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Folha Onine - Sinapee - Rubem Alves: A complicada arte de er - 26/10'2004 FOLHAONLINE Segées 26/10/2004 -02h56 pane nee Rubem Alves: A complicada arte de ver Caminho das Pedras Rubem Alves Leituras Crusades colunista da Folha de S.Paulo Verbete Ela entrou, deitou-se no diva e disse: “Acho que estou flcando louca". Eu quel em Perf siléncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. “Um dos meus Tostos prazeres 6 cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, 0s pimentoes “uma alegrial Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que jé Arquivo Jeera contenas de vezes: cortar cobolas, Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a Cartas Ccebola, eu olhei para ela e tive um susto, Percebi que nunca havia visto uma cebola, ‘Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletndo neles: tve a impressio de cesiar vendo a rosacea de um vital de catedral gética. De repente, a cebola, de objeto Colunistas a ser comido, se ransformou em obra de arte para ser vistal Eo pior é que o mesmo Gilberto Dimenetein a¢0nteCeUu quando corel os lomates, os pimeres...Agora, tude o que vejo me causa espanto.” Gilson Schwartz Rubom Alves — Nareelo Zocchio Ela se calou, esperando o mew diagndstco. Eu me levantel ui a estante de livos.e de la retrei as “Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurel "Ode & Cebola’ e Ihe disse: "Essa Perturbagao ocular que a acomeieu & omum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual quela que Ihe causou assombro: Rosa de agua com escamas de cristal’. Nao, ‘voce nao esté louca. Vocé ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver" Fale coma gente Ver 6 muito complicado. Isso 6 estranho porque os olhos, de todos os érgaos dos sentidos, S80 os de mais fécil compreenséo cientifca, A sua fsica éidéntica &fisica pica de uma maquina folografica: 0 abjeto do lado de fora aparece relletide do lado de dentro. Mas existe algo na visdo que ndo pertence a fisica, William Blake sabia disso e afirmou:"A drvore que o sAbio vé ndo & a mesma drvore que 0 tolo vé". Sei disso por experiéncia propria. Quando vejo os ipés floridos, sinto- ime como Moises diante da sarga ardente: all esta uma epifania do sagrado, Mas uma ‘mulher que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipé que florescia & frente de sua casa porque ele sujava o chéo, dava muito tabalho para a sua vassoura, Seus olhos néo viam a beleza, Sé viemo lio, [Adélia Prado disse: "Deus de vez em quando me tra a poesia. Olho para uma pedra @ vejo uma pedra", Drummond viu uma pedra endo viu uma pedra, A pedra que ele viu Ha multas pessoas de visto perfeita que nada véem. Nao é bastante nao ser cego para ver as drvores e as fores. Nao basta abrir a Janela para ver os campos e os rios" escreveu Alberto Caeiro, heterénimo de Femiando Pessoa, O ato de ver nao 6 coisa natural. Precisa ser aprendido. Nietzsche sabia disso e afirmou que a primeira tarefa dda educagéo 6 ensinar a ver. Ozen-budismo concorda, e toda a sua espiritualidade & ‘uma busca da experiéncia chamada "satot", @ abertura do “terceiro olho". Nao sei se ‘Cummings se inspirava no zen-budismo, mas o fato & que escreveu: “Agora o8 uvidos dos meus cuvidos acordaram ¢ agora os olhos dos meus olhos se abriram. Ha um pooma no Novo Testamento que relata a caminhada de dois discipulos na ‘companhia de Jesus ressuscitado. Mas eles ndo o reconheciam. Reconheceram-no subitamente: a0 partir do pao, seus olnos se abriram”. Vinicius de Moraes adoia 0 ‘mesmo mote em "Operdrio em Constugao' ‘De forma que, certo dia, & mesa ao corlar (0 po, 0 operério fol tomado de uma sibita emogdo, a0 constalar assombrado que tudo naquela mesa _garrafa, prato, facdo_era ele quem fazia. Ele, um humilde ‘operdrio, um aperdrio em construca AAdiferenga se encontra no lugar onde os olhos so quardados, Se os olhos esto na calxa de ferramentas, eles so apenas ferramentas que usamos por sua fungao pratica. Com eles vernos objetos,sinais luminosos, nomes de ruas_e ajustamos a biptww ona. uolcom brfohafsinapselut1 0634947 stim 12 2oownrs Folha Onine - Sinapee - Rubem Alves: A complicada arte de er - 26/10'2004 nossa ago, O ver se subordina ao fazer, Iss0 é necessétio, Mas é muito pobre, Os ‘olhos nao gozam.. Mas, quando os olhos esto na caixa dos brinquedos, eles se transformam em érgdos de prazer: brincam com o que vaem, alham pela prazer de colhar, querem fazer amor com 0 mundo, (0s ethos que moram na caixa de ferramentas so 08 olhos dos adultes. Os alhos que ‘moramna caixa dos brinquedos, das criancas. Para tor lhos brincalhdes, 6 preciso teras criangas por nossas mestras, Alberto Caeiro disse haver aprendido a arte de ver ‘com um menininho, Jesus Cristo fugide do céu, tomado outra vaz crianga, ‘etemamente: “A mim, ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas, Aponta- ime todas as coisas que ha nas flores. Mosira-me como as pedras so engracadas quando a gente as tem na mao e olha devagar para elas" Por isso_porque eu acho que a primeira funcdo da educagao ¢ ensinara ver_eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor qué nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvéos da banalidade colidiana, Como o Jesus menino do poema de Caeiro, Sua mmissdo seria partear "olhos vagabundo Rubem Alves, 73, ecucader, escritr. Livros naves para criangas © adultos-criangas: "Os ‘ree Reis" (Loyola) © "Caindo na Real: Cinderela e Chapeuzinno Vermelno para © Tempo atual” (Papirs). Site: vr rubemalves.com,br Copyright Fela de S. 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