** Vitor Henrique Paro esforço, de sua inteligência, de sua vontade. Para que, então, serve a escola? Pouca coisa é tão cercada por equívocos, em nossa escola básica, como a questão da reprova- Essa pergunta, aliás, vem bem a propósito ção escolar, que se perpetua como um traço cul- da forma equivocada e anticientífica como se tural autoritário e antieducativo. Começa pela concebe o ensino tradicional ainda dominante abordagem errônea de avaliação na qual se sus- entre nós. Apesar de a Didática ter reiteradamente tenta. Em toda prática humana, individual ou demonstrado a completa ineficiência do prêmio coletiva, a avaliação é um processo que acom- e do castigo como motivações para o aprendiza- panha o desenrolar de uma atividade, corrigin- do significativo, ainda se lança mão generaliza- do-lhe os rumos e adequando os meios aos fins. damente da ameaça da reprovação como recurso Na escola brasileira isso não é considerado. Es- pedagógico. Segundo esse hábito revelador, no pera-se um ano inteiro para se perceber que tudo mínimo, da total ignorância dos fundamentos da estava errado. Qualquer empresário que assim ação educativa, à escola compete apenas passar procedesse estaria falido no primeiro ano de ati- informações, ameaçando o aluno com a repro- vidade. E mais: em lugar de corrigir os erros, vação caso ele não estude. Daí a grita de profes- repete-se tudo novamente: a mesma escola, o sores, pais e imprensa de modo geral contra a mesmo aluno, o mesmo professor, os mesmos retirada da reprovação na adoção dos ciclos, afir- métodos, o mesmo conteúdo... É por isso que a mando que, livre da ameaça da reprovação, o realidade de nossa escola não é de repetentes, aluno não se motiva para o estudo. Ignoram que mas de multirrepetentes. a verdadeira motivação deve estar no próprio estudo que precisa ser prazeroso e desejado pelo Absurdo semelhante ocorre quando se trata aluno. Nisso se resume o papel essencial da es- de identificar a origem do fracasso. A atividade cola: levar o aluno a querer aprender. Este é um pedagógica que se dá na escola supõe um quase valor que não se adquire geneticamente; é preci- infindável conjunto de atividades, de recursos, so uma consistente relação pedagógica para apre- de decisões, de pessoas, de grupos e de institui- endê-lo. Sem ele, o aluno só estuda para se ver ções, que vão desde as políticas públicas, as livre do estudo, respondendo a testes e enganan- medidas ministeriais, passando pelas secretarias do a si, aos examinadores e à sociedade. de educação e órgãos intermediários, chegando à própria unidade escolar em que se supõem en- Mas defender a retirada da reprovação não volvidos o diretor, seus auxiliares, a secretaria, significa apoiar "reformas" demagógicas de se- os professores, seu salário, suas condições de tra- cretarias de educação com a finalidade de ma- balho, o aluno, sua família, os demais funcioná- quiar estatísticas. Essa prática, embora coíba o rios, os coordenadores pedagógicos, o material vício reprovador, nada mais acrescenta para a didático disponível etc. etc. Mas, no momento superação do mau ensino. Com isso, o aluno que, de identificar a razão do não aprendizado, ape- após reiteradas reprovações, abandonava a es- nas um elemento é destacado: o aluno. Só ele é cola, logo nas primeiras séries, agora consegue considerado culpado, porque só ele é diretamen- chegar às séries finais do ensino, mas continua te punido com a reprovação. Como se tudo, ab- quase tão analfabeto quanto antes. A diferença é solutamente tudo, dependesse apenas dele, de seu que agora ele passa a incomodar as pessoas, le- vando os mal informados a porem a culpa pelo cola que se exime da culpa que é dela e do siste- mau ensino na progressão continuada. Mas o alu- ma que a mantém. A reversão dessa situação exi- no deixa de aprender, não porque foi aprovado, ge que o elemento que estrutura a escola básica mas porque o ensino é ruim, coisa que vem acon- deixe de ser a reprovação para ser o aprendiza- tecendo desde muito antes de se adotar a pro- do. É preciso reprovar, não os alunos, para enco- gressão continuada. Apenas que, antes, esse mes- brir o que há de errado no ensino e isentar o Es- mo aluno permanecia na primeira série, ou se eva- tado de suas responsabilidades, mas as condições dia, tão ou mais analfabeto que agora. Mas aí era de trabalho, que provocam o mau ensino e impe- cômodo, porque ele deixava de constituir pro- dem o alcance de um direito constitucional. blema para o sistema de ensino. Agora, com a aprovação, percebe-se a reiterada incompetência da escola.
Só a consciência desse fato deveria bastar Texto publicado em
como motivo para se eliminar de vez a prática da http://www.estadao.com.br/artigodoleitor/htm/2002/fev/15/151.htm reprovação no ensino básico: porque ela tem ser- ** Vitor Henrique Paro, professor titular da Faculdade vido de álibi para a secular incompetência da es- de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp)