Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ARTIGO - Luhmann, Sistema Jurídico e Sistema - Germano Schwartz PDF
ARTIGO - Luhmann, Sistema Jurídico e Sistema - Germano Schwartz PDF
Germano Schwartz*
Resumo Introdução
O presente artigo objetiva delimi-
Quando o Fausto de Goethe diz que
tar o campo e método de estudo da
“não me interessa mais do Direito a ciên-
conexão entre direito e literatura, ba-
seando-se na teoria dos sistemas sociais
cia”,2 a literatura dá vazão a um senti-
autopoiéticos de Niklas Luhmann. Com mento que vem permeando uma série de
isso, pretende trazer uma nova forma de juristas, notadamente aqueles desapega-
observação da ciência do direito, cal- dos e, talvez, desapontados, com as fórmu-
cando-se no uso da teoria literária. las clássicas de análise da ciência jurídica,
quaisquer que sejam elas. Um dos gran-
des fatores desse fastio se deve, em gran-
de parte, ao abandono da humanidade no
direito, ou, como bem assevera Warat,3 à
profanação do sagrado feita pelos operado-
res jurídicos hodiernos.
Essa sensação de distanciamento en-
tre o texto e a praxis também é verificada,
e, mais, sentida, pelos seus tutelados. O
sentimento de descompasso entre a expec-
tativa sobre a norma positivada e a expec-
*
Doutor em Direito (Unisinos/Paris X – Nanterre). tativa de seu (des)cumprimento gera um
1
Este artigo é parte de pesquisa atualmente mecanismo reflexivo de alta complexidade
desenvolvida sob o patrocínio da Fapergsm já denunciado por Luhmann: a expectativa
intitulada “Direito & Literatura”.
outro, com o qual o objetivo legal seja, pelo de descontinuidade próprios do sistema
menos, compatível”. social no qual se insere. São as próprias
Perceber, portanto, que a conexão en- obras literárias que fornecem elementos
tre o sistema social artístico, onde se encon- para se decidir a respeito do belo/feio, e,
tra a literatura, e o sistema social do direito assim, mediante suas próprias premissas,
é um espaço de mútua irritação capaz de reconduzir o sentido de outras obras lite-
produzir novas respostas e novas operações rárias num nível dominado de contingên-
para cada um dos referidos sistemas é a con- cia.
tribuição principal da teoria autopoiética Referida dominação de contingência
para a co-relação direito/literatura. é, de fato, uma antecipação de futuro,18
Nessa linha de raciocínio, como bem algo bastante comum em obras artísticas.
observa Balke,15 Luhmann não somente Suas quebras de linearidade, suas mu-
usa o discurso literário como fórmula de fe- danças de estilo, enfim, seus conjuntos
chamento de um texto, mas o adota como de operações próprias possibilitam sua
parte da solução descritiva de problemas autopoiese mediante irritação do entorno.
aparentemente indescritíveis, pois os au- A literatura, oferece, assim, prognósticos
tores, normalmente avessos a experiências que podem ser facilmente amealhados
empíricas, conseguem, por intermédio do pelo sistema jurídico. Ocorre, entretanto,
texto, vivenciar o human being. Quiçá o au- que tal interpenetração não tem sido uma
tor/decisor do direito conseguisse tal resul- constante, privando o direito da recursivi-
tado. Com isso, assim como os poetas,16 po- dade autocriativa advinda da correlação
der-se-ia compreender, mesmo que o leitor/ entre os dois subsistemas sociais.
ouvinte necessite do silêncio, o beingness, o É exatamente sobre essa distância
existencialismo por detrás das normas. que a correta interpretação da teoria dos
Essa necessária interpenetração pode sistemas sociais autopoiéticos pode auxi-
ser obtida mediante o movimento auto- liar a reduzir. No caso específico, preten-
poiético de ambos os sistemas. A distin- de-se, como já dito, atingir tal fim por in-
ção utilizada para distinguir o sistema da termédio do imbricamento entre o sistema
arte do entorno e dos demais subsistemas jurídico e o sistema artístico (literatura).
sociais é, logicamente, aplicável à litera-
tura. O código belo/feio é o que permite
tanto a comunicação entre sistemas como
Considerações finais
a clausura do sistema artístico, elemento
Como a teoria dos sistemas sociais
necessário para sua autoconstrução e con-
autopoiéticos pode fornecer uma outra for-
seguinte autonomia (na sociedade!).
ma de se observar o problema? No plano li-
Um dos objetivos do estabelecimento
terário, tem-se que há uma observação es-
da diferenciação funcional do sistema artís-
pecífica (de segunda ordem). Essa mirada
tico é o questionamento simbólico das obras
filtra os ruídos provenientes do ambiente
de arte,17 elementos componentes de tal sis-
ao mesmo tempo em que traduz, sob seu
tema. Mais, seria a arte que definiria o que
olhar específico, os autoprocessamentos
seja uma obra de arte. Assim, uma decisão
dos demais sistemas. Existe, ainda, aquilo
judicial, para ser analisada sob tais crité-
que realmente caracteriza um sistema au-
rios, deveria se adaptar ao código belo/feio.
topoiético: a observação da auto-observa-
Deduz-se, pois, que é a própria litera-
ção. Essa segunda modalidade desvenda
tura que serve de apoio para os processos
Luhmann, sistema jurídico e sistema artístico ... 53
DE GIORGI, Rafaelle. Direito, democracia WARAT, Luis Alberto. O direito e sua lingua-
e risco: vínculos com o futuro. Porto Alegre: gem. Porto Alegre: Fabris, 1992.
Safe, 1998.
GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. São
Paulo: Abril Cultural, 1983. Notas
KORFMANN, Michael. A literatura moderna 2
GOETHE, Johann Wolfgang. Fausto. São
como observação de segunda ordem. Uma in- Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 29.
trodução ao pensamento sistêmico de Niklas 3
WARAT, Luis Alberto. O direito e sua lingua-
Luhmann. Revista de Estudos Germânicos, São gem, Porto Alegre: Fabris, 1992.
Paulo: USP, v. 6, p. 47-66, 2003. 4
LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito
I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1983. p.
LUHMANN, Niklas. A obra de arte e a auto- 47: “Para encontrar soluções bem integrá-
reprodução da arte. In: OLINTO, Heidrun veis, confiáveis, é necessário que se possa ter
Krieger (Org.). Histórias da literatura. São expectativas não só sobre o comportamento,
Paulo: Ática, 1996. p. 241-271. mas sobre as próprias expectativas do outro”.
5
OST, François. O tempo do direito. Lisboa:
_______. Art as a social system. California: Piaget, 1999.
Stanford, 2000. 6
Muito embora deveras sabido, não se incorre
em tautologismos, por necessidade de uma
_______. Das Recht der Gesellschaft. Frank- recuperação maiêutica da autopoiese, relem-
furt: Surkhampf, 1995. brar que é do ramo do saber biológico que a
idéia da autocriação é transplantada para
_______. Notes on the project “poetry and so- o sistema social. São Varela e Maturana,
cial theory”. Theory Culture & Society, En- biólogos chilenos, os autores da autopoiese
gland: Notthingham Trent University, v. 18, conforme concebida em sua concepção inicial
n. 1, p. 16-25, Feb. 2001. (vide, para tanto, MATURANA, Humberto
R. VARELA, Francisco J. A árvore do conhe-
_______. Sociologia do direito I. Rio de Janeiro: cimento: as bases biológicas da compreensão
Tempo Brasileiro, 1983. humana. São Paulo: Palas Athena, 2001, ou,
dos mesmos autores, De máquinas e seres vi-
LUHMANN, Sociologische Auflkärung 5: vos: autopoiese – a organização do vivo. São
Paulo: Palas Athena, 1997).
konstruktivistische perpektiven. Opladen: 7
Westdeutscher Verlag, 1993. Para maiores detalhes, veja-se CLAM, Jean.
A autopoiese no direito. In:_____; ROCHA,
MATURANA, Humberto R.; VARELA, Fran- L.S; SCHWARTZ, G. A. D. Introdução à teo-
cisco J. A árvore do conhecimento: as bases ria do sistema autopoiético do direito. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005. p. 103.
biológicas da compreensão humana. São 8
NICOLA, Daniela Ribeiro Mendes. Estrutura
Paulo: Palas Athena, 2001. e função do direito na teoria da sociedade de
_______. De máquinas e seres vivos: auto- Luhmann. In: ROCHA, Leonel Severo (Org.).
Paradoxos da auto-observação: percursos da
poiese – a organização do vivo. São Paulo: teoria jurídica contemporânea. Curitiba: JM,
Palas Athena 1997 1997. p. 228
9
NICOLA, Daniela Ribeiro Mendes. Estru- NICOLA, Estrutura e função..., 1997, p. 225.
10
tura e função do direito na teoria da socie- Consulte-se, a respeito, LUHMANN, Ni-
klas. Das Recht der Gesellschaft. Frankfurt:
dade de Luhmann. In: ROCHA, Leonel Se- Surkhampf, 1995. p. 38-54.
vero (Org.). Paradoxos da auto-observação: 11
KORFMANN, Michael. A literatura moderna
percursos da teoria jurídica contemporânea. como observação de segunda ordem. Uma in-
Curitiba: JM, 1997. trodução ao pensamento sistêmico de Niklas
Luhmann. Revista de Estudos Germânicos,
OST, François. O tempo do direito. Lisboa: São Paulo: USP, v. 6, p. 52, 2003.
Piaget, 1999. 12
Idem, p. 53-54.