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Alberto Cupani
ARNOLD GEHLEN
inorgânico, tanto no que tange a materiais (madeira por ferro, por exemplo, ou
substâncias naturais por substâncias sintéticas) quanto no que diz respeito à energia (a
força humana ou o trabalho de animais substituídos pela energia elétrica ou a atômica)
(1980:6). Essa tendência a substituir o orgânico pelo inorgânico fundamenta-se em que
este último é mais fácil de ser conhecido que o primeiro, argumenta Gehlen. O âmbito
do orgânico presta-se melhor à análise racional metódica e ao experimento. Já os
âmbitos biológico e psíquico são, na opinião do autor, “incomparavelmente mais
irracionais”. Essa maior facilidade encerra a tentação de conceber o curso todo dos
eventos naturais como um processo uniforme, um mundo de fatos que se explicam uns
por outros, “constituindo um único complexo suficiente por si mesmo e legitimado pela
sua mera existência e suas propriedades factuais” (1980:7), um mundo em que o homem
pode intervir à vontade. Esse modo de pensar, próprio dos cientistas e dos tecnólogos,
essa atitude “pragmático-positivista”, se converteu na cosmovisão do sistema industrial
que impera nos dois últimos séculos.
Como todos os estudiosos do assunto, Gehlen registra a mudança qualitativa
entre a técnica antiga e a moderna, vinculada à sua associação com a ciência
experimental. Para Gelhen, não há dúvida quanto ao vínculo entre a metodologia da
nova ciência natural e o desenvolvimento sistemático, potencializado e em certo sentido
excessivo da nova técnica. O experimento é o primeiro passo, interpreta, rumo à
utilização técnica de um processo. No seu desenvolvimento, técnica e ciência
beneficiaram-se reciprocamente, porém para Gehlen esse desenvolvimento não teria
ocorrido se ambas não tivessem sido associadas ao modo capitalista de produção.4 Com
o advento da sociedade industrial, a técnica passou para o centro da cosmovisão. No
entanto, para compreender bem esse deslocamento devemos levar em consideração um
outro elemento.
(...) Durante milênios, em todas as culturas primitivas assim como nas mais
elevadas (a egípcia, a clássica, etc.) o homem acreditou na possibilidade de uma
“técnica sobrenatural” – o que hoje denominamos magia. Desde os tempos pré-
históricos a magia teve um lugar central na concepção que o homem tinha do
mundo e de si mesmo. Ainda em culturas monoteístas que negavam a
possibilidade da magia, a magia mantinha uma posição nas margens da sociedade
- como o mostram os processos das bruxas e dos mágicos na Idade Média – e tão
somente a cultura moderna, técnico-científica lhe deu um golpe mortal. (1980:12)
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“Nenhum dos inúmeros indivíduos que ao longo dos séculos lutaram com o insolúvel problema do
movimento perpétuo o fizeram em vista de algum efeito prático. Em vez disso, eles estavam todos
fascinados pelo singular apelo de uma máquina que se modo por si mesma, como um relógio que se dá
corda a si mesmo. Um tal apelo não é de natureza meramente intelectual, mas tem fontes mais
profundas”. (1980:14). Esse impulso explica também, segundo Gehlen, o fascínio dos jovens pelos
carros.
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Gehlen lembra que o “feedback” está presente já em processos fisiológicos, como auto-regulação da
pressão sanguínea (ibid., p. 21). Ao enfatizar a importância da auto-regulação Gehlen se apóia em H.
Schmidt (“The Entwicklung der Tecnik”) e N. Wiener. (Human Use of Human Beings). De resto, Gehlen
nos adverte que tudo isso não significa que se possa justificar o mecanicismo como visão geral da
natureza (ibid., p. 21). Trata-se apenas de um “isomorfismo”, p. 22.
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Tudo isso, comenta Gehlen, liberta o cérebro para desempenhos mais inusitados.
Tanto o círculo da ação como a tendência à facilitação são os determinantes últimos do
desenvolvimento técnico (ibid., p. 19). Baseando-se em H. Schmidt, Gehlen sugere a
existência de uma sorte de lei de progressiva objetificação/facilitação do trabalho
humano, que implicaria a passagem de três estágios: O primeiro é o da ferramenta que
prolonga e melhora o desempenho dos órgãos humanos. Nesta etapa, a energia física e o
ingrediente psíquico ainda dependem do sujeito. Na segunda etapa, a da máquina, a
energia física fica objetificada, dispensando a energia humana. A terceira etapa, a do
autômato, dispensa também a contribuição intelectual humana (ibid., p. 19). Desse
modo, “o avanço da técnica permite ao homem transferir à natureza inanimada um
princípio de organização que opera em vários pontos dentro do organismo” (p. 23). Essa
organização inclui a auto-regulação dos processos que culmina na automação. Em todo
caso, os tecnólogos modernos, sustenta Gehlen, não fizeram isso de maneira proposital,
mas “inconsciente e semi - instintivamente”; o homem, em razão da não especialização
que o caracteriza, vê-se impelido a aumentar seu poder sobre a natureza, “pois essa é a
lei da sua existência” (ibid., p. 25). Reciprocamente, não é suficiente para explicar a
técnica apelar para esse impulso básico, sem levar em consideração os fenômenos de
objetificação e ressonância antes mencionados.
A difusão mundial da tecnologia, impulsionada pelo sistema capitalista de
produção originou a atual “cultura das máquinas” da sociedade industrial, governada,
segundo Gehlen, por um intelectualismo e um experimentalismo extremos. Essa cultura
não pode ser compreendida apenas pela aliança da ciência e a técnica com o sistema de
produção, ignorando a necessidade humana de impor-se ao meio ambiente. Tampouco
pode ser compreendida sem lembrar o credo do Iluminismo.
A cultura industrial atual, sustenta Gehlen, notabiliza-se por uma marcada
intelectualização nas ciências e nas artes. Em ambos os casos, o objeto torna-se abstrato,
não intuitivo, de acesso problemático. Esse fenômeno dá-se tanto nas pesquisas físicas
de avançada (onde os fenômenos estudados correspondem cada vez menos às categorias
tradicionais de pensamento) como na pintura não figurativa, na poesia que responde às
palavras e não a sentimentos, na música atonal e na arquitetura cujas formas arrojadas
parecem refletir as geometrias não euclidianas (p. 29). Ciências e artes tornam-se
esotéricas, buscando sempre soluções “puras”, emancipando-se do obvio e daquilo que
o hábito tinha convertido em “natural”. 8 Por outra parte, a cultura intelectualista
moderna e a técnica têm em comum o experimentalismo, a exploração da aplicabilidade
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Esse impulso é comum, para o autor, tanto às geometrias não-euclidianas e a lógica de três valores como
à pintura de um Picasso (p. 30).
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Isso é patente, segundo Gehlen, tanto na “dissolução do objeto” na pintura quanto nos projetos
arquitetônicos audaciosos (em que o que seja uma “cúpula”, por exemplo, é modificado), e na tendência a
mudar as instituições.
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Esse primitivismo se manifesta, por exemplo, nos baixos padrões dos programas de entretenimento, na
tendência a aturdir-se com estímulos fortes, na utilização de uma linguagem reduzida, rude, sem
nuanças... (p. 41-42).
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Gehlen sustenta que o asceticismo integra a personalidade, aguça a consciência espiritual e fortalece os
impulsos sociais. Ele disciplina o homem. Pelo contrário, a afluência atenta contra a disciplina e as
inibições (p. 100).
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REFERÊNCIAS:
Gehlen, A. 1980 Man in the Age of Technology (trad. de Die Seele im Technischen
Zeitalter, 1957, orig. 1949). New York: Columbia University Press.
Texto de autoria de Alberto Cupani para uso exclusivo dos alunos do Curso de
Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina.
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A atitude técnica reduz tudo à condição do inorgânico, e não é possível adotar uma atitude ética ante o
inorgânico, observa G. (p. 100).