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Diário Ínfimo 33

Deixai aos mortos o sepultar os seus próprios mortos.

Olhei e não vi o que era lá! Pensava antes que via o que olhava na ingenuidade de
quem não desconfia do olhar, nem do que é visto, nem de quem avista. Avistar não é
descobrir; ver não é o exercício da visão; visionar é criar pra si a versão torta do que se
pensa ver. Ver engana. Ver mente. Ver é independente e tem vida própria e levanta
um véu tão espeço que até a desconfiança foge vestida de esquecimento. Ver empurra
sua vítima para continentes ilusórios, insustentáveis... mas, que persistem sólidos
dentro desse raio do olhar arrasadoramente construtor. As coisas nunca são como
vistas. Elas, com sua vida e rotina peculiares, mancomunadas com o olhar, contam
versões tardias ou precoces do que elas nunca são. E vai a realidade escapando
escondida nessas areias que se esvanecem líquidas por entre as vidas que temos numa
pobre e solitária única.

Há quem tenha aprendido a desconfiança do olhar, uma técnica, um método raro,


incômodo, desafiador, causticante, exauridor das energias de quem o percorre, para
no fim, revelar que não há nada, que o possível não houve, que não há um é que possa
ser salvo... nada há e nada é que não o olhar que se sustenta de tanto não ser. E se
morre quando se mata esse vital e uterino olhar, porta de santidade falsa, tampa
pesada de um caixão vazio, mortalha que encobre um corpo roubado, velório de corpo
ausente, funeral do que nunca viveu, luto do invisível passado que se supôs presente
mas, nunca havido. Para esses, o olhar revela o avesso da vida que tinha prometido
que são as zombarias de morte do massacre desconcertante da verdade. Para o
espírito do olhar, todo o saber que ele produz independe que querer da vítima. Para
esse algoz feroz e voraz, tudo é evidente, tudo é gratuito, nada é construído de
grandes encontros esquecidos, porque é necessário que não haja pergunta alguma, é
preciso haver sono contínuo, pois se houver a suspeita, esse assassino desfere o golpe
fatal que é aquela revelação que nada, em absoluto, nada houve... nada haverá porque
não há nada o que possa ser... exceto o olhar e suas mirações. Daí sua pergunta
devoradora: quer morar comigo nas nuvens? Mesmo tendo sabido do nada, podes
esquecer aquilo que é esquecer-se e me aceitar como único senhor e salvador?

Há os que nunca quiseram abandonar essa morada insana porque são animais de
preservação que nunca acordaram, são os não despertos, os que são cheios da
cegueira do olhar, os que caminham de noite pelo despenhadeiro e jamais caem uma
vez que andam nos ares sólidos que não se desmancham. Todo o insólito se sustenta
ali sem se liquefazer... não se racha a casca dura do instante que se preserva no
continuado falso sempre que não se revela assim, pra se manter assim, assim para
todo o seu sempre ser na sublimação do que poderia haver, mas não é. Então, faça-se
a luz e mantenha-se essa escuridão profunda que cega a todos com o lume sedutor da
grande mentira dos tempos, o véu da invisibilidade desse nada que é sete vezes sete
nada que se repete nas almas quando se coloca como espelho que reflete espelhos
que vivificam ilusões de si mesmas apenas.

Há os que transitam entre o tormento e certa glória celestial primeira: abrir mão de
tudo que se contou sobre o olhar e abraça-lo não como um deus de maravilhas, ou um
juiz assassino de penas cruentas, ou um ídolo oco que se suporta pela ausência de
substância interna, ou o grande aliado dos loucos e seus poderes perpétuos, mas
tomá-lo como sangue que a tudo move, como vida que conduz a vida, como
movimento que impede morrer-se, subvertendo todo o fluxo maligno que ele se
destinou a si desde que há histórias possíveis de lembrança... uma revolução
impiedosa por libertação de compromissos arcaicos, uma desmedida e obstinada
navegação ao contrário, as avessas, um movimento alucinadamente orientado para a
descolonização de si nessa subversão do olhar.

Nunca conheci ninguém assim, mas sei que há, pois posso imaginá-los... devem existir
para além ou aquém das presas gigantes dele, o sinistro monstro, que nos constitui
desde que se engana esse nada andante que se diz a si: sou ser.

Resta uma natureza tardia sem compreensão: fundo negro de mar oceânico, sombrio e
gélido que sustenta sem bramir de ondas a força-potência que impele o olhar e o
impede que desabroche em ser o que não pode vir a ser e não é, sem que assim se
aniquile. Fundo negro de toda alma barroca, gótica, noturna, saturnina, cemiterial de
noite imensa eterna, questão de essência, não de tempo. Não há temporalidade nessa
escuridão intensa. Claridão ali não há pois luz é a lucidez da destruição do escuro
profundo. Os animais noturnos não se sabem assim, e se reconhecem pelo cheiro da
escuridão que exalam mais ou menos pelo que escoa do olhar. É o instinto de
preservação das sombras de si que detona todo o ataque a tudo que não reverbere a
apresentação falso-espontânea desse código das barras: a luz intensa negra do olhar
que apresenta a identidade dos que nesse submundo habitam e que os constitui. Entra
o mundo pelo nascimento e transborda depois como uma natureza, morta, feito vida,
reconhecível na ausência de luz do olhar, insisto. O que parece movimento, é reino-
masmorra de pedras que fingem da imobilidade, o fluxo. Que nada! Passa o tempo e
passam as horas sempre menos a deter uma esperança de vida qualquer. O intruso
lança mãos do velho golpe de infundir-se e confundir-se disfarçado no si mesmo, ele
próprio dele outro. Uma simbiose sem voz e oculta que a cada inspiração do corpo, já
máquina, retifica a vida, rarefaz a vida, revifica a morte que carrega... e segue um
trajeto louco feito de passos de gozo mentiroso porque esse calvário do noturno do
olhar verteu dor em coreografia de prazeres, dança de vícios de uma falsa alma que
governa as almas forjadas, extensões contínuas de reprodução das escuridões.

Não há alma alguma, só essas armadilhas famélicas de fazer-de-ser... mas, salvou-se


quem conseguiu contar, ao menos, por hora.

Não é uma educação do olhar que constitui os homens; não há uma aculturação do
olhar; não há anjos que orientem o crescimento dos olhos no mundo; há sim uma
escravização da humanização que transgride a natural entrada do mundo no corpo
pelos poros e fundamentalmente pelo olhar, dirigindo o trajeto dos olhos desde antes
do seu nascimento e então, tudo é teoria já impressa... não há nada como uma
descoberta, um descobrimento, um desvelamento: o mundo dos olhos escravizados já
é todo e inteiro contado nos silêncios escuros do nascimento, enquanto o mundo
ainda não visto, acalanta o corpo que vai ser gente, informam-se os olhos antes que se
forme no olho o olhar, antes que se retire do corpo uma humanidade possível,
domestica-se o corpo para que siga dócil o trajeto de pedra, o caminho do caminhante
imóvel cujo sonho mais enlouquecido é o de estar desperto, andante e senhor do
arbítrio de seu destino... o grande sonho de estar acordado da humanidade que dorme
desde sempre.

Para isso é necessário o exercício maquínico da opacidade do olhar ate que evolua em
trevas completas ao máximo que transborda e transforma-se no contrário: a inversão
da escuridão que se disfarça em plena luz, em plena consciência de si, liberta e gozosa.

Por isso, e agora eu sei, para se ver mesmo, há de se cegar. Rasgar os próprios olhos
significa isso... a vidência dos profetas cegos, a cegueira de todo Édipo que não suporta
a si em verdade então, a solução imediata, arrancar de si o olhar não seu para em fim,
poder ver por si, um acordar de sonos, um levantar de tumba, um renascer. Para que?
De que se encherá esse oco de vácuo? Qual o tamanho da desvastidão de quem se
libertou? Ainda não sei. Continuo então.

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