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O Possível Diálogo entre o Texto Bíblico e O Leão, a

Feiticeira e o Guarda-roupa, de C. S. Lewis


The Possible Dialogue between the Biblical Text and The
Lion, The Witch and The Wardrobe, by C. S. Lewis
Déborah Silva Stafussi

Centro de Comunicação e Letras – Universidade Presbiteriana Mackenzie


Rua Piauí, 143 – 01241-001 – São Paulo – SP
deborah_1905@yahoo.com.br

Resumo. Esta pesquisa empreende uma análise dos traços da


intertextualidade bíblica presente no livro O Leão, a Feiticeira e o Guarda-
roupa. Neste estudo são apresentados os conceitos de intertextualidade e
dialogismo, assim como comentários a respeito da obra estudada. Ao longo
da análise é estabelecida uma relação entre teorias do conto maravilhoso e
O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa. Este estudo vislumbra algumas das
possibilidades de diálogo entre a obra de Lewis e o texto bíblico.
Palavras-Chave: Intertextualidade. Conto maravilhoso. Bíblia/Cristianismo

Abstract. This research attempts an analysis of the biblical intertextuality


marks present in the book The Lion, The Witch and The Wardrobe. This
study presents the concepts of intertextuality and dialogism, as well as
comments about the book itself. Throughout the analysis, a relation between
the theories of Fairy Tales and The Lion, The Witch and The Wardrobe is
stablished. This paper contemplates some of the possible dialogue between
Lewis’ book and the biblical text.

Keywords: Intertextuality. Fairy Tales. Bible/Christianity.

1. Introdução
De modo geral, busca-se iniciar os estudos sobre o escritor britânico Clive
Staples Lewis, conhecido como C. S. Lewis. O alvo principal a ser alcançado é
demonstrar como o autor lança mão dos contos maravilhosos e das figuras fantásticas
para difundir o Cristianismo, sem impor um caráter religioso sectário.

Tal estudo será fundamentado nos conceitos de intertextualidade presentes nas


teorias de Bakhtin (1986) e Laurent Jenny (1979), e também nas teorias de conto
maravilhoso de Tzvetan Todorov (1986) e de função das personagens de Vladimir
Propp (2006). O livro A antropologia filosófica em C. S. Lewis de Gabrielle
Greggersen, também será uma ferramenta fundamental para a realização de nossa
pesquisa.
Fez-se a escolha pela tradução dos textos analisados presentes na obra O Leão, a
Feiticeira e o Guarda-roupa por não apresentarem problemas em relação ao texto
original. A edição escolhida é a da editora Martins Fontes, publicada no ano de 1997.

2. O Diálogo bíblico presente em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa


A questão da intertextualidade está relacionada à produção de sentido. Alguns
estudiosos afirmam que intertextualidade é a presença de um ou mais textos dentro de
um só texto, e dialogismo é o diálogo existente entre o texto em si e seus elementos.
O “eu” responsável pelo discurso do texto sofre a influência de “outros” em sua
formação. Buscando-se a origem dessa influência sobre o “eu”, tem-se as idéias de
Intertextualidade e Dialogismo, conceitos que não foram totalmente definidos e
diferenciados entre si por Bakhtin. Por esse motivo, esses conceitos são utilizados
diversas vezes como sinônimos, e até a atualidade não existe uma definição aceita como
única possível desses conceitos.

Para compreendermos a idéia de intertextualidade é necessário que vejamos a


obra como um sistema no qual estão inseridos elementos, nuances e até características
de algo externo a essa obra. Se algum texto nos remete para quaisquer outros textos,
implícita ou explicitamente, nos deparamos com a intertextualidade. Diversos fatores
influenciam ou são justificados como causadores da intertextualidade, como a influência
sofrida pelo autor da obra, a questão da periodicidade, cultura, entre outros, sendo que
todos esses fatores sofrem variações de acordo com o olhar do leitor.

Embora existam diversas abordagens sobre a intertextualidade, todos os autores


referidos em nossa análise concordam que sem levar em consideração a
intertextualidade, a leitura de um texto seria muito menos reveladora. O sentido de um
texto é formado através de vozes de outros textos que estão implícita ou explicitamente
revelados neste. Em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa pode-se ler o texto em sua
forma superficial, sem buscar compreensões mais profundas, mas quando se busca um
sentido mais amplo para o texto, é possível encontrar as identificações com elementos
do Cristianismo, pois essa obra pode nos remeter a um outro texto, o bíblico. De acordo
com Jenny (1979), o que torna essa relação possível é a sensibilidade dos leitores e o
conhecimento de mundo do destinatário.

Queremos então esclarecer que, para nossa análise, seguiremos os conceitos e a


terminologia utilizada por Laurent Jenny (1979) em seu ensaio A estratégia da forma,
publicado na revista “Poétique”- revista de teoria e análise literárias. Sendo assim,
consideraremos a Bíblia, de acordo com a nomenclatura oferecida por Jenny, o
arquitexto do gênero, e o intertexto, o livro O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa. De
acordo com Jenny (1979), essa intertextualidade ocorrente entre o arquitexto do gênero
e o intertexto pode ser chamada de super-codificação.

A referência a diversos tipos de textos diferentes pode, muitas vezes, causar


problemas de enquadramento. Em As Crônicas de Nárnia, são encontrados vários
elementos da mitologia greco-latina, como faunos, minotauros, gigantes, entre outros.
Neste momento da pesquisa, receberão destaque algumas personagens míticas que são
encontradas na obra de Lewis, bem como os seus significados na mitologia e também na
própria obra. Assim, discutiremos sobre como foi alcançada uma unidade entre os temas
abrangidos em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, obra em que esses elementos
conseguem conviver de maneira não-conflitante.

Em princípio, os seres mitológicos encontrados em O Leão, a Feiticeira e o


Guarda-roupa podem ser divididos em dois grupos: os que estão do lado de Aslam,
como o Sr. Tumnus e os espíritos bons dos bosques, e os que estão do lado da feiticeira:
os espíritos maus, os demônios, entre outros, que explicitaremos a seguir. As referências
feitas a esses seres neste trabalho foram observadas no livro Manual Prático de Nárnia,
de Colin Duriez (2005).

A primeira personagem que aparece na terra fantástica de Nárnia é o fauno


chamado Sr. Tumnus. Os faunos são personagens presentes na mitologia Romana. Eles
são descritos, assim como os sátiros, como tendo, da cintura para cima, corpo de
homens, coberto de pêlos e com chifres de bode na cabeça, e da cintura para baixo
como tendo o corpo e patas de bodes. Os faunos gostam de dançar com dríades nas
campinas e bosques (por isso também a referência a elas em Lewis), tocam
instrumentos de sopro, como a flauta de Pã, um instrumento feito de junco. A música é
tocada muito alta, e induz um estado de sono semelhante a um transe, exatamente como
o sucedido com Lúcia (DURIEZ, 2005).

Devido à presença desses elementos, ao buscar como a obra O Leão, a Feiticeira


e o Guarda-roupa pode ser classificada, procurou-se encontrar uma definição de acordo
com as teorias de TODOROV (2007) sobre a literatura fantástica e, conseqüentemente,
sobre os gêneros fantástico e o maravilhoso. De acordo com a leitura realizada, é
possível encaixar a obra em duas classificações, fantástico-maravilhoso ou Maravilhoso
puro, dependendo do foco da análise.

É possível seguirmos então para um estudo mais preciso dos contos


maravilhosos, de acordo com o que Vladimir Propp (2006) propõe em seu livro
Morfologia do Conto Maravilhoso.

Para introduzirmos melhor o assunto, trataremos brevemente sobre o que


Northrop Frye (2004) estabelece para a estrutura narrativa, que nesta pesquisa está
relacionada ao conto maravilhoso. A narrativa Bíblica também é uma narrativa em U,
ou seja, começa com um pico de acontecimentos felizes, positivos. Durante a narrativa
acontece algo que traz o declínio, que é o ponto baixo, negativo da narrativa, a base do
U. A história se desenrola de modo que os eventos anteriores culminam em uma nova
ascensão, um novo momento positivo, e é assim que a história tem seu desfecho em um
final feliz.

Trazendo essa estrutura narrativa para O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa,


vemos o momento em que Lúcia entra em Nárnia e conhece o Sr. Tumnus como o ponto
positivo com o qual a história se inicia. O primeiro pico do U seria então, a descoberta
do novo mundo. Em seguida temos o momento do declínio que ocorre com a traição de
Edmundo e por conseqüência a morte de Aslam. Esse evento negativo provoca então o
acontecimento que seria o início do segundo pico positivo, a ressurreição de Aslam.
Após a ressurreição, Aslam liberta os prisioneiros, vai para o campo, vence a batalha e
mata a Feiticeira. Depois, as crianças são coroadas reis e rainhas e a paz volta a reinar
em Nárnia. Esse é o desfecho positivo da história, o último pico da narrativa em U.

Voltando para classificação da obra, recorremos a Vladimir Propp (2006), que


busca classificar elementos característicos que podem ser encontrados em comum nos
contos maravilhosos, assim como a narrativa em U de Frye, enumera
‘morfologicamente’ acontecimentos que geralmente se dão nesses contos.

Segundo Propp, há uma série de elementos essenciais à narrativa dos contos


maravilhosos. Vejamos agora um trecho de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa que
pode exemplificar uma dessas etapas do conto maravilhoso sugeridas por Propp.

Saída de um ou mais membros da família: Afastamento

Esta história nos conta algo que lhes aconteceu durante a guerra, quando
tiveram de sair de Londres, por causa dos ataques aéreos. Foram os quatro
levados para a casa de um velho professor, em pleno campo, a quinze
quilômetros de distância da estrada de ferro e a mais de três quilômetros da
agência de correios mais próxima. (LEWIS, 1997, p. 11)

Esse trecho mostra como as crianças tiveram que se afastar de casa, dadas as
circunstâncias da guerra que acontecia na Europa, e por conseqüência, em Londres.
Depois de terem viajado para a casa de um professor, Lúcia encontra o Guarda-roupa e
o mundo de Nárnia, mas seus irmãos não acreditam nela.

Em relação à personagem principal da história, lemos que Aslam é o leão criador de


Nárnia, e filho do imperador desse país. Sabe-se também que em O Leão, a Feiticeira e
o Guarda-roupa (Lewis, 1997) O leão é protagonista de um sacrifício expiatório em
favor de outra personagem da história, o menino Edmundo, ou seja, Aslam é morto no
lugar do menino, seguindo a doutrina da Magia Profunda, a lei fundadora de Nárnia. O
sacrifício pago por um inocente em favor do real culpado, é o tema do segundo livro da
série de As Crônicas de Nárnia (composta por sete livros), e é também o tema principal
da vida de Jesus, segundo a cultura cristã, e é isso que se pretende abordar ao longo do
desenvolvimento da pesquisa aqui referida.

Seguiremos para a análise proposta por nossa pesquisa. O tema central de O Leão, a
Feiticeira e o Guarda-roupa é a batalha do bem contra o mal e vitória sobre este através
da redenção, da morte de um inocente para salvar um pecador. Esse também é o tema
dos quatro Evangelhos bíblicos: a vinda do Messias e a redenção dos pecados por meio
de sua morte e ressurreição. Vamos analisar como isso se dá na terra de Nárnia, por
meio da demonstração do primeiro capítulo do livro, estabelecendo relações
intertextuais com o texto bíblico.

Capítulo I: Uma estranha descoberta


Nesse capítulo, as crianças se mudam para a casa do professor Kirke e lá, Lúcia
descobre o guarda-roupa que faz parte do título do livro. É mostrada também, a
personalidade de Edmundo, que diferente de seus irmãos, tem o coração frio e mais
inclinado para o mal, o que será demonstrado mais adiante no livro, quando ele mente
que havia entrado no guarda-roupa e deixa os irmãos pensarem que Lúcia não estava
bem da cabeça.
O autor de Gênesis escreve as palavras que Deus disse após ter salvo Noé e sua
família do dilúvio: “[...] porque é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua
mocidade [...]” (Gênesis 8:21) (BÍBLIA SHEDD, 1997). Deus nos criou segundo Sua
imagem e semelhança, mas desde que somos jovens, nosso coração se inclina para os
caminhos maus. Edmundo já apresentava no mundo real, as mesmas falhas de caráter
que teria no mundo de Nárnia, o que será demonstrado em fragmentos retirados nos
próximos capítulos do livro.
No trecho a seguir, logo após a chegada das crianças na casa do professor Kirke,
Edmundo mostra que não está satisfeito com a idéia de que os irmãos mais velhos que
irão assumir as responsabilidades:

– É bem simpático – disse Susana.


– Acabem com isso! – falou Edmundo, com muito sono, mas fingindo que
não, o que o tornava sempre mal-humorado. – Não fiquem falando desse
jeito!
– Que jeito? – perguntou Susana. – Além do mais, já era de você estar
dormindo.
– Querendo falar feito mamãe – disse Edmundo. – Que direito você tem de
me mandar dormir? Vá dormir você, se quiser. (LEWIS, 1997, p. 12)

Durante uma brincadeira, Lúcia encontra o guarda-roupa. Quando ela abre suas
portas, encontra muitos casacos. Depois, as crianças necessitarão dos casacos para se
protegerem do frio.

Todos menos Lúcia. Para ela, valia a pena tentar abrir a porta do guarda-
roupa, mesmo tendo quase a certeza de que estava fechada à chave. Ficou
assim muito admirada ao ver que se abriu facilmente, deixando cair duas
bolinhas de naftalina.
Lá dentro viu dependurados compridos casacos de peles. Gostava muito do
cheiro e do contato das peles. Pulou para dentro e se meteu entre os casacos,
deixando que eles lhe afagassem o rosto. Não fechou a porta, naturalmente
sabia muito bem que seria uma tolice fechar-se dentro de um guarda-roupa.
Foi avançando cada vez mais e descobriu que havia uma segunda fila de
casacos pendurada atrás da primeira. Ali já estava meio escuro, e ela estendia
os braços, para não bater com a cara no fundo do móvel. Deu mais uns
passos, esperando sempre tocar no fundo com as pontas dos dedos. Mas nada
encontrava. (LEWIS, 1997, p. 14)
É quando Lúcia encontra a neve e todo um mundo dentro do guarda-roupa, que
será apresentado pelo Sr. Tumnus, que ela conhece logo em seguida.
Embora nesta pesquisa tenha-se tentado estabelecer relações dialógicas e
intertextuais entre a obra O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa e o texto Bíblico, não é
nosso objetivo reduzir a obra de Lewis para uma simples reformulação do Evangelho.
Não se deve esquecer dos elementos usuais cabíveis a um conto de fadas ou fantasy,
como já tratamos ser a classificação dada pelo próprio autor aos seus escritos, que
permeiam a construção da obra.

3. Conclusão
Baseando-se nas teorias citadas, fez-se duas análises da obra O Leão, a Feiticeira e o
Guarda-roupa, uma quanto às funções das personagens, outra quanto à
intertextualidade bíblica. Nesta segunda, foram escolhidos versículos de diversos livros
bíblicos que faziam referência, direta ou indiretamente ao Messias que havia de vir. A
análise foi separada de acordo com os capítulos do livro utilizado, separando-se trechos
em que poderiam se encontrar relações com o texto bíblico.

Entretanto, nossa pesquisa não pretende esgotar as possíveis relações entre Lewis
(especialmente O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa) e a Bíblia, pois, ainda que já
tenham sido feitas extensas pesquisas sobre o tema, assim como a palavra se renova
sempre, cada vez que lemos uma obra de Lewis, algo novo salta aos nossos olhos e
lemos como se fosse a primeira vez.

Referências

BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz (orgs). Dialogismo, Polifonia,
Intertextualidade. São Paulo: EDUSP, 1994.
BÍBLIA SHEDD. 2ª ed. Revista e atualizada no Brasil. Tradução de João Ferreira de
Almeida. São Paulo: Vida Nova, 1997.
BOTELHO, Raquel Lima. A Intertextualidade Bíblica nas Crônicas de Nárnia de
C.S.Lewis. 2005. Dissertação (Mestrado em Letras) Universidade Presbiteriana
Mackenzie, São Paulo, 2005.
DURIEZ, Colin. Manual Prático de Nárnia. Tradução de Celso Roberto Paschoa.
Osasco: Novo Século, 2005.
FRYE, Northrop. O Código dos Códigos: A Bíblia e a Literatura. Tradução de Flávio
Aguilar. São Paulo: Boitempo, 2004.
GREGGERSEN, Gabrielle. A antropologia filosófica de C. S. Lewis. São Paulo: Editora
Mackenzie, 2001.
JENNY, Laurent. A Estratégia da Forma. In: Poétique, Revista de Teoria e Análise
literárias, n. 27: Intertextualidades. Tradução de Clara Crabbê Rocha. Coimbra:
Livraria Almedina, 1979.
LEWIS, C. S. As Crônicas de Nárnia: O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa. São
Paulo: Martins Fontes, 1997.
PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2006.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. 3. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2007.

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