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1. Introdução
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Texto sistematizado como roteiro para a Mesa intitulada “Políticas Públicas de Educação do Campo na
Educação Básica: avanços e desafios”, durante o Encontro Nacional de Educação do Campo, das Águas e
das Florestas”, realizado em Salvador/BA, de 28/02 a 02/03/2024.
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Militante da Educação do Campo; professor do curso de Licenciatura de Educação do Campo da
UFMA; e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFMA.
para reprodução do campesinato e a histórica negação do acesso à essa política pública,
aos sujeitos que vivem e trabalham no campo, em seus diversos contextos. E embora seja
inegável os avanços conquistados de lá para cá, a garantia do direito à educação básica
permanece como um desafio para essas populações e um aspecto relevante a se considerar
num balanço da educação do campo.
A segunda canção citada, “Construtores do futuro”, traz a discussão sobre a
escola para além do direito, colocando o desafio de transformação da forma escolar,
orientada por finalidades educativas que ultrapassam a concepção hegemônica na política
educacional brasileira de reprodução da sociabilidade atual, sob a ordem do capital. A
escola do campo que queremos tem como finalidade formar construtores e construtoras
do futuro. E, para tanto, requer um saber que não seja limitado; uma escola vinculada à
vida, à realidade; que tenha o trabalho, a cultura e a organização coletiva como “chaves
mestras” da forma escolar.
Nessa canção, Gilvan Santos situa um segundo desafio fundamental, que
pretendemos destacar: a construção de um projeto de escola que seja do campo. No
percurso da educação do campo no Brasil, sobre ambos os aspectos – a garantia do direito
e a concepção de escola – registramos avanços significativos, mas seguimos com muitos
desafios importantes que precisam ser recuperados analiticamente na conjuntura atual,
quando após 25 anos de seu marco inicial, temos a possibilidade histórica de avançar.
Como contribuição à mesa temática “Políticas Públicas de Educação do Campo
na Educação Básica: avanços e desafios”, nossa pretensão é destacar alguns elementos,
em torno do tema, para o qual propomos transitar reflexivamente por três aspectos da
discussão: as duas dimensões enunciadas, tomando a escola como lócus principal da
educação básica, e a atualidade da luta de classes no campo, considerando que a referida
análise nos remete a questões que são de ordem estrutural e conjuntural, que implicam
nas particularidades do campo e da educação, na totalidade da sociabilidade capitalista,
que precisam ser tomadas em conta, o que nos remete à tríade: campo, políticas públicas
e educação (Caldart, 2008; 2019).
Para dar sequência à discussão, trazemos mais uma referência poética, essa de
autoria própria, resultante da provocação de uma professora, por ocasião da participação
no “Encontro de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária da Regional Amazônica
do MST”, que aconteceu em São Luís/MA, em setembro/2017. Ao final de uma fala sobre
a Escola do Campo, na qual compartilhamos a experiência das Escolas de Ensino Médio
dos Assentamentos de Reforma Agrária do Ceará, uma professora nos procurou buscando
orientação para construir uma escola do campo em seu município; mas, queria uma
explicação “sem rodeios”. Comentamos que se tratava de um processo sócio-histórico
complexo e que não haveria receitas, apontando o caminho da reflexão crítica sobre a
escola hegemônica, a referência das pedagogias socialistas – entendidas como as que se
contrapõem às pedagogias do capital – e o diálogo com outras experiências da classe
trabalhadora.
Contudo, posteriormente, refletindo sobre os desafios da elaboração propositiva
da escola que queremos e valendo-se da licença poética, chegamos ao que seria uma
possível receita “Para uma escola do campo”, que assim segue:
E escolas,
Onde nossos filhos e filhas possam aprender o conhecimento.
Porque o conhecimento nos humaniza;
Porque é nosso direito;
E por isso, fechar escola é crime!
Em seguida, a autonomia.
Pois, nossas escolas serão públicas;
Porque dirigidas político e pedagogicamente pelo povo organizado:
Os trabalhadores e as trabalhadoras do campo.
Para tanto,
Não mais formação cognitiva, unilateral para o mercado;
Mas educação omnilateral, multidimensional para a vida.
Não mais educação individualista para a competição e a exploração do homem
pelo homem;
Mas uma educação coletiva, socialista para a solidariedade entre todos os seres.
Não mais formação de capital humano, reprodutora, produtora de mais valia;
Mas uma educação politécnica, da teoria e da prática, da práxis, do trabalho
criativo.
Não mais uma educação apartada da vida, da realidade. Educação neutra, sem
cheiro, sem sentido;
Mas uma educação contextualizada; interessada pela vida; comprometida com
a transformação da realidade.
Uma segunda marca que destacamos para o diálogo é a escola como um direito.
Enquanto o novo não chega, vamos construindo-o nas contradições históricas do tempo
presente, para o qual a escola não é suficiente; mas, é necessária na educação básica dos
seres humanos, construtores e construtoras do futuro.
É a escola o principal meio de acesso aos conhecimentos clássicos – de base
científica, artística e filosófica – sem os quais não conseguimos compartilhar plenamente
o estágio atual da humanidade. Por isso, a escola cumpre papel importante na
humanização. Conhecimento que é base fundamental para a compreensão da realidade,
sem o qual o desafio ontológico e histórico de transformá-la torna-se tarefa hercúlea,
porque restringimos nossa humanidade transformadora (Saviani; Duarte, 2010).
Certamente que não se trata de uma relação neutra e passiva com a escola e os
conhecimentos, porque são outros os sujeitos da educação. Nos referimos a outra
humanidade que não a dos opressores, que se constrói também com outras epistemologias
e outras pedagogias, que têm raízes na ancestralidade dos que vivem e trabalham no
campo brasileiro. Isso requer o duplo e dialético desafio de lutar por escolas e,
simultaneamente, se colocar na tarefa crítica e criativa de sua transformação (Freire,
1983; Arroyo, 2023).
Além disso, conscientes de que a escola, necessariamente, se ocupa da formação
humana, para além da dimensão cognitiva, é um desafio dirigir intencionalmente as
tarefas educativas da escola para as múltiplas dimensões do ser humano, rompendo com
a formação unilateral para as habilidades e competências do mercado e avançado na
direção de uma formação multilateral (Caldart, 2023).
Ao conceber a educação e a escola do campo a partir dos interesses e
necessidades sócio-históricas dos que vivem e trabalham no campo, na disputa e
construção de um projeto de campo e de sociedade que se contrapõem ao capital, o
conhecimento – para além da epistemologia colonizadora – e, por consequência, a escola
– para além da pedagogia do capital – em sua relação com os territórios camponeses e
seus saberes, têm um papel fundamental.
No entanto, sob a hegemonia do capital, a educação básica da classe trabalhadora
– do campo e da cidade – se subsome aos seus interesses objetivos e subjetivos de
reprodução, restringindo-se na atualidade às habilidades e competências do mercado do
desemprego, cujas principais e cada vez mais reduzidas formas de trabalho são flexíveis
e precarizadas, predominando a formação de um exército de excluídos jogados à própria
sorte, sob o fetiche do empreendedorismo.
Num tempo em que tudo se transforma em mercadoria, não somente as
finalidades da educação são dirigidas para o mercado, mas ela própria torna-se
mercadoria, intensificando direta ou indiretamente sua natureza privada com a
intervenção do empresariado, seja gerindo o negócio da educação ou customizando sua
qualidade aos seus mesquinhos interesses imediatos, através da atuação direta e intensiva
de suas agências privadas de hegemonia nas instituições responsáveis pelas políticas
educacionais em âmbito federal, estadual e municipal (Gramsci, 2007).
Sob essa lógica, o conhecimento é outro negócio e passa ao largo da escola
pública, sendo inacessível à maioria dos trabalhadores e trabalhadoras ou distribuído de
forma restrita e seletiva, conforme as necessidades técnicas e ético-políticas do mercado.
Uma escola reprodutora do capital e da natureza desumanizante da sociabilidade
capitalista.
No campo, seja pelo avanço do agronegócio, com redução da população e do
território camponês; seja pela hegemonia da lógica empresarial economicista, a negação
do acesso ao conhecimento se materializa num movimento sistemático de fechamento de
escolas. Considerando que, em muitas localidades rurais, a escola é a principal, senão a
única, política pública a que têm acesso, assumindo toda diversidade de funções sociais,
fechar essas escolas é negar, em primeiro lugar, o conhecimento; mas, não somente, é
restringir o acesso a outras políticas sociais, ao lugar do encontro, do lazer, ao centro
cultural de muitas comunidades rurais. Por isso, acerta o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) ao denunciar que fechar escola é crime!
Nesse sentido, avançamos com a inclusão, pela Lei nº 12.960/2014, do Parágrafo
único, no Art. 28 da LDB nº 9.394/1996, que regulamenta o fechamento de escolas do
campo, indígenas e quilombolas, exigindo a manifestação prévia do órgão normativo do
respectivo sistema de ensino, apresentação de justificativa pela Secretaria de Educação,
análise do diagnóstico do impacto da ação e manifestação da comunidade escolar. Além
disso, tramita no Congresso Nacional o PL nº Lei 211/2015 que propõe incluir a
manifestação do Ministério Público, dentre as prerrogativas para fechamento de escolas.
No entanto, esse é um desafio que segue, considerando que, segundo os dados
do Inep, entre 2000 e 2021, foram fechadas mais de 151 mil escolas no Brasil, das quais
105.385 fechadas nos territórios rurais, em comunidades do campo, indígenas e
quilombolas3. Das que seguem abertas, embora tenhamos avanços importantes nas
condições e qualidade das escolas do campo, ainda predominam as condições precárias
de funcionamento; com a maioria dos professores com contrato temporário; com turmas
multisseriadas; com estradas de difícil acesso e transporte escolar em condições
inapropriadas.
Também avançamos na formação inicial e continuada de professores para a
educação básica com o Pronera, as Licenciaturas em Educação do Campo (Ledocs) e a
Ação Escola da Terra. Mas, seguimos sem concursos para as escolas do campo, com
dificuldades de inserção dos egressos das Ledocs na educação básica e contratações
temporárias, com baixos salários e a permanente instabilidade nos quadros docentes das
escolas do campo, que ficam à mercê dos interesses eleitorais da pequena política.
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(Fonte: https://portal.ufpa.br/index.php/ultimas-noticias2/14354-seminario-discute-o-fechamento-de-
escolas-do- campo-indigenas-e-quilombolas-nos-ultimos-anos)
Após 25 anos de educação do campo, seguimos tendo como grande desafio a
garantia das condições objetivas da educação básica do campo, que passa pela luta em
defesa do campo e da educação; mas, também, requer a possibilidade de termos uma
escola apropriada à realidade diversa do campo que não cabe na régua curta da relação
custo-aluno da lógica empresarial; no padrão seriado e disciplinar da organização escolar
hegemônica e seus sistemas engessados de gestão, de planejamento e de avaliação.
5. Em síntese