseqiientemente a sua forga para promover tais mudangas. A base tedrica para andlise dos dados esta apoiada na Teoria Social do Discurso e na Teoria da Consciéncia Lingiiistica Critica, propostas por Fairclough (1989, 1992a, 1992b), ¢ na Teo- ria do Letramento, proposta por Street (1984). Para a coleta dos dados foi utilizada a E¢nografia Critica, por permitir uma maior aproximagao entre pesquisador(a) ¢ co- munidade pesquisada e, além disso, por levantar questées com relagio As desigualdades sociais. Este trabalho est4 assim estruturado: uma introducao, trés secdes, consideragoes finais e referéncias bibliograficas. Na segio 1, sio apresentados os fundamentos tedricos que sustentaram este trabalho, onde serao discutidas a Teoria So- cial do Discurso e a Teoria da Consciéncia Lingiiistica Critica, com base em Fairclough (1989, 1992a, 1992b), as concepgGes de Street (1984, 1983) a respeito de letramento ¢ ainda, com base em varias autoras(res) como Magalhies (1995), as relacdes de género social. Ensino, discurso ¢ mudanga da pratica discursiva e social | LZ Na segio 2, apresenta-se 0 processo de coleta de dados, que foi norteado pelas idéias de Thomas (1993) e Cameron et al. (1992) sobre a E*nografia Critica, abordando a comunidade pes- quisada, a pesquisa de campo, a coleta de dados e a selecio do conpus. Na segio 3, é feita a anilise dos dados com base na Teo- ria Social do Discurso. Nas consideragdes finais, esto os resultados da pes- quisa, mostrando o que a analise dos dados indica sobre a cons- trugao da identidade da mulher no contexto da escola e da familia. 1 Fundamentos teéricos A Anilise de Discurso Critica e a Consciéncia Lingiiis- tica Critica, propostas por Fairclough (1989, 1992a, 1992b), so as pilastras mestras para a anilise dos dados. O uso de tais teorias deve-se ao fato de Fairclough considerar a linguagem como parte da sociedade, como um processo social. Sendo ela, a linguagem, um processo social, torna-se uma aliada na Promogao de mudan- gas ou na manutencao o sfafus quo. Pot isso, Fairclough, ao invés do termo “linguagem”, utiliza “discurso”. 11 Teoria Social do Discurso, Consciéncia Lingiiistica titica e Andlise de Discurso Critica A Teoria Social do Discurso, segundo Fairclough (1989, .12), explora o papel da linguagem no exercicio, na manuten¢ao ©u mudanga das relagdes de poder. Ao falar em linguagem, Fairclough utiliza o termo discurso pelo fato dele, o discurso, ser itendido como pratica social. Para o autor, a mudanga nas prati- discursivas pode preparar o caminho para mudangas nas pra- leas sociais quer seja para a emancipacio do(@) cidadao(@) ou io. 172 _| |ALLEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS Fairclough (1989) enfatiza a relacao dialética entre dis- curso e estrutura social — o discurso molda a sociedade e também é moldado por ela. Sendo assim, temos o discurso sendo restrin- gido pela sociedade através de relagdes de classe, género, raga ou por contextos € instituigdes, como a escola, por exemplo. Fairclough (1992a, p.64), mostra-nos os efeitos constitu- tivos do discurso: 1) contribui para a construgao de identidades sociais ou posicao de sujeitoz 2) constréi relagGes sociais; 3) contribui para a construgao dos sistemas de conheci- mento e crengas. Eisses efeitos constitutivos do discurso nao sao transpa~ rentes pata toda a sociedade. O discurso produzido por uma mi- noria é veiculado com o intuito de fazer suas ideologias domi- nantes assujeitarem® as pessoas para com isso naturalizar suas praticas dominantes. Para Fairclough (1992a), esse efeito constitutivo do dis- curso deve-se ao fato de ele ser pratica social e também discur- siva. Como pratica discursiva, vem a ser 0 processo de interacio social no qual o texto é uma parte que é envolvida pelos proces- sos sociais de produg’o, interpretagao e consumo. Isso significa dizer que 0 texto traz tracos formais que nos mostram como ele foi produzido e, por isso, como esses tragos podero ser inter- pretados e explicados. Os processos de producao e de interpretacao de textos pressupdem, por parte de quem os produz ou interpreta, proces sos sociolingiifsticos através dos quais as pessoas produzem e in- terpretam o que é socialmente internalizado e que é, portanto, Lugar social ou lugar de sujeito é o lugar que cada individuo pode ocupar em uma dada pratica discursiva ou social. x a 'O assujeitamento faz com que o individuo ocupe um determinado lugar, fazen assim, parte de um grupo. O assujeitamento é ideoldgico, uma vez que a Pe pensa ser dona de sua vontade, mas de fato nfo o é. Aquele lugar foi socialme! definido. Ensino, discurso © mudanga da pritica discursiva ¢ social | 173 ideologicamente produzido, Esses processos sio denominados Recursos dos Membros (RMs). Devido as desigualdades sociais, os RMs também sio desigualmente distribuidos, 0 que contribui para a construcao de diferentes praticas sociais e discursivas que revelam diferentes formas de produgao, consumo ¢ distribuicio de textos. A Consciéncia Lingiiistica Critica (Fairclough, 1992b) tem muito a contribuir com a emancipacao das pessoas domina- das. Essa consciéncia tem por objetivo mostrar como as Praticas sociais ¢ discursivas sio moldadas por relagées de poder social ideologicamente construidas € veiculadas; tais praticas, portanto, nao sao naturais, mas sim, naturalizadas,* Com esse pensamento, Fairclough (1992b, p.3) observa que a Consciéncia Linguistica Critica vem a ser um pré-requisito para a efetiva cidadania democritica e deve, portanto, ser “consi- _derada como um direito dos cidadaos, especialmente das criancas que se desenvolvem para a cidadania no sistema educacional,” sendo também um pré-requisito para a conscientiza¢gio das(os) eidadis(ios) das relacdes de poder exercidas por meio da lingua- gem ¢€ que naturalizam relagdes desiguais, também de géenero. Fairclough (1992b, p.8) caracteriza a Consciéncia Lin- ‘giifstica Critica em termos de cinco assertivas, a saber: 1° —“O discurso molda a sociedade ¢ é por ela moldado, luma rela¢4o dialética.” A sociedade determina que tipo de linguagem deve ser ada em determinado lugar e tempo, mas, ao mesmo tempo, a iegundo Fairclough (1992a, p.87), “as ideologias cravadas nas préticas discursivas mais efetivas quando se tornam naturalizadas e alcangam o status de senso lum”. Portanto, o discurso naturalizado €, a grosso modo, aquele que a ideologia icula como natural apesar de no sé-lo. ww | A LEITURA EA ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS 2° — “© discurso ajuda a construir (e a transformat) o conhecimento e seus objetos, as relagdes sociais ¢ identidades so- ciais.” O social é constituido pelo discurso. O conhecimento, as telagdes sociais ¢ as identidades sio construidas e reconstruidas pelo discurso. 3° — “O discurso é moldado pelas relagdes de poder ¢ investido de ideologias.” As relagdes de poder esto presentes em toda a socie- dade, Quando alguém é licenciado pata falar em determinada si- tuagao, por exemplo, a(0) professora(or), estamos lidando com uma situagio de poder revestida pela ideologia — a(0) profes- sora(or) sabe ¢ est imbuida(o) de autoridade para falar e contro- lar os turnos das(os) alunas(os). 4° — “O discurso funciona como um marco definidor nas lutas de poder.” As convengées transmitidas por meio do discurso po- dem ser mecanismos de controle e de naturalizacao. 5° — “A Consciéncia Lingiifstica Critica mostra como so- ciedade e discurso moldam um ao outro.” Portanto, desenvolver novas priticas convengdes pode contribuir para a emancipa¢io da sociedade. A Consciéncia Lingiiistica Critica (Fairclough, 1992b) tem como objetivo principal ajudar as pessoas a perceberem como as priticas, principalmente as lingiifsticas, mantém e repro- duzem padrées de dominagio e de assujeitamento. Para fazer isso, a Consciéncia Lingiiistica Critica preocupa-se em veicular um discurso emancipatério — quebra o ciclo de reprodugio da dominagio — e também preocupa-se em fortalecer esse discurso para que as pessoas contestem as praticas que as enfraquecem. Para se fazer Andlise de Discurso Critica, segundo Fairclough (1989, p.25), temos que considerar as condi¢gdes Ensino, discurso e mudanca da pratica discursiva ¢ social | 175 sociais de produgao e de interpretacao do discurso. As condigées discursivas relacionam-se a trés niveis distintos de organizacio social: — 0 da situagio social ou o ambiente social imediato no qual ocorre 0 discurso; —o da instituicao; —o da sociedade. 1.2 Ideologia e hegemonia Para melhor entender a Teoria Social do Discurso, faz- se necessdrio termos idéia do que vem a ser ideologia e hegemonia. Ideologia é a idéia abstrata que, quando veiculada por meio da linguagem, sustenta as relagdes de poder dentro das clas- ses sociais, instituigdes, “impondo sentidos e identidades sem que as pessoas estejam conscientes desse processo. Tais sentidos se tornam comuns porque passam a ser compartilhados pela maioria dos membros de uma sociedade ou instituicio” (Rangel, 1996, p41), adquirindo o sfatus de senso comum, ou seja, tornam-se na- turalizados. Para Thompson (1994, p.58), ideologia é 0 significado mobilizado por formas simbéli- cas (aces, imagens, textos) que servem para estabelecer e sustentar relagées de dominagdo: estabelecer relacdes de dominagéo no sentido de que o significado pode criar e instituir essas relagdes; sustentar, no sentido de que o significado serve para manter e reproduzir relagées de dominagdo por meio dos processos de produgdo de texto. Assim, a ideologia torna-se um sentido veiculado na so- Ciedade com o intuito de sustentar as relagdes de poder existentes € fazer surgit novas relacdes de poder nas quais a minoria domi- nante luta para manter a sua posi¢ao. Esse sentido imposto é veiculado nas praticas sociais, 0 que nos leva a dizer que as instituigdes possuem suas ideologias ¢ ———— ] 176 | ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS a instituigdo educacio também possui a sua ideologia, seus cédi- gos. E no contexto escolar ha a veiculagao de sentidos ideoldgi- cos, que constroem identidades, sendo uma delas a da mulher. Através de codigos, valores que restringem 0 comporta- | mento da mulher na escola de uma maneira diferente em relagao ao homem, temos uma fonte de restricdes 4 emancipagio da mulher. Sendo o discurso um veiculador de significagGes, ideolo- gias que constroem a realidade, por meio das varias dimensdes | das priticas discursivas, ele também pode ser agente de transfor- magées veiculando um sentido fortalecedor e emancipatorio. Em diferentes instituigdes € praticas sociais, as ideolo- gias veiculadas sfo distintas, 0 que confere a elas um carater de constante luta por hegemonia e poder. Essa posigio de hegemonia buscada pelas diferentes praticas é o poder de uma classe em alianca com outras forcas so- ciais; trata-se, entretanto, de um equilfbrio instavel, pois a luta he- geménica vista em termos de articulacio, desarticulagio ¢ rear- ticulacao de elementos. A pratica discursiva, a produgio, distribuicgao ¢ 0 con- sumo (incluindo interpretagio) dos textos é uma faceta da luta hegeménica, que contribui em varios graus para a reprodugao ou transformacio das ordens do discurso” existentes ¢ que também contribui para a reproducio e transformagio das relagées de po- der. As nogdes de poder, ideologia ¢ hegemonia, como vi mos, estio estreitamente ligadas ao conceito de discurso como pratica social, pois segundo Thompson (1994), 0 poder se mani- festa em trés niveis de abstracao: 0 da aco; o das instituigdes so- ciais; o da estrutura social. As relagGes de poder acontecem nesses *A ordem do discurso, segundo Rangel (1996, p.30), “é a ordem social olhada numa perspectiva especificamente discursiva, ou seja, a estruturacao discursiva na qual as pessoas operam, com seus tipos particulares de priticas e convengdes. Assim, ¢ instituigo social ter4 a sua ordem de discurso, mas a sociedade como um também tem a sua ordem de discurso, a qual estrutura as ordens de discurso Varias instituigdes sociais”. Ensino, discurso ¢ mudanga da pritica discursiva ¢ social | 177 trés niveis de abstracao, nos quais o discurso é 0 veiculador de ideologias que podem ser contestadas e transformadas ou nao. 1.3 Género social Sendo o foco deste trabalho verificar como a linguagem constrdi a identidade da mulher, faz-se necessario discutirmos o que seja género social. Podemos dizer que género é uma constru- ¢&o social que define, numa dada cultura, expectativas de com- portamento em relacao a mulheres e homens. Para Santos (1996), 0 género social envolve categorias da realidade que regulam as diferengas entre o que seja conside- tado feminino ¢ masculino. Tais categorias sao construidas por meio das praticas discursivas e, sendo socialmente construidas, regulam as relacdes sociais que se dio por meio de relagdes de poder, ou seja, ha uma assimetria entre os envolvidos. Isso equi- vale dizer que as relagdes entre mulheres ¢ homens sao sécio- historica e culturalmente constituidas, podendo sofrer mudangas de uma cultura para outra ou até mesmo dentro de uma mesma cultura, dependendo da instituic¢ao ou contexto no qual a relacgio mulher/homem aconteca, pois as instituigGes e contextos regu- lam, de modo arbitrério, as convengdes da interagio mu- Ther /homem, Equivale dizer, também, que se tal relacao se da por meio do poder, existe a relacio dominante e dominado. E nesse caso, o das relacdes de género, a mulher tem tido sua identidade construfda de modo submisso, dominado nessa relagio assimé- ica. Sendo uma construgio social veiculada por praticas dis- sivas, é possivel que haja uma mudanca nas relacoes de género ‘ha constru¢io da identidade da mulher caso haja uma mudanga liscursiva, pois segundo a visio proposta por Fairclough (1989, 992a, 1992b), a relacio entre discurso e pratica social é dialética, endo a mudanga discursiva contribuir para a mudanga da pra- social e vice-versa. 178 | ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS 1.4 Letramento Como indicamos na Introdugao deste trabalho, este é um estudo critico de textos escritos: produgées textuais de alu- nas(os) e textos de um livro didatico. O termo “Letramento” é usado por Street (1984, p.1) para designar “praticas sociais e con- cepgGes de leitura e de escrita’”® adquiridas por uma coletividade, Por isso, nao podemos confundi-lo com a alfabetizacio, que é considerada como um conhecimento adquirido individualmente. Segundo Kleiman (1995, p.5), 0 termo comegou a ser usado, nos meios académicos, com 0 propésito de distinguir os estudos sobre 0 “impacto so- cial da escrita” dos estudos sobre as competéncias indivi- duais no uso e na pritica da escrita — a alfabetizagao, cu- jas conotagées escolares destacam as competéncias indi- viduais no uso e na pratica da escrita. Street (1984) enfatiza que as praticas de letramento de- pendem da sociedade em questo e das ideologias nela veiculadas. Para nds, que vivemos numa sociedade centrada na escrita, os eventos de letramento’ possuem grande importancia social: quem nao é letrado, normalmente é marginalizado. Por isso, segundo Kleiman (1995), o letramento é considerado como conjunto de praticas sociais, cujos modos especificos de funcionamento tém implicagées importantes para as fo mas pelas quais os sujeitos envolvidos nessas pratic constroem relagées de identidade e de poder. A aquisi¢ao do letramento vem, as vezes, revestida ideologia da neutralidade, ou seja, considera-se que a lingu: I shall use the term “literacy” as a shorthand for the social practices conceptions of reading and writing. 1, . ‘Segundo Heath (1983), evento de letramento sao “ocasides do dia-a-dia em 4 Palavra seja empregada numa interagio social”. Ensino, discurso ¢ mudanga da pritica discursiva ¢ social | 179 escrita seja neutra, nao levando em conta fatores sociais. Segundo Street (1984, p.2), 0 modelo assume uma diregdo tinica na qual o desenvolvi- mento do letramento pode ser tragado, e associado com “progresso”, “civilizagao”, liberdade individual e mobili- dade social. O modelo tenta distinguir letramento de esco- laridade.® Podemos reconhecer dois modelos de letramento: 0 au- ténomo ¢ 0 ideoldgico. 4.1 O Modelo Auténomo de Letramento O Modelo Auténomo de Letramento é uma concepgao le pratica de leitura e de escrita que nao leva em consideragao fa- res € contextos sociais de sua producao e interpretacao. Como sa concep¢ao nao considera fatores sociais, a leitura e a escrita considerados blocos completos em si mesmos, sem conexao contextos externos a ela. Considerando a escrita um bloco fechado em si mesmo, Modelo Aut6nomo de Letramento passa uma visio fragmen- la da realidade, pois a alfabetizagao passa a ser vista somente o Angulo de teorias cognitivistas que nao levam fatores sociais consideragao quando se fala em aquisigao da escrita, passando ser considerado fator primordial para o progresso, civilizagao, gresso social, emancipacao da mulher. Mas sem considerar a realidade social, nao se pode espe- que essa concepcio de letramento trabalhe em prol da consci- ia critica das pessoas e ainda para a efetiva emancipagio da r. Tem-se a idéia que a distribuicio do conhecimento é tra, por isso contribui para a igualdade entre as pessoas. Mas 06 ‘model assumes a single direction in which literacy development can be traced Associates it with “progress”, “civilization”, individual liberty and social ity. It attempts to distinguish literacy from schooling. 180 | ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS O conhecimento veiculado através dessa concep¢’o, nao considerando a pratica social, veicula, de modo consciente ou nao, as ideologias da sociedade dominante. E como nao leva o educando a ter uma consciéncia critica, essas ideologias nfo sio contestadas, Com isso, as pessoas nao percebem as manipulages sob as quais elas estao se assujeitando. Uma das ideologias veiculadas no Modelo Auténomo de Letramento que manipulam um grande numero de educandos é a crenca naturalizada de que se uma pessoa fracassar na rede oficial de ensino é por mera responsabilidade dela. Ou seja, os fracassos entre os iletrados nao sao atribuidos ao sistema, ou seja, 4 reali- dade social, mas ao individuo. 1.4.2 O Modelo Ideolégico de Letramento O Modelo Ideoldgico de Letramento pressup6e varias praticas de linguagem escrita, ou seja, nao s6 a alfabetizacao, mas todos os usos da escrita, “enquanto sistema simbdlico e enquanto tecnologia, em contextos especificos, para objetivos especificos” (Scribner e Cole, apud Kleiman, 1995). O Modelo Ideoldgico de Letramento vem a enfatizar que tais praticas sao socialmente de- terminadas, contribuindo para manter desigualdades de poder para construir identidades enfraquecidas e propoe fazer vir 4 tona © carater dissimulado da ideologia, quebrando assim, sua hegemonia. Como considera os diversos usos sociais da linguagem esctita, esse modelo considera a oralidade e 0 letramento, evi- tando a dicotomia analfabeto x alfabetizado, e fornecendo uni- dade ao processo. Nessa perspectiva, tanto a linguagem oral como a escrita se ‘misturam’ nos diversos dominios institucionais para legitimar as relacdes de poder. O letramento ideolgico pode contribuir para uma nova pratica de ensino que leve alunas ¢ alunos a terem uma visio cri tica da realidade, fortalecendo suas identidades como individuos € como grupo. Ensino, discurso e mudanga da pritica discursiva € social | 181 O Modelo Ideolégico de Letramento, juntamente com a Anilise de Discurso Critica e a Consciéncia Li tiistica Critica fornecerao supotte tedrico para a analise dos dados. 2 A Etnogratia Nesta seco, apresentaremos 0 processo de coleta de da- dos que foi norteado pelas idéias de Thomas (1993) e Cameron et al. (1992) sobre a Etnogtafia Critica, abordando a comunidade pesquisada, a pesquisa de campo, a coleta de dados ea selecio do corpus. 2.1 A ctnografia critica A etnografia critica, segundo Thomas (1993, p.vii), é um meio de aplicar uma viséo de mundo subversiva a l6gicas convencionais da cultura investigada. Melhor di- zendo, ela oferece um estilo mais direto de pensar sobre as relacoes entre conhecimento, sociedade e agdo polt- tica. A premissa central é que pode-se ser cientista e crt- tico, e que a descrigéo emogrdfica oferece um meio pode- roso de criticar a cultura e o papel da pesquisa dentro da mesma? A pesquisa etnografica critica percebe a pesquisa como um processo no qual a(0) pesquisadora(or) integra-se na comuni- dade pesquisada e seu relatério final representa uma visao da cul- tura pesquisada, Esta metodologia de pesquisa leva pesquisado- Tes(as) e pesquisados(as) a terem uma proximidade maior que nos mMétodos tradicionais de pesquisa. eee eee *Critical ethnography is a way of applying a subversive worldview to the Sonvencional ethnograph. Rather, it offers a more direct style of thinking about the lationship among the knowledge, society, and political action, The central ses is that one can be both scientist and critical, and that ethnographic Scription offers a powerful means of critiquing culture and the role of research ithin it, 182 | A LEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS Temos, segundo Thomas (1993, p.4), a etnografia con- vencional e a etnografia critica. Na etnografia convencional, o pesquisador descreve uma cultura; j4 na etnografia critica o pes- quisador estuda a cultura com o propésito de descrevé-la e de transforma-la, adicionando objetivos emancipatérios aos seus estudos para mostrat a comunidade com a qual trabalha, as re- pressdes € ideologias das quais sio vitimas. Por isso, a etnografia critica é hermenéutica, emancipatéria e fortalecedora. E her- menéutica, pois é interpretativa e trabalha para evitar uma inter- pretacao equivocada dos dados pelo prisma dos simbolos cultu- rais e do senso comum, E. emancipatéria por alertar as pessoas para as ideologias que constituem sua cultura e que impedem que as mesmas tenham uma visio critica do todo que as cerca. For- nece, assim, subsidios para que as pessoas possam desnaturalizar © senso comum ¢ perceberem valores, conceitos e atitudes que impecgam uma mudanga social em prol das minorias. Esta metodologia permite uma maior aproximagio entre pesquisadoras(res) e pesquisadas(os). Por isso, ha uma participa- Gao ativa das(os) pesquisadas(os), pois sentem que sao sujeitos na pesquisa e nao somente objetos da mesma. Além disso, as(os) pesquisadoras(res) nao permanecem passivas(os) diante dos pro- blemas e necessidades da comunidade pesquisada. A pratica diaria mais proxima dos individuos envolvidos na pesquisa faz com que ambos se conhecam, que construam juntos o resultado da pes- quisa e que, principalmente, reflitam sobre a cultura permitindo a critica ao senso comum e um repensar de crengas e valores que levem ambos a uma transformac4o construtiva e a uma postura mais fortalecida frente as tensdes ideoldgicas sociais. 2.2 A mulher e a construgio de sua identidade Para a andlise de parte dos dados obtidos, seguiremos 4 proposta de Fairclough (1992 a), ou seja, as etapas de descri¢40, de interpretacio e de explicagio considerando, segundo a visio tridimensional do discurso, os niveis situacional (textual) institu- cional e societario. Para Fairclough (1992a, p.75), Ensino, discurso ¢ mudanga da pratica discursiva ¢ social 183 4 andlise textual pode ser organizada sobre quatro itens: “vocabuldrio”, “gramdtica’, “coesdéo” e “estrutura tex- tual”. Estes podem ser pensados como uma escala ascen- dente: 0 vocabuldrio, que lida principalmente com as pa- lavras individuais, a gramdtica que lida com as palavras combinadas em oragdes e sentencas; a coesdo que lida com 0 modo como as oragées e sentengas estiio unidas, ¢ estrutura textual que lida com (...) as propriedades dos textos. E ainda, distingo e adiciono trés linhas mestras que serao usadas na andlise da prética discursiva mais que andlise textual, embora elas certamente envolvam tragos formais dos textos: a forga dos enunciados, i. e. que tipos de atos de fala (promessas, pedidos, ameacas, etc.) eles constituem; a coeréncia dos textos, € a intertex- talidade dos textos." Portanto, neste trabalho, serio analisadas as categorias: — vocabulario; — gramatica; — coesao; — estrutura textual; — forca do enunciado; — coeréncia textual; — intertextualidade. Na andlise do vocabulario, verificaremos 0 peso semén- tico dos itens lexicais, principalmente aqueles presentes nos gru- Pos nominais e verbais. Verificaremos se eles sio ou nao perten- centes ao discurso de controle da mulher (Magalhaes, 1995) com Text analyses can be organized under four main headings: “vocabulary”, “grammar”, “cohesion”, and “text structure”. These can be thought as ascending in scale: vocabulary deals mainly with words combined into clauses and sentences, Cohesion deals with how clauses and sentences are linked together, and text structure deals with large scale organizational properties of texts. In addition, I distinguish a further three main headings which will be used in the analysis of discourse practice rather than (ext analyses, though they certainly involve formal features of utterance, what sorts of speech acts (promises, requests, threats, etc.) they constitute; the ‘coherence” of texts; and the ‘intertextuality’ of texts (Fairclough, 1992, p.75). os | A LEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS base na ideologia da familia patriarcal, segundo Santos (1996), deixando perpassar o esteredtipo da mulher somente em seu pa- pel de mie, esposa, dona de casa. Na parte da andlise da gramatica, verificaremos a estru- turacdio das oragées e certos elementos nelas presentes como pro- nomes, tempos verbais, substantivos, adjetivos. Na coesio textual, verificaremos os clos coesivos usados eas relacées que os mesmos estabelecem para a construgao argu- mentativa do texto. Com relacao a estrutura textual, verificaremos os papéis delineados para a mulher. Outros itens para a andlise propostos por Fairclough (1992, p.75) sfo: a forca do enunciado, na qual verificaremos se os mesmos sio ou nfo contestados; a coeréncia do que é veicu- lado no texto ¢ a intertextualidade, em que verificaremos 0 texto do outro nos textos analisados e sua relagao com a ideologia do- minante. Tais itens de andlise nao ocorrem nos textos de maneira isolada, Ha uma fusao entre os mesmos. Por isso, nao parece pru- dente dividi-los em segdes, no momento da anilise. Nos trechos de redagées e de entrevistas abaixo, estare- mos analisando a construgao da identidade da mulher, verificando se o discurso veiculado é, segundo Magalhies (1995a), o de libera- ¢4o ou o de controle sobre a mulher. 3 Andlises 3.1 A construgao da identidade da mulher sob a ética de um aluno O aluno Tércio Rodrigues" usa, em seu texto, o dis- curso especifico da instituicao religiosa, que normatiza a familia 4 Para resguardar a identidade das(os) participantes da pesquis modificados. seus nomes foram Ensino, discurso ¢ mudanga da pratica discursiva ¢ social | 185 na qual a mulher deve obediéncia a0 homem e a Deus, e é ainda responsivel pela moral da familia. Podemos verificar isso na fora dos enunciados presen- tes no texto de Tércio (ver anexo), no qual a presenga do verbo aceitar no presente do indicativo vem reforcar o discurso auto rita- rio presente ja na introdugao do texto: a minha familia nao aceita com roupas menores porque sao muito catilicos.... Junto ao verbo no presente, podemos perceber a carga semintica adquitida pela frase com 0 uso do adjetivo menores, que delimita o tipo de roupa a ser usado pela mulher. Tudo isso justi- ficado: ...porque sao muito catélicos... Ou seja, 0 discurso religioso normatiza a vida da familia de Tércio (...A minha familia nao aceita...) sem oferecer resistencia alguma, pois seu discurso esta naturalizado. Segundo Fairclough (1992b, p.87) “as ideologias cravadas nas praticas discursivas sio mais efetivas quando se tor- nam naturalizadas e alcancam o status de senso comum”. Por- tanto, a grosso modo, o discurso naturalizado é aquele que a ide- ologia veicula como sendo natural apesar de nao sé-lo. Ainda no que diz respeito ao discurso religioso normati- zador da vida familiar, Tércio dirige o foco do seu texto para a mulher, ou seja, a sua irma: T—... a minha irma nunca anton com roupa culta porque ela nao gosta usa saia comprida para os homens nao mexe com ela porque as mulheres educada ¢ honestas nao usa roupa culta porque pega mal. Além do discurso religioso presente neste trecho, pode- mos constatat 0 discurso de controle (Magalhaes, 1995a) sobre a mulher, pregando que pega mal ela usar trajes menores, ¢ o andro- centrismo, pregando o recato e a educacao da mulher através do controle do uso de roupas. ‘Tétcio reafirma, em uma entrevista, suas idéias presentes na redacao. fee” | A LEITURA E/A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS P— Seo homem mexe com a mulher por causa da roupa dela, €a mulber que é mal educada on é 0 homem? T-A mulher. P—S6 por causa da roupa? T-E, sé ‘por causa da roupa... Para Tércio, que repete o discurso de controle (Maga- Ihaes, 1995a), nao ha como pensar em uma mulher educada que use roupas curtas. Podemos perceber tal fato na escolha lexical do aluno: wusheres educadas e honestas, pega mal. Os adjetivos usa- dos para as mulheres sio de carga semintica positiva, mas so mente se elas usarem roupas compridas. Caso contrario, a adjeti- vacio tem carga negativa. Tudo isso € justificado, como podemos perceber, pela ocorréncia do operador de justificativa porque. Reforcando sua idéia, Tércio acha que O Brasil nosso deveria ter lei para as Mutheres nao usar roupa curta. Neste trecho do texto, o modalizador* confere uma alta carga de autoridade ao que é veiculado no texto sobre a mulher. O item lexical familia também aparece acompanhado do modalizador deve (...as familias deve...), marcando lingiistica- mente o discurso autoritirio sobre a responsabilidade que a fami- lia tem em reproduzir essa educacio das mulheres. O texto de Tércio apresenta marcas do discurso religi- oso e do discurso de controle sobre a mulher. O autor se com- porta basicamente como um juiz da conduta da mulher e como aquele que dita as regras de comportamento para a mesma. A fa- milia também é dado esse papel, pois, segundo Tércio, sodas as familias deve ser honesta com as roupas que se vesti as mulheres... E a mulher é apresentada como reprodutora dessa re- Pressao a partir do momento que repassa o apelo religioso, 0 Para Dubois (1973, p.415), chamam-se modalizadores os meios pelos quais um falante manifesta 0 modo como ele considera seu proprio enunciado; por exemplo, 08 advérbios salvez, provavelmente, as intercaladas pelo que eu creio, conforme 4 minha opinido, etc., indicam que o enunciado nao esta inteiramente assumido ou que a assergdo est limitada a uma certa relagio entre o sujeito e seu discurso. Ensino, discurso e mudanga da pratica discursiva e social | 187 androcentrismo e a repressio a suas filhas: ...as mulheres que vesti ropa culta seré que elas nunca pensa ter familia para dar educagao para as suas filbas aprende a sua lingies de familias, Neste trecho, fica evidente o papel de reprodutora desse tipo de “educagio” que é dado 4 mulher — reproduzir sem resisténcia. 3.2 A construgao da identidade da mulher sob a ética de uma aluna No trecho e na entrevista de Angela Paiva, nio ha mu- danga discursiva e conseqiientemente nao ha mudang¢a social. Com relagéo 4 mulher, em seu texto ¢ entrevista, Angela mostra uma preocupacao muito grande em seguir os valores de seus pais para nao criar problemas. Sua entrevista apresenta, entretanto, trechos onde hi resisténcia a opressio: P—... quando vocé foi ¢ trocon, vocé brigon, esperneon ou vocé Joi caladinha? A — Briguei e esperneet, mas ele ndo goston... Mas apesar da resisténcia oferecida as idéias do pai, An- gela muda sua posi¢io, nao oferecendo resisténcia ao discurso de controle sobre a mulher (Magalhies, 1995a). Isso é indicado pelo operador argumentative mas, que estabelece uma relacio de Oposicao entre a atitude de Angela e 0 gosto do pai. Nesse trecho da entrevista, a presenga do pai é marcada pelo elemento coesivo de referéncia pessoal anaforica ele. A — Ah! Na minha opiniao assim, é acho que a gente se sente desvalorizada. A gente compra a roupa assim e pensa nob, fica toda bonita assim, assim, ai a pessoa vai e fala que ta feia, Acho que por isso se desvalorizada. Nesse trecho, Angela relata sua Ppreocupa¢ao com a opi- nido dos outros em relacao 4 sua pessoa. Ela reproduz o discurso androcéntrico quando se diz desvalorizada, pois este termo cos- tuma ser usado para objetos que tem um valor comercial, por 188 | A LEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS, exemplo, uma casa, uma geladeira. Angela reitera suas idéias no intento de impor como verdade o discurso de controle sobre a mulher. O discurso da familia patriarcal tradicional aparece em outros momentos da entrevista. Angela descreve uma situacio usando o discurso indireto que vem a ser marca de heterogenei- dade mostrada."° A -—... uma vex en tava indo no clube com minhas amigas ai ele falou pra ele assim: Nossal! Que roupa vocé deixa sua filha usar. Uma roupa assim, assim, uma foupa curta. Ai ele foi e falon que nao, que € que nem vin eu tinha saido com aquela roupa se tivesse visto tinha mandado en voltar e trocar. _Aé assim eu acho que ele pensa assim a minha moral, 0 que os outros andam falando de mim por ai que ele nao gosta também... Neste trecho em discurso indireto, Angela mostra a pre- ocupagiio que seu pai tem com sua moralidade. Fica clara a auto- ridade patriarcal ao verificarmos a locugao verbal tinha mandado, \ocucio esta que é repetida pela filha sem questiona- mento ou resisténcia. ‘A expresso modalizadora eu acho deixa transparecer a davida que Angela em relacao 4 preocupagio de seu pai. Sera que ele se preocupa é mesmo com a moral da filha ou com a sua re putacio de “pai de familia”. Vejamos 0 trecho abaixo: A -—... ele nao gosta também. E. & muito chato alguém chega e reclama pra ele que me viu com uma roupa curta assim. Eu tenho certeza que ele ia ficar constrangido assim como en fiquei. Ele me Salou assim, en fiquei assim meia, meia sem o que falar. E nunca mais vesti short... BHeterogeneidade mostrada, segundo Maingueneau (1993, p.75), incide sobre as manifestagdes explicitas, recuperdveis com base em uma diversidade de fontes de enunciagao. Ensino, discurso e mudanga da pratica discursiva e social | 189 A aluna confirma que o pai quer manter a boa reputacao dele, uma vez que se preocupa com 0 que os outros vio falar pelo fato de ele no ter controlado a filha. Pelo uso do verbo ser no pre- sente do indicativo (...€ muito chato...), podemos constatar que a filha concorda com o que o pai diz. Para ela realmente é desagra- davel para o pai alguém comentar sobre a roupa que a filha veste, principalmente se este comentario tiver um cunho negativo, Para Angela, é constrangedor verificar que o pai é ques- tionado pelos outros por causa de suas atitudes. Por isso, como podemos constatar no texto, ela nunca mais vestiu short curto. Assim, 0 status quo se mantém sem set questionado. 4 Consideragées finais Este trabalho teve como objetivo verificar como a lin- guagem constrdi a identidade da mulher. Para isso pesquisamos, por meio de produgées textuais e entrevistas, 0 contexto da es- cola e da familia utilizando, para isso, o arcabouco tedrico-meto- dolégico da Teoria Social do Discurso, a Andlise de Discurso Critica, Consciéncia Lingiiistica Critica (Fairclough 1989, 1992a, 1992b) e outras arroladas na introdugio deste trabalho. Na proposta de andlise houve a preocupagao de estudar- mos quais as identidades delineadas para a mulher no contexto da escola e da familia. Constatamos que o discurso veiculado nesses Contextos ainda é o de controle, segundo Magalhaes (1995a), que € reproduzido e naturalizado também pela prdpria mulher, nao sendo, portanto, emancipatério no que diz respeito as relagdes de género. As relagdes de poder sao claras nos dados analisados — a mulher é dominada e o homem, dominador. Apesar de ser grande a veiculacio de idéias sobre con- quistas das mulheres em varios campos da sociedade, no coti- diano € no contexto da escola e da familia, as priticas discursivas -€ sociais sao conservadoras. A LLEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DISCURSIVAS A linguagem possui papel importante na manuten¢ao das praticas sociais, pois € nela que a ideologia se materializa. O Modelo de Letramento Auténomo, ao enfatizar o ensino de re- gras gramaticais, contribui para impedir o debate sobre a emanci- pagio da mulher. Os esteredtipos criados para a mulher, como “boa moca”, “nao inteligente”, “pura”, “criada para 0 casa- mento”, sio reproduzidos ideologicamente no ambito das insti- tuigdes, através da linguagem. Apés a anilise discursiva de todos os dados, nao s6 dos presentes no anexo deste trabalho, chegamos as seguintes consi- deragGes: a mulher é, ainda, julgada pela roupa que veste. Para que esse julgamento seja positivo, ela nao pode usar roupas sumarias, pois elas pressupdem, segundo padres androcéntricos, que a mulher nao é honesta; a mulher é reprodutora de sua opressio, uma vez que repassa essa Opressao para suas filhas, amigas; por meio de algumas idéias expressas por alunas ¢ alunos, veri- ficamos que ambos consideram as mulheres objetos desvalori- zados, ¢, As vezes, como objetos que precisam ser preservados para o uso dos homens; a boa reputacio do homem (pai, marido) é medida pelo con- trole que eles tém das mulheres ¢ de sua casa; a mulher preocupa-se com 0 que os homens falam dela, pois sua reputacio de “boa moga” pode estar em jogo; a vitgindade continua sendo muito valorizada, uma vez que pressupde a honestidade da mulher. Por isso, sexo, para as mulheres honestas, s6 é aceito depois do casamento. Para as mulheres que 0 praticam antes do casamento, cabe a culpa € 0 castigo do abandono; vitivas sao tidas como mulheres sem condi¢ao financeira, pois perderam o provedor do lar, uma vez que a elas, durante 0 ca- samento, cabe 0 papel de dona de casa; Ensino, discurso e mudanga da pritica discursiva ¢ social | 191 * os homens, que sio inteligentes, “aproveitam-se” das mulhe- res, nao-inteligentes, pois, em geral, a mulher é vista como menos inteligente que o homem e vitima passiva de seu assé- dio; * cabe 4 mulher servir 0 homem; * © papel de mie ainda é muito valorizado e funciona como uma forma de controle, cabendo 4 mulher todo o processo de edu- cacao das criangas e de reprodugio do discurso que a oprime; * o trabalho doméstico é da mulher, e cla deve fazé-lo sob pena de ter sua reputagio prejudicada; * amulher é oprimida e subjugada e, além disso, reproduz passi- vamente 0 discurso que a silencia e oprime; * 0s discursos da escola e da familia, veiculados por meio da lin- guagem, sao de controle, contribuindo para a opressdo e sub- missao da mulher. O discurso de liberagio (Magalh’es, 1995a) ainda é té- nue, ou seja, o discurso é androcéntrico, nao existindo um lugar de sujeito para a mulher, em parte devido ao fato de que ainda nao se desenvolveu no Brasil uma consciéncia critica sobre as te lagdes entre os géneros sociais, Ao falarmos em consciéncia critica, mudanga discursiva € social, retornamos as teorias de Fairclough, nas quais a lingua- gem € 0 ponto inicial para a mudanca ou para a manutengio das telacdes de poder. Mostrando como as relagdes de género se pro- cessam no contexto da escola e da familia, esperamos estar con- tribuindo para a transformagio, uma vez que a partir do mo- Mento em que explicamos a linguagem de opressio as mulheres, € aos homens também, esperamos que haja_problematizacao, transgressao e mudanga no stafus quo. 192 ALEITURA E A ESCRITA COMO PRATICAS DIS Referéncias bibliogrficas FAIRCLOUGH, Norman. Language and power. Londres: Longman, . Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 19 . 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