Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Como fica cada vez mais evidente em países com qualquer nível
CAPÍTULO e1
de renda, sem uma atenção primária forte os sistemas de saúde não
funcionam de maneira adequada nem resolvem os desafios da saúde
em sua comunidade.
Atenção Primária em Países de A atenção primária é apenas parte de uma abordagem para cui-
dados de saúde primários. A Declaração de Alma Ata, firmada em
endas
Baixa e Média Rendas 1978 na International Conference on Primary Health Care em Alma
Ata (atualmente Almaty no Cazaquistão), identificou muitas carac-
terísticas da atenção primária como sendo essenciais para alcançar
Tim Evans
o objetivo de “saúde para todos até o ano 2000”. Porém, ela também
Kumanan Rasanathan identificou a necessidade de trabalhar em conjunto com diferentes
países pobres, com a maioria das mortes e doenças sendo atribuível organização social, incluindo a oferta de saúde, que não melhoram
a doenças infecciosas ou tropicais em populações distantes e princi- de maneira automática com uma renda maior”. Essa análise coloca
palmente rurais. Com o crescimento da população adulta (e especial- em dúvida estudos clássicos sobre fatores sociais que explicam a boa
mente de idosos) e as mudanças no estilo de vida relacionadas com saúde em locais pobres como Cuba e estado de Kerala na Índia. As
as forças globais de urbanização surgiu rapidamente um novo con- análises realizadas nas últimas três décadas realmente mostraram
junto de desafios para a saúde, caracterizado por doenças crônicas, que é possível haver uma rápida melhora na saúde em vários contex-
aglomeração ambiental e lesões por acidentes automobilísticos (Fig. tos diferentes. O fato de alguns países terem índices bem piores pode
e1.1). No mundo todo a maioria das mortes relacionadas ao tabaco ser explicado por uma comparação das diferenças regionais no pro-
ocorre atualmente em países de renda baixa e média e o risco de uma gresso em termos de expectativa de vida ao longo deste período (Fig.
criança morrer por um acidente automobilístico na África é mais que e1.3). Enquanto a maioria das regiões teve um progresso importante,
o dobro em relação à Europa. Dessa forma, os países de renda baixa a África subsaariana e os antigos estados soviéticos apresentaram es-
e média no século XXI enfrentam um amplo espectro de desafios na tagnação ou, até mesmo, piora.
saúde – infecciosos, crônicos e relacionados a acidentes – com inci- Como os níveis de saúde médios variam entre regiões e países
dências e prevalências muito maiores do que aquelas documentadas eles também variam dentro dos países (Fig. e1.4). De fato, as dis-
nos países de alta renda e com muito menos recursos para vencer paridades dentro dos países costumam ser maiores do que aquelas
estes desafios. encontradas entre países de alta renda e baixa. Por exemplo, se os
Porém, lidar com estes desafios não significa simplesmente es- países de renda baixa e média pudessem reduzir sua taxa global de
perar o crescimento econômico. A análise da associação entre po- mortalidade infantil para o nível dos 20% mais ricos da população,
der econômico e saúde nos diferentes países revela que, em qualquer a mortalidade infantil global diminuiria em 40%. As disparidades
nível de economia, há uma variação substancial na expectativa de na saúde costumam resultar de fatores sociais e econômicos como
35
30
Lesões intencionais
Outras lesões não intencionais
25 Acidentes automobilísticos
Outras doenças
não comunicáveis
Mortes (milhões)
20
Câncer
15
Doença cardiovascular
10
Problemas maternos,
5 perinatais e nutricionais
CAPÍTULO e1
campanhas de saúde “básica” a efetiva imple-
1975 mentação daquilo que já se sabe que funciona
75
parece ser (de maneira ilusória) difícil.
Análises recentes começaram a focar em
“como” (em oposição a “o quê”) oferecer cui-
dados em saúde, explorando as razões para o
65
progresso na saúde ser lento e moroso apesar
da abundância de intervenções comprova-
das para os problemas de saúde nos países
nas pessoas fornece uma oportunidade para reverter essas tendên- 200
cias negativas.
Os serviços de saúde falharam em fazer sua contribuição para re- 150
duzir essas desigualdades sociais perversas assegurando o acesso uni-
versal às intervenções existentes, cientificamente validadas e de baixo
100
custo como redes de cama tratadas com inseticidas para a malária,
taxação para cigarros, quimioterapia de curto prazo para a tubercu-
lose, tratamento antibiótico para a pneumonia, modificação dietética 50
e medidas de prevenção secundária para hipertensão arterial e níveis
0
A Haiti Nigéria Paquistão Filipinas Ruanda
Figura e1.3 Tendências regionais na expectativa de vida. ECO e CEI, Euro- Figura e1.4 A. Mortalidade de crianças com menos de 5 anos conforme o local
pa Central e Oriental e Comunidade de Estados Independentes; OCDE, Organização de residência em cinco países. (Fonte: Dados da Organização Mundial de Saúde).
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. (Fonte: Commission on Social De- B. Cobertura de imunização básica (%) conforme grupo de renda. (Fonte: Dados da
terminants of Health, 2008.) Organização Mundial de Saúde, 2008a.)
financiamento público para a saúde é muito insuficiente: enquanto de um exame de escarro para tuberculose? Como é que uma mãe que
os países de renda elevada gastam em média 7% do produto interno mora em um distante vilarejo rural e cuida de um lactente com con-
bruto em saúde, os países de renda média gastam <4% e os de renda vulsões febris irá encontrar os meios para levar seu filho até o local
baixa <3%. O financiamento externo para a saúde por meio de vários para cuidados adequados? Sistemas de seguridade social cambalean-
canais de doação cresceu de maneira significativa com o tempo. Ao tes ou inexistentes, ambientes de trabalho perigosos, comunidades
mesmo tempo em que estes fundos para a saúde são significativos isoladas com pouca ou nenhuma infraestrutura e discriminação sis-
(~20 bilhões de dólares [EUA] em 2008 para países de renda baixa e temática contra minorias estão entre a miríade de forças contra as
média) e têm crescido na última década, eles representam <2% dos quais se deve lutar para conseguir uma oferta de cuidados de saúde
Introdução à Medicina Clínica
gastos totais com saúde em países de renda baixa e média e, dessa mais igualitária.
forma, não são suficientes e nem uma solução a longo prazo para a
crônica falta de financiamento. Na África, 70% dos gastos com saúde ■ DESVIOS NA CIÊNCIA
vêm de fontes domésticas. A forma predominante de financiamento Ao mesmo tempo em que a ciência obteve grandes avanços na saúde
de cuidados em saúde – a cobrança dos pacientes na hora do serviço em países de alta renda, com alguns respingos nos países de renda
– é a menos eficiente e a mais desigual, deixando milhões de famílias baixa e média, muitos problemas de saúde importantes continuam
na pobreza todos os anos. a acometer primariamente países de renda baixa e média cujos in-
Os trabalhadores da saúde, os quais representam outro recurso vestimentos em pesquisas e desenvolvimento são muito insuficientes.
fundamental, não costumam receber treinamento adequado e nem A última década testemunhou esforços crescentes para ajustar esse
recebem apoio em seu trabalho. Estimativas recentes indicam uma desequilíbrio com investimentos em pesquisas e desenvolvimento
falta de >4 milhões de trabalhadores da saúde, constituindo uma cri- para novos fármacos, vacinas e diagnósticos que supram de maneira
se que é em grande parte exacerbada pela migração de trabalhadores efetiva necessidades de saúde específicas das populações nos países
da saúde dos países de renda baixa e média para os de alta renda. A de renda baixa e média. Por exemplo, o Medicines for Malaria Ventu-
África subsaariana carrega 24% da carga de doença global, mas tem re revitalizou a anteriormente “seca” fonte de novos fármacos para a
apenas 3% da força de trabalho em saúde (Fig. e1.5). A International malária. Este é apenas um dos vários esforços desse tipo, mas muito
Organization for Migration estimou em 2006 que havia mais médi- mais precisa ser feito.
cos da Etiópia trabalhando em Chicago do que na própria Etiópia. Conforme discutido anteriormente, a principal dificuldade para
Diagnósticos e fármacos essenciais não costumam chegar até os melhores condições de saúde nos países de renda baixa e média se re-
pacientes que necessitam em função de falhas na cadeia de suprimen- laciona menos com a disponibilidade de tecnologias em saúde e mais
to. Além disso, as instalações não conseguem fornecer um cuidado com a sua oferta efetiva. Na base de sistemas e desafios sociais para
seguro: novas evidências sugerem taxas muito maiores de eventos ad- uma maior igualdade na saúde está um grande desvio com relação ao
versos em pacientes hospitalizados em países de renda baixa e média que constitui “ciência” legítima para melhorar a igualdade na saúde.
em comparação com os de alta renda. Falhas governamentais no pla- A parte principal do financiamento de pesquisas em saúde é dire-
nejamento, regulamentação, monitoramento e avaliação estão asso- cionada para o desenvolvimento de novas tecnologias – fármacos,
ciadas com a comercialização desenfreada e desregulada de serviços vacinas e diagnósticos; em contraste, virtualmente nenhum recurso é
de saúde e com a caótica fragmentação destes serviços à medida que direcionado para pesquisas sobre como os sistemas de oferta de cui-
os doadores levam adiante seus respectivos programas prioritários. dados de saúde podem ficar mais confiáveis e superar as condições
Com fundações tão frágeis não chega a ser surpresa que intervenções sociais adversas. A complexidade dos sistemas e do contexto social é
de baixo custo, disponíveis e validadas não cheguem até as pessoas tal que este problema de oferta necessita de um enorme investimento
que necessitam delas. em termos não apenas de dinheiro, mas também de rigor científico,
com o desenvolvimento de novos métodos e medidas de pesquisa e
■ CONDIÇÕES DE ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL com maior legitimidade no ambiente científico.
Os sistemas de oferta de cuidados em saúde não existem em um Esses desafios comuns para países de renda baixa e média expli-
vácuo, mas sim estão envoltos em um complexo de forças sociais e cam de forma parcial o ressurgimento do interesse na abordagem de
econômicas que costumam estratificar de maneira injusta as oportu- cuidados de saúde primários. Em alguns países (principalmente de
nidades para a saúde. Mais preocupante são as forças perversas de de- renda média) tem sido obtido um progresso significativo na expan-
sigualdade social que servem para marginalizar populações com ne- são da cobertura dos sistemas de saúde com base na atenção primária
e mesmo na melhora dos indicadores da saúde da população. Mais
países estão embarcando na criação de serviços de atenção primária
apesar dos desafios que existem, em especial nos países de baixa ren-
35
da. Mesmo quando estes desafios são reconhecidos há muitas razões
para otimismo pelo fato de os países de renda baixa e média poderem
30 Sudeste asiático acelerar o progresso na construção da atenção primária.
% da carga de doença global
25 África
CUIDADOS DE SAÚDE PRIMÁRIOS NO SÉCULO XXI
20 Pacífico ocidental A última década viu o ressurgimento do interesse em cuidados de
Europa
saúde primários como uma maneira de lidar com os desafios de
15
Américas saúde globais do novo milênio. Esse interesse tem sido desencade-
10 Mediterrâneo oriental ado por muitos dos mesmos problemas que levaram à Declaração
de Alma Ata: disparidades rapidamente crescentes na saúde entre
5 e dentro de países, custos de cuidados de saúde crescentes em um
momento em que muitas pessoas não conseguem cuidados de qua-
0 lidade, insatisfação das comunidades com os cuidados que obtêm e
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 falha em abordar mudanças nas ameaças à saúde, em especial nas
% da força de trabalho global epidemias de doenças não comunicáveis. Estes desafios necessitam
Figura e1.5 Carga de doença global e força de trabalho em saúde. (Fonte:
de uma abordagem abrangente e de sistemas de saúde fortes com
Organização Mundial de Saúde, 2006.) atenção primária efetiva. As agências de desenvolvimento de saúde
CAPÍTULO e1
econômicos relacionados com a incidência e a progressão da doença. cessidades daqueles que fornecem os serviços de saúde, como os
Sistemas de saúde fracos têm se mostrado um obstáculo importan- médicos e os políticos. O resultado é uma centralização dos servi-
te para a oferta de novas tecnologias, como a terapia antirretroviral, ços ou a provisão de programas verticais que visam doenças espe-
para todas as pessoas que as necessitam. Mudanças nos padrões das cíficas. Os princípios dos cuidados de saúde primários, incluindo o
doenças levaram a uma demanda por sistemas de saúde que possam desenvolvimento da atenção primária, reorienta os cuidados para as
tratar pessoas como indivíduos, independentemente de consultarem necessidades das pessoas atendidas pelos serviços. Essa abordagem
com o problema de saúde pública “prioritário” (p. ex., HIV/Aids ou “centrada nas pessoas” visa fornecer cuidados de saúde mais efeti-
tuberculose) do local onde ela está buscando ajuda. A experiência vos e adequados.
com a atenção primária em países de renda baixa e média é discutida O aumento nos casos de doenças não comunicáveis em países de
ginalizadas e o aumento da cobertura de outros serviços sociais que cas básicas, incluindo o uso de antibióticos. Por meio do trabalho dos
afetam de maneira significativa a saúde (p. ex., educação). médicos descalços a China conseguiu cobrir toda a sua população
com cuidados básicos de saúde com baixo custo, grande parte da qual
Reformas em políticas públicas para promover e proteger a saúde não tinha acesso prévio aos serviços.
das comunidades Em 1982 a Rockefeller Foundation organizou uma conferência
As políticas públicas em setores que não os cuidados em saúde são para revisar as experiências da China juntamente com aquelas da
fundamentais para reduzir as disparidades na saúde e para alcançar o Costa Rica, Sri Lanka e o estado de Kerala, na Índia. Em todos es-
progresso em direção aos objetivos da saúde pública global. Em 2008 ses lugares, pareciam ter sido obtidos bons cuidados de saúde e de
Introdução à Medicina Clínica
o texto final da Commission on Social Determinants of Health da baixo custo. Apesar do baixo nível de desenvolvimento econômico
OMS forneceu uma extensa revisão sobre as políticas intersetoriais e de gastos na saúde, todos esses lugares juntamente com Cuba, ti-
necessárias para lidar com as desigualdades na saúde em nível local, nham indicadores de saúde que se aproximavam – e em alguns ca-
nacional e global. Os avanços contra grandes desafios como Aids/ sos superavam – daqueles de países desenvolvidos. A análise dessas
HIV, tuberculose, novas pandemias, doença cardiovascular, câncer experiências revelou uma ênfase comum nos serviços de cuidados
e acidentes necessitam da efetiva colaboração de setores como trans- primários, com expansão dos cuidados para toda a população de
portes, residência, trabalho, agricultura, planejamento urbano, co- graça ou com baixo custo, em combinação com a participação da
mércio e energia. Enquanto o controle do tabaco fornece um ótimo comunidade na tomada de decisões sobre os serviços de saúde e tra-
exemplo do que é possível se diferentes setores trabalharem juntos balho coordenado em diferentes setores (em especial a educação)
para alcançar objetivos na saúde, a falta de implementação de muitas visando objetivos na saúde. Durante as três décadas após o encon-
medidas baseadas em evidências para o controle do tabaco em vários tro Rockefeller alguns desses países aumentaram esse progresso en-
países também ilustra as dificuldades encontradas nesse trabalho in- quanto outros apresentaram problemas. As experiências recentes no
tersetorial e o potencial não reconhecido das políticas públicas para desenvolvimento de serviços de cuidados primários mostram que
melhorar a saúde. Em nível local, os serviços de atenção primária a mesma combinação de características é necessária para o suces-
podem ajudar a fazer políticas públicas de promoção da saúde em so. Por exemplo, o Brasil – um país grande e com uma população
outros setores. dispersa – tem obtido grandes avanços no aumento da disponibili-
dade de cuidados de saúde nos últimos 20 anos. Na última década, o
Reformas na liderança para tornar mais confiáveis as Programa de Saúde da Família no Brasil expandiu de maneira pro-
autoridades da saúde gressiva por todo o país com cobertura de quase todas as áreas. Esse
A Declaração de Alma Ata enfatizou a importância da participação programa fornece às comunidades o livre acesso às equipes de aten-
das pessoas em seus cuidados de saúde. De fato, a participação é im- ção primária formadas por médicos de atenção primária, trabalha-
portante em todos os níveis da tomada de decisões. Os desafios atuais dores da saúde da comunidade, enfermeiros, dentistas, obstetras e
na saúde precisam de novos modelos de liderança que reconheçam pediatras. Essas equipes são responsáveis pela saúde das pessoas em
o papel do governo na redução das disparidades na saúde, mas que uma área geográfica específica – não apenas daquelas que compa-
também reconheçam os vários tipos de organizações que fornecem recem aos serviços de saúde. Além disso, os trabalhadores da saúde
serviços de cuidados de saúde. Os governos precisam guiar e nego- individuais da comunidade são responsáveis por uma lista de nomes
ciar com esses diferentes grupos, incluindo organizações não gover- de pessoas dentro da área coberta pela equipe de atenção primária.
namentais (ONGs) e o setor privado e promover uma forte regulação Os problemas de acesso aos cuidados de saúde persistem no Brasil,
quando for necessária. Essa difícil tarefa precisa de reinvestimento em especial nas áreas isoladas e favelas urbanas. Porém, sólidas evi-
volumoso em liderança e capacidade de governança, em especial se dências indicam que o Programa de Saúde da Família já contribuiu
for necessária a implementação efetiva de ações em diferentes seto- com ganhos expressivos na saúde da população, em especial em ter-
res. Além disso, os grupos em desvantagem devem ser capazes de mos de mortalidade infantil e desigualdades na saúde. De fato, esse
expressar suas necessidades de forma a influenciar de maneira ativa programa já teve um impacto marcante na redução da mortalidade
a tomada de decisões. infantil em áreas menos desenvolvidas (Fig. e1.7).
O Chile também melhorou os serviços de cuidados primários
■ EXPERIÊNCIAS DA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM PAÍSES DE RENDA existentes na década passada, visando melhorar a qualidade de cui-
BAIXA E MÉDIA dados e a extensão da cobertura em regiões remotas, acima de tudo
Os aspectos dos cuidados de saúde primários descritos anteriormen- para as populações mais carentes. Esse esforço foi feito de maneira
te com ênfase nos serviços de cuidados primários foram implemen- conjunta com medidas visando reduzir as desigualdades sociais e
tados em várias escalas por muitos países de renda baixa e média nos acelerar o desenvolvimento, incluindo benefícios sociais para famí-
últimos 50 anos. Conforme discutido anteriormente, algumas dessas lias e grupos em desvantagem e melhora do acesso a serviços edu-
experiências inspiraram e informaram a Declaração de Alma Ata, a cacionais para a primeira infância. Como no Brasil, esses passos me-
qual levou muitos países a tentar a implementação de cuidados de lhoraram a saúde materna e infantil e reduziram as desigualdades na
saúde primários. Essa seção descreve as experiências de uma seleção saúde. Além de aumentar de maneira direta os serviços de cuidados
de países de renda baixa e média na melhora dos serviços de cuidados primários, Brasil e Chile instituíram medidas para aumentar a res-
primários e que aumentaram o nível de saúde de suas populações. ponsabilidade dos fornecedores de cuidados em saúde e a participa-
Antes de Alma Ata, poucos países tentaram desenvolver cuida- ção das comunidades na tomada de decisões. No Brasil, assembleias
dos de saúde primários em nível nacional. Em vez disso, a maioria de saúde nacionais e regionais com altos níveis de participação públi-
focava na expansão dos serviços de cuidados primários em comu- ca são parte integrante do processo de criação das políticas em saúde.
nidades específicas (em geral nas localidades rurais), fazendo uso de O Chile instituiu um documento para os pacientes que especifica de
voluntários da comunidade para compensar a ausência de instalações maneira explícita os direitos dos pacientes em termos da gama de
para a realização dos cuidados. Por outro lado, no período posterior serviços aos quais estão habilitados.
à Segunda Guerra Mundial, a China investiu em atenção primária Outros países que obtiveram progresso recente em cuidados de
em escala nacional, e a expectativa de vida duplicou dentro de apro- saúde primários incluem Bangladesh, um dos países mais pobres no
ximadamente 20 anos. A expansão chinesa dos serviços de cuidados mundo. Desde sua independência do Paquistão em 1971, Bangladesh
primários incluiu um volumoso investimento em infraestrutura de testemunhou um aumento dramático na expectativa de vida e as ta-
saúde pública (p. ex., sistemas de água e saneamento) ligado a um uso xas de mortalidade infantil são agora mais baixas do que nos países
CAPÍTULO e1
2
à terapia antirretroviral para pessoas com
HIV/Aids. Dessa forma, a situação da saú-
0 de no Zimbábue ficou mais desesperadora
do que em Botsuana.
–2 A China fornece um exemplo muito
– 2,08
–4
importante sobre como mudanças em po-
– 4,24 líticas de saúde relevantes à organização
–6 de sistemas de saúde (Fig. e1.8) podem ter
– 5,64
– 6,82 consequências rápidas e de longo alcance
– 6,97 – 6,77
Gasto privado
pré-pago
80
Gasto em
seguridade social
60 Outros gastos
governamentais
gerais
40
20
0
65
70
75
19 8
19 9
19 0
19 1
19 2
19 3
19 4
19 5
19 6
1987
19 8
89
19 0
19 1
19 2
19 3
19 8
20 0
20 1
20 2
20 3
04
20 5
06
19 4
19 5
19 6
97
20 9
7
7
8
8
8
8
8
8
8
9
9
9
9
0
0
0
0
9
9
9
9
0
19
19
19
19
19
19
20
Figura e1.8 Mudanças na fonte de gastos com saúde na China nos últimos 40 anos. (Fonte: Organização Mundial de Saúde, 2008a.)
maior parte de seu financiamento. Assim, uma proporção importante ciamento para diminuir a fragmentação dos sistemas nacionais de
da população sacrifica outros benefícios essenciais como resultado saúde e para uma maior concentração no fortalecimento desses sis-
de gastos com saúde ou é levada à pobreza por este custo. A natu- temas. A atenção primária abrangente em países de baixa renda deve
reza comercial dos serviços de saúde com regulação inadequada ou inevitavelmente lidar com a rápida emergência de doenças crônicas e
ausente também levou à proliferação de charlatães, cuidados inade- a crescente proeminência de problemas de saúde relacionados a trau-
quados e pressão para que as pessoas paguem por cuidados caros e, mas; assim, a assistência ao desenvolvimento da saúde internacional
algumas vezes, desnecessários. Os fornecedores comerciais têm in- deve ter maior responsabilidade sobre essas necessidades.
centivos limitados para o uso de intervenções (incluindo medidas de Além dessas novas correntes de financiamentos para os servi-
Introdução à Medicina Clínica
saúde pública) que não podem ser cobradas ou que são limitadas às ços de saúde, existem outras oportunidades. O aumento da partici-
pessoas que pagam por elas. pação social nos sistemas de saúde pode ajudar a construir serviços
Ao encarar esses problemas, China e Índia implementaram re- de atenção primária. Em muitos países, a pressão política a partir de
centemente medidas para o fortalecimento dos cuidados de saúde representantes da comunidade por um cuidado mais holístico e res-
primários. A China aumentou o financiamento governamental dos ponsável bem como iniciativas empresariais para o aumento dos ser-
cuidados de saúde, evoluiu em direção à restauração do seguro-saúde viços baseados na comunidade através de ONGs acelerou o progresso
e definiu o objetivo de acesso universal aos serviços de cuidados pri- na atenção primária sem grandes aumentos nos financiamentos. A
mários. De maneira semelhante, a Índia mobilizou fundos para uma participação da população na provisão de serviços de cuidados pri-
grande expansão dos serviços de cuidados primários em áreas rurais mários e na tomada de decisões relevantes costuma obter serviços
e está atualmente repetindo esse processo em regiões urbanas. Am- que atendam às necessidades da população como um todo em vez de
bos os países estão cada vez mais usando recursos públicos de suas prioridades mais restritas para a saúde pública.
crescentes economias para financiar os serviços de cuidados primá- A participação e a inovação podem ajudar a lidar com problemas
rios. Essas tendências encorajadoras ilustram novas oportunidades importantes com relação à força de trabalho em saúde nos países de
para a implementação de uma abordagem de cuidados de saúde pri- renda baixa e média por meio do estabelecimento serviços de cui-
mários e para o fortalecimento dos serviços de atenção primária em dados primários efetivos centrados nas pessoas. Muitos serviços de
países de renda baixa e média. cuidados primários não precisam ser oferecidos por médico ou en-
fermeiro. As equipes multidisciplinares podem incluir trabalhadores
■ OPORTUNIDADES PARA CONSTRUIR A ATENÇÃO PRIMÁRIA EM comunitários pagos com acesso a um médico em caso de necessida-
PAÍSES DE RENDA BAIXA E MÉDIA de, mas que possam fornecer pessoalmente uma variedade de ser-
Os objetivos da saúde pública global não serão alcançados a menos viços de saúde. Na Etiópia, mais de 30.000 trabalhadores de saúde
que os sistemas de saúde sejam fortalecidos de maneira significati- comunitários foram treinados e preparados para melhorar o acesso
va. Atualmente está sendo gasto mais dinheiro em saúde do que em aos serviços de cuidados primários e há evidência crescente de que
qualquer outra época. Em 2005, o gasto global com saúde totalizou essa medida está contribuindo para melhores desfechos em saúde. Na
5,1 trilhões de dólares americanos – o dobro da quantia gasta uma Índia, mais de 600.000 defensores da saúde das comunidades foram
década antes. Embora a maioria dos gastos ocorra em países de alta recrutados como parte da expansão dos serviços de cuidados primá-
renda, o gasto em muitos países emergentes de renda média acelerou rios rurais. Após a Declaração de Alma Ata as experiências com tra-
de forma rápida da mesma forma que a alocação de dinheiro para balhadores da saúde da comunidade foram mistas, com problemas
esse propósito pelos governos e por doadores para países de renda em especial com o nível de treinamento e a falta de pagamento. Os
baixa. Essas tendências unidas – maior ênfase na construção de sis- programas atuais não estão imunes a esses problemas. Porém, com
temas de saúde baseados na atenção primária e alocação de mais acesso ao apoio de médicos e com o desenvolvimento de equipes al-
dinheiro para cuidados de saúde – fornecem oportunidades para guns desses problemas podem ser contornados. Evidências crescen-
lidar com muitos dos desafios discutidos anteriormente em países tes em muitos países indicam que a alocação de tarefas apropriadas
de renda baixa e média. para trabalhadores da atenção primária que tenham tido treinamento
A aceleração do progresso necessita de uma melhor compreen- mais curto e barato em relação aos médicos será fundamental para
são sobre como as iniciativas globais em saúde podem facilitar de lidar com a crise de recursos humanos.
maneira mais efetiva o desenvolvimento da atenção primária em Por fim, melhorias recentes em tecnologias de informação e co-
países de baixa renda. Uma recente revisão do Maximizing Positive municação, em especial a telefonia móvel e os sistemas de Internet,
Synergies Collaborative Group da OMS se concentrou em progra- criaram o potencial para implementar de maneira sistemática ini-
mas financiados pelo Global Fund to Fight Aids, Tuberculosis and ciativas de saúde eletrônica (e-health), telemedicina e melhora dos
Malaria; Global Alliance for Vaccines and Immunisation (GAVI); dados em saúde em países de renda baixa e média. Esses desenvolvi-
U.S. President’s Emergency Plan for Aids Relief (PEPFAR); e Banco mentos aumentam a possibilidade de que os sistemas de saúde nesses
Mundial (HIV/Aids). Esse grupo concluiu que as iniciativas de saúde países, que ficaram por muito tempo atrasados em relação aos países
globais melhoraram o acesso e a qualidade dos serviços de saúde ava- mais ricos, mas que são menos comprometidos com sistemas antigos
liados e levaram a melhores sistemas de informação e a financiamen- difíceis de modernizar em várias situações, possam ultrapassar seus
tos mais adequados. A revisão também identificou a necessidade de parceiros mais ricos na exploração dessas tecnologias. Embora os de-
um melhor alinhamento das iniciativas de saúde globais com outras safios impostos por uma infraestrutura ruim ou ausente em muitos
países de renda baixa e média não possam ser subestimados e devam
prioridades de saúde nacional e a utilização sistemática de potenciais
ser abordados para tornar real essa possibilidade, o rápido surgimen-
sinergias. Se as iniciativas de saúde globais implementarem progra-
to de redes móveis e seu uso em saúde e outros serviços sociais em
mas que funcionem em conjunto com outros componentes dos sis-
muitos países de baixa renda em que o acesso a linhas de telefone
temas nacionais de saúde sem prejudicar a formação das equipes e
fixo era anteriormente muito limitado são uma grande promessa na
a obtenção de suprimentos, elas terão potencial para contribuir de
construção de serviços de cuidados primários nos países de renda
maneira substancial para a capacidade de os sistemas de saúde forne-
baixa e média.
cerem cuidados de saúde primários abrangentes.
As iniciativas de saúde globais continuam a obter cada vez mais
financiamentos. Em 2009, por exemplo, o presidente dos Estados CONCLUSÃO
Unidos, Barack Obama, anunciou o aumento da assistência dos Es- Ao mesmo tempo em que continua a preocupação em vencer as de-
tados Unidos ao desenvolvimento da saúde global, destinando um sigualdades na saúde global há um compromisso crescente para re-
CAPÍTULO e1
visão clara da importância fundamental da saúde em todos os países va, World Health Organization, 2008
independentemente da renda. Os valores da saúde e da igualdade em Kruk ME et al: The contribution of primary care to health and health systems
in low- and middle-income countries: A critical review of major primary
saúde são compartilhados através de todas as fronteiras e os cuidados
care initiatives. Soc Sci Med 70:904, 2010
de saúde primários fornecem um panorama para a sua efetiva tradu-
Macinko J et al: The impact of primary healthcare on population health in
ção para todos os contextos. low- and middle-income countries. J Ambul Care Manage 32:150, 2009
A tradução desses valores fundamentais tem suas raízes em qua-
Rasanathan K et al: Primary health care and the social determinants of
tro tipos de reformas que refletem os desafios distintos e interliga- health: Essential and complementary approaches for reducing inequities
dos para (re)orientar os recursos de uma sociedade com base nas in health. J Epidemiol Community Health (epub ahead of print, May 27,
necessidades de saúde de seus cidadãos: (1) organizar os serviços 2010)