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O filme de Willy Biondani estrelado por Sérgio Guizé, “Além do homem”, é um mergulho
na relação do brasileiro consigo mesmo e com sua herança colonial e europeia
Allan M. Hillani
O filme de Willy Biondani começa nos apresentando Alberto Luppo (Sérgio Guizé),
um escritor brasileiro radicado há muito tempo na França, às vésperas de um
encontro com seu sogro e chefe para discutir o projeto para o seu primeiro livro.
Descrito por Alberto para si mesmo diante do espelho como um “romance
filosófico”, ou melhor, uma “aventura metafórica”, ele espera que seu projeto seja
capaz de abrir suas portas para o mercado editorial francês. Enquanto ignora
Natahalie, sua namorada francesa, e ajeita sua écharpe, Alberto parece sonhar com
sua carreira francófona por vir. Seu sonho parece ir por água abaixo com a
correnteza do Rio Sena ao, em vez de conseguir explicar seu projeto, recebe a missão
de seu chefe de escrever sobre Marcel Lefavre, um antropólogo francês que foi
devorado por índios canibais no Brasil em uma jornada em busca da felicidade.
É pouco depois que vemos o que parece ser a primeira virada no pessimismo de
Alberto: quando a lata velha enguiça, deixando os dois completamente perdidos
numa mistura de sertão com cerrado, uma boa alma passa na estrada e concede
ajuda. Talvez fosse mais difícil conseguir a mesma ajuda em Paris, poderia ter
pensado Alberto. A dupla segue então para a suposta cidade fundada por indígenas
e escravos fugidos, o último ponto de referência do diário do canibalizado, mas se
deparam com uma vila abandonada. Ao tentar convencer monetariamente Tião a
levá-lo de volta para a capital sem sucesso, Alberto acaba tendo de pousar em uma
vila próxima por uma noite e voltar para casa apenas no dia seguinte. Na pousada,
ao se deparar com uma réplica de Abaporu da Tarsila do Amaral e ficar surpreso, em
partes por ver “cultura” na terra dos selvagens, em partes pela ironia antropofágica
de sua jornada, Alberto é informado pelo dono da pousada que “às vezes Rosalinda
se dá a pintar”, fazendo pouco caso da obra. Surpresa maior é descobrir quem é a tal
Rosalinda, que entra em cena já fazendo o infame trocadilho com o verbo “dar”,
exaltando a sexualidade quase afrodisíaca de sua personagem.
O sexo, aliás, permeia toda a experiência de Alberto na vila, seja sofrendo investidas
incessantes de Rosalinda, que se encanta com todos os aspectos do forasteiro
antipático, seja na experiência transcendental-sexual, de inspiração burlesca
“moulinrougeana”, que ele passa em um salão de beleza, seja nas divagações
filosóficas sobre a civilização ser nada mais do que o intervalo tedioso “entre uma
trepadinha e outra”, ou ainda na confusão entre sexo e canibalismo já inscrita na
ambiguidade do verbo comer transposta nas cenas finais do filme, que oscilam entre
um ritual indígena e uma cena de amor. O sexo, que antes no filme parecia ser objeto
animalesco do desejo colonizador, agora parecia ser a verdade secreta da vida. O que
o filme acaba sugerindo é que se os Europeus só descobriram que o desejo está no
fundamento do sujeito com o advento da psicanálise, aqui a sabedoria popular já
estava ciente fazia tempo.
A estética que o filme segue poderia beirar o surrealismo (europeu), mas talvez
remeta mais a um realismo fantástico latinoamericano. É como se Kafka e James
Joyce fossem devorados por uma mistura de Macunaíma, Auto da compadecida e
Grande Sertão: Veredas, em que o labirinto da narrativa remete a uma realidade
familiar, colorida e alegre dos diversos Brasis existentes. A divisão entre sonho e
realidade, que no início do filme parece tão nítida, aos poucos vai se esvanecendo e
dando lugar a uma experiência onírica tropical de autodescobrimento. Do mesmo
modo vai perdendo sentido a cisão entre sobriedade e ebriedade, ou entre razão e
loucura. “Louco é aquele que acha que não é louco”, alerta o personagem que se auto-
declara rei dos bobos. Não são só os palhaços shakesperianos, afinal, que sabem
enunciar verdades.