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EDUCAÇÃO POPULAR - 8

EDUCAÇÃO POPULAR

1. Pensar a prática, 2º ed. Carlos R. Brandão


2. O povo vai á escola, 2º ed. Marília P. Sposito
3. A extensão rural no Brasil M. Teresa L. da Fonceca
4. De camponesa a "madame" Olinda M. Noronha
5. A geografia do aluno trabalhador, 2º ed. (esg.) Márcia S. Rezende
6. Educação sindical entre o conformismo e a crítica (esg, S. M. Manfredi
7. De Treta contra Mutreta José F. de Campos
8. Da escola carente escola possível, 4º ed. Miguel G. Arroyo (org.)
9. Educação popular: um encontro com P. Freire R. Mº Torres
10. A luta dos trabalhadores pela escola Rog;erio C. Campos
11. O rádio dos .pobres, (esg.) Mº Immacolata V Lopes
12. O trabalhador estudante
Marlia P Sposito (org.)

Miguel G. Arroyo (org.)


Léa Pinheiro Paixão
Rogério Cunha de Campos
Carlos R. Brandão
Sérgio Haddad

DA ESCOLA CARENTE Á ESCOLA POSSÍVEL

Edições Loyola

Dedicamos estes estudos aos profissionais do ensino que, com suas lutas e
sua organização, vão conquistando condições de trabalho para que a
construção da escola popular se torne possível neste país.

SUMÁRIO

Apresentação

I. A ESCOLA POSSIVEL é POSSIVEL?


Miguel G. Arroyo
II. A ESCOLA DOS CARENTES: UM PROJETO EM MINAS GERAIS
Léa Pinheiro Paixão

III. A ESCOLA INTEGRADA: UM PROJETO NO AGRESTE


SETENTRIONAL DE PERNAMBUCO
Rogério Cunha de Campos
IV. DA ESCOLA RURAL DE EMERGÊNCIA Á ESCOLA DE AÇÃO
COMUNITÁRIA
Carlos Rodrigues Brandão

V. ESCOLA PARA O TRABALHADOR (UMA EXPERIÉNCIA DE ENSINO


SUPLETIVO NOTURNO PARA TRABALHADORES)
Sérgio Haddad

APRESENTAÇÃO

Temos hoje, espalhados pelo Brasil, milhares de profissionais,


trabalhadores do ensino elementar, construindo, no seu dia-a-dia, a escola
necessária é possível para os moradores pobres das periferias das grandes
cidades e para os trabalhadores do campo. O que fica de tanto esforço? "Um
ano, dois, nem três... Deu pra aprender? Não deu. Deu pra saber escrever
um nome, pra ler uma letrinha, outra. Foi só." o retrato que tantos
camponeses e operários, como Ciço, lavrador das Minas Gerais, poderiam
fazer-nos da sua escola e de seu estudo. "A gente vê velho (e jovem
também) aí pra esses fundos que não sabe separar um a de um b. Gente
que pega dum lápis e desenha o nome dele lá naquela dificuldade, naquele
sofrimento." E isso e não muito mais que resta do esforço de tantos
trabalhadores do ensino elementar. Continuará a ser essa a escola do povo?
É possível construir outra? É ou não possível instruir os filhos das classes
subalternas deste país, neste país?
De um modo ou de outro, todos os textos aqui reunidos reconstroem e
analisam experiências pedagógicas que se colocam essas questões e que
tentam encontrar saídas para a construção da escola possível para o povo.
Todos os que aqui escrevemos, a maioria dos leitores e até os que
idealizaram essas experiências coincidimos nos mesmos sentimentos, na
mesma esperança de uma escola possível para o povo. Todos podemos
concordar com o fato de que a escola construída pelos educadores não é a
escola desejada pelos donos da sociedade e do poder e, sobretudo, não é a
escola desejada pelos proprietários que compram a força de trabalho do
operário. Daí a atualidade da questão trazida por este livro. Da a certeza de
que a construção da escola possível é uma tarefa política extremamente
complicada, fruto de longas lutas.
Os textos que compõem este livro avançam ainda mais. Mostram-nos
que, através de suas lutas e reivindicações, é o povo que vai á escola, mas
que escola ele encontra? E a escola que buscava e e que merece? Diz-se
que estamos entrando numa nova fase política teremos, na Nova República,
o direito de propor uma nova escola, de lutar por uma escola que atenda aos
reais interesses da; classes subalternas, ou teremos de aceitar que para elas
qualque escola serve?
Em muitas coisas os autores deste livro coincidem. Uma delas: não
acreditamos que qualquer escola atenderá aos interesses dos trabalhadores.
Os textos que compõem este trabalho trazem experiências encontradas no
cotidiano da escola elementar, e que falam alto a esse respeito. A realidade
fala mais do que o discurso. Tentamos captá-la e reconstruí-la. Aí está, com
sua força, nos textos de Léa Pinheiro Paixão, Rogério de Campos, Carlos
Brandão e Sérgio Haddad. No capítulo introdutório, tentamos situar essas
questões no nosso tempo, um tempo denso e polêmico na análise e na
prática educativa. Os que sempre estivemos juntos na defesa da escola para
as classes subalternas temos, hoje, posições nem sempre coincidentes
quanto ao que deva ser essa escola popular e qual a sua função social para
essas classes.
A questão é polêmica. Não poderíamos ficar de fora. Qualquer esforço
para esclarecer o significado da escola para o povo só poderá servir para
torná-la um pouco mais possível.

Miguel G. Arroyo

A ESCOLA POSSIVEL É POSSIVEL?

MIGUEL G. ARROYO
(Universidade Federal de Minas Gerais)
Ao longo da história da educação brasileira, há uma questão que vem
passando de educador para educador: é possível uma escola elementar que
ensine, ao menos, os conhecimentos básicos aos filhos das camadas
populares? Se esta pergunta fosse feita a cada profissional que trabalha nas
escolas da área rural e das periferias urbanas deste país, é bem provável
que a maioria respondesse: não tem jeito, a escola do povo não é possível.
As estatísticas não fazem outra coisa senão confirmar o fracasso
escolar dos filhos do povo. Os índices de repetência e evasão teimam em
mostrar que quase 60% dessas crianças não ultrapassam a lº série, e o
restante irá saindo, ou sendo forçado a sair, ainda nas primeiras séries, sem
contar aqueles que nem entraram na escola.
Afinal, é ou não possível tornar realidade a escolarização fundamental
para os filhos do povo deste país, neste país? Esta questão vai e volta na
história do pensamento educacional. Estamos num momento em que a
sensibilidade nacional e a dos profissionais da educação, sobretudo, voltam-
se para esse problema. A escola está de novo em questão. Pesquisas têm
sido feitas e até pesquisas sobre o "estado" da pesquisa e propostas surgem
priorizando saídas (Brandão, 1983: Mello, 1982; Saviani, 1983; Barreto,
1975).
Nós, os autores dos trabalhos que compõem este livro, pretendemos
trazer nossa contribuição porque acreditamos que a escolarização do povo é
possível. Não trazemos mais uma pesquisa, nem mais uma saída de
emergência. Trazemos o que está sendo tentado na prática cotidiana, para
tornar a escola possível. Reconstruímos é analisamos propostas
pedagógicas que estão sendo implementadas, Pretendemos tirar as lições
que a prática nos dá para não cair em velhas ilusões. É um pouco do que se
faz neste país pela educação escolar do povo. Não é tudo, e possivelmente
não é o mais revolucionário, mas há uma coincidência: trata-se de propostas
de escolarização para crianças e jovens das camadas subalternas.
Perguntamo-nos, como tantos outros: desta vez a escola do povo será
possível Como profissionais da educação, passaremos a acreditar que a
escola é tarefa possível de ser conquistada?

A escola necessária: qualquer escola?

Falar na escola possível para o povo significa muita coragem diante do


desânimo que tomou conta dos profissionais da educação diante de uma
longa história de fracassos da escola, e diante de um Estado falido enquanto
responsável pelos serviços públicos. Até para certos setores falar na escola
possível pode representar ingenuidade política: defender a escola, aparelho
ideológico do Estado capitalista por excelência? Estamos entre aqueles que
acreditam que educação escolar para o povo é possível e necessária.
A negação da educação escolar para as classes subalternas interessa
a quem? Não a essas classes que demandam escola, que sacrificam como
podem para manter seus filhos na escola e que voltam aos cursos noturnos e
supletivos após a longa jornada de trabalho. A negação do saber interessou
sempre á burguesia que vem submetendo o operariado ao máximo de
exploração e de embrutecimento. Interessou ao Estado excludente que
prefere súditos ignorantes e submissos. O povo percebe sua condição de
ignorância, os motivos por que é mantido ignorante, e tenta sair de sua
condição
A história de cada escola que se abre é feita de luta e de reivindicações
dos moradores de cada bairro, vila ou povoado. Foram necessárias muitas
lutas dos profissionais da educação para que se garantissem condições
mínimas de trabalho na escola.
Até na velha Europa das revoluções burguesas, a extensão da escola
pública ao povo nunca foi uma dádiva da burguesia republicana, mas uma
necessidade de se opor aos resquícios organizados da aristocracia que se
apegava ao controle do poder e também do saber
Nunca a burguesia, por mais moderna que fosse, investiu de fato na
educação escolar de seus trabalhadores, a não ser quando pressionada
(Lopes, 1981).
Diante dessas constatações, novamente perguntamos: é possível uma
escola que garanta o direito ao saber elementar ás classes subalternas?
Diante dos sacrifícios que elas fazem para colocar e manter seus filhos na
escola, o que esta deve fazer para instrumentalizar as classes subalternas
com um saber que atenda a seus reais interesses de classe?
Alguns educadores e administradores do sistema escolar podem julgar
que seria suficiente lutar por uma escola que promovesse a inserção das
camadas populares no mundo moderno ou que tornasse menos difícil sua
sobrevivência na sociedade industrializada, ou ainda que facilitasse sua luta
pela obtenção de melhor emprego, pela melhoria de vida. Os profissionais
que centram sua aço em abrir a escola que está aí para todos julgarão nossa
proposta como irrealismo político. Estamos em um momento denso e
polêmico da análise e da prática educativa. Os que sempre coincidiram na
defesa da escola para as camadas populares têm posições nem sempre
coincidentes quanto ao tipo de escola e a sua função social para essas
camadas.
Nova crença: educação e democracia

Lembremos a história recente. No final da década de 60 e início da de


70, qualquer encontro ou debate de educadores tinha que abordar o tema
"educação e desenvolvimento", tema também dominante nas publicações.
Espalhou-se a crença na educação do povo, pois "povo educado, país
desenvolvido". Quantos acreditaram que a escola brasileira, tradicional e
elitista, seria dessa vez possível no Brasil moderno e desenvolvido! Não
apenas os intelectuais progressistas e os educadores liberais e humanistas
defenderam a criação de novas escolas, mas até o capital, a burguesia e seu
Estado modernizado pareciam dispostos a investir recursos em escolarizar
as camadas populares para torná-las trabalhadoras eficientes para o
desenvolvimento econômico. Nada aconteceu. O povo continuou ignorante.
Os recursos para a educação das camadas populares não chegaram ou
foram desviados. A crença virou ilusão. Durante alguns anos, não se falou
em educação nem. em desenvolvimento.
Recentemente, uma nova crença passou a dominar as publicações de
educação, os congressos de educadores, as pesquisas e dissertações e até
as políticas oficiais de alguns centros de decisão: a crença na escolarização
do povo como um valor. Uma crença que volta após alguns anos de
descrédito e de críticas escola capitalista e sua função de classe. Descrença
que tinha bases históricas e que representava a reação lúcida e corajosa a
várias décadas de crença valor do desenvolvimento e da educação escolar
como sua condição prévia (Frigotto, 1984).
Mal tinha se enraizado a descrença nesse valor geral: educação -
desenvolvimento -, mal tínhamos iniciado a crítica - final dos anos 70 e início
de 80 -, voltou de novo a crença na escola como valor geral e indiscutível. Só
que agora atrelada a outro valor, outra crença: a da democracia. "Educação
e democracia" passou ser a nova fórmula mágica. Uma espécie de cruzada a
que todos teremos de aderir, sob pena de ser tachados de reacionários ou de
irrealistas. Para alguns, esse valor geral passa por um único caminho: a
democratização da escola pública. Qualquer proposta de educação do povo
que siga caminhos alternativos será tachada de populista (Paiva, 1983). De
fato, a essa cruzada muitos estão aderindo, c que se engajaram nas décadas
anteriores na crença na educação desenvolvimento, e os que até ontem
criticaram essa crença. Todos somos intimados a aderir.
Vemos algo estranho. Até os trabalhadores do ensino que, nos últimos
anos, descobriram-se trabalhadores vendendo sua força de trabalho
qualificada, e que descobriram no empresário do ensino no Estado seu
patrão e contra ele se organizaram e lutaram, esses trabalhadores são
convocados a pôr sua competência a serviço dessa, cruzada geral. Todos
unidos, proprietários, Estado, trabalhador do ensino, comunidade, em prol da
salvação da escola para todo As mesmas propostas de décadas anteriores
convocando todo trabalhador, peão, gerente, patrão, intelectual a servir com
seu trabalho á cruzada do desenvolvimento nacional. Agora, todos devem
servir á cruzada da salvação da educação nacional. A escola será salva
através de um mutirão cívico-educativo.
Resta saber se agora teremos o direito de propor e de lutar por um tipo
de democracia e de escola que atenda aos interesses das classes
trabalhadoras ou teremos que aceitar a democracia e a escola como valores
universais. Assim como, nas décadas anteriores, nos impuseram a crença no
desenvolvimento (capitalista) e na escola que lhe era conveniente, tentam
agora nos impor a crença na democracia (liberal) e na escola que lhe
convém. A crença no valor educação desenvolvimento não trouxe nem
educação nem desenvolvimento para as classes subalternas. A nova crença
- educação-democracia - poderá levar a idênticos resultados. Após a lição
das últimas décadas, teremos o direito de lutar por. uma democracia e uma
escola que ampliem e assegurem o poder das classes trabalhadoras . ou
apenas que as integrem na ordem burguesa? Haverá nas escolas,
universidades, centros de decisão, congressos, partidos, espaço para lutar,
não apenas pela escola pública para todos, mas por uma nova escola, com
nova função social? Será possível construir e afirmar a escola como espaço
que sirva a interesses contraditórios?
É bom estar alerta contra o perigo de nos deixar ofuscar pelo valor da
escolarização em si. Há sintomas de que se fecham espaços para o direito
de preferir e lutar por propostas alternativas de educação 'do povo, e por
concepções diversas de democracia e de educação popular. Será necessário
não nos empolgar com novos ventos, novas crenças, quando permanecem
inalteradas as mesmas correntes que já afundaram tantos sonhos de
democracia e de escola para todos. Preferimos não esquecer as lições
aprendidas na história de nossa formação social. Uma história traspassada
pelos interesses e confrontos de classe na qual a escola que aí está serviu
aos interesses das classes dirigentes e dos proprietários, e não serviu, antes
desserviu, aos interesses reais das classes trabalhadoras. Para nós continua
atual a função de classe que o sistema escolar sempre teve. Não
confundimos interesses reais de classe com o fato de que a escola possa ter
contribuído para a sobrevivência, melhoria de vida, luta pelo emprego de
alguns, e até para sua instrumentalização na facilitação de sua inserção no
mundo moderno e letrado.
As análises sobre o caráter de classe da escola e do Estado que
elaboramos nos últimos anos, num exercício sério de crítica ao Estado e á
escola capitalista, não podem ser engavetadas. As palavras, afinal, têm
sentido. Será perigosa qualquer proposta que pretenda "sair da crítica e ir ás
propostas de ação". O caráter de classe da escola e do Estado continua real
e sua análise crítica continua tendo o mesmo sentido que tinha no final dos
anos 70, quando o pensamento educacional brasileiro foi remexido em seu
ideário e em sua visão ingênua, tecnicista e pretensamente apolítica.
Qualquer que seja a aço, a crítica continua atual e continuar, independente
das boas intenções dos novos gestores e dos arranjos e pactos políticos na
reorganização institucional do país.

Cardápio cultural igual para todos

Partimos, pois, do pressuposto de que não será qualquer escola que


atenderá aos interesses das classes populares. As questões centrais passam
a ser estas: que escola será realmente um serviço aos interesses de classe
dessas camadas? Como ir construindo essa escola tornando-a possível? Na
configuração dessas questões não pretendemos cair em construções
imaginárias, mas ir ao cotidiano da prática escolar, descobrir pistas, ciladas
ou até becos sem saída. Mas que prática privilegiar? A educação popular, as
experiências de escola alternativa? Não são estes os caminhos que seguem
os autores destes textos.
Marginalizar a escola real, falida, que chega ás camadas populares, e
dar preferência a experiências pedagógicas alternativas que estão
acontecendo fora da escola oficial pode ser uma pista para encontrar alguns
traços da escola possível para o povo. É um trabalho que poderá e deverá
ser feito: tirar as lições que podem ser aprendidas nas experiências de
educação popular e inseri-Ias na relação pedagógica escolar. 0 caráter
informal da educação popular e seu caráter intencional de ser uma educação
das classes subalternas uma estratégia de intervenção de classe conferem a
essas práticas alternativas riquezas que deveriam ser analisadas com
atenção quando se busca uma escolarização formal que seja realmente
popular (Brandão, 1982; Beisiegel, 1982).
Por enquanto, não seguimos esse caminho, que acreditamos fecundo
para a busca de uma escola possível para os trabalhadores Pensamos que a
questão da possibilidade da escola para as classe subalternas terá resposta
na história. real de sua negação e afirma Há várias décadas que as camadas
populares vêm pressionando o Estado para entrar na escola. E entraram.
Não na escola que durante anos serviu aos filhos das camadas dirigentes e
dos proprietários mas em uma rede escolar de segunda ou terceira
categoria. Com dois ou três anos incompletos foram expulsas, obrigadas a
sair para entrar precocemente no mercado de trabalho, por falta de
condições materiais, psíquicas, motoras e outros condicionantes tão
pesquisados Saíram porque o lugar delas não era esse, seu destino é o de
trabalhadores desqualificados.
A invasão da escola, pelo povo, sua expulsão precoce, seu péssimo
aproveitamento alarmou alguns, incomodou a muitos. Ensairam-se
experiências e propostas diversas de escola para o povo durante essas
décadas. A pouca escolarização dada aos filhos do povo, não foi a mesma
dada aos filhos das camadas dirigentes. Foi outra qualitativamente diferente,
feita de ensaios e experimentos. Foi e é uma escola para subalternos, para
condenados ao trabalho desqualificado. Uma reconstrução mais atenta da
história da educação brasileira levar-nos-ia a descobrir sistemas de
educação e de ensino paralelos e complementares.
É bastante funcional para as classes dominantes a imagem que os
compêndios de história passam aos educadores: trata-se de um projeto
educativo único, para todos. e de um sistema de educação escolar único.
Apenas haveria a lamentar seu caráter elitista. Para os filhos dos ricos, as
escolas ricas; para os filhos dos pobres, as escolas pobres. Seria uma
questão de injusta distribuição dos bens públicos, dos recursos físicos e
humanos, do saber sistematizado? Como temos moradias ricas e pobres,
alimentação farta ou escassa, água em abundância nas mansões ou uma
bica apenas no canto da rua, teríamos escolas ricas ou pobres, saber farto
ou escasso. Aqueles que interpretam a história da educação escolar como a
história de um projeto e de um sistema único, apenas distribuído de maneira
desigual, defenderão que a escola possível para o povo será da mesma
qualidade que a escola dos filhos das camadas médias e ricas. A questão
central passará pela distribuição eqüitativa dos bens culturais, do saber
sistematizado e dos meios para sua efetivação.
Nesta perspectiva, quando se pensa em caminhos para uma escola
para o povo, surgem como medidas centrais a redução das taxas de
repetência e evasão ou a permanência no sistema escolar único para se
alimentar satisfatoriamente dos bens culturais, numa mesa onde o cardápio e
o tempo para a comida sejam iguais para todos. É evidente que isso implica,
como questão central, defender a mesma competência em todos os mestres
na arte de distribuir um cardápio cultural igualmente rico para todos.
Esta pode ser a visão de muitos profissionais de escola. O problema é
de distribuição eqüitativa dos bens e dos serviços públicos e a solução
conseqüente está na democratização e na justa administração dos recursos
do Estado. O projeto de Estado do público, gerido por técnicos e intelectuais
competentes e comprometidos com uma distribuição menos desigual dos
bens materiais e culturais, volta como solução. O projeto não é novo e teria
sido uma solução se os problemas das formações sociais capitalistas fossem
apenas de distribuição eqüitativa da riqueza sob a administração competente
de um Estado imparcial. Os problemas, entretanto, são mais profundos.
A burguesia agrária, industrial ou financeira, tradicional ou moderna,
sempre teve um projeto educativo específico para as classes subalternas,
para delas fazer cidadãos e trabalhadores submissos a seus interesses.
Esse projeto, bem mais amplo que o de educação escolar, nunca foi igual,
nem poderia ser, ao projeto educativo de formação da própria burguesia,
seus co-gestores e teóricos. Não foi o mesmo projeto rico para uns e pobre
para outros. Se pretendemos construir a escola possível para as classes
subalternas, temos que partir da destruição do projeto educativo da
burguesia e de seus pedagogos, feito para a constituição de cidados-
trabalhadores formados à imagem de seus interesses de classe, e para
mantê-los nessa condição de classe.
É esta uma das questões que norteiam estes trabalhos: qual o projeto
educativo da burguesia e de seu Estado para as classes subalternas? É um
projeto de classe. Tentamos configurá-lo. Mostrar sua intenção. Desmistificar
o caráter de classe de propostas em que se engajaram tantos profissionais
bem-intencionados em busca de uma escola possível e necessária para o
povo. Tiramos lições dessas propostas de classe e ressaltamos aspectos
passíveis de ser aproveitados para a construção de um projeto educativo que
contribua para a libertação dos trabalhadores.

Ocupar espaços ou abrir novos espaços?

Centrar nossas análises na prática cotidiana e ir destruindo e


construindo uma escola possível foi o roteiro metodológico seguido nestes
trabalhos. Na atual correlação de forças sociais, este pode ser um caminho
para a construção de uma democracia e de uma escola alternativa: destruir e
construir a escola nas práticas pedagógicas que vêm sendo tentadas. Não
por julgar ser este o melhor caminho, mas porque, para muitos profissionais,
a escola que a está seu lugar de trabalho. Mais ainda, essa a escola
possvel de ser freqentada, hoje, pelos filhos das classes trabalhadoras.
Todos os dias, vrios milhes de futuros trabalhadores, e até de trabalhadores
precoces, batem às portas dessa escola e, por não terem acesso às outras,
esperam voltar para casa com algum saber adquirido. Adquirem mesmo
algum saber? Que saber? É o saber que será insuficiente até para melhor
servir ao capital? Que os fará ser preferidos a outros companheiros de classe
na luta pelo emprego escasso? Ou é um saber que os prepara para se
defender como classe e para a transformação coletiva de sua condição de
classe?
Buscamos saídas na prática cotidiana da escola, porém, com a lucidez
suficiente para não cair no engano de defender esse sistema escolar como o
conveniente e possível para os interesses dos trabalhadores. Temos
consciência de que esse sistema escolar nasceu e se estruturou marcado
por interesses de classe. Não foi montado para servir às classes
trabalhadoras, mas aos futuros dirigentes, executivos, profissionais e teóricos
da burguesia. Não caímos na ingenuidade de aderir à "teoria da brecha" ou
da "ocupação de espaços".
Para as camadas populares, que pensavam ter invadido essa escola,
criou-se logo um projeto paralelo e complementar, onde os conteúdos e
métodos e a organização escolar foram concebidos mais para formar os
cidadãos como trabalhadores semi-analfabetos, submissos e
desqualificados, do que ativos e participantes na vida social e na
organização do trabalho. Seria ingênuo que a burguesia, seus gestores e
pedagogos implementassem um projeto educativo diferente. Sem dúvida,
vários elementos do povo tiraram proveito dessa escola para uma melhor
sobrevivência e competência no trabalho. É pouco esperar que cada
trabalhador "explore as contradições" da escola e tire seu proveito individual
e até coletivo. A escola é um projeto de classe e não de uma burguesia
esclarecida, de um dirigente benevolente ou de um educador comprometido.
Um projeto de uma classe só pode ser enfrentado por outro projeto da e para
a classe antagônica, visando à apropriação e à redefinição desse projeto a
serviço de interesses de classe, e não a serviço da melhor sorte e da
ascensão de alguns indivíduos.
Encarar a escola possível como pervadida pela luta de classes adquire
nova relevância na atual correlação de forças sociais. Estamos num
momento de reorganização das forças que congregam os interesses do
capital em suas diversas frações, ao mesmo tempo que num momento de
afirmação, ascensão e mais presença dos trabalhadores e profissionais da
educação na cena política e econômica. Não é uma luta individual, mas cada
vez mais caracterizada como luta de classes pela terra nas fronteiras
agrícolas, pelo espaço urbano, pelo trabalho, transporte, saúde e até escola
(Campos, 1985; Campos Malta, 1982).
Os próprios profissionais da educação passaram a lutar como
categoria, deixando cada vez mais claro o caráter de classe da própria
organização do trabalho escolar e dos projetos educativos sob a
administração e controle público ou privado: a indústria do ensino privado e a
gerência empresarial do ensino público.
Falar de escola possível como escola de classe não implica cair na
ingenuidade de confundi-la com uma agência formadora integral do
trabalhador consciente e lutador. Há organizações de classe para cumprir
essa função educativa. Sabemos dos limites da escola e de sua
especificidade. Mas poderá não ser uma especificidade neutra, nem
reduzida, a promover oportunidades individuais de melhoria de vida. O fato
de essa escola que aí está não ser mais do que isso, e nem isso para
muitos, não significa que devamos reduzir as fronteiras da escola possível e
necessária apenas a isso (Mello, 1982).
Este livro se destina a tantos educadores que continuam esperando
mais de seu trabalho profissional, e que não caem na ilusão de achar que é
possível usar as velhas fórmulas pedagógicas e a velha organização escolar
para ensinar conteúdos a serviço dos interesses das classes subalternas em
ascensão.
Não será possível ensinar para a participação, desalienação e libertação de
classe com os mesmos livros didáticos, a mesma estrutura e a mesma
relação pedagógica com que se ensinaram a ignorância e a submissão de
classe.
A importância de algumas das experiências aqui reconstruídas e
analisadas não está tanto nas alternativas que mostram, mas nos alertas que
nos trazem para saídas limitadas, ou becos sem saída, propostas
oficialmente como a escola possível e conveniente para o povo. Propostas
que ainda empolgam profissionais bem-intencionados. Seu relato poderá
servir para não cair em acomodações e soluções híbridas, sem alterar velhas
estruturas. Pensamos nos projetos educativos destinados às periferias
urbanas e às áreas rurais, norteados pela filosofia da integração
escola/comunidade, adequação de currículos, atendimento às diferenças
individuais, novas metodologias e outros. Serão estes projetos educativos o
caminho para a construção de uma escola que atenda aos reais interesses
da classe trabalhadora?
Acreditamos que muitos profissionais do ensino se fazem essas
perguntas no seu caminhar diário para a escola rural ou de periferia urbana.
Os trabalhos que analisamos são representativos dessas práticas escolares
que estão acontecendo no vale do Ribeira em São Paulo, no Agreste
pernambucano, em Minas Gerais ou em outros Estados.
Do fracasso do aluno ao fracasso da família e da comunidade

As experiências relatadas falam por si mesmas e falam da escola


destinada aos filhos das classes subalternas. Tentemos ressaltar e "amarrar"
alguns pontos que são comuns. Há dois relatos sobre experiências paulistas.
Falar em escola possível e trazer relatos de São Paulo pode desanimar
muitos educadores. "Lá tudo é possível, governo rico . . . " Mas o que chama
a atenção que, em São Paulo, a escola pública não está muito melhor do
que em outros Estados. "Persistem os altos índices de evasão e repetência.
Nas escolas estaduais e municipais, os problemas atingem quase a metade
do total de alunos matriculados na primeira série", diz uma manchete da
"Folha de S. Paulo", de 29 de maio de 1983. Assim começa o relato de
Carlos Brandão, e mostra, com dados recentes, que os índices de evasão e
repetência são altos, e o pior, depois de tantos anos, é a sua persistência.
É até possível que os educadores das escolas rurais e das periferias
urbanas dos Estados chamados pobres estranhem a notícia paulista: "Pensei
que só acontecia esse fracasso na minha escolinha". Mal de todos não é
consolo de ninguém . . .
Filho de patrão e de técnico de alto nível em Estado pobre chega à
universidade. Filho de operário e subempregado em Estado rico mal chega
2º ou 5º série. O problema não é de diferenças entre Estados e regiões, mas
de diferenças na origem e no destino de classe dos grupos sociais. O relato
da experiência do SIER no Agreste pernambucano mostra que, dos filhos de
trabalhadores rurais, apenas vinte e cinco em cada cem chegam à 2º série,
e somente seis ou oito chegam à 4º série primária. E essa escola das
classes trabalhadoras que vem fracassando em todo lugar.
Não são as diferenças de clima ou de região que marcam as grandes
diferenças entre escola possível ou impossível, mas as diferenças de classe.
As políticas oficiais tentam ocultar esse caráter de classe no fracasso
escolar, apresentando os problemas e as soluções como políticas regionais e
locais.
A construção da escola possível passa por um equacionamento realista
da escola que até hoje não foi possível. Um conhecimento mais rigoroso da
realidade de nossa escola é condição necessária para combater essa escola
e para reinventar, dia a dia, a escola necessária. É gravíssimo o fracasso
escolar em qualquer clima e região nas escolas do povo. As estatísticas o
demonstram. É mais grave, ainda, a quantidade de horas de estudo gastas
na formação dos educadores para ocultar esse fracasso através de
explicações parciais e falsas. Os conceitos refletem essas explicações:
fracasso escolar (do aluno), alunos evadidos, repetentes, diferenças entre
índices de evasão por área rural-urbana, por região etc.
As análises aqui apresentadas não pretendem apenas mostrar que até
nos Estados ricos os índices de repetência e evasão são altos. Vamos além.
Tentamos redefinir a colocação do problema: evasão escolar ou exclusão da
escola? Não faz diferença? Faz e muita! Os conceitos são importantes no
ocultamento do real. Nos cursos normais e de pedagogia fala-se de alunos
evadidos, nunca de alunos excluídos, do fracasso do aluno e não da escola
fracassada. Diferenças meramente conceituais? Falar em evasão sugere que
o aluno' se evade, deixa um espaço e uma oportunidade que lhe era
oferecida por motivos pessoais ou familiares. Ele é o responsível pela
evasão e, conseqüentemente, pela ignorância e pelos efeitos sociais que lhe
acarretar .essa sua ignorância ao longo da luta pela sobrevivência.
Recolocar o problema em termos de excluídos da escola (Fukui, 1982)
vai mais fundo na configuração do problema. Alguém terá que ser
responsabilizado por essa exclusão ou por essa negação do saber elementar
às classes subalternas. Sobretudo quando os mesmos cidadãos -
trabalhadores excluídos da escola - são excluídos de outros direitos básicos:
direito à saúde, alimentação, saneamento, habitação, organização, e
sobretudo, excluídos da terra, dos bens de produção, do poder e da riqueza
que produzem. As mesmas crianças - membros da mesma classe - excluídas
das casas de escola são excluídas das casas de saúde, das casas de justiça
e do direito. As únicas portas que facilmente se abrirão são as das casas de
detenção, de correção, dos manicômios. Sobretudo abrir-se-ão as portas das
fábricas, todas as manhãs, tardes e noites, de onde não lhes será permitido
evadir-se sob pena de morrer de fome. Os índices de evasão das fábricas,
das casas de detenção e correção são mais baixos do que os índices das
escolas do povo. Lá são obrigados a permanecer para ser explorados ou
reeducados para o trabalho. Na escola são forçados a sair por incapazes
para a educação ou por necessidade de bater na porta .da fábrica, ou de
lutar por comida no subemprego.
Insistimos: a construção da escola possível passa pelo
equacionamento correto da escola fracassada e do Estado falido em seu
suposto dever de garantir escola para o povo. Falar em alunos evadidos é
uma forma de inocentar o Estado e a ordem social. Inocentá-los da negação
do direito ao saber das camadas populares. Quando se fala em alunos
evadidos, repetentes, defasados, pensa-se logo no baixo QI, nas diferenças
individuais de capacidade, interesse ou motivação; pensa-se nos testes de
aptidão e prontidão, nas classes heterogêneas e especiais para alunos
especiais. Se o aluno é responsável, a escola é inocentada do fracasso e,
sobretudo, o Estado e os grupos dirigentes da sociedade (Bisseret, 1979).
Nunca passará pela cabeça de qualquer patrão que ele também é
responsável pela ignorância de seus empregados. Lamentará a indolência do
povo, sua falta de esforço para estudar, permanecer na escola, aprender
para vencer na vida e ganhar mais, como ele, patrão, que com esforço e
estudo progrediu e venceu. Lamentará, mas terminará achando bom que seu
trabalhador tenha se evadido da escola na 2º ou 4º série; assim, terá mais
um motivo para pagar salários mais baixos a esses empregados ignorantes,
ainda que como trabalhadores sejam tão eficientes quanto os companheiros
que completaram o 1º ou o 2º graus.
Em síntese, falar em aluno evadido é responsabilizar o próprio povo
por sua pobreza, subemprego, baixos salários, sua ignorância e fracasso
escolar.
Essa visão elitista e classista está ainda impregnando a visão de
muitos profissionais da escola, das classes dirigentes e da burguesia. Com
essa mentalidade, não haverá condições de avançar na construção da
escola possível e necessária para a libertação das classes subalternas.
Nos últimos anos, parecia que tínhamos avançado na compreensão
dos velhos problemas. Descobrimos os condicionantes socioculturais do
fracasso escolar. Continuamos falando de alunos evadidos e defasados,
porém o evadido defasado ou reprovado passou a ser caracterizado não
apenas como um carente de inteligência, controle psicomotor, capacidade ou
motivação, mas como um carente social, um subnutrido, um marginal
cultural, vítima de um contexto social adverso ao aproveitamento escolar e
até à permanência na escola.
Mas se por um lado as análises do fracasso da escolaridade das
camadas populares ampliaram-se, por outro, continuaram centradas nas
diferenças individuais, ainda que socialmente condicionadas. As
conseqüências dessas análises não foram, pois, tão alentadoras como se
esperava para a construção de um projeto de escola para o povo. Para
muitos, o contexto social e cultural, supostamente condicionante do
rendimento do aluno - os fatores extra-escolares -, não foi além dos níveis de
renda, escolarização, interesse pela escola dos parentes vivos ou mortos do
aluno fracassado. Como não seria possível reverter a marcha da história,
pouco havia a fazer para controlar os fatores condicionantes. E os filhos de
analfabetos, baixa renda, continuaram se evadindo, semi-analfabetos, para
continuar a tradição familiar condicionante. Essas constatações - precioso
tempo perdido - tiveram uma conseqüência: desalentar muitos educadores e
inocentar o Estado.
Ao final, as pesquisas provaram que as causas estavam no contexto
social e cultural das famílias e comunidades dos fracassados.
Descobriríamos, nesta visão tão espalhada nos centros de formação de
profissionais da escola, a justificativa para a filosofia das recentes políticas
sociais do Estado e de agências internacionais. Filosofia que joga sobre a
família e a comunidade a responsabilidade e a solução de seus problemas. A
filosofia da participação comunitária, da integração escola-comunidade, do
desenvolvimento comunitário, da escola integrada e de tantos programas de
desenvolvimento urbano e rural integrado.
A mesma filosofia política está presente em todas as estratégias de ação
do Estado junto às camadas subalternas. Se o contexto ; ciocultural das
comunidades e das famílias é o determinante do fracasso individual na
escola, no trabalho, na produção, na saúde, e vida, a saúda se impõe:
educar as comunidades, mudar os valores e hábitos tradicionais de
indolência por hábitos de esforço e dedicação, para não fracassar nem na
escola, nem no trabalho.
Desde o final dos anos 70 é esta a política social e educacior tida como
possível e necessária para as classes subalternas. É esta filosofia que
orienta os projetos educativos para as periferias urbanas e as áreas rurais.
Essas linhas de ação encontram-se presentes no lll Plano Setorial de
Educação, Cultura e Desporto - 1ll PSECD, em que fica nítida a preocupação
com as populações carentes das periferias urbanas e do meio rural.
O Programa de Ações Educativas e Culturais para as Populações
Carentes (PRODASEC) concretiza os mecanismos de colocar educação, e a
cultura a serviço da política social, ou seja, contribuir para a redução da
pobreza crítica e das desigualdades sociais. ,ênfase nas ações educativas e
culturais como determinantes se aproxima das conclusões a que chegavam
tantas pesquisas sobre o peso dos fatores familiares e do contexto
sociocultural na determinação da pobreza e do fracasso escolar.
Retomar a denúncia da escola negada

O trabalho de Léa Paixão mostra que essas propostas de educação


para o povo têm razões mais profundas. A análise de Carlos Brandão sugere
que a construção da escola possível deve começar por redefinir velhos
conceitos que se cristalizaram em velhas práticas pedagógicas. Todos os
relatos retomam velhos problemas nuncaca resolvidos, porém vistos de
novos ângulos ou de velhos ângulos esquecidos e que precisam ser
retomados. São temas marginalizados pela tecnovisão que nos ofuscou nos
últimos anos. São propostas de educadores lúcidos sempre vencidas e
sepultadas em nome novas teorias vindas de fora e que pouco contribuíram
para com mais lucidez as razões estruturais da negação do saber elemtar
aos subalternos.
Uma rápida lembrança da história da educação escolar no Brasil nos
mostra que durante várias décadas não se falava no fracasso escolar, nem
na escola fracassada, mas denunciava-se a escola sente e inexistente para
as massas. Os educadores comprometidos com o povo e até os liberais que
sonhavam com uma república sólida alertavam para o perigo sociopolítico da
ignorância das camadas populares devida à falta de escolas e às péssimas
condições materiais das poucas já existentes.
Um dos capítulos mais ricos da história da educação escolar é essa
luta pela existência material da escola para o povo. Os anos 50 centravam aí
os debates, conscientes de que o direito do povo à educação começava pela
constituição material do espaço físico para aprender. Nas últimas décadas
dar-se-à prioridade à produtividade da escola inexistente, medida pelas taxas
de repetência e evasão escolar. O discurso oficial tenta nos convencer de
que o problema da escola pública para o povo não está na sua inexistência
material, na falta de recursos físicos, humanos e didáticos mínimos para sua
configuração como agência transmissora do saber básico. O problema
estaria no fracasso escolar do aluno que entra e sai. Não fica. Evade-se da
escola existente.
Essa mudança de ênfase no diagnóstico da escola pública para o povo
vai redefinir muita coisa. Os profissionais da educação que insistiam na falta
de escolas e nas péssimas condições físicas e pedagógicas das poucas
existentes e que pressionavam o Estado para assumir seu dever de garantir
educação escolar para o povo voltam-se para reformas técnicas de
diminuição do fracasso do aluno.
No momento em que se passa a priorizar o fracasso escolar, e
sobretudo o fracasso dos alunos provenientes das classes subalternas, o
Estado e sua escola são inocentados. Passa-se a culpar o próprio povo de
sua ignorância. O povo, vítima, vira réu: evadido, defasado, fracassado. As
denúncias deixam de lado a falta de condçõies materiais de trabalho para
instruir o povo e passam a centrar a atenção na evasão e fracasso do aluno,
nos condicionantes extra-escolares do fracasso, como se tudo estivesse
garantido na escola como lugar de trabalho e transmissão do saber.
Pesquisas não faltaram para tentar mostrar que tipo de aluno mais fracassa
e mais se evade. As políticas educacionais esquecidas de construir escolas,
de garantir condições dignas de trabalho para seus profissionais e alunos,
passam a se voltar para conter a evasão. Uma política de borracheiro:
tampar furos para que alguns felizardos consigam rodar mais alguns meses
no longo e difícil itinerário escolar, mais um semestre,mais uma série. Será
possível chegar a encontrar a escola que sirva aos interssses das clases
subalternas com essa política de borracheiro e com os pressupostos que a
sustentam? Não será necessário redifinir o diagnóstico e retornar velhos
temas, velhos problemas não-resolvidos? Os profissionais da educação de
tempos passados, sem a sofisticação das nossas técnica metodológicas e
estatísticas, não perderam o senso do real, da percepção do evidente: o
problema central estava, e continua a estar no fracasso da escola e não do
aluno, no fracasso político de um Estado omisso e de uma sociedade elitista
e excludente. As conseqüências políticas desse diagnóstico são evidentes:
situava a luta no plano do político, na redefinição de uma ordem social e
econômica que negava a escola e o saber elementar às classes subalternas
cidadãos de 2º categoria -, como lhes negava o direito à terra, à posse dos
bens de produção, ao poder e à riqueza que produzen (Arroyo, 1982).
Entretanto, a ênfase dada nas últimas décadas ao fracasso escolar do
aluno faz com que se esqueça essa dimensão política social e passe-se a
buscar remédios na aceleração do aluno, na sua fixação nos bancos da
escola (quando tem bancos), por mais um ano, de uma escolaridade pobre,
sem recursos materiais mínimo; O importante passa a ser a diminuição dos
índices de fracassos evasões, ainda que esse aluno nada aprenda,
permanecendo mais uns meses numa escola que pouco tem a dar, além de
uma merenda escolar. Lavamos a alma do Estado omisso e da ordem social
classista. Enquanto nossas pesquisas e elucubrações pedagógicas
centravam-se em encontrar novas metodologias de ensino, o dinheir, público
era desviado do social para atrair o capital para os pólos de desenvolvimento
e reproduzir as condições materiais e sociais de reprodução e acumulação
desse capital.
Retomar a denúncia de escola fracassada, do Estado fracassado, e não
tanto do aluno fracassado, nem da família ou da comunida fracassadas,
será uma forma de recolocar os problemas em seus devidos lugares.
Qualquer proposta de solução da crônica negação da instrução básica às
camadas subalternas que inocentar o Estado e a ordem social e que não
passar pela redefinição dessa ordem social e desse Estado terá efeito
anestésico sobre doenças crônicas de uma ordem social e política que,
enquanto permanecer, continuará a produzir os excluídos da terra, dos bens
de produção, do poder da saúde e da escola.

A pedagogia da pobreza

A experiência de Minas analisada por Léa Paixão pode ser vista como
um exemplo típico de tantas experiências pedagógicas que visam à
diminuição dos índices de evasão, de repetência e da defasagem idade-
série. Podemos encontrar projetos semelhantes com variantes mínimas
implementados sempre junto às populações tidas como carentes. Em todos
os projetos, o mesmo diagnóstico e o fantasma do fracasso escolar: "O
governo gasta recursos caros em abrir escolas, dá merenda, e, ao final do
ano, os resultados não se alteram". De fato, as taxas de evasão e
reprovação nas primeiras séries teimam em permanecer altíssimas durantes
décadas. As escolas onde as taxas atingem índices mais elevados são as
escolas rurais e das periferias urbanas, as escolas freqüentadas pelas
camadas populares. Será mera coincidência ou intenção do sistema?
As pesquisas sobre os determinantes extra-escolares e sobre o peso
do contexto sociocultural no fracasso escolar ofereceram base teórica para
novas propostas: o fracasso não estaria na escola, mas na nova clientela
que teima em entrar nela sem bagagem sociocultural. Filho de pobre não tem
condições de acompanhar o processo "normal" de aprendizagem. Uma
escola possível seria uma escola que levasse em conta as peculiaridades e
carências da nova clientela e a elas se adaptasse nas metodologias, nos
conteúdos e na organização do processo pedagógico. Há muito profissional
de escola pensando assim. Até se considerou um avanço pensar assim. A
experiência mineira parecia representar um avanço, um serviço aos alunos
fracassados, e muitos profissionais nela se engajaram acreditando que o
diagnóstico era correto e que a saída seria diversificar os métodos,
conteúdos e processos, adaptando-os à especificidade da clientela. É esta a
base teórica e política de tantas experiências pedagógicas espalhadas pelo
país, sobretudo nas chamadas áreas pobres ou atrasadas.
Mas não se trata apenas de enfrentar os crônicos problemas de
repetência e evasão escolar. Uma leitura atenta do texto de Léa Paixão
mostra aspectos bem mais relevantes, típicos de uma política educacional
para um setor específico: os filhos das camadas subalternas. Em tantas
experiências pedagógicas, como a mineira, enfrenta-se uma realidade mais
desafiante do que os crônicos problemas de improdutividade da escola
pública, enfrenta-se a educação do povo. A questão mais desafiante é esta:
que tipo de escola é possível para os filhos das classes subalternas? A ilusão
liberal parecia ter chegado a uma conclusão: sonhar que a escola possível
para os filhos do povo pode ser a mesma que vinha servindo aos filhos das
elites e das camadas médias. Na realidade, até as estatísticas oficiais
vinham demonstrando que era uma utopia a ser extirpada do ideário
pedagógico e social. Velha ilusão liberal e humanista sonhar com conteúdos,
métodos e processos democráticos iguais para todos, independentes de
classe. Em meados dos anos 70, pouco restava de democrático no discurso
oficial. O estilo político-tecnológico não exigia qualquer cuidado em encobrir
o real. Não apenas porque a forma autoritária de administrar o governo e a
sociedade criasse condições para isso. Parece-nos que a questão era e
continua a ser mais profunda.
A sociedade vinha se polarizando. As classes subalternas
configurando-se cada vez com contornos mais definidos. Acelerava-se o
desenvolvimento das relações sociais de produção na cidade e no campo,
provocando a dissolução da categoria ambígua de povo, tão explorada no
discurso pseudodemocrático e populista, tanto no político como no
pedagógico. Os trabalhadores do campo e da cidade iam se configurando
como categoria de classes subalternas (Ianni, 1979). A burguesia e os
gestores do Estado não poderiam ocultar esse processo de transformação.
Era preferível aceitar o fato e responsabilizar as classes subalternas pelas
diferenças no consumo dos servidores sociais e no seu aproveitamento, e
até mesmo responsabilizalas pelas condições coletivas de vida e de classe.
A vítima se transforma em ré, ainda que muito amada (Mello, 1982).
Aceita-se abertamente que todos não são iguais na origem, no
contexto sociocultural e até no destino; por que então sonhar com uma
escola igual para todos? A lei n. 5.692/71 tinha incorporado essa filosofia
sociopedagógica, oficializando e justificando práticas antigas sempre
encobertas no ideário igualitarista: a termínalidade diferenciada até nas
primeiras séries do 1º grau, em função das condições e, sobretudo, em
função do destino ou da imposição de uma entrada precoce no mundo do
trabalho como assalariados, ou em função da necessidade de sobreviver
como classe subalterna.
A sorte tinha sido lançada para os filhos do povo: converter-se em
proletário rural, boía-fria, operário industrial ou de serviços, subempregado
ou exército de reserva disponível ao recrutamento do capital. Se a sorte ia se
definindo e configurando para as classes subalternas, se não cabia nem
pensar em uma sociedade aberta para todos, mas em uma sociedade com
destinos de classe definidos cada um no seu lugar, para que continuar
iludindo com uma escola igual áqueles que as relações sociais de produção
condenavam a ser tão desiguais? Diríamos que houve um avanço: a
aceitação clara no discurso técnico e pedagógico de que à desigualdade
social só poderia corresponder uma escola desigual. O que, aliás, na prática,
sempre foi. Nunca tivemos uma escola igual, nem uma sistema escolar
único.
Pedagogicamente, o grave desse momento foi que essa realidade de
classes, que se impunha na realidade social e política e que se explicitava
até nas políticas sociais elaboradas por técnicos sem a preocupação de
encobri-la, essa realidade dual e antagónica é redefinida ou reinterpretada no
tradicional ideário pedagógico e social dos tecnocratas-educadores. As
experiências pedagógicas da época trazem essa ambigüidade. Aceita-se que
os filhos das camadas populares fracassem na escola porque são desiguais,
porém, não por diferenças de classe ou por destino de classe, mas por
diferenças individuais condicionadas pelo contexto sociocultural desigual.
Sobretudo cultural.
O culturalismo e o individualismo de matriz psicopedagógica
incapacitaram mais uma vez os pedagogos a aceitar o que vinha se tornando
evidente nas relações sociais e sendo aceito pela burguesia e seus gestores
como um dado a ser politicamente equacionado: a diferença e o
antagonismo de interesses entre capital e trabalho e a busca de formas de
negociação e articulação dos desiguais.
É curiosa, para não dizer triste, a resistência que os educadores têm
em trabalhar com a realidade das classes sociais. Aceita-se que existam
interesses antagônicos entre capital e trabalho na fábrica e na empresa em
geral. A escola, entretanto, faria parte de uma espécie de campo neutro, o
campo da transmissão de cultura, do saber universal, dos valores ou dos
instrumentos necessários à introdução de todo indivíduo no convívio da
sociedade moderna. Um campo onde todos os educandos devem ser tidos
como personalidades que estão desabrochando, evoluindo e superando
etapas que independem da condição e destino de classe. Um campo
educativo demarcado por bandeiras brancas, símbolos de "paz e amor". Um
paraíso idealizado, onde até os profissionais deveriam trabalhar por amor e
dedicação, desapegados dos interesses do dinheiro e, sem dúvida, deixando
longe da visão paradisíaca dos seus educandos qualquer manifestação de
conflito entre eles como profissionais e entre eles e seus patrões. " quando
se viu mestre em greve, brigando com a polícia, como qualquer marginal ou
operário, que exemplo para as almas inocentes dos educandos!" - lamentava
uma diretora de escola. Dava para assustar. No final dos anos 70, operários
e educadores se identificaram (Arroyo, 1980). Os interesses conflitivos
traspassam esse campo neutro do educativo. As experiências pedagógicas,
entretanto, continuam amarradas ao ideário tradicional.
As análises de Léa Paixão mostram a que escola possível para as
classes subalternas se pode chegar com essa postura teórica e política. Mais
ainda, mostram que enquanto não avançarmos na concepção de aluno,
ainda dominante no pensamento e na prática pedagógica brasileira,
dificilmente avançaremos na construção da escola que atenda aos interesses
das classes subalternas.
Os cursos de formação dos profissionais da educação têm ocupado
seu tempo em repassar as teorias didáticas e psicopedagógicas. Pouco
tempo tem sido ocupado em explicitar e aprofundar teoricamente as diversas
concepções subjacentes de sociedade, de cidadão, de trabalhador, do
processo produtivo e das forças sociais que tecem as formações sociais. No
entanto, as diversas teorias sobre didática e desenvolvimento da
personalidade ou determinantes da repetência ou evasão estão imbuídas e
respaldadas em concepções explícitas ou implícitas sobre essas realidades.
Os centros de formação prestariam um grande serviço aos profissionais e à
educação se ocupassem mais tempo em explicitar e aprofundar essas
concepções. Ao menos sobre o educando. Como é concebido o educando
das camadas populares, a que se destinam as experiências pedagógicas
como as que Léa Paixão analisa?
O aluno é concebido como carente, atrasado, doente, lento para a
aprendizagem; fraco, sem bagagem intelectual e sem herança cultural.
Notemos bem, essa concepção de criança, oriunda do povo, vai condicionar
a filosofia da proposta pedagógica e vai marcar seus resultados. Diríamos
mais, essa concepção social dos filhos do povo está tão cristalizada nas
teorias e no cotidiano da prática escolar, que continuar a marcar qualquer
proposta de educação para as classes subalternas, ainda que seja animada
de objetivos sociais diferentes. Com tal matriz teórica transmitida nos centros
de formação, será possível acertar com uma escola a serviço dos
subalternos? Há algo a mais do que formar profissionais competentes. É
urgente rever a natureza da própria competência. Enquanto essa matriz
pedagógica e social for dominante, qualquer proposta de educação do povo
não ir além de uma escola do pobre, do carente.
Léa Paixão nos adverte. O máximo que essa matriz pedagógica pode
inventar para os filhos do povo será uma pedagogia do pobre: currículos
mínimos, classes aceleradas e especiais, métodos adaptados a essa
pedagogia do pobre.

O ideário pedagógico, sua função de classe

Entretanto, uma leitura atenta da análise de Léa Paixão mostra algo


mais: que o ideário psicopedagógico dominante, tal como se cristalizou na
concepção e na prática de tantas experiências pedagógicas, não é tão
ingênuo. Ele ultrapassa o nível psicopedagógico aparente e representa uma
opção sociopolítica tão lúcida quanto perversa. O que o torna mais sério e
tem conseqüências mais negaivas quando passa a fundamentar as
propostas de escola para o povo.
Não é tanto a condição de carente psicomental, biológico ou cultural
que justifica uma pedagogia e uma escola de carentes, mas seu destino
enquanto classe. Os depoimentos de supervisores e professores trazidos por
Léa Paixão são enfáticos neste ponto: "O programa básico para as classes
fracas foi muito bom. Ele serve para aqueles que não vão continuar até a 5º
série. Ele é muito pobre, mas se se considera que as crianças pobres, em
geral, param os estudos na 4º série, isso não tem importância". (Por que não
teria importância?) A resposta: "A preocupação do Estado é formar pedreiros,
serventes. Antes havia pedreiros sem curso primário e agora haverá
pedreiros com curso primário... Tais crianças são alunas da favela. O diploma
delas não tem o mesmo valor que os dos outros... No Projeto Alfa pensa-se
que os alunos que seguem esse tipo de ensino (acelerado) entrarão no
mercado de trabalho".
A percepção dos educadores de frente é bastante penetrante. O
ideário psicopedagógico que informa tantas propostas de escola possível e
conveniente para os filhos das classes subalternas vai muito além das
teorias do desenvolvimento da personalidade, do desenvolvimento cognitivo,
da psicologia genética e outras. Ele se mantém até hoje informando a
pedagogia da pobreza porque funcional a uma concepção de sociedade,
onde os filhos das camadas populares estão destinados a ser operários
desqualificados. Não são as carências, a pobreza material e intelectual, nem
os níveis de desenvolvimento psíquico, cognitivo ou cultural do aluno que
levam a uma pedagogia do pobre, mas o destino de classe - futuros
pedreiros, bóias-frias, empregadas domésticas; proletários - que justifica a
sua não escolarização ou uma escolarização mínima, empobrecida.
Neste sentido, por trs do iderio pedaggico, há uma opção de classe e não
uma visão meramente liberal e humanista de sociedade e de indivíduo. Esse
ideário pedagógico dominante mantém-se fornecendo base teórica às
propostas de escola para o povo, porque responde à ideologia dominante e
faz o jogo do capital, de seus gestores e do Estado, que pouco têm de
liberais e humanistas. Foi e continua a ser um instrumento de reprodução
das classes sociais, por mais fatalista que essa teoria reprodutora pareça a
certos teóricos hoje.

É bom manter-nos atentos para não aceitar ingenuamente certas reações às


teorias críticas da escola e de sua relação com a sociedade nas formas
capitalistas. A crítica à crítica e a superação crítica como uma fase passada
estão hoje na moda. Alguns chega a responsabilizar a crítica pelo desânimo
e pelo fatalismo que teria tomado conta dos profissionais da escola.
Julgamos, entretanto, que há razões materiais mais do que suficientes para
que os profissionais da escola tenham pouco entusiasmo em trabalhar numa
causa desprestigiada, não pelas teorias críticas, mas pelos gestores do
público e do privado, aos quais os profissionais passaram a vender, baixo
preço, seu trabalho qualificado. Não foi o surgimento dessas teorias críticas
da educação, por mais questionáveis que elas seja em alguns aspectos, que
levou os profissionais da escola ao fatalismo social e pedagógico. Esse
fatalismo era já inerente à concepção pedagógica dominante no ideário
pedagógico e social que embasava as propostas de educação empobrecida
para os condenados trabalho desqualificado. Se pretendemos criar
condições práticas para que o direito escolarização fundamental seja
garantido para os futuros trabalhadores, ser necessária uma base teórica
sólida que não poderá dar por superada a crítica à função de classe da
escola e do ideário sociopedagógico que a informa.

Quando a crítica ainda é necessária


A análise crítica da função de classe da nossa escola não esgotou. As
teorias críticas da educação e de sua relação com a sociedade tiveram o
mérito de iniciar - apenas iniciar, infelizmente em alguns centros
universitários e em algumas publicações bem distantes dos trabalhadores da
escola do povo - a percepção desse caráter de classe da escola. Não serão
as camadas subalternas, nem educadores de frente que sairão beneficiados
com a superação de um processo crítico apenas iniciado em alguns redutos
intelectuais.
Não foram as teorias críticas que inventaram o caráter de classe da
escola. A reconstrução das experiências pedagógicas e da concepção
teórica que as informa mostra com bastante evidência que até os
professores e supervisores de escola percebem esse caráter de classe. Esta
pode ser a grande lição de experiências pedagógica como a mineira: sem
uma redefinição e superação da visão elitista que se tem do trabalhador e de
sua condição, qualquer tentativa de tornar possível sua escolarização não vai
além de uma escola de segunda categoria.
É urgente um trabalho histórico que mostre as raízes intelectuais e
sobretudo as raízes sociopolíticas desse ideráio pedagógico tão cristalizado
na prática e na representação de tantos profissionais bem-intencionados e
que nem sempre têm consciência das malhas pseudo-intelectuais de que
são prisioneiros.
Os centros de formação - escolas normais e faculdades de educação -
poderiam ter um papel relevante; entretanto, continuam dominados por
currículos fracos e acríticos, voltados apenas para a instrumentalização dos
profissionais com metodologias de ensino-aprendizagem, sem permitir uma
sólida formação teórica e crítica. A questão não é apenas saber fazer, mas
saber o que fazer, a serviço de que interesses ou para quem, o que supõe
currículos mais densos em reflexão teórica sobre a realidade. Diríamos que
essa realidade mudou mais rapidamente do que a matriz pedagógica. Esta
continua presa ao psicologismo e culturalismo.
Voltamos a insistir. A fase da crítica à escola não se esgotou e deve ser
estendida até o interior do processo pedagógico e seu ideário. As teorias da
educação que tentavam, nos últimos anos, trazer aos profissionais uma visão
mais ampla mal chegaram a ser incorporadas nos centros de formação de
normalistas e pedagogos. Em muitos casos, apenas começaram a influenciar
algumas disciplinas da área de fundamentos. Os congressos de especialistas
vinham sendo o espaço de alargamento da visão (Brandão, et alii, 1981).
Entretanto, as disciplinas voltadas ao quê e como fazer não foram atingidas
pela crítica. O cotidiano da prática pedagógica na escola de 1º grau ficou
quase intocado pelas teorias críticas, refugiadas nos centros de pós-
graduação e em revistas e pesquisas especializadas. Os profissionais que
fazem a escola freqüentada pelos filhos dos trabalhadores nas periferias
urbanas e na área rural continuaram ensinando os mesmos conteúdos, com
os mesmos métodos e a mesma concepção acerca da escola, do sucesso,
do aluno, de sua carência, do seu fracasso social e escolar. Um misto
empobrecido de senso comum, humanismo e escolanovismo (Mello, 1982,
cap. IV).
As análises críticas na ação têm que ser estendidas aos profissionais que
fazem a escola do povo comum. Esses profissionais vêm passando por um
processo de aproximação do proletariado quanto às condições coletivas de
vida e as relações de trabalho em que exercem sua profissão. Estão
experimentando condições materiais que contradizem os pressupostos do
ideário pedagógico sobre sucesso e fracasso social e escolar e sobre o papel
da escola na vida dos indivíduos e grupos sociais. Esses profissionais estão
se organizando e se aproximando do proletariado nas formas de luta e
resistência.
Têm tudo para superar a matriz conceitual que informa sua prática escolar e
evoluir para uma concepção sociopedagógica que os capacite para a
construção da escola possível e necessária às classes trabalhadoras, das
quais cada dia estão mais próximos por origem e destino. Os centros de
formação, as publicações e congressos e as associações de classe têm um
papel central para animar e articular uma reflexão crítica a partir dessas
contradições entre prática social e ideário pedagógico.
É urgente investir na articulação de uma nova consciência e concepção
pedagógica junto aos profissionais que fazem o dia-a-dia da escola do povo,
conhecer melhor e trabalhar mais as ambigüidades por que passam esses
profissionais da escola rural e de periferia, ao serem, ao mesmo tempo,
profissionais não-manuais e viverem em condições materiais bem próximas
às do proletariado rural e urbano. Guardam elementos liberais e elitistas,
misturados com o escolanovismo e psicologismo pedagógico e social, que
vão se misturando com novos elementos que nascem da consciência de
suas condições de existência. Está-se formando uma consciência altamente
sofisticada - que pode e deve ser elaborada - sobre sua condição, as
barreiras estruturais e os antagonismos de classe. Os profissionais da escola
primária vivem a ambigüidade de estar a serviço de uma concepção sobre as
causas do fracasso social e escolar das classes subalternas que contradiz
sua experiência material cada vez mais próxima da categoria de classes
subalternas. Nessa ambigüidade, pode-se gerar um ideário novo que
possibilitará uma politização da ação pedagógica e uma consciência
politizada do fracasso escolar e social dos seus alunos e deles mesmos.
Nesse processo conflitivo, podem estar contidos os elementos básicos para
o encontro de uma ação profissional de classe a serviço da classe. É um
processo que vai depender, antes de tudo, da capacidade de organização
desses profissionais proletarizados e de sua identificação com as lutas das
classes subalternas.

Teu destino é trabalhar

A experiência pedagógica do Agreste pernambucano, analisada por


Rogério Campos, traz outras lições. Algumas confirmando os limites da
experiência mineira, outras abrindo pistas para a construção de uma escola
para as camadas subalternas. Trata-se de novas formas de adaptação da
escola que podemos chamar de educação integrada.
A educação integrada insere-se em projetos mais globais que visam à
superação da pobreza absoluta, entendida como conseqüência do quadro
geral de carências que compõem o atraso rural e urbano. São os projetos de
desenvolvimento integrado, hoje tão espalhados e que merecem uma análise
crítica de sua função social e educativa.
O ideário psicopedagógico não é tão marcante nas propostas de escola
integrada. Entretanto, a concepção do povo se aproxima. Trata-se, também,
de carentes, de pobres, porém de carentes materiais e não apenas
psicoculturais.
Aqui nos interrogamos, apenas, que escola será possível dentro dessa
concepção social das camadas subalternas. Se várias experiências
pedagógicas baseadas nas diferenças individuais concluíram que a única
escola possível para os filhos do povo era a escola de carentes, uma escola
de segunda categoria, as novas experiências de educação parecem sugerir
que a escola possível e necessária para o povo deve ser uma escola
diferente: a escola adaptada ou integrada.
Há, entre as experiências, diferenças marcantes, que podem ser as
observadas na comparação entre os relatos de Léa Paixão e Rogério da
Campos. Uma análise mais detida nos levará a encontrar diferenças
significativas entre os diversos projetos de desenvolvimento integrado e
especificamente entre as formas de tratar o componente educação. O
Sistema Integrado de Educação (SIER) é um dos projetos tratados com
maior cuidado e avaliado com interesse. ' Nossa análise não se prende a
essa experiência de educação rural. Temos em mente o que nos parece
caracterizar as propostas de desenvolvimento integrado na sua filosofia
educativa. As propostas da escola de o carentes se concentram no universo
psicobiológico do aluno e alargam-se até os condicionantes socioculturais do
processo de ensinoaprendizagem: carências alimentares, biológicas,
psíquicas e culturais. As propostas de desenvolvimento e educação
integrados partem da carência enquanto problemática sócio-econômica e
visam adaptação das populações carentes a seu meio para melhor explorá-
lo e encontrar saídas para sua pobreza. A proposta pedagógica passa a ser
um dos principais instrumentos de integração homem-meio-processo de
produção.
As propostas de escola de carentes definem a escola possvel a partir dos
condicionantes de origem e terminam reduzindo o aluno à condição de
carente, defasado, lento... As experiências de educação integrada definem a
escola possível e necessária em função do destino que foi reservado aos
filhos das camadas populares. Terminam reduzindo o aluno à dimensão de
trabalhador, produtor eficiente, integrado ao meio, capaz de suprir carências
materiais e reagir às condições adversas.
São hoje duas tendências bastante marcantes na concepção dos
profissionais da escola. Uns olham para a origem sociocultural do aluno que
freqüenta as escolas rurais e das periferias urbanas, e tentam adaptar a
escola a essa origem e às carências que ela gera no aluno. Outros olham
para o destino social a que é condenado o aluno: o trabalho precoce, a
produção, a sobrevivência e propõem adaptar a escola a esse destino
inexorável.
Propostas orientadas na filosofia da adaptação se espalharam por todo o
país e por todas as políticas sociais destinadas às camadas subalternas. É
difícil, hoje, encontrar uma secretaria de educação, de saúde, do trabalho,
onde não haja vários programas e projetos especiais de educação para as
áreas rurais e periferias urbanas que não estejam orientadas pela filosofia da
integração. São inúmeros os programas financiados pelo Estado e por
agências financeiras internacionais que propõem serviços sociais adaptados
e programas de educação integrada.
Subjaz a todas essas propostas o seguinte raciocínio: a escola tradicional
não foi possível para o povo porque os ensinamentos que transmitia eram
disfuncionais. Estavam descolados das necessidades de vida e de
sobrevivência das camadas populares. Este raciocínio não é exclusivo dos
programas de educação integrada ou adaptada. Faz parte da maneira de
pensar de inúmeros profissionais da educação, de políticos, gerentes,
profissionais liberais e das camadas dirigentes em geral.
A escola possível e necessária que corresponda a esta visão será uma
escola adaptada à vida, que integre ao meio. Em outros termos, a escola
para o povo somente se tornar possível se transmitir ensinamentos, hábitos,
valores funcionais à sua realidade, adaptados às suas necessidades de
sobrevivência, trabalho e produção.
O dualismo recolocado
Esta filosofia de escola - adaptada ao destino reservado às camadas
subalternas nas relações sociais de produção e na organização do trabalho -
uma proposta antiga que vai e volta na história da educação brasileira. Pode
ser encontrada em inúmeros programas e campanhas de educação rural.
Podemos pinçar algumas frases que configuram esta filosofia: "A educação
apropriada ao homem do campo não deve ser formal, deve-se propor o
melhoramento da vida do povo e a ação sobre o meio material e social". "A
educação rural deve permitir a aquisição de conhecimentos que possibilitem
ao indivíduo e à comunidade a compreensão do meio em que vivem e os
estimule à busca de soluções para sair das condições adversas em que se
encontram." "A escola rural fracassou pela inadequação dos seus conteúdos
às necessidades reais do homem do campo." "A função da escola será criar
hábitos e estimular os valores de produtividade." "A escola rural integrada a
outras agências educativas deverá incutir no homem do campo o amor à
terra e seu aproveitamento racional, a nobreza e a dignidade do trabalho
agrícola, a orientação para a solução dos próprios problemas." Quantos
leitores se identificarão com estas propostas?
A escola que sintetiza esta filosofia será uma escola polifuncional. Uma
espécie de centro de saúde, educação de base, orientação profissional,
clube agrícola, centro de extensão e irradiação de modernidade. O professor
rural ideal será polivalente, treinado em todas essas artes ou integrado a
outros agentes educativos: extensionistas, atendentes de saúde, agentes do
crédito bancário, cooperativismo. Tantos e tantos funcionários, elevados
ultimamente à condição de agentes educativos a serviço de um mesmo
processo: transformar a mentalidade das populações carentes para um
completo ajustamento ao meio.
Muitas das propostas de educação voltadas para a redução das
desigualdades sociais extremas das populações carentes urbanas e rurais
aproximam-se desta filosofia educativa (CENAFOR, 1983).
Não serão estas propostas uma volta, sob nova roupagem, da clássica
dicotomia que caracterizou sempre o sistema educacional? Para os filhos
das camadas médias e das elites um sistema de ensino que prepare para as
artes, as letras, o saber superior, enquanto para os filhos das camadas
populares um sistema paralelo de moralização elementar, de educação
integral, básica (pouco ensino), que socialize, para a integração social, o
trabalho e a produção, os trabalhadores manuais e os cidadãos
marginalizados.
É sabido como esse duplo sistema marcou a história da educação
brasileira, até o ponto de encontrarmos uma administração dupla. O
Ministério da Educação e as secretarias de educação administrando o
sistema de ensino. Outros ministérios, secretarias e agências públicas e
privadas, nacionais e internacionais, administrando sistema de educação
integral do trabalhador, onde se privilegia a socialização para o trabalho e se
marginaliza o domínio do saber básico para a participação como cidadãos e
trabalhadores.
A pressão das camadas populares que entraram no sistema de ensino
parecia indicar que um único sistema público estava em vias de se
concretizar. Entretanto, observamos que, se hoje temos mais filhos do povo
no antigo sistema de ensino, a tendência vem sendo transferir a velha
dicotomia para o interior da escola pública fazer da escola pública
freqüentada pelo povo um centro de educação básica, de socialização e
moralização para o trabalho e para a integração social, e reservar alguns
centros públicos e a rede privada como centros de ensino e transmissão do
saber. A dicotomia administrativa a que nos referíamos não foi superada.
Apenas o Ministério da Educação e as secretarias de educação passaram a
assumir uma dupla função em sua administração: a educação das
populações carentes através de programas especiais, que terminam
impondo filosofia de educação especial para os trabalhadores. O Programa
Nacional de Ações Sócio-Educativas e Culturais para as Populações
Carentes do Meio Rural e do Meio Urbano (PRONASEC e PRODASEC) não
fogem a essa filosofia, como se pode perceber pelo enunciado.
Em 1926, o governador de Minas Gerais, Mello Vianna, respondia aos
liberais que defendiam a expansão do ensino primário completo igual para
todos: "Para um grande número de crianças, especialmente nas populações
rurais, tem o ensino primário a finalidade exclusiva de alfabetização. A estas
popularções entregues aos trabalhos dos campos, à lavoura e à criação, e a
outros misteres que exigem grande cultura intelectual basta-lhes que saibam
ler, e ver e contar". Em nome de um ensino prático, adaptado à vida, aos
misteres a que se destinam os trabalhadores rurais, a escola levou grande
cultura intelectual, nem cumpriu sua função elementar de ensinar a ler,
escrever e contar. Quarenta anos depois, a filosofia que inspira muitas
propostas de escola para as camadas populares continua a mesma, com
uma diferença. Em 1926, era um governador de um país atrasado, dominado
por oligarquias tidas como tradicionais quem assim pensava. Hoje quem
defende e financia escola adaptada às "populações carentes", diga-se ao
operariado, agências do capitalismo financeiro internacional, técnicos
modernizados, numa época em que o homem do campo avançou em
consciência e organização, reivindica direitos trabalhistas e de cidadania. Por
que até hoje, para nossos filhos, ensino, enquanto domínio do saber
sistematizado, e para os filhos do operariado urbano e rural, saber ações
sócio-educativas e culturais, educação básica, moralização elementar,
hábitos de saúde, alimentação, higiene e, sobretudo, dedicação e afeição ao
trabalho? Por que limitar seu direito a um saber adaptado ao horizonte
reduzido de seu ajustamento ao meio e à mais produção? Qual seria a idéia-
força ou quais as relações sociais e sendo materiais que forçam o sistema
escolar a essa dicotomia permanente tão enraizada? Que sociedade
dicotômica essa que marca, a tal ponto, seu sistema escolar ao longo de
sua histria?
O caráter elitista e dualista da política educacional brasileira e da
escola já foi denunciado insistentemente por Anísio Teixeira e outros
educadores, em décadas passadas. Quando a questão da escola para o
povo volta como questão central, uma análise crítica das diversas
experiências de educação adaptada às populações carentes poderia alertar-
nos para velhos problemas não-superados. O elitismo e o dualismo não
passavam apenas pela exclusão da escola, pela repetência e evasão, mas
pela insistência em propor um duplo sistema - ensino para uns, "educação"
para outros. Esse sistema duplo voltou, nos últimos anos, sob a forma de
projetos especiais para as populações ditas carentes, da área rural e
periferias urbanas.

Enquanto as políticas paralelas e os programas especiais de educação


continuam a ser privilegiados, a escolinha perdida no canto da roça ou da
vila continua marginalizada como espaço de democratização do saber.
Nesse sentido, julgamos que a questão não está em se os programas
especiais, os projetos de escola adaptada ou integrada são feitos e avaliados
com boas intenes e competência, mas a questão deve ser colocada em
outros termos: em que sentido contribuem para perpetuar a clássica
dicotomia do sistema de educação e a tendência histórica a tratar como
especiais as classes subalternas, os trabalhadores, a ponto de ter que
elaborar currículos, metodologias, processos adaptados. Em suma, escola
adaptada. Qualquer modalidade de escola integrada ou adaptada deve levar-
nos a uma análise da estrutura material e social que serve de base a essas
propostas e que as legitima como a única escola possível e necessária para
os cidadãos trabalhadores deste país. Até quando continuaremos tratando o
povo comum como anormais ou fora da norma, a exigir políticas sociais
especiais? É curioso que quando se pensa nesse povo comum, como objeto
de políticas econômicas, tudo se oriente pelos padres normais da lógica
mercantil do mercado de trabalho. Todos são fora de trabalho normal.
Explorados normalmente. Enquadrados na jornada de trabalho, salários, leis,
disciplina da fábrica. Todos são normais para a exploração. Porém, para os
direitos ao saber, saúde, moradia, saneamento passam a ser tratados como
anormais, objeto de políticas especiais. No social são carentes psíquicos,
culturais, biológicos, porém são normais para criar a riqueza deste país. Até
quando essa visão do trabalhador ofuscará nossas propostas de escola
possível? Passemos a ressaltar alguns pontos que merecem nossa análise
quando nos deparamos com propostas de escola adaptada e sonhamos com
a escola possível.

Escamoteando o problema central

Um primeiro alerta deve ser recolocado. Será verdade que a escola do


povo fracassou por não ser uma escola adaptada em suas metodologias e
currículos? Será que a escola rural fracassou por tentar transplantar para a
roça os objetivos, metodologias e programas da zona urbana? É este o
diagnóstico simplista que pode ser encontrado em várias propostas de
escola adaptada.
Parece-nos que o fracasso da escola para o povo da roça, das favelas,
vilas e bairros pobres está em não existir escola. Não fracassa o que não
existe. Não existe escola para a maioria dos filhos do povo. A não ser que
consideremos escola como centro de transmissão do saber sistematizado -
uma casinha perdida num canto da roça, no quintal da casa da professora,
na sacristia, num galpão ou num rancho de palha, onde "leciona" uma jovem
ou senhora corajosa do lugar com três, quatro anos de ensino
elementaríssimo. Dizer que esse arremedo, essa brincadeira de escola
fracassou porque não estava adaptada ao meio uma forma de escamotear o
problema central. Seria possível inventar uma escola mais igualitária em sua
miséria e abandono e mais integrada miséria e abandono das classes
subalternas a que mal serve?
Qualquer filosofia pedagógica, objetivos, métodos e currículos
fracassarão quando faltar uma base material mínima para que se
concretizem. Ultimamente, não se fala mais nessa base material. Fala-se em
novas metodologias, currículos adaptados ou nova função social de uma
escola que materialmente não existe.
Visitamos uma "escola rural" no interior. O técnico da DRE nos falava,
no caminho, do novo currículo integrado à realidade do meio rural.
Importantes inovações metodológicas e de conteúdos vinham sendo
experimentados nessa e outras escolas. Chegamos à "escola". Era uma
capelinha no alto da chapada. Duas professoras na capela escura perdidas
no meio de santos, andores e cheiro de mofo. Uns trinta alunos sentados no
chão. A l.a série olhando para o altar, a 2.a série olhando para o coro. As
professoras, duas jovens do lugar, ex-alunas daquela mesma "escola".
Visitamos outras "escolas" funcionando em galpões, casa alugada e
sacristias.
Podemos cair na ingenuidade de aceitar que esse arremedo de escola
fracassou porque foi transplantada da área urbana para a roça? De fato,
essa pobre escola tem bastantes semelhanças com muitas escolas de
favela, vila e bairro de periferia urbana, onde se amontoam os filhos dos
trabalhadores, subempregados, desempregados e bóias-frias. Há
semelhanças, e grandes, entre as escolas das classes subalternas do campo
e da cidade: sua carência material e humana. Seu fracasso não está em não
ser adaptada, mas em ser tão adaptada, tão igual, tão carente e miserável
quanto a miséria a que o operariado vem sendo condenado. A miséria da
escola pública destinada aos trabalhadores é bastante generalizada. O
trabalho de Rogério Campos mostra essa realidade com dados concretos.
Os dados que ele nos traz, de tão repetidos, não mais nos impressionam ou
nos incomodam, tanto que melhor colocar um pano por cima, ignorá-los e
usar uma nova linguagem que nos desvie para imaginar currículos
adaptados e novas metodologias. Projetos sofisticados passam a ocupar a
atenção dos técnicos e das agências e a gastar o pouco dinheiro em
programar, controlar, avaliar, reprogramar, para uma escola que nem existe,
porque o Estado não compra terreno, não constrói prédios dignos, não paga
salários que estimulem profissionais competentes.
Uma escola possível para o povo tem que começar por criar condições
para sua existência material, sem a qual será romântico reprogramar
alternativas pedagógicas inovadoras. É esta a verdade elementar sempre
esquecida pelas agências internacionais e pelos centros de decisão da
política educacional; verdade esquecida e engavetada nos centros de reflexo
e pesquisa. Esquecida e engavetada para que os recursos públicos,
financeiros e humanos sejam colocados a serviço dos interesses do capital e
de sua segura reprodução e concentração, e a serviço da manutenção de
órgãos e quadros burocráticos legitimadores do poder, do Estado e de
agências internacionais.
As propostas aqui analisadas mostram que a escola para o povo é do
possível quando há vontade política. A análise de Rogério Campos evidencia
como há propostas que se concentram na integração, sem perder de vista a
base social em que estão sendo implantadas, e como possível construir uma
escola com níveis mínimos de coerência, quando há recursos.
Possivelmente esta é a melhor lição a ser tirada. Quando se tentava
justificar a negação da escola para o povo, sempre se traziam velhas
justificativas: país continental, distâncias, povo disseminado e que não
valoriza o estudo. .. Foi suficiente o capital começar a se interessar pelo
campo para as distâncias se encurtarem. A vontade política nascida dos
interesses econômicos mostra que as velhas justificativas não passavam de
pretextos: a escola eficiente é possível até no Agreste. Experiências como
essas, quando sérias, bem acompanhadas e reconstruídas podem prestar
um benefício à remoção de velhos preconceitos. Evidenciam que querer é
poder: a escola para o povo será possível quando politicamente desejada.
Parece-nos que a validade dessas propostas de escola popular não
nasce de seu caráter integrado, mas dessa aceitação política e dos recursos
que nelas são concentrados. Haverá vontade política para não concentrar
recursos de agências internacionais e do Estado apenas para experiências
isoladas que lavam a alma desse Estado, dessas agências e de tantos
técnicos, deixando na miséria secular 99% das escolas destinadas aos filhos
do trabalhador?
Integrar para fortalecer a escola

Um dos pontos mais marcantes na experiência do SIER, reconstruída


por Rogério Campos, é a nova organização integrada de escolas de base,
escolas intermediárias e centros de educação. Como mostra o trabalho, não
se trata de uma mera distribuição de funções, mas de uma forma de
fortalecer a escola isolada perdida na área rural.
Sabemos que uma das causas da impossibilidade da escola popular se
constituir em centro de transmissão - assimilação do saber elementar - a sua
fraqueza como instituição social, que se vincula a sua fraqueza como
instituição administrativa. A escola popular e seus profissionais, em muitos
lugares, são mais uma massa de manobra mesquinha do que agências e
agentes especializados numa função social.
O profissional da escola primária é indefeso frente às manobras
interesseiras dos donos da terra, do poder e do dinheiro. O isolamento da
escola e do seu profissional os torna tão fracos e vulneráveis que os deixa
mercê de interesses externos ao processo de ensino. Uma integração
interescolar como a experimentada no SIER pode ser um mecanismo de
fortalecimento da escola e de seus trabalhadores, tornando a possibilidade
de constituição de uma escola para o povo menos vulnerável. Entretanto, é
bom lembrar que, para que isso aconteça, a integração de escolas não se
pode inspirar em motivos meramente técnicos, mas políticos. O que implica
fortalecer os profissionais do ensino antes de mais nada como categoria
profissional. De pouco adiantará uma integração formal de escolas se os
seus docentes continuarem fracos, sem garantias e estabilidade no emprego,
com salários de fome que os jogam na busca de favores e proteção na trama
de interesses localistas. A fraqueza da escola popular passa pela fraqueza a
que foram condenados seus mestres como profissionais. A redefinição das
relações de trabalho a que são submetidos os trabalhadores da escola
popular a condição básica para tornar possível a instrução do povo.

A profissionalização do trabalhador do ensino

A experiência das Unidades Escolares de Ação Comunitária, relatada e


analisada por Carlos Brandão, chama a nossa atenção, entre outros pontos,
para o seguinte: o papel que poderá ter o profissional do ensino, o professor,
na construção de uma escola para o povo. Onde estaria a novidade? O
professor sempre foi responsabilizado pelo fracasso da escola e de sua
baixa produtividade. Sempre que se pensa em revitalizar a escola falida
pensa-se em qualificar seu professor, em treiná-lo. Estaríamos repetindo
velhas saídas?
É verdade que o profissional da escola foi sempre responsabilizado pelo
fracasso escolar. Como é verdade que dele se esperou o milagre de salvar a
escola e os alunos do naufrágio de uma instituição jogada à deriva, nunca
desejada politicamente. A imagem do professor-salvdor de uma causa
perdida faz parte do mito criado para inocentar os verdadeiros responsáveis
por uma escola falida porque não era querida.
Os textos aqui reproduzidos não pretendem contribuir para a manutenção
desse mito do professor-salvador. O mito é velho e, como todo mito, tem
servido para enganar alguns e explorar a muitos trabalhadores, profissionais
da arte de ensinar. Já em 1883, Rui Barbosa, em seu famoso Parecer sobre
a instrução pública no Império, lembrava o "belo conceito" de Spencer: " . . .
se muito importa o método de ensino, de muito maior importância é a
qualidade do mestre, com professores hábeis para o exercício consciente do
magistério: da pior das mansardas se faz uma boa escola; com pessoal
inapto nem nos palácios mobiliados".
E o mito foi crescendo, Quantos discursos de políticos e de paraninfos
em festivas formaturas lembraram às novas mestras a nobreza de sua
missão como salvadoras de escolas falidas? "Tendo por teto a copa de uma
árvore, e por livro didático suas próprias folhas, mais faz o mestre
conhecedor do seu mister do que a incompetência, cercada do mais luxuoso
material escolar", diz a velha epígrafe. E como foi repetido! Para serem fiéis
ao mito e provarem a verdade do axioma e do pensamento do grande
pensador inglês e do brasileiro nem as mnimas condições de trabalho e
material didático foram dados ao mestre-milagreiro. Teve ele de exercer sua
profissão em mansardas ou tendo por teto a copa de uma árvore e por livro
didático e por caderno o papel de rascunho usado (quanto tinha).
A escola possível para o povo exige a derrubada desse mito de professor-
milagreiro-salvador de causas perdidas. O que Carlos Brandão nos aponta,
através da experiência das UEACs,é a necessidade de profissionalizar o
trabalhador do ensino. É o estabelecimento conseqüente de uma carreira do
magistério que incentive o ingresso do profissional, sua estabilidade e o seu
interesse durante o percurso (o que não é novidade em outros países,
inclusive latino-americanos), com atenção especial à profissionalização e
carreira de professores rurais.
As UEACs mostram pistas inovadoras nessa direção. Mostram que é
possível a vinculação ampliada do professoar à escola e, por extensão, à
comunidade de trabalho, com ampliação devidamente bem-remunerada de
sua jornada de trabalho, de tal sorte que, como tantos outros profissionais, o
professor possa ser um especialista competente de seu ofício e um
trabalhador em "tempo integral", A dedicação exclusiva do docente à escola
seria uma forma de consolidação do profissional do ensino. Uma forma de
fortalecê-lo como categoria e, conseqüentemente, fortalecer a escola popular
que, como vimos, está entregue em seu isolamento e fraqueza aos
desmandos de interesses externos ao processo educativo. Uma escola
popular forte só nascerá de um profissional profissionalizado e de uma
categoria organizada e forte.
Tocamos num ponto sempre marginalizado. Era mais fácil apelar para o
preparo de um professor instável do que profissionalizado em termos
institucionais, ou seja, inseri-lo numa organização estável de trabalho, com
leis próprias de entrada, ascensão, permanência, estabilidade no emprego,
com uma carreira definida que o estimulasse e que valorizasse tanto os
níveis de titulação quanto o saber acumulado na prática profissional.
Em síntese, se as propostas pedagógicas, como a mineira, privilegiavam
mudanças metodológicas e as propostas de escola integrada privilegiam
mudanças ao nível dos conteúdos, a experiência das UEACs nos diz que
são urgentes mudanças organizacionais do trabalho escolar e da
constituição de um profissional regido por direitos pom definidos em lei e
garantidos na prática, e não entregue a uma administração do arbítrio.
Respeito e decência na administração do ensino
Nesta direção, podemos ressaltar outro aspecto: o comprometimento dos
profissionais com o seu trabalho. A política governamental sempre insiste em
que a baixa produtividade da escola popular se deve ao despreparo de seus
profissionais. A partir deste diagnóstico parcial, a capacitação e o
treinamento surgem logo como o relento médio mágico. Professores são
treinados e o sistema de ensino onde são jogados encarrega-se de anular os
efeitos do treinamento. Os baixos níveis de motivação do trabalhador do
ensino nunca são levados em conta. As pesquisas e as lutas e reivindicações
dos professores mostram que eles se sentem trabalhadores malremunerados
a serviço de uma causa desprestigiada.
Ainda que o novo mestre tenha ouvido atentamente o discurso de
formatura e saia da escola normal acreditando em sua nobre missão, com
um mês de trabalho numa escola de periferia ou da zona rural percebe que
a preocupação real com a instrução do povo é uma mentira. No cotidiano de
sua experiência profissional, aprende uma triste lição: no sistema público de
ensino popular tudo vale para o ganho e a barganha política: diretor
compadre é preferido, Como professor eficiente é removido ou despedido,
merenda escolar, desviada, escola, construída onde não precisa, dinheiro
dos programas de educação gasto em manter burocracias... O profissional
da escola vai se descobrindo representando um papel ridículo na
tragicomédia da administração do ensino público, onde instruir o povo é
um pretexto para outros jogos não muito honestos. Nesse contexto tão real -
ainda - a motivação e o preparo de qualquer profissional não resistirão muito
tempo.
As experiências aqui analisadas mostram, à farta, que, quando os
profissionais da escola popular percebem que algo está mudando e que a
proposta de garantir ao povo o direito à instrução elementar parece ser
tomada a sério pelo Estado e pela sociedade, eles assumem a tarefa,
identificam-se com a causa, inventam métodos, redefinem conteúdos e o
aluno começa a aprender.
A avaliação da proposta mineira foi reveladora neste sentido. A concentração
de recursos nas primeiras séries do ensino primário e o estímulo financeiro
ao professor criaram a imagem de que desta vez havia sinceridade e
decência e a administração tratava com respeito e seriedade os problemas,
os recursos, a escola popular e scus profissionais. Os resultados positivos do
processo pedagógico deveram-se mais a esse crédito dos profissionais do
que às novas metodologias. Carlos Brando e Rogério Campos ressaltam o
mesmo aspecto nas UEACs e no SIER.
Estas experiências, nas suas limitações, indicam que qualquer tentativa
de inventar uma escola para o povo terá que passar, necessariamente, pelo
comprometimento dos professores como trabalhadores de uma categoria
profissional profissionalizada. Não se entenda na perspectiva tecnicista que
insiste em que só no dia em que tivermos quadros competentes a escola do
povo será possível. Qualquer capacitação técnica cairá no vazio, enquanto a
educação escolar continuar descaracterizada como projeto político e
entregue a uma administração sem respeito e decência no tratamento da
instrução popular e de seus profissionais.
Falamos em motivação como categoria profissional. Uma causa se
torna profissionalmente motivadora quando se torna uma causa política. A
educação escolar popular tem tudo para isso. A diferença entre a escola
primária e os outros níveis de escolarização e em que aquela é a única que
caracteriza um dever político do Estado e da sociedade e um direito político
de todo cidadão. A dimensão política não precisa ser buscada fora, é
inerente à atividade a que esses profissionais se dedicam.
Este aspecto parece-nos central para uma proposta de escola possível:
reconquistar o crédito dos profissionais no seu trabalho. Entretanto, esse
crédito passa pela reconstrução da imagem das políticas sociais públicas
destinadas às camadas populares: deixarem de mecanismos de atendimento
a carentes, ou meros instrumentos reprodução da força de trabalho para o
capital, através de minguadas migalhas que sobram da reprodução direta do
capital; recolocar essas políticas sociais - como garantia de atendimento aos
direitos elementares de todo cidadão - pode ser um caminho para
reconquistar a confiança do professor no ofício a que se dedica.
Em outros termos, só terá sentido apelar ao crédito e ao compromisso
do profissional do ensino popular quando formos redefinindo o Estado, seu
crédito e compromisso com as camadas populares. Aí fica posta a questão:
que Estado seria esse? O Estado capitalista, que tão eficientemente honrou
seus compromissos com o capital? Um Estado gerido por liberais ou social-
democratas, um pouco mais atento a minorar tensões sociais através de uma
cidadania controlada? Velhas questões não-resolvidas na formação política
brasileira (Lmounier, 1981; Weffort, 1981, 1984; Vianna, 1976, 1981).
Queremos deixar claro que, quando enfatizamos a motivação do
trabalhador do ensino como categoria profissional, estamos longe mesmo de
cair na ingenuidade de apelar para seu compromisso patriótico
de salvar a escola que outros destruíram. Esta vem sendo a filosofia de
várias políticas públicas, que apelam a uma espécie de mutirão cívico ou à
participação de pais, mestres e comunidade, para que assumam os serviços
sociais deixados na maior miséria por um Estado comprometido com a
burguesia. Longe de nós apoiar essa estratégia e essas campanhas, hoje tão
frequentes, que não passam de um desrespeito às vítimas dessa política
econômica e social - pais, alunos, mestres, comunidades populares - agora
elevadas categoria de salvadoras.
A escola possível, sem dúvida, depende de seus profissionais; sem a
sua competência, crédito e trabalho, nada será possível. Entretanto, isso não
pode encobrir a indecência e descompromisso do Estado para com os
direitos elementares do cidadão-trabalhador a saúde, saneamento, água,
moradia, segurança, transporte e instrução. Repetimos: o crédito e o
compromisso do trabalhador do ensino como profissional passará pela sua
profissionalização, pela redefinição de uma organização do trabalho. Um
trabalho arcaico que não acompanhou os avanços e as conquistas mínimas
do trabalhador brasileiro nos últimos cinqenta anos, nem acompanhou as
mudanças ocorridas no próprio Estado, no seu papel e na nova racionalidade
com que o administra. Temos um Estado moderno, gerido pela lógica
empresarial, teimando em administrar seu pessoal na mesma lógica do
Estado tradicional do público, baseado em funcionários públicos, numa
época em que estes exigem ser tratados como profissionais, como
trabalhadores, como sujeitos de direitos.
Constantemente, as diversas administrações vêm apelando ao
compromisso dos professores com a escola do povo e pouco fazem
aos direitos para redefinir a tradicional organizaão do trabalho destes
profissio nais. Por esses caminhos, a escola do povo, mais uma vez, não
será possível. Está sendo ressuscitado um neo-sacerdócio e a imagem do
professor virtuoso, dedicado à nobre missão de tirar o povo das trevas da
ignorãncia, imagem que não corresponde às reais condições de trabalho.

Aluno: de carente a trabalhador que estuda

O texto de Léa Paixão e o de Rogério Campos mostram propostas


pedagógicas em que predomina a visão que se tem do aluno das classes
subalternas como carente cultural, psicobiológico ou material. Os textos
denunciam os limites dessas propostas dominadas por essa concepção de
aluno. Carlos Brando mostra que uma percentagem de alunos nas escolas
populares diurnas são trabalhadores precoces, e Sérgio Haddad, no texto
final, traz-nos uma proposta concreta para trabalhadores que estudam nos
cursos noturnos.
Insistíamos, no início, em que a concepção de aluno das classes
subalternas tem que ser redefinida se pretendemos lançar os alicerces de
uma escola popular. Todos os textos são unânimes neste ponto tão central.
Quem frequenta as aulas das escolas de periferia e da área rural são
futuros trabalhadores, cujo destino será o trabalho manual, em sua maioria.
Não só isso; são trabalhadores precoces forçados ao trabalho e que, até
quando podem, roubam umas horas ao trabalho, ao descanso e ao sono
para estudar. Aprofundar mais essa realidade seria profundamente revelador
para entender problemas de repetência e exclusão da escola. Sempre foi
uma pista esquecida para os educadores mais sensíveis ao espírito, à
vontade, à psique e a sua evolução.
Entretando, o que este livro pretende deixar claro é que colocar o
trabalho e a condição de trabalhador como a fronteira que separa a
qualidade das escolas, a riqueza ou pobreza dos currículos e, sobretudo, a
certeza de frequentar por longos anos a escola ou dela ser excluído
precocemente, ser um avanço da maior importância no equacionamento de
velhos problemas e no encontro de novas sadas.
Ver nas salas de aula não um estudante a mais, carente ou não, mas
um filho de trabalhador, futuro trabalhador e até um trabalhador-estudante,
pode ser mais explicativo do êxito ou fracasso do que análises estatísticas
sofisticadas. Se percebermos no aluno o trabalhador-estudante que ele é,
nossa pergunta poderá ser esta: que níveis de instrução o capital permite a
seus trabalhadores? Que níveis de saber seriam necessários ao trabalhador
para se defender como classe trabalhadora?
O capital, as relações de trabalho estão tão distantes da escola, das
teorias pedagógicas, que aos educadores não é fácil perceber que a fábrica,
a empresa, as relações de trabalho e produção invadiram a escola, enquanto
nós ficávamos entretidos em aplicar testes de QI, de prontidão, em discutir
taxonomias, bem como a função reprodutora dos aparelhos ideológicos do
Estado. Os educadores mais progressistas chegavam até a descobrir e
denunciar o descuido do Estado com seu sagrado dever de garantir escola
para todos como determinante último da reprovação, repetência e evasão. O
que é uma verdade nunca suficientemente repetida. Entretanto, para muitos,
esse Estado, tão esquecido de seus sagrados deveres, não vai além dos
administradores de turno, dos políticos, aos quais será necessário, relembrar
seus deveres. Uma visão mais abrangente do Estado não faria mal aos
educadores e, sobretudo, uma visão mais clara da relação entre fábrica, sua
lógica como lógica do movimento do capital, e o Estado, o político e as
políticas públicas. A vinculação entre a escola classes popular, seus
problemas e o mundo do trabalho e da produção é mais forte do que
pensamos.
Entender esse mundo do trabalho, sua relação com o político e a
educação do cidadão-trabalhador seria tão necessário a um profissional da
instrução popular quanto conhecer o mundo da psique, sua evolução e
relação com os processos de ensino-aprendizagem. Não obstante, esse
mundo do trabalho está totalmente ausente dos currículos que formam esse
profissional da instrução do cidadão-trabalhador, como se seu ofício de
mestre do ensino se desse fora do tempo e da materialidade do concreto,
numa cidade bucólica, onde vivem espíritos e vontades que devem ser
cultivados para o convívio a intenção social. O mundo do educativo sempre
foi tão espiritualizado que as teorias pedagógicas esqueceram a concretude
das relacões de trabalho e produção em que o trabalhador-estudante está
inserido e que ser submetido e das quais tentará se libertar. Quando esse
mundo do trabalho entra nos centros de formação de profissionais do ensino,
ou nas teorias pedagógicas, ele apenas entra como um estranho, algo que
atrapalha os processos de ensino-aprendizagem ou atrapalha a evolução e o
desenvolvimento normal da criança e sua educação. Será que nas reformas
das escolas normais e centros não, de formação do pedagogo
encontrará espaço o estudo desse mundo do trabalho e dessa condição do
trabalhador-estudante constitutiva da maioria dos alunos da instrução
popular?
O fato de termos nas aulas trabalhadores que estudam não é apenas o
melhor ponto para entender por que a escola popular fracassa. Essa
condição de trabalhador dever ser o ponto de partida para encontrar a escola
possível e necessária sem cair em acomodações e hibridismos. O relato-
análise de Sérgio Haddad é relevante, a esse respeito. Quando a aceitação
do cidadão-trabalhador-estudante é incorporada numa proposta pedagógica,
parece que uma claridade nova passa a dar nova iluminação a velhos
problemas. O cotidiano do processo pedagógico pode não ser alterado
demasiado, porém, sob essa iluminação, adquire novos contornos e
sentidos. A própria função social da escola - agência socializadora do saber
sistematizado - tem de ir além quando é vista à luz da especificidade da
negação da cidadania dos trabalhadores. A classe trabalhadora que constrói
a cidade excluída de muito mais do que do saber sistematizado. É excluída
do espaço para a convivência, solidariedade, lazer, cultura. É isolada no
espaço do trabalho, do transporte para o trabalho e da recuperação das
forças para voltar ao trabalho. Como nos dizia um operário: "Passo o meu
tempo no trabalho, indo e voltando para o trabalho, dormindo para tornar ao
trabalho". A escola como espaço social tem de ter uma função básica: ser o
espaço sociocultural que o mundo do trabalho e a cidade negam ao
trabalhador. A proposta de curso noturno do colégio Santa Cruz é relevante
na tentativa de construir esse espaço; sua leitura atenta pode abrir pistas
para quem acredita na possibilidade de uma escola para o trabalhador.
A escola para os filhos das classes dirigentes, dos gestores e dos
intelectuais tem uma função que vai além de ser a transmissora do saber
sistematizado. A experiência da escola enquanto experiência humana e
sociocultural vai além dos conhecimentos aprendidos nos livros e com os
professores. A escola, o colégio, a universidade é em si espaço
sociocultural. Enquanto experiência e vivência coletiva, lenta, vai se
familiarizando com uma concepção de mundo, de homem, de sociedade, de
pensar, vai dando segurança, desconfiança: o saber duvidar, questionar,
indagar. Essa escola para essa classe não introduz seus filhos apenas no
mundo letrado. Ela transmite segurança, informação, e, sobretudo, um
treinamento lento no raciocínio lhes permitirá inserirem-se na lógica e no
modo de pensar da ordem social dominante. Essa escola não tem tanto a
função de transmitir o saber sistematizado socialmente produzido, mas a
função de introduzir, habituar, internalizar o modo de saber e de pensar
dominante. Os filhos das camadas médias e das classes dirigentes em sua
maioria não saem da escola sabendo muito mais sobre o acervo de
conhecimentos acumulados, sobre a natureza e a sociedade. Eles saem
sabendo mais sobre a lógica que regula essa sociedade, que regula o poder,
o dinheiro, a produção. Saem iniciados nas artes de tirar partido desse jogo,
de se defender. Saem da escola menos sábios do que sabidos. É isso que a
experiência lenta e longa da escola capitalista permite a quem a
experimenta.
Ultimamente, os educadores progressistas passaram a defender a
escola para as camadas populares como o mecanismo de introduzi-Ias no
mundo letrado. Seria este o problema central, ter privado esses cidadãos dos
instrumentos básicos para sua inserção num mundo moderno e letrado? A
burguesia não condena o cidadão-trabalhador a ser um iletrado. Até aí não
seria problema para a ordem social vigente: ter cidadãos e trabalhadores
letrados facilitaria sua inserção nessa ordem e os tornaria mais funcionais.
Qualquer projeto de escola para as classes subalternas que tente
instrumentalizá-las para o mundo moderno letrado receberá o apoio da
burguesia e dos gestores de seu Estado, será um projeto permitido, pelos
menos enquanto não gastar o dinheiro público, tão demandado para a
reprodução do capital em outras áreas mais prioritárias.
O cidadão-trabalhador é excluído exatamente desse algo a mais que
uma experiência de escola vivida lentamente dá aos filhos dos não-
trabalhadores manuais, dos não-operários: é-lhes negado o cultivo do ser
pensante, racional, que eles são; é-lhes negada uma experiência
sistematizada de saber duvidar, questionar, indagar os porquês. Exatamente
a experiência que a escola oferece aos não-operários.
Poderá ser um operário letrado, não um pensante, nem um "sabido":
porque seu destino é ser um trabalhador não-intelectual. E esta condição que
lhe é reservada na ordem sócio-econômica, onde tudo estará estruturado
para que não pense, para ser um desqualificado.
A escola necessária para o operariado teria que garantir o espaço para
ser o trabalhador pensante que essa ordem lhe nega. O texto de Sérgio
Haddad é extremamente importante nesta direção, mostrando que o jovem
operário busca na escola uma experiência mais abrangente do que receber
instrumentos para se incorporar mais facilmente ao mundo letrado. Voltam à
escola noturna para viver uma experiência coletiva que lhes é negada pela
cidade e pela rotina despersonalizadora, embrutecedora da organização
capitalista do trabalho. Não é isso o que encontram na maioria das escolas
que lhes são oferecidas. Como vimos, o que a eles se oferecem são
propostas que negam a possibilidade de experimentar a escolarização lenta,
por exemplo: suplência concentrada, cursos de treinamento, escolas de
produção, currículos mínimos, educação funcional. A escola, enquanto
experiência vivida e apreendida lenta e coletivamente, a que nos referíamos,
não só lhes é negada nas políticas de suplência e outros mecanismos não-
formais de educação, mas até na escola formal diurna ou noturna onde
passam alguns anos.
Visitando uma escola de periferia ou rural e um colégio particular, ou
até mesmo colégio para os alunos do diurno e do noturno podemos sentir o
contraste em termos de experiência coletiva cultural. A escola rural e de
periferia normalmente é triste, sem vidas só salas de aula, sem ambientes,
sem tempo (3 ou 4 turnos), para o coletivo. Só há tempo e espaço para a
relação docente-discente na aula, docente que fala, discente que escuta;
atento quieto, ca1ado , O aluno está sempre no tempo e no espaço do
professor sem tempos e espaços próprios. No colégio privado, colorido,
alegre, amplo,há espaços: no recreio, no cartaz, no teatro, na brincadeira, na
sátira ou na crítica e até na rebeldia e na indisciplina. O colégio e a faculdade
são educativos além da aula, muitas vezes mais fora do que dentro da aula.
A nova pedagogia criativa, que informa as relações nos colégios
freqüentados pelos filhos das camadas médias e das elites, não clegou às
escolas do povo onde não há nem espaço nem tempo material para o
criativo. O futuro operário é excluído da oportunida que aos nossos filhos é
dada: viver na infância, na adolescência e juventude a experiência escolar,
uma das experiências sociocultur mais marcantes. A classe operária foi
entrando na escola, porém não conquistou ainda o direito ao tempo e ao
espaço necessário, viver essa experiência social e cultural que se tornou
necessária aos filhos de outras classes. Ela tem que ser preparada
precocemente para, a vida, o trabalho e a produção. Os filhos da classe
operária terão que ser trabalhadores produtivos para que os filhos
adolescente; jovens da burguesia possam viver uma experiência de escola
cada vez mais longa, ou ao menos possam vegetar, divertir-se, goza vida,
gastar o tempo improdutivamente, despreocupadamente.
O operariado tem muito espaço a conquistar para gozar do ; direito à
escola, e os profissionais da escola têm muito o que inventar para a
construção de sua escola. Na experiência de curso noturno reconstruída e
analisada por Sérgio Haddad tem-se a consciência de que não é qualquer
escola que interessará às classes subalterna; tenta-se fazer com que o
jovem trabalhador que volta à escola encontre a possibilidade de uma
experiência humana e cultural que a cidade e o trabalho lhe negam.

A ESCOLA DOS CARENTES:


UM PROJETO EM MINAS GERAIS

LÉA PINHEIRO PAIXÃO


(Universidade Federal de Minas Gerais)

A democratização da educação obrigatória posta hoje deve enfrentar


com seriedade um desafio que não é de hoje: como garantir a escolarização
das crianças que vêm das camadas trabalhadoras da sociedade brasileira?
Essas crianças têm tido menores chances de se escolarizar; são candidatas
potenciais a abandonar a escola precocemente ou à repetência. As altas
taxas de evasão e repetência na escola brasileira não constituem fenômeno
recente, como demonstram as estatísticas da década de 40. No entanto, a
incorporação do fenômeno a ser enfrentado pela política educacional é
recente.
A literatura pedagógica costuma englobar evasão, abandono,
repotência sob a expressão "fracasso escolar", que prefiro substituir por
"fracasso da escola", por considerar mais adequada ao estágio atual de
conhecimento, e explico por quê. A expressão "fracasso escolar" indica uma
direção de análise da questão que assume que o "fracasso" é conseqüência
da incapacidade do aluno de responder às expectativas da escola, e também
conseqüência de uma forma de imaturidade ou atraso da criança, que
impede ou dificulta que ela acompanhe as atividades ali desenvolvidas. A
escola é vista de forma acabada, intocável, modelar. Cada é avaliada em
função dos padrões (de comportamento, de conhecimento, de habilidades)
propostos pela escola.
Quem não é capaz de responder às exigências que tais padrões
propõem não "está pronto", não "está maduro" para acompanhar processo
de escolarização. A falta de maturidade, de prontidão, inteligência, de
competência da criança tem explicações. Antigamente, dizia-se que a criança
que não aprendia ou apresentava dificiculdades para aprender, não tinha as
aptidões necessárias para o trabalho escolar. Como aptidões são
características com forte componente hereditário, a escola pouco podia fazer
para enfrentar o desafio. Mais recentemente esta explicação vem sendo
alterada com introdução de análises sociológicas. A criança que tem
dificuldad para aprender não é "burra", ela apenas não está preparada para
aprendizagem que a escola oferece, porque vem de um meio cultural carente
de estímulos adequados; ela apresenta, frequentemente, problemas de
saúde, de nutrição que impedem ou dificultam a aprendizagem. As duas
explicações acima tendem a colocar a responsabi lidade do fracasso na
criança: "A vítima transformada em réu' (Mello, 1981).
Hoje, os profissionais da educação comprometidos com os interesses
das camadas populares tentam objetivar o problema do fracasso da escola
questionando não um aluno para uma escola-padrão mas a relação entre a
escola e as camadas populares na sociedade brasileira atual. Se o filho do
trabalhador chega à primeira série do 1º.grau sem saber pegar no lápis da
forma mais adequada para iniciar o processo de escrita, vamos pensar numa
escola que comece ensinando essa criança a pegar no lápis. Se o filho do
trabalhado nunca folheou um livro, nunca seguiu ordens coletivas, vamos
organizar uma escola que lhe propicie a aquisição dessas habilidades (si
forem necessárias).
Analisar o fracasso da escola que se propõe a escolarizar as crianças
das camadas trabalhadoras supõe: conhecimentos das especificidades de
cada criança, os padres, os valores, as experiências, a cultura, projeto de
vida de sua classe e o significado que a escola, pode ter para ela.
Como adequar a escola aos interesses das camadas trabalhadoras no
Brasil de hoje? Esta é uma questão fundamental que baliza prática de muitos
profissionais da educação e a adequação pode ser realizada em diferentes
direções. Para algumas professoras primária de Belo Horizonte (Paixão,
1981), por exemplo, as crianças pobres que vão ser mais tarde pedreiros,
lavadeiras não precisam saber muito, porque não vão continuar os estudos
após a 4º série; logo, busca da adequação pode significar um "ensino mais
livre, menos exigente".
Na década passada, a Secretaria de Estado da Educação desenvolveu
em Minas Gerais um projeto que buscava, ao nível da política educacional,
dar uma resposta a esse desafio. Diante dos altos índices de evasão e
repetência, e reconhecendo que o fracasso na escola atinge em grande
escala as crianças das camadas populares, o Estado de Minas Gerais tentou
implantar um projeto (Alfa) que buscava diminuir os índices de defasagem
entre idade e série nas séries iniciais do primeiro grau.
O Projeto Alfa foi desenvolvido a partir de 1976, após uma experiência
de um ano em quatro escolas de 1. grau (séries iniciais) da rede estadual,
localizadas na periferia do município de Belo Horizonte. Em 1977, um grupo
de docentes da Faculdade de Educação da UFMG participou, a convite da
Secretaria da Educação, de discussões sobre o projeto. Em 1979, curiosa
quanto aos efeitos produzidos pelo Alfa, realizei uma pesquisa sobre
resultados já obtidos pelo projeto, entrevistei inspetoras de ensino,
supervisoras da equipe central e da equipe intermediária e de oito escolas de
Belo Horizonte, localizadas no centro e na periferia, que visitei. O resultado
desse contato com a realidade me deu indicações de como o Projeto Alfa foi
vivido em algumas escolas, como no percurso entre Secretaria da Educação
e as escolas ele sofreu alterações. Tentei avaliar seu significado para o
processo de escolarização dos filhos das camadas trabalhadoras e, em
particular, sua proposta de adequação da escola que comece àquelas
crianças. A busca de alternativas para a adequação da escola aos interesses
das camadas populares, que hoje parece alimentar a política de educação
em muitos Estados, deve passar pela análise dos resultados de práticas
concretas já ensaiadas. Por isso julgo interessante relatar a experiência do
Projeto Alfa em Minas Gerais.

A proposta de adequação à carência

O projeto Alfa propunha-se enfrentar os altos índices de evasão e


repetência, tentando implantar uma série de medidas pedagógicas que
foram experimentadas em quatro escolas da periferia de Belo Horizonte. As
medidas provocaram resultados positivos em três delas. Em 1977, a
SEEC/MG resolveu aplicá-las em todas as classes de 1º série do município
de Belo Horizonte e em algumas classes de outros munícipios.
O modelo pedagógico utilizado pelo Projeto Alfa para diminuir os
índeces de evasão e repetência nas séries iniciais do 1º grau era resultado
de um conjunto de medidas que visavam a dois objetivos, Em primeiro lugar,
exercer uma ação dita corretiva entre aquelas crianças que apresentam uma
defasagem entre idade cromológica e série escolar. As medidas deveriam
propiciar uma aceleração dos estudos de modo que se conseguisse,
rapidamente, diminuir a defasagem. Na medida em que vencessem as
etapas de aaprendizagem proposta para cada série, os alunos seriam
promovidos à série em qualquer época do ano letivo. Em segundo segundo
lugar, o projeto deveria exercer uma ação preventiva entre alunos que
poderiam se tornar defasados, aqueles que apresentavam maiores
dificuldades nas aprendizagens escolares.
Para conseguir acelerar os estudos dos defasados e prevenir os
futuros defasados a Secretaria da Educação dispunha, basicamente, dos
seguintes instrumentos pedagógicos:
- uma tecnologia de ensino o Diagnóstico para prescrições de ensino, que
organiza os conteúdos a ser transmitidos e os objetivos a ser
alcançados em etapas. Em cada etapa, o aluno, como acontece neste
tipo de metodologia , era testado antes, para que fosse verificado seu
grau de competência. Em seguida, deveriam ser organizadas atividades
para que ele atingisse os objetivos.Após a testagem final ele era
considerado apto ou não a passar para a etapa seguinte ;
- um programa de ensino básico, também chamados por algumas
professoras de programa minimo. Este programa foi elaborado por uma
equipe de especialistas nas diversas áreas do conteúdo, a partir do
programa official de 1973 e procurava ajustar-se às características dos
alunos defasados. Este ajustamente supunha alguns cortes de conteúdo
em relação ao programa oficial e principalmente uma ampliação do
período de alfabetização para dois anos (1º e 2ºséries );
- uma estimação à adoção do método fônico como método para
alfabetização. Até então, no Estado de Minas Gerais, as escolas oficiais
trabalhavam, mais frequentemente, com o método global.
- um programa de assistência aos alunos, que supunha atendimento à
saúde, ao desenvolvimento psicopedagógico, à alimentação e
distribuição de material escolar;
- um programa de assistência às professoras e supervisoras para que elas
pudessem executar o projeto com um acompanhamento técnico-pedagógico;
- um programa de distribuição de material didático aos alunos e às
professoras.

Para alcançar seus objetivos, o Alfa previa um sistema de


remanejamento constante dos alunos, de modo a manter as turmas
homogêneas. Vencida uma etapa do programa, o aluno deveria passar a
uma turma adequada ao seu nível, independente da época do ano. Neste
sistema, foi possível a muitos alunos ser promovidos série seguinte antes do
final do ano letivo. Alguns deles, através dessa "aceleração de estudos",
puderam completar as quatro séries iniciais em dois anos. Do ponto de vista
da estatística, a aplicação do Alfa gerou bons resultados na primeira série.
Os índices de promoção sofreram melhora considerável e a evasão diminuiu:
PROMOÇÃO - 1ª SÉRIE DO 1º GRAU (Belo Horizonte, escolas estaduais -
1974/1978)
(gráfico)
Alguma Dgrama foi Tersas reas 173, e prosados. Este em relação pliao do
sries); no mtodo ias Gerais, lente. com
a aten ali
MATRÍCULA PROMOÇÃO

ANO Inicial Final (Evasão (%) Número Matrícula inicial (% ) Matrícula final
(%)
1975 54.750 47.614 13,0 28.790 52,6 60,5
1976 52.380 46.193 11,8 26.822 51,2 58,1
1977 48.148 45.102 6,3 32.288 67,0 71,6
1978 41.952 38.383 8,5 27.035 64,4 70,4
FONTE: CEDINE/PROILADE/SESC-MG.

A adequação posta em questão

Tecnologia de ensino

A metodologia de ensino proposta previa, em primeiro lugar, a


estruturação de um programa de ensino em unidades e subunidades. Para
cada uma delas, o professor realizava inicialmente um teste para verificar se
os alunos estavam aptos para a aquisição do conhecimentos ali previstos.
Em seguida, ele organizava atividades instrucionais para atingir os objetivos
claramente definidos nas subunidades, para depois aplicar o teste de
avaliação e verificar que os alunos conseguiam atingir os objetivos
propostos e estavam aptos a passar para a subunidade subsequente. O
professor anotava a atuação de cada um dos alunos em cada uma das
partes do programa, pois cada um deveria seguir seu próprio ritmo.
Para garantir a correta utilização da metodologia, a SEEC/MG treinou
professoras e supervisoras e montou o programa de ensino; de forma a
facilitar a tarefa. Em cada unidade e subunidade, eram previstos testes, os
conteúdos eram apresentados em forma de objetivos, e havia fartas
sugestões de atividades.
Por que a SEEC/MG escolhera este tipo de metodologia? A SEEC/MG
- assim como muitos outros órgãos e pessoas nessa época - pensava que a
racionalidade e a lógica dessa metodologia seria a garantia de melhor
funcionamento do sistema escolar. Para a SEEC/MG, as professoras
primárias estavam "meio perdidas" (incompetentes) e precisavam de
orientação mais segura. O programa, com todos os instrumentos, foi
elaborado por uma equipe de técnico especializados; esperava-se que a
professora primária executasse e programa, diminuindo seu nível de
intervenção e, consequentemente; diminuindo as consequencias de sua falta
de preparo para enfrentar os desafios do fracasso escolar.
A escolha da metodologia estava apoiada nos seguintes pressupostos:
- que a SEEC/MG seria capaz de "impor" às professoras uma forma segura
de trabalhar;
- que a SEEC/MG poderia controlar melhor o trabalho nas escolas,
recolhendo, de forma sistemática, as fichas de avaliação;
- que a professora não estava preparada para ensinar e se sentiria mais
segura com esse tipo de metodologia.

A análise da aplicação da metodologia, realizada através dos


depoimentos, revela que ela foi logo "descaracterizada", pois supunha uma
verdadeira "burocracia": testes, fichas de avaliação de cada objetivo etc. que,
na verdade, não era, como se esperava, um facilitador do trabalho da
professora. Pelo contrário, era vivido mais como um empecilho ao trabalho
do professor que já tem tão pouco tempo para ensinar. Era preciso, naquele
sistema, gastar uma boa parte do tempo preenchendo papéis.
As professoras perdem muito tempo preenchendo fichas, avaliando
objetivos, em detrimento da aprendizagem; os testes e pré-testes eram
tão numerosos que o tempo para ensinar diminuiu.
Esta crítica se faz a partir de justificativas sensatas.
O programa, baseado em objetivos, perde de vista o principal aspecto da
aprendizagem que é o próprio processo.

Diante disso as escolas boicotavam a metodologia proposta:


Durante muito tempo em que trabalhei tentando seguir as instruções da
SEEC no que concerne ao trabalho de preencher fichas, eu sentia que
negligenciava meu trabalho de supervisora; que estava preocupada e
incomodada pelo excesso de fichas a preencher. Depois eu negligenciei este
trabalho burocrático e aconselhei as professoras a fazerem o mesmo.

Supervisoras e professoras têm sua própria forma de avaliar e


consideram mais eficaz.
Eu avalio o progresso dos alunos muito bem, pela análise das composições,
das cópias que fazem e observando o nível de leitura que conseguiram.
A resistência à imposição da SEEC, evidentemente, era vivida
diferentemente de acordo com a "importância" da escola. Nas escolas
da periferia, a oposição era dissimulada. Assim, numa delas, a supervisora
manteve durante algum tempo dois registros: um para a SEEC e outro para
orientar suas atividades e informar os pais dos alunos. Nas demais escolas
que tinham poder de barganha maior com os órgãos centrais, a oposição se
fazia mais a descoberto. Disse uma supervisora:
A escola goza de prestígio e autonomia suficientes para afrontar a
SEEC.
Esta resistência não foi ignorada pela SEEC e acabou provocando
alterações no sistema de avaliação proposto. O número de fichas de controle
da aprendizagem dos alunos diminuiu, o que significou uma aceitação pela
SEEC da descaracterização da metodologia no projeto original e evidenciou
que a resistência à metodologia atingiu um número significativo da população
envolvida no projeto.
Mas se houve resistência ao controle contínuo, por causa dos testes de
avaliação para cada objetivo, houve, por outro lado, aceitação do programa
de ensino tal como foi estruturado, rico em sugestes de atividades.

O programa prontinho facilita o trabalho.


O programa é muito bom porque já vem prontinho com objetivos e
atividades; ele dá mais segurança às professoras.

A dinâmica entre a tentativa organizada de impor uma metodologia,


que vista como a resposta mais racional aos problemas de ensino, e os
resultados concretos dessa tentativa na prática das escolas aponta para os
limites do poder de imposição do órgão central. Direta ou dissimuladamente,
professoras e supervisoras selecionam o que lhes parece mais eficaz para
seu trabalho pedagógico, de acordo com sua própria vivência e a
representação que fazem da prática pedagógica. Diante da resistência ativa
ou passiva dos pedagogos de base, a sofisticada tecnologia de ensino foi
descaracterizada.
Programa básico
O programa básico, também conhecido como programa mínimo, foi
elaborado por especialistas em cada área, que selecionaram os conteúdos
considerados fundamentais do Programa de Ensino de 1973, ainda em vigor.
Teoricamente, no Projeto Alfa, todas as classes teriam o programa básico
como guia, devendo o Programa de 1973 ser utilizado para o enriquecimento
das atividades nas classes que tivessem um ritmo de aprendizagem mais
acelerado. Como todo programa, evidentemente, ele não é, em princípio, de
aplicação obrigatória. O Projeto Alfa tentava assim evitar a crítica de que
instituía uma dualidade na escola primária, como foi verificado nas escolas
visitadas.
Apenas oito das trinta e seis classes de 1º série das escolas mais
centrais (por nós chamadas de grupo A) restringiam-se ao programa básico,
que, no outro grupo de escolas (grupo B), era seguido por trinta e duas, das
trinta e quatro turmas de 1º. ano. Esta estatística se refere à situação oficial
das salas, porque, segundo uma supervisora, três das salas tidas como de
programa básico, na prática, seguiam o de enriquecimento. Outra
supervisora do grupo A declarou que, em sua escola, as atividades na lº série
foram além do programa enriquecido; uma outra observou que, na sua, só a
classe especial tem a escolarização restrita ao programa básico.
Como se vê, o programa básico aplicado quase exclusivamente entre
as classes de l.º série das escolas de periferia. Nas escolas do grupo A é
utilizado nas classes que, de certa forma, são marginais ao processo regular
de escolarização, ou seja, classes especiais e classes de aceleração.
As opiniões das supervisoras sobre o programa básico variam,
sobretudo, em função do tipo de escolas onde trabalham. As do grupo A
oscilam entre rejeição pura e simples e uma aceitação com restrições.
O programa básico poderia ser um pouco mais elevado, mesmo para
as lasses fracas; porque estimulando-se os alunos, seria possível fazê-
los avançar um pouco mais. O programa oficial pode ser utilizado nas
classes fracas.
O programa básico para as classes fracas foi muito bom. Ele serve
para aqueles que não vão continuar a 5º série. Ele é muito pobre. Uma
criança que termina o curso primário apenas com o programa mínimo não
está em condições de continuar a 5º série.
O conteúdo da primeira série do programa mínimo corresponde mais
ou menos à metade do programa enriquecido. Exige-se que a criança tenha
elementos de leitura correspondentes aos do fim do período
preparatório. Esta divisão do conteúdo da 1º série em dois anos foi muito
interessante; o que é ruim é manter os alunos no programa mínimo até
a 4º série. Eles aprenderão menos e terão mais dificuldades na 5º série. Mas
se se considera que as crianças pobres, em geral, param os estudos na 4º
série, isto não tem importância. Eles param ou continuam em curso noturno.
A preocupação do Estado é formar pedreiros, serventes. Antes havia
pedreiro sem curso primário e agora haverá pedreiros com curso primário. A
formação recebida não permite continuar a 5º série. Os pais de alunos de
nível sócio-econômico elevado reuniram-se para protestar contra o Programa
Alfa porque achavam fraco, limitado e restringia o desenvolvimento dos
alunos.
Nas escolas do grupo B, observa-se maior adesão . Para uma das
supervisoras não se pode falar em programa mínimo :
O programa básico é parecido com o programa enriquecido. Faltam
poucas coisas, como por exemplo: algarismos romanos, sentença
matemática. Na verdade, não é um programa mínimo.
Para as demais supervisoras, o programa é bom se considerarmos as
chances reais de escolarização da clientela de suas escolas.
O programa mínimo não é tão mínimo como se pode pensar. O que foi
retirado não é indispensável. A realidade é esta: a primeira e a segunda
classes têm ainda chances de continuar depois da 4º série; as outras
terminarão os estudos na 4ºe os alunos depois vão ser empregadas
domésticas e pedreiros. É impossível para eles, por razões financeiras,
continuar os estudos.
O programa mínimo é suficiente porque os alunos trazem de casa uma
bagagem insuficiente. Para a criança que não tem nada, qualquer coisa é
suficiente. As crianças não têm herança cultural. Como o meio é fraco, o
programa mínimo basta.
Todas as classes de 1º série (dez) seguiram o programa básico. Ele é
bom porque a escola não está em condições de aplicar outro. Para ensinar
as matérias do programa mínimo as professoras já têm muita dificuldade. Ele
é muito vasto em termos de exigência.
A comparação entre os dois programas; na opinião de algumas
supervisoras entrevistadas, revela que o programa mínimo desdobra para
dois anos o conteúdo da 1º série do programa básico. O primeiro programa
exige da criança, ao final da 1º série, o domínio da fase preparatória e do
pré-livro. O segundo supõe que o aluno tenha vencido uma fase posterior, a
do livro básico, ou seja, supõe o domínio do processo de leitura.
Este desdobramento é justificável do ponto de vista pedagógico.
Especialistas em educação primária vêm criticando há muito tempo a
pretensão dos nossos programas. Roberto Moreira foi um deles. Mais
recentemente o INEP, após estudos comparativos de programas de ensino
da escola primária de diferentes países, concluiu:
Nossa escola primária com uma duração de três horas e trinta minutos
por dia e cinco dias por semana exige de um aluno de 4º série o que as
escolas suíças, americanas e belgas pedem na quinta ou sexta série, com
cinco a seis horas por dia, com professoras de um nível superior ao nosso
(Pinheiro, 37).
Então, o desdobramento do conteúdo proposto no Alfa é justo? Se a
análise realizada se limitar aos aspectos pedaggicos, a resposta afirmativa.
No entanto, se tentarmos avaliar o significado dessa medida num contexto
mais amplo, alguns questionamentos tomaro o lugar da resposta afirmativa.
Em primeiro lugar, consideremos o problema da durao dos cursos,
observada no trabalho do INEP. Tomado como um todo, o ensino primário
brasileiro tem duração inferior, em termos de carga horária, à de outros
países ditos industrialmente avançados. Mas o ensino primário não é uno.
Em princípio, a jornada diária de trabalho escolar dura, em média, quatro
horas. Nos centros urbanos, no entanto, é grande o número de escolas que
funcionam com três turnos diurnos ao invés de dois. Esta forma de aumentar
o número de vagas na escola primária é antiga. Na década de 50, Roberto
Moreira fala de escolas que funcionam até em 5 turnos. Em Belo Horizonte,
em 1980, 60 das 201 escolas da rede pública estadual de 1ª a 4.a série, ou
seja, 29,8%, funcionam em três turnos. Quem são as crianças que
frequentam essas escolas que funcionam em três turnos? Elas estão, quase
todas, localizadas em bairros pobres da cidade. As crianças de classe média
e alta frequentam escolas que funcionam normalmente em dois turnos.
Todas as escolas do grupo A que foram visitadas funcionam em dois
turnos. No grupo B, duas funcionam em três turnos: o primeiro das 6h45min
às 10h45min; o segundo das 10h45min às 14h45min e o terceiro das
14h45min s 18h45min. Segundo as supervisoras entrevistadas, as crianças
têm quatro horas de aula diárias. Este tempo é inferior à duração das aulas
nas demais escolas, onde se chega a quatro horas e trinta minutos. Na
prática, evidentemente, as crianças de escolas com três turnos não têm
quatro horas de aula diárias porque é fisicamente impossível acabar um
turno às 10h45min e começar imediatamente outro. E o tempo gasto com
deslocamentos? Isto sem falar de outros desconfortos: começar a aula às
6h45min, por exemplo, a limpeza das salas, a pressa, a falta de recreio. Isto
significa que as crianças das classes populares que frequentam escolas em
três turnos têm seu tempo físico de escolarização reduzido, em relação às
demais.
Em segundo lugar, é necessário considerar o problema de acesso à
educação pré-escolar, cujos objetivos, nos últimos tempos, sofreram uma
evolução. Antes, além do cuidado com a socialização, procurava-se preparar
as crianças para enfrentar a aprendizagem da leitura e da escrita que se
realizava no primeiro ano da escola primária. Aos poucos, no entanto, o pré-
escolar foi assumindo as funções de alfabetização.
A legislação não fixa nenhuma obrigação do poder público em relação
à criança de 6 anos. Em 1976; a população de 4 a 6 anos no Brasil era
estimada em 8.905.154. Somente 7,7% frequentavam escola. As vagas nos
estabelecimentos públicos correspondiam a 6,1% da população de baixa
renda. Em Minas Gerais, em 1979, população escolarizável era de 1.183.805
e a taxa de atendimento era de 10,30% (5,6% na rede estadual, 0,82% na
rede municipal 3,81 % na rede particular). Em 1980, 112.409 crianças
entraram para a primeira série (novatos), dos quais apenas 17.819 haviam
cursado pré-escola.
A situação nas escolas visitadas é a seguinte: no grupo A, três escolas
possuem, em anexo, um curso pré-escolar; a quarta escola encontra-se num
bairro onde existe uma grande escola oficial pré-escolar. No grupo B, no
entanto, a situação é oposta; nenhum dos bairros possui escola oficial pré-
escolar e nenhuma das escolas de 1º grau tem classe pré-escolar anexa.
Assim, apenas 18% dos alunos matriculados na 1.a série nas escolas do
grupo B (1.145), em 1978, passaram pelo pré-escolar, contra 88% nas
escolas do grupo A (total de 1.113 matriculados).
É evidente que o acesso ao ensino pré-escolar se faz diferencialmente
segundo a origem social das crianças. Enquanto as famílias de classe média
e alta podem garantir esse ensino a seus filhos em escolas particulares,
poucas famílias de baixo poder aquisitivo têm oportunidade de fazer o
mesmo, já que as escolas públicas são escassas e sua localização, em
geral, não lhes é conveniente.
O processo de escolarização, em termos de tempo, não é o mesmo
para todas as crianças. Sem discutir a importância diferencial para o sucesso
escolar das crianças de acordo com seu nível sócio-econômico, a questão do
desdobramento do programa de ensino no Projeto Alfa toma outra dimensão.
Se tal desdobramento é justificável do ponto de vista "pedagógico", sua
concretização, na verdade, vem se dando em duas direções; de acordo com
o nível sócio-econômico da clientela. Para a criança de nível sócio-
econômico mais alto o desdobramento está sendo realizado com a
incorporação de um ano de pré-escolar ampliando o curso primário para
cinco anos. A primeira etapa do processo de alfabetização se fará ali. Elas
aprendem a ler na pré-escola e chegam à 1ª série já alfabetizadas. Para as
crianças das famílias de baixa renda, com uma consequencia diminuição do
conteúdo da escolarização global.

Método fônico para aprendizagem da leitura

Os especialistas em educação tendem a dar ao método de alfa-


betização um lugar de destaque entre as variáveis explicativas do sucesso
escolar na primeira série. As querelas sobre a eficácia de um método em
relação ao outro se multiplicam. Em Minas Gerais, durante muitos anos, o
Instituto de Educação comandou o processo de formação de diretoras e
supervisoras do ensino primário que, por sua vez, tinham uma influência
direta nos cursos de didática das escolas de formação de professoras
primárias. O método de alfabetização defendido era o global (contos), o que
explica a sua forte influência durante muitos anos em todo o Estado.
No estudo-piloto, o método fônico é adotado abertamente. Tal adoção,
segundo o relatório da SEEC, justifica-se por vários motivos: era o método
mais empregado, na época, nas classes de repetentes; é o mais eficaz para
esse tipo de clientela (Castro & Mendes, 1978, 41), porque, entre outras
qualidades, favorece a correção de defeitos de linguagem, facilita o
desenvolvimento de crianças que têm dificuldade de percepção global, bem
como desenvolve com rapidez o processo de leitura.
No Projeto Alfa, apesar da distribuição às escolas do material
pedagógico do método fônico, a SEEC não admite a imposição de um
método de leitura. Ela se propõe apenas aprofundar o estudo de diferentes
métodos com o objetivo de assegurar que professoras e supervisoras
melhorem sua atuação.
O que se observou nas escolas visitadas? Em 1978, no grupo A, 28%
das classes (de um total de 36) de l.a série utilizaram o método fônico,
enquanto no grupo B esta opção atingiu 89% (de um total de 25). Em geral,
sua aplicação associa-se, no conjunto das escolas visitadas, à aplicação do
programa mínimo ao processo de aceleração ou às classes especiais,
delineando-se assim uma pedagogia do pobre - programa básico, classes
aceleradas, classes especiais, delineando-se assim uma pedagogia do pobre
- programa básico, classes aceleradas, classes especiais, método fônico.
Assim como o programa básico é bom para uma clientela que não tem
condições ou não pretende ir além da 4ª série, o método fônico é
considerado, pelas supervisoras, bom para quem é carente de alguma coisa.
O método fônico é bom para as crianças que não têm percepção global.
Algumas supervisoras acreditam que, por este método, a criança;
aprende a ler mais rapidamente, mas, em alguns casos, pode apresentar
deficiências.
Pelo método fônico, a criança aprende a ler rapidamente, mas não
aprende a escrever.
O método fônico alfabetiza com facilidade, mas deixa dificuldades em
ortografia, composição e leitura. O aluno lê aos arrancos. A professora tem
que trabalhar muito para diminuir esses problemas.
As crianças que aprendem por esse método encontram dificuldades na
2ª série. Como a professora do 1° ano fala pela garganta, os alunos têm
dificuldades com a professora do 2° ano que pronuncia os sons
normalmente.
Todas as supervisoras, apesar de se referirem ao método fônico como
inferior, mas necessário, observaram que sua adoção seria, em boa medida,
responsável pela elevação das taxas de promoção na 1ª série. Esta
observação era acompanhada, no entanto, de expressões relacionadas ao
alívio das professoras e supervisoras por não serem obrigadas a aplicar (ou
fingir que aplicavam) o método global. Tudo leva a crer que nas escolas
visitadas o fator positivo foi, principalmente, a possibilidade de escapar à
imposição de um método considerado o melhor. Mas, subjacente a toda essa
discussão, paira a percepção de que o fônico é bom para as crianças que
têm algum tipo de carência, de atraso, conforme justificativa apresentada no
relatório da SEEC. Se essas crianças tivessem desenvolvimento "normal", aí
sim, elas poderiam aprender pelo método global.

A assistência a alunos e professores

No projeto, estava prevista assistência aos alunos - assistência de


saúde, psicopedagógica, alimentar e distribuição de material; e às
professoras - assistência técnica e psicopedagógica, além de um reforço em
sua atuação através de monitorias e remuneração para as horas
suplementares de trabalho.
O conjunto de medidas assistenciais deveria, por um lado, compensar
deficiências de saúde e alimentação, típicas das condições sócio-
econômicas da clientela repetente e, por outro lado, garantir a aplicação da
proposta pedagógica. Na metodologia de ensino adotada, o processo de
recuperação da aprendizagem é considerado estratégico.
No conjunto, pode-se dizer que a SEEC empenhou-se em concretizar -
algumas medidas previstas e, em relação a outras, tentou mobilizar os
esforços da própria escola e da comunidade. O reforço à alimentação,
através da distribuição de uma segunda merenda diária, foi supresso em
meados do segundo ano de implantação do projeto é essa época a SEEC,
em convênio com a CNAE, se reserva por esse reforço; a partir daí, a
merenda voltou a ser pelo mecanismo tradicional - a caixa escolar. É
desnecessário reafirmar aqui a importância da merenda escolar para
crianças de classes populares. Segundo o testemunho de várias
supervisoras da própria SEEC e das escolas, uma boa merenda em periferia
diminui, de imediato, a taxa de evasão.
Com uma boa merenda qualquer método de ensino é bom.
Se é verdade que a repercussão dos problemas de subnutrição sobre o
processo de desenvolvimento mental é difícil de ser avaliado, como
demonstram pesquisas da Organização Mundial de Saúde, as
conseqüências do estado de fome, crônica ou não, sobre o processo de
aprendizagem são incontestáveis. A fome torna difícil a concentração
necessária à aprendizagem que se realiza na escola. Qualquer professora de
escola de periferia sabe que grande parte de seus alunos não tem
alimentação suficiente em casa.
Em relação à assistência à saúde, a SEEC procurou ativar, prin-
cipalmente, a utilização das instituições oficiais existentes: previdência social,
postos de saúde. Pais e professores deveriam levar as crianças a essas
instituições para serem submetidas a exame clínico. Nas escolas,
professoras e supervisoras deveriam aplicar testes para medir acuidade
visual e auditiva. Em 1977, segundo relatório da SEEC, o atendimento em
relação às necessidades foi:
visão 16,1 %;
audição 18,5%
dentição 14,4%
global 30,4%
As informações obtidas nas escolas visitadas vêm reforçar a avaliação
da SEEC, principalmente nas escolas do grupo B. As professoras e
supervisoras não conseguiram que os pais levassem seus filhos para o
exame do INPS, posto de saúde ou clínica. Diante disso, uma das escolas
designou professoras para essa tarefa. Noutra escola nada se fez.
Detectados os problemas, era difícil solucioná-los. A caixa escolar tinha
poucos recursos. Assim a assistência à saúde, mesmo com pretensões
limitadas, não atingiu os objetivos propostos.
As medidas para reforçar a ação da professora e facilitar atividades de
recuperação da aprendizagem não foram implantadas da forma prevista: o
pagamento de uma hora suplementar à professora não se concretizou; a
participação de monitores no trabalho escolar não se realizou. A preparação
do monitor, fosse ele aluno de escola de 2 ° grau ou da própria escola de 1.°
grau, impunha um trabalho suplementar à professora e seu resultado não foi
considerado eficaz. Toda a responsabilidade do trabalho pedagógico na sala
continuou a ser dos personagens tradicionais - as professoras.
As medidas que obtiveram atenção especial da SEEC foram:
distribuição do material escolar aos alunos e às professoras, sistema de
reciclagem do pessoal envolvido, reforço da rede de supervisão escolar e
sistema de apoio psicopedagógico.

Assistência psicopedagógica

Os objetivos da assistência psicopedagógica (APD) sofreram


alterações que ajudam a explicar as funções do Projeto Alfa. No estudo-
piloto, as equipes psicopedagógicas, compostas por um orientador
educacional, um psicólogo e uma supervisora, avaliaram a "prontidão" dos
alunos para a aprendizagem da leitura e da escrita. Para isso, investigaram o
nível mental e o nível de maturidade percepto-motora.
No Projeto Alfa, durante o primeiro ano, as atividades de tais equipes,
organizadas em colaboração com a Fundação Hospitalar Educacional de
Minas Gerais, orientavam-se para o atendimento das crianças da primeira
série que apresentavam dificuldades de aprendizagem. Elas eram estudadas
e recebiam, conforme o caso, uma reeducação pedagógica, psicomotora ou
eram encaminhadas a outros especialistas.
Existiam em Belo Horizonte seis equipes (miniequipes), coordenadas
por uma equipe central, composta por dois médicos, um orientador
educacional, dois psicólogos e uma supervisora pedagógica. Em cada
miniequipe havia dois psicólogos e dois orientadores educacionais.
Em 1978, o trabalho de assistência psicopedagógica atendeu às classes de
primeira série de treze escolas primárias de Belo Horizonte. No segundo ano
(1979) ampliou-se consideravelmente a clientela atingida. Ao lado dessa
ampliação alterou-se a orientação até então dada a esse tipo de assistência.
Ela passou a ser controlada pelo Departamento de Educação Especial da
SEEC. Trabalhando em 17 escolas nas sedes das microrregiões em que
Belo Horizonte foi dividida, as miniequipes em 1979 atenderam a 192
escolas, 1.390 classes, 7.050 crianças. O trabalho foi estendido ao Estado;
foram atingidas 120 escolas e 3.552 crianças de 21 municípios.
Em 1978, em Belo Horizonte, a assistência psicopedagógica orientou
378 crianças para escola especial, 9.250 para classes especiais em escola
comum e 1.884 para classe comum, devendo ser objeto de atenção especial.
Teoricamente, os objetivos desse tipo de intervenção foram mantidos.
O contato com as escolas, na entanto, revelou que houve uma alteração
fundamental. No primeiro momento as miniequipes ocupavam-se das
crianças com problemas de aprendizagem e ofereciam um
; serviço especializado de recuperação psicopedagógica. Por isso mesmo, o
trabalho era restrito, poucas escolas eram atendidas; no segundo momento,
as miniequipes atuavam (e atuam ainda) na constituição das chamadas
classes especiais. Em cada escola os "suspeitos" de ser especiais são
testados pelas miniequipes e os resultados são encaminhados à SEEC, que
autoriza ou não a classe especial na escola. Em princípio, as miniequipes
devem preparar o processo de classe especial e orientar seu trabalho
pedagógico.
Nas escolas visitadas, foram apontadas 98 crianças de classe especial no
grupo B e 25 no grupo A. O contingente de crianças do grupo B, na verdade,
está subdimensionado se considerarmos que em uma das escolas que
compõem esse grupo não existiu classe especial em 1978 porque as
crianças não puderam ser testadas. No ano seguinte, no entanto, foram
autorizadas duas classes. A visita às escolas propiciou uma percepção mais
real do papel da assistência psicopedagógica. Ela se restringia, e de forma
ineficiente, à fase de diagnóstico, a testar e legitimar as classes especiais.
Ineficiente porque muito pouca orientação - e, em alguns casos, nenhuma
orientação - foi dada às professoras de tais classes. Ineficiente porque nem
mesmo o diagnóstico era realizado no prazo previsto, ou seja, no início do
ano letivo, dificultando o trabalho pedagógico das escolas. Numa escola, não
houve classe especial em 1978 por falta de diagnóstico; em outra, elas só
foram autorizadas em agosto, e numa terceira, a supervisora reclamou que a
APD não realizou o segundo teste. É evidente que, em muitos casos, as
crianças "suspeitas" de ser especiais ficaram abandonadas em uma sala
esperando o diagnóstico.
A importância da introdução das classes especiais nas estatísticas de
promoção em Belo Horizonte pode ser observada no quadro abaixo.

ALUNOS ESPECIAIS
(Belo Horizonte, escolas do grupo B - 1978)
Belo Horizonte Escolas do Grupo B
1. Matrícula final 34.361 910
2. Alunos especiais 3.250 98
3. Total (1 + 2) 37.611 1.008
4. Repetentes 6.940 165
5. Total (2 -I- 4) 10.190% 263
6. Taxa de repetência c/ alunos especiais
27,09% 26,09%
7. Taxa de repetência s/ alunos especiais
18,45% 16,36%
FONTE: CEDINE/PROILADE/DEE/SEEC-MG.
Considerando que todos os alunos especiais provavelmente seriam
reprovados ao final do ano letivo, a introdução das classes especiais teve o
efeito imediato de aumentar substantivamente a produtividade do sistema de
ensino. Isso porque, na rede estadual, os alunos de classe especial são
retirados das estatísticas de promoção e computados à parte.
Para o sistema de ensino, este artifício contábil foi muito interessante. Para
muitas crianças das camadas populares significou que elas estavam
condenadas, a priori, a uma pseudo-escolarização, marginalizada do
processo e, como em todo processo de marginalização, poucas chances
teriam de tomar o "caminho normal".
Instintivamente, muitos profissionais da escola percebem a verdadeira
função da classe especial. Esta percepção aparece claramente na
observação de uma supervisora entrevistada:
Em 1978, foram diagnosticados cinco casos de alunos para as classes
especiais, mas como não existia classe desse tipo na microrregião, eles
continuaram a freqüentar as classes comuns; eles repetiram o ano em 1978
e vão repetir em 1979, mas não serão contados como tal nas estatísticas e
sim como especiais.
Quem é o aluno de classe especial? Os documentos da SEEC c definem da
seguinte forma:
...a criança que, ainda que podendo apresentar nível de inteligência normal
ou mesmo superior e sem problemas emocionais ou sensoriais graves, tem,
apesar de tudo, atraso no domínio cognitivo, motor e perceptivo que afeta o
rendimento da aprendïzagem (Minas Gerais, 1978a, 9).
Encontram-se daí excluídos surdos, mudos, insuficientes do pònto de vista
mental, delinqüentes e outros, cujos elementos patológicos nâo deixam
dúvida. São crianças cujas dificuldades aparecem no processo de
aprendizagem da leitura e da escrita na escola. Em outras palavras, são
crianças que apresentavam desafio ao trabalho da escola.
A instituiçâo do ensino especial é difundida no mundo e tem provocado
críticas ferozes, principalmente dos que estão interessados em compreender
melhor os problemas da escolarização das crianças de meios populares.
Como é óbvio observar, o grande contingente de crianças especiais vem
desses meios. As críticas referem-se aos instrumentos utilizados no
diagnóstico e ao significado dessa separação.
Nos países mais avançados, o diagnóstico é utilizado sobretudo a partir
de testes de conhecimento, testes psicológicos. Ora, o conteúdo subjacente
a esses testes é marcadamente de classe; a situaçâo de teste, onde a
criança das classes populares é confrontada com adultos de outra classe
social, numa situaçáo que lhe é estranha, onde a função da linguagem é
diferente, também concorre para que ela se saia mal.' Para Chiland (1976), a
predição do fracasso escolar subjacente ao diagnóstico das crianças
especiais parece duvidosa e perigosa. No Brasil, pesquisas sobre os
instrumentos de predição aqui utilizados têm também alimentado tais
dúvidas.
No caso especial de Minas Gerais, o diagnóstico se realiza algumas
vezes sem o rigor dos sistemas de ensino dos países avançados
(infelizmente ou felizmente?). A primeira triagem é de responsabilidade de
professoras e supervisoras, num processo onde se joga muito com
preconceitos em relação às crianças das classes populares (Schneider,
1974). São candidatas a classes especiais as que vêm da favela, as que já
têm irmãos na mesma condição, aquelas cujos pais não têm condições de
acompanhar o trabalho da escola, sâo "sujas" etc.
Admitindo-se, no entanto, que certas crianças têm necessidade de
assistência especial, seja qual for a interpretação que se dê às causas do
fracasso escolar, sua segregação em classes especiais não parece
favorável. É o que pensam Colette Chiland e Liliane Lurçat:
A criação de classes especiais para resolver situações de urgência comporta
o perigo, que não será jamais excessivo lembrar, de criar um meio
subestimulante e um ramo paralelo (Chiland, 1976, 16).
Sabe-se que reunir crianças com problemas numa mesma classe tem por
efeito multiplicar os problemas pelo número das crianças (Lurçat, 1976, 95-
96).
É interessante resumir a experiência relatada por Mira Stambak. Na Itália,
em 1967, o Ministério da Educação criou classes especiais. Observou-se
que, nos quatro anos seguintes, o número de alunos especiais aumentou
consideravelmente. Passou de 0,9% a 3,1%. A segregação das crianças em
classes especiais foi questionada num bairro operário de Bolonha e objeto de
amplo debate. Um levantamento realizado entre aquelas crianças revelou
que entre 300 alunos especiais apenas 16% apresentavam algum problema
ou deficiência.
A única culpa dos 83% restantes era de pertencer ao meio popular (Stambak,
1980, 153).
Finalmente, algumas professoras primárias se dispuseram a receber em
suas classes "normais" os alunos especiais, iniciando um processo de
integração que se estendeu mais tarde para a maior parte da Itália. Esta
integração atingia não só as crianças especiais, mas também crianças cuja
pátologia não deixava margem a dúvida (epilépticas, mongolóides, casos
neurológicos, psicóticos etc.) e provocou a supressâo das classes e
instituições especiais. É evidente que essa experiência se realiza em meio a
tensões e conflitos.
No Projeto Alfa em Minas Gerais, a constituição e tratamento das crianças
especiais se fez de uma forma cuja arbitrariedade deve ser posta em outros
termos. Em primeiro lugar, sua importância estatística é maior aqui. Na
França, por exemplo, as classes especiais do pré-escolar e do primário
correspondem a 3,7% do conjunto e incluem crianças portadoras de déficit.
Em Belo Horizonte, o Projeto Alfa assinalou 8,64% de alunos especiais entre
as crianças da primeira série, excluídas as crianças portadoras de déficit.
Na França e em outros países avançados, a crítica à classe especial
centra-se na sua eficiência enquanto instrumento pedagógico. No Alfa, a
crítica deve ser menos sutil. Não parece, de acordo com as observações
realizadas, que se pretendia qualquer coisa além de segregar. A assistência
psicopedagógica foi pouco significativa nas escolas-sedes de microrregião e
praticamente nula nas demais. Ela se reduziu a algumas reuniões com as
professoras e à distribuição do programa de ensino. Numa das escolas, nem
mesmo o programa havia chegado até o fim do ano escolar.
Dessa forma, as classes especiais ficam dependentes da capacidade da
professora para enfrentar a situaçâo. Como se viu, são alunos; cujo
problema central é o de aprendizagem. A dinâmica das escolas,no entanto,
em geral orienta para essas classes professoras consideradas menos
competentes: as grávidas, as que faltam muito, as que estão à espera de
aposentadoria. As boas professoras vão para as classes fortes, consideradas
de maior "responsabilidade" porque devem apresentar, ao fim do ano, altos
índices de aprovação. Na rede estadual, a classe especial não promove, logo
não exige muita responsabilidade da professora.
A expectativa do sistema de ensino em relação a essas classes é a de
que elas poucas oportunidades têm de fazer algo mais que um longo e
discutível período "preparatório" à aprendizagem da leitura e escrita. Pouco
se espera da criança especial. Todo o jogo de expectativas, constituído em
torno delas, é negativo, o que acaba por reforçar suas dificuldades.
Assim, a classe especial não recebe assistência psicopedagógica '
especial que justifique sua criação. Ela é, no sistema escolar, uma forma de
rejeição, segregação, marginalização das crianças das classes populares.
Segregação, aliás, que em algumas escolas é até física: ocupam as salas
em piores condições, o barraco, a sala do porâo etc. Supervisoras e
professoras percebem a instituição das classes especiais como a resposta
para os problemas da escola. Nenhuma crítica. Para elas, ao contrário, o
número de classes especiais parece pequeno. Mostram preocupação em
obter autorização da SEEC para abrir classes especiais e retirar aquelas
crianças das estatísticas. Assim elas se desobrigam da responsabilidade de
escolarizar aquelas crianças na medida em que transferem o problema do
campo pedagógico para o campo psicológico-médico. A culpa, quando a
criança não aprende, não é da escola, mas da própria criança, doente,
carente etc... Dessa forma, a escola se salva.
A lógica de expulsão, marginalização, discriminação
A análise da prática pedagógica decorrente da implantação do Projeto Alfa
tem um significado que ultrapassa o âmbito do próprio projeto e atinge a
escola primária como um todo em Minas Gerais. Apesar de desativado, suas
principais medidas se mantêm na rede estadual: classes especiais e
programas de ensino diferenciados. A aceleração de estudos desapareceu,
assim como desapareceram a assistência especial à saúde, o reforço à
merenda, a distribuição de material escolar. Mantém-se o serviço de
assistência psicopedagógica (APD) que se responsabiliza pelas classes
especiais.
Essas medidas, no entanto, não foram novidades introduzidas pelo
projeto. Classes especiais já existiam sob diferentes denominações. Até
1963, existia em Minas Gerais uma classe de primeira série chamada de
"preliminar" para onde eram encaminhadas as crianças que a escola
diagnosticava como imaturas para as aprendizagens básicas de leitura e
escrita. A marginalização daquelas crianças no sistema escolar
assemelhava-se à das crianças especiais de hoje: professoras menos
competentes, menos comprometidas com a escola,pouco investimento em
sua escolarização, objetos de baixa expectativa. A possibilidade de
reintegração da criança da classe preliminar no processo normal era, no
entanto, teoricamente esperada. Classe preliminar seria uma repetência a
priori. A possibilidade de reintegração da criança da classe especial parece
mais difícil. Ela é objeto de diagnóstico que tende a marcá-la mais
profundamente e é submetida a uma programação preparada para crianças
intelectualmente deficientes.
A diferença entre escolarização de crianças pobres e ricas também é fato
antigo e não só no sistema brasileiro. Sempre houve. seja por isso que as
supervisoras que atuavam em escolas da periferia se opunham de forma
menos incisiva ao programa básico que as supervisoras das escolas do
grupo A.
O que é novo agora, parece-nos, é a institucionalização dessas medidas
"cientificamente" justificadas sob argumentos de ordem pedagógica ou
psicológica. Havia diferenças nos níveis de escolarização. Agora se
organizam programas de ensino diferentes. A rede municipal de Belo
Horizonte tenta implantar um sistema em que, após a triagem, as crianças
são encaminhadas para o programa A, B ou C. A classe especial é testada
por psicólogos, orientada à parte e se torna legítima e desejada aos olhos de
todos.
O processo que não se manteve foi o da aceleração de estudos, objetivo
primeiro do estudo-piloto. Foi para acelerar estudos que se montou o modelo
pedagógico inicial. Programa de ensino, metodologia de ensino, método de
alfabetização, tudo foi pensado . para acelerar a escolarização das crianças
repetentes. O estudo-piloto visava apenas a essa clientela. A discussâo
desse objetivo inicial permite fazer algumas observações interessantes em
relaçâo à dinâmica da aplicaçâo do Alfa em Minas Gerais e esboçar alguns
pontos, sem o aprofundamento que se faria necessário.
No primeiro ano de implantação do Projeto Alfa, o percentual de alunos
acelerados foi significativo, mas decresceu no ano seguïnte.
A participação do processo de aceleração no sucesso estatístico do Alfa é
considerável. Acrescentando-se o contingente de alunos acelerados ao dos
repetentes, a taxa de repetência passaria, em Belo Horizonte, de 14,4% a
28,8% em 1977, e em 1978 de 18,2% a 28,2%. Para Minas Gerais, a taxá
passaria de 18,2% para 28,3% em 1977, e no ano seguinte de 18,3 % para
29,4 % . É evidente que tal cálculo é arbitrário, se considerarmos que uma
boa porcentagem desses alunos acelerados poderia ser aprovada
regularmente para a série seguinte ao final do ano letivo. Esse cálculo
arbitrário dá, no
entanto, uma idéia da importância de tal processo na análise do Alfa,
principalmente no ano de 1977. Sem aceleração e sem classe especial, o
Alfa não apresentaria aqueles resultados satisfatórios nas taxas de
promoção.
Como se dá o processo de aceleração? De imediato a idéia de acelerar a
escolarizaçâo de crianças consideradas como de aprendizagem mais lenta
parece estranha. Tal sentimento foi reforçado com informaçôes obtidas nas
escolas.
Em 1978, foram aceleradas duas classes no grupo A de escolas e 8 no
grupo B. Uma dessas foi aprovada no meio do ano para a segunda série e
ao final para a 3º em meados de 1979 passou para a quarta série e terminou
ao final desse mesmo ano. Ela conseguiu a proeza de realizar em dois anos
o que seria esperado de uma criança normal em quatro anos. O mesmo
ritmo foi observado em outra classe do grupo B. Grianças lentas! Isso só foi
possível através de um barateamento do nível de escolarização por meio da
diminuição horizontal e vertical do conteúdo de ensino. Vertical através da
seleção dos conteúdos básicos (programa de ensino), horizontal pela
concentração dos esforços em duas áreas: comunicação e expressão e
matemática. Ciências e estudos sociais foram praticamente abandonados.
Tudo isso faz pensar que a escolarização ali contida limita-se ao processo
de alfabetização e poderia ser, ao nível da escola primária, o equivalente do
MOBRAL. No mínimo, tal escolarização pode ser questionada nos termos de
Emanuel de Kadt:
Onde, no mundo, um ou dois anos de escolarização são suficientes para
criar uma pessoa alfabetizada? (Santos, 1981, 76).
As supervisoras entrevistadas demonstraram conhecer os limites de tal
escolarização.
O aluno que seguiu tal curso não pode depois seguir uma classe normal... Se
ele chegar à 5º série terá dificuldades.
Só acelerei uma classe em outubro porque sou contra; depois nâo acelerei
mais. Eu prefiro aceleração para os alunos maiores que não continuarão os
estudos após a 4º série. Tais crianças vêm da favela. O diploma delas não
tem o mesmo valor que o dos outros.
Eu penso que na realidade esses alunos deveriam retornar à 2º série (estão
na 3º). Eles seguiram curso acelerado para ser encorajados nos estudos,
porque estavam há muito tempo na mesma série.
Segundo as supervisoras, a SEEC fazia pressão para que os alunos
repetentes fossem acelerados. Algumas resistiam. Outras aceitavam a
pressão porque, segundo elas, aqueles alunos vindos de famílias muito
pobres não iriam mesmo continuar os estudos após a 4º série.
No Projeto Alfa, pensa-se que os alunos que seguem esse tipo de ensino
entrarão no mercado de trabalho. A SEEC faz pressão para acelerar as
classes. Esse ensino é incompleto, mas o que interessa à SEEC são as
estatísticas.
A oposição a esse tipo de medida observada entre supervisoras deve
explicar, em parte, seu arrefecimento entre 1977 e 1978 e seu posterior
desaparecimento no sistema. A aceleração de estudos é dificilmente aceita
pela supervisora e pela professora, na medida em que violenta princípios de
seu campo de atuação, ou seja, do campo pedagógico. A diminuição da
aceleração, objetivo inicial do estudo -piloto, parece também ter sido possível
pela introdução de um mecanismo mais legítinio e mais cômodo aos olhos
das supervisoras e das professoras - as classes especiais. Mais cômoda
porque sua legitimidade não é dada pelo campo pedagógico. É fundada na
psicologia, cujos princípios "científicos" são inatacáveis aos olhos de
supervisoras e professoras. Tal processo tem a grande vantagem de retirar
do campo de atuação daqueles profissionais a responsabilidade do
insucesso escolar de uma parte considerável da clientela. Não . se trata de
ineficiência pedagógica. A criança é "doente", "carente", "atrasada" e precisa
de cuidados especializados de tipo médico ou psicológico. Assim, são
alimentadas a medicalização e a psicologização do fracasso escolar entre
nós. Medicalização e psicologizaçâo que parecem limitar sua influência à
fase de diagnóstico, com o objetivo . principal de legitimar o processo de
absolver a consciência da escola.
Concluindo, o sucesso estatístico do Alfa parece poder ser explicado,
principalmente, pelos efeitos aí produzidos pela implantação das classes de
aceleração e das classes especiais. Esses foram os remédios utilizados
contra o fracasso escolar. Para tentar manter os bons índices, o Alfa
introduziu os programas diferenciados. Programa básico para os "lentos" -
leia-se, os que não conseguem freqüentar a escola pré-primária, os que têm
professoras menos competentes, os que não têm material escolar, os que
comem mal etc., que são as crianças das classes populares. Programa
enriquecido para os que tiveram acesso àqueles privilégios. A solução para o
fracasso é baratear o ensino da clientela mais pobre. A classe especial é ar-
bitrária sob vários pontos de vista: do ponto de vista do diagnóstico (mesmo
quando é bem realizado), discute-se a eficiência dos instrumentos utilizados
como preditores do sucesso escolar, o conteúdo de classe embutido nos
testes e na situação de teste; do ponto de vista do tratamento, o
agrupamento de crianças que apresentam dificuldade para a aprendizagem
em classes especiais propicia sua marginalização na escola. Nada indica
que essa forma de tratamento, institucionalizada pelo sistema, contribua para
melhor escolarização dessas crianças.
O processo de aceleração significou, enquanto durou, um processo de
expulsão das crianças indesejáveis - os repetentes - que dificultavam o fluxo
escolar e maculavam nossas estatísticas educacionais.
Marginalizando e expulsando, o Alfa mineiro melhorou as estatísticas de
repetência e aumentou a produtividade do sistema de ensino, sem colocar
em questão a escola que aí está, a qualidade de escolarização oferecida à
clientela.

A Escola e a adequação pela carência

Iniciei este artigo apontando o desafio que hoje se coloca aos


trabalhadores da educação que assinaram compromisso político com as
camadas populares; como "adequar" a escola aos interesses dessas
camadas?
O Projeto Alfa em Minas Gerais tentou, na década passada, implantar
medidas que visavam àquela adequação. Sua implantação significou, em
termos políticos mais amplos, que o Estado incorporava a preocupaçâo com
a relação entre escola e crianças das camadas populares.
O Alfa significou para os mineiros a primeira tentativa mais ampla de
adoção de medidas de combate ao fracasso da escola, gerando muitas
discussões entre os diferentes profissionais da educação do sistema de
ensino estadual e do circuito universitário e camadas trabalhadoras. No
entanto, a aplicação das medidas pedagógicas propostas pelo Alfa significou
também, como vimos no item anterior, uma ameaça ao processo de
escolarização das crianças das camadas populares, sob a justificativa de que
aquelas crianças precisavam de uma escola adaptada às suas
características. E é em relação a essa "adaptaçâo" proposta que eu gostaria
de chamar atenção para dois pontos.
Em primeiro lugar, eu gostaria de retomar uma bandeira antiga, simples,
óbvia, sem sutilezas: a bandeira de luta em prol de melhores condições de
escolarizaçâo das crianças das camadas populares. Parece-me que o
fascínio por teorias produzidas para explicar a escola em contextos sociais
desenvolvidos tem-nos feito minimizar a diferença nas condições de
escolarização oferecida pelo Estado às diferentes classes sociais. O Estado
não foi ainda capaz de garantir condições mínimas adequadas para as
crianças mais pobres. As escolas situadas na periferia dos centros urbanos
apresentam, ainda hoje, condições precárias de funcionamento. Em Belo
Horizonte, no ano de 1982, 60 escolas (de 1ª a 4ª série) funcionavam em três
turnos e todas elas estavam situadas na periferia da cidade. Ora, sabe-se
muito bem que as crianças que freqüentam esªsas escolas são mais
sensíveis à qualidade da escolarização oferecida na medida em que
dependem essencialmente do trabalho aí realizado para se apropriarem do
saber veiculado.
A educação pré-escolar é também desigualmente distribuída. Quando se
observa que o processo de alfabetização tem sido realizado desde a pré-
escola, a sua distribuição desigual tende a agravar as diferenças, ao início da
1.a série, entre crianças das camadas média/alta e crianças das camadas
populares.
A percepção da importância desses fatores balizou a opinião de
professoras e supervisoras ouvidas, que são unânimes em dizer que alguns
dos pontos positivos do Alfa foram (enquanto durou): a assistência à saúde
das crianças, o reforço à merenda escolar, a distribuição de material didático-
pedagógico a alunos e professoras. A coordenadora geral do projeto
declarou que a distribuição do material pedagógico foi um dos pontos fortes
do projeto; segundo ela, o nível de ausência e evasão dos alunos aumenta
consideravelmente quando a escola começa a cobrar dos alunos o material.
Em segundo lugar, eu gostaria de apontar alguns perigos contidos na
proposta de adequação da escola às crianças das camadas populares do
Projeto Alfa. Como ficou claro nos itens anteriores, a adequação proposta foi
uma adaptação pelo corte, uma adequação efetuada de forma quantitativa.
Tomou-se como padrão o programa oficial e a partir dele selecionaram-se os
aspectos considerados básicos. Assim, diminuiu-se sensivelmente o tempo
dedicado aos estudos sociais e às ciências. Na matemática, também houve
cortes. Na comunicação e expressão se desdobrou de um para dois anos o
tempo necessário de algabetização. Esta forma de adequação parte do
pressuposto de que o currículo proposto está correto e que alguns alunos ;
se apropriar de tudo e outros só têm condiçôes de parte do saber escolar. A
escola inteira para uns. te dessa escola. A escola não é posta em questão.
adequação é visto como um problema de dosagem.
Outro aspecto perigoso de adequação, subjacente à proposta do Alfa, é
uma certa representação da relação entre escola e camadas populares.
Algumas supervisoras entrevistadas disseram claramente: "O programa
básico é pobre para o aluno que continuará os estudos após a 4ª série;
essas crianças, no entanto, vão começar a trabalhar cedo, vão ser pedreiros,
lavadores de carro, empregadas domésticas. Logo, não interessa muito o
nível de conhecimento adquirido na escola." Não interessa aqui discutir se o
programa é ou não interessante para essas crianças. O que acho perigoso
neste tipo de raciocínío é a forma pela qual essas supervisoras vêem a
funçâo da escola para a classe social dessas crianças. O que é ali enfatizado
é a manutenção das relações sociais, que marcam a sociedade.
A preocupação com a "adequação" pode ter direções opostas:
- adequar a escola à realidade, nos termos propostos pelas supervisoras, ou
seja, "adaptar" a escola ao destino que a sociedade prepara ao aluno,
destino que interessa às camadas dominantes;
- adequar a escola aos interesses das camadas populares em sua luta
concreta no seio da sociedade brasileira atual, dentro dos limites próprios da
instituição escola.
Ou seja, a busca da "adequação" pode ter, e tem, na prática pedagógica
do cotidiano das escolas, sinais opostos. Ela pode assumir a perspectiva dos
interesses das camadas populares ou pode ser instrumento para o boicote à
apropriação de um bem a que a classe tem direito e que é instrumento para
sua luta social mais ampla.
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A ESCOLA INTEGRADA: UM PROJETO NO AGRESTE SETENTRIONAL


DE PERNAMBUCO

ROGÉRIO CUNHA DE CAMPOS (Universidade do Estado da Bahia)

As notas seguintes pretendem dar a conhecer algumas das principais


ações desenvolvidas pelo Sistema Integrado de Educaçâo Rural (SIER),
experiência que se iniciou no Agreste setentrional de Pernambuco a partir de
1979, principalmente nos municípios de Bezerros e São Caetano, e suas
áreas de influência.
Na primeira parte, procuro costurar os pontos que me pareceram
fundamentais na concepção teórica do SIER. Segue-se uma parte onde
sistematizo alguns dados sobre a situaçâo sócio-econômica e educacional
da regiâo onde o projeto se implementa, com uma rápida passagem sobre
alguns dados expressivos da situação da educação escolar básica em
Pernambuco. O objetivo é situar o leitor no contexto educacional onde se
praticam os projetos do SIER.
Em seguida, descrevo algumas das ações do sistema que os professores
rurais e técnicos consideram mais expressivas. Há a regis~rar a lacuna
sobre a utilização do rádio no apoio às ações do SIER.
Delineadas a concepção teórica e as principais ações do sistema em seus
aspectos básicos, passo a algumas observações de viagem à região, em
agosto de 1983.
Na última parte, faço alguns comentários sobre a inserçâo dessa proposta
como parte de um projeto de desenvolvimento rural e as tensões a que se
submete o componente educação nos Programas de Desenvolvimento Rural
Integrado (PDRIs). Estas reflexões não têm por objetivo uma avaliação das
ações em andamento, mas o levantamento de alguns pontos que ressaltam
na análise das experiências do componente educação nos PDRIs.

Linhas básicas da concepção do SIER

O Sistema Integrado de Educação Rural (SIER) surge, em Pernambuco,


em 1978, como uma proposta da Secretaria Estadual de Educação, em
convênio com o Instituto Interamericano de Ciências Agrícolas --- depois
Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) - órgâo da
OEA para o desenvolvimento rural.
O SIER constitui o componente educaçâo num Projeto de De-
senvolvimento Rural Integrado (PDRI) em atuação nas microrregiões Agreste
setentrional e Vale do Ipojuca, abrangendo 31 municípios. Este projeto é
parte, por sua vez, do POLONORDESTE, que se desenvolve em várias
áreas do campo nordestino, financiado em parte pelo Banco Mundial.
Vinculado a um programa dessa natureza, o SIER se adequa às
declarações de intençôes dos PDRIs, que pretendem a superação da
pobreza absoluta, entendida como conseqüência do quadro geral de
carências que compõem o atraso rural.
A educação é aí concebida a elevaçâo da produtividade a melhoria das
condiçôes de como um importante instrumento, sendo esta vista como um
meio vida da população rural.
Ao lado desses objetivos gerais, o SIER tem objetivos específis de
aurrientar a cobertura do sistema educacional no meio rural melhorar a ação
do sistema educacional que, na região, apresenta tradicionais traços de
precariedade com altas taxas de evasão repetência, entre outros problemas.
Para isso, lança mão de um amplo leque de propostas no campo de
currículos, nucleação de escolas, treinamento de professores, participaçâo
da populaçâo na escola, que constitui um sistema original de educação,
entre as ações educacionais oficiais em andamento no meio rural do
Nordeste.
Partindo da problemática sócio-econômica da área e das deficiências
educacionais aí existentes, objetiva-se possibilitar às comunidades rurais a
aquisição de conhecimentos que levem a um aumento da produtividade; à
participação na constituição de cooperativas, escolas, pelotões de saúde
etc.; a uma educação geral e à formação em técnicas agropecuárias,
formação cooperativista e empresarial, treinamento em artesanato etc.
Para que estes objetivos sejam alcançados, pretende-se que a
comunidade rural participe, através de suas associações de classe,
cooperativas e outros grupos comunitários, de todas as fases do processo
edueativo (diagnóstico, programação, execução, avaliação) e inclusive
chegue a determinar os conteúdos educacionais, as formas de organizá-los e
os métodos e meios mais adequados ao seu desenvolvimento, permitindo
assim que a educação seja uma responsabilidade da própria comunidade.
Nesse sentido, deve-se superar "a função tradicional da escola",
permitindo que, através da educação formal e nâo-formal, o equipamento
escolar se torne um instrumento de apoio ao mundo do trabalho e à
organização comunitária. A elaboração do currículo deve estar colada à
realidade, levando em conta os interesses e necessidades locais e, assim,
auxilie a superar a evasão e a inescolaridade, reconhecendo que a vida
produtiva no meio rural condiciona as atividades escolares "aos
requerimentos de utilização de trabalho familiar no processo produtivo" (SEE-
PEb, 1978, 6).
É imprescindível que este processo seja acompanhado pela elaboração
de textos e materiais de apoio adequados à realidade, baseados em
pesquisas do meio. Por outro lado, é necessário formar quadros capazes de
desenvolver coletivamente as ações educativas e que se liguem
estreitamente às populações. Já a supervisão, tanto na educação formal
como na não-formal, deve ser, nessa perspectiva, um processo de
orientação e apoio aos professores e demais agentes educativos.
A educação não-formal é entendida como "o conjunto de atividades
educativas desenvolvidas à margem do sistema de educação formal - seja
de forma separada ou como parte integrante de processos de
desenvolvimento rural - que atendem àqueles grupos que ultrapassaram o
limite de obrigatoriedade escolar e, por razões sócio-econômicas, não
tiveram acesso à educação formal, incorporando-se às atividades produtivas,
visando, sobretudo, ao desenvolvimento de açôes tendentes a modificar a
percepçâo e o comportamento que os diversos grupos têm de sua realidade,
e a promover sua organização para o desenvolvimento de atuações
coletivas" (SEE-PEb, 1978, 13).
A linha de atuação, nesse aspecto, busca integração com as ações de
extensão rural, capacitação tecnológica e cooperativismo para produtores
agrícolas, desenvolvidos pela EMATER; os programas de alfabetização
funcional, educação integrada, programas de educação comunitária e
cultural e programas de profissionalização (artesanato,
primeiros socorros, enfermagem veterinária, auxiliar de administração de
fazenda) desenvolvidos pelo MOBRAL; os programas de educação
cooperativa do INCRA, e os programas de saúde da FUSAM, entre outros
programas e agências que atuam no campo.
Os diversos grupos naturais identificados na região, como os clubes de
pais, clubes de mães, círculos de pais e professores, são a base inicial para
transformar a escola num "fator de mudança para apoiar a organização
comunitária".
As alternativas de ação propostas visaram transforrnar os Centros de
Educação Rural, criados em 1976, e que desempenhavam as funções
tradicionais de escolas de 1° e 2° graus, num sistema; capaz de:
• facilitar os processos educacionais formais e não-formais, ampliando a
cobertura de atendimento escolar e minimizando os obstáculos que
condicionam a evasão e a baixa qualidade do ensino, isto é, o calendário
escolar, a localização das escolas;
• atender às necessidades das comunidades rurais e associações comu-
nitárias, entendendo-as como agentes e beneficiárias dos processos de
desenvolvimento econômico e social e promovendo ações que visem a
superar fatores que impedem e dificultem seu desenvolvimento;
• programar suas atividades a partir de pesquisas participativas sobre a
problemática sócio-econômica e educativa das comunidades rurais,
adaptando permanentemente sua programação às características e recursos
destas;
• adotar métodos ativos que estimulem a criatividade nas atividades docente-
discentes do ensino formai, bem como a participação das comunidades na
identificação de seus problemas e escolha de alternativas de solução;
• integrar, numa estratégia educacionai unificada, todas as ações educativas,
quaisquer que sejam suas origens, visando a atender as necessidades das
comunidades rurais e propiciar o atendimento dos grupos da população que
se deslocam temporária e definitivamente, do meio rural para o meio urbano
(SEE-PEb, 1978, 16).

O sistema proposto se compõe de três unidades escolares integradas,


que têm as seguintes funções:
1. Os Centros de Educação Rural, entendidos como centros de ex-
perimentação e apoio tecnológico às escolas rurais no que se refere a
currículo, materiais didáticos, treinamento de professores e ações de
educação não-formal ligadas ao desenvolvimento comunitário.
2. As Escolas Intermediárias (EI), elementos de ligação entre as Escolas-
Base e os CERUs, que viabilizam o apoio e a irradiação tecnológica destes
últimos no meio rural. Essas escolas terão quatro salas de aula, localizando-
se em pontos estratégicos para facilitar a irradiação.
3. As Escolas de Base (EB), que constituem as pequenas escolas rurais de
uma ou duas salas de aula, localizadas em vilas, povoados, sítios ou
fazendas (SEE-PEb, 1978, 18).
Graficamente este sistema pode ser representado da seguinte maneira:
EB EB EB
BB EI EB
EB CERU EB
EB EB
EB EI EB EB
EB

Esta é a configuração do SIER, cuja área geográfica de atuação se


estende em um raio de 30km a partir do CERU.
Neste esquema, caberia à Escola de Base oferecer o ensino de 1.° grau
(l.a a 4.a série) e ações de educação não-formal, com a perspectiva de
formação de grupos comunitários organizados em torno de projetos
produtivos.
A EB teria o papel de fornecer à Escola Intermediária, através de
professores e alunos, informações que permitissem a elaboração de material
de apoio ao processo de ensino-aprendizagem, e a programação seria
elaborada em conjunto com as outras instâncias de SIER.
Os programas não-formais com os grupos comunitários (incorporados ou
incorporáveis a atividades produtivas) se dariam através de extensionistas,
agrônomos, professores responsáveis pelo apoio à elaboração, execução e
avaliação de projetos coletivos. "Esses grupos serão atendidos também
através de programas de ensino supletivo, de acordo com as características
do mercado de trabalho agrícola e com as demandas específicas que surjam
em torno de formulação e/ou desenvolvimento de um projeto comunitário"
(SEE-PEb, 1978, 21).
A Escola Intermediária é responsável pelo ensino regular de 1.° grau. Nas
classes de l.a a 4.a série não se diferenciam da EB. Da 5.a à 8.a série dar-
se-ia ênfase à formação especial visando à profissionalização de 1 ° grau,
especialmente para ocupações agrícolas.
A perspectiva é de que a EI seja um centro de experimentação e
irradiação do currícuío, dos materiais didáticos e do treinamento de
professores da educação formal.
Em termos de educação não-formal, a EI deve organizar os grupos
comunitários, habilitando-os a desenvolver a capacidade de propor projetos
produtivos utilizando os recursos locais, e deve servir como um centro de
demonstração e de difusão de técnicas e de atividades de extensão rural,
nutrição, higiene, prevenção de enfermidade e saúde.
A EI deve ter uma biblioteca popular que auxilie os alunos, professores e
a população local, e ser adequada à realização de jornadas ou campanhas
destinadas à população e programas de treinamento de professores.
A Escola Intermediária é considerada, em funçâo desse conjunto de
atívidades, como o componente básico do SIER.
Os Centros de Educação Rural são a "cabeça" do sistema, com o papel
de coordenar, apoiar e dirigir todas as ações do SIER.
As principais funçôes técnico-educativas dos CERUs, além do ensino
regular e supletivo de 1 ° e 2 ° graus, estão ligadas ao apoio tecnológico e de
experimentação ao conjunto das atividades do sistema, incluindo a
organização comunitária e a educação não-formal.
Nesse sentido, a proposta inclui a criação de quatro laboratórios
responsáveis pelo desenvolvimento de cada uma das principais áreas de sua
atuação.
Laboratório de educação formal - com as funções, entre outras, de
realizar experiências de currículo com a participação da comunidade;
experimentar técnicas coletivas de trabalho para o ensino rural, a fim de
apoiar os professores; ativar os círculos de pais e professores, levando-os a
participar permanentemente na gestão e no desenvolvimento do processo
educativo.
Laboratório de educação não-formal - voltado para "impulsionar a
organização de grupos e/ou empresas comunitárias, apoiando-as no
planejamento, execução e avaliação dos projetos produtivos, função das
prioridades do desenvolvimento rural integrado, dentro de suas áreas de
influência (SEE-PEf , 1981, 24). Responsável, também, pelos programas de
alfabetização, pós-alfabetização e capacitação tecnológica e empresarial.
Laboratório de treinamento e material didático - com as funções, entre
outras, de pesquisar e utilizar materiais e atividades em uso pelos
professores do meio rural, coordenar o processo de produção e difusão de
materiais na EI e na EB, desenvolver programas experimentais de
treinamento em serviço, apoiando-os, quando possível, com rádio e TV,
estimular a formação de grupos de professores para desenvolverem
programas de treinamento.
Laboratório tecnológico e de extensão rural - que teria a cargo "elaborar
propostas a ser estudadas pela equipe central da Secretaria da Educação,
de programas que visem oferecer cursos supletivos compatíveis com os
requisitos ocupacionais da realidade rural, programar, conjuntamente com as
EI e EB, as atividades técnico- educativas e de extensão rural a ser
executadas pelas unidades-móveis do SIER" (SEE-PEf, 1981, 28).
O órgão fundamental nas atividades educativas do SIER é o grupo de
estudos, formado por cinco professores das diferentes áreas (coiicação e
expressão, matemática, estu.dos sociais, ciências e um professor de 1.ª a
4.a série) com o efetivo papel de coordenação pe5gica da estrutura do SIER
em cada agrupamento CERU-EI-E$. a professores são afastados da
regência e se dedicam à coordeão das atividades do sistema, incluindo as de
educação não-formal.
Pressupõe-se que o educador necessário à implementação das ações
que constituem a estratégia do SIER tenha um papel fundamental para a
garantia da qualidade do processo educativo na escola e fora dela. Neste
sentido, espera-se que o professor rural se torne um importante agente
dinamizador da comunidade rural, devendo ser um elo entre esta e a escola.
Para que possa desempenhar a contento este papel, enfatizam-se os
seguintes aspectos no seu processo de formaçâo: desenvolver a criatividade
para gerar atividades que envolvam os alunos, a família e a comunidade;
elaborar materiais de ensino com os recursos locais; aproveitar as
expressões da comunidade como instrumentos para o processo educativo;
trabalhar em grupos, cooperativa e participativamente; "ser um agente de
mudanças comportamentais e de conduta dos grupos comunitários" (SEE-
PEf, 1981, 36).
Além disso, o agente educativo deve "conhecer normas e regulamenfos
vigentes para a organização de associações de base, a fim de orientar os
grupos a respeito de papéis e relações dentro de uma organização
comunitária" (SEE-PEf, 1981, 36). Para estes agentes torna-se
indispensável a compreensão da concepção global e o papel de cada
componente do SIER, assim como das ações desenvolvidas pelo MOBRAL,
INCRA, EMATER, FUSAM etc., organismos com os quais procurará
desenvolver um trabalho integrado.

O homem no Agreste, a terra, a escola

Com os aspectos descritos que constituem, por assim dizer, o esqueleto


da concepção do sistema, iniciou-se, em 1979, sua efetiva implementação no
Agreste setentrional, a partir dos CERUs de Gravatá, Limoeiro, Bezerros,
São Caetano.
Os traços considerados fundamentais sobre a situação sócio-econômica
são transcritos a seguir:
A população da área do projeto é de 829.660 habitantes, distribuídos em
31 municípios, o que representa cerca de 15% do total da população do
Estado de Pernambuco. A percentagem de população rural ascende a
61,4%. A região possui uma elevada densidade demográfica média, que
alcança 82,3 habitantes/km2.
As características do sistema produtivo e do mercado de trabaIho, unidas
aos tradicionais fatores de atração urbana, geram fortes fluxos migratórios.
A região se caracteriza pela exploração agrícola e pecuária, com
tendência ao aumento progressivo desta última. Em 1970, os cultivos
alcançaram 23,3% da terra e as pastagens, 37,3%. Esta superioridade da
pecuária, que se tem acentuado, além do aumento da tendência
concentradora de terra, provoca o desaparacimento dos parceirms e o
aumento da pressão pelo trabalho nas áreas de minifúndios.
Dado que a pecuária ocupa pouca mão-de-obra, sua ampliação provoca a
diminuição das possibilidades de emprego e o aumento do fluxo migratório.
O maior valor da produção e a exploração mais intensiva da terra se dão
no minifúndio. Essa produção, em sua maior parte, orienta-se para a
subsistência, e, quando se dirige ao mercado, as práticas de comercialização
são extremamente insuficientes. Isto determina que o produtor seja vítima de
intermediários que exercem sobre ele seu forte poder econômico, reduzindo
sua renda.
O fenômeno da concentração da terra e o complexo latifúndio-minifúndio
caracterizam esta área. A concentração determina a pulverização da
propriedade, deixando a maior parte da população com poucas
possibilidades de acesso à terra.
Constata-se na zona uma tendência histórica à atomização da pequena
propriedade. No período 1950-1970, o número de estabelecimentos do total
do Agreste (setentrional e meridional) aumentou em 93,6% e a área total em
24,2%. Isto significa que grande parte do aumento é resultado da subdivisão
das propriedades e não da incorporação de novas áreas à agricultura.
A maioria da força de trabalho agrupa-se nas pequenas explorações. Na
área em questão, três fatores contribuem historicamente para restringir o
mercado de trabalho: o desaparecimento da parceria, o aumento da
exploração pecuária e a pulverização da propriedade.
De maneira geral, podemos dizer que a maior parte da força de trabalho
rural é multi-ativa. Ou seja, que, além de possuir e trabalhar um pequeno
pedaço de terra, ocupa-se como assalariada permanente e ocasional nas
grandes propriedades. Com freqüência, a população também se desloca
temporariamente pára outras regiões, nas épocas de plantio e colheita.
As condições sanitárias são muito precárias, apresentando um quadro
muito similar ao resto das populações rurais da maior parte dos países da
América Latina.
A cobertura que o sistema educacional dispensa às áreas rurais é
insuficiente e deficiente em todo o Nordeste do país.
A experiência histórica demonstra que a administração da educação rural
determina a sucessão de ações nas áreas rurais como reflexo e repetição
das que se aplicam nas zonas urbanas.
Poderíamos sintetizar alguns dos problemas fundamentais: ingresso das
crianças em idade escolar no processo produtivo e ingresso tardio na escola;
fenômeno migratório; falta de coordenação entre o ano letivo e o período de
maior trabalho no campo; falta de adequação do currículo escolar à realidade
do trabalhador rural; professores com baixo nível de formação; alto índice de
analfabetismo; inexistência de programa de educação de adultos; baixa pro-
dutividade do sistema formal; alto índice de evasão e repetência" (SEE-PEI,
1979, 2-4).
Algumas pinceladas sobre alguns dados expressivos da educação escolar
no conjunto do Estado de Pernambuco talvez ajudem a situar com mais
clareza a problemática educacíonal na regiâo de atuação do PDRI-Agreste
setentrional, onde o SIER tem desenvolvido prio, ritariamente suas ações.
Pelos dados das tabulações avançadas do censo demográfico de 1980,
da população economicamente ativa em atividades agropecuárias em
Pernambuco, 76,70% não tinham nenhuma instrução ou tinham menos de
um ano, enquanto apenas 1,13% tinha até no máximo quatro anos de
estudo.
Dados do Serviço de Estatística da Educação e Cultura do Ministério da
Educação mostram que dos 330.574 estudantes que se matricularam, no
início do ano de 1971, na 1.a série do 1° grau no Estado, 151.158 (46,0%)
matricularam-se na 2.a série no ano seguinte e apenas 38.427 concluíram a
8.a série em 1978.
O quadro mais dramático acerca do desempenho dos estudantes,
especialmente na zona rural, talvez seja evidenciado pelos números de
conclusão do curso de 1° grau, contidos na seguinte tabela:
Tabela 1
PERNAMBUCO - ENSINO DE 1° GRAU- CONCLUSÕES DE CURSO
(30/11) - 1970/1978

ANO TOTAL ZONA URBANA ZONA RURAL


1970 15.379 15.239 140
1971 18.661 18.580 81
1972 21.059 20.855 224
1973 22.383 22.146 237
1974 35.510 35.421 89
1975 37.535 37.446 89
1976 35.329 34.860 469
1977 41.130 40.593 537
1978 38.427 (*) (*)

FONTE: SEEC/MEC
(*) Os dados não constam na tabela original.

Alguns outros dados fornecidos pela Secretaria Estadual de Educação


para o ano de 1980 ajudam-nos a compor uma visão de conjunto sobre a
educação escolar de 1 ° grau. Assim, para aquele ano, havia na zona rural
de Pernambuco 7.677 escolas de 1 ° grau (sendo que 90% possuíam apenas
uma sala de aula); 21 escolas de pré-escolar e 1 ° grau; e apenas 5 escolas
de 1° e 2° graus. A maioria dessas escolas é municipal (6.997), e concentram
84,8% dos estudantes matriculados no 1° grau na zona rural (SEE-PE, DIE,
1981) .
Convém acrescentar que grande parte das escolas de apenas uma sala
funciona na própria casa da professora, que ensina, ao mesmo tempo, a
alunos de várias séries e idades. Por outro lado, a existência de um número
tão elevado de matrículas em escolas municipais é um indicador de baixos
salários e precárias condições de trabalho dos professores, uma vez que as
prefeituras têm poucas condições de arcar com as despesas educacionais.
Por outro lado, a Secretaria revela que, em 1980, 11.449 professores
atuaram no 1° grau na zona rural de Pernambuco, dos quais apenas 5.166
(45%) possuíam uma formação escolar acima das quatro primeiras séries do
1º grau. Quando consideramos apenas a rede municipal que, como vimos,
concentra a matrícula neste nível de ensino, este percentual cai para 38%,
ou seja, a maior parte dos professores que exercem a profissão no meio rural
(62°,ó) tem uma formação formal equivalente ao antigo primário.
Em pesquisa realizada entre os meses de maio e de dezembro de 1982,
pelo Grupo de Estudos Rurais da SEE-PE junto a uma amostra de
professores rurais, fez-se um levantamento exaustivo dos principais aspectos
que medeiam a qualidade da educação veiculada pelo sistema escolar no
meio rural de Pernambuco.
As páginas seguintes são dedicadas a este painel traçado pela
pesquisa. Inicia-se apontando que a imensa maioria dos professores
nas escolas rurais é do sexo feminino e acumula jornadas de trabalho - na
escola, nas atividades domésticas e na roça. São predominantemente
jovens. Nas microrregiões do Agreste setentrional e Vale do Ipojuca, 78,3% e
70%, respectivamente, situam-se na faixa 16-40 anos, sendo que a maioria
se concentra, nas duas regiôes, na faixa 21-30 anos. Estes dados são
expressivos do potencial de mudança do pessoal que trabalha em educação
e também indicam a rotatividade no setor.
O
nível dos estudos escolares na região considerada não se afasta da situação
geral do professorado em atividade no meio rural do Estado. No Vale do
Ipojuca, entretanto, é particularmente elevado o número de professores que
não concluiu o curso secundário (82%), sendo o quadro geral dado pela
seguinte tabela:]

TABELA 2
PERCENTUAIS DE PROFESSORES RURAIS POR MICRORREGIÃO,
SEGUNDO OS SEUS ESTUDOS ESCOLARES

MICROREGIÕES ESTUDOS ESCOLARES


Agreste setentrional
1ª a 4ª série do 1º grau 26,1
5ª a 8ª série do 1º grau 28,3
1ª a 2ª série do 2º grau -
3ª a 4ª série do 2º grau 45,6
Total: 100,00

Vale do Ipojuca
1ª a 4ª série do 1º grau 50,1
5ª a 8ª série do 1º grau 32,0
1ª a 2ª série do 2º grau 2,0
3ª a 4ª série do 2º grau 16,0
Total: 100,00

Pernambuco
1ª a 4ª série do 1º grau 36,0
5ª a 8ª série do 1º grau 23,8
1ª a 2ª série do 2º grau 4,2
3ª a 4ª série do 2º grau 36,0
Total: 100,00

FONTE: Pesquisa junto a professores rurais, p. 67.


(1) Na microrregião do Agreste setentrional está o CERU de Limoeiro.
(2) Na microrregião do Vale do Ipojuca estão os CERUs de Bezerros, Gra-
vatá, Pesqueira e São Caetano.

Os professores rurais são pessoas que fazem parte da população local


e vivem seus problemas cotidianos: 78,3% do Agreste setentrional residem
no campo. No Vale do Ipojuca, este índice alcança 88,0%, sen.do que
grande parte deles aí reside há mais de 10 anos.
Na região em estudo, 46,0% (Agreste setentrional) e 59,0% (Vale do
Ipojuca) tinham de 1 a 5 anos de tempo de ensino na zona rurál, enquanto
menos de 30%, nas duas microrregiões, tinham mais de 10 anos de ensino,
dados que revelam uma vez mais a rotatividade e conseqüente dificuldade
de acumulação de experiências no sistema educacional.
Predominam os professores municipais em todo o Estado de
Pernambuco, o que vale dizer salários mais baixos, instabilidade profissional,
dependência dos chefes políticos com poder local, maior precarieda.de do
sistema educacional em seu conjunto.
As faixas de salários mensais para os professores rurais, em 1982,
quando o salário mínimo regional era de Cr$14.400, apresentavam-se como
na seguinte tabela:

Tabela 3
PROFESSORES RURAíS POR MICRORREGIÕES, SEGUNDO AS
CLASSES DE SALÁRIO MENSAL - 1982

Microregiões
Salário Mensal (Cr$ 1,00)

Agreste setentrional
Mais de 1.000: 2,2
1.001 a 5.000: 50,0
5.001 a 10.000: 26,1
10.001 a 15.000: 21,7
15.001 a 20.000: -
20.001 a 25.000: -
25.001 a 30.000: -
30.001 a 37.000: -
Total: 100,00

Vale do Ipojuca
Mais de 1.000: -
1.001 a 5.000: 36,0
5.001 a 10.000: 38,1
10.001 a 15.000: 24,0
15.001 a 20.000: -
20.001 a 25.000: 2,0
25.001 a 30.000: -
30.001 a 37.000: -
Total: 100,00

Pernambuco
Mais de 1.000: 3,4
1.001 a 5.000: 41,0
5.001 a 10.000: 26,5
10.001 a 15.000: 20,2
15.001 a 20.000: 3,4
20.001 a 25.000: 2,1
25.001 a 30.000: 1,8
30.001 a 37.000: 1,6
Total: 100,00
FONTE: Pesquisa junto a professores rurais, p. 81.

É importante observar que numa área onde se desenvolve um grande


projeto de desenvolvimento rural, que articula sua proposta educacional num
sistema complexo como o SIER, nada se diga sobre uma medida básica no
sentido da melhoria do ensino, como é o aumento do salário dos
professores. Pela tabela, pode-se observar que apenas 2,0% dos
professores entrevistados na região ultrapassavam a faixa do salário mínimo
regional, e o grande contingente situava-se na faixa de 1.001 a 5.000
cruzeiros, salários que correspondiam, no máximo, a cerca de um terço do
salário mínimo.
Entre os aspectos do cotidiano escolar, é interessante notar que a quase
totalidade utilizá como material básico nas suas aulas o quadro-negro, o
caderno, o livro-texto e o livro de exercícios. As datas cívicas têm um papel
importante entre os ritos da escola rural, sendo sistematicamente
organizadas em toda a região, enquanto 84,8 % (Agreste setentrional) e
86,0% (Vale do Ipojuca) dos professores entrevistados não adotam hora de
recreio nas escolas para não perder tempo, "pela zoada", pela falta de
espaço, os pais não gostam, falta merenda, para não se acidentarem; entre
outros motivos, 45,7% dos professores entrevistados no Agreste setentrional
e 32,0% no Vale do Ipojuca adotam dois ou mais livros diferentes numa
mesma série, enquanto se registram "nada menos que 72 títulos das mais
diversas linhas de pensamento pedagógico" em uso na zona rural de Per-
nambuco.
Entre outros assuntos que poderiam ser ensinados nas escolas rurais da
região, os professores consideram importante introduzir, pela ordern:
artesanato, economia doméstíca, agrícultura, comêrcio, criaçâo de anímais.
Observe-se que nenhurn deles optou por educação físíca, desenho, relígião
e boas maneiras, entre o rol de sugestões apresentadas pelo questionário da
pesquisa.
Quanto aos cursos profissionalizantes que seus alunos poderiam
freqüentar para trabalhar na região, os professores apontaram, conforme a
tabela abaixo:

Tabela 4
SUGESTÕES DOS PROFESSORES RURAIS QUANTO AOS CURSOS
PROFISSIONALIZANTES QUE OS SEUS ALUNOS PODERIAM
FREQUENTAR PARA TRABALHAR NA REGIÃO

Microrregiões
Agreste setentrional:
Cursos profissionalizantes:
Mecânico: 23,9 %
Desenho e pintura de parede: 32,6 %
Enfermagem: 21,7
Eletricista: 6,5
Encanador: 6,5
Corte e costura: 78,3
Motorista: 80,4
Pátrica de pedreiro: 54,3
Tratorista: 45,6
Marceneiro: 30,4
Professor: 2,2
Outros: -

Vale do Ipojuca
Mecânico: 10,2 %
Desenho e pintura de parede: 30,6 %
Enfermagem: 6,2
Eletricista: 10,2
Encanador: 2,0
Corte e costura: 69,4
Motorista: 57,1
Pátrica de pedreiro: 67,3
Tratorista: 53,1
Marceneiro: 20,4
Professor: -
Outros: -

Pernambuco
Mecânico: 29,2 %
Desenho e pintura de parede: 27,5 %
Enfermagem: 26,9
Eletricista: 17,8
Encanador: 12,0
Corte e costura: 66,2
Motorista: 62,2
Pátrica de pedreiro: 53,3
Tratorista: 44,7
Marceneiro: 34,1
Professor: 0,6
Outros: 0,6

Fonte: Pesquisa junto a professores rurais, p 81.


Estes dados são interessantes porque permitem uma comparação entre
essas sugestões e os cursos oferecidos pelos programas de
desenvolvimento rural na área de educação não-formal. A exceção de "corte
e costura", e alguns cursos rápidos na área de enfermagem, o PDRI não
promove os cursos desta relaçâo nas comunidades rurais onde atua.
Um levantamento sobre os números absolutos de matrícula inicial para o
conjunto da região atingida pelo PDRI Agreste setentrional indica que, no
ano de 1980, as matrículas iniciais por série constituíam o seguinte quadro:
SÉRIE MATRICULA
1ª 42.386
2ª 14.133
3ª 8.155
4ª 4.709
TOTAL 71.014
FONTE: SE-DIE, Estatísticas educacionais de Pernambuco, 1980.
Pode-se observar que a matrícula na 2ª série representa 33,3% da
matrícula da 1ª, e a da 4.a série apenas 11,1 %, o que indica altas taxas de
evasão e repetência concentradas nas l.as séries do 1° grau. Aliás, na zona
rural da região, registra-se a existência de 5ª série apenas em 6 municípios,
enquanto o primeiro grau completo, na zona rural, em 1980, existia apenas
em Surubim, Taquaratinga do Norte, Santa Maria do Cambucá e Limoeiro.
Os dados dos municípios-sede dos CERUs não são de qualidade
diversa, à exceção de Limoeiro, conforme se pode ver na tabela 5.
Os motivos para a existência de altas taxas de evasão do sistema
escolar são, sobretudo, de ordem econômica e social, relacionados com a
necessidade de a criança vir a integrar muito cedo a força de trabalho, e com
os fluxos migratórios, resultado da concentraçâo da terra e desemprego no
campo.
A opinião dos professores rurais sobre os principais motivos da evasâo
constituem a tabela 6.
Tabela 5
MUNICÍPIOS-SEDE DE CERU
1980 - MATRÍCULA INICIAL - 1° GRAU
MUNICÍPIO
Bezerros
1ª série: 1.713
2ª série: 474
1ª/2ª %: 27,7
3ª série: 243
4ª série: 150
4ª/1ª %: 8,8

Gravatá:
1ª série: 1.848
2ª série: 670
1ª/2ª %: 37,5
3ª série: 374
4ª série: 218
4ª/1ª %: 11,8

Limoeiro
1ª série: 1.897
2ª série: 901
1ª/2ª %: 47,5
3ª série: 582
4ª série: 324
4ª/1ª %: 17,1

São Caetano
1ª série: 1.644
2ª série: 535
1ª/2ª %: 32,5
3ª série: 268
4ª série: 142
4ª/1ª %: 8,6

Pesqueira
1ª série: 1.513
2ª série: 373
1ª/2ª %: 24,6
3ª série: 168
4ª série: 94
4ª/1ª %: 6,2

FONTE,: SE-DIE, Estatísticas educacionais de Pernambuco, 1980.

Tabela 6
ESCOLAS RURAIS ONDE EXISTE EVASÃO ESCOLAR, POR
MICRORREGIÕES, SEGUNDO OS MOTIVOS DA EVASÃO

Microrregiões:
Agreste setentrional
Motivo da evasão escolar

Os meninos precisam trabalhar: 78,3


A família mudou para outro lugar: 73,9
Não podem comprar livros e cadernos: 30,4
Pelo calendário escolar: 45,6
Não aprendem a ler e a escrever: 6,5
Falta de orientação dos pais: 2,2
Não entendem os livros: -
Falta de interesse dos próprios alunos: 4,3
Falta de merenda: -
Devido à distância: -

Vale do Ipojuca:
Os meninos precisam trabalhar: 86,0
A família mudou para outro lugar: 60,0
Não podem comprar livros e cadernos: 12,0
Pelo calendário escolar: 14,0
Não aprendem a ler e a escrever: -
Falta de orientação dos pais: -
Não entendem os livros: -
Falta de interesse dos próprios alunos: -
Falta de merenda: 2,0
Devido à distância: -

Pernambuco:
Os meninos precisam trabalhar: 73,6
A família mudou para outro lugar: 64,4
Não podem comprar livros e cadernos: 33,3
Pelo calendário escolar: 17,2
Não aprendem a ler e a escrever: 10,6
Falta de orientação dos pais: 8,1
Não entendem os livros: 7,5
Falta de interesse dos próprios alunos: 3,3
Falta de merenda: 1,9
Devido à distância: 1,7

Nota: múltipla escolha


Fonte: Pesquisa sobre conteúdo, p. 150
As ações mais expressivas do SIER encontram-se na área de influência
dos CERUs de Bezerros e São Caetano, que nos dão, no momento, os
principais exemplos sobre a prática do sistema.
Aí foram desenvolvidas, basicamente, as ações educativas ligadas à
pesquisa participativa em educação não-formal e desenvolvimento curricular
participativo em educação formal. E aí também que ocorre o
acompanhamento sistemático da utilização do material didático elaborado
pelo Grupo de Estudos Rurais da SE. A emissora de rádio que transmite os
programas vinculados ao SIER localiza-se em Caruaru, cidade próxima a
Bezerros e São Caetano. Além disso, é a região onde estão funcionando
algumas das principais Escolas Intermediárias (Sapucarana e Tapiraim).
Enfim, a experiência em andamento na área nucleada por estes dois
municípios permite entender com mais clareza suas possibilidades.

O desenvolvimento currácular participativo

Uma das principais experiências no âmbito da educação formal é o


desenvolvimento curricular com a participação da comunidade rural, dos
pais, professores e alunos na sua construção.
Com base, entre outras, na premissa de que "o essencial do currículo é
a inter-relação pessoal que se produz entre os envolvidos no processo, a
saber: professores, crianças, pais, comunidade" (síntese de algumas ações
desenvolvidas em 1982), o currículo é visto como resultado da interação
entre as comunidades e os professores rurais com o objetivo de, por um
lado, melhorar a qualidade do ensino e, por outro, adequá-lo ao meio rural.
A perspectiva, a longo prazo, é a criação de uma proposta curricular
definida pelos participantes deste processo. Nessa medida não se tem um
modelo a priori, mas espera-se que a construção de uma tal proposta ligue-
se estreitamente às características da população e da região.
Busca-se um processo permanente que, aos poucos, vá introduzindo
modificações no currículo vigente, sendo a metodologia desse trabalho
objeto, igualmente, da ação das comunidades e professores rurais.
Embora voltado para a modificação curricular da escola rural, pretende-
se a integração com as ações de educação não-formal levadas a efeito no
âmbito do SIER. Igualmente, busca-se ampliar a experiência para outros
CERUs e há uma especial preocupação na criação de organismos e
instrumentos que assegurem a continuidade dos processos desenvolvidos e
crescente autonomia local.
Para o trabalho em cada município, a equipe do Grupo de Estudos
Rurais (GER) elaborou um "roteiro curricular" preliminar, sistematizando
algumas variáveis que considerava, de início, como de interesse para a
observação de campo que se realizou em seguida com a participação do
GER, membro do Grupo de Estudos do CERU, supervisores dos órgãos
municipais de educação entre outros. Esta observação abordou,
fundamentalmente, a situação física das escolas; situações escolares;
entrevistas com professores sobre a situação profissional e a situação de
aprendizagem, entrevistas com os alunos.
Depois de reunião de avaliação das visitas, o passo seguinte foi a
elaboração do diagnóstico curricular, por município, que compreende o
levantamento dos problemas específicos de cada escola e de cada
município; e dos problemas gerais encontrados com freqüência em toda a
área.
Os níveis principais de participação na experiência curricular são as
jornadas de representante, no plano municipal, das quais participam os
representantes das comunidades, Igreja, sindicato, GER, CERU, OME,
Delegacia Regional de Educação, professores de cada setor; o nível setorial
com as jornadas de pro f essores reunindo professores de sítios e povoados
próximos; e as atividades ao nível local, onde se conta com a participação
dos grupos de professores da escola, as organizações locais e os alunos.
A experiência mais significativa parece ser a jornada de professores por
setor. Eles se deslocam a um povoado e reúnem-se para discutir seus
problemas, planejar as atividades, elaborar material, decidindo sobre
atividades ou tarefas a ser desenvolvidas no período entre uma jornada e
outra. Tem-se observado a existência de importantes mudanças na atuação
dos professores, que contribui na comunicação com os educandos e na troca
de experiência com seus colegas de trabalho.
O processo educativo, representado pela jornada de professores,
levando-se em conta que quase todos eles são leigos, evidencia uma valiosa
contribuição e aponta para uma alternativa aos programas de "capacitação
de recursos humanos" e "treinamento", cuja experiência histórica é a de
reuniões onde os técnicos das secretarias de educação transmitem receitas
prontas e acabadas - que pouco serão aproveitadas pelos professores. A
jornada de professores procura introduzir uma prática cooperativa baseada
em problemas reais do cotidiano escolar e contribui para anular a separação
entre a decisão e a execução no processo educacional. Num sentido mais
amplo, a jornada de professores auxilia a diminuir o isolamento do professor
do meio rural e lhes permite os primeiros passos no repensar a educação.
São duas as modalidades das jornadas. Na primeira delas, "conta-se
com a participação de professores da Escola Intermediária e com
professores das Escolas de Base, com um número de 15 a 20 partícipantes .
. . lé-se e distribui-se a pauta com os objetivos da jornada assim como as
atividades propostas para aquele .dia. Dando continuidade, reflete-se tanto
individualmente como em pequenos grupos sobre os assuntos em
questão. . . No final de cada jornada deixa-se uma `tarefa-pesquisa' para ser
realizada em pequenos grupos, envolvendo: comunidade, crianças,
professores, atividades de planejamento didático escola - comunidade etc.,
que será discutida e analisada na jornada seguinte. Finalizando-se, faz-se a
avaliação do trabalho desenvolvido, enfatizando os pontos positivos e
negativos da mesma, assim como sugestões para melhoria do trabalho" . . .
(As "jornadas de professores" como um instrumento para a mudança
,curricular.)
A segunda modalidade das jornadas é constituída por atividales para
professores e alunos: crianças trazidas regularmente pelos professores, com
a orientaçâo de um técnico, de um professor ou pessoa da comunidade,
pesquisam em grupo sobre a realidade da ;ultura local. Além dessas, outras
atividades são desenvolvidas: desenho, pintura, colagem, cantigas de roda,
adivinhações, estórias etc.
Além disso os professores elaboram seu plano escola-comunidade, cabendo
aos mesmos, agrupados por vizinhança, discutir, distribuir as tarefas e
executar realmente as festinhas, comemorações, reuniões de pais. . .
... No final de cada jornada, as crianças, diante dos professores que se
encontram em círculo, demonstram as atividades realizadas. Uma criança
relata a execução do trabalho, objetivando uma mudança na relação
professor-aluno.
O importante de todas essas atividades é a vivência e a transferência
dessas experiências para a sala de aula; assim como o repasse para outros
professores e crianças que não participaram das jornadas... (As "jornadas de
professores" como um instrumento para a mudança curricular.)
Com essas atividades objetivam-se, entre outras, a conscientizaão e a
expectativa da necessidade de melhorar o currículo; a elaboração e a
distribuição de material didático e textos locais; a valorização e o
aproveitamento da cultura local, assim como a autovalorização pessoal e
profissional; e a exigência de melhores condições de trabalho.
No caminho de valorização da cultura local, vem sendo desenvolvida a
experiência de elaboração de textos, estórias e adivinhações populares por
professores e crianças no município de Bezerros, que passam a ser
utilizados na escola de 1.° grau.
No desenvolvimento das jornadas, 257 professores leigos de seis
municípios (São Caetano, Bezerros, Pesqueira, Gravatá, Feira Nova e
Passira) opinaram sobre os principais problemas que afetam o
desenvolvimento curricular rural. São eles, por ordem de prioridade:
1. baixo salário, ao lado de más condições de trabalho. Num dos
municípios, a professora deve fazer a faxina, merenda e outras atividades,
sem qualquer acréscimo salarial. Um levantamento realizado pela equipe do
GER em setembro de 1981, sobre os salários mensais dos professores nos
municípios de Bezerros e São Caetano, conclui: "Num dos municípios,
segundo informaçôes do OME (Órgão Municipal de Educação), os salários
mensais, em cruzeiros, de setembro são (segundo algumas categorizações) :
PRODERU, 6.551,00; PROLEIGO, 1.581,00; LEIGO, 1.181,00; LOGOS II,
1.500,00 (correspondente a uma bolsa)" (descrição de educação e currículo:
Relatório n. 1);
2. trabalho com aula multisseriada - professores de cinco desses municípios
apresentam este problema como um dos principais. Levantam
fundamentalmente as dificuldades metodológicas para trabalhar com
crianças de ïdades e níveis de instrução diversas;
3. dificuldades para o planejamento curricular: especialmente; para classes
multisseriadas;
4. falta de orientação e acompanhamento: queixam-se da ausência de apoio
pedagógico por parte da supervisão desenvolvida pelo município. Seguem-
se: carência de material didático; problemas relacionados com a merenda
escolar; pouca participação dos pais e comunidades e outros problemas
pouco citados como falta de interesse dos alunos; problemas disciplinares;
distância entre a casa da professora e a escola; problemas para se transmitir
aos alunos o que se quer.
É notável como os professores leigos vão ao âmago da questão: dos
problemas contidos nesta lista, em si bastante educativa, o principal
obstáculo ao desenvolvimento do currículo é o do salário; o seguinte diz
respeito simultaneamente a uma questão pedagógica (metodologia para aula
multisseriada) e ao trabalho; a dificuldade de planejamento liga-se,
igualmente, a questões pedagógicas e à parcialização do trabalho docente
que segmenta as atividades de planejamento e execução; a carência de
material didático e a merenda escolar "relacionada diretamente à freqüência
escolar" apontam para o baixo nível de renda e as condições sociais da
população camponesa.
Outra experiência vínculada ao desenvolvimento participativo do
currículo, que os professores consideram importante, é a troca de cartas
entre crianças das escolas do meio rural e as das escolas urbanas, com o
objetivo de desenvolver a criatividade e expressâo, e valorizar a cultura local.
As càrtas são trocadas nas jornadas de professores, e o professor distribui
as cartas urbanas com os alunos e trabalha com vocabulário e redação,
leitura, "coisas novas" etc.
Ao lado dessas experiências que introduzem elementos do saber e
cultura locais, e da participação ativa dos professores, estas atividades se
deparam com as dificuldades já apontadas pelos próprios professores, e com
as tensões inerentes a uma proposta que pretende a participação das
comunidades rurais, mas vão ao campo com objetivos pré-definidos como os
de PDRIs. Assim, em Bezerros e São Caetano, as jornadas com as
comunidades chegaram a impasses na medida em que os agricultores não
encontraram eco para suas demandas fundamentais, que são a terra e a
água. De um modo geral, este limite se apresenta na proposta como um
todo, e tem suas raízes na própria concepção de desenvolvimento rural, que
ataca uma série de demandas secundárias, mas é incapaz de apresentar
saídas para os problemas estruturais levantados, com muita clareza, pelos
camponeses.
Quando a questão da terra emerge, o sistema é impotente para traduzir
no currículo este componente fundamental da cultura local. Desse modo, os
passos que se dão na valorização da cultura das populações rurais, ao lado
do registro e levantamento de aspectos importantes, como as estórias, as
adivinhações, o saber sobre a saúde, a percepção camponesa sobre a
natureza etc., não chegam á própria essência da cultura camponesa, que se
dá nas relações com a terra e o trabalho, que repercutem tenuemente sobre
o currículo escolar.
Os professores e técnicos envolvidos na experiência currioular apontam
ainda, como resultados importantes, as mudanças positivas ocorridas nas
suas relações com a comunidade, a melhoria no processo ensino-
aprendizagem através do uso de materiais didáticos e complementares feitos
pelos próprios professores e estudantes, e ainda a incorporação .de
conteúdos locais como uma prática regular da escola.
Até setembro de 1982, foram realizadas quarenta e quatro jornadas de
professores e dez de comunidade em vinte setores de onze municípios da
área atingida pelo SIER. A experiência atingiu a 5 CERUs, 205 escolas e 420
professores.
Alguns dos principais saldos positivos, além dos já apontados no correr
deste texto, são a valorização progressiva dos professores pelas
comunidades; o melhor conhecimento da realidade; desenvolvimento da
capacidade de expressão e cooperação; desenvolvimento da consciência
sobre a necessidade de melhoria das condições de trabalho por parte dos
professores rurais.
Pouco a pouco, rompe-se o isolamento entre os professores que atuam
individualmente, na maioria dos casos, em escolinhas de apenas uma sala;
as reuniões tornam-se mais freqüentes nos setores, o apoio pedagógico
cooperativo torna-se mais sistemático, a educação passa a ser repensada
pelos seus próprios executores.
Uma avaliaçâo feita por 59 proféssores rurais de Bezerros e São
Caetano no primeiro ano da experiência, em resposta a questionário aplicado
pelos técnicos da SE, apresenta, entre as respostas de maior freqüência, as
seguintes:
Opinião sobre a experiência curricular: "Melhorou os meus co-
nhecimentos"; "Aprendi planejar com mais segurança dialogando com os
colegas"; "Tenho mais facilidade para trabalhar com os alunos"; "Aprendi
fazer reuniôes com os pais"; "Melhorei o meu nível de ensino".
Quanto aos reflexos na qualidade das aulas: "Trabalho em equipe uniu
mais os alunos", "Melhorou a freqüência dos alunos"; "Trabalho com coisa da
natureza"; "Cada aluno pode expor suas experiências".
Quanto às relações com os pais e comunidade: "Estou mais desinibida e
prática, sem medo"; "Mais ligados através de comemorações e festinhas";
"Aprendi a conversar e trocar idéias"; "Pais mais satisfeitos com a escola";
"Levando a comunidade a tomar parte da escola".
A produção de materiais instrucionais com a participação da escola rural
A elaboração de material instrucional para as primeiras séries do l.° grau
do meio rural surgiu como uma tentativa de atenuar uma série de pmblemas
que se apresentavam de maneira particularmente grave, como os elevados
índices de evasão e repetência na l.º série; baixo índice de freqüência; falta
ou inadequação do material; despreparo dos professores.
Busca-se produzir um material "cuja característica seja a adequaçâo às
peculiaridades e necessidades do meio rural, considerando sobretudo o
universo cultural e vocabular de sua populaçâo".
A partir daí, a equipe responsável pela elaboração do material definiu a
região do Agreste setentrional para o desenvolvimento da experiéncia,
levando em conta, basicamente, dois critérios; ser região trabalhada pelo
SIER, e ser área atendida pelo Programa Nacional de Ações Sócio-
Educativas e Culturais para o meio rural PRONASEC.
Em seguida, foi realizado um levantamento das "características,
costumes, problemas, interesses, crenças da regiâo e de sua população", e
uma pesquisa de campo com entrevistas a professores sobre suas
experiências pedagógicas, dificuldades encontradas na alfabetização,
utilização do material didático, assim como sugestões para a elaboração do
novo material. Com os alunos, usou-se um roteiro de perguntas que foi
trabalhado em atividades conduzidas por dois mamulengos: excursões
imaginárias, dramatização, mímicas etc., pesquisando o universó vocabular,
as aspirações, lazer, trabalho, entre outros aspectos. A pesquisa foi realizada
em 36 escolas, alcançando 49 professores e 1.242 alunos da área de
influência dos CERUs de Bezerros, Gravatá, São Caetano e Limoeiro.
O passo seguinte foi a seleção das palavras a serem usadas como
palavras-chave da cartilha Terra da gente, cujos critérios básicos foram: a
incidência, a abrangência, os interesses e as experiências dos alunos com
objetos que girassem em torno das palavras pesquisadas e a graduação,
obedecendo a uma escala de dificuldades dos padrôes silábicos.
A composição dos textos e sua ilustração com cenas do cotidiano rural foram
os passos seguintes.
O rnaterial, em seu conjunto é composto por 24 cartazes com ilustração;
24 fichas com as palavras-chave; 55 fichas de sílabas; e manual para o
professor, cartilha e 2 cadernos de exercícios para o aluno.
Esse material foi distribuído em maior escala para os municípios da área do
PDRI e, como experiência, numa pequena amostragem de escolas em todos
os municípios do Estado. Em virtude de atrasos na impressão, o material
começou a ser utilizado somente no ano de 1982, tendo sido distribuído para
23,6% dos alunos da 1º série da microrregião do Agreste setentrional e
34,3% dos alunos da microrregião do Vale do Ipojuca.
O material vem sendo acompanhado sistematicamente através de
observação direta em salas de aula, onde se trabalha com ele, seguida de
discussões com os professores de 13 escolas rurais da região em classes
multisseriadas e unisseriadas, cuja responsabilidade é de professores
treinados e não-treinados na utilização do material. Segundo a equipe do
GER, ainda não existem evidêmcias a respeito dos resultados obtidos, em
funçâo de o processo de avaliação ainda não estar concluído na maioria das
classes que recebem Terra da gente e em função do pouco tempo de
experimentação. De todo modo, percebe-se que a cartilha foi bem recebida
pela maioria dos alunos, pais e professores do meio rural onde foi distribuída,
especialmente por se tratar de material adequado ao meio.
Os professores não têm regìstrado dificuldades significativas na utilização
do material. Considerando-se apenas a mudança de material, tem sido
observado em classes de 1º série que utilizam Terra da gente bom
desenvolvimento dos alunos na aprendizagem da leitura e da escrita; porém,
ao nível de Estado, dizer que houve uma melhoria na alfabetização é ainda
prematuro.
Atualmente está em elaboração o material da 2.º série, visando à
consolidação do processo de alfabetização. Entretanto, apenas foi possível
elaborar o projeto vinculado ao programa EDURURAL, que atende a
microrregião do Agreste meridional, em outra área, portanto.
Com o objetivo de pesquisar o universo vocabular, retomou-se o processo
de levantamento com alunos e professores, agora nos municípios de
Condado e Petrolina, e um "Seminário de Educação Rural" com professores
dos municípios do Agreste meridional. O material está em fase final de
elaboração depois de testagem, numa amostragem de alunos e professores
da regiâo.
As principais linhas de ação da educação não-formal, no âmbito do SIER,
constituíram-se em: pesquisa participativa, capacitação para o trabalho e
ações comunitárias.
A pesquisa participativa, financiada pelo POLONORDESTE (PDRI Agreste
setentrional), foi iniciada nos municípios de São Caetano - onde se
desenvolveu melhor -, Pesqueira e Bezerros.
Seus objetivos são o de realizar um diagnóstico, junto com as comunidades
rurais, a fim de que "a partir da identificação de situações-problema possam
escolher e/ou sugerir linhas de ação para as atividades das distintas
Unidades Operativas do Sistema"; discutir com a comunidade as alternativas
para a solução desses problemas, instrumentando grupos comunitários para
que possam "progressivamente planejar, executar, acompanhar e avaliar os
projetos produtivos e/ou educativos".
Nos trabalhos desenvolvidos na primeira experiência de pesquisa
participativa, participaram, além dos diversos órgãos da SE, o Banco do
Brasil e a EMATER.
Durante as visitas aos municípios, foram colhidas as primeiras informações e
escolhidos os sítios: Manoel da Hora, Brejo da Lagoa e Vila de Tapiraim, no
município de São Caetano. Foram entrevistados o prefeito, o padre, os
professores, os comerciantes, os extensionistas da EMATER, o agente do
Banco do Brasil, entre outros.
Equipes permanentes ficaram responsáveis por cada um dos povoados.
Com as informações coletadas, foram elaboradas fichas de descobertas com
os seguintes temas: comercializaçâo, produção, higiene e saúde, educação,
verão, inverno e migração.
A comunidade foi convidada a assistir aos círculos de pesquisa (reuniões
com pequenos agricultores, onde os códigos são geralmente apresentados
em cartazes, contendo elementos que retratam a realidade local, visando
despertar as discussões), cujos principais problemas são listados no quadro
seguinte:

PRINCIPAIS PROBLEMAS VERIFICADOS NOS CÍRCULOS DE PESQUISA

TAIPIRAIM
PRODUÇÃO:
- falta de terra
- ausência de armazenamento de água
- empréstimo bancário
- falta de mão-de-obra ausência de tecnologia agrícola
COMERCIALIZAÇÃO
- noção de lucro
- dependência do ribeirista
- não há condições de armazenamento
- não determina preço de compra e venda da safra
- pagamento empréstimo bancário
- subsistência

HIGIENE E SAÚDE

- alto índice de mortalidade infantil


- assistência médica deficiente
- falta de fossas
- higiene precária
- falta de tratamento de água

EDUCAÇÃO
- calendário inadequado à zona rural
- ausência de escolaridade para adultos
- material escolar precário
- desinteresse de alguns pais
- necessidade de trabalho
- escola não atende às necessidades

BREJO DE LAGOA
PRODUÇÃO
- migração - jovens não recebem pagamento em família
- plantio desordenado provocado por pequenas áreas de terra
- ausência de mão-de-obra
- ausência de mão-de-obra
- ausência de tecnologia agrícola
- escassez da terra

COMERCIALIZAÇÃO
- não há condições de armazenamento
- falta de transporte - dependëncia do ribeirista
- não determina preços de compra e venda alto aluguel da casa
de farinha (20% produção)
- falta de agrupamento (estão conscientes;
HIGIENE E SAÙDE
- não houve este circulo
EDUCAÇÃO
- calendário inadequado á zona rural
- ausência da escola para adultos
- valorização da escola antiga
- não valorizam a merenda
MANUAL DA HORA
- falta de terra
- fone
- expansão da pecuária
- falta de armazenamento de água
- tecnólogia - uso de implementos agricolas
- distribuição inadequada de terra pelo INCRA
- alto preço do arrendamento
COMERCIALIZAÇÃO
- dependência do ribeirista e armazém
- não há condições de armazenamento neceasidade de venda na safra
- não-valorização da agricultura por outros
- sentem-se beneficiados com o crédito
HIGIENE E SAÚDE
- não há condições de trabalho com a fita
EDUCAÇÃO
- não há condições de trabalho com a fita
A seguir relacionam os príncipais problemas e os grupos comunitários os
priorizam e discutem as alternativas para a solução. Os principais
problemas indicados foram: falta de terra; alimentação; assistência
médica.

Dada a impossibilidade de solução a curto prazo do principal problema, falta


de terra, houve muitos participantes que abandonaram os grupos. Outros
permaneceram e fizeram campanhas para aquisição de farmácia comunitária
e construção de privadas.
Como alternativas de soluções levantadas pelas comunidades investigadas,
estão-se fazendo contatos com órgãos envolvidos diretamente na zona rural
como EMATER, FUSAM, MOBRAL, Sindicato dos Trabalhadores Rurais,
INCRA, onde, através de reuniões e contatos diretos órgãos/comunidade,
estabelecem-se linhas de ação que proporcionem ao camponês a melhoria
do nível de vida.

Capacitação para o trabalho

A experiência levada adíante foram os cursos Alfa numérica/Tecnologia


agrícola, primeiras noções de alfabetização e quantificação ligados à
problemática agrícola, cujos objetivos são: contribuir para a melhoria do
sistema produtivo e de comercialização dos pequenos produtores rurais;
elevar os conhecimentos básicos em comunicação e matemática; favorecer a
organizaçâo dos produtores através do desenvolvimento de uma consciência
de cooperação no processo de produção.
A metodologia se explicita da seguinte maneira:
Os conteúdos de comunicação e matemática não são trabalhados ïsola-
damente da temática educativa. São inter-relacionados, um instrumen-
talizando 0 outro. Dessa forma é que ao trabalhador, por exemplo, o combate
às pragas, o cálculo do custo e das dosagens dos defensivos facilita a
compreensão do tema, assim como o tema determina no educando a
necessidade de aprender matemática.
Os princípios que conduzem esta prática educativa escoram-se ainda na
valorização do homem, do trabalho e da cultura local, tendo a participação
como pedra angular do processo.
Para assegurar ao lavrador um programa educativo tão difuso, é necessário
operacionalmente recorrer a outro princípio, o da integraçâo interinstitucional.
A integração, na prática, tem sido realizada com facilidade, especialmente
porque essas açôes foram financiadas pelo POLONORDESTE que, no
conjunto de suas diretrizes para planejamento, determina a integração das
instituições.
Aproveitando este espaço é que a EMATER, DPA, cooperativas, bancos,
FUSAM, prefeituras etc. têm-se integrado na execução dos cursos Alfa
numérica/Tecnologia agrícola.
São três os momentos principais dos cursos: em primeiro lugar se realiza o
estudo da realidade, procurando captar as necessidades e características
locais, com os futuros participantes, com visita à área para observações e
convocação da população para encontro, onde se obtêm informações que
são sistematizadas levando em conta as preocupações, os fatos
significativos da sua realidade e a interpretação desses fatores pela
população.
Os resultados dos encontros são sistematizados e as diversas instituições
que lidam com os principais problemas sâo convidadas a participar do
processo.
No desenvolvimento dos cursos adota-se a perspectiva da problematização,
com organização semelhante aos processos utilizados nos círculos de
cultura. O curso é realizado em aproximadamente 16 encontros de duas a
três horas, sendo reservada uma parte do horário para o técnico debater o
tema e a parte seguinte para o professor trabalhar a comunicação e a
matemática a ele relacionadas.
Entre os resultados obtidos pelos cursos Alfa numérica/Tecnolnaia agrícula,
os técnicos destacam:
Além da uso inadequado de técnicas agrícolas, en Careduto e prejudicando
a produtivídade, outros resultados são . O desenvolvimento da consciência
coletiva da problemáinício de um processo de organização dos produtores, a
fa;xpressão e o envolvimento dos técnicos com os problemas concretos das
comunidades rurais. Isto sem falar na experiência de as instituições que
baixa o custo/aluno e enriquece qualitativamente a prática educativa.
Com a realização destes cursos e o prosseguimento da pesquisa
praticamente a equipe considera que se evidenciaram algumas
"necessidades de treinamento" entre as quais se destacaram indústrias
agrícolas, enfermagem, corte e costura e artesanato, que constituem cursos
intensivos visando à aquisição de habilidades técnicas e destreza manual.
Nas palavras do documento n. 2, citado, à p 25:
A realização dos treinamentos em locais onde já se procedia a uma ex-
periência de participação da comunidade possibilitou a integração com
outras atividades.
Foi assim que, no sítio Coqueiros, as peças costuradas foram destinadas às
crianças que, antes despidas, puderam beneficiar-se dos produtos do
treinamento.
Os treinamentos nestas condições obtiveram uma funçâo social muito
relevante nas comunidades rurais carentes. Outro aspecto observado foi o
aproveitamento dos produtos locais transformados em doces, bolos etc. nos
treinamentos de indústrias caseiras.
Vale a pena transcrever, ainda, um pequeno projeto que integra as atividades
de educaçâo não-formal e que revela a mesma concepção do último trecho e
é expressivo dos limites educativos de ações com cónteúdo semelhante:
Pequeno projeto desenvolvido pelo CERU Antônio Correia de Oliveira Andra-
de - município de Condado.
Programa nacional de ações sócio-educativas e culturais para o meio rural
Projeto: práticas domésticas - costura
Modalidade de ensino: educação não-formal
1 . IDENTIFICAÇÃO:
CERU Antônio Correia de Oliveira
Andrade
MUNICIPIO: Condado
LOCALIDADE: Coqueiros
2. JUSTIFICATIVA:
- Caracterização da comunidade:
Após visitas e reuniões nos Coqueiros, sentimos que esta comunidade é
das mais carentes. Nota-se que no aspecto de saúde existe uma grande
precariedade, verificando-se os mais variados e aguçados casos de doença.
As famílias geralmente possuem de 1 a 8 filhos que vivem com aparência de
fome e com visível nudez.
As casas são as mais rudes possíveis. Muitas delas cobertas até de capim, e
o piso é predominantemente de chão batido, o que denota a situação de
miserabilidade que reina no local.
Principais problemas:
• doenças (de olhos, verminoses, gripes)
• falta de higiene
• nudez
• fome
- Atividades selecionadas:
• orientação sobre a importância da vestimenta como
proteção para a criança;
• corte e costura de calçõezinhos e blusinhas para as crianças.
3. OBJETIVOS E METAS:
3.1. Objetivo: meihorar o nível do desempenho
das mães da comunidade rural do Sítio
Coqueiros;
3.2. Meta: realizar curso de corte e costura para
mães.
3.3. O que esperamos atingir:
- Esperamos, com o seguinte projeto, que:
• as mães tornem-se conscientes da necessidade e importância de
conservar a criança sempre vestida;
• as mães possam aprender como cortar e costurar calções e
blusinhas para as crianças.
4. MATERIAIS:
Fazenda - 20 metros
Elástico - 40 metros
Botões - 1 grosa
Lnha - 20 retroses

As ações comunitárias
Esta linha de ação contém a integração escola-comunidade, pro curando
atingir especificamente os CERUs que não fazem parte do:SIER; a
mobilização comunitária que visa à participação das comunidades rurais no
processo educativo; as hortas comunitárias, sob
orientação dos técnicos do CERU, cuja comercialização dos produ tos "é
feita na feira local e após o pagamento das despesas e compra das
sementes, o saldo é dividido entre eles".
Além dessas atividades, estão sendo vivenciadas experiências de Clube
de Jovens em Bezerros e Clube de Mães em Pesqueira.
` Os cursos realizados para os camponeses, na região do PDRI, constam
da seguinte relação:
CURSOS REALIZADOS PARA PEQUENOS AGRICULTORES

REGIÃO
Agreste setentrional

LOCAL
Trapiá
CERU: Bezerros
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Pintura
Participantes: Mães e jovens
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Serra Negra
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Técnica agrícola
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Coadjuntor
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Técnica agrícola
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Bananeirinha
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Corte e costura
Participantes: Mães e jovens da comunidade rural
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Sítio dos Remédios


Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Técnica agrícola
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Sítio Trapiá
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Alfa numérica
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Serra Negra
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Alfa numérica
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Coadjuntor
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Alfa numérica
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Camaratuba
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Alfa numérica
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Betânia
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Alfa numérica
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Riacho das Almas


Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Alfa numérica
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Cajazeiras
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Alfa numérica
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - OME COOPERATIVA - SINDICATO
BANCO DO BRASIL - DPA - FUSAM - LBA etc

Brejo de Lagoa
CERU: São Caetano
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Primeiros socorros
Participantes: Mães e jovens
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - FUSAM - PREFEITURA

Brejo de Lagoa
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Indústrias Caseiras
Participantes: Mães e jovens
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - FUSAM - PREFEITURA

Taipiraim
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Educação sanitária
Participantes: Mães e jovens
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - FUSAM - PREFEITURA

Manoel da Hora
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Alfa numérica
Participantes: Pequenos agricultura
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - FUSAM - PREFEITURA

Brejo de Lagoa:
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Corte de costura
Participantes: Mães e jovens
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - FUSAM - PREFEITURA

Pabulagem:
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Corte e costura
Participantes: Mães e jovens
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - FUSAM - PREFEITURA

Tapiraim:
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Corte e costura
Participantes: Mães e jovens
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - FUSAM - PREFEITURA

Manoel da Hora
Nº de Cursos: 1
Tipo de Curso: Tecnologia agrícola
Participantes: Pequenos agricultores
Órgãos Colaboradores: EMATER/PE - FUSAM - PREFEITURA
FONTE: Educação não-formal e ações comunitárias, documento n. 2, p. 41.
Conversas com professores de Bezerros e São Caetano

Depois de atravessar os canaviais nas proximidades de Recife, de sentir


frio na subida da serra em Gravatá, chegamos à região de Bezerros que
parece uma área de transição para o Sertão e a aproximação da realidade
da seca. É possível ver, em Bezerros, plantações de palma para o gado e,
nos momentos de agravamento da seca e da fome dos pequenos lavradores
e trabalhadores rurais no Nor deste, também para alimentação humana.
As placas na estrada, o adesivo do jipe do CERU que serve às visitas
aos povoados e sítios indicam que estamos numa região onde atua o
POLONORDESTE.
De Bezerros, fomos ao sítio Jurubeba, a mais ou menos 12 quilômetros,
conhecer uma Escola de Base, recém-construída pelo PDRI. O prédio, com
telhado de amianto, combogós ao invés de janelas, revela uma involução em
relação às antigas escolas rurais que ainda se podem encontrar, na região,
com boa ventilação e material mais adequado ao clima.
A escolinha é rodeada por um terreno gramado, cercado, onde, se
acham ainda um oratório, a cisterna, um pé de "sempre-lustrosa" e os
sanitários. Há apenas uma sala, o piso é de cimento-nata, não há instalações
elétricas, na parede o quadro-negro e um cartaz (crianças brincam de roda
em recorte de revista). Os alunos são de 1ª e 2ª séries. Estes formam um
grupinho menor que, em círculo, trabalham com a cartilha Terra da gente.
Ambas as turmas a utilizam, a alfabetização se completa no segundo ano de
estudo. Cursam aqui essas duas séries e depois vão para a Escola
Intermediária de Sapui , carana, a cerca de 6km. A professora, muito jovem,
trabalha aí desde agosto de 1982 e tem dificuldades em lidar com as duas
turmas ao mesmo tempo. Ela mora em Bezerros. Todos os dias um
transporte da prefeitura traz os professores a Jurubeba, Sapucarana e outros
sítios próximos. Cursou magistério em escola particular de Bezerros. Ganha
Cr$28.500 mensais, parte da prefeitura com suplementação do Estado. Na
escola, comemoram-se datas cívicas, são feitas festinhas e reuniões de pais
para ver a situação dos alunos, dar avisos, mas não é com muita
freqüência. Os pais nãa vêm muito. A família trabalha muito no campo. São
agricultores e cultivam principalmente milho, feijão, mandioca. Há fazendas
grandes, de gado, na região. Os filhos dos fazendeiros não freqüentam
aquela escola. Crianças se afastam durante o ano, a maioria por motivo de
trabalho ou doença.
D. Josina Maria de Lima é uma rija nordestina com fortes sulcos no
rosto, abertos pelo sol e pelo trabalho. É a zeladora, recebendo Cr$9.600
mensais, depois da política nova. Não dá para trabalhar fora de jurubeba.
Antes fazia costura para o pessoal dali, mesmo, onde se planta milho e feijão
para a família, e não dá. Estão trabalhando e perdendo. Cinco anos de seca.
Os meninos são todos filhos desse pessoal mesmo. O problema maior na
escola é a falta de água. Desde janeiro não há água. O caminhão traz de
Bezerros. Paga, do seu salário, Cr$300 para um menino trazer uma lata
d'água para a escola. É muito longe. Para a limpeza tira do açude. É água
salgada, é distante, traz com dificuldade. A cisterna está seca.
Chegamos ao distrito de Sapucarana, por volta das 10 horas da manhã,
sol forte. A escola, construção de vários anos, não tem janelas. A porta está
fechada. Mas há aula. D. Elvira Pereira da Silva é a professora. Nascida em
Taquaratinga do Norte, veio para Sapu carana em 1953. Há 21 anos na
profissão,
fez o PROLEIGO e depois o ginásio, em Bezerros. Ganha Cr$9.600. É a
alfabetizadora da preferida. Quase todos os que
sabem ler, das últimas gerações, em , Sapucarana, a tiveram
como primeira professora. São quatro horas de aulas diárias para 36 alunos
da l.a série. Hoje, sexta-feira, onze onde não compareceram, ajudam seus
pais a preparar o que vão levar amanhã para a feira de Caruaru. Os pais são
agricultores e plantam feijão, milho, mandioca, tomate, capim. Só dá para a
família, pois não têm terra. O principal problema da escola é a
água, que a zela dora traz de longe. A escola precisa, também,
de um terraço para as crianças. Merendam dentro da sala mesmo.
Hoje não houve me renda, que é feita na Escola Intermediária.
Os gêneros ainda não aqui vieram de Bezerros.
Nas paredes um crucifixo, bandeira do Brasil, dois quadros de giz,
cartazes. Vários sobre higiene e estes:

- "Aniversariantes do mês";
- "Registro do tempo";
- "Os alunos da professora Elvira Pereira:
- chegam à hora certa
- pedem licença para falar
- não conversam em aula
- respeitam os colegas
- não jogam papel no chão";
- "Nossos horários mais importantes
- começa a aula 7h30min
- merenda lOh
- saída 1Oh30min".

A Escola Intermediária de Sapucarana é de construção recente, em


meio à horta, jardim bem-cuidado e uma área atrás que dá para um
campinho de futebol. Num dos pontos, o forno para cozer o barro. Muros
baixos, salas agradáveis, amplos basculantes, piso roxo-terra. Cinco salas
de aula, uma de práticas (cerâmica, práticas agrícolas, práticas integradas do
lar). As turmas vão da 1.3 à 7 á série. As práticas, à exceção de cerâmica,
que é trabalhada desde a l.a série, são para os alunos das três últimas
séries. Na Escola Integrada há merenda regularmente, hoje foi uma exceção.
Nas demais escolas, os alunos levam a merenda de casa. A da professora
Elvira recebe a merenda daqui.
São 221 alunos nos dois turnos, distribuídos no primário e ginásio.
Utiliza-se a cartilha Terra da gente. No ginásio, o professor de cada área
escolhe o material, orientado pelo Grupo de Estudos do CERU. Todos os
professores da Escola Integrada estão começando este ano. São habilitados,
apenas três nâo têm o magistério.
A diretora recebe o salário mínimo regional, pago pela prefeitura. Os que
ensinam no primário, não-formados, recebem de 9 a 14 mil, enquanto os do
gïnásio fazem parte do PRODERU e recebem o salário mínimo. Na escola
são desenvolvidas regularmente as jornadas de professores, há reuniões de
pais e mestres, cerca de três a quatro por ano. Este ano ainda não houve. É
difícil trazer os pais para a escola. Só vêm mesmo quando a situação do
aluno está difícil. Discutem-se os problemas do aluno, comportamento,
evasão. Houve evasão relativamente alta este ano. Por causa do trabalho,
distância ou quando percebem que não estão rendendo. Chegam tarde por
causa do trabalho em casa. Pais sempre reclamando dificuldades. Não
gostam de práticas agrícolas: "Ele já faz isso em casa. Já sabe de sobra. A
escola é pra outra coisa. Se é pra cuidar de jardim e horta, cuida em casa
mesmo". Houve tentativa de vender o excesso de produção da horta na feira,
mas o pessoal não compra. Não têm hábito de comer verduras. Alunos com
dificuldades para adquirir o material escolar. A farda é para desfile, mas não
se barra quem não tem. Exigência, só no 7 de Setembro. O material
existente é de verba do POLONORDESTE, via Secretaria da Educação. Se
não fosse o POLONORDESTE não se tinha condições de realizar o trabalho.
Em Sapucarana houve a experiência da pesquisa participativa: visita a
todas as casas e a mais dois sítios. Pessoas do grupo de estudos e da
equipe do GER passaram quinze dias aqui. Levantamenta dos problemas
principais: estradas, merenda escolar, posto de saúde, visita semanal do
médíco, ônibus. Problema gritante é o da terra. É o principal nas reuniões de
comunidade.
Severino Ferreira de Morais é "o homem do barro" na Escola Integrada
de Sapucarana. Ensina cerâmica no pátio, porque não tem mesa. Os objetos
são vendidos na feira para ajudar nas despesas da escola. Há dois anos,
Severino trabalha na escola de manhã e cuida da roça à tarde. Aqui tem
barro bom! Agricultor planta café e pimenta-do-reino. O resto é para o gasto.
O café está valendo. Dificuldade maior por falta de terra para trabalhar. Na
roça trabalha de meia plantando tomate. Antigamente tinha boa feira, hoje
não sai um quinto. Compram a terra, plantam capim-pangola. A criação de
gado está crescendo e tomando a terra. Derrubam as matas e até aqui já
está tendo problema.
Os Centros de Educação Rural de Bezerros e São Caetano localizam-se
nas zonas urbanas desses municípios. Cerca de 20 a 30% dos alunos são
do meio rural. São escolas bem-construídas, de tijola aparente, com uma
área, talvez, equivalente a um campo de futebol. Hortas, quadra de esportes,
uma aparência das antigas Escolas Polivalentes do PREMEM. Salas de aula
amplas, janelas de madeira, boa ventilação, cantinas bem-equipadas.
Em Bezerros, os professores destacam como ações importantes:
- a experiência produtiva que vem se desenvolvendo no Agreste meridional
sob a direção do CERU de Bezerros. A EMATER participa, nas próprias
escolas, auxiliando a criação de aves e a implantação de hortas, cujos
produtos são vendidos e a renda obtida é revertida para a compra de
material escolar. A experiência é ainda incipiente e ocorre nas próprias
Escolas de Base;
- o curso de treinamento em serviço, para professores leigos, com 240
horas anuais, em cada ano uma área. O curso se desenvolve desde 1980. Já
foram vistos os programas de comunicação e expressão, matemática,
estudos sociais e atualmente está em andamento o de ciências. Os cursistas
recebem uma complementação salarial pelo projeto SOMAR (Soerguimento
do Magistério Rural) e bolsa de Cr$500 por dia de atividade. Um dia por
semana reúnem-se em tempointegral para o curso. O material é produzido
no CERU pelo Grupo de Estudos, para ser reproduzido
em sala de aula para os alunos;
* o curso Alfa numérica/Tecnologia agrícola
(em bonito e Sairé), que vem tendo uma freqüência de 30/35 agricultores e
tem como instrutores pessoas da comunidade e professores.
No CERU de Bezerros, funcionam cursos supletivos de 1 ° grau via rádio,
educação integrada (MOBRAL para os maiores de 14 anos), pré-escolar,
treinamento de professores, curso de cooperativismo. Há dificuldades para o
uso dos laboratórios de química e biologia (2ºgrau) e, por isso, suas
instalaçôes são usadas pelo laboratório didático do CERU e pela oficina de
artesanato do PRODEARTE. Onde funcionaria o aviário, instalou-se o Logos
II, demanda do prefeito.
Em convênio com a LBA funciona curso de corte e costura.
O CERU tem quatro turnos de atividades: das 7 às 11, das 11 às
15, das 15 às 19 e das 19 às 23 horas. Com muito esforço tem-se diminuído
significativamente a repetência.
Em São Caetano, os professores do Grupo de Estudos destacaram como
principais atividades o treinamento de professores leigos, os cursos para os
pequenos agricultores financiados pelo POLONORDESTE (anteriormente
também pelo PRONASEC).
No CERU, há um curso de habilitaçâo básica em agropecuária com
profissionalização a nível de 2.° grau. A maioria das pessoasque o
freqüentam é da cidade. Funcionando há cinco anos, já duas turmas foram
tituladas, mas não conseguem emprego na habilitação.
Os principais problemas levantados pela comunidade são a falta de terra
e a questão da saúde. Há problemas na região, nas relaçôes dos
camponeses com o INCRA que nâo permite que os parceleiros das suas
terras cedam parte da área não-utilizada para que seja cultivada pelos
trabalhadores sem terra.
Também em São Caetano, os agricultores se dedicam à cultura familiar de
subsistência. Nos brejos, cultivam-se frutas. Nos últimos anos, implantaram-
se na região grandes fazendas de criação de gado; falta terra para o
pequeno agricultor.
A Escola Intermediária (Tapiraim) somente agora assume as funções
propostas na concepção do SIER. O Grupo de Estudos
trabalhava diretamente com as Escolas de Base e isto levou a certas
distorções. No conjunto do munïcípio, a influência do SIER alcança, ainda,
poucas escolas, mas a experiência está se ampliando rapidamente através
das jornadas de professores, das quais participam todos os professores
rurais.
Este ano ainda não chegou a merenda escolar. O material didático começa
a ser distribuído ao professor, mas nem sempre é o, de que ele necessita.

Tensões e possibilidades
1. O pouco tempo de vida da proposta do SIER e as difíceis condições
sócio-econômicas e educativas da região são obstáculos para resultados
mais significativos, que só poderão emergir, sobretudo na educação escolar,
depois de um amadurecimento maior das práticas em andamento.
Dados recentes da região do Agreste setentrional reforçam a idéia de que as
relações econômicas e sociais aí vigentes limitam o alcance das propostas
inovadoras na educação básica.
Em Bezerros e São Caetano, o levantamento de 1982 indica que a exclusão
dos estudantes das escolas rurais é um dado expressivo: cursavam a 2.º
série 25,3 % do número de estudantes que cursava a 1º em Bezerros e
41,9% em São Caetano. A relaçâo entre o número de alunos da 4º série
sobre o número de alunos de 1º série nas duas cidades aproxima-se dos 9%,
repetindo os mesmos índices dos últimos anos (SEE-PE, PSEd, 1982).
Estas evidências mostram que a exclusão dos camponeses e
trabalhadores rurais ocorre mesmo em regiões onde o sistema escolar é
alvo de modificações que visam atacar especificamente os tradicionais altos
índices de evasâo e repetência.
Os técnicos e professores rurais confirmam que seus esforços dão algum
resultado na diminuição da repetência escolar, mas não conseguern
controlar a exclusão dos estudantes já no primeiro ano de estudo.
2. As ações educativas no contexto dos programas de desenvolvimento
rural são afetadas por tensões inerentes à própria concepção de PDRI que
perpassam as ações do componente educação.
Essas tensões evidenciam-se com toda força nos limites à participação das
populações rurais nas instâncias de decisão dos programas. Ao Iado de
fazerem um convite à participação nos vários momentos de formulação dos
programas e nos momentos seguintes de execução e avaliação, a prática
tem demonstrado que a participação nos programas de desenvolvimento
rural é um universo de conflitos e ambigüidades, em que, ao lado da
possibilidade de determinadas iniciativas dos produtores rurais no âmbito dos
programas, encontram obstáculos intransponíveis quando são ultrapassados
certos limites. A essa experiência não está imune o SIER, pelo que dão a
perceber suas ações e sua história.
Os limites à possibilidade de uma efetiva participação nos PDRIs parecem
ser determinados pelas tensões que envolvem os próprios interesses dos
pequenos produtores de um lado, e das estratégias de desenvolvimento rural
de outro. Nem sempre os interesses são comuns, o que é mais evidente nos
conflitos que permeiam as questões relativas à terra. Aqui o técnico, o
educador do PDRI, fica numa "sinuca", pressionado por ambas as partes,
uma vez que os interesses, no caso da terra, são antagônicos.
A medida que os programas reconhecem os problemas estruturais, mas
desenvolvem uma estratégia incapaz de adotar os interesses das
populações diante deles, isso repercute na paralisia dos técnicos diante de
questões que os ultrapassam, cujas condições de solução não dependem
minimamente deles.
O pequeno projeto transcrito mais atrás é um exemplo da estreita margem de
possibilidade do componente em educar a comunidade para a solução de
seus problemas, quando estes são fundamentais.
Nesses programas, há uma divisão formal entre as áreas econômica e social
da qual educação, saúde, saneamento fazem parte. As açôes destes
componentes têm se aproximado de um cunho assistencialista muito
evidente que, por si, compromete a perspectiva de solução integrada dos
diversos aspectos da realidade econômica e social do campesinato da dos
trabalhadores rurais.
A tendência nos PDRIs tem sido a de dar maior atenção à educação nâo-
formal e às ações comunitárias, eludindo a questão da educação escolar das
crianças camponesas. Revestida de uma preocupação em aparência mais
abrangente em relação aos processos educacionais, a prática tem resultado
numa diluição do papel da escolarização para as camadas subalternas.
A escola tem sido tomada como um instrumento a mais no sentido de
aumentar a produtividade do pequeno agricultor segundo os objetivos dos
programas.
Por seu lado, as ações de educação não-formal são estritamente
relacionadas com a produtividade e esta é entendida como um meio
pulações rurais porque a lógica das ações do desenvolvimento rucente,
demonstra, entretanto, que a mèlhoria de vida não caminha no mesmo passo
que a produtividade. Além disso, os cursos patrocinados pelo PDRI pouco
têm a ver com o trabalho efetivo das populações rurais porque a lógica das
ações do desenvolvimento rural, guiada pela perspectiva de inserir a
pequena produção familiar de subsistência numa economia de escala,
despreza as técnicas seculares dos pequenos agricultores.
Por todas essas razões, o grande educador do PDRI é a carta de crédito, e a
principal organização é a dos pequenos produtores para a compra de adubos
e sementes e para a eventual venda do produto excedente. Por se tratar de
um desenvolvimento rural bem especial, em que importa fundamentalmente
romper os obstáculos à expansão do mercado, é que têm peso significativo,
mesmo nos programas do componente educação, os agentes financeiros e a
extensão rural.
Através desses mecanismos, procura-se educar o pequeno produtor para
que se adapte às relações "modernas", sem tocar nos problemas
fundamentais, mas tocando em alguns secundários.
Essas contradições perpassam as experiências do SIER, sendo significativo
o relato do afastamento dos pequenos agricultores da pesquisa participativa,
quando, depois dos primeiros momentos de esperança em relação à
satisfação de suas demandas, percebem que os problemas de terra e saúde
não podem ser resolvidos e a prioridade passa a ser dada a outros
problemas que, certamente, têm sua importância, mas, no contexto, não são
prioritários. Os limites, no caso, não estão no componente, nas suas ações
da educação nãó-formal, mas na própria estratégia do projeto de
desenvolvimento.
Sobretudo nas ações de extensão rural, o trabalhador do campo é visto
como um ser "carente", incapaz de trocar experiências decultivo. A ênfase
nos cursos de técnicas agrícolas está exatamente no papel ativo da difusão
de métodos supostamente mais adequados.
O saber técnico é tomado como absoluto e não se reflete sobre as causas
que têm impedido, historicamente, que determinadas técnicas de cultivo
sejam adotadas na agricultura - e não passam a ser adotadas apesar da
intervenção dos programas e de tantos anos de ação da extensão rural.
Outro ponto de tensão pode ser situado nas iniciativas de organização
comunitária. A experiência dos PDRIs tem mostrado que a tendência
assumida pelos projetos de desenvolvimento rural tem sido a de permitir
pouco espaço às organizações sindicais dos trabalhadores rurais, em troca
da organização de grupos que se aglutinam em torno de práticas
assistencialistas como os grupos tradicionais da LBA, da EMATER. A prática
tem demonstrado, ademais, que estes grupos nâo têm uma organicidade que
lhes permita representatividade na comunidade. Existem em função dos
benefícios dos programas e se aproximam mais de uma rede clientelista, à
exceção de algumas experiências onde a organização comunitária
preexistente, em geral, consegue dar maior peso aos interesses dos
pequenos produtores na implementação de alguns projetos específicos.
3. É interessante observar que os camponéses dão pouca importância às
"práticas agrícolas" que se tentam introduzir na escola. Esta postura,
observada no interior de Pernambuco, coincide exatamente com a de
pequenos agricultores de regiôes tão distantes como a Zona da Mata e a
região do médio Jequitinhonha em Minas Gerais, onde se desenvolve o
PDRI MG-II.
A expressão utilizada por um estudante do Agreste setentrional diz tudo. A
pergunta, formulada pela equipe do GER, sobre se gostaria de ser agricultor
quando crescesse, respondeu: "Não, a gente já é agricultor agora, já planta
mandioca, como vou querer ser uma coisa que já sou?" Valeria a pena
retomar daí a reflexão sobre a educaçao que pretende ensinar-lhes o que já
sabem, sem levar em conta este saber, e deixa de proporciona o que as
atividades de produtor não Ihes tem permitido. Este, parece, seria um bom
ponto de partida para re pensar a educação escolar do trabalhador.
,BIBLIOGRAFIA
BRASIL, Ministério da Educação e Cultura, Secretaria de Ensino de 1° e 2°
graus, Reunião técnica de estudos sobre educação nas áreas rurais do
Nordeste, João Pessoa, 1982, Brasília, 1983.
ESMANHOTO, Paulo, Avaliação educacional participativa, tópicos para
discussão, Recife, 1982 (mimeo.).
PERNAMBUCO a, Secretaria Estadual de Educação, Avaliáção da
experiência, curricular participativa pelos professores rurais dos municípios
de Bezerros e São Caetano no primeiro ano de experiência,
Recife, 1982 (mimeo.).
b, Os centros de educação rural, relatório n. 1, Recife, 1978.
c, Descrição de educação e currículo numa amostra de escolas rurais nos
municípios de Bezerros e São Caetano, relatório n.1, Recife, 1981 (mimeo. )
.
d, Uma descrição da educaçâo e o currículo numa amostra de escolas rurais
nos munícípios de Limoeiro, Feira Nova, Passira, Surubim, Gravatá, Glória
do Goitá, Chã Grande e Pesqueira, Recife, 1983 (mimeo.).
e, Elaboração de textos, estórias e adivinhações populares por professores e
crianças ao nível local, Recife, 1982 (mimeo.).
f, Implementação do Sistema Integrado de Educação Rural, SIER,Recife,
1981 (mimeo.).
g, As "jornadas de professores" como um instrumento para a mu dança
curricular, Recife, 1982 (mimeo.).
b,, Pesquisa de conteúdo curricular junto a professores rurais de Per-
nambuco, Recife, 1982.
1, Principais problemas que afetam o desenvolvimento curricular rural
segundo professores leigos, Recife, 1982 (mimeo.).
j, Um processo de desenvolvimento curricular participativo no Agreste
setentrional de Pernambuco, Recife, s.d.
k, Síntese de algumas ações desenvolvidas em 1982, Recife, 1982 (mimeo. )
.
1, Sistema Integrado de Educação Rural - SIER, a experiência de
Pernambuco, Recife, 1979.
m, A troca de correspondência entre alunos rurais e urbanos como uma
experiência de aprertdizagem, Recife, 1983 (mimeo.). PERNAMBUCO,
Secretaria Estadual de Educação, DIE, Estatísticas educacionais de
Pernambuco, Recife, 1981.
PERNAMBUCO, Secretaria Estadual de Educação - DSE a, Educação formal
- ensino de 1° e 2° graus, Recife, 1982.
b, Educação não-formal e ações comunitárias, documento n. 2, Recife, 1982.
C, Experiência de pesquisa participativa no Agreste setentrional de
Pernambuco, Recife, 1982 (mimeo.).
d, Levantamento escolar no meio rural, Recife, 1982 (mimeo.). BRASIL,
Ministério de Educação e Cultura, SEPS, Reunião técnica de estudos sobre
educação nas áreas rurais do Nordeste, João Pessoa, 1982, Brasília, 1983.
PROJETO Nordeste, Educação, relatório 1, versão fïnal, s.e., 1983. ,
Educação, relatório II, s.l., s.e., 1983.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARA, FCC, Avaliação da educação rural
básica no Nordeste brasileiro, Fortaleza, 1982.

IV
DA ESCOLA RURAL DE EMERGENCIA A ESCOLA
DE AÇÃO COMUNITÁRIA
CARLOS RODRIGUES BRANDAO (UNICAMP)

Pode-se afirmar, portanto, ... que a escola produz, ao mesmo tempo,


instruídos e excluídos.
(Lia Fukui, cit. in Mª Malta Campos, Escola e participação social, p. 115).

Uma notícia de jornal

Uma notícia, escrita por Catarina Arimatéia para a "Folha de S. Paulo"


de 29 de maio de 1983, fala sobre evasão e repetência. Diz a manchete:
"Persistem os altos índices de evasão e repetência. Nas escolas estaduais e
municipais os problemas atingem quase metade do total de alunos
matriculados na primeira série". Diz o começo da notícia:
Em cada grupo de cem crianças matriculadas na 1ª série do 1° grau, em
escolas da rede estadual de ensino, apenas vinte conseguem cursar a quinta
série. Não menos preocupante é o índice de repetência: cerca de 50% dos
alunos ficam retidos na primeira série por uma ou mais vezes, conforme
dados fornecidos pelo secretário estadual da Educação, Paulo de Tarso
Santos.
Os números são muito graves, não só porque os índices de evasão e
repetência são altos, mas porque, depois de tantos anos, são persistentes.
Levantamento feito sobre os dados de 1980 revelam, quando comparados
com os atuais, que as duas questões estão longe de ser resolvidas. Em
1980, entre 645.830 crianças inscritas na primeira série, 234.901 repetiram e
43.246 deixaram os estudos. Juntos, os problemas afastam de uma trajetória
escolar desejada 43,1 % dos alunos. Em 1981, 392.905 alunos matriculados
na primeira série passaram para a segunda, entre 613,470.
Ao examinar a situação de escolaridade de pessoas entre 8 e 15 anos
de idade, o 1° censo escolar descobriu, em 1977, que mais da metade dos
alunos de São Paulo não conseguiu passar da 3ª série e tão-somente uma
4ª parte chegou à 4ª série. 11 % dos alunos conseguiram completar a 8ª
série. Uma proporção muito grande de crianças de 8, 9 e 10 anos largou os
estudos já na l.a série (São Paulo (cidade), s.d., 124).

Evasão escolar ou exclusão da escola?

Métodos escolares que evitem a evasão e reduzam significativamente a


repetência têm sido. criados e postos em execução aqui e ali. No entanto,
até agora, nem mesmo aqueles que se apresentam com possibilidades de
ser "uma solução" resolvem o problema por muito tempo. Ou melhor,
reduzem o problema da repetência em algumas escolas particulares, para
onde se dirigem crianças cujos pais podem pagar a educação. Ano após ano,
as estatísticas ajudam as pesquisas a revelar que as dificuldades
fundamentais na trajetória escolar da criança pobre estão mais do lado de
fora do que do lado de dentro da sala de aula. São razões e motivos que
trazem para dentro da escola problemas de aprendizagem e aproveitamento
que a própria escola não pode resolver. Quero voltar à notícia de jornal:
Contudo, mais do que falhas no método educacional, as estatísticas re-
velam a carência da população. Após visitas a estabelecimentos oficiais, é
possível chegar a algumas conclusões. Primeira, a desnutrição acompanha o
aluno carente, acarretando pequeno aproveitamento durante as aulas. Outra,
ao concluir a quarta série, muitas crianças entram no mercado de trabalho
para ajudar no orçamento dos pais, sujeitando-se a subempregos, e
abandonando o curso. Mesmo os que continuam a freqüentar a escola pouco
tempo têm para estudar, pois ajudam a cuidar de irmãos menores, lavam
roupas, louças. Acima de tudo, não possuem recursos para comprar material
escolar. Contentam-se com o oferecido pelas escolas ou emprestam de
colegas (Arimatéia, 1983, p. 29).
Estas são as razões pelas quais alguns pesquisadores do assunto
preferem substituir a palavra evasão por uma outra: exclusão, alterando,
portanto, as fórmulas que nominam o fenômeno: de evasão escolar para
exclusão da escola (Campos, 1983; Fukui, 1980).

Com os dados que a experiência cotidiana dá, um professor de 1º grau


de escola do Carandiru, na periferia de São Paulo, depõe:
A repetência . . . é ocasionada principalmente por motivos econ8micos. Aqui
há muitos favelados. Alguns faltam porque estão com piolho, outros são
mordidos por ratos. Eles saem de casa sem comer e alguns desmaiam nas
salas de aula (Arimatéia, 1983, p. 29).
Os indicadores demonstram que há uma relação estreita entre as
condições materiais da vida familiar e a trajetória escolar das crianças que
estudam - ou que já deixaram de estudar - no 1 ° grau da escola pública. De
início, o confronto entre tal tipo de escola e a particular não deixa margem a
dúvidas. Aquilo que tende a ser a regra nas escolas oficiais é a exceção nas
particulare. Mais do que isso, assim como há um aumento efetivo do sucesso
escolar nos colégios pagos, à medida que se vai dos mais baratos aos mais
caros, assim também há um aumento do fracasso escolar, quando se viaja
dos índices da escola pública situada no centro, ou nos bairros melhores de
qualquer cidade, para as escolas empurradas para a "periferia" ou para a
beira das favelas. Ali, às carências sócio-econômicas dos alunos somam-se
as carências econômico-pedagógicas da escola.
Esforços oficiais recentes no sentido de racionalizar a oferta de
educação gratuita nâo têm resolvido a questâo fundamental da diferença
qualitativa de oferta dos benefícios da escola. Ao contrário, parece haver
uma perigosa tendência de piora progressiva do atendimento material
escolar justamente nas áreas onde já são muito precárias as "condições do
ensino".
É possível afirmar, então, que os esforços das equipes de planejamento
não foram suficientes para modificar a tendência que sempre predominou no
sistema escolar, qual seja, a de oferecer menos e pior ensino justamente
àquelas populações que se localizam nas áreas periféricas das maiores
cidades do Estado, especialmente São Paulo. Dados de 1979, da própria
Secretaria de Educação, demonstram que é nas delegacias de ensino da
Grande São Paulo, onde predominam os "estratos sócio-econômicos mais
baixos", que se encontra a maior proporção de escolas funcionando em
quatro ou mais períodos. De forma correspondente, nessas delegacias os
índices de repetência na 1ª série do 1° grau são mais altos, representando
mais do que o dobro daquelas referentes a bairros de nível médio (Campos,
1983, 112-113).
Juntadas as condições diferentes de poder estudar por mais tempo
entre crianças de classes altas e baixas com as condições igualmente
desiguais de qualidade da oferta de ensino nas escolas para onde, em
maioria, vão as crianças de classes altas e baixas que estudam, uma das
conclusões é a de que o sistema escolar nâo reduz, mas reforça a
desigualdade de condições de vida que outros sistemas sociais determinam
e consolidam. São as crianças filhas de trabalhadores, subempregados ou
desempregados, as que enfrentam mais e maiores dificuldades para
ingressar na escola, de se manterem aí por mais tempo, de encontrarem
condições escolares adequadas, de possuírem condições pessoais de um
aproveitamento desejado. São elas as que menos entram na escola, as que
saem mais depressa e com menos proveito. Aquelas a quem, sem confessar,
o sistema escolar oferece o ensino precário que os sistemas de apropriaçâo
da força de trabalho por certo julgam suficiente para crianças que, afinal,
filhas de trabalhadores sazonais, podem aspirar a pouco mais do que serem,
elas também, trabalhadores sazonais.
A seletividade do sistema reforça, portanto, as desigualdades sociais
existentes entre os alunos, pois são justamente as crianças das camadas
mais pobres que vão sendo gradativamente excluídag da escola. O trabalho
de Lia Rosemberg (Educação e desigualdade social) demonstra que,
conforme a série considerada, modifica-se o perfil sócio-econ8mico do
alunado da rede estadual da região metropolitana: para as duas classes de
renda mais baixa, as porcentagens de alunos matriculados na lá série são de
18,1 e 20,1 e na 8ª série diurna, de 0,9 e 1,9 respectivamente. Para as duas
classes de renda mais alta, as porcentagens passam de 10,7 e 6,0 na 1ª
série, para 27,0 e 31,8 na 8ª série diurna. Os alunos mais pobres estão um
pouco mais representados no período noturno de aulas, mas ainda assiun os
dados confirmam a exclusão gradativa do sistema.

1. CAMPOS, 1983, p. 115. Muito importante reproduzir a seguinte tabela de


seu esfudo: volume I, p. 131, nota 38 (reproduzo-a reduzida do original) :

Administrações regionais
% de famílias até 5 salários mínimos de renda mensal
Pinheiros 34,6
Sé 46,6
Lapa 47,7

Taxas de reprodução na 1º grau (1975)


Pinheiros 7,6
Sé 16,3
Lapa 11,5

Indice pop. 3-6 anos não matriculados em pré-escola


Pinheiros 41,0
Sé 59,5
Lapa 53,5

% de famílias até 5 salários mínimos de renda mensal


Ipiranga 63,7
Santo Amaro 66,6
Butantã 73,1

Taxas de reprodução na 1º grau (1975)


Ipiranga 24,5
Santo Amaro 34,6
Butantã 30,3
Indice pop. 3-6 anos não matriculados em pré-escola
Ipiranga 84,8
Santo Amaro 89,2
Butantã 86,3

% de famílias até 5 salários mínimos de renda mensal


Campo Limpo 87,3
São Miguel/Ermelino Matarazzo 92,7
Itaquera/Guaianazes 95,9

Taxas de reprodução na 1º grau (1975)


Campo Limpo 44,3
São Miguel/Ermelino Matarazzo 33,6
Itaquera/Guaianazes 41,4

Indice pop. 3-6 anos não matriculados em pré-escola


Campo Limpo 95,7
São Miguel/Ermelino Matarazzo 97,3
Itaquera/Guaianazes 92,4

Fonte da autora: COGEP/EMURB, Diagnóstico do ensino de primeiro grau,


anexo II, 1977, p. 8 e Diagnóstico de ensino de pré-primeiro grau, anexo II,
1977, p. 17.

Estas relações entre condição familiar de vida e trajetória escolar


ocultam uma notável discrepância que, posta a nu, apenas revela o lado
mais escuro de um mecanismo de exclusão e marginalidade de que a escola
é apenas uma parte. Enquanto, de um lado, a cada dia mais, somam-se uns
aos outros os obstáculos externos e internos à escola, no que respeita à
qualidade e à duraçâo do estudo da criança pobre, de outro, o mercado de
trabalho a cada dia requer maiores exigências de escolarização para o
acesso ao emprego.
A falta de instrução, por outro lado, dificulta até mesmo o emprego
dessa mão-de-obra em serviços pouco especializados. Enquanto apro-
ximadamente um terço dos moradores com mais de 15 anos de idade não
chega a completar sequer as quatro primeiras séries, as empresas de
transporte de Campo Limpo exigem nível primário para 97,8% das funções,
as indústrias metalúrgicas, químicas e de construção civil para 50% das
funções e as alimentícias oferecem apenas 22,8% dos cargos para essa
faixa, exigindo escolaridade mais alta para os demais. Isso ajuda a éxplicar o
grande contingente de subempregados na área, o que agrava a instabilidade
vivida pelas famílias (Campos, 1983, 121).
Pesquisas históricas realizadas em São Paulo demonstram como desde
o passado e, inclusive, em áreas rurais, sempre houve interesse dos pais
pelo estudo dos filhos. Zélia de Brito Fabri Demartini demonstra como
populações dos bairros rurais de São Paulo desde sempre lutaram por ter e
manter escolas primárias em suas áreas de moradia. Quanto mais o
horizonte de uma vida camponesa estável tende a aparecer ameaçado, tanto
mais há um interesse dos filhos pela educação - as crianças de fato querem
aprender - e dos pais, para que haja escola (Demartini, 1981, 7-32).
Do mesmo modo, Maria Malta Campos concorda em que, tanto para o
caso da cidade de São Paulo, quanto para o das áreas periféricas onde
realizou sua pesquisa de campo, a população está sempre atenta às
questões da escola e, não raro, mobiliza-se e luta por conseguir a sua
implantação e, depois, a melhoria progressiva das condições locais de
acesso à educaçâo. Ao contrário do que uma boa consciência costuma
imaginar, a oferta de educação às populações pobres da cidade e do campo:
a) nem sempre obedece a planejamentos adequados e com base em
princípios de justiça social; b) não é "oferecida" a comunidades carentes por
iniciativa dos poderes públicos, mas, ao contrário, resulta com freqüência de
longos períodos de organização e luta de seus habitantes pelos direitos
locais à escola.
Examinando com mais detalhe como se processou a expansão do
ensino primário na cidade de São Paulo, a partir de 30, é possível, senão
reconstituir, pelo menos perceber, nessa história, os sinais da presença e das
reivindicações das camadas populares por acesso à escola. Esses sinais,
que podem ser identificados, de forma indireta, através da análise da
atuação do Estado, só ganham sentido se é adotado, desde o início, o
pressuposto de que a pressão da demanda é um aspecto fundament na
explicação dessa atuação (Campos, 1983, 14).

Se quisermos sintetizar as observações introdutórias feitas até aqui,


deve ser retido o seguinte: a distribuição da educaçâo de 1º grau é
desigualmente realizada em São Paulo - há mais e melhor escolas públicas a
serviço de populações com outros melhores ind cadores de nível de vida do
que a serviço dos contingentes populacionais mais pobres e periféricos; a
distribuição das condições familiares e pessoais de acesso e permanência
na escola é também desigual - quanto mais precárias as condições de vida e
a participação dos pais no mercado de trabalho, tanto mais difícil o acesso à
escola e tanto mais apressada a passagem da criança pelo ensino de 1 °
grau; políticas e projetos de correção das desigualdades da oferta de
educação não têm produzido resultados significativos quanto à evasão - na
verdade, à exclusão - e à repetência, e não têm conseguido realizar na
prática uma democratização do ensino professada sempre em termos
políticos e jurídicos.
Crianças filhas de pais trabalhadores de baixo nível, subempregados ou
desempregados, fazem trajetória escolar entre pelo menos duas
modalidades persistentes de exclusão da escola: a) as que são geradas e
reproduzidas pelas condições de classe da família pobre periférica; b) as que
são preservadas pela inadequação do ensino escolar de 1 ° grau face às
carências das crianças pobres, e pelo fato de que, justamente nos bairros de
periferia onde elas se concentran estão as escolas material e
pedagogicamente mais precárias.

O aluno pobre: um trabalhador que estuda

Há uma diferença essencial entre meninos estudantes de classe média


para cima, freqüentadores por longos anos de escolas particulares, e
meninos estudantes da classe pobre para baixo, freqüentadores por poucos
anos de escolas públicas de periferia e, sobretudo de zonas rurais. Os
primeiros são estudantes que freqüentam a escola para um dia trabalharem;
os últimos são trabalhadores precoces qu dividem o tempo "do estudo" com
o do trabalho braçal, de que mui to dificilmente se libertarão um dia.
Do planejamento curricular à distribuição de palavras e cores dos livros
escolares de 1° grau, a escola fecha sistematicamente o olhos para esta
realidade de uma diferença com que convive todo os dias. Ela não é
inadequada à criança de família de trabalhadores por diferenças de
linguagem ou por carências de objetos do ensino, mas por ter sido, desde a
origem, pensada e posta em prática como um lugar de "ensino" separado da
vida real e, sobretudo, separada até do fato de que uma parte
significativamente grande de sua clientela 1° é constituída por trabalhadores
precoces e, portanto, precocemente adultificados.
Quero acrescentar aos dados da pesquisa de Maria Malta Campos,
realizada na periferia da cidade de São Paulo, os obtidos por Maria Helena
Rocha Antuniazzi, em notável estudo sobre a condição de trabalhador
precoce do menino rural pobre e as questões de escolarização daí
derivadas.
Na pesquisa feita por Maria Malta Campos, os pais reconhecem que o
trabalho precoce das crianças é imposto por exigências de complementaçâo
da renda familiar, ao nível de uma ainda precária subsistência. "Você põe o
seu filho pra trabalhar, é por causa das condições difíceis, do dinheiro
pouco", respondeu uma das mães entrevistadas. A resposta poderia ser
repetida do mesmo modo por qualquer outra. A questão do trabalho justifica
60% das razões por que crianças pobres estão fora da escola, mesmo em
idade escolar. O estudo do filho é sempre prioritário na resposta dos pais,
inclusive porque téo ele é o único meio através do qual a criança pode um
dia negar o e destino dos pais e ter, no futuro, um emprego melhor e mais
estável. Mas o "melhor trabalho" futuro, razão principal do desejo do estudo,
concorre com a necessidade do trabalho precoce que, por sua vez, acaba
sendo um dos principais motivos pelos quais crianças pobres deixam a
escola após poucos anos de freqüência, não raro, com repetências
sucessivas.
A entrada no mercado de trabalho é inevitável e vem sendo antecipada,
com o agravamento das condições de vida: 19,5%, das crianças de 7 a 14
anos estão trabalhando. Retardar esse ingresso parece determinante nas
oportunidades escolares. Os quatro ou cinco jovens conhecidos no bairro,
que cursam o colegial, não estão trabalhando. Ocorre que 45,4% dos filhos
maiores de sete anos trabalham. A ocupação existente para os menores é
quase sempre sem especialização. Os maiores encontram trabalho em
serviços semi-especializados e na indústria. Trabalhar e estudar ao mesmo
tempo foi mencionado pelas mães como a dificuldade mais sentida pelos
filhos, que depois de tentarem algum tempo, desistem antes mesmo de
completar a 4~ série. "Trabalhar o dia inteiro, se alimentar mal e estudar à
noite, não dá não." Do total de filhos que trabalham, 72,9% estão fora da
escola.
Eis um exemplo evidente de um confronto entre níveis de uma
mesma realidade, onde o direito jurídico de acesso universal à escola é
negado pela necessidade econômica de participação precoce em situações
de trabalho que, por sua vez, não fazem parte de planos de educação, cuja
função essencial seria a de compatibilizar a proposta do ensino às condições
reais da vida dos educandos.
O trabalho obrigatório choca-se com o ensino "obrigatório" e,
desde que nem o mercado de mão-de-obra, nem o ensino de formação do
cidadão e sua mão-de-obra pensam o seu exercício em função das
condições de acesso ao trabalho e ao ensino, de parte do menino pobre e
precocemente trabalhador, é sobre ele, estudante carente, traba lhador
precoce, que recai o ônus do ter que estudar trabalhando, tendo que
trabalhar para viver.
O primeiro passo do caminho que quer chegar às explicações do
"fracasso escolar" alarmante entre crianças filhas de trabalha dores deve
começar pela análise da condição familiar de sua vida co tidiana, e dos
determinantes sobre as condiçôes pessoais com que tal criança chega à
escola e luta por manter-se nela, procurando realizar o duplo milagre de não
"repetir" e não "sair", as duas penas com que o sistema atual de ensino de 1
° grau separa os "bons" dos "maus" alunos e, assim, cumpre a tarefa de
desigualmente distribuí-los entre espaços e oportunidades desiguais - "bons"
e "maus" de trabalho e vida.
No meio rural paulista o quadro não é muito diferente. Crianças
participam desde cedo dos trabalhos, primeiro domésticos, depois,
propriamente profissionais. Em seu estudo sobre trabalho infantil
e escolarização rural em Sâo Paulo, Maria Helena Rocha
Antuniazzi lembra um escrito de Clóvis Caldeira feito com base no censo de
1950:
Os dados analisados revelaram que a mão-de-obra infanto-juvenil (me
nores de 15 anos) era incorporada à força de trabalho, tanto na
unidade familiar, sob diferentes regimes de posse da terra (proprietários,
par ceiros, arrendatários e colonos), quanto no trabalho assalariado.
Os maiores contingentes, entretanto, estavam nas explorações de tipo
familiar (Antuniazzi, 1983, 29).
De acordo com o tipo de cultura, na região Sul do Brasil -
onde o censo de então incluía São Paulo -, sobretudo os meninos entravam
no trabalho regular da lavoura: de algodão, aos 9 anos, em média; do arroz,
com 10 anos; do café, aos 10 anos, da cana-de-açúcar e do fumo, aos 11
anos.
Antecipando-se ao seus próprios dados de pesquisa, Maria Helena
Antuniazzi concorda com outros investigadores da educação rural na
afirmação de que problemas de escolarização - sobretudo a repetência e a
evasão - não podem ser atribuídos à falta de interesse de pais lavradores
e/ou camponeses, mas a outros fatores sócio-econômicos, entre os quais se
destaca "a inserção precoce da criança na força de trabalho" (Antuniazzi,
1983, 32). Com base nos números produzidos pelo censo anual do Instituto
de Economia Agrícola da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do
Estado de São Paulo, a que acrescentou material de sua própria pesquisa de
campo, Maria Helena Antuniazzi chega às seguintes conclusões:
1. Independentemente do tipo de exploração familiar e das condições de
acesso à posse e uso da terra por parte do grupo doméstico, nas áreas
rurais paulistas, tem sido e continua sendo importante a participaçâo de
crianças na força de trabalho agrícola.
2. Fundamental no caso da família camponesa, quando o trabalho de
meninos e, em menor grau, de meninas, participa de praticamente todas as
atividades do calendário agrícola realizadas pela família, o trabalho infantil
reproduz-se, em alguns casos, até com porcentagens maiores entre famílias
de lavradores migrantes, moradores na cidade.
3. São freqüentes os casos em que a mão-de-obra precoce no trabalho
volante da agricultura se dá abaixo das idades legalmente estabelecidas, ou
seja, desde os 7 anos.
4. Situações de crise nâo reproduzem, antes, aumentam a incorporaçâo
do trabalho do menor às tarefas da agricultura, seja para que a família
preserve suas condições de pequena produtora, seja quando ela se
transforma em uma unidade de trabalho volante (bóia-fria).
5. Portanto, e aqui reúno os dados de Maria Helena Antuniazzi aos de
Maria Malta Campos, a passagem de locais e formas mais tradicionais de
vida e trabalho para outros, mais modernos, ou seja, menos perifericamente
incorporados ao modo capitalista de produção, não reduz o índice de
aproveitamento precoce da força de trabalho infantil; ao contrário, força para
que, em maior número e mais precocemente ainda, ela seja incorporada ao
exercício profissional.
6. Fora o trabalho diretamente produtivo - aquele que se realiza na
unidade imediata de produção de bens de subsistência ou de troca - o
trabalho de meninos e meninas é requisitado precocemente para incontáveis
atividades "da casa e do quintal", de tal sorte que, quando os indicadores
oficiais apresentam uma cifra de participação do trabalho infantil, ela é, na
prática, muito maior e, não raro, alguns anos mais precoce;
7. Crianças precocemente incorporadas à força de trabalho familiar e/ou
produtiva são sensivelmente prejudicadas nos seus estudos: a) porque
perdem física e psicologicamente condições de atenção e aproveitamento
escolar; b) porque possuem um mínimo tempo efetivo para a realizaçâo de
suas tarefas escolares; c) porque, com freqüéncia, são sazonalmente
retiradas da escola quando, nos momentos de urgências agrícolas, sâo
convocadas para trabalho intenso junto a seus familiares, ou nas equipes de
lavradores volantes.

Caminhos? Soluções?

Sabemos todos que repetência e exclusão da escola são fenômenos


diferentes, mas interligados de muitos modos. O aluno que sai da escola
antes do tempo desejado é, com muita freqüência, o mesmo que "repetiu o
ano" mais tempo e mais vezes do que o desejado. Fora fenômenos de
ordem pessoal, sabemos também que as mesmas díficuldades que a vida da
criança pobre leva com ela para a sala de aula sâo as que a fazem "repetir"
e, depois, "sair". Principalmente nas escolas isoladas, do meio rural, as
crianças entram mais tarde nos estudos, repetem mais vezes uma mesma
série - onde em geral todas elas são "dadas" por um mesmo professor, ao
mesmo tempo - e saem mais cedo da escola.
Soluções têm sido tentadas. Algumas incidem sobre a metodologia direta do
ensino, mas aqui e ali a eficácia do método se perde, por causa das
condições dïretas em que ele deve ser exercido dentro da sala de aula. A
experiência do Projeto Alfa pode ser lembrada aqui. Sobre métodos, outra
notícia recente de jornal:
MEC LANÇA PROJETO PARA ALFABETIZAR MAIS RÁPIDO
Um programa de alfabetização infantil - o Projeto Vencer - foi aprovado e
será lançado como projeto de impacto do Ministério da Educação e Cultura,
para ter início de execução em 1984, com recursos de Cr$ 20 bilhões do
salário-educação. O objetivo básico do programa é melhorar o desempenho
das crianças nas duas primeiras séries do ensino regular do 1° grau,
assegurando efetivamente a sua alfabetização (Bíttar, 1983, 24).

Mais adiante a notícia lembra que, "na estratégia de execução do


programa", haverá uma intensa carnpanha de mobilização da comunidade e
recurso aos meios de comunicação de massa, inclusive com a utilização dos
"horários nobres".
A tentativa de redução dos índices de evasão e repetência, sobretudo
entre as camadas de alunos carentes, é sempre limitada quando realizada
através da introdução de inovações simples de
currículo e da aplicação de métodos, cuja eficácia sem dúvida é maior,
quando em testes de laboratório. Urna das causas da distância entre os
resultados experimentais e o trabalho escolar com novos métodos está em
que o professor, principalmente o professor que trabalha, ele próprio, em
escolas carentes, não pode, ou não quer trabalhar com o método tal como
ele foi pensado.

Em várias escolas rurais de São Paulo, Minas Gerais e Goiás,onde


estive, verifiquei que os professores de "escola isolada", ou de"escola de
emergência", são os que maïs se apegam a formas tradicionais de ensino
em sala de aula, possivelmente porque descobrem que são aquelas as
maneiras mais concretamente possíveis de trabalho escolar em suas
condições. Na maior parte dos casos, ao contrário do que vi acontecer em
regiões rurais do Pará e do Amazonas, tais professores chegam ao lugar da
escola pouco antes do horário_ da aula e saem dela logo depois de concluído
o turno escolar diário.e
Uma rotinização aparentemente mediocrizadora e um apego a formas
tradicíonais de ensíno são o modo de defesa de professores a quem a
inovação metodológica obriga ao exercício de atividades que, não raro,
comprometem uma precária "ordem de ensino" que a experiência de
trabalho, com turmas reunidas em condições extremamente precárias,
acabou construindo (Baeta, 1982).
Alguns pesquisadores, sem deixar de reconhecer a contribuição de novos
métodos, enfatizam que uma política de redefinição das condições concretas
do exercício do magistério, sobretudo onde ele se realiza sob condições
impraticáveis, é o passo antecedente a qualquer experiência didática
renovadora.
É comum colocar-se sobre os ombros desses profissionais, assim como nos
dos alunos (qualificados de incapazes, maldotados etc...), toda a carga das
críticas, hoje tão comuns e dïfundidas, sobre a escola. Esquecem-se, porém,
tais críticos das condições precárias de trabalho a que ambos (professores e
alunos) estão submetidos. A interferência constante dos "técnicos" que
compõem os serviços de "assistência psicológica", longe de colaborar na
soluçâo dos problemas internos da instituição escolar, parece estar
contribuindo para o esfacelamento da autoridade do professor e do
conhecimento do aluno. Soma-se a isto 0 profundo desprestígio a que a
classe dos professores está submetida. Sem uma firme vontade política de
atuar no sentido da valorização social desta profissão, dificilmente qualquer
política de intervenção no ensino de 1° grau poderá contar com a mediação
positiva dos professores (Baeta, 1982, 6).
Para o triênio 1968/1970, o governo federal elaborou e pôs em
funcionamento a Operação Escola, cujo objetivo era resolver, ao nível
nacional, os problemas de evasão e repetência (Pinheiro, 1968; Saviani,
1978). Em teoria, o projeto destinava-se à democratização efetiva das
oportunidades educacionais, procurando universalizar na prática, em
quantidade e qualidade, o ensino de 1 ° grau. Contudo, durante sua
aplicaçâo, o projeto foi desviado para soluções prioritariamente pedagógicas
e deixou de lado a consideração - anteriormente prevista - das questões
ligadas não só à deficiência do ensino nas escolas carentes (de que as
escolas rurais são o caso extremo), mas também às dificuldades já
apontadas aqui do aluno carente - social e culturalmente - e, por isso,
escolarmente defasado.
Vincado pelo pedagogismo, o diagnóstico (prévio à Operação Escola)
limitou-se ao plano do estritamente escolar, não só evitando estabelecer
vineulações entre educação e sociedade, mas também acabando por
responsabilizar pelo estado de coisas do ensino primário, em um primeiro
momento, o professorado, e, em um segundo momento, tanto os fatores do
sístema de promoção, avaliação e grupamento, quanto os programas
escolares, considerados como inadequados e não adaptados às diferenças
indivïduais dos alunos (Foina, 1982.
No caso do Estado de São Paulo, acentuam-se as seguintes medidas para
reduzir os índices de exclusão da escola e repetência:
a) realização de um programa intensivo de adaptação do aluno ao ambiente
escolar, a ser concretizado durante o período de férias; b) um apelo à
criatividade do professor, evitando o livro descartável com exercícios prontos
e ensinos pré-programados; c) criação de grupos de monitores, para ajuda
aos professores em exercício, de preferência entre alunos de cursos de
pedagogia; d) complementação dos módulos escolares, com uma prioridade
para os concursados; e) cursos de recuperação para os alunos com
dificuldades, dados pelo mesmo professor que ministra aulas no período
normal (Arimatéia, 1983, 29).
As Unidades Escolares de Ação Comunitária de São Paulo
Pelo menos no que se refere aos cursos de recuperação, já exis te, em
andamento no Estado de São Paulo, uma experiência escolar de 1 ° grau
que, aplicada às escolas rurais mais isoladas de regiões pobres do Estado,
merece ser levada em conta. Falo das UEACs, Unidades Escolares de Ação
Comunitária, cuja história, projeto e
funcionamento descrevo aqui.
São as seguintes as categorias de escolas de educação rural em, São
Paulo: a) grupo escolar - composto de pelo menos 4 séries do 1 ° grau, com
turmas separadas, corpo administrativo e direção; b) escola isolada -
composta de turma multisseriada, entregue aos cuidados de um único
professor efetivo; c) escola de emergência - criada em áreas carentes para
atender a necessidades escolares prementes, com professor transitório e
podendo ser desativada a qualquer , momento.
Escolas isoladas e escolas de emergência, ambas multisseriadas,
são anexadas a grupos escolares próximos, que respondem por sua ,
supervisão. São as escolas que funcionam em sítios e nos bairros rurais
mais afastados. Desnecessário descrever suas condições de exercício do
ensino. Dois documentos, justamente preparados para os treinamentos dos
professores de UEACs, analisam fatores de ordem sócio-econômica que
afetam o rendimento escolar nas zonas rurais de São Paulo e,
especialmente, naquelas onde estão sendo implantadas as UEACs.
Transcrevo apenas os dados diretamente sobre a escola:
1. Reduz-se significativamente a proporção de população ru ral no Estado
de São Paulo. Ela foi de 47,4% em 1950, de 19,6% em 1970 e de 12,8°,%
em 1977. No entanto, o ritmo de diminuiçãoda população rural decresce nos
últimos 10 anos. Em 1980, a população rural foi de 14,1%, o que poderia
estar indicando uma re lativa estabilização.
2. Parece haver no meio rural paulista um número suficiente de escolas
para o atendimento da demanda dos alunos com possibilidades de
freqüência; no entanto, não se conhece a demanda potencial de ensino de 1
° e 2 ° graus.
3. É grande o índice de evasão escolar entre crianças que freqüentam as
escolas de 1 ° grau. Em todas as regiões agrícolas do Estado há um
constante (e persistente) decréscimo de população escolar da 1º para a 2.º
série e desta para as outras. Não mais do que 20% de alunos matriculados
na 1.º série chegam à 4 º, na maior parte dos casos; inúmeras escolas
deixam de oferecer ensino de 4º série, dado o pequeno número de meninos
candidatos.
4. Há sempre uma grande redução de freqüência durante certas épocas do
ano; em escolas isoladas essa quebra chega a 40%, de acordo com
períodos de maior necessidade do trabalho do menino estudante.
5. Entre os alunos pesquisados, cerca de 80% trabalham com os pais na
lavoura ou nas lides do quintal e da casa. A variação da intensidade e do tipo
de trabalho precoce depende das condições regionais do trabalho agrícola e
da forma da participaçâo familiar nele.
6. Mesmo reunindo o trabalho imposto e o estudo defasado, 14,4% dos
alunos pesquisados pensam chegar à 4º série; 32,5% esperam concluir a 8º
13,4%, o colegial e 16,2%, a faculdade.
7. 77% dos pais de alunos pesquisados foram classificados como: parceiros,
arrendatários, assalariados permanentes ou temporários e empreifeiros,
todos em categorias de residentes em fazendas ou sítios; 21,5% dos pais
sâo proprietários rurais e 1,5% foram categorizados como "outros", sem
maiores especificações. Fora as regiões de São José do Rio Preto e São
Paulo, há uma predominância de trabalhadores assalariados permanentes e
um número menor de lavradores volantes.
8. Mesmo entre os assalariados permanentes, há grande mobilidade
espacial. Apenas 20% dos pesquisados nasceram no seu município de vida
e trabalho atual. Há uma tendência à reduçâo da mobilidade nos últimos 3
anos. Entre os que já mudaram de lugar depois de constituída a família, 75%
o fizeram durante o período letivo do ano.
9. Entre os pais dos alunos pesquisados, apenas 3,5% possuem mais de 4
anos de estudos regulares; 25 % dos pais não possuem qualquer estudo.
Por outro lado, apenas a quarta parte dos pais obtém do trabalho renda
maior do que 2 salários mínimos.
10. Por efeitos de política agrária e de processos de reocupação das áreas
de lavoura, há uma expectativa de um crescimento outra vez sensível do
contingente de lavradores volantes.
11 . Éntre outros fatores a merenda escolar possui uma importância
essencial para os alunos carentes da zona rural. As famílias são pobre em
maioria , e muitas crianças vão da escola diretamente para o trabalho,
constituindo-se o que comem na escola na única alimentação substancial do
dia. Em algumas áreas pais lavradores volantes deixam os filhos em idade
pré-escolar nas escolas para que eles sejam alimentados .
12 . Assim como são inter-relacionados os fatores estra-escolares que
incidem sobre os problemas de escolaridade , assim também o planejamento
da educação deveria ser feito em correlação com o de outros setores de
serviços públicos.
13 . A simples complementação da carga horária de professores urbanos
para o ensino na escola rural não tem melhorado os indicadores do
rendimento escolar dos alunos. Trata-se de professores residentes na
cidade, com mínima duração diária de tempo de trabalho na escola rural e
sem possibilidade de entrosamento com o meio em que atuam. O documento
conclui afirmando que tais professores “estão sempre com pressa e tem
existido uma rotatividade indesejável para a fixação do conteúdo pelagógico,
o que dá uma idéia da escola rural coo ‘escola marginal’, de último
atendimento” (São Paulo [Estado]).
Se os índices de repetência e de exclusão da escola são altos quando
revelados por pesquisas feitas nas grandes cidades do Estado, não é
necessária muita imaginação estatística para compreender condições da
oferta de educação nas pequenas escolas rurais do interior. Ora, graves e
persistentemente altos os indicadores das carências da escola urbana, eles
são bastante mais graves no caso da escola rural, que associa as piores
condições materiais aos professores menos preparados e com menores
possibilidades de reciclagem de sua formação e, mais ainda, aos alunos com
inigualáveis piores condições de participação na vida escolar. Eis algumas
causas que, entre as mais conhecidas parecem agravar as dificuldades da
educação da criança rural:
a) a inadequação entre conteúdos curriculares e processos da escola
rural e as possibilidades e urgências de aquisição, de conhecimento das
crianças do campo;
b) os impedimentos da vida familiar ao ingresso da criança do campo em
idade adequada à freqüência regular aos estudos, e à presença do aluno na
escola durante pelo menos os anos do 1° grau;
c) a percepção do homem do campo sobre a educação, para quem, ainda
que seja indispensável o "estudo", ele se reduz ao aprendizado "ler-escrever-
e-contar", o que faz com que muitos pais que lutam para pôr os filhos na
escola permitam que eles a abandonem tão logo dêem mostras de haver
adquirido um "mínimo conveniente" de instrução escolar;
d) a sazonalidade da participação do menino-trabalhador rural na escola,
cujo tempo de "estudo" apenas interrompe e completa provisoriamente - ao
longo de um ano letivo e ao longo dos anos de estudo - uma biografia
precocemente inserida no mercado local de trabalho;
e) o parco interesse dos professores pela escola rural - onde muitos apenas
se vêem cumprindo uma etapa obrigatória e inicial de suas carreiras -, aliado
a um desinteresse ativo das comunidades rurais pela escola, mesmo quando
há um acentuado interesse familiar pelo estudo dos filhos na escola.

Da escola de emergência à escola de ação comunitária

Em 1972, o governo estadual "autoriza a instalação de unidades


escolares rurais de 1° grau, de ação comunitária no Vale do Ribeira. De
propósito foi escolhida uma região de economia agrária do Estado, tida como
uma das áreas mais pobres e onde o sistema de educação é mais precário.
Nos anos seguintes a experiência pioneira das UEACs foi estendida ao
Litoral Norte e a áreas do Vale do Paraíba e da região de Presidente
Prudente, às margens do Paraná. Algumas condições prévias são
estabelecidas então. Ao lado de ser a área rural carente do ponto de vista
das condições materiais da vida comunitária e familiar, é necessário que haja
ali, para a instalação de uma UEAC: a) "população estável, que ocupe área
geográfica definida e esteja ligada por objetivos comuns, que lhe faculte
identificação como comunidade rural", b) a presença de crianças em idade
escolar, de acordo com a lei; c) prédio escolar adequado; d) uma área de no
mínimo 5.000m2 destinada a atividades agrícolas; e) a possibilidade de o
professor residir no próprio prédio da escola ou em suas proximidades
imediatas; f) a existência de professor especialmente treinado em curso
especial, pela Secretaria da Educação (São Paulo [Estado]a).
A idéia básica é a de vincular o professor à escola e, através dele, a
escola à comunidade. Trata-se de substituir o professor rural que vai
diariamente à escola, pelo professor-animador que vive na comunidade onde
a escola está localizada. Para tanto, professores rurais das áreas escolhidas
foram selecionados e passaram por treinamentos que variam entre 20 e 25
dias. Em tais treinamentos, os professores aprendem, ademais dos assuntos
propriamente pedagógicos, métodos e técnicas de ação comunitária, que vão
desde a realização de pequenas pesquisas, até a organização de pequenas
unidades de trabalho comunitário: clubes de mães, de jovens e assim diante.
O professor recebe salário por dois turnos de trabalho, é obrigado a
viver na comunidade durante toda a semana letiva e a permanecer nela pelo
menos por um fim de semana. Suas atividades, tornam-se diferentes das de
qualquer professor rural de grupo, escola de emergência ou escola isolada,
apenas na parte da tarde. Durante a manhã, o professor leciona para alunos
de 1ª a 4ª séries em regime de trabalho multisseriado. Na parte da tarde,
dedica-se às seguintes atividades específicas das UEACs: a) recuperação de
alunos com dificuldades de acompanhamento escolar; b) pré-escola ou
atividade de supletivo (na imensa maioria dos casos, a escolha da
comunicação recai sobre a pré-escola); c) atividades de ação comunitária
direta como as de saneamento básico (campanhas de fossa, filtro),
encaminhamento de doentes a tratamento adequado, produção de alimentos
(hortas e pomares comunitários, escolares e familiares), organização de
grupos de atuação comunitária específica; promoção de atividades festivas
(festas religiosas, cívicas, folclóricas e esportivas).
Há um corpo de supervisores e orientadores de UEACs ligados aos
regionais e às delegacias de ensino dos municípios onde o sistema está
implantado.
Em um dos documentos sobre as UEACs, é dito que, dentro de um
espírito de reformulação do próprio sentido da presença da escola na
comunidade rural, a proposta em curso é a de romper a oposição
inadequada entre educação urbana e educação rural que leva a maior, parte
dos professores de escolas rurais a emitir juízos de valor sobre a educação
do homem do campo com base em valores urbanos e com orientações
inaproveitáveis para/pelo aluno de zonas rurais. No entanto, em direção
oposta e com um senso de realidade de quem conhece os processos de
expropriação que expulsam do campo o homem para a cidade, não é
objetivo das UEACs desenvolver uma ilusória "mentalidade ruralista". O
trabalho do professor define-se pela sua presença na comunidade e por sua
integração com a vida comunitária, através da escola. Partir das condições
concretas da vida cotidiana das famílias do lugar, de suas possibilidades
efetivas de participação e realização de mudanças e melhorias através do
trabalho coletivo, repensado, por sua vez, da influência e a informação de
trabalho comunitário dadas pelo professor da UEAC (Silva, s.d., 1-2).
Em síntese, a extensão das tarefas do professor da UEAC abrange uma
atividade destinada a lidar com problemas de evasão e repetência
(principalmente a da 1ª série), naquilo em que eles podem ser, pelo menos
parcialmente, equacionados de dentro da escola. Veremos mais adiante que,
de acordo com depoimentos de professores de UEACs do Litoral Norte de
São Paulo, a atuação de uma escola com professor residente, "a serviço do
aluno e da comunidade", não tem sido suficiente para resolver questões de
exclusão da escola. Fora casos de exceção, como o de meninos e meninas
que, ainda residentes na comunidade, abandonam os estudos antes de
completarem a 4ª série, a maior parte dos que saem deixam a escola por
motivos de mudança da família, ou por haverem sido totalmente absorvidos
pelo trabalho familiar, agrícola ou doméstico. Mas os índices de repetência
apresentam melhoras.
O "estar a serviço do aluno e da comunidade" dá um outro sentido às
idéias de dinamização e ampliação do processo educativo. Ao contrário da
ampliação que se dá no limite das melhorias materiais do aparato escolar,
aquela a que visam as UEACs é a expansão do compromisso e da presença
do professor - como um educador de tempo completo e um animador da
comunidade - junto a seus alunos e suas famílias. Da escola para dentro, o
professor se envolve com o trabalho "a mais" que recupera alunos e prepara
precocemente outros para que, mais adiante, tenham menos dificuldades
escolares de participação nos estudos. Da escola para fora, a UEAC am-
biciona não só tornar-se um modelo pedagógico para a comunidade (fazendo
hortas e pomares, melhorando o seu próprio prédio, promovendo o seu
saneamento básico), como estender à comunidade a sua presença
pedagógica. O professor-animador visita cada família, entra em contato
direto com todas as pessoas do lugar, provoca pequenas pesquisas de
conhecimento "da realidade local", incentiva a realização de campanhas e a
formação de grupos.
Sem muita diferença de outras propostas de ação comunitária, o professor é
instado a relacionar-se, desde os primeiros momentos, com as pessoas da
comunidade, de modo a não impor os seus próprios desejos de realização
sobre as necessidades reais e/ou sentidas pela comunidade e as
possibilidades de seu trabalho coletivo.
É nesse sentido que se define a UEAC como, por natureza, aberta às
necessidades do núcleo onde atua e que se deve constituir em centro ativo
da vida social do mesmo. A esta altura, é bom repetir: dificilmente se obtêm,
a curto prazo, resultados duradouros do processo educativo (Silva, s.d., 2).
A instalação de uma UEAC é uma decisão do poder público e não da
comunidade, mas, a partir daí, o professor designado deverá procurar
subordinar o seu trabalho na comunidade às resoluções tomadas em
comum, fruto de reuniões com pessoas interessadas e/ou representantes da
comunidade junto à escola. Uma longa transcrição de um documento da
formação dos professores das UEACs pode ser útil aqui.

No caso da UEAC, as primeiras decisões, como a própria instalação da


UEAC, não partiram de trabalho anterior e de uma solicitação da comunidade
local. A instalação é uma decisão do poder público, da qual participaram,
tanto autoridades e técnicos locais, regionais, como centrais. É a partir desta
instalação e do funcionamento de um tipo de ensino - o regular de 1° grau, 1º
a 4º série - que a comunidade é chamada a participar das primeiras
decisões: a prioridade e escolha sobre dois serviços que a UEAC pode
prestar, ou duas modalidades de ensino que ela pode desenvolver - a
educação pré-escolar ou o ensino supletivo. Portanto, na instalação da
UEAC, parte-se de uma proposta preestabelecida quanto a atividades
iniciais.
Entretanto, através do desenvolvimento destas atividades, ao lado de
algumas outras iniciais, o professor irá conhecendo a comunidade, suas
famílias, as atividades produtivas predominantes, as relações de trabalho, os
tipos de posse da terra, os costumes e valores.
Paulatinamente, ele irá ampliando suas atividades, sempre na perspectiva de
conhecer a comunidade, iniciar algum trabalho grupal, iniciar a discussão de
assuntos do interesse da população para decisões sobre ações a ser
desenvolvidas.
Desta forma, é o próprio ensino formal, sua proposta curricular aberta e
flexível e as questões relativas à sua instalação e desenvolvimento que irão
propiciando oportunidade para que a ação do professor ultrapasse as
atividades do ensino no sentido restrito e se estenda para além das quatro
paredes da sala de aula e do terreno circunscrito à escola e atinja,
diretamente, a comunidade em necessidades outras além das educacionais.
Na medida em que esta ação de discussão conjunta, identificação de
necessidades e problemas, escolha de prioridades e formulação e escolha
de alternativas de solução forem se desenvolvendo com a população local,
seja ela da faixa etária que for, o professor estará desenvolvendo toda a
dimensão de sua ação e verificará que ela é uma só.
O que varia são os momentos, a população diretamente envolvida, os
métodos, as atividades, mas mantém-se sempre a finalidade comum.
Num segundo momento da ação, o professor deverá refletir sobre c
conhecimento que adquiriu sobre a comunidade e reexaminar tanto a sua
proposta de ação em geral, quanto as referentes ao ensino no sentido
restrito (seus objetivos, conteúdos, métodos, atividades) e verificar as
adequações necessárias (Caldas, 1981, 26-27).

Na prática, durante o seu período diário de trabalho que vai das


7h30min às 17h, o professor de UEAC divide-se entre atividades de sala de
aula, do espaço da escola e do domínio da comunidade.
Na sala de aula, o professor desenvolve as atividades matinais de ensino
multisseriado e, no começo da tarde, oferece o ensino de pré-primário, fora
os raros casos onde a comunidade opta pelo supletivo, em geral dado à
noite. No espaço da escola, o professor desenvolve atividades de horta e
pomar, trabalha com os alunos nas melhorias do prédio escolar e organiza
reuniões e festejos. No domínio da comunidade, ele faz visitas familiares,
realiza suas pesquisas, satafação fortuna grupos e patrocina campanhas de
melhoramentos coletivos.
Uma rotina que se tornou praxe em UEACs do Litoral Norte é a
seguinte, fora as atividades regulares da manhã:
Segunda - "clube da garotada"
Terça - recuperação dos alunos com problemas
Quarta - trabalhos de horta, jardim e pomar
Quinta - visitas familiares ou incentivo de campanhas
Sexta - escrituração da escola e planos de trabalho.

Estas atividades diferenciadas são feitas entre 15h30min e 17h, depois


do trabalho diário com os alunos do "prezinho".

Alguns dados sobre as UEACs do Litoral Norte

Em março de 1982, era o seguinte o quadro das UEACs em São Paulo

Delegacias Regionais

Sorocaba
Delegacia de Ensino:
Votorantim
Apiaí

Núcleos:
Votorantim – 9
Apiaí – 17

UEACs:
Votorantim – 10
Apiaí – 20

Professores:
Votorantim – 10
Apiaí – 20

Orientadores:
Votorantim – 3
Apiaí – 4

Vale do Paraíba
Delegacias de Ensino:
Cruzeiro
Guaratinguetá
Pindamonhanguetá
Taubaté

Núcleos:
Cruzeiro – 12
Guaratinguetá – 5
Pindamonhanguetá – 4
Taubaté – 5

UEACs
Cruzeiro – 15
Guaratinguetá – 5
Pindamonhanguetá – 5
Taubaté – 5

Professores:
Cruzeiro – 15
Guaratinguetá – 5
Pindamonhanguetá – 5
Taubaté – 5
Orientadores:
Cruzeiro – 4
Guaratinguetá – 2
Pindamonhanguetá – 2
Taubaté – 2

Litoral Norte
Delegacias de Ensino:
Caraguatatuba
São Vicente

Núcleos:
Caraguatatuba – 24
São Vicente – 5

UEACs:
Caraguatatuba – 25
São Vicente – 5

Professores:
Caraguatatuba – 25
São Vicente – 5

Orientadores:
Caraguatatuba – 5
São Vicente – 2

Presidente Prudente:
Delegacias de ensino:
Pres. Venceslau
Santo Anastácio
Regente Feijó

Núcleo:
Pres. Venceslau – 30
Santo Anastácio – 5
Regente Feijó – 10

UEACs
Pres. Venceslau – 30
Santo Anastácio – 5
Regente Feijó – 10

Professores:
Pres. Venceslau – 30
Santo Anastácio – 5
Regente Feijó – 10

Orientadores:
Pres. Venceslau – 5
Santo Anastácio – 2
Regente Feijó – 3

Vale do Ribeira
Delegacias de ensino
Miracatu
Registro

Núcleos:
Miracatu – 83
Registro – 114

UEACs:
Miracatu – 102
Registro – 152

Professores:
Miracatu – 102
Registro – 152

Orientadores:
Miracatu – 16
Registro – 14
Total geral
Núcleos: 437
UEACs: 389
Professores: 389
Orientadores: 61

1. Computados os orientadores de UEAC municipais e das delegacias regio-


nais, com números totais de 46 e 1 S, respectivamente.
7. Dados diretamente obtidos na SE/Coordenadoria de Ensino do Interior.

Fiz uma pequena pesquisa junto à delegacia de ensino de


Caraguatatuba e obtive alguns dados que, embora ainda restritos, poderiam
ajudar a avaliar o sentido do trabalho das escolas comunitárias, sobretudo no
que respeita a questões de exclusão e repetência. Para que se tenha idéia
dos locais do Litoral Norte onde há UEACs em funcionamento (Ilha Belá, Ilha
dos Búzios, São Sebastião Caraguatatuba e Ubatuba - São Vicente
incorporou-se à delegacia de ensino de Santos), reproduzo aqui parte do
relatório de visita à escola feito por uma orientadora:

Bairro de Ubatumirim . . .
. . . as pessoas que moram ali são descendentes de caiçaras. As famílias são
em número de 6 a 8 pessoas em cada casa. Há casos de parentescos entre
os moradores da casa, isto para não perder os vínculo com a terra. Os
homens são ocupados na lavoura de mandioca e banana e alguns são os
que pescam. As mulheres são ocupadas na fabricação de farinha de
mandioca e também ajudam os maridos n roça. Essa farinha é vendida na
cidade e a banana é transportada par a CEASA. Neste bairro funciona uma
escola com duas salas, sendo uma de Emergência e a outra UEAC, em
prédio municipal, atendendo a 1ª, 2ª e 3ª série em um total de 32 alunos. Os
alunos que ingressam na 5ª série concluem seus estudos na EEPG Profª.
Dionísia Bueno Velloso no Bairro Perequê-Açu em Ubatuba, que é o mais
próximo para chegar até lá.
Neste bairro não há iluminação elétrica, os moradores utilizam o lampião, a
lamparina de querosene . . .
Os dados de evasão e repetência de Caraguatatuba, Ilha Bela e São
Sebastião não são muito desiguais. Variam muito de uma escola para a outra
porque, mais do que nas escolas de tempo parcial, "tudo depende do
professor na UEAC", como ouvi várias vezes. A porcentagem de alunos
promovidos é de 46,5 % em média para as 6 escolas de Ilha Bela; de 61,8%
para as de São Sebastião e de 48% para as de Caraguatatuba.
Não são índices muito melhores do que os do Estado, mas são algo
superiores aos das escolas de emergência da própria região. De acordo com
a própria coordenadora regional do programa de UEACs, é cedo ainda para
uma medida adequada dos efeitos do trabalho escolar e comunitário
realizado, de vez que algumas escolas estão no seu primeiro ou segundo
ano de integração ao sistema. Professores e orientadores acreditam que os
efeitos das UEACs sobre a evasão escolar serão inicialmente pequenos e,
com o tempo, poderão ser ampliados, sobretudo naquelas comunidades
onde a migração para as cidades maiores da região ou do Estado não for
acentuada. Os efeitos sobre a repetência (a retenção dos que não podem
"passar", porque não podem, de algum modo, "estudar") por certo se farão
sentir, sem resultados estupendos, em menor tempo. Os professores têm
esperanças nos efeitos do "prezinho" e no tempo de atendimento dos alunos
com "problemas de aproveitamento". Alguns alunos de 1ª série, saídos do
"pré", estão apresentando alguns resultados melhores. É crença
generalizada entre os professores de UEACs do Litoral Norte e do Alto
Paraíba - e certamente será também entre os do Vale do Ribeira - a de que o
professor precisar um agente de trabalho pedagógico em dupla direção. Em
um sentido, deve trabalhar com os alunos diretamente, em benefício da
comunidade. Exemplo: hortas, pomares e jardins que, feitos na escola,
seriam levados depois como exemplos "do que pode ser feito". Em outra
direção, deve trabalhar com "a comunidade" e especialmente com "os pais"
em benefício da escola, o que significa, em ;benefício de melhor
aproveitamento dos alunos. Sonhos .difíceis em escolas de emergência,
onde apenas o salário minguado pago em dobro, e um professor polivalente
e residente, autorizam a imaginar que algo pequeno, mas possível, pode ser
feito contra o marasmo desbragado da "escola rural".

Algumas observações finais

Mesmo em termos de outros países igualmente pobres e dependentes


da América Latina, nada é novo na experiência paulista das Unidades
Escolares de Ação Comunitária. Lembro um professor sozinho, isolado, em
uma escola de praia a menos de 200km da capital do Estado. Relembro
escolas para meninos indígenas na Misteca- Nahua-Tlapaneca, montanhas
longínquas de um dos três Estados mais pobres do México, com cerca de 50
professores bilíngues, residentes e treinados não em 20 dias, mas em vários
anos, para ser professores rurais e agentes de comunidade.
Mas em termos de Brasil, hoje, e em nome de sua malfadada
"educação rural", a proposta das UEACs de São Paulo é, no mínimo,
realisticamente oportuna. Os professores com quem conversei falam de
suas escolinhas isoladas - algumas aos pedaços – como "a minha escola",
com um tom de fala que é difícil encontrar em outros professores rurais: a) os
que são leigos e marginais ao sistema de educação, morando nas
comunidades de que são, não só "o professor", mas uma "gente daqui
mesmo", sem condições de fazer nada mais do que o teatro do absurdo da
sala multisseriada, com, um mestre que sabe apenas um pouco mais do
que seus alunos mais adiantados; b) os que são formados - como quase
todos os professores da rede rural de São Paulo, muitos deles com "curso de
pedagogia", que vão ao lugar da escola apenas durante o tempo "do horário
escolar".
Por que não contrapor a UEAC às incontáveis experiências de
“educações" dos programas especiais? Sejamos francos, diante da
indigência dos sistemas de redes escolares da "educação rural", ministério,
secretarias de educação e outras instituições que misturam a educação com
esta ou aquela prática social (saúde, nutrição, agricultura, desenvolvimento
rural integrado) respondem com programas especiais. Nada tenho contra
eles, a não ser o fato de que ando à espera de que um dia, finalmente, um
deles, de tanto realizar-se como um bom programa de educação, possa
transitar entre o ser especial e o ser possível.
O programa especial é a especialidade do inútil. Raros são os casos em
que eles, apesar das pesquisas custosas com que se iniciam, partem não
apenas de uma "realidade", mas da verificação antecipada de poderem
passar da sua condição especial, para as condições rotineiras e
extremamente precárias da educação costumeira. Um estudo mais honesto
poderia servir para mostrar que, em muitos casos, o "programa especial" de
educação conspira contra a educação possível. Ele serve para dar uma
dupla resposta ilusória: 1) a de que uma instância qualquer de poder sobre a
educação está fazendo alguma coisa para torná-la mais adequada,
produtiva, moderna etc.; 2) a de que o programa realiza experiências, cuja
função é provarem meios, recursos, métodos e rotinas pedagógicas que,
necessariamente generalizadas, realizarão as transformações adequadoras
da educação "não-especial".
Verbas extraordinariamente grandes, diante das que são destinadas, em
proporção, ao que fica de fora do "programa" e da "experiência", pagam o
sustento apenas do "programa" e de uma "experiência pedagógica", cuja
utilidade real costuma ser a de provar, na sua excepcional excelência, a sua
absoluta inutilidade. Como me sinto um deles, um de nós - aqueles que
teorizam, pesquisam e planejam sobre educação -, não tenho o receio de
acreditar que hoje em dia o técnico de educação vai se tornando o inimigo
do pequeno professor real, "lá na escola". É, principalmente o especialista
em criar e planejar "programas especiais", cujas idéias notáveis o realizam,
pessoal e teoricamente, em proporção inversa àquilo que, na prática,
oferecem de fato ao professor rotineiro.
Tenho feito seguidas críticas sobre como os chamados métodos
participativos, fora notáveis exceções, são um poderoso meio a mais de
tornar o "especial", sob absoluto controle de pequenas confrarias de
gabinete, parecido com algo que, finalmente "nasce das bases" e, por isso, é
não só "brilhante", como também "muito mais autêntico".
Ao contrário de programas especiais efemeramente milionários e abundantes
em Estados pobres da federação, as UEACs são uma experiência pobre do
Estado mais rico do país. Custam "um outro salário" para o mesmo
professor. Possuem uma estrutura burocrática mínima, toda ela composta de
pessoal das próprias instâncias rotineiras "da educação": coordenadores,
supervisores, treinadores. Se os seus resultados são menores - e nunca se
pretendeu que fossem imensos, nem "renovadores" de toda a educação -,
são também menos ilusórios. O seu ponto de partida é o único que me
parece verdadeiro: o professor. Trabalhar com ele, com "o mesmo professor",
o das escolas mais precárias, mais isoladas. Treiná-lo. Oferecer a ele, a um
número crescentemente grande deles, o mínimo possível de condições um
pouco mais honestas de trabalho. Deixá-lo à margem das "experiências
brilhantes", cujas teses, que, às vezes, são o seu único produto duradouro,
sequer mencionam os seus nomes. Partir da escola real, do recurso
multiplicável (não o "muito" em um mínimo de locais de "experiência", mas
"um pouco mais", em escolas generalizáveis de uma idéia possível).
São mínimos os trabalhos feitos dentro e fora da escola pelo professor-
animador de UEAC. O que poderia fazer um deles, sozinho, em uma
comunidade isolada e pobre de pescadores caiçaras, ou de lavradores
caipiras? Mas todo o trabalho é ele quem faz e o que faz a mais é pago para
fazer. Não há ali invasões súbitas de técnicos brilhantes, que elegem - ou por
escolha política de quem os controla, ou por recursos de computador - dois
ou três municípios onde se dá, um dia, a invasão ruidosa do "programa es-
pecial". Até quando as verbas - de haverem sido tantas - se esgotam; até
quando a "política muda" (o MOBRAL é mestre nisto) e tudo começa de
novo, em outro lugar, com outra "experiência".
Não alimentar esperanças ilusórias com as UEACs. Nem mesmo os seus
supervisores e professores alimentam. Tudo o que sabem é que elas são um
caminho possível de começar a fazer alguma coisa pela escola rural.
Professores de UEACs sabem e dizem que os problemas mais graves que
afetam a escola, eles próprios e os seus alunos, fazem parte de uma trama
de poderes, ordens, idéias e indigências, cujos efeitos podem ser vistos
todas as manhãs, das 7h30min às 11h30min, em qualquer escola, mas cujas
causas misturam nomes de cidades, números de cifras e assinaturas de
pessoas que ao professor e à comunidade custa muito sequer compreender.

BIBLIOGRAFIA

ANTUNIAZZI, Maria Helena Rocha, Trabalhador infantil e escolarização no


meio rural, Zahar, Rio de Janeiro, 1983.
ARIMATÉIA, Catarina, "Persistem os altos índices de evasão e repetência..."
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BAETA, Anna Maria Bianchini; ROCHA, Any Dutra Coelho da; BRANDÃO,
Zaia, "O fracasso escolar, o estado do conhecimento sobre evasão e re
petência no ensino de 1° grau no Brasil (1971-1981)" in Em aberto, Brasília
1/6(1982): 1-6.
BITTAR, Rosângela, "MEC lança projeto para alfabetizar mais rápido" in "O
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ensino, SE/CEI, São Paulo, 1981.
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elementar em dois bairros de São Paulo, FFLCH da USP, São Paulo, 1983
(tese de doutorado).
DEMARTINI, Zélia de Brito Fabri, Uma visão histórico-sociológica da educa
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FOINA, Luciana Mello Gomide, "Operação-escola: uma proposta
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Revista da Associação Nacional de Educação, São Paulo, 3 (1982 ) : 20-25.
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dade, um estudo de excluídos da escola, CERU, São Paulo, 1980.
PINHEIRO, Lúcia Marques; PIRES, Nise; OSÕRIO, Norma Cunha, "Opera-
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Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, 50/112(1968):
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s.n.t. SÃO PAULO (Estado)a, Secretaria de Educação, Resolução n. 25, de
12 de junho de 1972, s.n.t. SÃO PAULO (Estado)b, Secretaria de Educação,
Coordenadoria de Ensino do Interior, Fatores sócio-econômicos que afetam a
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SAVIANI, Dermeval, "Educaçâo brasileira: problemas" in Educação e Socie-
dade, 1(1978): 50-63.
SILVA, Luiza Afonso; SANTOS, Eronildes, A UEAC em processo, SE/CEI/
Divisão Especial de Ensino do Vale do Ribeira, São Paulo, s.d.

ESCOLA PARA O TRABALHADOR (UMA EXPERIENCIA DE ENSINO


SUPLETIVO
NOTURNO PARA TRABALHADORES)

SÉRGIO HADDAD
(Centro Ecumênico de Informação e Documentação, São Paulo)

O presente trabalho, construído a partir de partes da minha


dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Educação da Univer-
sidade de São Paulo, em 1982, fala sobre os alunos de um curso supletivo
noturno para trabalhadores, organizado pelo Colégio Santa Cruz em São
Paulo, e suas dificuldades em permanecer na escola.
O Colégio Santa Cruz, tradicionalmente voltado à educação das elites,
abriu em 1974 um curso de suplência no sentido de poder atender alunos de
outros grupos sociais, dentro de uma política de democratização de suas
oportunidades educacionais. Para tanto, vem mantendo este curso
subsidiado pelos cursos regulares diurnos.
Este curso acabou por atender aos empregados domésticos do bairro
residencial do Alto de Pinheiros, onde a escola está situada, trabalhadores
do setor comercial e financeiro dos bairros vizinhos. Pinheiros e Lapa,
principalmente.
Está organizado em 10 fases semestrais para o curso de primeiro
grau e 4 fases semestrais para o segundo. Cada fase corresponde a uma
série do curso regular,. a não ser a sétima e oitava séries e o primeiro
colegial que correspondem a 2 fases semestrais cada.
A certificação é feita pelo próprio colégio, não havendo a necessidade
de os alunos prestarem os exames do Estado.
Sou coordenador deste curso desde a sua implantação, e, ao
longo de todos estes anos, aprendi a lidar com os problemas de evasão e
repetência que sempre acompanharam a história de nossos alunos. Aprendi
a vê-los sob a ótica do educador menos avisado, que procura, pela eficácia
do processo pedagógico, tentar uma solução via escola para estas questões.
Mas também aprendi a vê-los, pela ótica do educando-trabalhador, que,
como que negando o pedagógico, revela os fatores sociais extra-escola
como responsáveis pela ineficácia de qualquer proposta de escolarização
dos grupos populares.
É a respeito desta discussão que pretendo dar conta.
Os alunos

De 1974 até novembro de 1982, quando escrevi minha dissertação,


muitas pessoas passaram pelo curso. Entram, saem, ficam anos. Alguns
ficam conhecidos pelo nome, outros pela imagem e outros passam
despercebidos. Há uma predominância de mulheres, normalmente 60% dos
alunos. É raro que possamos encontrar algum aluno que fisicamente
aparente ser criança. Apesar de ser freqüentado por jovens, a aparência é de
um curso freqüentado por adultos. Muitos são adolescentes, mas, pelo
esforço de assumirem muito cedo as responsabilidades pela própria vida,
revelam um amadurecimento precoce. Em média, têm 23 anos, mas as
idades variam de 14 a 60 anos. Quase 85% são solteiros, apesar de alguns
terem mantido vida conjugal ou serem mães solteiras.
Os alunos do curso supletivo são, na sua maioria, migrantes ou filhos
de migrantes. Trazem no corpo e na fala as marcas de outras regiões, sinais
identificadores de seu grupo social. A cor da pele, as marcas das dificuldades
da vida, a maturidade de quem foi obrigado a precocemente entrar no
mercado de trabalho caracterizam o grupo social do curso noturno de
maneira diferenciada dos bem-nascidos dos cursos regulares diurnos.
Quase dois terços destes alunos não nasceram na capital. Minas
Gerais, o interior de São Paulo, Bahia e Paraná enviam o maior ' dessa
população migrante.
Esta parcela considerável de alunos migrantes, em especial
nordestinos, marca a face da população do curso. Metade vem da zona rural.
Saíram de suas regiões em idades diferentes, por motivos diversos. A saída
se realiza de acordo com o que ocorre no momento, independentemente da
idade. Alguns vêm sós, outros com a família. z, ao Alguns são trazidos,
outros vêm por conta própria.
A ocupação dos pais desses alunos pode nos oferecer alguns dados a
mais para que possamos construir a imagem do aluno médio. Entre 183
respostas que obtivemos em pesquisa realizada em 1976, 58 pais eram
lavradores, portanto, 31,7 % . Havia ainda um garimpeiro, um tropeiro e dois
pequenos proprietários, 27 trabalhavam na construção civil (15%). Eram
encanadores, pedreiros, mestres, armadores, pintores, serventes,
carpinteiros, eletricistas ou motoristas. Dezoito exerciam serviços gerais
como guarda, zelador, garagista, faxineiro, ajudante de caminhão,
funcionário público. Alguns tinham uma pequena especialização dentro do
setor terciário como tapeceiro, tintureiro, auxiliar de escritório, auxiliar de
cobrança, policial, enfermeiro, técnico de rádio, notista. Cinco eram
operários. Nenhum dos pais dos alunos possuía curso superior.
A maioria das mães dos alunos não exercia nenhum trabalho
remunerado fora de casa. Representava 77% das 238 respostas. As demais
profissões eram: costureira (12), lavradora (6), professora (4), doméstica (4),
cozinheira (3), lavadeira, telefonista, industriária (2), faxineira, garçonete,
recepcionista, caseira, enfermeira, verdureira, embaladeira, vendedora,
massagista, manicure, atendente de enfermagem, instrumentadora,
bloquista, arrematadeira (1).

A vida em São Paulo

O que pensam os alunos sobre a vida na cidade grande? Que


dificuldades enfrentam? Quais as coisas boas?
A primeira coisa que sobressai é a diferença entre a vida desta cidade
e a da cidade de origem. O sonho da cidade grande - suas possibilidades de
trabalho e de altos ganhos, a vida de consumo de produtos de luxo -
rapidamente se desfaz no contato inicial com este mundo diferente que é
São Paulo. Viver em São Paulo não é a mesma coisa que viver no interior.
Para se viver aqui é necessária uma aprendizagem e muitas vezes ela se faz
de maneira dolorida. É necessário saber trabalhar, "ter uma profissão",
conhecer as formas de defesa, de ataque, onde encontrar emprego, como
morar melhor, sobreviver melhor etc.
Os primeiros tempos após a chegada - período de adaptação e
aprendizagem, período de encontrar emprego, tirar documentos, caminhar
pelo novo e pelo desconhecido - são momentos em que o medo, a
insegurança, a solidão, a saudade, o cansaço e a decepção são sentimentos
constantes, indo e vindo nos momentos de maior ou menor tensão.
Para os que têm parentes, a amizade e o apoio inicial são a cabeça-
de-ponte para se lançarem no novo espaço. A insegurança do novo empurra
as pessoas para as relações interpessoais de parentesco, compadrio e
vizinhança. A impossibilidade de estar amarrado a algumas associações,
algum organismo, qualquer coisa que lhes possa ajudar nos momentos
iniciais, faz com que se apoiem somente, naquilo que o conhecimento de
seus pares possa transmitir.
Os laços pessoais constituem formas amplamente utilizadas pelas
populações desprovidas de meios institucionais para atender suas
necessidades, que procuram remediar seus problemas através da ajuda
mútua.Esta é a prática dos habitantes da periferia, onde se verifica ampla
troca de favores dos mais diversos tipos entre vizinhos, amigos e parentes. É
comum a ajuda na construção das casas. É também o que se observa nas
favelas quando um conterrâneo ou parente chega à capital: aloja-se o recém-
chegado, busca-se o emprego, empresta-se dinheiro, ajuda-se a levantar o
barraco. É claro que tais expedientes existem em todas as classes sociais.
Mas são os grupos pobres que mais necessitam de uma rede de apoio
mútuo, exatamente e porque são os que menos se aglutinam em
associações reivindicativas e menor acesso têm aos recursos da sociedade
(Singer & Brant, 1980).
Porém, nem todos têm essa possibilidade. Muitos estão sós. E, é sobre
estes que as agruras desta cidade recaem de maneira muito mais intensa.
Sem onde se apoiar, buscam desesperadamente um espaço que lhes
garanta a sua identidade, seja no bar, no futebol ou entre o vigor fervoroso
da fé. A necessidade de estar junto com o '' outro é a
defesa natural daquele que procura recuperar a sua humanidade.
Assim se expressou Octavio Paz sobre este sentimento de solidão e a
reação à busca de uma nova identidade:
Todos os homens, em algum momento da vida, sentem-se sozinhos, e mais:
todos os homens estão sós. Viver é nos separar do que somos para adentrar
o que vamos ser, futuro sempre estranho. A solidão é a profundeza última da
condição humana. O homem é o único ser que se sente só e o único que é
busca do outro. Por natureza, se é que podemos falar em natureza para nos
referirmos ao homem, exatamente o ser que se inventou a si mesmo quando
disse não à natureza, o homem é nostalgia e busca da comunhão. Por isso,
cada vez que se sente a si mesmo, sente-se como carência do outro, como
solidão (Paz, 1976, 175).

Além da solidão, outros sentimentos se apresentam para esses


recém-chegados. O medo certamente é o que há de mais expressivo e,
conseqüentemente, a insegurança.
As pessoas têm medo de morar em São Paulo. "Viver é muito
perigoso." Os nossos alunos revelam com muita clareza este medo, ou
melhor, estes medos. É o medo de ser assaltado, ser violentado. É o medo
do trânsito, de ser atropelado por pessoas e veículos. É o medo da polícia,
que prende, mata e desrespeita. É o medo de se perder, não conseguir voltar
para casa, descontrolar-se em um espaço tão grande e tão diferente da sua
cidade. O medo do desconhecido desta vida, do diferente que esta cidade
mostra aos que aqui chegam.
Um destes medos se revela de 'maneira clara pela diferença de ritmo de
um lugar e outro. A agitação, o ritmo alucinante, a falta de tempo das
pessoas para se encontrarem e se revelarem contrapõem-se normalmente à
vida tranquila que tinham no interior.
A agitação e o ritmo são conseqüências das necessidades que impõe
aos que nela trabalham. O caminho da luta para sobrevivência leva o
trabalhador a uma longa jornada de trabalho, ;o tempo nos transportes e
pouco tempo de sono. Obrigados vem afastados de seus empregos, a
distribuição espacial da população acaba por reforçar as condições desiguais
existentes.
Empurrado pela especulação imobiliária, o trabalhador acaba se ando
nos cortiços do centro da cidade, nas favelas ou na chamada periferia, todos
locais com precárias condições de infra-estrutura. Morando em regiões cada
vez mais distantes, o trabalhador é a passar uma grande parte de seu tempo
nos transportes, encarecendo a sua vida, e desgastando-a pelo cansaço.
A inadaptação ao meio - conseqüência de uma cultura diferente daquela
que o imigrante traz, e da falta de conhecimento sobre o da cidade grande -
gera novas situações de insegurança.
O medo, a solidão, a insegurança, a inadaptação ao ritmo da e a
forma de vida são agravados pelas precárias condições alho a que essas
pessoas estão expostas.
Estas condições de trabalho, unidas ao tempo despendido com
transportes, a distância entre a residência e o local do emprego, mais o
período de escola, impossibilitam a essas pessoas um descanso 0necessário
à recuperação da força de trabalho.
O quadro seguinte, sobre horas dormidas, mostra claramente e
afirmação.
Quantas horas você dorme por dia?

menos de 4 15 4,97%
de 4 a 5 75 24,83%
de 6 a 7 147 48,68%
de 8 a 9 50 16,56%
mais de 9 15 4,97%

O cansaço físico diminui a resistência do trabalhador. Como ele já não


se alimenta bem, por impossibilidade de tempo ou financeira, o efeito se
torna multiplicador. Logo as crises nervosas, a estafa, a doença acabam por
aparecer.
Durante todos esses anos, aprendi a lidar com os desmaios, a falta de
ar, a dor no peito, o sufoco, reflexo da angústia de uma vida difícil de ser
enfrentada.
Diante de tantos problemas, que motivos levaram essas pessoas a sair
de seus locais de origem, e qual a imagem que aqui constaram desta época?
A saudade, uma constante nos nossos alunos, revela quanta falta fazem a
natureza, a família, o relacionamento social, o ritmo de vida, a cultura do
lugar de origem.
Desenraizados do seu espaço cultural, são obrigados a passar por um
dolorido período de adaptação, onde as recordações da vida anterior passam
a ser uma constante.
As velhas imagens da natureza, da vegetação, do ar puro, contato com os
animais se contrapõem ao mal-estar produzido esta cidade poluída, sem
espaço para o verde, fisicamente desfigurada.
A saudade da natureza se une às lembranças dos laços de solidariedade que
mantinham as pessoas unidas.
Estes laços de solidariedade se refletiam nas festas populares na
alegria e na tranqüilidade, nos passeios pelas praças e fontes, bailes e
"paparicos" de fim de semana. É a saudade do encontro entre as pessoas
que, transferidas para São Paulo, perdem-se no encontro gerado pela vida
da cidade grande.
Mas, também, não só as lembranças das coisas boas aparecem.
Imaginar o mundo anterior de uma maneira "pura" seria encarregar a ilusão
pela cidade grande como única causa para a saída do imigrante. Na
verdade, em vários depoimentos, os alunos se expressaram de maneiras
diferenciadas sobre este motivo. Alguns falam sobre problema de saúde,
outros de fatores econômicos, condições de educação escolar etc. Mas
também a atração que São Paulo exerce é considerável. Alguns
depoimentos falam sobre estes fatores com muita força.
Esta situação contraditória entre o amor e o desamor pelo local de
origem tem respostas nas causas que motivaram a saída dessas pessoas.
Os problemas revelados refletem que a construção da nova vida em São
Paulo, dolorida e amarga, obriga o migrante a, muitas vezes, matar um
pedaço de si, aquilo que ficou para trás, e ver no novo mundo quais as
possibilidades de realização do sonho na cidade grande. Na verdade, para
todos a adaptação é difícil. O que demonstram é a maior ou menor
intensidade de sofrimento nesse processo. A saudade, o medo, a
insegurança, a diferença de ritmo movem-se de acordo com o maior ou
menor apoio que recebem dos parentes e amigos. Isto, unido à estrutura
pessoal de cada determinar as respostas para suas questões de
permanência local.
Para uns, São Paulo representa o futuro, a cidade que cresce,
unidades de emprego e estudo. Para eles, a possibilidade de a de faixa
social só se realizaria aqui. Para outros, São Paulo é o momento de espera
para a volta.
Querendo ficar ou querendo voltar, a realidade de uma vida de
dificuldades estruturais para a ascensão social, conseqüência do modelo de
organização social capitalista, faz com que respostas diferentes apareçam. O
conformismo, o apego ao sagrado, as doenças de nervos, a marginalidade e
o assumir a ideologia do desenvolvimento desta cidade são algumas destas
respostas.
Na verdade, esta situação contraditória de conformismo e negação é
o resultado da própria situação contraditória que São Paulo representa para
todos. Cidade da violência, da desumanidade, da agitação, das péssimas
condições de trabalho, é, também, a cidade da possibilidade de emprego, da
possibilidade de estudo, da possibilidade contato com a sociedade moderna.
Cidade da ilusão e do desamor, é também, a cidade do recolhimento dos
deserdados do sistema, aqueles que não tinham mais condições de
sobrevivência nos locais de origem.

O mundo do trabalho

Os nossos alunos são alunos trabalhadores. Em abril de 1980,


quando realizamos uma ampla pesquisa sobre trabalho, 90,5% deles
responderam que estavam trabalhando. Dos 51 alunos que não estavam
trabalhando, 25 estavam desempregados, portanto, somente 26 alunos em
538 não participavam do mercado de trabalho. Destes 26, 22 eram donas-
de-casa e apenas 4 não precisavam trabalhar.
Os nossos alunos são alunos trabalhadores e são alunos traba-
lhadores há muito tempo. Normalmente, começaram a trabalhar ainda
quando eram crianças, pela necessidade de auxiliar na renda da família.
Praticamente 27% dos alunos entraram no mercado de trabalho com menos
de 10 anos de idade e 74% com menos de 15 anos de idade.
Começaram a trabalhar no campo, auxiliando na lavoura, ou
exercendo serviços gerais. Outros, na zona urbana, começaram como office-
boys ou no emprego doméstico. Na passagem do campo para a cidade, a
maioria, no caso das mulheres, começa como empregada doméstica e, no
caso dos homens, no trabalho de construção civil. Aos poucos vão
exercendo funções diferenciadas, auxiliados pelos contatos que as relações
pessoais vão propiciando ou então pela aprendizagem, via escola ou
treinamento, dessas funções.
Normalmente trabalham intensivamente, com longa jornada diária e
em trabalhos de grande exigência física.
Ainda por esta pesquisa de 1980, podemos identificar as ocupações
destes alunos. Uma grande parte trabalha em casa de família. Representam
28% do total. São faxineiros, arrumadeiras, cozinheiras, copeiras, babás,
motoristas, passadeiras, guardas, governantas. Alguns são praticamente
tudo isto, outros já exercem uma função mais específica. Isto ocorre,
principalmente, porque no bairro do Alto de Pinheiros, onde a escola está
situada, a divisão do trabalho ocorre de forma significativa, pelo tamanho da
casa e capacidade financeira de seus moradores.
Um segundo grupo de alunos, representando em torno de 10% do
total, é de operários, normalmente não-especializados. Na maioria são
rnontadores exercendo uma função mecânica específica. Ou então
trabalham em parte da produção final, como cortadeira, arrematadeira,
costureira etc. Muitas vezes são auxiliares diversos, como ajudante geral,
auxiliar de embalagens, acabamento de peças, faxineiros, contínuos. Poucos
são os especializados que passaram por - um processo de treinamento-
aprendizagem mais contínuo.
Um terceiro grupo de alunos trabalha no setor comercial ou financeiro,
em lojas, escritórios, supermercados, bancos etc. Podem trabalhar
diretamente na relação com o público como balconista, recepcionista,
promotor de venda ou vendedor, telefonista, informante. Outros, ainda neste
setor, fazem o trabalho de escritório. São escriturários, auxiliares de
escritório, caixas, cardexistas, compradores, secretárias, almoxarifes,
cobranças etc. Outros, ainda, são ajudantes gerais como contínuos,
vigilantes, conferentes, estoquistas, repositores de mercadoria,
ascensoristas, vigias, contínuos, office-boys, serventes, faxineiros etc.
Este último grupo é o maior, de 34% dos alunos, e trabalham nos
setores comerciais da região: Pinheiros e Lapa.
Por fim, grupos menores de alunos trabalham nos setores da
construção civil: pintor, marceneiro, encanador, carpinteiro, eletricista,
mestre; outros em hospitais, porém poucos com especialização na área de
saúde, como instrumentador, atendente, auxiliar técnico de laboratório etc.
Trabalham normalmente no setor administrativo ou de serviços. Há ainda os
que trabalham em oficinas como mecânico, pintor de automóvel, auto-
elétrico, funileiro, vidraceiro e técnico de regulagem de motores. Sem
considerar os autônomos e o pequeno número de funcionários públicos,
restam os que trabalham em pequenas unidades comerciais, ou em outras
funções como fotógrafo, barbeiro, jornaleiro, cabeleireiro, manicure, gráfico,
garçom, copeiro, balconista de bar, capoeirista e jogador de futebol.
Como podemos perceber, pessoas de ocupações diferentes, com
pequena qualificação profissional. Apesar de estarem ocupados em setores
diversos da economia, a maioria se encontra no setor terciário de prestação
de serviços.
Podemos ainda notar que poucos são aqueles organizados em suas
categorias profissionais, ou por não terem ainda seus sindicatos - caso das
empregadas domésticas -, ou por não estarem ainda sindicalizados. Apenas
11 % responderam afirmativamente se eram sindicalizados ou não.
Também uma parcela considerável dos alunos não usufruía os
benefícios sociais que o registro em carteira traz. Deles, 92 responderam que
não eram registrados, representando 22,5 °,% do total de respostas a esta
questão.
Este é o quadro do mundo do trabalho dos nossos alunos.

O mundo da escola

Nasci no interior da Bahia. Era difícil estudar. Era uma fazenda. O


prefeito da cidade é quem fornece o material escolar e outras coisas. É uma
aula precária. A professora era legal como pessoa, mas não como
professora. É diferente dos daqui. Os de lá não têm muita cultura. A minha tia
que era professora não era formada. Ela fez o primário e depois foi na cidade
e fez um cursinho que é o prefeito quem dá e prepara para dar aula. A classe
era formada de pessoas de 7 a 20 anos, desde que soubessem a mesma
coisa. Lá tem muito analfabeto e é muito difícil para a gente manter este tipo
de contato. Você tem uma relação com pessoas diferentes. Se tem interesse,
você aprende, se não tem interesse, você não aprende. Era um só professor
para dar tudo e tomar conta da disciplina. Não era separado 1°, 2º, 3º e 4°
ano primário. Era tudo junto. Ela separava turminhas que estavam
começando e outras que estavam mais adiantadas dentro da própria sala.
Até ela explicar para cada turma demorava muito. E você vai ficando parada.
Eu estudei até os 10 anos nesta escola. Eu tenho 13 irmãos. Eu tinha que
ajudar a minha mãe porque eu era a mais velha das mulheres. Eu era o
segundo filho. Com toda esta família meu pai não tinha condições de mandar
os filhos para a cidade para completar o ginásio. A cidade mais próxima da
fazenda era Ipirá e meu pai dizia assim: "Se eu não posso dar escola para
todos, eu não dou para nenhum". Então todos fizeram só o primário. Por lá
só se aprende a ler e escrever. Aí, meu irmão mais velho, quando completou
18 anos, veio para cá, para a casa de um tio. Depois de 3 anos. ele voltou lá
e eu vim com ele para cá. Aí eu vim mais com c intuito de estudar. Daí eu
comecei a trabalhar em uma casa de família. Mas só comecei a trabalhar se
eles me deixassem estudar. A eu comecei a estudar à noite no MOBRAL. Foi
a irmã da minha patroa que indicou porque ela dava aula lá. Aí ela me deu o
endereço daqui para estudar. Vim, falei com a Regina e entrei no 4° ano (Ana
Rita).
O depoimento de Ana Rita abarca, talvez, a situação por quem passou
a maioria dos alunos em termos de escolarização. Professo com precária
formação técnica, exercendo cargo por interesses políticos, instalações
inadequadas, falta de incentivo dos pais, entrada tardia na escola, classes
multisseriadas, carência de escolas, diferenciação cultural etc. são fatores
que acabaram por constar da maioria das vidas escolares dos que passaram
pelo curso.
A trajetória escolar começa em uma pequena escola isolada n campo,
com todas as turmas no mesmo espaço, uma professora cor o curso primário
incompleto e onde o aluno é obrigado a caminha por um longo período de
tempo. Aí recebem as primeiras noções de leitura, escrita e primeiras contas.
Normalmente uma boa parcela dos alunos entrou na escola com
idade superior a 6 anos. Alguns já em idade adulta.
O período de permanência desses alunos é curto, com repetências,
em especial nas três primeiras séries.
Os fatores que levaram ao abandono da escola estão ligados tanto às
baixas condições de vida dessas populações que, por motivos de renda,
trabalho, saúde, ou migração, são obrigadas a uma inconstância permanente
na escola, quanto aos fatores ligados ao precário serviço educacional que é
oferecido a essas populações.
Após a saída do aluno da escola, ele só irá retornar, normalmente, na
idade adulta. Muitos entraram no supletivo do Colégio Santa Cruz após um
período de ausência de mais de 10 anos.
Este entra-e-sai do aluno na escola, esta sistemática exclusão
diminuem consideravelmente a capacidade de desenvolvimento de
determinadas habilidades que se fixam pela prática. A habilidade de ler e
escrever, bem como a capacidade de utilização das operações matemáticas
fundamentais exigem um perseverante empenho por parte do educando no
sentido de sua fixação. Ou essa fixação se faz pela escola, ou ela se faz pela
vida, através do trabalho e das solicitações que uma sociedade de letrados
impõe ao indivíduo. Ora, como a maioria dos alunos vem de um mundo rural,
onde este tipo de solicitação é bastante precário, a possibilidade de
regressão do aprendido na escola é elevada. Muito se perdeu pela falta de
prática. Os anos de ausência após o abandono pesam significativamente na
adaptação do aluno quando retorna. Mesmo quando se dirige para zonas
urbanas , o seu trabalho, período maior de ocupação do indivíduo, ~ouco a
habilidade de ler, escrever e contar, colaborando ainda mais para o processo
de regressão.
Quando os alunos permanecem na escola, mesmo aqueles que pouco
tempo por ela, acabam por carregar a marca de uma autoritária,
discriminatória e desaculturada do contexto local. Conseqüência disso: o
desinteresse, o medo da perseguição e a passividade.
Há assim, em termos de escolaridade, um histórico que marca aluno
pelo seu despreparo, dificultando o processo de retorno. Chega assustado,
com medo de ocupar o espaço escolar, inseguro de sua capacidade de se
escolarizar, insegurança esta calcada ao longo de um processo de constante
exclusão e desvalorização. Chega identificando em si, em sua incapacidade,
e em sua "burrice" a culpa pelo atraso escolar. Isto se revela no constante
silêncio de aula, no medo de andar pelos corredores, de perguntar, de se
informar. É ainda um aluno mal preparado para o desempenho escolar.
Como a sua experiência anterior foi sempre de baixa qualidade, com
professores despreparados, sem material didático, que, quando existiam,
revelavam-se inadequados, suas habilidades necessárias ao bom
desempenho escolar acabam sempre sendo pouco desenvolvidas. Chegam
mal-alfabetizados, com pouco treino manual, dificuldades de raciocínio e com
muito poucas informações.
Mas nem sempre a situação é igual para todos. Em alguns casos, os
alunos tiveram a escolaridade regular nos primeiros anos e depois
abandonaram por outros motivos que não o de ordem econômica. Isto pode
se dar por motivos de casamento, desinteresse, falta de incentivo etc.

Escola e trabalho

Haveria uma relação direta entre trabalho, escola e ascensão social?


Acredito que sim. Para muitos, o sonho da mudança social via escolarização
é fato. Quase todos respondem que estão estudando para "melhorar de vida"
e neste melhorar de vida quase sempre está referida uma mudança salarial.
Mas dizer que o aluno sempre busca a escola por isso é, no meu
entender, limitar as possibilidades da escola. A nossa observação tem
mostrado que o nosso aluno, de fato, vê na escola uma forma de obter
melhoria salarial, mas não de maneira iludida, como muitos podem pensar.
São poucos os que acham que podem ser doutores. O que querem é uma
melhoria salarial, e, isto, de fato, é possível via escola. 30 ou 40 cruzados em
um salário de 100 têm uma importância significativa e a escola pode
contribuir nessa mudança. Aos nossos olhos, porém, isto pode parecer
pouco.
No entanto, a escola pode ser muito mais. Ela é, na verdade, um
grande espaço social de convivência daqueles que são sistematicamente
desumanizados pelo trabalho, pelo isolamento e por suas condições de
existência. É, também, um local de fala dos que não têm voz no dia-a-dia; de
participação daqueles acostumados a obedecer; de encontro dos
desencontrados, de saber das coisas do mundo dos que foram afastados da
possibilidade de parte deste conhecimento.
Vejamos o caso dos empregados domésticos:
O trabalho em casa de família é aquele que menos respeito tem pelo
horário. Renegado muitas vezes pelos próprios donos das casas, a
empregada assume a responsabilidade deste trabalho do momento que
acorda até a hora da saída, hora esta determinada quase sempre como se
fosse uma concessão. De todas as categorias profissionais, é esta aquela
que maior tempo despende no trabalho.
Além desta quantidade diária de trabalho, a folga nos fins de semana
é rara e inconstante. Além do mais, os benefícios sociais só recentemente se
estenderam, e apenas em parte, a essa categoria. Mesmo com direito a
carteira assinada, a INPS e férias anuais, não possuem o Fundo de Garantia
por Tempo de Serviço, um salário básico mínimo e o 13 ° salário. Não
possuem sindicato, somente associações. A organização por categoria é
extremamente frágil e, conseqüentemente, a capacidade de defesa de seus
interesses também.
Como sempre moram no local de trabalho e isto, além de não permitir
o limite da diferenciação entre o que é trabalho e o que é tempo pessoal, traz
dificuldades significativas na profissionalização da própria categoria.
Morando na mesma casa, a empregada trabalha e vive nela sem jamais
usufruí-la. Não pode mudar os móveis de lugar, arrumá-los ao seu gosto,
convidar os seus amigos para frequentá-la e mesmo andar como queira. O
espaço de relativa liberdade acaba sendo o seu quarto de dormir, que quase
sempre passa por vistorias permanentes. A comida que recebe é a comida
de gosto dos patrões, quase nunca podendo se diferenciar e, muitas vezes,
limitada em quantidade e qualidade. O contraditório nisso tudo é que a casa
e a comida quase sempre entram como critério no rebaixamento do salário.
A empregada doméstica quase nunca optou por sua profissão. Pelo
contrário, quase sempre a renega, escondendo sua condição e muitas vezes
não permitindo o registro em carteira. O não-reconhecimento do valor
profissional pela categoria, na verdade, é um reflexo do próprio não-
reconhecimento da sociedade. Entra para o trabalho de doméstica por não
ter outra opção, pela falta de qualificação técnica ou porque com o salário
que obteria em outra ocupação não a poderia pagar as despesas de casa,
comida, transporte etc. Na verdade, renegado inclusive por aquele que o
contrata, o trabalho doméstico acaba sendo sempre considerado pela
empregada como transição para uma outra ocupação.
Se para a patroa o trabalho doméstico muitas vezes é considerado
como limitante, de estreitamento da capacidade de compreensão do mundo,
além de ser extremamente desgastante e pouco criativo, para a empregada
é muito mais. Fechada intensivamente no mundo da casa, sem acesso aos
meios de comunicação de massa, o mundo exterior passa a ser cada vez
mais desconhecido. Distante das outras categorias de trabalhadores,
individualizada na relação com o patrão, convivendo intensivamente com a
família para quem trabalha, pouco pode a empregada doméstica no sentido
de criar uma consciência de categoria. Além do mais, a afetividade que
muitas vezes acaba se desenvolvendo nessa relação de trabalho marca
ainda mais esta impossibilidade. Considerada como um membro da família,
desenvolve com ela laços de afetividade muito fortes, amortizando a
consciência da exploração na relação de trabalho.
Isolada do mundo, distante da família, convivendo com pessoas de
outro grupo social, que a consideram normalmente apenas por sua
capacidade de trabalho, a empregada doméstica vê na escola não somente
o local de instrumentalização para mudança de categoria de trabalho, mas, e
principalmente, um local de reencontro com o mundo. Um local de
convivência com seus pares, de desabafo dos problemas do dia-a-dia, de
suprimento da afetividade.
Também os operários vêem na escola este espaço de convivência
social.
A realidade da fábrica é a realidade da mecânica do exercício
profissional e a realidade do silêncio. Formado tecnicamente pelo
treinamento, o operário pouco vê de útil em um curso de suplência para o
seu desenvolvimento técnico, a menos que trabalhe no setor administrativo,
ou pretenda mudar de ocupação. Mas a escola de suplência pode ser o
contraponto do silêncio da fábrica, o contraponto criativo da mecânica do
exercício técnico profissional, o espaço de informação sobre parte das coisas
do mundo.
No setor comercial e administrativo, o trabalhador, na maioria de suas
funções, tem necessidade de desembaraço no falar, em se comunicar, além
de desempenho na habilidade de ler, escrever e contar. A escola, espaço de
convivência, seja em sala de aula, seja no trabalho extraclasse, é um local
privilegiado no desenvolvimento da capacidade de relacionamento,
organização e participação, atitudes fundamentais num processo de
mudança social, através do local de trabalho ou de outros locais de
organização social, como o bairro, a comunidade, o sindicato etc.
Esta é a vida de nossos alunos. Uma vida ocupada em grande parte
pelo trabalho e pelo estudo. Nos fins de semana, muitos ainda ocupam o
tempo com o trabalho (10%). Grande parte passa o seu tempo em casa,
descansando, vendo TV, trabalhando nos afazeres domésticos que ficaram
para trás e estudando. Poucos se ocupam com leituras ou trabalhos
manuais, como tricô, artesanato e costura. Quando saem, vão principalmente
ao cinema, atividade preferida por 16% dos alunos. Também se ocupam em
passear, praticar esportes, principalmente o futebol, fazer visitas aos amigos
e aos parentes, ir a festas e bailes. Alguns vão à igreja ou viajam. Para
aqueles que podem deixar de trabalhar no fim de semana, seja em casa ou
na empresa, os fins de semana são dedicados principalmente ao lazer, ao
estudo e ao descanso. Passear nos parques, na cidade, visitar algum amigo,
voltar para a casa dos parentes, descansar e dormir para enfrentar uma nova
semana, lavar e passar a roupa, limpar a casa, fazer a feira, estudar,
trabalhar, ir ao baile, namorar, assim se ocupa a maioria.
Para essas pessoas, as informações chegam principalmente pela
escola e pela sua prática de vida na luta do cotidiano pela sobrevivência. O
limitado tempo disponível no dia-a-dia para o reconhecimento das coisas que
o mundo do trabalho não oferece leva-nos a crer que poucos são aqueles
que só vêem na escola o local de absorção de um conhecimento
instrumental para sua ascensão social. Mais do que isso, a escola é um
espaço de veiculação de um conhecimento sobre a vida, que ultrapassa o
limite restrito da questão profissional. É o conhecimento sobre as coisas do
mundo, que pode contribuir para entender o que é veiculado pelos meios de
comunicação, para compreensão da realidade desse cotidiano, para a
segurança na fala dos que nunca têm voz, para a segurança na ação dos
que nunca participam.

Evasão e repetência

Dados e números
Da mesma maneira que apareciam na escola, trazidos por "eles
mesmos", sem que soubéssemos de onde vinham ou como chegavam, s
saíam. Iam e vinham. Sumiam e apareciam anos depois. m, faziam
matrícula, saíam, não falavam nada. Quando nos dávamos conta, aquela
pessoa, muito próxima, que sempre passava pela secretaria ou pela minha
sala para dar um alô, havia desaparecido.
A princípio, nos preocupávamos muito com a questão de evasão.
Tentávamos de todas as maneiras controlar e baixar seus índices. Aos
poucos, porém, fomos percebendo nossa importância. Pode parecer uma
loucura, mas a realidade é que o nosso limite de interferência nas causas da
evasão era tão pequeno, que o grande esforço a adequar o curso ao aluno
tem como resultado um limito no aumento da permanência deste na escola.
Nos anos iniciais de funcionamento do curso, a questão da evasão
sempre nos aparecia como uma certa incapacidade de "acertar o curso".
Sentíamo-nos culpados por uma boa parte dos nossos alunos saírem, e, o
que é pior, sem dizerem por que isto ocorria. Identificado o nosso limite de
atuação, fomos nos acostumando com as classes cheias de começo de ano
e com as meias turmas no final de semestre, com o pátio superlotado para o
cafezinho do intervalo e o seu pequeno movimento ao final do semestre
letivo; no princípio; algumas cadeiras a mais nas classes organizadas para
36 lugares e; no final, carteiras vazias.
Em média, ao longo de todos esses anos, 23,27% dos aluno;
desistiram a cada semestre do curso e 13,41 % repetiram, chegando a um
total de 36,68% de alunos que não prosseguiram de maneira contínua os
seus estudos. Em alguns semestres, este índice ultrapassou os 40 % ,
chegando a 48,72 % no 1 ° semestre de 1975. O menor índice, a partir do 2 °
semestre de funcionamento do curso, foi atingido no 1.° semestre de 1978.
Como podemos perceber por estes dados, os alunos foram se
atropelando, alguns caindo como pingentes, outros sendo reprovado.
Conosco, foi crescendo a consciência da nossa incapacidade de altera este
ciclo de forma significativa. O nosso trabalho esbarrava nos limites dos
fatores externos à escola.
Ao longo de todos estes semestres, para um total de 1.566 aluno de
todas as fases, 383 evadiram no 1.° semestre de permanência 234 no
segundo semestre. Isto nos indica que 4 entre 10 alunos saem antes de
completar um ano de permanência no curso.
Ora, considerando o fato de que isto ocorreu sempre, por semestre e
por fase, podemos levantar duas hipóteses: ou a escola ruim e nosso
trabalho não surtiu nenhum efeito ao longo de todos estes anos, ou este alto
índice de evasão é provocado por questões outras, para além de nosso
controle. Prefiro ficar com a segunda hipótese, mesmo que me digam que
isso é questão de opção, que toda hipótese tem que ser provada. Só se
prova aquilo de que não se tem certeza.
Os dados sobre repetência nos informam que para os mesmo 1.566
alunos, em média, 25,22% são reprovados pelo menos uma vez. É verdade
que há um peso maior desta repetência no 1º semestre do aluno na escola
(8,88%). Mas ela não cai de maneira significativa ao longo dos semestres
seguintes, o que indica que esta repetência, distribuída ao longo dos
semestres de permanência c aluno, não tem como causa fundamental a sua
inadaptação à escola.
Enquanto o índice de evasão permanece praticamente o mesmo para
todas as fases, o índice de repetência tem uma nítida queda da 2.a até a 7.a
fase. Isto nos comprova que a saída do aluno da escola não depende da
fase em que se classificou, e nem está condicionada ao tempo que ele teria
para concluir o curso, mas sim aos fatores externos. A queda nos índices de
repetência pode atestar o fato de que o aluno que entra nas fases mais
elevadas tem melhores condições de acompanhar o curso. Isto nos leva a
acreditar que os oito semestres e meio em que está organizado o curso são
insuficientes para uma parte dos alunos atingir os objetivos propostos,
criando-se a necessidade de fazer o mesmo semestre mais de uma vez.
Finalmente, temos o significativo dado segundo o qual, dos 1.566
alunos de todas as fases, 1.336 (85,31%) ou evadiram ou repetiram pelo
menos uma vez: apenas 230 alunos conseguiram chegar à 8.a fase sem
evasão e repetência.
Podemos verificar que a possibilidade de um aluno chegar à 8ª fase e,
conseqüentemente, obter o seu certificado de 1° grau é muito menor para os
que entram na 2ª fase do que para os que entram na 7ª fase. Apenas 1,90%
dos alunos de 2.a fase obtêm o certificado de maneira contínua, crescendo
este índice para 29,94% em relação aos alunos classificados em 7.a fase.
O gráfico 1 exibe os índices de evasão e repetência média por fase,
do 1.° semestre de 1974 ao 1° de 1982. É interessante notar que há um
acréscimo considerável destes índices na 5ª e na 7ª fase I, justamente onde
há mudanças na estrutura do curso, fases que vêm a ter um número maior
de professores e passa de uma orientação mais próxima do aluno para um
tratamento menos individualizado. Este acréscimo de evasão e repetência é
compensado nas fases seguintes, 6.a e 7.a fase II respectivamente, com
quedas nos índices.
Todos estes dados, construídos ao longo destes anos, nos revelaram
um quadro dramático. Fomos percebendo que:
a) ao longo do curso, muita gente saiu e muita gente ficou reprovada;
b) a maioria dos que saíram o fizeram nos 3 primeiros semestres de
freqüência;
c) esta saída foi independente da fase que os alunos frequentam;
d) há índices maiores de evasão e repetência nas fases onde há
mudança na estrutura do curso, cuja causa, portanto, está ligada a fatores
internos ao curso;
GRÁFICO 1.
GRÁFICO 2.

e) não havendo significativos decréscimos nos índices de e são e


repetência ao longo de todos os semestres de todos os semestres do ano, o
fato demonstra a pouca influência dos fatores internos, em detrimento dos
externos, como causa da saída do aluno. (gráfico 2);
f) os índices de repetência que se acumulam ao longo dos semestres,
distribuídos de forma equilibrada, levam-nos concluir que eles estão muito
mais ligados a dificuldades de acompanhar o curso no prazo de tempo
estabelecido exigindo, num ou noutro semestre, a necessidade de refa zê-
lo, do que propriamente a uma inadaptação do aluno à escola;
g) os alunos classificados nas fases superiores têm mais possibilidades de
concluir o curso por permanecerem menos tempo na escola e
conseqüentemente menos tempo expostos a causas externas da evasão.

Bem ou maldotado?

Para muitos dos que pensam a questão educacional no Brasil, a


sociedade é justa, dinâmica e aberta! Existem pequenas diferenças de berço,
é verdade; mas com dedicação, trabalho e esforço próprio o caminho do
sucesso e da ascensão social está aberto. Aquele que não conseguir, ou é
vagabundo, ou é incapaz. A incapacidade é justificada pela natureza de cada
um e as diferenças sociais pela natureza das coisas. Alguns nascem de um
espermatozóide de baixa qualidade e aí é difícil a promoção. Outros se
realizam de forma mais fácil pela qualidade da semente da qual germinam. A
mudança sempre é uma mudança individual, baseada num esforço pessoal.
Esta mudança ocorre com a capacitação do indivíduo e quem fornece isso é
a escola.
Os dados e os números anteriores sobre evasão e repetência
unidos ao comentário acima, podem nos levar a crer que uma grande
parcela dos nossos alunos é maldotada. Seria uma realidade? Será
que uma parte da população brasileira, nascida de uma semente de
qualidade duvidosa, estará sempre condenada à marginalidade do sistema
educacional e, dentro da mesma linha de análise, à marginalidade
econômica e social?
Não creio. E acho que poucos acreditariam. No entanto, graças aos
consideráveis fracassos escolares da maioria da população o indivíduo é
responsabilizado por seu insucesso, encobrindo, desta forma, a
responsabilidade social. Aparentemente, o Estado, ao democratizar as
oportunidades educacionais pela extensão de vagas a amplas parcelas da
população, cumpre o seu papel. Neste caso, se a escolaridade não foi obtida
pelos grupos populares, aos olhos dos dominantes, a responsabilidade está
no próprio indivíduo que é um maldotado ou vagabundo.
A crença de que a incapacidade das pessoas provocaria resultados
insatisfatórios no rendimento escolar é reforçada por um aparato de teste de
inteligência que mede pessoas com histórias de vida diferentes de maneira
igual. E, o que é pior, marca esta diferenciação como definitiva.
Poderia a diversidade de atitudes intelectuais ser explicada única e
exclusivamente por uma diversidade na natureza das pessoas, herança
adquirida de pai para filho, em um circuito constante de transmissão de
dificuldades? Não parece ser esta a realidade na opinião de Lucien Sève:
...a diversidade de atitudes intelectuais não é de todo consequência
fatal da diversidade de dons biólogos têm naturalidade alguma incidência no
desenvolvimento psíquico, são as condições sociais deste desenvolvimento
as que decidem tudo (Sève, 1978,17).
O que significa isto? A atitude intelectual dos indivíduos se revela de
vários modos, ao longo de suas vidas, na prática diária de sua luta para
sobreviver. Revela-se no modo como trabalha, como realiza determinadas
tarefas, como soluciona determinados problemas. Foi construída lentamente,
observando, praticando, experimentando.
O que proporciona esta capacidade? Em primeiro lugar, uma estrutura
biológica inata e hereditária. Em segundo lugar, e principalmente, a
possibilidade que sua história de vida lhe ofereceu para desenvolver
determinadas funções que fazem deste sujeito um ser mais ou menos capaz
de realizar esta ou aquela tarefa.
Ora, se maioria fracassa na escola, isto não ocorre em outros
aspectos de suas vidas, no trabalho, na família, no bairro, na capacidade de
ser solidário e de se revelar sensível.
Certo discurso sobre o fracasso escolar muitas vezes acaba por fazer
tábula rasa desses vários aspectos, tomando o aluno como objeto de
classificação entre aqueles que são bem e aqueles que são madotados.
A convivência com os nossos alunos nos desperta sistematicamente
para a questão de que este fracassado na escola é, ao mesmo tempo, um
vencedor na vida. É aquele que conseguiu, apesar das precárias condições
de desenvolvimento a que foi submetido, adquirir atitudes e sabedoria
suficientes para se manter digno e confiante na vida.
O desempenho intelectual para a tarefa escolar também é
desenvolvido dentro de determinadas condições sociais. É a relação
que este indivíduo terá com o meio que o capacitará para um melhorou pior
desempenho na tarefa escolar.
A estrutura mental inata deve ser atividade pelos estímulos que
socialmente uma pessoa recebe.
Considerado em sua estrutura anatômica, o cérebro não é senão
possibilidades que não se revelarão senão por ativação: manobra e inte
ração de ondas de influxos nervosos nos diversos setores do sistema
nervoso. Não são os dons biológicos do nascimento, mas o conjunto de
atividades sociais do indivíduo o que determina esta ativação (Sève, 1978,
21)
Se a pessoa fosse bem ou maldotada naturalmente, não haveria a
necessidade de qualquer ativação por parte do meio social.
Michel Ramuz, em um interessante artigo sobre biologia e educação,
afirma que há uma relação de dependência entre a estrutura inata e a função
desempenhada:
Pode-se dizer que uma estrutura inata (a visão) depende também do uso que
ela tem (a vista) (Ramuz, 1978, 33).
Como decorrência desta constatação, avalia o uso do sistema
nervoso superior como dependente essencialmente do meio ambiente do
ser vivo. Estes efeitos, segundo Ramuz, são mais claros nos jovens que nos
adultos.
A capacidade de modificar-se que tem o cérebro do animal jovem é
claramente maior que o cérebro do adulto ( . . . ). No caso da criança a
maturação do cérebro durará anos, principalmente durante os importante
anos da aprendizagem do caminhar, da linguagem e das relações com
sociedade; quer dizer, durante os anos mais importantes para o futuro
da criança. É justamente durante estes anos que a influência da função
é maior no estabelecimento da estrutura (Ramuz, 1978, 34).
Estas afirmações me questionam sobre como interpretar os casos dos
alunos com baixos desempenhos nas tarefas escolares. Ao longo de toda a
sua vida, em especial no período da primeira infância teriam as condições do
meio ambiente desenvolvido funções adequadas ao bom desempenho do
trabalho escolar? As atitudes intelectuais necessárias para o trabalho da
leitura, escrita, cálculo, comunicação oral etc. teriam sido suficientemente
desenvolvidas pelos estímulos do meio ambiente que esse aluno recebeu?
Não creio. Em um mundo de linguagem essencialmente oral, onde os
códigos da leitura e da escrita são pouco utilizados e onde o ambiente fami-
liar transmite a sua cultura por mecanismos outros que não os que a escola
veicula, certamente a criança deixará de ter os estímulos necessários.
Por outro lado, não podemos encarar este aspecto como único fator
explicativo para o bom ou mau desempenho escolar. E, tampouco, o mau
desempenho escolar como o único fator explicativo do elevado índice de
evasão e repetência. Talvez sirva para explicar uma parte das reprovações e
uma pequena parte das evasões. Mas, certamente, imputar-Ihe toda a
responsabilidade seria um erro grosseiro.
Ora, os fracassos escolares, determinados na relação entre o
indivíduo e a escola, podem ser explicados em parte pelos aspectos do
indivíduo que aqui foram mencionados. Mas também, sendo uma relação,
existe o outro lado da moeda, ou seja, a escola. Por fim, e em última
instância, existem as condições sociais que acabam condicionando o
indivíduo à escola e impedindo que esta relação entre indivíduo e escola seja
uma relação de qualidade.

Fatores internos ao processo escolar

A escola é o nosso elemento de controle. É ela a variável que, nesta


relação entre indivíduo e escola, nos dá maior condição de ação no sentido
de diminuir os efeitos sobre o fracasso escolar.
Mesmo assim, muitos fatores acabam por levar o aluno a ser
reprovado, ou a desistir de suas intenções de permanecer na escola. Um
fator que influi de maneira considerável na saída do aluno, sem retorno, sem
aviso, sem deixar pistas, é a questão do pagamento. Muitos, passando por
dificuldades financeiras, tinham vergonha da sua condição e, para evitar que
este fato viesse à tona, abandonavam o curso. Depois não retornavam,
condicionados aos esquemas que a sociedade impõe ao indivíduo que não
paga suas dívidas, e que - achavam eles - seriam impostos a eles pelo
colégio.
Várias vezes, os professores do curso ou eu encontrávamos com
alunos que se tinham evadido e que diziam que só não voltavam por falta de
condições financeiras. Quando dizíamos que isto não tinha problema algum,
voltavam e prosseguiam o curso.
Outros fatores internos ao próprio curso acabam por fazer com que o
aluno saia: a repetência, problemas disciplinares nas classes, briga com
algum professor etc.
É comum acontecer de haver índices maiores de evasão nas classes
onde a presença de adolescentes é maior. Não de qualquer adolescente,
mas de um tipo específico, normalmente não engajado no mercado de
trabalho, e que, por questões outras que não de suas condições financeiras,
abandonou a escola e depois procurava recuperar o tempo perdido. A sua
própria condição financeira diferenciada já é um fator que interfere na
questão disciplinar, pois, estando em fase de afirmação da sua
individualidade, usa de sua condição para se destacar dos demais. Muitas
vezes, são alunos que têm empregadas domésticas em suas casas e que
mantinham a mesma postura de patrão na sala de aula junto com suas
colegas. Outra: vezes, a agitação e a infantilidade desses alunos, que ainda
não tinham sentido a precoce responsabilidade de ter que ganhar a vida
como seus companheiros, davam um clima de extrema tensão e insatisfação
entre as pessoas mais velhas. Esse tipo de pessoa, que já tem certa
dificuldade em acompanhar as aulas, depois de um dia intenso de trabalho,
muitas vezes à menor interferência acaba ou se evadindo ou explodindo de
uma forma fora do normal.
Uma de nossas alunas era um exemplo destas "bombas humanas".
Ao menor ruído, à menor brincadeira, ao menor desviar de atenção, tornava-
se extremamente agressiva para com os companheiros, professores e
funcionários. Era vendedora e trabalhava no Mappin. Passava o dia fechada,
respirando um ar intolerável, com milhares de pessoas circulando à sua
volta, perguntando coisas, pedindo conselho, solicitando mercadorias,
exigindo a nota com urgência, reclamando do preço, da demora, do calor e
da vida. Saía e tomava o ônibus superlotado até chegar ao colégio. Tomava
um lanche rápido no bar, pegava as suas coisas e procurava, nos pouco
minutos que restavam para o início das aulas, ler e estudar. Imaginem o que
um adolescente, cheio de saúde, que viu televisão até altas horas e acordou
ao meio-dia, bem-alimentado e bem-descansade, pode provocar como efeito
incendiário!
Mas, em alguns casos, a atitude destes mais velhos com os
adolescente o é explosiva. Muitos acabam sendo "adotados" pela classe que
os trata como mais novos. Recebiam conselhos e eram repreendidos. Eram
valorizados em suas características e muita; i representando a classe em
competições que exigiam a habilidade e o desembaraço físicos.
Apesar de tudo, a agitação provoca considerável desequilíbrio
emocional, que acaba produzindo uma tendência maior à evasão na classe.
Outro fator interno ao processo escolar que propicia a evasão e está
também diretamente ligado à história escolar anterior do aluno e à sua tênue
condição emocional são os atritos que ocorrem entre eles e professores.
Tivemos um caso no qual o aluno, por discordar de uma avaliação, deixou de
freqüentar aquela matéria até o final do semestre letivo, sendo reprovado.
Sabia da sua situação, sabia das conseqüências de seu ato, mas disse que
jamais voltaria atrás na sua posição. Muitas vezes, uma palavra mais ríspida,
uma resposta atravessada, um olhar mais severo, um não responder a uma
pergunta provocavam a saída dos nossos alunos. Eu disse que este fato
estava diretamente ligado à história escolar anterior, porque normalmente a
escola foi uma escola violenta, onde a marca das perseguições de
professores, ou por castigos corporais ou por notas, é a tônica do dia-a-dia.
Eu atendi a vários casos de alunos que tinham tido atritos com professores e
que vinham manifestar a sua insegurança por uma perseguição futura.
Sabiam que, uma vez acontecido o fato, só lhes restava abandonar o curso,
pois a iminência reprovação como castigo por sua atitude era grande,
baseada nas experiências escolares passadas.
Assim, a reprovação nem sempre era entendida pelo aluno pelo u
motivo pedagógico. Realmente, um número considerável de alunos
identificava sua reprovação como conseqüência de algum atrito ocorrido
entre eles e o professor.
Por fim, como fator interno ao próprio curso, e como causa da evasão
e repetência, está a inadaptação do aluno ao curso ou do curso à média dos
alunos. Uma classificação malfeita dos alunos ao ingressarem na escola
pode propiciar uma inadaptação, ou por estarem sentindo muita facilidade no
que estão estudando, ou, ao contrário, por estarem sentindo dificuldades
insuperáveis. Os conteúdos nem sempre dizem respeito àquilo que sua vida
pede.
A realidade da prática diária escolar traz para a terra os sonhos de
quem via na escola o caminho para superação da sua condição social. Os
limites do papel da escola nem sempre podem ser compreendidos.

Fatores externos ao processo escolar


Francisca entrou no curso em 1978. Foi uma entre tantas empregadas
domésticas que entram sem que possamos distingui-las entre tantos alunos
que freqüentam o curso. Aos poucos fui tomando conhecimento de sua
personalidade. Menina-mulher, era infantil no relacionamento afetivo. Muitas
vezes chorava ou ria muito em resposta a fatos de sua vida dentro da escola.
Usava um longo cabelo amarrado com uma fita, em forma de rabo-de-cavalo.
Nas aulas de educação física, quando corria, seu cabelo voava solto dando a
impressão de ser um animal que havia conquistado a liberdade. Corria
alegre, divertia-se muito com a bola, caía, gritava, chorava.
A história de Francisca não difere muito da história de colegas
suas. Nasceu no interior baiano. Seu pai era lavrador e sua mãe cuidava da
casa. Entre os quinze e os vinte anos veio para São Paulo, junto com os
irmãos, tentar uma vida melhor. Morava em quarto alugado na região do Rio
Pequeno. Quando aqui chegou, já havia alguns parentes, que serviram como
apoio para sua permanência inicial. Determinaram a região, que moradia
ocupar, onde encontrar um "bico" inicial, a questão dos documentos etc.
Aos poucos, Francisca foi se encaminhando para o emprego
doméstico. Com isto poderia ter onde morar durante a semana, desafogando
o pequeno quarto de aluguel. Conseguiria boa alimentação, muitas vezes
roupas e um salário suficiente para ajudar nas despesas da vida do Rio
Pequeno, enviar um pouco para seus pais, e ainda ter algum dinheiro para
os passeios e as compras no Largo de Pinheiros e na Teodoro Sampaio. Seu
irmão tinha emprego em uma obra, como vigia.
Francisca havia freqüentado menos de dois anos de escola. Entre os
10 e 12 anos estudara em uma escola em precárias condições na roça,
que lhe dera algumas noções da técnica de leitura e escrita. Quando chegou
para a prova de classificação, em sua entrevista declarou que sabia ler e
escrever "só um pouquinho". Foi encaminhada para o segundo ano primário.

Ao entrar, a escola era o caminho para sua mudança da condição de


doméstica para a de balconista, secretária, auxiliar de escritório etc. Estudar
e estudar muito para "mudar de vida". Ser doméstica enquanto fosse
necessário.
Aos poucos, o espaço da escola foi fazendo de Francisca uma pessoa
diferente. Da indiferença entre tantos outros colegas, foi se mostrando mais
solta, brincalhona, conversadora com os rapazes, as colegas e os
professores. Amava a escola de uma forma muito especial. Amava a escola
porque ela representava a possibilidade perdida na sua vinda para São
Paulo de ser a menina que foi na Bahia e que não encontrava nem na sua
vida no Rio Pequeno e nem em qualquer casa de família onde fosse
trabalhar. Sentia-se livre, bonita, querida.
Mas a sua história já estava determinada. Deveria se casar com o
primo, amigo da família, pessoa responsável e conhecida. Seus pais se
sentiriam mais seguros na distância que mantinham com São Paulo.
Vivia ela então no dilema de três mundos. O mundo do Rio Pequeno,
mundo ocupado pelo namoro forçado, pela lavagem de roupa do irmão, pela
arrumação da casa e pela comida feita na pequena boca de fogão do quarto
de aluguel. Era o mundo que lhe informava a vida do futuro, vida de tantas
que passam por esse caminho.
O mundo da casa de família, do emprego doméstico, era o mundo de
transição. Era o mundo de servir aos outros. O mundo da contraposição
entre os que tudo têm e os que nada podem ter. Era o mundo do silêncio,
muitas vezes imposto até entre as colegas de trabalho. A transição para uma
nova forma de vida e que poucas conseguem realizar.
O terceiro mundo era o da escola. O mundo que lhe permitia
reconstruir em São Paulo a possibilidade de ser amada e querida como
antes. O mundo que lhe permitia viver a alegria de se sentir uma pessoa livre
e participante, que lhe permitia obter o instrumento necessário à mudança da
sua condição de vida de doméstica, e dela faria uma mulher livre, bem-
empregada e participante.
Estes três mundos estavam em conflito. Criavam muitas vezes ia
angústia que ela superava pela força que o destino exercia. O seu destino
estava marcado, mesmo não sendo o destino com que ela sonhava. Mas a
verdade era que sua vida deveria ser servir ao seu homem, confiar e dedicar-
se à família, cuidar dos filhos.
E foi justamente pelo filho que a coisa começou a mudar. Um dia
Francisca ficou grávida. O casamento foi marcado. Tirar o filho jamais. O
destino começava a se realizar. Ninguém aceita ia empregada doméstica
grávida. Além do mais, para o seu homem, mulher deve servir ao lar. Há
muito o que fazer com uma criança e com tudo aquilo que deve ser feito para
amenizar a vida quem chega de um dia duro de trabalho. Escola, para quê?
Não veria mais necessidade. Afinal, para uma dona-de-casa, para que serve
uma escola?
Este é um caso dos muitos que abandonam a escola. Voltei a
encontrar Francisca um ano depois. A gravidez havia lhe transformado o
corpo. Estava muito gorda, sua pele estava manchada e havia perdido
alguns dentes. Em sua fala, só dificuldades. Tomou-me algum dinheiro
emprestado e disse que logo me pagaria. Chegava ao absurdo de trabalhar
como diarista e de gastar quase todo o dinheiro no pagamento da pessoa
que tomava conta da criança para ela. O marido desempregado e toda a
história recomeçada de quem sabe que entre o sonho e o destino poucos
conseguem viver o primeiro.
Seu único momento de alegria, que me fez recordar a menina
que era Francisca, foi no falar sobre o filho. Talvez porque agora seus
sonhos e sua esperança estivessem nas mãos da criança que começava um
novo ciclo de pobreza.
A maior parte dos alunos que saem fazem-no pela dificuldade de
enfrentar uma escola depois de um dia intenso de trabalho. O Colégio Santa
Cruz, em parte, desfavorece o aluno trabalhador. Situado em um bairro de
classe alta, é desprovido de serviços de transporte público. A condução não
é farta e normalmente é superlotada, em especial no horário da entrada dos
alunos. Para alguns, está distante tanto do trabalho como da residência,
obrigando-os a tomar duas conduções a mais (ida e volta), encarecendo o
custo da sua educação e ampliando o tempo despendido com ela. É verdade
que muitos moram e trabalham perto: é o caso dos empregados domésticos.
Acordar às 6 horas, fazer e tomar café, tomar uma condução
normalmente cheia, trabalhar em serviço pesado, almoçar a marmita ou
o lanche corrido, novo período de trabalho, sair às 18 horas, tomar
condução, chegar no colégio para um pão com ovo e café, estudar até
22h40min, novas conduções, tomar banho, preparar a janta e a marmita do
dia seguinte, dormir à meia-noite, acordar às 6 horas, fazer e tomar café. ..
Ao final da semana, lavar e passar a roupa, arrumar a casa,
estudar um pouquinho, fazer uma comprinha, deixar a comida semipronta,
visitar os parentes, dormir e se preparar para mais uma semana de acordar
às 6, fazer e tomar café...
Esta rotina, aos poucos, vai informando o aluno dos seus limites para
continuar a estudar. O cansaço vai abatendo a pessoa, diminuindo o seu
rendimento escolar, obrigando-o a se alimentar mal e por conseqüência
expor-se mais às doenças.
O aluno fica doente, perde uma semana de aula, perde ritmo, matéria
e ânimo. Desiste e se conforma com a sua impossibilidade ou incapacidade
de obter a escolarização.
Muitas vezes, o aluno sai por motivo de viagem. A maioria de nossos
alunos são migrantes e vivem com este laço que une a sua vida aqui e a dos
parentes lá.
- "Professor, mandaram me chamar. Viajo amanhã e não sei quando
volto".
Um parente que morreu, um problema econômico, um caso de
doença, um casamento importante. São motivos para que tudo vá para o ar:
a escola, o trabalho, a namorada ou a família.
Às vezes não volta, às vezes fica um tempo e depois retorna. Não
menos que duas semanas depois. Perde ritmo, matéria e ânimo. Espera o
próximo semestre para recomeçar. Isto se tudo se acertar.
Por outro lado, o fator de exclusão pode estar aqui e não lá. Nestes
últimos semestres, com o aumento do desemprego, a permanência em São
Paulo se tornou mais difícil. A procura de novo trabalho às vezes se estende
por cinco, seis, oito meses. Em um determinado momento, a questão se põe:
"Ficar aqui para morrer de fome? Prefiro morrer de fome junto com meus
parentes. Lá pelo menos a gente divide o nada".
Mesmo ganhando salário mínimo, mesmo ganhando bolsa de ido
integral, o aluno não pode permanecer na escola pelo custo indireto a mais
que terá: duas conduções, livros, sanduíches, cafezinho, etc.
Doença, má alimentação, péssimo serviço de transporte, baixo
salário, desemprego, sono, cansaço, péssimas condições de vida... esses os
fatores que fazem do trabalhador um impossibilitado de freqüentar a escola.

BIBLIOGRAFIA

PAZ, Octavio, O labirinto da solidão, Paz e Terra, Rio de Janeiro,


1976. MUZ, Michel, "Biologia y educación" in El fracaso escolar, Cultura Po-
pular, México, 1978.
RAMUZ, Michel. “Biologia y eduacación” in El Fracasso escolar,
Cultura Popular, México, 1978.
SÈVE, Lucien, "Los dones no existen" in El fracaso escolar, Cultura
Popular, México, 1978.
SINGER, Paul; BRANT, Vinícius Caldeira (orgs.), São Paulo: o povo
em movimento, Vozes-CEBRAP, Petrópolis, São Paulo, 1980.

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