Corpos de passagem: ensaios reaparece como aquele que vence suas próprias limitações ou conquista seu próprio sobre a subjetividade empreendimento. Ou seja, o indivíduo domina a contemporânea. si mesmo ou os espaços, transformando a natureza, recriando cidades onde passeia sem SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. medo – é a ‘indústria da alegria’ –, temas tratados no terceiro e no quarto ensaio. São Paulo: Estação Liberdade, 2001. A velocidade também passa a ser condição 127 p. de sucesso, poder e riqueza, mostra a autora no primeiro ensaio. Aquele que se quer desvencilhar do peso de tudo “teme carregar muito corpo, muita memória, muita identidade. E se vê ameaçado constantemente pela vertigem da Na década de 1990, Denise B. de Sant’Anna compulsão e pela depressão aniquiladora” publicou dois livros problematizando o corpo, (p.25), conclui Denise. E faz pensar que os apelos além de diversos artigos. A obra Corpos de do mercado colocam a vida na moda. Então, passagem, ainda um desdobramento dessa envelhecer ou morrer também se comercializa, reflexão, reúne dez ensaios que foram escritos pois a imortalidade é aqui, nesta vida. na mesma década e publicados ou Enquanto a exposição do corpo ganha apresentados, integralmente ou parcialmente, publicidade, o interior do corpo provoca náuseas. em diferentes meios (jornal, revista, mesa-redonda Até bem pouco tempo, doentes eram tratados e, certamente, rascunhos do debate em casa, bem como galinhas e porcos que além acadêmico). Historiadora da PUC-SP, doutorada de serem tratados eram mortos em casa. Os pela Universidade de Paris VII, Denise B. de penicos ficavam em baixo da cama. A Sant’Anna vem ampliar os questionamentos que menstruação passava pelas mãos que lavavam a sociedade e, em especial, a academia têm as toalhinhas. Sangue, fezes e urina faziam parte feito sobre o corpo, que passa a ser objeto de da rotina. “Na medida em que o corpo ganha estudo a partir da década de 1970. direito de exposição, ele conquista o dever de A exploração comercial do corpo, questão ser civilizado e fotogênico” (p. 69), coloca a levantada por Denise Sant’Anna, trouxe, autora, no quinto ensaio. No segundo, mostra paradoxalmente, a ‘desertificação da vida’. como o hospital deixa o corpo ‘paciente’ aos Quanto mais se explora o corpo, mais ele se torna cuidados e especialidades de estranhos. Estar infinito, rompem-se as fronteiras territorias. O corpo doente não é mais ‘natural’. A dor, que no século não é mais uma unidade, mas um elo entre os XIX era sinônimo de coragem e persistência, deve corpos. As pesquisas genéticas estão criando ser banida. A vida do doente é como se não fosse transgênicos e seres pós-gênero, no entanto as vida, passa a ser um momento intervalar. desigualdades sociais permanecem. Essas são O nono ensaio polemiza a idéia que deu discussões especialmente presentes no sétimo e origem ao título do livro: o corpo-passagem. A no oitavo ensaio. idéia de possessão como um lugar de passagem. O corpo como equivalente de riqueza e Aquela máxima feminista, da década de 1960, explorado pelo mercado é a tônica das reflexões “nosso corpo nos pertence”,1 que pretendia ser da autora. A estética aerodinâmica suavizando um contraponto da dominação do homem sobre as linhas, a tecnologia virtualizando a pessoa viva, a mulher, não só se esvazia como nos remete a cria um abismo “entre os nossos”, diz ela. O pensarmos que nossos corpos não pertencem a deslocamento é valorizado: viagens de férias, ninguém, nem a nós mesmos. Na metáfora spas ou resorts, esportes radicais... Prometeu utilizada pela própria autora, o corpo é parodoxal
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à medida que não é algo pronto mas também citada na sua abordagem sobre tecnociência e não é um rascunho. Somos e temos um corpo seres pós-gênero) e outros poucos/as sempre de passagem. Não no sentido cristão de pesquisadores/as brasileiros/as, como Heloisa de passagem para o céu, embora para alguns Farias Cruz, que aparece quando o assunto é a também possa ser, mas no sentido de que um convivência entre pessoas e animais nas cidades mesmo corpo possa assumir formas (plasticidades (mostrando a utilização dos animais de carga na e comportamentos) em diferentes momentos ou São Paulo das primeiras décadas do século em um mesmo momento. O corpo pode estar em passado); Beatriz Sarlo, quando se fala do modo um determinado local e em outro ao mesmo de vida – zapping – dos dias atuais; e Celia M. T. tempo, pode estar parado e em movimento... As Serrano e Heloisa T. Bruhns quando o assunto é polaridades já foram superadas pelas reflexões turismo, cultura e ambiente. Entre os/as autores/ contemporâneas da subjetividade. E Denise as em lígua francesa, aparecem: Monique Sicard, Sant’Anna coloca essas questões nesse livro, sendo referenciada quando o assunto é imagens; embora avise dos riscos de cair na areia Peter Handke, Alain Ehrenberg e Jean-Luis Chrétier, movediça da valorização do corpo que carrega na discussão sobre o charme da lentidão quando a ‘universalidade’ do indivíduo, onde habita sua a contrapartida é a fatiga; Henri Béraud e Claude pátria, seus sucessos e fracassos. Os conceitos Fiscler, inspirando as fala sobre obesidade; universais de Deus, Nação podem, e têm sido Vladimir Jankélevitch, Jean-Pierre Peter, Marie- transferidos para a noção de indivíduo. O Christine Pouchelle e Timothy Lenoir discutindo mercado e a publicidade mostram que a sobre morte, dor, hospitais e cirurgias; Bernand felicidade pode ser comprada, que as coisas e Edelman, sobre a publicidade da privacidade; os bichos podem ser humanizados (nos falam, nos Marc Guillaume e Pascal Bruckner, com seus incitam, os animais conversam, fazem respectivos trabalhos sobre a fábrica do riso e a companhia...). Valores como liberdade, euforia da felicidade; Dora Valayer, com o tema democracia e cidadania são definidos como turismo; Michel Serres, com a idéia de pantopia; conseqüências do consumo. As sutilezas Andre Pichot e Vandana Shiva, quando a provocam outras palavras, histórias, personagens discussão gira em torno de ciência, genética e e corpos, conclui a autora. ética; Claude Olievenstein, que aborda o Denise não quer ser definida como uma envelhecimento; e Francis Ponge, que apóia a historiadora do corpo, embora os corpos e suas autora quando trata da visão do homem no relações tenham historicidade. Ela não se animal. preocupou com as relações de gênero, talvez No campo da História, o tema do corpo, porque não quisesse problematizar a envolto pela subjetividade, é preocupação sexualidade, que vem sendo objeto de amplos recente. As evidências com o corpo, bem como debates acadêmicos e, seguramente, já a sexualidade, tornaram-se debate freqüente na extrapolam as questões do sexo. Afinal, se a sociedade e fizeram emergir as problemáticas sexualidade passou a ser objeto de estudo é sobre o mesmo. Os historiadores estão se porque a sociedade contemporânea está perguntando sobre o corpo porque a sociedade preocupada com as relações de gênero e está está colocando esse tema em evidência. Não se desconstruindo os conceitos universais de ser têm muitas respostas, ou talvez não tenhamos que homem e de ser mulher. Então, podemos ler nas tê-las. Todavia, a contribuição de Denise entrelinhas a questão do gênero que está Sant’Anna, especialmente no campo da História, diretamente relacionada ao corpo. é muito importante. Até mesmo para Corpos de passagem, um conjunto de percebermos o quanto os historiadores precisam ensaios, não tem um caráter propriamente discutir tanto com a Antropologia, a Psicologia e acadêmico. Os textos que compõem a obra não a Filosofia quanto com a Medicina, o Direito e aprofundam as discussões teóricas das categorias outras áreas que cientificizaram o corpo e as envolvidas: corpo, subjetividade, indivíduo, por relações humanas. Nesse momento, o trabalho exemplo. Muitas áreas do conhecimento foram de arqueólogo sugerido por Foucault 2 é exploradas, e o elenco de autores/as franceses pertinente, não para trazer os ‘monumentos’ apresentados é significativo se comparado a mudos, mas transformá-los em documentos poucos autores/as americanos (James Clifford, tomados de sentidos pelo historiador. citado pelo seu trabalho etnográfico sobre O corpo foi dado a ler ‘naturalizado’ nas comunidades sedentárias, e Donna Haraway, manifestações sobre doença, morte e velhice no
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século XIX e início do século passado, ou na autonomia das mulheres, associada a uma concepçao busca de saúde e prazer infinitos de conhecimento e reapropriação do próprio corpo. contemporâneos. Esses contrapontos da SCAVONE, Lucila. “Anticonceptión, aborto y tecnologías conceptivas: entre la salud, la ética y los derechos”. In: ‘natureza’ dos corpos, como mostra a autora, são SCAVONE, Lucila (Org.). Género y salud reproductiva en historicizados, mesmo que as temporalidades América Larina. Cartago: Libro Universitario Regional, sejam efêmeras por não ter uma datação precisa 1999. p. 25-31. ou presa no calendário de determinada cultura. 2 FOUCAULT, Michel. A arquelogia do saber. 3. ed. Rio de Desconstruir as formas discursivas, como faz Janeiro: Forense-Universitária, 1987. Denise Sant’Anna, é evitar o perigo de transformar o corpo em lugar dos universais. 1 Lucila Scavone traz essa discussão do primeiro momento do movimento feminista, baseado na noção ANA MARIA MARQUES de diferença e criando uma idéia de liberdade e Universidade do Vale do Itajaí
A construção da ‘natureza feminina’ no
discurso médico Uma ciência da diferença: sexo claras diferenças de caráter biológico e e gênero na medicina da predeterminado entre os sexos. Essas diferenças não seriam apenas físicas, mas eram também mulher. psicológicas e morais. No discurso médico do século XIX, o sexo era entendido como um ROHDEN, Fabíola. elemento natural e biológico, responsável pelo ‘destino’ social de homens como provedores e Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001, de mulheres como esposas e mães. Apesar dessa 223 p. crença de que o sexo determinaria o destino, Rodhen chama a atenção para o que entende ser um paradoxo presente nos textos médicos: a diferença sexual era vista como natural e, ao Produto de uma tese de doutorado em mesmo tempo, como sendo ‘instável’ e ‘perigosa’. Antropologia Social, o livro de Fabíola Rohden Conseqüentemente, seria necessário monitorar o analisa a temática da diferença sexual nos processo de diferenciação sexual de homens e escritos médicos do século XIX e início do século mulheres, em particular no início da puberdade, XX, a partir das representações, das imagens que fase na qual “as influências do meio poderiam estão na base da criação da medicina da prejudicar ou impedir que se chegasse ao mulher. Inicialmente, diz a autora, a investigação resultado esperado, de amadurecimento sexual visava a produzir uma história sobre a sexualidade e reprodutivo de homens e mulheres” (p. 204). e a reprodução. O exame da documentação, Valendo-se da bibliografia existente sobre entretanto, revelou que, “em boa parte do século o assunto, transita por várias problematizações XIX especialmente, a medicina da sexualidade sobre a questão da diferença biológica e e reprodução era a medicina sobre a mulher, discussões teóricas elaboradas por autores/as expressa sobretudo na criação de uma como Thomas Laqueur, Londa Schiebinger, Michel especialidade, a ginecologia, que se definia Foucault, Ornella Moscucci, Cynthia E. Russet, Jill como ‘a ciência da mulher’” (p.31). L. Matus, entre outros. No diálogo estabelecido Rohden persegue os caminhos tortuosos da com Laqueur, recupera a discussão sobre os dois construção de uma determinada concepção de modelos de interpretação do corpo feminino em diferença sexual entre homens e mulheres, relação ao masculino. O primeiro, herdado dos demonstrando o empenho de médicos e gregos, que admitia apenas uma estrutura básica cientistas europeus da época em estabelecer do corpo humano, a do macho, teria prevalecido