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Sonhos e Outras Verdades

Ficção

Poncio Arrupe

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Moisés

Querida filha,

Fiquei muito contente por saber que estás a gostar cada vez mais do teu curso e da
estada na Alemanha. Ainda bem! Espero que não te habitues demasiado e que depois
não queiras voltar no final ... Tens ainda muito tempo para pensar.
Cá estou eu, de novo, a escrever-te. O motivo é, também de novo, um assunto a que
fizeste referência na nossa última conversa na net... Antes de tudo o mais, o Miguel e a
Teresa gostaram imenso de falar contigo, e particularmente de te ver. A Teresa assumiu
que o pode fazer quando quiser. Para ela basta ligar o computador ... e já está! Pensa
que tu estás sempre disponível … Vai demorar algum tempo a habituar-se à ideia de só
te ver via monitor, e só em algumas alturas planeadas. A tua vinda de férias a Portugal
causou-lhe alguma confusão. Pensou que regressavas definitivamente. Mal ela sabe que,
nos próximos anos, regressarás efectivamente muitas vezes ... mas à Alemanha.
Quanto ao assunto que é motivo para que eu te escreva ... Disseste que achas muito
curioso que aí na Alemanha haja pessoas em todo o lado que professam religiões
diferentes. Ou, pelo menos, que são originárias de meios familiares de tradições
religiosas diversas, tal como acontece com os teus colegas e professores. De facto aqui
em Portugal estamos pouco habituados a essa realidade. A maioria das pessoas é
proveniente de meios católicos e a convivência com pessoas de outras religiões, mesmo
cristãs, é rara, e sobretudo um fenómeno recente. Aí na Alemanha, desde há séculos,
que católicos e protestantes se equiparam mais ou menos em número de fiéis, e
recentemente o islamismo (sobretudo sunita e principalmente por via da emigração
turca) tem vindo a ganhar visibilidade, afirmando-se como a terceira religião do país
(Não sei que transformações neste aspecto resultaram da reunificação das duas
alemanhas. Provavelmente mais agnósticos e ateus, entre outras). Claro que há também,
como em muitas outras zonas do mundo, diversas confissões protestantes (Evangélicos,
Luteranos, ...), Testemunhas de Jeová (não chego a perceber se estes são considerados
protestantes pelos outros protestantes), e muito na onda da New Age, há também
Hindus, Budistas, Bahá´í, e – claro! – os que professam o judaísmo, apesar da chacina
de que foram alvo na Alemanha durante a segunda grande guerra.

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Penso que nunca chegámos a conversar seriamente sobre este assunto das religiões.
Julgo que é um óptimo ângulo de abordagem àquilo que é na minha opinião o grande
paradoxo irresolúvel do humano. Paradoxo esse com o qual é importante sabermos
viver apesar de incompreensível. Como bom paradoxo que se preze, pede
constantemente resolução sendo irresolúvel! Neste absurdo reside a fonte de muitos
equívocos e de muitas tentações porque não estamos “programados”, particularmente
nós os ocidentais, para deixar os absurdos quietos. Tendemos a impor resoluções
artificiosas unicamente para tranquilidade das nossas mentes que convivem mal com o
incompreensível do ponto de vista estrito da racionalidade positivista. Os estados que se
afirmam, nas suas constituições, como laicos, como a Alemanha, Portugal e outros, não
estão mais do que a tentar diminuir, inadvertidamente, a probabilidade da emergência e
difusão de soluções que ilusoriamente escamoteiam o grande paradoxo que te referi.
Soluções essas que se afirmam como a via para a resolução das grandes inquietações de
nós humanos. Quando alguém acredita que tem uma solução para o irresolúvel ... abre-
se uma Caixa da Pandora ... A História da Europa, da Bacia Mediterrânica, e da
chamada Civilização Ocidental e suas ramificações para o resto do globo, dá-nos muitos
exemplos das barbáries que daí resultam.
Que paradoxo é esse? É o de que as diferenças, os opostos, as negações, as
incompatibilidade, as rejeições mútuas são a essência das transformações na
humanidade. Ou seja, aquele paradoxo irresolúvel, precisamente porque irresolúvel, é a
fonte energética para a transformação de tudo aquilo que é humano, logo para a sua
sobrevivência. É essa impossibilidade de resolução que funciona como desestabilizador
permanente dos modos como olhamos o humano e a vida, e que nos obriga à busca
incessante de novos equilíbrios.
Utilizando as religiões como ilustração ... Ilustração esta, aliás, audaciosa porque as
religiões, particularmente os cristianismos, islamismos e judaismos, pretendem lidar
com aquilo que é supostamente o essencial no humano, o transcendental, eterno,
universal, imutável, logo que não é suposto transformar-se, muito menos conter em si a
sua própria contradição. Quer dizer, abrigar e alimentar a necessidade que lhe é
absolutamente essencial da sua própria contradição, rejeição, negação. Indo mais longe
no absurdo, qualquer solução só o é se inclui em si a sua própria negação, quer dizer, se
contém em si a necessidade de outras soluções que, por sua vez, a negam e assim ad
aeternum. Regressando às religiões na acepção ocidental, cada uma delas, para que o
seja, necessita de, por um lado, se afirmar como o único caminho para o verdadeiro

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conhecimento da Verdade e de Deus (o que quer que seja!), e por outro e ao mesmo
tempo, necessita absolutamente que outras religiões se afirmem igualmente como tal. Se
uma só religião existisse num só espaço geográfico logo emergiriam formas diversas de
vivênciar essa religião, logo diferentes religiões. Em termos prosaicos, todas as religiões
necessitam que os seus fiéis as professem como únicas vias, para que todas possam
alimentar-se das suas oposições mútuas essencais. Se aceitarmos este pressuposto então
cada um de nós que queira professar uma religião deverá fazê-lo com todo o empenho,
como se esse fosse o caminho único, sabendo ao mesmo tempo que outros caminhos
absolutamente necessários, únicos e igualmente exclusivos existem. Ou seja, os
problemas não estão nessas oposições e exclusões mútuas, nem as soluções estão em
encontrar a religião única universal. Esta, se por ventura pudesse subsistir, nunca
passaria de uma forma de tranquilização das mentes, particularmente daqueles que
exercessem o poder em nome dessa religião. A questão é mais prosaica, por um lado, e
mais importante, por outro: como viver nas contradições, nas oposições e negações
essenciais, sem destruir, mal tratar os humanos, todos. Como permitir e estimular as
divergências, também quanto àquilo que consideramos como a essência do humano.
Divergências essas que são por sua vez necessárias para a transformação absolutamente
essencial e em contínuo precisamente daquela essência. Transformação essa, por outro
lado, que é condição necessária à sobrevivência do que justamente consideramos
essencial - estou a abusar dos absurdos? Penso que sobre esta questão poderemos falar
um dia ao abordarmos com mais profundidade o tema conhecimento, identidades e o
humano.
Imagino que te perguntes agora para que te falo disto. Se não me fiz entender a
culpa é minha. Não consegui explicar-me com clareza. O tema não é fácil... Conclusões
para as relações entre as pessoas ... Vejamos ... As religiões são como as estações do
ano. Cada uma é o que é por via do que todas e cada uma das outras são. Cada uma só é
concebível à luz das diferenças e semelhanças com cada uma das outras. Cada uma
também se vai transformando e afirmando nesse processo de comparação, contraste,
exclusão, complementaridade, etc... Como acontece entre correntes científicas
incompatíveis, que não deixam por isso, cada uma, de produzir os seus métodos e
artefactos tecnológicos úteis. Ou seja, se discutimos religião com alguém que professe
uma diferente da nossa não nos devemos esquecer que a ideia que temos da nossa deve-
se também ao processo comparativo, e de absoluta necessidade de marcação de
diferenças, em relação à religião do outro. Por absurdo, a nossa é o que é e o que não é

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também pelo que a outra é e não é. Digo-te isto a propósito de teres referido que num
almoço com os teus colegas se gerou uma discussão acirrada entre vós sobre o tema,
agora tão em voga, da natureza sobrenatural, ou não, da concepção e nascimento de
Jesus. O modo como vivemos a nossa religião é subsidiário de todas as outras religiões
das quais supostamente nos demarcamos. Ou seja, somos o que somos por via dos
outros dos quais nos diferenciamos. (Tento passar esta ideia aos teus irmãos através de
uma pequena história a que chamei “O Outono Sabichão”. Está em attach. Diz-me o
que te parece. Mas diz-me, mesmo.)
Se pensarmos nos cristianismos, islamismos e judaismos, religiões predominantes
nesta região, que podemos identificar com a zona geográfica da bacia mediterrânica, um
seu denominador comum é o de serem teleologias. Quer dizer, de se afirmarem como
um caminho para um fim a alcançar – a salvação, o paraíso, a ressurreição, a felicidade
eterna ... De modos diferentes, nas suas diversas correntes também, pretendem mostrar
aos seus fiéis e ao resto do mundo qual é o caminho para a Verdade transcendental,
universal, eterna. Neste sentido são tendencialmente triunfalistas e exclusivistas
(embora nos dias de hoje os eus líderes não o afirmem expressamente). Quer isto dizer
que se consideram como o único caminho – por vezes matizado com expressões como
“melhor”, ou equivalentes - para essa Verdade, que só será alcançada pelos seus
seguidores. Deste ponto de vista somos, de facto, religiões e povos irmãos por
comparação com o conjunto das outras religiões não teleológicas. E provavelmente é
por esta componente triunfalista e exclusivista que por vezes nos damos tão mal ... E
também porque exportámos para o resto do mundo essa atitude tão frequentemente
conflituosa entre irmãos! ... Nomeadamente na forma de ideologias políticas de pendor
fortemente teleológico, provavelmente todas elas, sem excepção, filhas das tradições
religiosas desta zona do globo ...
Estas religiões têm a pretensão de resolver o paradoxo irresolúvel a que acima me
referi ... A elas subjaz o paradigma da verdade única a encontrar (de novo, se um dia
falarmos sobre o que é o conhecimento, posso tentar esclarecer melhor), o que implica
que se afirmem como já a conhecendo, pelo menos em parte, ao ponto de se
considerarem melhor caminho para a plenitude da mesma em comparação com as outras
religiões ou correntes. Fica assim justificada entre os seus fiéis a necessidade, e o dever
até, de empreender acções prosélitas que visam a conversão dos outros, assim como a
educação das crianças e adolescentes numa fé que lhes é apresentada como a verdadeira,
a única. O que implica que as outras fés sejam, hoje em dia quase sempre só

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implicitamente, relegadas para categorias inferiores, menos esclarecidas, das atitudes e
comportamentos humanos. Perigoso ... mesmo quando se introduzem discursos
politicamente correctos sobre a convivência entre civilizações, tradições comuns, o
ecumenismo, etc... Isto significa na prática “responder na mesma moeda” a discursos
mais radicais, que veiculam incompreensão, desrespeito, ódio, por parte de alguns
líderes religiosos mais fundamentalistas. Significa alimentar, fornecer combustível, para
esse tipo de discursos. E quando juntamos a miséria material como ingrediente ...
obtemos a legitimação da prepotência e da violência em todas as suas facetas.
Na minha perspectiva devemos apenas vivenciar, ou não, as nossas religiões, sem
pretender converter outros, ou dissuadi-los. Eles que decidam o que pretendem apenas
observando. Em sintonia, entendo que é particularmente pernicioso educar as crianças e
adolescentes numa determinada religião. Precisamente porque se trata de um assunto de
elevada importância, penso que as decisões devem ser tomadas pelos indivíduos quando
cada um decidir fazê-lo, se o decidir (nem sequer se deve veicular a necessidade de
decidir). Porque lidamos aqui com algo que não pode deixar de se afirmar como único,
que exclui as outras alternativas, e que lida com as inquietações essenciais dos
humanos, as crianças e adolescentes tenderão a desenvolver atitudes triunfalistas e
exclusivistas radicais e rígidas que facilmente se mantêm para o resto da vida (sabemos
que é nestas idades que se formam os paradigmas fundamentais das atitudes e
entendimento). Isto porque terão sérias dificuldades em conviver com o paradoxo tão
essencial ao humano de que te tenho vindo a falar. Não estão ainda capazes de professar
uma fé única que não o é ... E, se na idade adulta se dá uma ruptura com o passado, o
que acontece por vezes, ela acontece também de modo radical, extremo, no sentido
diametralmente oposto, e igualmente rígido.
Em síntese, penso precisamente o contrário do que muita gente. Um exemplo
prosaico ... não há problema em decidir por um filho qual o seu clube de futebol, mas já
há se essa decisão for sobre a sua religião. No primeiro caso nada de essencial está em
jogo – a sua felicidade não se joga aí -, no segundo caso está muito de essencial em
jogo, logo tem que ser o próprio a cuidar do assunto. A prova disto é que depois de uma
certa idade – oito a doze anos? - quase ninguém muda de clube de futebol, enquanto de
religião muita gente muda depois dessa mesma idade. Ao contrário do que nos diz
muito senso comum, o que não é importante não mudamos ao longo da vida, mas o que
interfere fundo com a nossa felicidade mudamos. De outro ponto de vista
complementar, zangamo-nos muitas vezes com outros (familiares, amigos) por causa do

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futebol, para passados alguns minutos, dias no máximo, as relações voltarem à
normalidade. Quase nunca ou nunca nos zangamos com os outros por motivos
religiosos mas, se isso acontecer, frequentemente as relações não voltam ao que eram.
Ou demoram muito mais tempo a recuperar. E ainda outra perspectiva, o futebol é um
óptimo assunto para se fazer conversa de circunstância, nomeadamente com
desconhecidos. A religião, definitivamente, não!
Margarida, fui demasiado extenso e chato ... Mas só agora me pareceu conveniente
abordar contigo este assunto – tu até já dissecas! ☺ -, e estás longe! Já sabes o que eu
penso, e isso é o que para mim é importante. Não sinto necessidade de que penses como
eu. Se entenderes conversar mais escreve, ou esperamos pelas tuas próximas férias. Pela
internet é que não dá porque o Miguel e a Teresa não descolam do monitor.
... Isto é que foi uma epístola à antiga! As novíssimas tecnologias ajudam a
recuperar antiquíssimas tradições ... Fica já escrito para os teus irmãos para quando for
apropriado eles lerem (se entretanto não pensar de outra forma ...). Vou também dar à
Rita para ler, para me explicar...
Continua a alimentar-te convenientemente e a fazer a tua ginástica. Dorme bem para
que possas ter qualidade de vida quando estiveres acordada. Está demonstrado que as
pessoas que o fazem revelam, para além de estados de humor mais agradáveis, melhores
faculdades intelectuais. A Rita manda-te beijinhos e saudades. Pergunta quando levantas
o rabiosque e vais a Berlim? Eu também ... ☺
Falamos no dia e à hora do costume. O Miguel e a Teresa estão ansiosos.

Beijos e saudades,

Pai

P.S. – Continuo a aguardar que me envies músicas daí.

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