Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ficção
Poncio Arrupe
-9-
-9-
Moisés
Querida filha,
Fiquei muito contente por saber que estás a gostar cada vez mais do teu curso e da
estada na Alemanha. Ainda bem! Espero que não te habitues demasiado e que depois
não queiras voltar no final ... Tens ainda muito tempo para pensar.
Cá estou eu, de novo, a escrever-te. O motivo é, também de novo, um assunto a que
fizeste referência na nossa última conversa na net... Antes de tudo o mais, o Miguel e a
Teresa gostaram imenso de falar contigo, e particularmente de te ver. A Teresa assumiu
que o pode fazer quando quiser. Para ela basta ligar o computador ... e já está! Pensa
que tu estás sempre disponível … Vai demorar algum tempo a habituar-se à ideia de só
te ver via monitor, e só em algumas alturas planeadas. A tua vinda de férias a Portugal
causou-lhe alguma confusão. Pensou que regressavas definitivamente. Mal ela sabe que,
nos próximos anos, regressarás efectivamente muitas vezes ... mas à Alemanha.
Quanto ao assunto que é motivo para que eu te escreva ... Disseste que achas muito
curioso que aí na Alemanha haja pessoas em todo o lado que professam religiões
diferentes. Ou, pelo menos, que são originárias de meios familiares de tradições
religiosas diversas, tal como acontece com os teus colegas e professores. De facto aqui
em Portugal estamos pouco habituados a essa realidade. A maioria das pessoas é
proveniente de meios católicos e a convivência com pessoas de outras religiões, mesmo
cristãs, é rara, e sobretudo um fenómeno recente. Aí na Alemanha, desde há séculos,
que católicos e protestantes se equiparam mais ou menos em número de fiéis, e
recentemente o islamismo (sobretudo sunita e principalmente por via da emigração
turca) tem vindo a ganhar visibilidade, afirmando-se como a terceira religião do país
(Não sei que transformações neste aspecto resultaram da reunificação das duas
alemanhas. Provavelmente mais agnósticos e ateus, entre outras). Claro que há também,
como em muitas outras zonas do mundo, diversas confissões protestantes (Evangélicos,
Luteranos, ...), Testemunhas de Jeová (não chego a perceber se estes são considerados
protestantes pelos outros protestantes), e muito na onda da New Age, há também
Hindus, Budistas, Bahá´í, e – claro! – os que professam o judaísmo, apesar da chacina
de que foram alvo na Alemanha durante a segunda grande guerra.
Poncio Arrupe 45
conhecimento da Verdade e de Deus (o que quer que seja!), e por outro e ao mesmo
tempo, necessita absolutamente que outras religiões se afirmem igualmente como tal. Se
uma só religião existisse num só espaço geográfico logo emergiriam formas diversas de
vivênciar essa religião, logo diferentes religiões. Em termos prosaicos, todas as religiões
necessitam que os seus fiéis as professem como únicas vias, para que todas possam
alimentar-se das suas oposições mútuas essencais. Se aceitarmos este pressuposto então
cada um de nós que queira professar uma religião deverá fazê-lo com todo o empenho,
como se esse fosse o caminho único, sabendo ao mesmo tempo que outros caminhos
absolutamente necessários, únicos e igualmente exclusivos existem. Ou seja, os
problemas não estão nessas oposições e exclusões mútuas, nem as soluções estão em
encontrar a religião única universal. Esta, se por ventura pudesse subsistir, nunca
passaria de uma forma de tranquilização das mentes, particularmente daqueles que
exercessem o poder em nome dessa religião. A questão é mais prosaica, por um lado, e
mais importante, por outro: como viver nas contradições, nas oposições e negações
essenciais, sem destruir, mal tratar os humanos, todos. Como permitir e estimular as
divergências, também quanto àquilo que consideramos como a essência do humano.
Divergências essas que são por sua vez necessárias para a transformação absolutamente
essencial e em contínuo precisamente daquela essência. Transformação essa, por outro
lado, que é condição necessária à sobrevivência do que justamente consideramos
essencial - estou a abusar dos absurdos? Penso que sobre esta questão poderemos falar
um dia ao abordarmos com mais profundidade o tema conhecimento, identidades e o
humano.
Imagino que te perguntes agora para que te falo disto. Se não me fiz entender a
culpa é minha. Não consegui explicar-me com clareza. O tema não é fácil... Conclusões
para as relações entre as pessoas ... Vejamos ... As religiões são como as estações do
ano. Cada uma é o que é por via do que todas e cada uma das outras são. Cada uma só é
concebível à luz das diferenças e semelhanças com cada uma das outras. Cada uma
também se vai transformando e afirmando nesse processo de comparação, contraste,
exclusão, complementaridade, etc... Como acontece entre correntes científicas
incompatíveis, que não deixam por isso, cada uma, de produzir os seus métodos e
artefactos tecnológicos úteis. Ou seja, se discutimos religião com alguém que professe
uma diferente da nossa não nos devemos esquecer que a ideia que temos da nossa deve-
se também ao processo comparativo, e de absoluta necessidade de marcação de
diferenças, em relação à religião do outro. Por absurdo, a nossa é o que é e o que não é
Poncio Arrupe 47
implicitamente, relegadas para categorias inferiores, menos esclarecidas, das atitudes e
comportamentos humanos. Perigoso ... mesmo quando se introduzem discursos
politicamente correctos sobre a convivência entre civilizações, tradições comuns, o
ecumenismo, etc... Isto significa na prática “responder na mesma moeda” a discursos
mais radicais, que veiculam incompreensão, desrespeito, ódio, por parte de alguns
líderes religiosos mais fundamentalistas. Significa alimentar, fornecer combustível, para
esse tipo de discursos. E quando juntamos a miséria material como ingrediente ...
obtemos a legitimação da prepotência e da violência em todas as suas facetas.
Na minha perspectiva devemos apenas vivenciar, ou não, as nossas religiões, sem
pretender converter outros, ou dissuadi-los. Eles que decidam o que pretendem apenas
observando. Em sintonia, entendo que é particularmente pernicioso educar as crianças e
adolescentes numa determinada religião. Precisamente porque se trata de um assunto de
elevada importância, penso que as decisões devem ser tomadas pelos indivíduos quando
cada um decidir fazê-lo, se o decidir (nem sequer se deve veicular a necessidade de
decidir). Porque lidamos aqui com algo que não pode deixar de se afirmar como único,
que exclui as outras alternativas, e que lida com as inquietações essenciais dos
humanos, as crianças e adolescentes tenderão a desenvolver atitudes triunfalistas e
exclusivistas radicais e rígidas que facilmente se mantêm para o resto da vida (sabemos
que é nestas idades que se formam os paradigmas fundamentais das atitudes e
entendimento). Isto porque terão sérias dificuldades em conviver com o paradoxo tão
essencial ao humano de que te tenho vindo a falar. Não estão ainda capazes de professar
uma fé única que não o é ... E, se na idade adulta se dá uma ruptura com o passado, o
que acontece por vezes, ela acontece também de modo radical, extremo, no sentido
diametralmente oposto, e igualmente rígido.
Em síntese, penso precisamente o contrário do que muita gente. Um exemplo
prosaico ... não há problema em decidir por um filho qual o seu clube de futebol, mas já
há se essa decisão for sobre a sua religião. No primeiro caso nada de essencial está em
jogo – a sua felicidade não se joga aí -, no segundo caso está muito de essencial em
jogo, logo tem que ser o próprio a cuidar do assunto. A prova disto é que depois de uma
certa idade – oito a doze anos? - quase ninguém muda de clube de futebol, enquanto de
religião muita gente muda depois dessa mesma idade. Ao contrário do que nos diz
muito senso comum, o que não é importante não mudamos ao longo da vida, mas o que
interfere fundo com a nossa felicidade mudamos. De outro ponto de vista
complementar, zangamo-nos muitas vezes com outros (familiares, amigos) por causa do
Beijos e saudades,
Pai
Poncio Arrupe 49