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e-ISSN 2176-9190
ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze the implications of the power of technique over nature and the ethical
principles that aim to overcome these problems in the contemporary world, with Hans Jonas and Catherine
and Raphäel Larrère as central authors. The central issue of this text is that these three authors are in agreement
about the fact that the promise of modern technology has been converted into a threat to humanity, and that
the assumptions of traditional ethics are no longer suiciently adequate to overcome this situation. However,
there is conlict regarding the operationalization of a more efective response to this problem. Jonas proposes
the "responsibility principle," while Larrère & Larrère suggest the "precautionary principle." Thus, this article
aims to contribute to the current debate on environmental ethics in the environmental sciences, from an
interdisciplinary perspective.
Keywords: ethics; nature; politics; technique.
106 SANTOS, A. C. dos; SOUZA, K. K. M. Ténica e ética ambiental: um debate entre Jonas e Larrère e Larrère.
2. As implicações políticas do princípio a longo prazo, pois os pontos positivos e negativos
responsabilidade de Jonas são evidenciados no decorrer da ação, ou seja, as
consequências icam a critério do acaso. Além
No momento em que a promessa da tecnologia disso, a perspectiva de futuro limita-se à extensão
moderna converteu-se em ameaça, Jonas (2006) previsível do tempo de vida do indivíduo. Assim, a
desenvolveu seu pensamento para demonstrar a ação e as suas consequências são evidenciadas em
necessidade da elaboração de uma nova ética e um momento presente comum.
apresentou suas justiicativas para airmar que a Com base nessas características, as conside-
ética tradicional já não se mostra suicientemente rações sobre os efeitos das ações como boas ou
adequada para orientar a situação e garantir a exis- más são inteiramente decididas tendo como base o
tência da humanidade no futuro. Segundo Jonas curto prazo. Jonas aponta a invalidade de uma “ética
(2006), a ética tradicional não consegue contem- tradicional”, do próximo ou do “curto prazo”, pois
plar as novas situações e perspectivas, visto que esta implica o fato de que “Ninguém é julgado res-
não considera o comportamento cumulativo, nem ponsável pelos efeitos involuntários posteriores de
a condição global da vida humana e tampouco as um ato bem-intencionado, bem-reletido e bem-exe-
condições de existência em um futuro distante. Essa cutado” (Jonas, 2006, p. 37). Além disso, devido à
ética envolve apenas a natureza dos seres humanos, extensão do poder e do fazer coletivo, “ator, ação e
subjugando o aspecto extra-humano. efeito não são mais os mesmos da esfera próxima”
De acordo com o ilósofo, a ética tradicional (Jonas, 2006, p. 39).
compartilha os seguintes pressupostos: 1) a condi- Além desses aspectos, o autor apresenta outra
ção humana, conferida pela natureza do homem e característica que é insuiciente na ética tradicional:
pela natureza das coisas, encontra-se ixada, de uma o caráter cumulativo dos efeitos da técnica. Isso sig-
vez por todas, em seus traços fundamentais; 2) com niica dizer que as situações têm se tornado cada vez
base nesses fundamentos, pode-se determinar sem mais difíceis de serem revertidas, ou, pelo menos,
diiculdade e de forma clara aquilo que é bom para as condições para o restabelecimento das situações
o homem; 3) o alcance da ação humana e, portanto, atuais já não são as mesmas que as anteriores. Jonas
da responsabilidade humana, é deinida de maneira não questiona a validade das éticas tradicionais, mas
rigorosa (Jonas, 2006, p. 29). Ainda segundo o autor sim a insuiciência delas, considerando-se as novas
(2006), para essa ética, a natureza não é objeto de dimensões e projeções do agir humano. O ilósofo
responsabilidade humana, por isso, diante dela, argumenta que o conhecimento e sua aplicabilidade
são “[...] úteis a inteligência e a inventividade, não técnica inicialmente “neutralizaram” a natureza,
a ética” (Jonas, 2006, p. 34). Nesse contexto, a deteriorando seu valor intrínseco a favor de um
técnica é compreendida apenas como um atributo valor cientíico e comercial. O autor pensa, então,
determinado pela necessidade; ela é considerada sobre a nova condição da ciência, apresentada como
antropocêntrica e, por isso, o homem não é objeto um conhecimento voltado exclusivamente para o
da técnica. Não há necessidade de um planejamento desenvolvimento da técnica, tornando-se perigosa
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desaconselháveis, por conta do desconhecimento imprima o medo por meio da força. Com base nesse
sobre a totalidade de seus efeitos. pensamento, são apresentadas a seguir as medidas
Nesse sentido, a responsabilidade política deve políticas de Jonas.
considerar as características do novo contexto em Segundo Jonas (2006), não se deve permitir
que se processam as ações e seus efeitos, tendo em que haja um aumento do bem-estar mundial. Para
vista que “o dinamismo é a marca da modernidade; garantir a estagnação do crescimento econômico
ele não é um acidente, mas a propriedade imanente e da capacidade produtiva, o ilósofo defende a
desta época e, até nova ordem, o nosso destino. postura de advertência em relação a um mal maior
Isso quer dizer que temos de contar com o novo, por vir, acreditando no medo altruísta ao invés da
embora não possamos calculá-lo” (Jonas, 2006, p. esperança. Prevendo a irme oposição – e mesmo
203). Mesmo preocupando-se com a necessidade reação – a essa ideia, Jonas (2006, p. 294) airma:
da existência humana tanto no presente quanto no “[...] eu acredito que a solução está nesse caminho,
futuro, não é a responsabilidade que vai determinar se possível de forma voluntária; se necessário, for-
o suprimento de tais necessidades, ela emerge na çada”. Para garantir o princípio responsabilidade,
tentativa de possibilitar tal fato. A responsabilidade o governante, para Jonas, não pode medir esforços,
pretende evitar a emergência de efeitos pelos quais podendo recorrer à força bruta, a im de garantir uma
o responsável não poderá responder no futuro, seja espécie de redenção futura. Diante dessa análise, o
por falta de informação ou de tempo. autor apresenta o paradoxo da situação atual: “[...]
Levando em consideração tal característica, de precisamos recuperar esse respeito a partir do medo,
acordo com Jonas (2006), para a efetivação do prin- e recuperar a visão positiva do que foi e do que é o
cípio responsabilidade, a prevenção é uma postura homem a partir da representação negativa, recuando
muito mais eicaz que a sedução de uma promessa de horror diante do que ele poderia tornar-se, ao
incerta. Mesmo o desconhecido, ou aquilo em que encararmos ixamente essa possibilidade no futuro
não se deve apostar, pode tornar-se objeto de uma imaginado” (Jonas, 2006, p. 353).
política de prevenção. Assim, diante de tal desco- Para o autor, somente o respeito em decorrên-
nhecimento, Jonas opta pelo cenário do pior, pois a cia do medo protegeria o homem da destruição do
profecia do mal é feita para evitar que ele se realize. presente em nome do futuro. Entretanto, tal medo
Baseando-se na visão que projeta um cenário não se refere à incerteza. De acordo com o ilósofo,
negativo para conseguir garantir a participação de “O medo que faz parte da responsabilidade não é
todos na efetivação da proposta de responsabilidade aquele que nos aconselha a não agir, mas aquele
pelas gerações futuras, Jonas (2006) desenvolveu que nos convida a agir. Trata-se de um medo que
suas medidas práticas, aproximando-se da ideia de tem a ver com o objeto da responsabilidade” (Jonas,
que, quanto menos comunicação e discussão sobre 2006, p. 351). Ou seja, o temor é favorável à pre-
os temas, mais eicientes, rápidas e poderosas po- servação do objeto e as ações devem estar voltadas
dem ser as decisões para solucionar esses mesmos para esse im.
problemas. A sociedade, então, coniaria plenamen- Em uma tentativa de justiicar o rumo pa-
te suas decisões ao homem público, mesmo que ele ternalista e autoritário que vigora na aplicação
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do problema não coincide com sua postura ética: a mesmos a obrigação provinda do futuro” (Larrère
heurística do medo de Jonas antecipa a catástrofe, & Larrère, 2001, p. 275). O ilósofo alemão ignora
retirando toda a capacidade humana de pensar ações a racionalidade argumentativa e tem enorme dii-
livres que possam contornar o problema de outra culdade de entender a democracia como valor do
maneira, levando em conta o debate público e o mundo contemporâneo. Portanto, o posicionamento
conhecimento cientíico esclarecido. autoritário de Jonas não permite a compreensão da
Larrère & Larrère (2001) afirmam que a política em pleno século XX.
ambiguidade presente na obra de Jonas se deve ao É importante destacar que Larrère & Larrère
fato de que, mesmo denunciando a utopia técnica, o (2001) não são os únicos a fazer essa crítica a Jonas.
ilósofo continua preso à ilusão do poder total, acre- Semde (2015), ao analisar a ética e a política em
ditando na capacidade técnica para controlar todas Jonas, também faz coro às críticas ao alemão sobre
as ações humanas, por meio de uma previsibilidade a mesma questão, fundamentando-se em dois argu-
programada. Assim, Jonas, ao procurar “substituir mentos: a) Jonas pensava que a falta de dados cien-
a ciência pela ética, mantém sua separação” (Lar- tíicos absolutos sobre as consequências danosas à
rère & Larrère, 2001, p. 267), na medida em que natureza deixava margem a dúvidas, razão pela qual
exclui das decisões o debate público, por meio da não se pode fundar uma ética em um pensamento
“aterrorização” sobre uma catástrofe natural da duvidoso; 2) Jonas defendia uma mudança política
qual todos deveriam proteger-se para evitar o pior. global, na qual os cidadãos deveriam se sacriicar
Ora, essa ideia não só é incômoda, pois se trata de em nome do bem maior, o comum, especialmente
um princípio político, mas também é perversa, pois tendo em vista as gerações futuras, e, com isso,
traz um elemento religioso intrínseco, que vai na pressupunha cidadãos virtuosos e abdicados. Em
contracorrente das éticas laicas modernas. A ética tom sarcástico, Semde (2015, p. 160) pergunta:
da responsabilidade de Jonas é como uma ética “O homem de Estado preocupado em conservar
religiosa, de abstinência e de sacrifício, e não como seu poder pode optar em sacriicar as necessidades
uma ética da moderação. Por isso, airmam Larrère presentes e às vezes urgentes dos cidadãos atuais
& Larrère (2001, p. 274), Jonas faz “[...] da mesma sobre o qual ele deve contar para se manter no po-
forma que se ameaçam os crentes com os horrores der em nome de um cidadão apenas virtual?”. Ou
do inferno, já que não é possível incliná-los direta- seja, a diiculdade maior do pensamento de Jonas
mente para o bem”. é justamente fazer a ponte entre seu pensamento
No entanto, por que Jonas faz tão bem a análise ético e as atividades políticas que exigem questões
da técnica e, ao mesmo tempo, é tão obtuso do ponto práticas, urgentes e necessárias.
de vista político? Para Larrère & Larrère (2001),
Jonas teria diiculdade de estabelecer essa ética 4. A proposta de Larrère e Larrère ao
no campo político porque não se presta ao debate problema da técnica
democrático. “Jonas não acredita na capacidade das
democracias para se libertarem dos seus interesses Com base na crítica ao pensamento de Jonas e
presentes, para preverem a ameaça e imporem a si ao seu princípio ético da responsabilidade, Larrère
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é uma incitação ao melhor cenário, a um futuro Não é verdade que os problemas nascidos da
melhor, cultivando uma imaginação preventiva, técnica devem ser resolvidos por meio de soluções
complementar à inovação”. técnicas, porque a tecnologia contemporânea é a
De acordo com Larrère & Larrère (2001), ciência convertida em poder. A ciência apenas in-
na medida em que o agir técnico deliberadamente forma a técnica; ela não lhe impõe normas, razão
possibilita a transformação do conhecimento em pela qual a técnica torna-se um processo ilimitado.
ação, há um crescimento do poder e uma eventual Para Larrère & Larrère (2001), as proposições para
busca de solução para os problemas das populações a limitação da ação técnica não consideram o agir
atingidas pelos mesmos riscos que a técnica criou. humano de maneira isolada, mas sim situado na
Já a natureza, onde o poder é empregado, é vista co- natureza. Isso implica decisões que, para serem
mo algo desprovido de valor e que, sem a presença realizadas com base no princípio de precaução,
humana, traz sérios danos. A igualdade e a univer- precisam do conhecimento da ação do homem na
salização no tratamento dispensado à preservação natureza, e não apenas sobre a natureza. Portanto,
da natureza consistem em apagar as diferenças de a relação que Larrère & Larrère estabelecem é a de
posicionamento da humanidade entre as gerações “copertencimento”: o sentimento de que homem e
presentes e futuras. O homem deve ser visto como natureza estão próximos e são mutuamente afetados.
uma parte pertencente à natureza e que inluencia Nesse sentido, a ética ambiental pretende
o modo de vida dela. Portanto, a limitação da ação pensar a natureza como portadora de uma dignidade
técnica tende a reconhecer a ação do homem na moral, ou seja, de um valor intrínseco, mas também
natureza – e sobre a natureza –, estabelecendo uma entende que essa mesma natureza não está apartada
relação de pertencimento. A relação de copertença, do homem e, por isso, tem preocupação política. Por
baseada em tais princípios, pretende mostrar que essa razão, para Larrère & Larrère (2001), os princí-
o conhecimento transforma o mundo por meio pios do ecocentrismo estão fundados no pensamento
da ação, mas que este não é apenas um mundo daquele que é considerado o fundador da ética
que pode ser moldado ou manipulado de maneira ambiental americana: Aldo Leopold. Uma “coisa é
imparcial. Este mundo, ou seja, a natureza, é antes justa quando ela tende a preservar a integridade, a
de tudo um mundo valorizado, e não apenas algo estabilidade e a beleza da comunidade biótica. Ela
estático percebido de forma neutra. Isso signiica é injusta quando tende ao inverso” (Leopold, 1995,
dizer que a ética do princípio de precaução é, no p. 283). Isso implica dizer que o homem está imerso
fundo, ecocentrada, ou seja, fundada na relação de na natureza e dela faz parte todo ser existente, e
pertença, que não implica apenas uma representação todos os elementos dessa grande comunidade têm
cientíica do mundo, mas sim uma maneira de nele importância para o próprio equilíbrio da natureza
situar o homem e suas relações sociais, com base na (Callicott, 1989).
valorização da natureza. Por isso, não se restringe a
modiicações normativas, mas favorece, principal-
mente, mudanças comportamentais.
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em seu estado primitivo, sem qualquer interferência sível, em Larrère & Larrère este é compreendido
humana. O que se considera importante preservar é a como um bem comum, cuja gestão se dá mediante
capacidade evolutiva dos processos ecológicos, pois negociação. Neste ponto, é válido questionar qual o
só assim é possível proporcionar condições para a tipo de natureza se pretende transmitir às gerações
existência da humanidade no futuro. Além disso, futuras, com base na oposição de ideias dos autores.
essa proposta não compreende as ações humanas Ao tratar a questão ambiental de forma impositiva,
e a utilização da técnica unicamente sob o prisma pensando no meio ambiente como um espaço físi-
de seus efeitos negativos e destrutivos para o meio co, Jonas reforça a dicotomia homem/natureza, na
ambiente. As relexões políticas dos ecologistas medida em que as decisões não consideram a par-
expõem até que ponto os problemas do meio am- ticipação da comunidade local, ou seja, do homem
biente, ocasionados pela má utilização da técnica, em seu meio ambiente. A partir do momento em que
têm inluência nas condições de vida das populações se pensa na preservação do meio ambiente por meio
e reforçam as desigualdades sociais. da negociação, o homem é tomado como um ser da
No entender de Larrère & Larrère (2001), a natureza e na natureza, extraindo de sua convivência
dimensão ética dos problemas ambientais, a im- e de seus costumes os aspectos positivos que favo-
portância da publicidade do debate público sobre recem a preservação tanto da natureza física quanto
essas questões, a necessidade de diversiicação da humana. Ao se entender que cada comunidade
nas investigações cientíicas, a im de tornar mais tem uma relação peculiar com o meio ambiente e
sensíveis as limitações da ciência, e a coniança que este não é neutro, o meio ambiente passa a ser
no aparato tecnológico são aspectos essenciais na valorizado e percebido de forma diferente. Assim,
resolução dos problemas sociais e ambientais, de as relações não podem ser homogêneas.
modo a se ter clareza de que o homem deve estar Por im, a principal contribuição de Larrère
contemplado na natureza, e não fora dela. e Larrère para os propósitos deste artigo, além do
Se Jonas propõe a “heurística do medo” como debate com Jonas, está no fato de que os autores
ápice de seu princípio responsabilidade, o que acaba defendem as implicações do poder da técnica para
por caracterizar uma ética religiosa, de abstinência além da perspectiva dos impactos na natureza física,
e de sacrifício, Larrère & Larrère propõem o debate de modo a possibilitar, então, a relexão sobre os
público para seu princípio de precaução, no qual a valores e os objetivos da sociedade, bem como sobre
participação social é estimulada e a informação é as consequências negativas da coniança imputada
fundada na ética ecocentrada, que denota a maneira exclusivamente à técnica na resolução dos proble-
de o homem situar-se no mundo com suas relações mas ambientais. Essa relexão culmina com a busca
sociais, considerando aí a própria natureza. Essas por uma nova ética que possibilite a utilização da
ações visam evitar as aplicações absolutistas no técnica como aquilo que ela realmente é, ou seja,
tratamento das questões ambientais requeridas por um meio, e não um im em si mesma.
Jonas, conforme analisado neste estudo. Portanto, os três autores estão de acordo quan-
Enquanto em Jonas o meio ambiente é carac- to ao fato de que a promessa da tecnologia moderna
terizado como um patrimônio homogêneo e previ- converteu-se em ameaça e que os pressupostos da
Referências
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