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Resumo Abstract
O artigo tem como tema a crescente inser- T he subject of the present article is the
ção da produção do espaço nos circuitos de increasing insertion of spatial production
acumulação capitalista, espaço esse que, in the circuits of capitalist accumulation.
além de produto, se torna produtivo na ló- This space, besides being a product, is also
gica de valorização do capital. Nesse senti- productive in the logic of capital valuation.
do, seu objetivo é analisar os impactos da In this sense, the article aims to analyse the
acumulação na configuração espacial urbana impacts of accumulation on the urban space
e na estrutura de desigualdades socioespa- configuration and on the structure socio-
ciais através do estudo do caso do proces- spatial inequalities. To achieve this, it studies
so de formação do mercado imobiliário no the process of real estate market formation
município de São Paulo, destacando-se a in the City of São Paulo, highlighting the
recente atuação dos Fundos de Investimen- case of the Real Estate Investment Funds
to Imobiliários e Certificados de Recebíveis and the Real Estate Bonus. These financial
Imobiliários. Tais instrumentos representam tools represent a new level of interaction
um novo grau de interação entre o capital between the financial capital and the real
financeiro e o mercado imobiliário, com pro- estate market, with deep consequences to
fundos efeitos para a configuração do tecido the urban tissue configuration and to socio-
urbano e para a segregação socioespacial. spatial segregation.
Palavras-chave: urbano; capital financei- Keywords: urban; financial capital; real
ro; mercado imobiliário; segregação socio- estate market; socio-spatial segregation;
espacial; São Paulo. São Paulo.
produção e configuração, e como, por sua uma energia, uma força de trabalho, um
vez, estrutura as desigualdades socioespa- instrumento, por exemplo – para transfor-
ciais. Ou seja, na medida em que a cidade mar-se em valor adicionado à mercadoria
se torna um grande negócio para o capital, resultante do processo de trabalho. O con-
as leis de mercado passam a ditar as regras sumo produtivo usa a realidade material
do ordenamento da configuração socioespa- ao mesmo tempo em que também produz
cial urbana, com efeitos devastadores para (Lefebvre, 2000). E, como a privatização
a boa parte de sua população. dos meios de produção é uma determinação
Assim, no próximo item, será discutido geral do capitalismo, isso implica uma cres-
como o espaço é integrado na acumulação cente privatização do espaço, na medida em
capitalista, sendo, além de produto, tam- que este se incorpora ao capital como meio
bém produtivo para o capital. Em seguida de produção.
será analisado o caso da evolução histórica À dimensão utilitária do espaço, que o
do mercado imobiliário no município de São torna um valor de uso para a sociedade, se
Paulo, destacando-se os Fundos de Inves- sobrepõem determinações históricas da pro-
timento Imobiliários e dos Certificados de dução e da reprodução social, as quais, sob
Recebíveis Imobiliários, para exemplificar a vigência das relações capitalistas de pro-
como o espaço é crescentemente modelado dução, sintetizam o valor de troca e o valor
pela ação do capital ao inserir-se nos circui- de uso. O valor de troca se sobrepõe histo-
tos de valorização financeira. Por fim, serão ricamente ao valor de uso, o que significa
feitas algumas considerações sobre os efei- que, para usufruir determinados atributos 17
tos que essa dominação do espaço pelo ca- do lugar é preciso que se realize, antes de
pital acarreta para a população que vive nas tudo, seu valor de troca. Assim, os proces-
grandes cidades através do exame do caso sos de valorização do espaço passam, neces-
da metrópole paulistana. sariamente, pela mercantilização do próprio
espaço, mais concretamente pela mercantili-
zação dos lugares (Seabra, 1988).
O consumo e a produção De forma mais abrangente, a produção
e o consumo do espaço, assim como a ur-
do espaço sob o modo
banização, estão inseridos no amplo proces-
de produção capitalista so de reprodução das relações de produção
capitalistas, na medida em que são guiados
O espaço é uma condição geral de existên- pelos ditames da propriedade privada e são
cia e reprodução da sociedade. No modo de regulados pelas necessidades do capital, de
produção capitalista, ele é utilizado como gerar valor excedente. Segundo Lefebvre:
meio de produção para a geração de mais-
valia (além de propiciar a obtenção de uma [...] não é somente a sociedade inteira
renda aos proprietários fundiários), sendo, quem se torna o lugar da reprodução
nesse sentido, consumido produtivamente. (das relações de produção e não so-
O consumo produtivo sempre faz desapa- mente dos meios de produção), mas
recer uma realidade material ou natural – é o espaço inteiro. Ocupado pelo neo
entre o público e o privado: as terras eram conhecidas são de 1583 (Taunay, 2003).
concedidas na forma de datas, sem critérios As terras eram facilmente concedidas pela
precisos e definidos para sua concessão pela Câmara, como seria natural numa localida-
Câmara, não havendo um mercado imobiliá- de em que havia muita terra e pouca gen-
rio na São Paulo de então (Silva, 1980). te. Os beneficiários tinham que pagar, em
O regime político de propriedade de contrapartida, foros anuais, de valor muito
terras teve como fundamento, no Brasil, até baixo, havendo ainda concessões sem foro
1822, a sesmaria, forma de propriedade nem pensão alguma, pagando o concessio-
instituída pelo Estado absolutista português nário somente o dízimo. A população que vi-
em 1375, introduzido no Brasil em 1530. via nos arredores da vila não se preocupava
A concessão se fazia gratuitamente, sob a em estabelecer a propriedade fundiária, na
exigência de ocupação com cultivo e desbra- medida em que a posse já lhes garantia o
vamento da terra, e a obrigatoriedade do direito de uso da terra.
pagamento de um dízimo da produção à Or- A existência de algumas poucas transa-
dem de Cristo, à qual o Brasil oficialmente ções de compra e venda de terras na São
pertencia (Andrade, 2002) e em certos ca- Paulo quinhentista revela que o preço cobra-
sos, pagava-se também um foro anual. Dada do pela terra e pela construção era irrisó-
a vasta extensão do país e sua escassa popu- rio. Assim, em 1594, quatro mil réis valiam
lação, a oferta de terra era tão grande que “umas casas situadas no centro da vila”, va-
limites precisos das propriedades não eram lor igual ao de uma espada (Taunay, 2003).
20 estabelecidos, nem eram relevantes. Segundo Saes (1992), esse paradoxo seria
O mecanismo de sesmarias configurava apenas aparente, pois construir uma casa
uma das formas de organização fundiária exigia apenas o uso do trabalho do indígena
dos núcleos urbanos que, na maioria das escravizado que não custava praticamente
vezes, se combinava com as datas, espécie nada em termos monetários, já os produtos
de sesmaria urbana. Uma vez constituída a manufaturados eram provenientes do exte-
vila, a Câmara detinha o poder de doar e re- rior, sendo transacionados em moeda, que
tirar terras, ou seja, cabia à municipalidade era escassa na vila.
a concessão de “terras e chãos” a partir do
“rossio da vila”, ou seja, as terras comunais
pertencentes à vila, outorgadas pelo dona- A cidade comercial
tário da capitania (Rolnik, 1999). O proces- e o boom cafeeiro
so de obtenção de sesmarias era bastante
moroso e burocrático, o que estimulava, ao São Paulo, em fins do século XVIII, inicia sua
lado do processo legal de apropriação de transição para o período de predomínio do
terras pela doação de datas e de sesmarias, capital mercantil, que articularia a produção
a apropriação direta por pessoas de meno- de sua hinterlândia com o exterior. Segun-
res recursos e prestígio: eram os chamados do Paul Singer (1977) a função comercial
posseiros. de São Paulo ampliou-se a partir do século
Dentro da área demarcada da vila de XVIII e começos do século XIX, ao servir a
São Paulo, as mais antigas cartas de data cidade de entreposto ao intercâmbio entre
diversas regiões do país, que não lhe eram província, passando a ser a sede da burocra-
diretamente tributárias e o interior paulis- cia, o centro dos gastos de receitas provin-
ta, cuja agricultura perdera parcialmente ciais e, em 1828, a Faculdade de Direito é aí
seu caráter de subsistência, adquirindo um estabelecida, atraindo estudantes de muitas
modesto setor de exportação de açúcar, partes do Império, membros das elites re-
principalmente com a produção de cana-de- gionais, o que impulsionou o comércio e o
açúcar nas áreas de Campinas e Itu, o que setor de serviços que atendia a esses estu-
possibilitou o desenvolvimento de alguns dantes. O crescimento econômico e popula-
circuitos propriamente urbanos de riqueza cional da cidade, porém, ainda era lento, o
(Seabra, 1987). que contribuía para o pequeno desenvolvi-
Em 1822, com a Independência, foi mento do mercado imobiliário. As relações
extinto o regime de sesmarias e iniciou-se sociais tinham por base as relações escravis-
um período de amplo apossamento de ter- tas, o que minimizava a necessidade de se-
ras, sem clara definição dos procedimentos gregação espacial no interior da cidade, já
a serem adotados para a sua obtenção. Mas que a hierarquia social estava bem definida
não podemos dizer que nesse momento já por essas relações.
havia uma disputa pela propriedade da terra; Somente com a expansão da cafeicul-
segundo Seabra (1987), os contornos dessa tura no oeste paulista, justamente a partir
disputa apenas estavam começando a se de- de meados do século XIX, é que a cidade
finir, tornando-se mais acirrados em meados passará a experimentar um novo surto de
do século XIX, com o maior desenvolvimento crescimento, mais acelerado que o ocorrido 21
das relações capitalistas na cidade. no século XVIII e primeira metade do XIX. É
Com a Lei de Terras de 1850, ficou es- a partir de 1868 que o sistema São Paulo-
tabelecido que a única forma legal de acesso Santos se insere de forma cada vez mais
à terra seria a compra devidamente registra- sólida no grande negócio cafeeiro, com a
da. Reconhecia-se, assim, a mercantilização construção da ferrovia (1867), e, a partir
da terra e distinguia-se legalmente sua pos- da última década do século XIX, arrebata ao
se e seu uso de sua propriedade legal. Em Rio de Janeiro sua posição hegemônica, tor-
1854, em decorrência da regulamentação nando-se o grande eixo de comercialização
da Lei de Terras, todos os moradores que do mais importante produto de exportação
estivessem em vilas ou cidades, em áreas ur- brasileiro no período.
banas e rurais, obrigatoriamente, deveriam Os anos iniciais da década de 1870 se-
ir até a igreja da freguesia em que moravam riam fundamentais para o desenvolvimento
para definir ou provar sua propriedade (Gle- de São Paulo, na medida em que esse foi o
zer, 1994/95). período em que, no oeste paulista, a zona
Anteriormente ao boom cafeeiro, São pioneira da época, se dá uma inflexão na re-
Paulo passou por um desenvolvimento eco- lação entre terra e trabalho, iniciando-se o
nômico lento, porém cumulativo, desen- processo de desaparecimento da renda capi-
volvimento esse também incentivado por talizada na pessoa do trabalhador (escravo),
fatores extra-econômicos (Singer, 1977). que é substituído pela terra como principal
Em 1822, a cidade tornou-se a capital da fonte de riqueza.
Apesar do comércio cafeeiro localizar- ras de São Paulo, “mais do que indicar os
se sobretudo em Santos, foi em São Paulo vetores de crescimento da cidade, expressa
que se concentraram os estabelecimentos uma mudança de mentalidade e de interes-
bancários, dado o seu status de capital da se sobre o valor do solo urbano” (Costa,
província, tendo em vista a dependência dos 2003, p. 60).
negócios bancários da política econômica Pode-se dizer que, a partir de 1880,
do governo. Outro fator, proveniente da algumas circunstâncias levaram os imóveis
cafeicultura, que influiu no desenvolvimen- urbanos a se tornarem uma das mais inte-
to econômico e urbano de São Paulo foi o ressantes opções de investimentos (Brito,
fato de que numerosos fazendeiros fixaram 2000): a disponibilidade de capitais, que
residência na capital, ampliando o mercado vinha se configurando pelo menos desde
imobiliário da cidade e o setor comercial e 1850, com a proibição do tráfico de escra-
de serviços para atender a esse grupo. De vos liberando os recursos aí imobilizados
acordo com Saes (1992), a transferência por comerciantes e fazendeiros; o cresci-
dos fazendeiros para São Paulo também te- mento demográfico e econômico da capital,
ve por efeito a transferência para a cidade, o que aumentou bastante a demanda por
não apenas de sua residência, mas também imóveis por todas as classes de renda; a
de crescentes parcelas do seu capital, confi- busca por aplicações seguras em uma con-
gurando a “capital do capital” dos fazendei- juntura política incerta nos últimos anos do
ros. Outro elemento importante foi o esta- Império e início da República. Vale lembrar
22 belecimento da Hospedaria dos Imigrantes,3 que a economia cafeeira era sujeita a mui-
transformando São Paulo em um mercado tas oscilações (problemas climáticos, crises
de força de trabalho para a economia cafe- externas, superprodução e oferta excessiva,
eira. O grande afluxo de imigrantes para o etc.), o que fortalecia o papel da terra ur-
trabalho na lavoura teve por efeito o esta- bana como reserva de valor para os capitais
belecimento de muitos deles na cidade, con- excedentes. Outro elemento importante pa-
tribuindo para o crescimento desta. ra o estímulo à formação de uma atividade
Segundo Langenbuch (1968), aproxi- imobiliária importante nos primeiros anos
madamente até a década de 1890, a cidade da República foi o chamado “Encilhamento”
de São Paulo era circundada por um cintu- (1889-1891), 4 que teve em São Paulo o
rão de chácaras, que, além de fins agrícolas, efeito de criar quinze bancos e 207 compa-
encerravam importante função residencial nhias, muitas delas baseando seus negócios
para as famílias abastadas. Essas chácaras na atividade imobiliária (Barbosa, 1987).
formavam um bloco relativamente compac- Como exemplo do processo de valori-
to, que circundava a cidade, estendendo-se zação das terras na cidade tem-se o caso de
até as atuais áreas de Ponte Grande, Pari, Frederico Glette e Vitor Nothmann que, ao
Brás, Mooca, Cambuci, Vila Mariana, Jar- lotearem a Chácara Mauá para famílias de
dim Paulista, Vila América, Santa Cecília, cafeicultores, gastaram cerca de cem contos
Barra Funda e Bom Retiro. Foram loteadas na aquisição do terreno e auferiram um re-
por seus proprietários, desde fins do Impé- sultado final de oitocentos contos na venda
rio. O desmembramento das antigas cháca- dos lotes (Toledo, 1978).
dos anos 30 São Paulo já era o maior centro como a Vila Economizadora5), e os sócios
industrial da América do Sul. podiam adquirir essas moradias através de
Nesse período a cidade se expande, com financiamento da companhia que distribuía
o crescimento dos subúrbios, localizados a bonificações, pensões e aposentadorias.
cerca de três, quatro ou mais quilômetros Algumas companhias de maior porte
dos limites urbanos, como Santana, Penha, dedicaram-se ao negócio imobiliário nesse
Ipiranga, Pinheiros e Água Branca (Azevedo, período, reunindo capitais nacionais e estran-
1961). Ocorre um aumento no número de geiros. Não se pode deixar de mencionar,
edifícios e do número de andares de muitos como exemplos de grandes empresas que
deles, cresce o número de veículos motori- atuaram no setor imobiliário em São Pau-
zados, criam-se os “bairros-jardim” para a lo, o caso da Companhia City (Wolff, 2001),
população de maior renda, e a população da criada em 1911, reunindo sócios brasileiros
cidade aumenta a um ritmo acelerado. e estrangeiros e o caso da Companhia Light,
Nas primeiras décadas do século XX grande proprietária de terras nas margens
o ritmo da construção civil se intensifi- do Rio Pinheiros (Seabra, 1987).
cou, tornando-se uma importante fonte de Inicia-se, concomitantemente à expan-
acumulação: expandiram-se as atividades in- são da cidade, o processo de verticalização:
dustriais e comerciais ligadas à construção as construções verticais passaram de 4% do
física da cidade, à expansão dos prédios, total em 1910 para 33% em 1920 (Barbo-
ao calçamento de ruas e à urbanização de sa, 1987). O capital imobiliário, então em
24 bairros. Pelo menos até a década de 1930, constituição, exigia a multiplicação do solo
a construção de casas de aluguel, de diver- urbano, o que foi conseguido através da
sos tipos e tamanhos, era vista como uma verticalização das áreas centrais mais valori-
forma de investimento de retorno certo e zadas, constituindo uma nova estratégia de
seguro, pois, além de uma renda mensal, o valorização do capital (Somekh, 1997).
investidor contava com a excepcional valori- Ao lado da verticalização do centro,
zação imobiliária ocasionada pela expansão observa-se nesse período já uma expan-
da cidade (Bonduki, 1998). são horizontal da cidade decorrente das
A partir de 1910, esses empreendi- facilidades de transporte. A operação da
mentos passam a ser feitos também por The São Paulo Tramway Light and Power,
companhias prediais e mútuas. As compa- iniciada em 1899, acarretou uma segun-
nhias prediais eram, ao mesmo tempo lo- da onda de explosão das vilas na zona su-
teadoras, incorporadoras, construtoras e burbana, nas superfícies vazias situadas às
administradoras de imóveis. Já as mútuas margens dos rios, nos interstícios da rede
eram companhias de Crédito Imobiliário, de estradas de ferro ou nas proximidades
que operavam captando poupança através dos terminais da Light.
de um sistema de pagamento mensal dos No final dos anos 30, lentamente, co-
sócios. Esse capital era investido em terre- meça a ocorrer uma mudança no padrão de
nos e construções de “habitações econômi- crescimento da cidade, marcado pela substi-
cas” (que podiam ser pequenos grupos de tuição do transporte sobre trilhos (bondes)
casas geminadas até centenas de habitações, pelo transporte sobre rodas (ônibus, auto-
móveis) e pela constituição da autoconstru- radias, sem contar com o déficit já existente
ção na periferia como forma predominante e o número considerável de prédios demo-
de habitação das camadas de baixa renda, lidos em função do boom imobiliário e de
o que resultou no espraiamento progressi- desapropriações para obras viárias (ibid.).
vo e na diminuição da densidade da cidade. Para agravar a situação, deixara de ser in-
Soma-se a isso, principalmente a partir dos teressante investir na construção de casas
anos 40, a verticalização nas zonas centrais e de aluguel devido ao congelamento dos
a consolidação do centro/sudoeste da cidade aluguéis (Lei do Inquilinato de 1942) e às
como centralidade privilegiada, concentran- restrições governamentais ao financiamen-
do os bairros residenciais de alta renda e os to de incorporações de edifícios. Em virtu-
principais centros de comércio e serviços. de dessa situação, nos anos 40, houve uma
Nesse contexto, a especulação imobiliá aceleração da construção de arranha-céus
ria tornou-se intensa. Segundo Langenbuch na área central, destinados a investidores
(1968), a falta de lotes disponíveis nas ou aos setores de rendas mais altas, e queda
áreas mais próximas à ocupação mais densa na edificação de prédios para o mercado de
da cidade e seu alto preço obrigaram parte locação residencial de menor renda. Exem-
dos novos moradores (sobretudo migrantes plo ilustrativo do agravamento da escassez
nacionais) a se estabelecerem em áreas mais de moradia em São Paulo é o surgimento,
afastadas. A instalação das indústrias ao lon- na década de 1940, das primeiras favelas,
go das ferrovias estimulava os operários a se localizadas em terrenos municipais.
estabelecerem em torno das estações ferro- A partir de 1950 a produção imobiliá 25
viárias fora da “cidade”, onde poderiam ad- ria diversifica-se, com empreendimentos
quirir terrenos ou alugar casas a preços mais realizados e financiados pelas companhias
baixos. Surge, assim, um extenso “cinturão construtoras e com a atuação dos Institutos
de loteamentos residenciais suburbanos”, Previdenciários e outros órgãos estatais ou
mas ainda escassamente edificados e ocupa paraestatais no desenvolvimento suburbano
dos. A enorme oferta de lotes baratos – (Langenbuch, 1968). Muitos loteamentos
pois distantes e desprovidos de benfeitorias seguiram a implantação industrial, localizan-
urbanas –, podendo ser pagos a prestação, do-se nos novos eixos rodoviários iniciados
com a possibilidade de serem ocupados sem a partir do final da década de 1940, espe-
os custos e os aborrecimentos envolvidos na cialmente ao longo das vias Dutra e Anchie-
feitura e aprovação de uma planta e sem o ta. A cidade se expandiu em várias direções,
risco de perturbação pela fiscalização viabi- ocupando as várzeas e as colinas, englo-
lizou o mercado de loteamentos distantes e bando antigos núcleos isolados, adensando
criou uma alternativa habitacional de massa loteamentos e áreas já ocupadas, levando a
para os trabalhadores (Bonduki, 1998). população para cada vez mais longe do cen-
A cidade de São Paulo, centro industrial tro. Ao lado das atividades propriamente
do país, teve sua população aumentada de industriais, a atividade de lotear, exercida
1,3 milhão de habitantes em 1940 para 2,2 pela iniciativa privada, foi uma das locomo-
milhões em 1950. Esse aumento demográ- tivas dessa urbanização acelerada (Sampaio,
fico criou uma necessidade adicional de mo- 1994). Dentre os loteadores, havia empre-
ou privado, sendo o preferido dos empre- ditos para as obras ser fundamental. Além
sários do setor. O surgimento, em meados disso, a demanda desse setor encontra-se
da década de 1990, de novas modalidades fragmentada entre os diversos usos a que se
de captação de recursos por parte do setor destina a produção imobiliária e às diversas
imobiliário, como os Fundos de Investimen- faixas de renda da população que procura
to Imobiliário (FIIs) e os Certificados de Re- um imóvel para morar, havendo muitas ve-
cebíveis Imobiliários (CRIs), ligadas ao capi- zes a necessidade de financiamento para a
tal financeiro, sinalizaram uma reafirmação efetivação da demanda. Ou seja, como nos
do vetor sudoeste da cidade como área de demais ramos industriais, o setor da cons-
valorização privilegiada. Em 2002, 63% trução necessita de um capital autônomo
dos lançamentos de alto padrão que ocorre- (Topalov, 1979) para a viabilização de suas
ram na Grande São Paulo concentraram-se atividades produtivas e para a realização do
nos distritos de Moema (597 lançamentos), capital aí investido.
Os Certificados de Recebíveis Imobi-
Campo Belo (488 lançamentos), Morumbi
liários (CRIs) e os Fundos de Investimento
(406 lançamentos), Jardins (23 lançamen-
Imobiliário (FIIs) são instrumentos intro-
tos) e Alto de Pinheiros (130 lançamentos)
duzidos no Brasil no seio da reestruturação
(Lage, 2003).
do financiamento habitacional da década de
Tais instrumentos, que significam uma
1990. Apesar de serem considerados por
nova etapa de inserção da produção do es-
alguns agentes do setor imobiliário como
paço nos circuitos de valorização do capital,
28 o futuro do financiamento da habitação de
serão analisados no próximo item.
mercado, tais instrumentos ainda não rea-
lizaram todas as suas potencialidades por
uma série de fatores que serão analisados
Os novos instrumentos mais adiante. Em sua grande maioria, ain-
de financeirização da atuam no país como forma de abreviar o
do setor imobiliário tempo de circulação do capital comprome-
tido com a produção imobiliária existente e
A necessidade de recursos volumosos para não como maneira de reunir capitais para o
a compra de materiais – quase sempre bens financiamento de novos projetos, ao contrá-
intermediários duráveis –, para o pagamen- rio do que ocorre em países onde esses ins-
to da força de trabalho, para a adequação trumentos são mais antigos.
às inovações tecnológicas (particularmente Em 1997, foi promulgada a Lei 9.514,
sensível na construção de imóveis comer- que estabeleceu o Sistema Financeiro Imobi-
ciais) e para o acesso ao solo urbano, tendo liário (SFI), aprovada pelo Congresso Nacio-
em vista a barreira colocada ao setor pela nal a partir de proposta de lei da Associação
propriedade fundiária, faz com que o apor- Brasileira de Entidades de Crédito Imobiliá
te inicial de recursos necessários à produção rio (ABECIP); trata-se de um sistema de
imobiliária seja elevado, superando muitas financiamento complementar ao tradicional
vezes a capacidade de investimento dos em- Sistema de Financiamento Habitacional (que
presários do setor. Daí a necessidade de cré- não deixou de existir com a criação do SFI).
São inovações no financiamento imobiliário títulos que adquiriram sobre o ativo securi
nacional através da criação de instrumentos tizado. Assim, os títulos são gerados por
de securitização imobiliária que possibilitam uma entidade legal, criada exclusivamente
a transformação de bens imóveis em títulos para suportar a operação de securitização.
mobiliários. A lei que criou o SFI introdu- Essas entidades são as Sociedades de Propó-
ziu também um novo veículo legal denomi- sito Específico (SPE).
nado Companhia Securitizadora de Créditos Os FIIs foram criados em junho de
Imobiliários, sociedades com propósitos de 1993, pela Lei 8.668, e regulamentados
fazer a securitização dos recebíveis imobiliá pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários)
rios através da emissão dos CRIs - títulos em janeiro do ano seguinte, ano em que foi
imobiliários equivalentes a debêntures. lançado o primeiro FII, o Memorial Office
Tais inovações buscam articular o setor Building, na cidade de São Paulo. Atualmen-
imobiliário com o mercado financeiro, esta- te, já estão em funcionamento cerca de 60
belecendo um processo de desintermediação fundos, com um patrimônio líquido de cer-
bancária para o financiamento da produção, ca de R$ 2,4 bilhões.6 Os projetos-alvo dos
ao mesmo tempo em que oferecem possi- FIIs são variados, desde shopping centers e
bilidades de ganhos financeiros aos investi- parques temáticos a hospitais, de edifícios
dores. O mecanismo da securitização amplia de escritórios e galpões industriais a con-
as possibilidades de captação de recursos e juntos habitacionais e condomínios de alto
acesso a financiamento aos “originadores” padrão. As grandes “estrelas” dos FIIs são
desses créditos (as incorporadoras, cons- os shoppings centers (como o Shopping Pá- 29
trutoras, etc.), dando-lhes acesso direto tio Higienópolis em São Paulo) e os edifícios
ao mercado de capitais e reduzindo, teori- comercias de alto padrão. Em consulta rea-
camente, os custos e riscos da captação de lizada junto aos prospectos de FIIs deposita-
recursos financeiros. A securitização tam- dos na CVM, em novembro de 2002, apenas
bém possibilitaria uma aceleração do tempo dezesseis fundos imobiliários criados até
de giro do capital das empresas, através de aquela data tinham como objetivo o merca-
transformação dos direitos a receber pela do residencial, de um universo de cerca de
venda dos imóveis a prazo em títulos ven- sessenta atuantes no país naquele momento.
didos à vista. Dessa forma, a incorporadora Alguns outros possuíam em sua finalidade a
não necessita esperar pelo vencimento da aquisição genérica de imóveis, sem especifi-
dívida dos mutuários para recuperar o capi- car o tipo de mercado a que se destinavam.
tal investido. Até 1999, os principais investidores
Considerando que os investidores em nos FIIs eram os grandes fundos de pensão
títulos imobiliários securitizados têm como (como a Previ, a Valia, a Petros, a Funcef,
grande interesse a qualidade dos recebíveis etc.) e investidores institucionais. Somente
e do ativo originado, é essencial que os ati- a partir desse ano é que se buscou atrair
vos negociados sejam separados da estru- os pequenos e médios investidores, com o
tura jurídica do “originador”, evitando que lançamento de fundos com cotas de valor
o eventual fracasso da instituição emitente unitário mais baixo, como é o caso do Eu-
prejudique os direitos dos investidores nos ropar, do Shopping Pátio Higienópolis, do
LEGENDA
u I.F. - C.R.I.’s (40)
n I.F. - F.I.I.’s (46)
l I.F. - Fundos Pensão (32)
0 3 6 9
kilometers
Fonte: CVM - Empresas de Securitização de Recebíveis e Fundos de Pensão. Base Cartográfica Digital e Geopro-
cessamento: Prof. Dr. Reinaldo P. Pérez Machado. Dados de 2002 a 2004.
31
Fonte: Elaborado a partir de dados obtidos junto à CVM, Empresas de Securitização de Recebíveis e Fundos de
Pensão, no período entre 2002-2004. Valores em R$.
Adriano Botelho
Formado em Economia pela Universidade de São Paulo e em Geografia pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo. Mestre e doutor em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Hu manas da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil). Aluno do Instituto
Rio Branco – Curso de Formação em Diplomacia - Ministério das Relações Exteriores.
abot@usp.br
Notas
(1) Pode-se caracterizar uma “bolha imobiliária” como o fenômeno de rápido aumento dos
preços dos imóveis em decorrência do excesso de investimentos realizados no setor imobi-
liário.
(2) Lefebvre, ao discutir o consumo produtivo do espaço, parte do conceito de Marx, de con-
sumo produtivo, atualizando, porém, esse conceito. Para Marx (1989, p. 666), o consumo
produtivo ocorre quando o trabalhador, aplicando sua força de trabalho sobre os meios de
produção, transforma-os em produtos de valor maior que o desembolsado pelo capital. Ocor-
re, portanto, consumo tanto da força de trabalho quanto dos meios de produção no processo
produtivo. O consumo produtivo se opõe ao consumo individual. Esse último ocorre quando
o capitalista ou o trabalhador emprega o dinheiro para a satisfação de suas necessidades
pessoais, não ocorrendo a geração de um novo bem com valor de mercado.
(3) A Hospedaria de Imigrantes, cuja construção se iniciou em 1886, no bairro do Brás, foi con-
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cebida para abrigar os recém-chegados nos seus primeiros dias em São Paulo. Os imigrantes
ficavam na Hospedaria por até oito dias. Em geral, esse prazo era suficiente para que acer-
tassem os seus contratos de trabalho, geralmente com fazendas de café.
(5) Criada em 1907, a Sociedade Mútua Economizadora Paulista contratou o empreiteiro Antô-
nio Bocchinni para construir esta vila, com 117 casas e 17 armazéns voltados para a Rua São
Caetano, área central do Município de São Paulo.
(7) O dados de preço dos terrenos foram obtidos a partir do trabalho de Machado, 2004.
(8) Elaborado a partir de dados obtidos junto à CVM, Empresas de Securitização de Recebíveis
e Fundos de Pensão, no período entre 2002-2004. Valores em R$.
(9) Considera-se como o intervalo entre zero e 114,21 R$/m² como correspondente à faixa de
valores baixos. Entre 114,22 e 475,31 R$/m² como valores médios, entre 475,32 e 1.137,82
R$/m² como médios-altos e, finalmente, acima de 1.137,83 R$/m² como altos valores dos
terrenos.
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Recebido em ago/2007
Aprovado em out/2007
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