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Somatização e sintomas sem

explicação médica (Transtorno


de Sintomas somáticos,
Transtorno de ansiedade de
doença, Transtorno conversivo
e Transtorno Factício)
Professor: Marcos Lima
Especialista em Medicina de Família e Comunidade
Aprofundamento em Neurologia e Psiquiatria
CASO CLÍNICO
• Paciente, 46 anos, vem para consulta com queixa de dor retroesternal, de forte
intensidade, que incapacita suas atividades diárias, não piora com esforço, não
melhora com repouso. Nega traumas. De início súbito, gera dispneia
momentânea e, rapidamente, desaparece, tanto a dor como a dispneia.
• Ao exame físico, normocorado, hidratado, eupneico, consciente e orientado,
anictérico, acianótico, fácies atípica.
• - ACV: RCR, 2T, BNF, s/s
• - AR: MV+ em AHT, s/RA
CASO CLÍNICO
• - PA = 145 x 95 mmHg
• - FC = 125 BPM
• - FR = 21 irpm (sem sinais de esforço respiratório)
• - SatO2: 97% em ar ambiente.
• Apresenta um ECG com ritmo sinusal, FC = 95 bpm, eixo a 45º, sem alterações na
onda P, intervalo PR, complexo QRS de 80ms, segmento ST ao nível do ponto J e
onda T assimétrica, intervalo QT sem alterações.
• Como conduzir esse paciente?
• Conhecido desde milênios.
• Egípcios consideravam o útero como a origem
dos sintomas físicos.
• Hipócrates referia que a abstinência sexual
O Fenômeno secaria o útero e, este, mais leve, migraria
dentro do corpo causando sintomas diversos.
da • Na Europa medieval, considerava-se que o
útero seria um animal vivo, independente, no
Somatização corpo feminino, e seria origem dessas
sensações.
• Ao processo de desencadeamento de sintomas
e sensações físicas, nos períodos até o século
XIX, considerava-se o nome de histeria.
• No século XVII, Sydenham, descreve como um
quadro em que sintomas podem simular
qualquer doença orgânica e podem ter origem
O Fenômeno multifatorial por ser determinada por fatores
físicos e psicológicos, incluindo os familiares e
da acometer ambos os sexos.
• Após o século XVIII, médicos como Paul
Somatização Briquet, Charcot, Freud analisam o processo
da histeria pelo viés psicológico, mais do que
físico e estruturam diversos estudos que
justificam essa nomenclatura.
• Ao que cabe ao DSM, sua primeira versão de
1952, traz a somatização como “psicofisiologia
autonômica e transtornos viscerais”,
descrevendo o sintoma como a representação do
afeto impedida de vir à consciência.

O Fenômeno • Na 2ª edição do DSM, de 1968, retira-se o


autonômica e visceral, tratando-se apenas de
da transtornos psicofisiológicos (isso retira a visão
da histeria e da correlação com a psicanálise,
tomando um processo mais biomédico).
Somatização • Já no DSM-III, de 1980, surge o termo
somatoforme, abordando critérios acessíveis à
observação e mensuração da doença. Nesse
momento, aborda-se os sintomas não
decorrentes de falhas orgânicas e cujo parâmetro
de determinação objetiva é por exclusão.
• No DSM-IV, 1994, surgem as nomenclaturas de
transtorno de somatização, transtorno
conversivo, transtorno doloroso, hipocondria,
transtorno dismórfico corporal, transtorno
somatoforme e transtorno somatoforme sem
outra especificação.
O Fenômeno • Em 2013, com o surgimento do DSM-V, há uma
da preleção de sintomas positivos e não excluindo
causas orgânicas. Renomea-se, nesse
Somatização processo, transtorno somatoformes para
Transtornos de Sintomas Somáticos e
Transtornos relacionados. Retira-se o
transtorno dismórfico corporal da lista,
transtorno factício é incorporado e o termo
hipocondria é abolido, encaixando-se no TSS e
transtorno de ansiedade de doença.
O Fenômeno da Somatização
• Em essência, atribui-se a manifestação desses transtornos principalmente a
experiências traumáticas precoces e ao longo da vida por meio de violência física
e psicológica, dinâmica familiar em que a atenção é obtida pela doença e não
valoriza o sofrimento emocional, além de uma sociedade que culturalmente
estigmatiza o sofrimento psíquico em relação ao físico.
Transtorno de
Sintomas Somáticos.
• Critérios diagnósticos:
• A. Um ou mais sintomas somáticos que causam aflição
ou resultam em perturbação significativa da vida diária.
• B. pensamentos, sentimentos ou comportamentos
excessivos relacionados aos sintomas somáticos ou
associados à preocupações com a saúde manifestados
por pelo menos um dos seguintes:
• 1. Pensamentos desproporcionais e persistentes
acerca da gravidade dos próprios sintomas;
• 2. Nível de ansiedade persistentemente elevado
acerca da saúde e dos sintomas;
• Tempo e energia excessivos dedicados a esses
sintomas ou a preocupações a respeito da saúde.
Transtorno de Sintomas
Somáticos.
• Critérios diagnósticos:
• C. Embora algum dos sintomas somáticos possa não
estar continuamente presente, a condição de estar
sintomático é persistente (em geral mais de seis meses).
• Especificar se: com dor predominante (anteriormente
chamado transtorno doloroso)
• Especificar a gravidade atual: Leve (apenas 1 dos
sintomas do B é satisfeito); Moderado (dois ou mais
sintomas B são satisfeitos); Grave (dois ou mais
sintomas do B são satisfeitos além de múltiplas queixas
somáticas).
Transtorno • Diagnóstico:
• Clínico, baseado nos critérios do DSM,
de Sintomas evolução, características dos pacientes, falta
de resposta aos tratamentos propostos, etc.
Somáticos. • Pode-se utilizar o inventário PHQ-15.
Pontuações acima de 15 associam-se a pior
funcionamento, uso exagerado do sistema
de saúde, mais sintomas depressivos e
ansiosos e maior probabilidade de
transtorno de sintomas somáticos.
Transtorno de Sintomas Somáticos.
Durante as últimas 4 semanas, quanto você foi incomodado(a) pelos sintomas abaixo?
NADA (0) UM POUCO (1) MUITO (2) ESCORE
Dor de estômago
Dor nas costas
Dor nos braços, pernas ou articulações
Cólica menstrual ou outros problemas relacionados à
menstruação
Dores de cabeça
Dor no peito
Tontura
Sensação de desmaio
Palpitação, coração acelerado
Falta de ar
Dor ou dificuldades durante o ato sexual
Prisão de ventre, intestino solto ou diarreia
Náusea, gases ou indigestão
Cansaço ou falta de energia
Dificuldade para dormir
Escore total
Transtorno de Ansiedade de doença.
• No DSM-III e DSM-IV, o termo hipocondria é definido como um medo excessivo
de apresentar uma grave afecção de saúde, com base na interpretação errada de
sinais corporais fisiológicos benignos.
• No DSM-V, os pacientes hipocondríacos são reclassificados entre Transtornos de
Sintomas Somáticos (TSS) – 74% dos pacientes e Transtorno de Ansiedade de
Doença (TAD) – 26% dos pacientes.
• O TSS apresenta, por seus critérios, uma maior intensidade de sofrimento e
comprometimento funcional do que o TAD.
Transtorno de
Ansiedade de doença.

• Etiopatogenia: não há explicação


completamente estabelecida.
• Estudos mostram que há menor
ativação do córtex cingulado anterior
rostral, que tem papel inibitório, a uma
atividade ruminativa mais intensa,
secundária a uma maior interferência
emocional dos sintomas físicos. Também
há maior ativação amigdaliana.
Transtorno de
Ansiedade de doença.
• Critérios diagnósticos:
• A. Preocupação em ter ou contrair uma doença
grave;
• B. Sintomas somáticos não estão presentes ou, se
estiverem, são de intensidade apenas leve. Se uma
outra condição médica está presente ou há risco
elevado de desenvolver uma condição médica (ex.
presença de forte história familiar), a preocupação
é claramente excessiva ou desproporcional;
• C. Há alto nível de ansiedade com relação à saúde,
e o indivíduo é facilmente alarmado a respeito do
estado de saúde pessoal.
• Critérios diagnósticos:
Transtorno de • D. O indivíduo tem comportamentos excessivos
Ansiedade de relacionados à saúde (p. ex., verificações repetidas do
corpo procurando sinais de doença) ou exibe evitação
doença. mal-adaptativa (p. ex., evita consultas médicas e
hospitais);
• E. Preocupação relacionada a doença presente há pelo
menos seis meses, mas a doença específica que é
temida pode mudar nesse período.
• F. A preocupação relacionada a doença não é mais bem
explicada por outro transtorno mental, como transtorno
de sintomas somáticos, transtorno de pânico, transtorno
de ansiedade generalizada, transtorno dismórfico
corporal, transtorno obsessivo-compulsivo ou
transtorno delirante, tipo somático.
Transtorno de
Ansiedade de
doença.
• Critérios diagnósticos:
• Determinar subtipo:
• Tipo busca de cuidado;
• Tipo evitação de
cuidado.
Transtorno de Ansiedade de
doença.
• Diagnósticos diferenciais:
• TAD X TSS: no primeiro, pode haver sintomas
somáticos, porém de intensidade leve, com
predomínio da preocupação de portar
alguma doença grave e, no segundo, são os
sintomas somáticos que geram a intensa
perturbação da vida diária e sofrimento.
Transtorno Conversivo
(Transtorno de sintomas
neurológicos funcionais).
• Transtorno previamente considerado como
sendo de origem “psicogênica” pura;
• Os principais sintomas neurológicos
encontrados são dificuldades na marcha,
tremor ou fraqueza.
• Atualmente, considera-se a possibilidade da
existência do fator neurológico envolvido,
agregando-se o fator psicológico
(neuropsicológico).
• Maior prevalência em mulheres e nos
pacientes com histórico de violência durante a
infância.
Transtorno Conversivo
(Transtorno de sintomas
neurológicos funcionais).
• Critérios diagnósticos:
• A. Um ou mais sintomas de função motora ou
sensorial alterada;
• B. Achados físicos que evidenciam
incompatibilidade entre o sintoma e as condições
médicas ou neurológicas encontradas;
• C. O sintoma ou déficit não é mais bem explicado
por outro transtorno mental ou médico;
• D. O sintoma ou déficit causa sofrimento
clinicamente significativo ou prejuízo do
funcionamento social, profissional ou em outras
áreas importantes da vida do indivíduo ou requer
avaliação médica;
Transtorno Conversivo
(Transtorno de sintomas
neurológicos funcionais).
• Critérios diagnósticos:
• Especificar tipo de sintoma: com fraqueza
ou paralisia, com movimento anormal,
com sintomas de deglutição, com
sintomas de fala, com ataques ou
convulsões, com anestesia ou perda
sensorial, com sintomas mistos;
• Especificar se: episódio agudo (< 6 meses);
persistente (> 6 meses); com estressor
psicológico ou sem estressor psicológico;
• Critérios diagnósticos:
• A. Falsificação de sinais ou sintomas
físicos ou psicológicos, ou indução de
lesão ou doença, associada a fraude
identificada;
Transtorno • B. O indivíduo se apresenta a outros
como doente, incapacitado ou
factício lesionado;
autoimposto. • C. O comportamento fraudulento é
evidente, mesmo na ausência de
recompensas externas óbvias;
• D. O comportamento não é mais bem
explicado por outro transtorno mental,
como transtorno delirante ou outra
condição psicótica.
• Etiopatogenia: não há mecanismo fisiopatológico
bem definido.
• Contribuição de fatores diversos: sentimento de
Transtorno perda, de humilhação, dependência afetiva, medo
do abandono e comportamentos de origem
factício fraudulenta e compulsiva.
• Quadro clínico: paciente que produz sintomas
autoimposto. físicos ou psicológicos intencionalmente, para
assumir papel de doente. Os sintomas são
provocados, porém sem ganho secundário
evidente.
Tratamento dos Transtornos de origem
Somática
• Inicialmente, observar que não há medicação específica para o controle dos
sintomas.
• Atentar para algumas atitudes cruciais no controle desses transtornos:
• Para pacientes com queixas persistentes, considerar diagnóstico de TSS o mais
cedo possível;
• Evitar repetir exames, especialmente os mais invasivos, para acalmar o
paciente ou a si mesmo;
• Atentar-se para as queixas que indicam somatização ou estresse emocional
desproporcional ao sintoma. Pesquisar ideação suicida.
Tratamento dos Transtornos de origem
Somática
• Inicialmente, observar que não há medicação específica para o controle dos
sintomas.
• Atentar para algumas atitudes cruciais no controle desses transtornos:
• Acessar as experiências, expectativas, funcionalidade, crenças,
comportamentos patológicos relacionados a tendência a catastrofismos,
evitação ou uso indevido e demasiado dos serviços de saúde;
• Se o TSS for diagnosticado, realizar estratificação de gravidade em leve,
moderada ou grave.
Tratamento dos Transtornos de origem
Somática
• O tratamento normalmente envolve múltiplas abordagens e equipe
multidisciplinar. O objetivo é remitir ou atenuar os sintomas físicos, mas também
englobar a implicação subjetiva do paciente.
• Psicoeducação;
• Abordagens em grupo tendem a gerar maior empatia e comprometimento em
controlar os sintomas físicos e psicológicos;
• Se existir desordem física ou psiquiátrica adjunta com os transtornos
somatoformes, tratar o transtorno ou síndrome conforme suas indicações em
guidelines.
Caso Clínico 2
• Edleuza, 37 anos, vem para consulta em UBS com queixa de ter uma doença
urinária rara. Refere já ter passado por todos os serviços de saúde em Patos e
ninguém descobre o que ela tem. Refere que sua urina é persistentemente
rosada e sempre que vai urinar refere dor intensa em região renal. Nega outras
comorbidades ou uso de medicações contínuas.
• Faz EAS, que evidencia presença de hemoglobina 2+/4+ e cerca de 25
hemácias/campo. Ausência de bactérias e leucócitos no exame.
• Refere que, desde os seus 32 anos, começou a apresentar essas manifestações e
já foi até à São Paulo para investigar seu problema, sem resolução
Caso Clínico 2
• Ao exame físico, ACV e AR sem alterações. Exame abdominal normal.
• Sinal de Giordano positivo;
• Apresenta USG de vias urinárias sem alterações, TC de abdome total e
de crânio sem alterações; colonoscopia apresentando pequenas
formações de divertículos na altura do cólon sigmoide. Cintilografia
óssea sem alterações.
• Quais possíveis diagnósticos?
Caso Clínico 2
• Transtorno factício autoimposto, associado a transtorno psicótico breve.
• A paciente fazia uso de warfarina e rivaroxabana para provocação da
hematúria e gerava autolesões na região de flanco para simular sinal de
Giordano.
• Tratamento da paciente foi realizado com Risperidona 1mg ao dia, que foi
titulado para 3mg/dia associado a psicoterapia Cognitivo-Comportamental.
• Paciente ainda permanece apresentando a autoimposição de sintomas,
porém com maior controle de visitas a serviços de saúde e
acompanhamento periódico em UBS para escuta qualificada e
direcionamento comportamental.
Referências
• AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e
estatístico de transtornos mentais: DSM-5-TR. 5.ed. rev. Porto
Alegre: Artmed, 2023.
• DALGALARRONDO, P. Psicopatologia e semiologia dos
transtornos mentais. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2019. 440 p.
• EURIPEDES, C. M.; LAFER, B.; ELKIS, H.; FORLENZA, O. V. Clínica
Psiquiátrica: as grandes síndromes psiquiátricas, volume 2. 2
ed. Barueri: Manole, 2021.
• EURIPEDES, C. M., et al. Clínica Psiquiátrica: a terapêutica
psiquiátrica, volume 3. 2 ed. Barueri: Manole, 2021.
• SADOCK, B. J.; SADOCK, V. A.; RUIZ, P. Compêndio de
psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica.
11. ed. Porto Alegre: Artmed, 2017.
• NARDI, A. E.; SILVA, A. G.; QUEVEDO, J. (org.). Tratado de
psiquiatria da Associação Brasileira de Psiquiatria. Porto
Alegre: Artmed, 2022.

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