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SEGURANÇA E CIDADANIA
MARÇO 2016
21
VIOLÊNCIA E POLÍCIA:
T RÊS DÉC ADAS DE POLÍTICAS D E
S E G URA N ÇA NO RIO DE JANEIR O
S ILV I A RA M OS
RESUMO
a quase 30 em 2012 com seus quase crimes também o são: onde se mata
60.000 homicídios. muito, bate-se muito, ameaça-se muito
Neste artigo pretendo discutir o que etc. E onde se mata muito por arma de
aconteceu com o Rio de Janeiro nos fogo circula muita arma, e crimes vio-
últimos 30 anos para termos nos tor- lentos contra o patrimônio tendem a
nado os campeões de violência do Brasil ser altos. Em resumo, homicídios são
e como esse quadro foi e vem sendo a ponta mais visível e mais dramática
alterado. Vou tratar das características das condições de insegurança das socie-
específicas e únicas da violência flu- dades. Como são crimes mais fáceis de
minense, que transformaram o Rio em contabilizar do que os demais, eles são
um caso singular no Brasil e com raros usados como indicadores universais de
paralelos no mundo contemporâneo. violência, ainda que as generalizações
Buscarei demonstrar que a variável devam ser feitas com cautela.
explicativa mais forte para entender as O Brasil manteve taxas anuais de
particularidades e a intensidade da cri- mais de 10 homicídios por 100.000
minalidade e da violência no Rio de habitantes desde que o Ministério da
Janeiro ao longo de três décadas é a pró- Saúde passou a contabilizá-los e a divul-
pria polícia e as políticas de segurança gá-los em 19791 e chegou a 29 homicí-
levadas a cabo ao longo dos governos dios na taxa publicada em 2014 rela-
desde antes do fim da ditadura. tiva a mortes ocorridas em 2012. Para
termos padrões de comparação, as taxas
de países da Europa Ocidental situam-se
HOMICÍDIOS NO RIO
entre 0,5 e três homicídios por 100.000 1. Os dados publicados pelo
DE JANEIRO E NO BRASIL: Datasus, do Ministério da
habitantes. Os EUA mantêm números
PANORAMA DE 30 ANOS Saúde, referem-se ao SIM,
em torno de quatro a cinco. Os países Sistema de Informação de
Mortalidade, que reúne
O número de homicídios ocor- asiáticos e a maioria dos países orien- informações sobre todas
ridos nas sociedades é parâmetro para tais alcançam menos de 1 homicídio por as mortes. A classificação
desses eventos obedece a
indicar o grau de violência em países e 100.000. Todos os países com altas taxas uma tabela internacional
cidades por duas razões principais. Pri- estão situados na América Latina e no chamada Classificação
Internacional de Doenças
meiro, porque são crimes com notifi- Caribe. O Brasil apresenta um patamar (CID). Desde 1996, o Brasil
adota a 10ª. versão desta
cação obrigatória (diferente de outros acima de 20 por 100.000 há vários anos classificação (chamada
crimes contra a pessoa e daqueles e mantém-se, também há longo tempo, CID-10).
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em 6º. ou 7º. lugar no ranking mundial o Rio de Janeiro a encabeçar, por vários
(comparação com 95 países segundo anos, o ranking nacional da violência
dados do Sistema de Informações Esta- (Waiselfisz, 2012).
tísticas da Organização Mundial de De 1995 até 2006, houve uma
Saúde – WHOSIS). De acordo com a redução do número de mortes, mas o
OMS, os países com taxas de homicídio estado se mantém com taxas em pata-
maiores que o Brasil são El Salvador, mares ainda altíssimos (na casa de 50
Guatemala, Trinidad Tobago, Colômbia, e 40 por 100.000). A partir de 2007,
Venezuela e Guadalupe. as taxas anuais começam a cair, com
Até a década de 1980, o estado do Rio uma queda ainda mais acelerada de
de Janeiro mantinha suas taxas de homi- 2008 em diante (Waiselfisz, 2012). Em
cídio próximas às da média brasileira. 2012, pela primeira vez em 32 anos,
Começa a se afastar a partir de 1983 e o número de homicídios no Rio de
descreve uma curva ascendente muito Janeiro ficou abaixo da média no Brasil
acentuada até 1995, apesar de altos e (28 no RJ e 29 no Brasil). Isto porque
baixos. Em 1983 o Brasil ostentava uma a taxa do Rio de Janeiro manteve-se
taxa de 13,8 homicídios por 100.000, estável em relação ao ano anterior e
enquanto a do Rio de Janeiro era de a taxa média do país aumentou (Veja
15,9, ou seja, 16% maior. Já no final do a tabela completa das taxas ano a ano
período, a taxa do estado pulou para 62, correlacionadas aos governos estaduais
tendo aumentado 288,8%, o que levou no final deste capítulo).
FONTE: DADOS DO SIM-DATASUS/MS. COLETADOS POR WAISELFISZ (1980 A 2012) E FBSP (2013 E 2014)
61,9
45,8
31,9
26,1 26,3
23,8 29
11,7
Uma das características constantes Quando observamos os dados da Secre- 2. Em 2012, a Secretaria
Nacional de Direitos
do Rio de Janeiro é o fato de que a taria de Segurança, que desagrega as Humanos recomendou a
abolição do termo “auto de
explosão e a posterior manutenção das mortes intencionais em homicídios
resistência” e outros e a sua
taxas em patamares altos são puxadas dolosos e autos de resistência,2 vemos substituição por “Homicídio
6.620
6.624
6.438
6.323
6.287
6.163
6.133
5.794
5.717
4.938
4.767
4.761
4.208
4.197
4.081
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
1.330
1.195
1.137
1.098
1.063
1.048
983
00
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2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
GRÁFICO 3_AUTOS DE RESISTÊNCIA NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO – 2000 A 2015
1.330
1.195
1.137
1.098
1.063
1.048
983
900
855
644
592
581
524
427
419
415
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
mostrando que as dinâmicas de mortes carioca matou 2,7, e para cada opositor 3. Outro exemplo expressivo
das respostas rápidas
por uso da força policial são sensíveis a preso sem ferimentos, matou 3,3. Além a determinações de
comandos nas dinâmicas
comandos de polícia e a orientações das de excessiva e frequentemente ilegal
de mortes por intervenção
políticas de segurança.3 – com evidências, em diversos casos, policial ocorreu em São
Paulo. Entre 2009 e 2012,
De acordo com o Anuário Estatís- de que as vítimas foram executadas à Antonio Ferreira Pinto,
tico do Fórum Brasileiro de Segurança queima-roupa depois de rendidas, ou oficial aposentado da PM,
atuou como secretário
Pública (2015), baseado em dados for- foram mortas pelas costas enquanto da Segurança Pública e
necidos pelas polícias das Unidades da tentavam fugir – a violência policial colocou a Rota na linha
de frente da repressão ao
Federação, quando tomamos todos os mostrou-se altamente seletiva: mais nas PCC (Primeiro Comando
da Capital). Em 2012, a
estados, 3.022 pessoas foram mortas favelas do que no asfalto, proporcio- estratégia deu início a
por policiais no país em 2014, o que nalmente mais negros do que brancos, uma guerra, na qual o
crime organizado matou
corresponde a oito pessoas mortas por muito mais nos bairros pobres do que pelo menos 26 PMs na
agentes do Estado a cada dia. No mesmo nos bairros ricos da cidade (Musumeci, Grande SP, enquanto a
ação de policiais fardados
ano, 398 policiais foram mortos. Ainda 2002). Como veremos, estranhamente, e de grupos de extermínio
que consideremos o padrão brasileiro a revogação da “gratificação faroeste” – provocou centenas de
mortes na periferia. Num
de uso excessivo da força letal gene- que vigorou na administração Marcello único mês (maio de
2013) da gestão do novo
ralizado nas polícias, a quantidade de Alencar (1995 a 1998) e que previa que secretário de Segurança,
mortes provocadas por elas do Rio de policiais que prendessem ou matassem Fernando Grella, as mortes
por intervenção policial
Janeiro desafia as estatísticas nacionais criminosos passariam a incorporar um caíram 84% na capital
e internacionais, sendo a maior do país pecúlio aos seus salários – não se tra- (Ver www.soudapaz.org).
Ainda assim, em 2015,
e com raros paralelos internacionais. duziu em queda dos autos de resis- chacinas praticadas com
participação de policiais
Um dos indicadores de uso exces- tência. Pelo contrário, a prática foi em vários estados da
sivo da força é a relação entre mortos, incorporada como característica persis- Federação (Osasco e
Barueri em São Paulo
feridos e presos. Estudos de Cano tente da polícia fluminense, tendo atin- com 18 mortos; Messejana
(1997) no município do Rio, a partir gido seu auge nos anos 2000 nas admi- no Ceará com 12 mortos;
Cabula na Bahia com 12
de dados de janeiro de 1993 a julho de nistrações Anthony Garotinho (1999 mortos e Amazonas com 34
1996. indicaram que nesse período, a 2002) e Rosinha Garotinho (2003 mortos) demonstram como
setores da polícia estão fora
para cada opositor ferido, a Polícia a 2007) e nos dois anos iniciais da de controle dos comandos.
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que o surgimento de facções do crime tário. Willian da Silva Lima, fundador 6. É famosa a frase do
no Rio de forma relativamente orga- da Falange Vermelha, teria declarado: delegado Hélio Luz quando
foi nomeado para chefiar a
nizada teve origem na convivência de “começamos a nos instalar nas favelas Delegacia Anti Sequestros
presos comuns com presos políticos, por uma questão de segurança. Res- (DAS), no governo Marcello
Alencar: “de hoje em diante,
iniciada no presídio da Ilha Grande peitávamos as comunidades e éramos a Anti Sequestro não
sequestra mais”, declarada
nos anos 1970. Ali apareceria a Falange bem recebidos” (Leeds, 2006, p. 261). ao Jornal do Brasil em maio
Vermelha, depois intitulada Comando De fato, o tráfico de maconha já existia de 1995 (Caldeira, 1997).
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há décadas, sendo as bocas de fumo uma proximidade das favelas com bairros de
constante na vida das favelas. Mas o classe média. Essa vizinhança possibi-
poder propiciado pelos ganhos finan- litou a venda de droga em polos fixos,
ceiros obtidos com a cocaína conferiu as bocas, sem que isto excluísse a circu-
aos traficantes uma importância sem lação de “aviões”, que servem os con-
precedentes (p. 239). sumidores em domicílio ou em outros
A autora afirma que durante o pontos da cidade – reproduzindo o
período em que pesquisou nas favelas modelo internacional típico de venda
cariocas, de 1988 a 1995, a presença de drogas no varejo. O sedentarismo
do tráfico só aumentou. De fato, 20 do comércio varejista implicou a valo-
anos depois da publicação de Cocaína rização do território e passou a exigir
e poderes paralelos, como sabemos, os investimento de segurança do ponto.
grupos de tráfico continuaram apro- O controle do ponto passou a ser patri-
fundando e universalizando seu con- mônio valioso e recurso estratégico na
trole nos territórios de favelas. Na lógica do mercado. Isto requeria armas
década de 2000 não só comandavam para dissuadir a tomada do território
a venda de drogas em todas as favelas, por falanges rivais e propina para a
conjuntos habitacionais e em diversos polícia. Em uma palavra, a organização
bairros da periferia da cidade do Rio de sedentária do comércio varejista levou a
Janeiro, mas também a venda, o aluguel que traficantes se estabelecessem como
e a posse de armas; e dessa forma assu- um poder sustentado no domínio terri-
miam o poder de mando sobre outros torial (Soares et al., 2005, p. 249).
crimes nos territórios adjacentes, por Os mesmos autores explicam como
exemplo, roubos de cargas e veículos. a presença das armas nas favelas, em
Além disso, em nível local, os grupos quantidades e modelos muito superiores
de tráfico tornaram-se, muito frequen- às necessidades, gerou um fenômeno de
temente, donos ou sócios de serviços corrida armamentista, mas também um
que eles monopolizavam, como venda excedente de armas que passou a ser
de botijão de gás, transporte por motos usado em crimes contra o patrimônio.
ou kombis, venda de sinal de televisão a Quando um relógio é subtraído com
cabo e internet, taxas de água e outros. a presença de uma arma poderosa ou
Ao mesmo tempo, controlavam ou ten- um carro é roubado com um fuzil, ele-
tavam controlar associações de mora- vam-se ao máximo as ocorrências letais,
dores, organizações não governamen- inclusive as motivadas por acidentes,
tais, grupos comunitários e religiosos e, balas perdidas ou imperícia. Assim, o
em especial, as atividades de cabos elei- problema do tráfico de drogas conver-
torais em períodos de eleição (Zaluar, teu-se já desde o começo dos anos 1980,
1994; Machado da Silva, 2008). quando a curva de homicídios do Rio de
Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Janeiro começou a afastar-se da curva
Celso Athayde (2005) discutem como média do Brasil, num problema menor
e por quais razões o tráfico de drogas, diante do uso indiscriminado de armas
normalmente nômade, tornou-se de fogo, que não correspondiam a qual-
sedentário no Rio de Janeiro. O fenô- quer adequação funcional às práticas cri-
meno curioso, que teria grandes con- minais ou às necessidades técnicas das
sequências, se deu principalmente pela cenas de crime.
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As armas passaram a ser o cerne da Imparato, em 1953, crime que ele teria
barbárie do Rio. Sua presença espeta- executado pessoalmente, o Homem da
cular nas favelas, a ostentação de fuzis Capa Preta refugiou-se em sua fortaleza.
de guerra por garotos de 14, 15 ou 16 No momento em que a polícia tentou
anos, os tiroteios – apenas lúdicos, ou invadi-la, parlamentares da UDN se reu-
para intimidar, ou para advertir sobre niram no seu interior em “vigília cívica”.
o poderio bélico – tornaram-se trilha Adversário de Vargas, Tenório gozava de
sonora da capital durante duas décadas prestígio na UDN, justamente o partido
e se transformaram na marca regis- que denunciava o “mar de lama” no país
trada da violência no Rio. Ou seja, (Ventura, 1994, p. 23).
um modelo de violência em que áreas Em livros de ficção sobre o tráfico
urbanas se viram cada vez mais contro- no Rio de Janeiro e em entrevistas com
ladas militarmente por grupos armados, jovens do tráfico ou com líderes comu-
configurando um modelo único de nitários, surgem muitas histórias sobre
desenvolvimento criminal no Brasil e amor, predileção ou obsessão de chefes 7. Alguns funks “proibidões”
são expressivos do fascínio
raro em termos internacionais. Não do tráfico pelas armas de guerra. Alguns que as armas exercem
estamos falando de zonas rurais ou de são “inseparáveis” de suas armas pre- sobre alguns jovens e
moradores das favelas: Sou
alguns conjuntos habitacionais, ou de feridas e muitos encomendam auto- da Penha sim/ Família CV/
falo pra você/ quem ta na
áreas distantes nas bordas da cidade. máticas depois que as veem nas mãos
boca até o dia amanhecer/
Estamos falando de centenas de favelas de policiais de elite ou de delegados 762 nois tem/ AK nois
tem/ G3 nois tem aqui/ é
em todos os pontos da metrópole, dos famosos. A presença das armas nas o bonde do Tota/ Então
bairros mais ricos aos mais pobres, sob favelas tem também uma função simbó- desce, desce, vai lá no
Caveirão/ Então desde
o domínio de grupos de traficantes, lica de reforço de autoridade. Não por desce vai lá nos alemão.
que passaram a impor leis, a regular acaso, inúmeras letras de funks “proi- Ou: Morro do Dendê é ruim
de invadir/ Nois, com os
o funcionamento da vida coletiva e a bidões” cantam em prosa e verso os Alemão, vamo se diverti/
Porque no Dendê eu vô
enfrentar a polícia e os grupos rivais nomes das armas que estão presentes dizer como é que é/ Aqui
com poder altamente letal. em cada favela, inclusive aquelas que não tem mole nem pra
DRE/ Pra subir aqui no
As polícias, conscientemente ou não, não são usadas para seus fins, como morro até a BOPE treme/
impuseram o ritmo da corrida armamen- fuzis para abater aviões.7 Da mesma Não tem mole pro exército,
civil nem pra PM/ [...] Vem
tista e muitas vezes eram os agentes dessa forma, há relatos de comandantes da um de AR15 e outro de
dinâmica, ora vendendo armas e muni- polícia militar de que soldados ficam 12 na mão/ Vem mais um
de pistola e outro com
ções, ora revendendo armamentos cap- nervosos sem o fuzil e que a resistência tresoitão/ Um vai de URU
na frente escoltando o
turados em confronto com traficantes, para retirar essa arma da corporação – camburão/ Tem mais dois
ora fazendo vista grossa para a entrada mesmo quando a possibilidade de uso na retaguarda, mas tão de
Glock na mão/ Lá vem dois
de fuzis, metralhadoras e munições de fuzis é pequena, como nas vias da irmãozinho de 762/ É que
nas favelas. É bom lembrar que a figura cidade – é em grande parte “psicoló- eles são bandido ruim e
ninguém trabalha/ De AK47
emblemática que primeiro ostentou uma gica”. Em conversas com a equipe de e na outra mão a metralha/
Quem é aqueles cara de
metralhadora como símbolo de poder pesquisa do CESeC, mais de uma vez
M16/ Nas entradas da
foi Tenório Cavalcanti, que circulava em oficiais mencionaram que alguns sol- favela já tem ponto 50/ E
se tu toma um pá, será que
Caxias e outras áreas da Baixada Flumi- dados “se sentem nus sem o fuzil”. você grita/ Seja de ponto
nense com sua famosa “Lurdinha”, exi- Uma vez fixado o novo modelo do 50 ou então de ponto 30/
[...] Acabo com o safado
bida como acessório inseparável. Tenório tráfico no Rio de Janeiro, cuja base é dou-lhe um tiro de Pazã
era recordista de votos, prócer da UDN o domínio territorial, ele se desgarra [...] E se não for de revólver
eu quebro na porrada/ E
e dominou a região durante a década de seus determinantes geográficos e finalizo o rap detonando de
granada (letra de autoria
de 1950. Quando foi acusado do assas- se generaliza, tornando-se a forma por desconhecida) (Soares da
sinato do delegado de Caxias Albino excelência da organização dos grupos Silva, 2014).
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gê-lo, e não para reprimi-lo. Não have- drogas em seis meses”. Mas durante
rá prisões sem flagrante delito e não se sua gestão, em 1990, o Rio de Janeiro
entra nas favelas arrombando portas atingiu a taxa recorde até então, che-
de barracos, mas, ao contrário, a nova
gando a 56 homicídios por 100.000
administração vem tentando atuar em
habitantes. Elizabeth Leeds (2006)
colaboração com a comunidade. A
manutenção da ordem pública se fará
conta que o governador, para cumprir
através do policiamento preventivo, a promessa da campanha, e às vésperas
do diálogo e da ação política, e o go- da eleição municipal de novembro de
verno garante ao cidadão o direito de 1988, adotou um plano de caça e exter-
se manifestar livremente. mínio de criminosos com o objetivo de
livrar as favelas de suas gangues de trafi-
Anos depois das duas passagens pela cantes. Após um massacre na Rocinha,
administração Brizola, Nazareth Cer- em que vários traficantes foram mortos,
queira reconheceu que subestimou as Moreira prometeu dar à favela serviços
resistências dentro da polícia. De fato, de saúde, assistência jurídica, banco de
o primeiro governo de Brizola, que empregos e “todo o saneamento básico
começou com uma taxa de 19 homicí- que faltava há anos”. Tal como outros
dios por 100.000, acabou com 30. O projetos de “políticas sociais” combi-
saldo também foi negativo em termos de nadas com “intervenção policial”, tudo
crimes contra o patrimônio e, sobretudo, não passou de promessa em véspera de
da extrema insatisfação dentro das cor- eleições. Meses depois o tráfico voltou e,
porações policiais, que reclamavam por no ano seguinte, os assessores do gover-
“não poderem trabalhar”. Na maior parte nador estavam negociando com os novos
dos meios de comunicação ecoaram for- traficantes a licença para que os candi-
temente as críticas das polícias. Como datos de Moreira pudessem fazer cam-
exemplo do clima que se estabeleceu, é panha dentro da Rocinha (p. 254). Na
suficiente mencionar que, ao final do pri- administração Moreira, vários dos per-
meiro governo Brizola, o delegado Hélio sonagens que encontramos nos episó-
Vígio (um dos componentes do Esqua- dios do antigo Esquadrão da Morte rea-
drão da Morte criado por Kruel), assim pareceram. Delegados subiam as favelas
se referia à política de segurança pública armados com metralhadoras e jornalistas
de Brizola e Nazareth Cerqueira: “Ban- contam que nessa época a corrida arma-
dido só respeita repressão. Querem fazer mentista entre tráfico e polícia intensifi-
do policial um assistente social. Não cou-se como nunca até então.11
podemos tocar nas favelas, são reduto O segundo governo Brizola (1991-
dele. Temos coragem de falar porque 1994) e de seu sucessor Nilo Batista
temos moral. Já vivemos outros regimes (1994-1995) terminou com um episódio
políticos, mas nunca fomos tão desres- traumático na história do estado, a Ope-
peitados”. O discurso de Vígio encon- ração Rio (outubro de 1994 a julho de
tra-se na edição do Jornal do Brasil de 4 de 1995). A decisão do governo federal, à
novembro de 1986 (Silva, 2013, p. 8). revelia do governo estadual, de enviar
Não por acaso, Moreira Franco tropas do Exército para ocupar favelas 11. Depoimento do jornalista
(1987-1991) elege-se prometendo Luarlindo Ernesto Silva para
foi tomada às vésperas das eleições a pesquisa Mídia e Violência
“acabar com a violência e o tráfico de governamentais e presidenciais de 94. (Ramos & Paiva, 2007).
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de idade que roubaram o carro de sua era uma tradição no Rio de Janeiro. O
mãe no bairro de Oswaldo Cruz, em mesmo em relação aos tenentes-coro-
fevereiro de 2007, e o caso de João néis indicados às vagas de coronel full,
Roberto, menino de 3 anos morto por aos delegados de segunda para irem
policiais que faziam uma perseguição a a delegados de primeira etc. (Soares,
bandidos nas ruas da Tijuca, em julho de 2000; Vargas, 2006). Cabral esta-
2008. Este último fato revelou dinâmicas beleceu que a partir de sua adminis-
típicas de autos de resistência aciden- tração não haveria interferência polí-
tais: os policiais atiraram em um carro tico-partidária na vida interna das
presumindo que ali havia traficantes, polícias. Este ponto foi repetido como
pois esta era a orientação dos comandos um mantra pelo governador e por seu
da PM: eliminar traficantes a qualquer secretário de Segurança e, até onde
custo. Depois da tragédia, o governador foi possível observar, foi cumprido
chamou os policiais de “débeis mentais”, ao menos em parte e representou um
mas eles se justificaram dizendo que ponto de inflexão na história das polí-
estavam apenas cumprindo seu dever. cias fluminenses nas últimas décadas.
Em julho de 2007 a PM, juntamente Outra decisão importante foi esta-
com a PC, ambas comandadas pela belecer na área de segurança o mesmo
Secretaria de Segurança, fizeram a auto- que havia para outras secretarias: um
denominada megaoperação de “reto- programa de modernização da gestão
mada” do Complexo do Alemão, com com metas que deveriam balizar a ação
1.350 homens, que resultou na morte de de todos os servidores, que receberiam
19 pessoas e em 13 feridos. A operação, bônus caso cumprissem as metas. O pro-
com evidências inequívocas de exe- grama de gestão parece ter tido impacto
cução, chocou o país e foi questionada na redução de vários índices de crimi-
pela Secretaria Nacional de Direitos nalidade, inclusive na redução de autos
Humanos do Governo Federal, pela de resistência, que foi incorporado entre
OAB, por grupos de direitos civis e por os indicadores que deveriam cair em
parte da mídia. A Força Nacional man- cada AISP (Área Integrada de Segurança
teve um cerco nas entradas das favelas, Pública), sob a responsabilidade de um
mas em poucos dias os traficantes circu- comandante da PM e um ou mais dele-
lavam ostensivamente armados dentro gados. As metas obrigaram a PM e a PC
do Complexo do Alemão e seu poder e a trabalhar de forma minimamente inte-
sua crueldade tinham se ampliado.12 grada, pois quando as metas são atin-
Contudo, mudanças importantes gidas, a bonificação é distribuída para
foram percebidas mesmo durante os todos os policiais civis e militares das
dois primeiros anos da administração respectivas delegacias e batalhão da área.
Cabral. A primeira foi a sinalização de Em janeiro de 2010 foi criada a DH, a
que não haveria interferências polí- Divisão de Homicídios da Capital, depois
ticas na gestão das polícias. A nego- transformada em Divisão de Homicídios
ciação de titularidades de delegacias integrando as DHs da Capital, Baixada 12. Observações de pesquisa
de campo cujos resultados
e comandos de batalhões por parte de e Niterói. Finalmente, outra mudança encontram-se, entre outros
vereadores, deputados e comerciantes percebida logo no início da gestão Cabral textos, em Ramos (2007).
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eleitorais do Rio de Janeiro, ainda que causava danos ainda maiores aos mora-
os investimentos na polícia e na moder- dores e às regiões no entorno, com o
nização da gestão da segurança tenham fechamento de escolas, tiroteios trau-
sido pouco expressivos ao longo de máticos, mortes de traficantes, de
décadas. O bordão “bandido bom é ban- moradores e de policiais. O último
dido morto” foi originalmente usado degrau desse processo foram as milí-
em campanha eleitoral pelo delegado cias, grupos de policiais e ex-policiais
Sivuca, um dos 12 “homens de ouro” que passaram a copiar o sistema de con-
que, junto com outros componentes do trole de território de traficantes para
chamado Esquadrão da Morte, matou oferecer segurança e serviços que eles
o bandido Cara de Cavalo na década de monopolizavam. No Rio de Janeiro, as
1960 e posteriormente criou a Escu- polícias foram fundo nos negócios do
derie Le Cocq. A frase, usada frequen- crime e a sensação que predominava
temente em campanhas eleitorais, em meados da década de 2000 era que
continua elegendo bancadas da bala o Rio de Janeiro não tinha jeito.
na ALERJ e na Câmara de Vereadores, Em dezembro de 2008, o governo
embora o fenômeno não seja exclusivo do estado deu início a uma experiência
do Rio de Janeiro. A despeito da intensa de retomada dos territórios das favelas
politização do tema da segurança, até que estavam sob o controle das gan-
pouco tempo os salários da PM do RJ gues armadas – sem que as fases de
estavam entre os piores do país. intervenção tática e estabilização prio-
Paralelamente a isso, a sociedade rizassem a morte ou a captura de trafi-
fluminense viveu mais de 30 anos um cantes, mas sim a segurança da popu-
esquema ciclotímico que combinava lação local – o que alterou de forma
indiferença pelo que se passava coti- inédita o quadro anterior. As Unidades
dianamente nas favelas com o susto de Polícia Pacificadora foram capazes
provocado de tempos em tempos por de acabar com os tiroteios em muitas
cada tragédia que extravasava os limites áreas, reduzir de forma expressiva os
dos morros. A maioria dessas tragédias homicídios dentro das comunidades e
envolveu policiais como protagonistas, no entorno e controlar alguns crimes
como as chacinas e as execuções por contra o patrimônio, como roubos de
vingança decorrentes do rompimento veículos e de cargas. De lá para cá, as
do esquema de propinas. Outras foram taxas de homicídio caíram 26,5% e os
devidas a acidentes e equívocos, como autos de resistência recuaram 43,3%.
erros de avaliação por parte de poli- A redução das mortes no estado do
ciais e balas perdidas. De outro lado, Rio de Janeiro não pode ser atribuída
criminosos passaram a atirar e a exe- exclusivamente às UPPs. Observadores
cutar policiais mesmo em ocasiões em indicam que a queda de homicídios
que não havia confrontos. O Rio de nas áreas em que UPPs foram implan-
Janeiro chegou, no final da década de tadas explicam aproximadamente 10%
2000, a uma situação do tipo ardil 22: das mortes que deixaram de ocorrer no
se a polícia não fazia nada nas favelas, estado. Outras mudanças nas políticas
permitia ao tráfico ampliar seu poder, de segurança passaram a ser desenvol-
inclusive aumentando o controle de vidas, como o estabelecimento de um
território para fora das favelas e amea- sistema de gestão por metas, ao qual
çando até o espaço aéreo; se fazia algo, todos os batalhões e delegacias estão
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FONTE: DADOS DO SIM-DATASUS/MS. COLETADOS POR WAISELFISZ (1980 A 2012). DADOS DE 2013 E 2014
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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
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cesec@candidomendes.edu.br
ISSN 1807-528 2