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Mário de Andrade
O artista e o Artesão1
Mário de Andrade
Posfácio para “Café”
1
Aula Inaugural dos cursos de Filosofia e História da Arte, do Instituto de Artes, Universidade do
Distrito Federal, em 1938.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 1
2. O AUTOR ................................................................................................................ 1
2.1. O poeta: da Semana de Arte Moderna aos anos 40 ...................................... 1
2.2. O musicólogo: guru dos compositores modernistas...................................... 3
3. A OBRA ................................................................................................................... 5
4. CONCLUSÃO ....................................................................................................... 12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 14
1. INTRODUÇÃO
2. O AUTOR
2
Cite-se Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928, Compêndio sobre a Música Brasileira, de 1929,
Música do Brasil, de 1941.
3
“O Trovador” (de Pauliceia Desvairada, São Paulo, 1922). Disponível em:
<http://www.horizonte.unam.mx/brasil/Mário1.html>. Acesso em 22 out. 2011.
4
SILVA E ALVIN; RAMOS, 2009.
1
europeu, com poucas e dificilmente bem-sucedidas tentativas de formação de
uma identidade literária nacional com base na cultura popular, recorrendo-se não
poucas vezes a estereótipos sociais, se não pejorativos, no mínimo ingênuos.
Guardando-se louváveis e dignas exceções, a produção literária esteve
muito ligada às elites econômicas, transparecendo um considerável desprezo em
relação à tradição cultural oriunda do povo5. A obra de Mário reflete, assim, o
ideal de ruptura presente no movimento modernista, tanto em relação à estética
parnasiano-naturalista, quanto ao “comportamento social, decoroso e
acomodatício, da nossa intelectualidade”6.
5
Exemplo interessante é o caso do maxixe, dança popular carioca, considerada por Luís Cosme (1957) “o
primeiro tipo de dança urbana criada no Brasil”, que, pela sensualidade de seus movimentos, escandalizou
a elite social e intelectual, sendo censurado oficialmente, ao ponto de Ernesto Nazareth, segundo Carlos
Sandroni (2001, pg. 79), “chamar todos seus maxixes de tango”, e muitos escritores, aí incluso Machado
de Assis, nem sequer nominarem-no em suas obras literárias (AVELAR, 2006).
6
NUNES, 1984, pg. 2.
7
NUNES, 1984.
2
profundo de estar no mundo. Viveu a utopia na mais profunda
acepção da palavra, do homem da arte do povo.”8
8
GATTO, 2006.
9
CONTIER, 2004, pg. 4.
10
CONTIER, 2004, pg 11.
11
CONTIER, 2004, pg. 11.
12
SOUZA, 2005, pg. 4.
3
para qualquer tipo de sentimentalismo e facilidade, da mesma forma que é rejeitada
a noção de uma arte que se pretenda vinculada a eternidade e não ao seu tempo.
Entre estes opostos, Mário se equilibra na tentativa de criação de uma estética.”13
É antes necessário, para ele, que o artista represente seu tempo e seu lugar,
algo que ao decorrer de sua trajetória vai se transformando em um conceito de
objetividade nacional. O artista deve criar a partir de sua experiência, não a partir de
conceitos teóricos pré-formulados e isso, no fundo, significa criar a partir da cultura
popular, visto que ela é, com efeito, a experiência do criador. A ideia, todavia, não
“quer dizer obrigatoriedade de produzir-se música que tenha caráter étnico. Trata-se
de utilizar o material popular não para mimetizá-lo, mas para produzir cultura
erudita.”14. Nesse sentido, ainda, deve se estabelecer, um processo dialético, de
retroalimentação entre arte popular e arte “erudita”. Existe cultura erudita, mas não
existem assuntos eruditos; assim como não existem exotismos15.
13
SOUZA, 2005, pg. 9.
14
SOUZA, 2005, pg. 15.
15
SOUZA, 2005, pg. 18.
16
SOUZA, 2005, pg. 26.
17
ANDRADE, 1965, pg. 15.
18
ANDRADE, 1965, pg. 29.
19
ANDRADE, 1965, pg. 35.
20
“A língua realmente viva, a que vive pela bôca e é irredutível a sinais convencionais, é o que dá o
sentido expressional duma nacionalidade” (ANDRADE, 1965, pg. 122). Mário, analogamente, propôs a
4
Esse grupo de compositores, evidentemente, sofreu certa influência de
Mário de Andrade, em especial do Ensaio sobre a Música Brasileira, de 1928. É
possível notas em Villa-Lobos, por exemplo, que concentrou sua música
basicamente sobre a música popular urbana, especialmente nos Choros, uma das
melhores representações do pensamento marioandradiano, seja na politonalidade
e polirritmia, que explorou muitos aspectos dos ritmos sincopados da música
popular, seja nas formações instrumentais totalmente inusitadas à tradição
europeia, como, por exemplo, a combinação de flauta e clarineta – bastante
comum nas rodas de choro – nos Choros nº2, obra de 1924, dedicada, não por
coincidência, a Mário de Andrade.
3. A OBRA
ideia de uma Gramatiquinha Musical do Brasil por parte dos folcloristas e compositores, no sentido de
ter por base do projeto estético essa música que seria nacional, viva de fato.
21
Acerca do tema, leia-se o excelente artigo de VETROMILLA, Clayton. Guerra-Peixe: considerações
sobre o conceito de “objetividade folclórica”. Per Musi, Belo Horizonte, n.14, 2006, p.82-92
22
GATTO, 2006, p.2.
23
GATTO, 2006, p.2.
5
Paulo, Mário de Andrade é nomeado, no mês que antecede a Semana de Arte
Moderna, em 20 de janeiro de 1922, no mesmo conservatório, professor das
cadeiras de Dicção, História do Teatro, Estética e História da Música.
24
BARONGENO, 2010, pg. 3.
25
SOUZA, 1993, XVI.
26
MELLO E SOUZA, 1993, XII.
6
versão nova do primeiro, [...] texto bastante semelhante ao do capítulo
inicial na datilografia do autor no ensaio que prepara para publicar e
deixa inédito. 27
Fica evidente, que, dos projetos que Andrade executou para seus cursos
tiveram influência direta na redação da Introdução, assim como fica claro
também que era intuito do autor publicá-la, pela existência de um datiloscrito
original com vistas de um projeto de publicação, e pelo exame de
correspondência com Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Luís
Câmara Cascudo.28
27
TONI, 1993, XXIV.
28
TONI, 1993, XXV.
29
MELLO E SOUZA, 1993, XV.
30
Ele próprio, em seguida, explica: “Ninguém mais hoje pode acreditar que uma definição contenha o
significado total geral e particular duma coisa. [...] Por isso desde logo dei a da Estética. Procurei
abrandar o terreno pra chegar ao objeto dela...” (ANDRADE, 1995, p. 6).
7
ratificados. Os quatro capítulos compõem a primeira parte do texto, o que Mário
chama de uma parte mais abstrata e conceitual. Os dois capítulos que se seguem
tratam da Manifestação Musical (que ele divide entre quatro entidades: o
criador, a obra de arte, o intérprete e o ouvinte) e do Ritmo, de forma mais
concreta.
Definido o objeto, Andrade deixa claro que a Estética é una, mas usa-se
dividir a fins de estudo, e assim, a Estética Musical é aquela que se aplica ao
estudo do fenômeno musical. Traçando breve histórico, chama a atenção ao fato
de que, para os antigos, a música era “entidade numérica”, entendida apenas sob
os aspectos da aquisição de sons e construção de escalas: era uma entidade
31
Segundo a organizadora, a “genial definição de Spencer” de que Mário fala é, na verdade, aquela à qual
ele teve acesso através da obra O que é arte?, de Leon Tolstoi, que se transcreve: “Para Spencer, a origem
da arte é a brincadeira [...] Nos animais inferiores, toda a energia da vida é gasta em manter e continuar a
própria vida; mas, no homem, depois que essas necessidades são satisfeitas, resta uma excedente energia.
É esse excedente que é usado na brincadeira e que passa para a arte. A brincadeira é uma cópia da ação
real; a arte é o mesmo” (TOLSTOI, 2002, p. 56).
32
ANDRADE, 1995, p.4.
8
abstrata. Os Gregos se preocuparam com os efeitos morais da música33. Com a
modernidade, une-se a parte matemática e física à psicofisiológica e sociológica,
sendo que hoje a Estética musical “é a mais desenvolvida e rica” das estéticas
aplicadas. Frisa que, ao contrário do que pensa Riemann, a estética deve se
basear sobre a técnica.
O Capítulo que trata do Belo é bem mais breve, atendo-se a três pontos
básicos. Primeiro, distingue dois sentidos do Belo: um geral – “tudo o que
desperta um prazer deslumbrado em nós” – e um mais específico – o que
desperta prazer em um sentido “superior”, um prazer sem interesse prático e
imediato. Num segundo momento, se baseando novamente em Lalo, define
Sensação Estética como “é o ser inteiro que a gente projeta sobre o objeto do
nosso pensamento pois que o Belo nos prende sem reservas e é essa a sua mais
primeira e mais profunda característica” e acrescenta que “o Belo não reside
nem dentro da gente nem no mundo exterior, porém na relação estabelecida
entre essas duas entidades”36 .
33
É provável que aqui se refira à parte da República de Platão em que Sócrates e Glauco definem as
harmonias (modos) e ritmos moralmente desejáveis, ao Livro V da Política de Aristóteles e à segunda
parte da sua Retórica.
34
ANDRADE, 1995, p. 10.
35
ANDRADE, 1995, p. 11.
36
ANDRADE, 1995, p. 16.
9
É no terceiro ponto que diferencia-se as sensações estéticas puramente
sensuais, elementares (percepção da linha, da cor, do som,...), daquelas mais
elevadas, que ele chama “sensações estéticas propriamente ditas” que nada mais
são que a combinação dessas elementares entre si. O objeto que percebemos
produz em nós sensações simultâneas provenientes de sua forma e
universalidade. Julgamos pertinente mencionar, talvez em dissonância com o
autor, que, mesmo dotado da universalidade, a noção daquilo que é o belo,
evidentemente é uma noção temporal e geográfica, assim como o é a toda e
qualquer noção moral. Nesse sentido, podemos ainda aduzir uma constante, se
não expansão, remodelagem das fronteiras do Belo.
37
ANDRADE, 1938.
38
“O artesanato é a parte da técnica que se pode ensinar.” (ANDRADE, 1938)
39
“... conhecimento e prática das diversas técnicas históricas da arte.” (ANDRADE, 1938)
40
“Esta parte da técnica obedece a segredos, caprichos e imperativos do ser subjetivo, em tudo o que ele
é, como indivíduo e como ser social. Isto não se ensina e reproduzir é imitação.” (ANDRADE, 1938)
41
“Hoje, o objeto da arte não é mais a obra de arte, mas o artista. E não poderá haver maior engano. Faz-
se imprescindível que adquiramos uma perfeita consciência, [...] uma atitude estética disciplinada,
apaixonadamente insubversível, livre mas legítima, severa apesar de insubmissa, disciplina de todo o ser,
para que alcancemos realmente a arte.” (ANDRADE, 1938)
10
Sendo assim, a etapa do artesanato, do próprio domínio da técnica tem
papel fundamental, necessário à realização da obra de arte, é imprescindível para
que exista um artista verdadeiro, de forma que “nos processos de movimentar o
material, a arte se confunde quase inteiramente com o artesanato”42. Este último
se compõe de ensinamentos dogmáticos, cuja negação é “sempre prejudicial à
obra de arte”43. A abstenção em relação ao artesanato, para ele, só prejudica a
obra, mas não o artista. Nesse sentido, é fácil compreender o pessimismo com
que Mário vê o período romântico oitocentista44 – que significou o exagero da
dimensão que ele chamou solução pessoal do artista, dando espaço ao
surgimento de inúmeros artistas medíocres – e a nostalgia com que fala do
classicismo45 – um quase-extremo oposto a essa ideia: tem plena consciência do
artesanato, e o coloca em plano de primado absoluto – explicitados na sua
Pequena História da Música.
42
ANDRADE, 1938.
43
Ibidem.
44
“...os preconceitos e falsificações estéticas da música romântica diminuem o valor, irregularizam muito
a produção musical do séc. XIX; e os compositores menores do Romantismo nos parecem, quando não
insuportáveis, no geral destituídos de intêresse” (sic). (ANDRADE, 1951, p. 118)
45
“O que caracteriza o classicismo dele é ter atingido, como nenhum outro período antes dele, a Música
Pura, isto é: a música que não tem outra significação mais do que ser música; que comove em alegria ou
tristeza pela boniteza das formas, pela boniteza dos elementos sonoros, pela força dinamogênica, pela
perfeição da técnica e equilíbrio do todo. [...] O século XVIII é um tempo em que todo músico escrevia
bem! [...] O que faz essa gente do século XVIII parecer mais numerosa e excepcional é ter o classicismo
equilibrado, enfim o conceito estético da música com a realidade dos elementos sonoros e o efeito deles
no organismo”. (ANDRADE, 1951, p. 117-118)
46
ANDRADE, 1938.
47
ANDRADE, 1995, p. 31.
11
é expressão e conhecimento. Por isso os Kandinskis, os Lagers morreram de
pobreza”48.
A música, por fim, como arte, deve ser uma expressão, e, sendo assim,
objeto não só de conhecimento como de compreensão. Todavia, a compreensão
musical não é textual, a consciência não pode determiná-la, senão de maneira
vaga associada aos outros sentidos. Para Andrade, essa compreensão não é
consciente, mas fisiológica. É uma arte sintética:
Procurando um símile que nos possa auxiliar neste trabalho aparece
logo a palavra, irmã-gêmea da Música, tendo ambas nascido juntas do
mesmo grito inicial. [...] O grito só deixou de ser ato reflexo e se
tornou expressão quando foi intelectualizado, isto é, se tornou
consciente. [...](Todavia) ao passo que esta (palavra) se transformou
em símbolo de necessidade imediata [...], o som seguia direto em
busca de necessidades superiores do espírito e procurava satisfazê-
las.49
4. CONCLUSÃO
48
ANDRADE, 1995, p. 32.
49
ANDRADE, 1995, p. 46.
50
ANDRADE, 1995, p. 51.
51
ANDRADE, 1995, p. 51.
52
ANDRADE, 1965, p. 235-236
53
“O autor acreditava [...] que é preciso ‘fazer com que o povo viva sua cultura, pois só assim poderá se
reconhecer como nação’, o que fica claro com as obras que realiza entre 1935 e 1937, período em que
atua como diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, dando continuidade objetiva às
suas idéias.” (SILVA E ALVIM; RAMOS, 2009, p. 5)
12
teórico da vida, [...] eu só posso, não perdoar-me, porém me
compadecer do que fui, lembrando a escuridão da minha total
ignorância: eu não sabia!”54
“Eu não vos convido siquer à felicidade, pois que da experiência que
dela tenho, a felicidade individual me parece mesquinha, desumana,
muito inútil. [...] eu vos trago o convite da luta [...] por uma realidade
mais alta e mais de todos”.58
54
ANDRADE, 1965, p. 237
55
“Ouvimos, atualmente, muito mais música que antes – quase ininterruptamente – mas esta, na prática,
representa bem pouco, possuindo não mais que uma função decorativa.” (HARNONCOURT, 1988, p. 13)
56
ANDRADE, 1965, p. 240.
57
ANDRADE, 1965, p. 242-243.
58
ANDRADE, 1965, p. 246.
13
forma a, mesmo tratando de forma específica da Música, despertar uma
problematização estética que engloba o mundo da arte como um todo.
Vosso domínio é a música, e infame será quem julgar menos útil cuidar da
música que do algodão. Tanto num como noutro destino, encontrareis sempre,
como fim final de tudo, a humanidade. E todos os sacrifícios que me custaram
as frases desse discurso, todos eu fiz por vós, fiz contente, buscando abrir-vos
de par a par, em toda a sua soberania insaciável, as portas da humanidade.59
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Mário de. Pequena História da Música. São Paulo, Martins, 1951.
59
ANDRADE, 1965, p. 246.
14
______. Aspectos da Música Brasileira. São Paulo, Martins, 1965.
______. O Trovador In: Pauliceia Desvairada, São Paulo, 1922. Disponível em:
<http://www.horizonte.unam.mx/brasil/Mário1.html>. Acesso em 22 out. 2011.
MELLO E SOUZA, Gilda de. Prefácio In Introdução à Estética Musical. São Paulo,
Hucitec, 1995.
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SOUZA, Ricardo Luiz. Modernismo e Cultura Popular: o Projeto Estético de Mário de
Andrade. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 10, n.1, p. 105-123,
jan.-jun. 2005
TOLSTOI, Leon. O que é arte? Tradução por Bete Torii. São Paulo, Ediouro, 2002.
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