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O crime de Rivecourt

Novela de
Élie Berthet
traduzido por A. M. da Cunha e Sá.

© 2012. (zero papel), edições digitais.


I — O serão na aldeia

Corria o mês de outubro e havia serão em casa da tia Hubert, lavradora remediada da
aldeia de Rivecourt, na Picardia.

Povoada quase exclusivamente de gente do campo, Rivecourt acha-se situada à beira de


uma estrada, em meio de florestas onde abundam a caça, os caçadores furtivos e os guardas
campestres. Dava-se, porém, a circunstância de que na época em que se passa o que vamos
contar, via-se a um quarto de légua da aldeia uma construção imensa, de um gosto
inqualificável, ainda não concluída, com pretensões de ser um palácio aristocrático, e cujos
trabalhos atraíam à terra uma desusada afluência de operários de toda a ordem.

A reunião tinha lugar numa casa térrea, que servia de cozinha e sala à tia Hubert. A casa
era de ladrilho, guarnecida por uma tosca mobília, cuja peça mais vistosa era um ruidoso
relógio de parede. Do alto de dois castiçais de cobre derramavam duas velas a sua claridade
enfumaçada; mas o que principalmente alumiava a sala era o fogo que brilhava na chaminé
gigantesca.

Tinha a reunião um fim especial. A tia Hubert, corajosa viúva, que desde a morte do
marido dirigia sozinha os trabalhos da lavoura e duplicara a sua modesta fortuna, devia
casar a sua filha única, Teresa, com o filho de um rico cultivador dos arredores, e o serão
era, por assim dizer, uma festa de núpcias. Por isso, os jarros de cidra alinhavam-se com os
copos baratos por cima da comprida mesa; as castanhas estalavam como bombas no fogo, e
sob a cinza estavam a cozer saborosas batatas destinadas aos convivas.

Entre as mulheres presentes, notava-se em primeiro lugar a dona da casa, que não
parava para que aos assistentes não faltassem a cidra nem as comidas; depois a sua filha
Teresa, cujo nariz arrebitado e olhinho esperto, prometiam dar que fazer ao futuro marido,
grande palerma de cara deslavada, que olhava para ela de boca aberta sem lhe dizer palavra.
Mas, sobre quem principalmente convergia a atenção era sobre uma interessante mulher de
vinte e cinco a vinte e seis anos, fresca, rechonchuda, sempre risonha, a fim de mostrar os
dentes brancos como pérolas. Vestida com certo apuro, procurava imitar as maneiras da
cidade. Chamavam-lhe a sr.ª Lourenço. Era viúva, não tinha filhos, e possuía uma
propriedade que fazia dela um dos melhores partidos da terra. Por isso, não faltavam os
namorados à provocante viúva, e naquela mesma reunião, era o alvo de muitas assiduidades.

Entre os que procuravam agradar-lhe, achavam-se dois homens de aspeto muito


diferente. Um deles, muito novo ainda, e vestido com simplicidade mas muita decência, tinha
uns ares afáveis e modestos. Observava com admiração cada movimento da viúva Lourenço,
procurava prever-lhe os menores desejos, aprovava com um gesto cada uma das suas
palavras. Este excelente rapaz chamava-se João Pedro, era órfão e criava com o seu trabalho
um irmão e uma irmã, ainda incapazes de se sustentarem a si mesmos.

O outro, pelo contrário, que tem de desempenhar importante papel nesta história, era
homem de trinta anos, de estatura quase colossal, de rosto varonil e enérgico.

Exercia a profissão de tanoeiro. A sua casa era a melhor da aldeia, e passava por ser
rico, tanto pelo seu património, como pelo da mulher, falecida havia poucos meses.
Chamava-se Hermano e era natural de Lorena; vivia, porém, na terra havia muito.

Em casa da lavradora, o tanoeiro parecia mais temido que amado. Falava pouco,
sempre em tom decidido, como homem que não tolera que o contradigam; o seu olhar ríspido
intimidava quem intentasse resistir-lhe.

O pobre João Pedro, desde que Hermano se instalara, de cachimbo no canto da boca,
ao lado da jovem viúva, já não se atrevia a chegar-se para ela e só a olhava a furto. A
própria viúva, fascinada par aquele homem imperioso, a ninguém escutava com mais
interesse e com mais satisfação aparente do que o tanoeiro.

Passara a primeira parte da festa, quando a viúva, que já muitas vezes relanceara os
olhos para uma porta interior, perguntou a Teresa Hubert, no modo de falar da terra, que era
a linguagem de que todos ali se serviam:

— Olá, ó Teresita, o tal janota de Paris que está hospedado no seu belo quarto, não
aparecerá por aqui o seu bocado?

— Vem, vem, que mo prometeu, — respondeu Teresa com ares presumidos, — e ele
cumpre sempre o que promete. Também nos há de servir de padrinho no nosso casamento, o
que para nós é uma grande honra, não é assim, José Leroud?

O noivo da cara deslavada esfregou as mãos; mas muitos dos assistentes acolheram as
palavras de Teresa com piscadelas de olho ou risinhos equívocos. Para dizer a verdade, a
malícia dos habitantes de Rivecourt já debicara um pouco na pele da menina Hubert e do
sujeito de Paris, que havia dois meses ocupava um quarto na casa.

Ninguém, contudo, se atrevia a dizer claramente o que pensava; só Hermano disse com
muito mau modo:

— Ora! Se não há de vir, aquele adamado! Nunca falta onde aparecem damas... Mas
esse sujeito, previno-as disso, tem umas tais maneiras que um dia rendem-lhe a sua conta!

As mulheres protestaram.

— Oh! Hermano! — disse a viúva em tom de censura, — pode falar desse modo de um
homem tão galante, tão perfeito?

— E que, — acrescentou Teresa, — ganha dinheiro a rodo apenas a sarapintar madeira


e lona!

— Demais, sr. Hermano, não seria tão fácil como isso o parisiense apanhar a sua conta.
Apesar do seu fato apurado, da sua carinha bonita, tem um pulso sólido, que eu sei...

— No outro dia, no Château-Neuf, onde trabalha pintando as paredes de figuras, um


diabo de um amassador, um latagão, meteu-se com ele e disse-lhe alguma coisa que não lhe
agradou. O parisiense não esteve com meias medidas, agarrou o latagão, meteu-o debaixo do
braço como um embrulho, e depois pô-lo fora da porta, com alguns pontapés... O amassador
jura que nunca se meterá com ele.

— Isso é bom para os frangos como vocês que têm medo de um homem da cidade...
Mas, se ele desse com um que lhe soubesse responder... Deixem estar que ainda hão de ver
isso... talvez um dia destes!...

Neste momento, um homem de meia idade, que vestia uma espécie de uniforme ou libré,
com a chapa de guarda particular, aproximou-se de Hermano e perguntou-lhe:

— É verdade, hoje não aparece por cá o seu sogro, o tio Martinho? Esperava encontrá-
lo em casa da sr.ª Hubert.

Esta pergunta tão simples produziu no tanoeiro uma impressão extraordinária. Fez-se
muito pálido e respondeu após um momento de hesitação:

— Pois eu cá importa-me com o que faz o Martinho? Não me dou com ele desde a
morte da minha pobre mulher... um preguiçoso, um bêbado que dá cabo de quanto tem; não
deixa nada à minha filha, que está em Saint Valery, com a tia. Não é porque eu lhe queira
mal, — acrescentou, — mas nós não nos entendemos, como se sabe, e já não quero saber
dele.

— Faz-me agora lembrar — disse a dona da casa, — que de ontem para cá, ainda
ninguém viu Martinho.

— Ora! — observou o guarda. — Temos por aí obra de caça furtiva... Apesar de ser
guarda, não se lhe dá de ir caçar nas terras dos mais; por isso tive uma vez de lhe levantar
auto e de o pôr em dificuldades... Mas isto já lá vai e decerto que não me guarda reserva...
Se o encontrasse aqui esta noite, estender-lhe-ia a mão e faríamos uma saúde.

O guarda Lescot, falando assim, tinha uns ares de franqueza e de bonomia de que não se
podia suspeitar.
Não obstante, Hermano disse meneando a cabeça:

— Basta, sr. Lescot, tem lábia, mas a verdade é que vocês não gostam um do outro. Se
sucedesse alguma coisa a meu sogro, sabíamos a quem havíamos de tomar contas!

— E o que quer que lhe suceda? O que digo é que estimaria encontrá-lo... e espero que
ele virá por aí hoje.

— Ei-lo! — exclamou Teresa toda alegre.

Hermano estremeceu e voltou-se de repente, enquanto o guarda Lescot dizia:

— Quem? O tio Martinho? Onde está?

— Não é isso — respondeu Teresa, toda corada de satisfação; — bem vê que é o sr.
Leão, o nosso parisiense!

Efetivamente, a porta interior acabava de se abrir, e um mancebo, bem vestido, calçado


de botas muito lustrosas, entrou na sala com demonstrações de civilidade muito exageradas
para não serem irónicas.
II — O parisiense

Leão Girard era um artista de génio muito divertido. Discípulo de um mestre ilustre,
por pouco que não obtivera o prémio grande de Roma, e revelara-se logo na estreia um
artista de futuro.

Mas, por desgraça, Girard não dispunha de meios, e enquanto esperava riqueza e
reputação, tinha de passar cruéis necessidades.

Dissemos que a alguma distância da aldeia, se construía um vasto edifício, de


arquitetura esquisita.

O proprietário era um banqueiro de Paris, agiota, especulador da mais odiosa espécie,


que ganhara muitos milhões em negócios vis. Tivera o capricho de mandar construir para si
em Rivecourt, onde já possuía consideráveis terras, uma casa que excedesse em
magnificência às mais sumptuosas habitações da província. De todos os planos que lhe
haviam apresentado, escolhera o mais extravagante e apressara-se a fazê-lo executar com
grande dispêndio.

Desejando que muitas das salas da sua futura residência fossem pintadas a fresco, fora
ter com o mestre de Girard para o incumbir daquele trabalho, ao qual destinava uma soma de
vinte mil francos. O mestre não aceitou a incumbência, mas arranjou as coisas de modo que a
encomenda passou para o discípulo.

Era uma rude tarefa; tinha para um ano de trabalho, pois que se tratava de cobrir de
pinturas cem metros quadrados, pelo menos, de paredes e tetos. Mas, ganhar vinte mil
francos era uma fortuna para um pintor no princípio da sua carreira. Girard dissera por isso
adeus aos seus camaradas de Paris, e chegara alguns dias antes a Rivecourt.

Teria podido instalar-se no palácio por acabar, mas o ruído dos operários, a tristeza
daquele grande edifício todo de branco, e também o mau gosto da arquitetura, que ofendia os
instintos de Leão, tinham-no decidido a ir morar para a aldeia.

Contudo, como não existia em Rivecourt nenhuma espécie de estalagem, instalara-se em


casa de Hubert, que podia dispor de um quarto asseado e lhe preparava as modestas
refeições.

Era um génio folgazão, como já dissemos, e sabendo que naquela noite havia reunião
em casa tivera a divertida ideia de aí se apresentar num trajo próprio de sala. Ele que não
receava aparecer na única rua de Rivecourt, de blusa manchada de tintas e de gorro
disforme, vestira uma calça clara, uma sobrecasaca preta e um colete de seda. Esmerara-se
na barba e no cabelo, e ficara assim, apesar do seu ar impertinente, um rapaz muito bonito.

Entrou, cumprimentou todos os homens com um aperto de mão, as mulheres com uma
amabilidade que as arrebatava, e depois de se sentar, tomou parte na conversa geral metendo
a sua anedota, que fazia pôr as mãos nas ilhargas aos que o ouviam.

Caminhava tudo perfeitamente em casa da tia Hubert, quando um homem de avental de


coiro, com a aparência de um cortador de lenha, entrou na sala.

Pela maneira como cumprimentou, pela sua cara discreta, podia-se adivinhar que era
portador de alguma importante notícia.

— Olha! É Bridou! — gritaram de todos os lados; — boa noite, Bridou!... O Bridou é


muito capaz de beber um copo de cidra?

Bridou aceitou o copo e despejou-o de um trago.

— Obrigado — disse em tom lúgubre, sentando-se; — estava precisado de beber,


porque tinha a língua pegada ao céu da boca. Mas pelo que vejo — prosseguiu deitando em
volta um olhar muito admirado, — vocês estão para aí muito sossegados... não sabem então
o que se passa?

— O que é, Bridou?

— O quê! Pois ainda ninguém sabe nada? De facto, só eu e o Rigonet, e depois o senhor
maire e o juiz de paz, é que temos conhecimento disso... Nesse caso, eu lhes vou contar. Esta
noite, o tio Martinho foi encontrado assassinado nas terras do Bois-Brulé.

— Assassinado!

Estabeleceu-se profundo silêncio. Só o pintor murmurou entre dentes:

— Esta história pode ser muito interessante, mas o princípio não é muito alegre.

Ninguém levantou observação.

Um dos circunstantes disse em seguida:

— Pobre Martinho!... E sabe-se quem seria o autor?

— Algum caçador furtivo ou algum guarda — acudiu prontamente Hermano.

— Talvez não passasse de alguma fatalidade na caça — disse o guarda Lescot. — O


Martinho servia-se de uma espingarda enferrujada, que mais tarde ou mais cedo, devia
rebentar-lhe nas mãos.

Bridou fez que lhe enchessem novamente o copo e continuou em tom magistral:

— Quem foi o autor? Eis o que os espertos hão de dizer; contudo, eu e Rigonet,
podemos dizer muita coisa a esse respeito... vão ver:

Eu ando com o Rigonet a arrancar troncos de árvore no Grand Chaume, a menos de cem
passos do Bois-Brulé. Ora, ontem à noite, pelas seis horas, quando começava a anoitecer e
nos dispúnhamos a recolher, ouvimos no bosque dois tiros de espingarda, desfechados com
pequeno intervalo um do outro.

Um dos tiros produziu uma luz muito viva que iluminou o cimo das árvores; o outro não
produziu luz, mas não foi menos forte.

«Bom!» disse eu para o Rigonet, «aí estão uns sujeitinhos de emboscada e que hão de
cear melhor que nós!... mas isto não é connosco, vamo-nos embora.»

E pusemo-nos a caminho.

Já não pensávamos em tal, quando esta manhã, ao trabalhar no mesmo sítio, vi um


bando de corvos que grasnavam por cima do bosque; e depois as pegas e os gaios piavam.
Pareceu-me esquisito e disse a Rigonet:

«Rigonet, temos corvos e pegas.»

«Ora, o que nos importa?» perguntou Rigonet que não é esperto.

«Não percebes que as pegas e os corvos são atraídos por alguma peça de caça que os
caçadores terão perdido ontem? Vamos ver; talvez, que ceemos hoje uma lebre ou um
cabrito!»

«Lá isso é verdade», replicou Rigonet, que, deve-se-lhe fazer justiça, não teimou:
«Vamos lá.»

Procurámos por muito tempo no sítio da floresta, onde na véspera à noite havíamos
ouvido os dois tiros de espingarda. Finalmente, dirigidos pelos corvos, que continuavam a
voar fazendo muita grasnada, descobrimos o que dava causa àquela afluência de aves
daninhas. Não era nem lebre nem cabrito, era o pobre do Martinho, que jazia morto
atravessado num atalho... Entrara-lhe uma bala no peito, despedaçara-lhe o crânio outra
bala. Além disso tinha a cara toda retalhada, como se o tivessem querido completamente
desfigurar, ou se tivessem cevado nele com furor...
Mas nós não nos enganámos, porque o conhecemos perfeitamente. Demais, tinha a sua
chapa de guarda; e a espingarda estava carregada a dois passos dele.

Bridou calou-se para avaliar o efeito que a sua narrativa produzia. Em todos os rostos
se manifestava o horror.

— E o que fizeste então, Bridou? — perguntou uma voz.

— O que havia de melhor a fazer — respondeu Bridou. — Fomos imediatamente


prevenir o maire, que da sua parte preveniu o juiz de paz e os gendarmes. Dirigiram-se
todos na nossa companhia para Bois-Brulé; mas, como nós não atravessámos a aldeia, vocês
não souberam nada. Em Bois-Brulé examinaram tudo, mediram distâncias, tomaram notas,
depois interrogaram-nos, a mim e ao Rigonet, e contámos o que tínhamos ouvido na véspera.
Depois, fizeram-nos conduzir para aqui e tivemos de assinar o auto do corpo de delito
conforme podemos... Aqui as coisas demoraram-se muito e só há bocado nos deixaram
partir... Por isso eu e o meu camarada estamos que não podemos.

E Bridou estendeu novamente o copo.

Na sociedade continuava a reinar profundo silêncio.

Parecia que pairava em todos os lábios uma pergunta, que ninguém se atrevia a proferir.

Com a sua costumada leviandade, foi Leão Girard que exprimiu o pensamento comum:

— Olá, ó amigo, e sabe-se quem foi que matou esse pobre diabo?

— Não — replicou Bridou laconicamente.

Ninguém disse palavra; nenhum dos circunstantes se atreveu a olhar para o seu vizinho.

— O quê! Pois entre os indícios que os magistrados recolheram, não se descobriu nada
que pudesse servir de rasto?

— Nada, à força de procurarem puderam apanhar uma bucha feita com um pedaço de
jornal e um pau de fósforo recentemente queimado... mais nada. Quanto ao pobre Martinho, é
fora de dúvida que não se defendeu; foi alcançado de improviso por uma bala, enquanto
espreitava algum caçador furtivo ou ele próprio caçava a furto. Apesar de ter ficado bem
morto ao primeiro tiro, atiraram-lhe por segunda vez à queima roupa, e além disso,
desfiguraram-no... É claro que o matador detestava grandemente o Martinho!

— Desgraçada coisa! — disse o guarda Lescot.

Formaram-se vários grupos e cada qual dizia o que pensava a respeito do que acabava
de suceder.

Leão Girard exclamou:

— Ora! Isso é lá com a justiça e ela saberá descobrir o assassino... Sabem o que lhes
digo? É que não é nada divertida a sua festa! Se falássemos um poucochinho em outra coisa!

Mas o pintor perdera por um instante a sua influência na assembleia. Já ninguém o


escutava, nem sequer a viúva, nem Teresa Hubert. Continuavam animadamente a falar
baixinho.

De repente Hermano bradou:

— Onde está o guarda Lescot?

Olharam todos em roda.

Muitos dos convidados acabavam de sair, decerto para irem contar pela aldeia o grande
acontecimento, e Lescot era de certo desse número. Esta retirada, em semelhantes
circunstâncias, deu que pensar.

— O que dizem vocês? — continuou o tanoeiro. — Será agora preciso nomear o


assassino do meu sogro? Não acabou ele agora mesmo de se denunciar?

Ninguém se apressava a responder.

— Isso não prova nada — respondeu finalmente João Pedro. — O Lescot tem sempre
passado por um bom homem.

— Quem havia de ser então o culpado? — perguntou Hermano num tom rude e quase
ameaçador. — O Lescot, apesar de parecer muito bom homem, acusou o Martinho (como se
os lobos se comessem uns aos outros!), e fê-lo multar, depois do que se socaram
mutuamente... É para admirar que se ontem se encontraram nalgum recanto do bosque, um
deles tivesse ideia de armar alguma ao outro?... E esperem lá, não notaram esta noite o ar
embaraçado e todo cheio de mansidão do Lescot? Vinha com o pé de se encontrar com o meu
sogro, e anunciava o intento de lhe dar um aperto de mão... Percebem a cantiga? Lescot
sabia muito bem o que ontem se passara, e como eu lhe disse cara a cara, queria fazer de
Senhora da Paz. Vendo que a cantiga não pegava, safou-se e Deus sabe onde ele agora está!

Estas razões muito plausíveis produziram grande fermentação no auditório.

Contudo, João Pedro acudiu com vivacidade:

— Vamos lá, sr. Hermano, a gente não deve avançar tanto sem saber... Afinal, Lescot
não era o único que estava indiferente com o Martinho... Você mesmo, como não há de negar,
tratou muito mal o seu defunto sogro, e se fossemos a acusar às cegas...

— É verdade — redarguiu Hermano; — eu e o meu sogro não nos dávamos muito bem.
Disputámos e chegámos até a mais alguma coisa... Costuma suceder isto entre sogros e
genros... Quanto aos indivíduos — continuou ele com entono, — que me julgam capaz de
semelhante coisa, lembrar-lhes-ei em primeiro lugar que o Martinho foi morto com uma
espingarda de dois canos, e que nunca na minha vida tive nenhuma espingarda dessas ou
doutras, que nunca pedi nenhuma emprestada a ninguém, e que até não me saberia servir
dela... Toda a aldeia pode afirmar isto.

— Decerto, decerto! — responderam-lhe em coro.

— Demais, escutem: não disse Bridou, que o crime, segundo todas as aparências, se
cometera ontem à noite, às seis horas?

— Sim, sim — respondeu Bridou. — O médico, depois de examinar o corpo, declarou


que a morte do pobre homem remontava a vinte e quatro horas, e está provado que os dois
tiros de espingarda que ouvimos ontem, em Bois-Brulé, foram os que mataram o guarda.

— Pois eu — voltou Hermano com um modo muito seguro, — ontem à noite, às seis
horas, achava-me precisamente aqui, em casa da tia Hubert, como a patroa se deve lembrar.

— É justo — disse a tia Hubert, — e Teresa há de afirmar isto mesmo.

— Quanto a isso, é verdade — acudiu Teresa, — o senhor ainda aqui estava quando já
tinham dado seis horas, até me lembro...

— Agora — interrompeu Hermano empertigando-se, — quem é que se atreverá a


afirmar que eu tomei parte neste negócio?

Ouviram-se calorosos protestos e muitas mãos vieram apertar as suas.

— Ora ainda bem! — tornou o tanoeiro cheio de triunfo; — mas logo que não fui eu,
quem foi então? Os caçadores furtivos da terra andavam muito às boas com meu sogro, para
que este pudesse ter alguma contenda com eles... Só Lescot podia ter cometido semelhante
infâmia; nos terrenos baixos de Bois-Brulé, por onde ainda muitas vezes deve ter encontrado
o Martinho, e como ainda se odiavam, mortalmente... um tiro depressa se desfecha!

— Sim, sim — disse o velho Leroud, que parecia ser uma autoridade na assembleia. —
Lescot é o culpado... é claro como água.

— Foi ele... não há duvida alguma — repetiram algumas vozes.


Passados alguns instantes, todos os circunstantes reconheciam que só o guarda Lescot
podia ser o culpado.

— Maroto! Assassino! — dizia-se com indignação. — Vão lá fiar-se na cara e nas


palavras de certa gente! Quem havia de imaginar semelhante coisa do Lescot?

Hermano parecia observar com alegria a exasperação que ia aumentando de minuto


para minuto.

— Mas esperem lá — prosseguiu, — que estamos nós a fazer? o maroto voltou para
casa, e há de provavelmente aproveitar-se da noite para fugir para muito longe. Não
devemos dar-lhe tempo de caçoar connosco, de caçoar com a justiça. Eu, em primeiro lugar,
quero vingar o meu sogro; é o meu dever, e não deixarei de o cumprir... Vou já a casa de
Lescot, antes que ele tenha tempo de abalar, e se o apanho, pobre dele!... Quem me
acompanha?

— Vou eu, Hermano.

— Também eu! Também eu!

A maior parte dos homens levantaram-se.

— Isso! Isso! Vamos em massa! — exclamou Hermano, ainda mais exaltado que os
companheiros. — Deste modo ninguém fica responsável... Os que tiverem espingardas vão
buscá-las, porque aquele vadio há de defender-se de dentro de casa talvez e atirar sobre
nós... Eu não tenho espingarda, e demais é coisa de que não sei servir-me; mas se me
encontro face a face com aquele bandido, hei de dizer-lhe umas coisas, prometo-lhes!
Vamos! Nada de pasmaceira... quem for do meu partido que me siga!

Saiu, deitando a correr seguido de quase toda a gente.

Alguns velhos sossegados, algumas mulheres, entre as quais se achavam a mãe e a filha
Hubert, a viúva Lourenço, o próprio Leão Girard quiseram detê-los; não os escutaram,
dirigiu-se tudo tumultuosamente para a extremidade da aldeia, onde ficava a casa de Lescot.

Teresa e a formosa viúva mostravam-se muito aflitas, por se lembrarem das novas
desgraças que podiam resultar daquele acontecimento:

Leão disse-lhes bocejando:

— Ora! Aqueles berradores, não hão de ir muito longe; vão vê-los voltar dentro em
pouco, para acabarem a cidra e as batatas da tia Hubert... Mas por cá as festas são todas tão
divertidas como esta!... Mas, em suma, ficámos livres desses parvos... vamos tratar agora de
rir um pouco!
E principiou uma das histórias picarescas, de que ele possuía um reportório
inesgotável.

Mas, já ninguém tinha vontade de rir; todos tinham o sentido no que se passava lá fora,
estremecendo ao menor ruído.

— Meu Deus! — dizia Teresa com toda a ingenuidade. — Contanto que José Leroud
não se vá meter na desordem! Já não se encontram muitos noivos na nossa terra, e se eu
perco aquele!...

— E então o sr. Hermano! — observou a viúva por sua vez. — É um belo homem, rico,
e que sabe fazer-se respeitar! Ele deseja tanto vingar o sogro que é capaz de se expor...

— Não tenham medo — minhas frangas, retorquiu o artista, rindo. — Se lhes derem
cabo dos pretendentes, eu lhes arranjarei outros... Mas repito-lhes, eles hão de pôr-se de
longe, e acaba tudo na cidra.

Quando acabava de dizer isto, elevou-se ao longe um ruído formidável. Acima da


gritaria soaram alguns tiros de espingarda.

Julgou-se a princípio que o estrondo seria passageiro; mas a fuzilaria prolongou-se;


dir-se-ia que junto da aldeia se travara algum pequeno combate.

Girard levantou-se repentinamente.

— Espera, que o caso é sério — exclamou sem perder o seu tom ligeiro. —
Efetivamente, o tal Hermano não me parece ter boa pinta!... Ora adeus! Vou ver o que se
passou! Entre as distrações que eu esperava encontrar esta noite, não contava com a
distração de apanhar uma bala... É um meio como qualquer outro de uma pessoa se
desenfastiar. Boas noites!

Enterrara o chapéu até aos olhos, e dispunha-se a sair.

Teresa reteve-o por um braço, enquanto que a viúva o retinha pelo outro.

— Não, não, sr. Leão — disse Teresa; — matá-lo-iam... José Leroud não é valente,
enquanto que o senhor...

— Matá-lo-iam, sim — repetiu a formosa viúva.

O heroico artista debatia-se entre as duas mulheres.

— Se me matarem — tornou ele com um tom trágico, — acabar-se-ão todos os meus


desgostos. Teresa, eu lhe trarei José Leroud... Sr.ª Lourenço, João Pedro vai acompanhá-la a
casa.

João Pedro, que não quisera tomar parte em nenhuma demonstração hostil contra o seu
amigo Lescot, aproximou-se lançando um olhar de reconhecimento ao artista.

Este, sem dar ouvidos aos agradecimentos de uns, nem aos lamentos de outros,
apressou-se a sair e deitou a correr para o local onde os gritos e os tiros cada vez soavam
com mais intensidade.
III — O ataque

A casa do guarda ficava situada um pouco distante da aldeia, à entrada de um bosque,


de cuja vigilância Lescot se achava incumbido.

Pequeno edifício de forma arredondada, pombal e torre ao mesmo tempo, guarnecida de


janelas de grades, esta casa era dependência de um palácio que se elevava a meia légua dali,
e parecia de tempos remotos, destinada a ser residência de um guarda. Por isso, só por
surpresa se podia penetrar naquela espécie de fortaleza.

Hermano, que ia à testa da expedição, recomendara aos companheiros que não fizessem
ruído.

Na janela do rés do chão brilhava uma luz, e Lescot, ao canto da lareira, contava
decerto à esposa o trágico acontecimento.

Precipitou-se tudo para a porta, que usualmente estava fechada por uma tranqueta,
acharam-na, porém, interiormente defendida por móveis.

— Veem — segredou Hermano aos companheiros, — o patife desconfia... É que tem


razões para isso!

E conferenciaram por um momento em voz baixa.

A despeito das suas precauções, Lescot já pressentira o alarme.

Chegou à janela e perguntou em tom firme, procurando distinguir os assaltantes em meio


das trevas da noite.

— Quem esta aí? Que me querem?

Hermano ia responder; a exasperação do bando não lho permitiu.

— Bandido! Assassino! Celerado! — exclamaram indivíduos invisíveis e que se


conservavam a distância. — Foste tu que mataste o pobre Martinho!... Sai, anda, para te
vermos a cara! És muito covarde para isso, espião dos teus companheiros!

Ao mesmo tempo um tiro de chumbo, desfechado não se sabe por quem, foi quebrar
com estrondo os vidros da janela.

Lescot afastou-se precipitadamente ao mesmo tempo que a mulher soltava gritos de


terror.

Apagou-se a luz, com receio de que esta pudesse servir de ponto de mira, e o guarda
bradou do seu lado:

— Portam-se como verdadeiros bandidos! A respeito da morte do Martinho estou


completamente inocente... Mas se brincam com as espingardas, eu farei o mesmo; atiro-lhes
como a cães!

E fez estalar a fecharia da sua espingarda de dois canos.

Esta ameaça fez com que a populaça, furiosa, recuasse um bom pedaço.

Em seguida, porém, como cada qual se colocasse em posição donde julgava nada ter
que recear, novos tiros foram dirigidos contra a casa do guarda.

— Conservem-se firmes, vocês, que eu lhe vou meter dentro a porta da gaiola; não há
de levar muito tempo.

E atirou-se à porta com um machado, de que ele lançara mão ao sair de casa da Hubert;
manejava com tal destreza aquele instrumento, que as tábuas de carvalho, apesar da sua
solidez, não pareciam que pudessem resistir por muito tempo.

Alucinado pelas lamentações da mulher por aquele ataque brutal, Lescot descarregou os
seus dois tiros, o que determinou uma recrudescência de gritos e de detonações da parte dos
atacantes.

O combate continuou em meio de uma profunda escuridão, sulcada a espaços pelo


clarão dos tiros.

Em meio deste ruído, Hermano continuava pacificamente o seu trabalho, e já voara em


estilhas uma tábua da porta.

De repente, um homem, cujas feições não se podiam distinguir, saltou com intrepidez
para o espaço livre entre a casa e os atiradores.

— Olá! Então esta boa gente está doida! — exclamou o recém-chegado. — Para que é
tanto encarniçamento contra uma pessoa, que está talvez inocente? Abaixo as espingardas!
Dou licença para soco, em último caso; mas, tiros...

Houve um momento de surpresa entre a gente da aldeia.

— É o parisiense — disse finalmente uma voz.


— Sim, é o parisiense — disse também Hermano, — mas não lhe deem ouvidos. O que
é que nos quer esse papelão? Não tem nada com os nossos negócios... Que vá dizer tolices
às moças que o gostam de o ouvir!

Entretanto, a presença do parisiense, diminuíra o ardor dos combatentes. Leão Girard


exclamou sem se queixar.

— Olá, tanoeiro do inferno, não me faças tomar-te à minha conta, porque principias a
incomodar-me singularmente. E vocês — continuou elevando a voz, — se não cessam de
queimar pólvora...

— Não fui eu que principiei, senhor — disse o guarda Lescot da sua janela, — vêm
atacar-me a minha casa, preciso defender-me!

— Há feridos? — perguntou Girard.

— Assim me parece, senhor! — respondeu um homem de Rivecourt num tom lastimoso,


— o pobre José Leroud...

— Recebeu uma bala?

— Não, mas esbarrou de encontro a uma árvore; tem com perdão do senhor, o nariz
deste tamanho...

E mostrava os dois punhos fechados.

— É só isso?

— Que eu saiba, nada mais temos.

O artista soltou uma gargalhada.

— Bem! É o que eu suspeitava! — disse ele. — Contudo, é preciso que este barulho
cesse quanto antes. Vão para casa dormir, é o mais prudente.

Parecia haver grandes tentações de seguir este conselho, quando Hermano, que não
cessara de manejar o machado, exclamou encolerizado:

— Ah! Raios! O que tem esse figurão com isto? Nada tem aqui que ver.

— É verdade que não se vê aqui muito, contudo, sempre verei o suficiente, meu amigo,
para lhe dar um ensino, se não larga já esse machado.

— Ah sim! Pois venha para cá! — disse o tanoeiro pondo-se em defesa.


— Aí vou! — replicou o artista, que se dirigiu para Hermano com firmeza.

Ninguém pode dizer como esta contenda terminaria, mas repentinamente apareceu um
novo bando no teatro da luta.

— Em nome da lei deponham todos as armas!... Quem não obedecer será imediatamente
preso.

Foi a ordem que se ouviu.

À luz de uma lanterna que um dos recém-chegados trazia, viram-se três gendarmes de
uma brigada bisonha, alguns guardas florestais e finalmente o maire de Rivecourt,
acompanhado do juiz de paz.

Facilmente se explica a sua presença.

O maire e o juiz de paz, depois das costumadas formalidades, tinham ficado na mairie,
para ordenarem as medidas convenientes em caso tão grave e haviam reunido em torno de si
toda a força disponível.

Enquanto se esforçavam por adivinhar quem seria o desconhecido autor do crime,


atraiu-lhes a atenção o ruído da batalha em roda da casa de Lescot e acudiram a fim de
restabelecer a ordem.

Entretanto, o juiz de paz que acabava de fazer a citação, não teve necessidade de a
repetir.

Hermano, o mais exaltado entre os agressores, apressara-se a esconder o machado atrás


das costas, enquanto que Leão Girard metia sossegadamente as mãos nas algibeiras.

Quanto aos atiradores não poderíamos dizer onde tinham oculto as armas, mas viram-
nos aproximarem-se uns dos outros com ares inocentes, e como se tivessem acabado de ali
chegar, atraídos pela curiosidade.

Não obstante, muitos deles, e Hermano era desse número, continuavam com o mesmo
exaspero contra o guarda.

— Senhor juiz — acudiu Hermano com veemência, — todos à uma cá na terra acusam
esse patife de Lescot de ter assassinado o meu sogro!... Foi ele; temos a certeza disso, não
pode ter sido senão ele... E visto que a justiça quer cumprir o seu dever...

— Cumpri-lo-á, senhores. Se se levanta alguma acusação contra qualquer, seja quem


for, esse indivíduo deverá imediatamente responder pelos seus atos.
— Por mim, não quero outra coisa — disse Lescot, abrindo a porta e aparecendo de
cabeça descoberta e todo alagado em suor. — Se sou um celerado, que me prendam; mas
quando quaisquer patifes vêm assim de noite atacar-me a casa...

— Os autores desta criminosa tentativa serão perseguidos — retorquiu o magistrado


com severidade.

— Não fui eu, senhor juiz — disse com voz adocicada um dos que há pouco se
mostravam mais encarniçados; — ia deitar-me quando ouvi...

— Eu também não fui — acudiu outro.

— Nem eu! — suspirou o pobre José Leroud, tapando com o lenço o nariz que estava
do tamanho de uma batata.

— Está bom; nós descobriremos os desordeiros... Mas há coisa mais urgente... Lescot,
a voz pública acusa-o. É indispensável que o submeta desde já a um interrogatório.

— Ao seu dispor, senhor juiz; entre em nossa casa, e responderei a tudo quanto quiser
perguntar-me, porque nada receio.

— Veremos... Venha também, Hermano — acrescentou o juiz friamente. — Havemos de


ter algumas perguntas que lhe fazer.

— Como quiser — voltou Hermano com indiferença passando o machado para um dos
que estavam mais próximos.

O juiz de paz e o maire entraram na casa, seguidos de Lescot, de Hermano e até de


Leão Girard, que conhecia o maire e desejava imenso ver em que aquilo dava.

Muitos outros aldeões havia ali que desejassem também entrar mas não os deixaram.
Ficou de sentinela à porta um gendarme, outro ao pé da janela, e o comandante da força
acompanhou os magistrados, para em caso de necessidade prestar auxílio às suas decisões.

O interior da casa não padecera muito, porque os habitantes de Rivecourt, aliás pouco
destros, só atiravam com chumbo.

A mulher do guarda, toda lavada em lágrimas e a quem a presença dos gendarmes ainda
não conseguira de todo tranquilizar, foi logo acender muitas velas e deitou um feixe de lenha
na lareira.

O juiz e o maire sentaram-se a uma mesa para redigirem o auto, e em seguida deram
começo ao interrogatório de Lescot.
O guarda descreveu novamente as suas relações com o defunto Martinho. Apesar de se
exprimir com aparente sinceridade, Hermano interrompeu muitas vezes violentamente e
esteve a ponto de se lançar a ele. O juiz e o comandante da força tiveram de empregar a sua
autoridade para obrigarem o impetuoso tanoeiro a calar-se e conter-se nos limites da
moderação.

Depois de Lescot ter satisfeito a todos os pontos do interrogatório, o juiz perguntou-lhe


de repente:

— Onde estava o senhor ontem às seis horas?

— Palavra que não sei lá muito bem — respondeu Lescot muito distraído.

Hermano conhecia a importância desta pergunta e disse com alegria malévola:

— Ah! Ah! Não pode explicar onde se achava à hora do crime!

— E como é que você, Hermano, soube que o crime foi cometido às seis horas?

— Valha-me Deus! Ouvi-o há pouco dizer em casa do tio Hubert ao Bridou, como
Lescot também pôde ouvir.

— É verdade — disse Lescot, — e agora me vai voltando a memória, senhor juiz... E


aqui está o senhor Estefano que sabe tão bem como eu onde eu estava ontem à noite às seis
horas.

— Tem razão — acudiu o maire. — O guarda Lescot apresentou-se em minha casa,


ontem às cinco horas, para me entregar uma parte que passara contra um caçador furtivo, e
como eu me achava ausente, teve de esperar muito tempo por mim... Posso afirmar que eram
mais de sete horas quando ele me deixou.

Esta coartada de ausência, conformada pela própria autoridade municipal, destruiu


completamente a acusação formulada contra Lescot; o juiz depois de conversar em voz baixa
com o maire declarou que não havia fundamento para perseguir o guarda.

O tanoeiro Hermano manifestou viva irritação.

— Desconfie de maniversias, senhor juiz! — exclamou. — Eu cá não percebo nada de


garatujas nem de chicanas... mas esse maroto mente... Foi ele quem matou o pobre Martinho,
foi ele... foi ele...

— Ora essa! — para poder assim afirmar, é que você viu, Hermano?

— Eu não; se eu visse, teria sofrido... Mas se não foi ele quem seria então?
— Porque não havia de ser você, Hermano? — voltou-lhe o juiz; — ninguém ignora
que o senhor não andava às boas com o seu sogro... Agora, toca-lhe a vez de responder às
perguntas que lhe vou fazer.

— O quê! Pois eu sou acusado?

— Ainda não... Procuro a verdade e vai ajudá-la a descobrir.

Apesar do seu espírito de revolta Hermano reconheceu que devia mostrar-se submisso,
e tomou uma atitude respeitosa.

Não pôde, pois, negar os maus termos em que vivia com o sogro, mas protestou que
eram pequenas coisas de família.

Observou também que não possuía nenhuma arma de fogo, e finalmente, quando chegou
à pergunta capital: «onde é que estava na véspera à noite às seis horas» respondeu com
segurança.

— Em casa da Hubert, como ela e sua filha Teresa tinham, havia pouco, declarado em
presença de mais de trinta pessoas.

— E isso é rigorosamente verdade?

— Repito, todos que estavam no serão ouviram... E olhem, este senhor parisiense pode
dizer-lhes se minto.

Assim interpelado, Leão Girard, que se sentara junto do lume, a escutar com distração
este interrogatório, levantou-se e respondeu:

— A tia Hubert e sua filha reconheceram efetivamente há pouco, na minha presença,


que Hermano se achava em casa delas à hora em que o crime parecia ter sido cometido.

— Basta, interrogar-se-ão as duas mulheres — disse o juiz.

E pôs-se novamente a falar em voz baixa com o maire, dando indícios de grande
desapontamento.

A ausência de Hermano estava tão bem provada como a de Lescot. Por isso, o juiz,
depois de fazer assinar aos dois acusados o auto, anunciou-lhes que estavam livres, com a
condição de se apresentarem diante da justiça à primeira citação.

Hermano não se afastou sem ter mais uma vez injuriado o pobre Lescot, e com
dificuldade se lhe impôs silêncio.
Leão Girard saiu alguns momentos depois com o juiz de paz e o maire, os quais, ao
despedirem a força pública, pareciam vivamente contrariados.

— Anda aqui o diabo — dizia o juiz ao seu companheiro; — este negócio complica-se
cada vez mais. Os dois únicos indivíduos a respeito dos quais havia desconfiança provam
claramente a sua inocência. Enganámo-nos e há de vir a apurar-se que o crime é obra de
algum desconhecido. Em suma vou mandar este negócio para o tribunal de... talvez que lá
aqueles senhores descubram mais que nós.

O artista deu um aperto de mão aos magistrados, e dirigiu-se pelo seu lado para casa de
Hubert. Enquanto ia andando, ia pensando:

— Não me parecem fortes estes funcionários campesinos; se eu estivesse em lugar


deles, havia de por força deitar a mão ao assassino do guarda... Ora, espera! Porque não hei
de eu abrir por minha conta, um pequeno inquérito a este respeito? Aí está uma distração em
que eu não tinha pensado, e que seria bem interessante... Havemos de ver.

E enquanto se ia entregando a estas reflexões subia a única rua de Rivecourt.

Dois homens que vinham em direções opostas, um dos quais cantava e o outro gemia,
tinham-se encontrado em meio da rua escura e trocaram algumas palavras.

— Ah! — dizia em tom lúgubre o da lamúria, que não era outro senão José Leroud, o
noivo de Teresa, — como queres tu, João Pedro, que eu me case com o nariz neste estado?

E João Pedro, o cantador, dizia do seu lado, sem dar ouvidos ao mal-aventurado noivo:

— Queres ver, meu Leroudzinho, que a viúva Lourenço, que estava toda cheia de medo,
me permitiu que a acompanhasse até à porta? Ai, que não cabia em mim.

— Olha que dois! — murmurou o artista, seguindo o seu caminho; — estes com certeza
que não assassinaram o guarda!
IV — A devassa

Dias depois, Leão achava-se no tal palácio, numa vasta casa que se encarregara de
ornar de pinturas.

Chamava-se o salão de gala e era um modelo de mau gosto, como todas as casas
daquele malfadado edifício; ostentava-se, porém, ali uma riqueza espantosa, e os bronzes, os
mármores preciosos, os mosaicos, os doirados, davam-lhe deslumbrante aspeto.

O artista, nas suas horas de trabalho, não trazia o trajo apurado com que julgara
conveniente apresentar-se na festa dos campónios. Nas calças de linho e na camisola
encarnada de capuz, poderiam encontrar-se-lhe amostras de todas as cores da sua paleta.

Mas, no que não havia mudança era na sua bela cabeça, fina e inteligente, nos seus
olhos vivos, cintilantes de malícia, nos cabelos naturalmente ondeados e na barba macia
como seda, de que ele cuidava com especial esmero.

Do alto de um andaime, assobiava uma ária da ópera, e pintava com vigor numa grande
parede pastorinhos e pastorinhas à Wateau, Vénus pouco envergonhadas e cupidinhos um
tanto à fresca, quando a senhora Hubert de cesto no braço, entrou no salão trazendo a
refeição do meio-dia.

Leão não estava ocupado nos seus trabalhos, que se esquecesse de comer. Assim que
viu a tia Hubert, interrompeu o assobio, e largando paleta e pincéis, desceu a escada, com
uma rapidez que dava provas do apetite que o agrilhoava.

Como ainda não havia móveis na sumptuosa residência do banqueiro, a boa da mulher
pôs com toda a presteza o talher em cima de duas tábuas por aplainar, que ela decorou com
um guardanapo escuro.

No mesmo instante Leão sentou-se num banco um pouco coxo, que lhe tinham trazido de
uma cabana próxima, e tratou de demorar o almoço, que se compunha de uma chávena de
chocolate, de um pedaço de carne fria e de alguns frutos.

Enquanto se entregava a esta agradável ocupação, a tia Hubert lançava em volta de si


olhares espantados.

— Bravo! Como isto aqui é bonito! — dizia ela com admiração. — Parece uma igreja!

— Pois olhe que é o contrário de uma igreja — replicou Leão com a boca cheia.
— E estas mulheres que não estão vestidas, são santas?

— São o contrário das santas.

— E estes lindos pequerruchos que andam a voar pelas nuvens com asas cor de rosa,
com certeza que são anjos?

— Não está em maré, minha querida; esses lindos pequerruchos são o contrário dos
anjos... Mas falemos em outra coisa... Bem sabe, tia Hubert, que ando a procurar novos
aposentos na aldeia?

— Sim, senhor, o que nos custa, porque todos gostamos muito do senhor, e a Teresa até
chorou... Mas o nariz de Leroud já sarou e o casamento não se pode demorar.

— Senti bastante os infortúnios do nariz de Leroud... Quanto a mim, descobri um quarto


muito a meu gosto, e espero instalar-me nele brevemente.

— E em casa de quem, sr. Leão, se faz favor?

— Em casa do tanoeiro Hermano.

No rosto da tia Hubert manifestou-se a admiração de envolta com o terror.

— Em casa de Hermano? — repetiu ela.

— Porque não? — tornou Leão, que tendo acabado de almoçar, acendia com todo o seu
sossego um charuto. — Vamos a saber, porque é que está a olhar para mim? Por acaso o
Hermano não é seu amigo?

— Não digo isso, senhor; ainda que se rosna um pouco a respeito dele, não quero que a
minha língua vá prejudicar ninguém... mas, preferia ver o sr. Girard acomodar-se noutra
parte.

— Mas se eu não posso acomodar-me noutra parte... A sr.ª Hubert parece ter o quer que
seja contra Hermano, e não é comigo, que estou apenas de passagem em Rivecourt, que a
senhora deve estar com mistérios.

— Lá isso é verdade — prosseguiu a tia Hubert; — pode-se confessar ao senhor o que


não se deveria confessar a outras pessoas... Sabe o que lhe digo? Não vá para casa de
Hermano.

— Então, porquê?

— Porque...
E a tia Hubert olhou em volta e baixou a voz.

— Porque — prosseguiu, — porque é um mau homem.

— Um mau homem; quer então dizer com isso que é avaro, debochado, desordeiro.

— É isso, e mais alguma coisa.

— Na verdade! Explique-se então!... Por acaso, não estará Hermano de todo inocente a
respeito da morte de seu sogro, o guarda Martinho?

— Não me atrevo a dizer tanto, meu querido senhor, apesar de ter sido um tanto
suspeito o seu procedimento naquele dia! E depois, sei mais alguma coisa.

— Vejamos, vejamos! Não esteja a remanchar e ponha para aí o que sabe.

— Pois senhor, o Hermano... a mulher quando estava grávida, a filha do Martinho que
Deus haja...

O artista não manifestou o horror que a tia Hubert esperava talvez, e replicou
tranquilamente:

— Ora, alguma questão de família, por certo?

— Não, não foi isso, mas um cálculo malvado da parte do Hermano, como vai ver.
Hermano tem já uma filha, a Madalenazinha que está em casa da tia em Saint Valery, e não
andava muito satisfeito por ir ter mais um filho da mulher, porque Hermano tem fama de
avarento. Ora, uma noite, a tia Catineau, cujo pátio fica pegado ao de Hermano... Conhece a
tia Catineau, sr. Leão?

— Conheço, uma velha que está sempre a meter o nariz de papagaio e a esgaravatar
com os dedos sujos na vida alheia...

— É verdade; mas daquela vez não foi voluntariamente. A Catineau, que não podia
dormir com dores de dentes, pusera-se à janela; e por volta da meia-noite, avistou luz em
casa dos Hermanos, do outro lado do pátio. Muito espantada, olhou com atenção, e como a
janela não tinha cortinas, viu Hermano puxar a mulher para fora da cama, e arrastá-la pelos
cabelos, sacudindo-a e espancando-a com grande fúria. A pobre criatura não soltava um
grito, um queixume com medo, decerto, de atrair a atenção da vizinhança. Demais, a luz
apagou-se logo, e não se pôde ver mais nada. Mas, no dia seguinte, a desgraçada teve antes
de tempo uma criança morta. Ela mesma morreu três dias depois, e Hermano ficou viúvo.

A tia Hubert calou-se por um momento.


— E agora — prosseguiu, — quer ainda ir viver para casa do tanoeiro?

Mas Leão parecia resolvido a não se admirar nem se assustar por coisa alguma.

— Porque não? — respondeu. — Eu bem dizia, foi uma questão caseira que teve
funestas consequências... Se assim não fosse, porque é que a bruxa da Catineau, não havia de
dar parte à polícia?

— Disso se livrou ela, senhor; matá-la-ia como quem mata uma formiga... Só a mim é
que ela me contou estas coisas, porque sabe como eu sou calada.

— Ora! Contos de senhoras vizinhas... Agora, se se provasse que Hermano tinha tido
parte no assassinato do guarda Martinho, então mudava o caso de figura; mas que interesse
havia de ele ter na morte do sogro?

— O quê, pois não sabe?... Hermano é o herdeiro de Martinho, por causa da sua
pequena, e a justiça acaba de lhe dar posse da herança do guarda.

— Enfim, a justiça reconheceu que não há motivo para proceder contra ele, e a justiça
não se engana... Pode-se por acaso acusar um homem de haver morto outro a tiros de
espingarda, quando está provado que nunca possuiu espingarda nenhuma?

— Lá isso é verdade, sr. Leão; Hermano nunca possuiu espingarda, como os outros
homens de Rivecourt, que são todos um pouco caçadores. A única arma que algumas vezes
lhe têm visto na mão é uma pistola muito velha de dois canos, de que ele se serve para atirar
salvas nos casamentos, quando os noivos saem da cereja.

— Uma pistola de dois tiros! — exclamou Leão com mais calor do que desejaria
mostrar.

— Ora! Uma peste de pistola de pederneira, coberta de ferrugem, e à qual falta um


cão... Por isso, um dos tiros não pode partir senão dando-se-lhe fogo com um fósforo!

— Com um fósforo! — repetiu o artista estremecendo.

Calou-se durante alguns segundos, e fechou os olhos, como para facilitar o trabalho do
pensamento.

— Todos, finalmente, estão de acordo — prosseguiu, — que Hermano não tem


espingarda... Demais, tia Hubert, a senhora e a Teresa não declararam que o tanoeiro se
achava em sua casa na noite do assassinato?

— É também verdade, sr. Leão; mas eu e minha filha temos conversado nisso muitas
vezes depois daquele caso e parece-nos... Naquele dia, tínhamos ido apanhar batatas em
casa da Chevillot, e a casa ficara sem ninguém uma parte da tarde. Quando acabávamos de
entrar, ao cair da noite, chegou Hermano; disse-nos que tinha trabalhado rudemente todo o
dia, e falou-se de várias coisas. De repente, exclamou: — «Espere lá, ó tia Hubert, a sua
pêndula está atrasada; marca cinco e meia e são seis... Deixe-me ver!» E puxou do seu
grande relógio de prata, que efetivamente marcava seis horas. Depois, pôs-se a acertar o
relógio de parede. Mas o relógio não andou; foi preciso dar-lhe corda e torná-lo a acertar no
dia seguinte... Já se vê, pois, que se eu e a Teresa, dissemos que eram seis horas, foi o
próprio Hermano que no-lo afirmou.

Leão Girard permaneceu silencioso, mergulhado em secretas reflexões.

Levantou-se.

— A tia Hubert é uma faladora e eu perco o meu tempo — disse ele com a sua alegria
habitual; — e eu perco o meu tempo... Não há remédio senão tornar a trepar para a minha
escada, para dar uma demão a um desses garotos a que a senhora chama anjinhos.

A boa da mulher tratou de ir metendo a louça para dentro do cabaz.

Mas sempre foi perguntando com timidez:

— Então o sr. Leão continua resolvido a ir morar para casa do Hermano?

— Porque não, se o seu quarto me agrada?

— Talvez não lho queira alugar ao senhor, por causa da viúva Laurent...

— Como a senhora mesma disse, Hermano é amigo do dinheiro; na esperança de ganhar


muito comigo, esqueceu-se decerto das minhas partidas, e já vamos estando de acordo em
todos os pontos.

Quanto mais confiança o pintor mostrava, mais incomodada e receosa se mostrava a tia
Hubert.

— Sr. Leão, sr. Leão — tornou ela, quase com as lágrimas nos olhos, — não vá para
casa de Hermano, suplico-lhe, ou sucede-lhe alguma desgraça.

— Que desgraça quer a senhora que me suceda?

— O senhor está sempre a caçoar, e ele é tão violento, tão brutal...

— Ora! Mando-o para casa do diabo.

— E tão forte! É um verdadeiro colosso!


— Já tenho sovado outros mais fortes que ele.

— E velhaco...

— Veremos qual será mais.

— Sr. Leão, visto que teima, ouça o que lhe digo: Se for para casa de Hermano, ele
mata-o.

O artista soltou uma gargalhada.

— Qual! Tenho sete fôlegos como os gatos!

E no mesmo instante:

— Para lhe mostrar o pouco receio que o seu Hermano me mostra, vou já entender-me
com ele, esta noite, como tencionava.

— Então que Nossa Senhora e todos os santos o protejam! — disse a tia Hubert
erguendo os olhos ao céu.

E abalou, desesperada, com o seu cesto, em que a loiça ia a tinir, enquanto o pintor
subia novamente para o andaime assobiando uma música marcial.

Não obstante, havia mais ostentação que sinceridade, nesta alegria, porque o assobio
cessou assim que a tia Hubert se achou a distância de o não poder ouvir.

Até se poderia notar que durante o resto do dia, Leão Girard trabalhou gravemente, sem
se entregar a nenhuma das suas excentricidades habituais.
V — Um chá

Como o declarara, Leão achava-se vinte e quatro horas depois instalado num quarto da
casa de Hermano.

Este quarto, sem ser muito mais luminoso que o da Hubert, parecia mais vasto, mais
cómodo. Situado no primeiro andar, gozava-se dele uma vista esplêndida das florestas
vizinhas.

Quanto aos móveis, o pintor pouco se importava com isso, porque mesa, leito, cadeiras,
tudo desaparecia sob um montão de cartões, de desenhos e de telas esboçadas.

Hermano ocupara-se com inesgotável complacência da instalação do seu locatário.

Ávido de ganho, como todo o campónio, fizera calar os motivos de queixa que tinha
contra o estouvado parisiense, porque alimentava a esperança de o explorar. Além disso
talvez também entendesse que assim pudesse vingar mais facilmente as diligências que o
pintor empregava junto da viúva Lourenço, que ele Hermano persistia em querer desposar, e
à qual continuava a fazer uma corte assídua.

Quanto a Leão, aceitara com maravilhosa sem-cerimónia os serviços do seu novo


proprietário.

Fora Hermano quem, segundo as suas indicações, dispusera os móveis; fora ele também
quem no seu robusto costado transportara as malas, os embrulhos, a volumosa papelada do
artista.

Pelo seu trabalho, o tanoeiro recebera algumas moedas de cinco francos; mas mal
suspeitava ele, que no momento em que se concluía a instalação, e ele retirava todo alegre,
Leão murmurava em tom zombeteiro:

— Agora nós, meu valentão! Somos como dois ratos metidos, sem alimento, na mesma
caixa; é preciso que um de nós devore o outro!

Durante dois ou três dias, Leão nada deu a conhecer dos seus projetos. Quando os
trabalhos do palácio o não prendiam, fazia o seu giro, conversando muito às boas com as
pessoas com que evitara até então falar.

Depois, pôs-se a procurar pela casa um objeto que de per si pouco valia e que sabia
que ali se devia achar, e encontrou-o muito facilmente, porque em casa de Hermano tudo
costumava ficar aberto, portas, armários, e podia-se correr toda a casa sem dificuldade e
sem restrições.

Finalmente, na véspera do dia fixado para o casamento de Teresa e de Leroud,


casamento para que estavam convidados Leão e Hermano, o pintor ao entrar em casa
deparou no limiar da porta com o tanoeiro que tomava o fresco fumando a sua cachimbada.

Como Hermano deitasse para o seu locatário um olhar oblíquo e desconfiado, este
parou e disse-lhe num tom duvidoso:

— Amigo Hermano, tenciona esta noite tomar chá no meu quarto... quer tomar uma
chávena comigo?

Hermano, fossem quais fossem os seus sentimentos secretos, pareceu lisonjeado por
este convite de um homem da cidade.

— Como quiser, senhor — respondeu; — mas deixe-me dizer-lhe que só tomo chá
quando estou doente, e depois... não gosto muito de água quente.

— Olha a criança! Julga você, que nós lá em Paris também gostamos de água quente?...
Nós costumamos deitar na água um copito de velho rum ou de velho conhaque, e afianço-lhe
que então não tem nada de repugnante.

— Ah! Nesse caso, sim! — retorquiu Hermano.

Apesar da sua satisfação aparente, sempre perguntou de si para si quando se viu só: «o
que me quererá ele? Dá-me tanto mel!»

Da sua parte, o artista entregava-se no seu aposento a vários preparativos que podiam
parecer singularmente misteriosos.

Dispôs as cadeiras de uma certa maneira e certificou-se de que o fecho da janela


funcionava facilmente. Em seguida vestiu uma espécie de casaco curto, justo na cintura, e
que numa luta não oferecia pega às mãos do adversário.

Finalmente, na algibeira de um lado do casaco, meteu um revólver de seis tiros depois


de se certificar se estava inteiramente carregado, e podia desfechar perfeitamente.

Terminadas estas disposições, acendeu um charuto, e pôs-se alternadamente a assobiar


e a cantarolar, como era o seu costume.

Hermano não tardou a subir; Leão confecionou um chá que, pela variedade dos
ingredientes, era um chá por aí além. Teve porém, o cuidado de evitar que a parte alcoólica
não dominasse muito, o que nas atuais circunstâncias seria muito perigoso com um gigante tal
como o tanoeiro Hermano.
Este engoliu, pois, a água quente, sem grande repugnância; e o artista acompanhou o
banquete com uma das suas histórias chocarreiras.

Decerto que a história era apropriada à inteligência do seu ouvinte, porque Hermano,
apesar da reserva de que diligenciava não sair, ria a bom rir.

Passou-se assim uma parte da noite.

Talvez Hermano perguntasse a si mesmo se era só para o divertir que Leão Girard o
tinha feito subir a sua casa. Mas a cena mudou bem depressa.

Ao concluir a sua divertida narrativa. Leão levou a sua cadeira para o outro lado do
quarto, de modo que a pesada mesa ficasse entre ele e Hermano. Depois disse com aparente
tranquilidade.

— Falemos mais a sério... Descobriu-se afinal o assassino do seu sogro?

Esta pergunta foi como um balde de água fria que repentinamente despejassem sobre a
cabeça de Hermano. Estremeceu, tornou-se-lhe sombrio o rosto e respondeu rudemente:

— Não.

Como Girard lhe observava todos os movimentos, o tanoeiro acrescentou:

— Porque me pergunta isso?... Conte-me antes as suas petas de Paris, que têm mais
graça.

— Acha? Mas vamos que a minha provisão de riso está esgotada por hoje...

E espere, logo que duvida da minha palavra, eu o vou convencer contando-lhe a história
do tal patife. É curiosa e poderá diverti-lo.

Trata-se de um sujeito que é forte como um boi e manhoso como uma serpente. Mas a
sua velhacaria, que engana os tolos dos campónios, não me engana a mim; e quanto aos seus
punhos sólidos, também se lhe pode responder... Ouça, pois.

Hermano tinha decididamente recuperado a serenidade.

— Eu bem dizia, é alguma nova caçoada. Ainda que o assunto não me agrada, não tenha
dúvida.

— Oh! Oh! Fazes-te muito forte! — murmurou Leão rindo. — Mas não consegues nada.

E continuou após um momento de silêncio:


— Imagine, Hermano, que o patife de que se trata não era a primeira que fazia, quando
assassinou o guarda Martinho.

Estreara-se com um crime ainda mais horrível; matara covardemente, de noite, a pobre
mulher e uma criança que ela trazia no seio...

— Quem lhe disse isso? — interrompeu Hermano impetuosamente.

— Espere lá!... aí está a minha história a interessá-lo!...

Ninguém me disse nada; mas eu bem sei, tenho a certeza... suponha que vi!... Uma noite,
o meu desavergonhado obriga a pobre da mulher a levantar-se para fazer, não sei que
trabalho de casa, e como ela não obedecia com bastante ligeireza, arrastou-a pelos cabelos,
e espancou-a com furor. A desgraçada não gritou, não confiou a ninguém este ato
abominável, e morreu depois com o filho.

Nos olhos de Hermano lia-se uma expressão de surpresa e de terror de que é


impossível dar uma ideia.

— Você... você é o diabo! — titubeou ele. — Como pode saber?...

— Pois o diabo não sabe tudo!

Deixe-me continuar... Tendo ficado com uma filha pequena que não lhe faz grande peso,
porque foi recolhida por uma parenta, o meu patife, que desejava tornar a casar, e namorava
uma bonita viúva da vizinhança, desejou pouco depois desembaraçar-se também do seu
sogro. A coisa era tanto mais urgente, que o dito sogro tinha alguma fortuna de que parecia
dever dar cabo em pouco tempo.

Tinha ele sido repreendido por diversas vezes, tinha sido ameaçado e até espancado um
pouco; mas era trabalho baldado. O tal maldito sogro continuava a comer, e principalmente a
beber, o que era seu, e era preciso chamar as coisas à ordem quanto antes.

Contra o costume dos homens da terra, o meu labrego não tinha espingarda, e
apresentou provas de que nunca a pedira emprestada. Em compensação, possuía uma
detestável pistola de dois tiros e de pederneira à qual faltava um cão, e que toda a gente da
aldeia se lembra de ter visto na mão dele, quando atirava por ocasião de casamentos e em
dias de festa.

O tiro bom da pistola falhava muitas vezes; quanto ao tiro mau, o que não tinha cão, era
preciso largar-lhe fogo com um fósforo, o que não será cómodo para caçar as perdizes a
voo...

Não obstante, foi com esta arma que o genro, habituado a manejá-la, resolveu matar o
sogro. Foi colocar-se de emboscada num sítio por onde sabia que o Martinho devia passar a
certas horas. Oculto com uma moita, esperou com impaciência... Assim que avistou o guarda,
acendeu um fósforo e largou fogo à escorva... O tiro acertou, e era mortal.

Isto, porém, não satisfez o assassino; saiu do esconderijo, correu para o infeliz que
estava por terra, e desfechou segundo tiro. Depois, num acesso de raiva feroz, bateu-lhe no
rosto com a pistola e fugiu. Não se diga — acrescentou Leão Girard, — que isto são apenas
suposições! Os factos são precisos, autênticos, incontestáveis. Bridou e o seu companheiro
ouviram os dois tiros, dos quais, o primeiro, o que partiu por efeito de um fósforo, produziu,
por sinal uma luz, intensa. O fósforo queimado foi encontrado pelos magistrados instrutores,
como se vê no auto; finalmente, os dois pedaços de metal que mataram o guarda são
exatamente do calibre da pistola...

Enquanto escutava esta narrativa, Hermano tinha as feições decompostas; agitavam-se-


lhe os do rosto, tinha os cabelos molhados de suor.

— Diga o senhor o que disser — volveu, — não basta avançar essas coisas, é preciso
também prová-las.

— Ora essa! Pois não estão provadas? Posso se for preciso, apresentar aos juízes a
pistola enferrujada que toda a gente viu nas mãos do culpado, e que foi o instrumento do
crime.

Hermano olhou finalmente para o artista, e levantando-se de um pulo, foi abrir a gaveta
de um móvel pequeno e velho que se achava na extremidade do quarto.

Não foi demorado o seu exame. Voltou para a lareira, dizendo com voz ameaçadora:

— A pistola!... que fez da pistola?

Leão Girard andava em roda da mesa, de maneira que esta lhe ficasse sempre entre ele
e o terrível colosso.

— Há de encontrar-se — retorquiu sem se comover, pelo menos aparentemente; — está


em lugar seguro... Era um objeto sem valor algum, e não tinham julgado necessário escondê-
lo; por isso dei facilmente com ele, e depressa saberá o que lhe fiz.

Desta vez a raiva sucedera ao temor no íntimo de Hermano. Os olhos parecia que lhe
saltavam.

— A minha pistola! — uivou. — Quero a minha pistola!

— A sua não tenho — replicou o artista friamente; — tenho porém a minha, e essa não
erra nunca fogo!
Ao mesmo tempo apresentou o revólver, e, Hermano viu a goela do instrumento de
morte na direção do seu peito. Sossegou logo, e ficou imóvel. Leão Girard depois de o ter
por algum tempo sob a sua pontaria, disse-lhe com ar afável.

— Vamos, volte para o seu lugar, sr. Hermano; não ganharia nada em mostrar um mau
caráter... Poderia matá-lo como um cão, e sabendo o que sei, não teria que recear nenhuma
perseguição. Quanto ao senhor, se me fizer o menor mal, dentro de vinte e quatro horas será
preso; tomei as minhas precauções, como lhe explicarei brevemente.

Hermano hesitou, mas acabou por se deixar cair na cadeira, ao pé do lume.

Então Girard pôs o seu revólver em cima da mesa e encheu sossegadamente uma
chávena para si.

Depois prosseguiu:

— Com que então, a minha história diverte-o! Pois o que me falta contar é o mais
divertido. Vai ver como o meu espertalhão procedeu para embaçar a polícia e para tornar
seus cúmplices muita gente que nem suspeita semelhante coisa.

Ao ir para Bois-Brulé, com a sua pistola na algibeira, passou por casa da Hubert e
entrou.

Não estava ninguém em casa, mãe e filha tinham ido para casa das vizinhos.

À cabeça do maroto acudiu uma esperteza, e resolveu aproveitar a ocasião de preparar


o que se chama uma coartada de ausência. Fez parar o relógio da Hubert e retirou-se
precipitadamente. O crime foi cometido às seis horas; por volta das seis e meia o meu
homem torna a aparecer. A Teresa e a Hubert já estavam em casa. Fez-lhes notar que tinham
o relógio parado, e puxando do seu, que ele de propósito atrasara, provou-lhes que eram
apenas seis horas.

Aí está porque é que as duas mulheres juram por tudo quanto há que naquele dia, às seis
em ponto, o senhor... o culpado, estava em casa delas.

— Pois elas disseram isso? Então a Hubert e a filha pretendem?...

— Valha-me Deus! Elas, as pobres mulheres, não pretendem nada! Afirmam


simplesmente que lhe disseram as horas, quando tinham o relógio parado. Não veem o
alcance do facto, como também o não veem as senhoras vizinhas que se dão com elas, e
ninguém suspeita... Mas em questão de velhacarias, ouça uma coisa mais séria.

Não bastava ao assassino de Martinho arranjar testemunhas de defesa. Convinha-lhe


também fazer cair suspeitas sobre um inocente, que apresentasse aparências de
culpabilidade. Perto de Rivecourt morava um guarda, excelente criatura que em outros
tempos tivera suas questões com o defunto, por causa de um delito de caça. O meu vadio
lembrou-se de acusar o guarda do assassinato de Martinho. Dá volta à cabeça da gente da
terra, diz-lhe que a justiça não cumpre o seu dever, e resolve-os a armarem-se com as
espingardas ferrugentas e a irem a casa do suposto culpado... Então, não era uma
esperteza!... Das duas, uma: ou o guarda podia ser morto no motim, e então atribuir-se o
facto ao exaspero da populaça, à legítima vingança de um genro virtuoso, e o morto não
poderia justificar-se; ou não se conseguia o assassinato, mas desviavam-se dos verdadeiros
culpados as suspeitas e designava-se aos magistrados aquele que a opinião pública
acusava...

Repito, o homem que maquinava isto, era um espertalhão! Nada conseguiu, porém. A
força armada e os magistrados intervieram muito cedo; o guarda conseguiu desculpar-se... O
que prova, Hermano — concluiu o artista em tom sentencioso, — que à habilidade e à
esperteza sucede o mesmo que à virtude, nem sempre são recompensadas sobre a terra!

Leão saboreou lentamente a sua chávena de chá.

Hermano estava aniquilado.

Agachado, com a cabeça entre as mãos, afigurava-se-lhe que só um ente sobrenatural


poderia ter descoberto semelhantes segredos, e media aterrado a profundidade do abismo em
que se afundava.

Perguntou com uma voz apenas percetível.

— Em suma, o que é que quer? Que resolução vai tomar?

— Afianço-lhe que não sei lá muito bem. Para lhe falar com franqueza, repugnava-me
muito denunciar um homem e fazer cair a sua cabeça, ainda que esse homem fosse tão
celerado como aquele de quem estamos falando. Por outro lado, não me sofreria o ânimo
deixar-lhe a liberdade de cometer novos crimes... Em suma, eu verei, eu examinarei...
Entretanto, como o sujeito em questão é tão vigoroso como traidor, fique sabendo de que
precauções eu lancei mão contra ele. Esta manhã, escrevi num papel, com a maior
minuciosidade todas as bonitas coisas que acabo de lhe contar. Nomeio as pessoas que
podem servir de testemunhas, dou as indicações mais precisas para que a verdade se torne
brilhante como a luz do dia. Depois de assinar o papel e de o selar com o selo das minhas
armas, meti-o numa caixa com a famosa pistola enferrujada, que toda a gente da terra viu nas
mãos do culpado; depois lacrei a caixa e levei-a para casa do tabelião, a quem dei as
seguintes instruções: «Se lhe constar alguma vez que me sucedeu alguma coisa, a mim, Leão
Girard, pintor, ou se eu deixar sequer de me apresentar de vinte e quatro em vinte e quatro
horas no seu escritório, pegará nessa caixa, levá-la-á ao comandante dos gendarmes, que a
abrirá na sua presença, e o senhor fará então... o que deve fazer.» O tabelião deu-me a sua
palavra de que as instruções seriam pontualmente executadas. Se, portanto, o meu patife
tivesse a ideia de me fazer alguma traição, de nada lhe serviria isso, porque se lhe pediria
conta dos seus crimes... Demais, estou disposto a defender-me e havia de lhe custar.

— Mas, repito, que espera? Que quer fazer desse desgraçado que tem à sua discrição?

— Quero que ele me obedeça em todas as coisas, da maneira mais absoluta... Resolvo
que a sua vontade e as suas ações estejam subordinadas às minhas ordens... E depois,
veremos!...

— Ele obedecerá, senhor — retorquiu Hermano, vertendo algumas lágrimas fugitivas;


— ele deverá obedecer como um escravo, como um cão... Não tem remédio senão obedecer!
O senhor possui o poder e a ciência do inferno.

Leão sorriu. Um e outro calaram-se outra vez por alguns minutos.

— Quer mais chá? — perguntou finalmente o artista com o seu tom mais sossegado.

Hermano olhou para ele com admiração, como se não tivesse compreendido o que lhe
diziam.

— Se não quer mais chá — continuou Leão, — não o reterei por mais tempo. Sei que o
senhor tem o costume de se deitar muito cedo... Portanto, boa noite, durma bem! Parece que a
minha história o interessa muito, e as histórias que eu conto por aqui e por acolá, raras vezes
têm uma tal aceitação... Não importa! Trate de dormir, e sobretudo não queira levantar-se de
noite. Faz mal.

Parece que a princípio Hermano julgava que este conselho ocultava uma armadilha.
Não obstante, levantou-se com esforço e encaminhou-se para a porta com um passo
vacilante.

À porta voltou-se e pareceu hesitar.

Em pé, de trás da mesa, com a mão no revólver, Leão seguia-o com os olhos.

— Boas noites, senhor — disse Hermano.

— Boas noites — repetiu o artista.

A porta fechou-se e ouviu-se um passo pesado descer a escada.

Mas só depois de Hermano se recolher ao quarto, é que Leão abandonou a sua atitude
ameaçadora.
O seu primeiro movimento foi ir à porta, cujo fecho correu.

Feito isto, veio sentar-se em frente do lume e pôs-se a fumar um charuto.

— Hum! Há de ser difícil!... — dizia ele consigo. — Aquele miserável, apesar das suas
lágrimas hipócritas, devidas talvez a uma cólera impotente, pareceu muito disposto à
revolta... O tigre ainda não está domado: devo esperar assaltos públicos e ferozes e
resistência desesperada. Ora! Domá-lo-ei em risco de ter a sorte dos domadores que são às
vezes devorados pelos seus bichos antes de poderem dominá-los.

Tomou algumas fumaças.

— Na verdade — continuou, — vou carecer de uma ativa vigilância de noite e dia. Ao


menor descuido, à menor falta de jeito dará cabo de mim... Ora adeus! — Concluiu
bocejando. — Terei com que me entreter e distrair até ao fim dos meus trabalhos nesta terra
de selvagens... Vamos dormindo, entretanto.

E o artista preparou-se para dormir.

Mas não desprezou as mais minuciosas precauções, a fim de garantir a sua segurança.

Apesar de já ter aferrolhada a porta, encostou-lhe uma porção de móveis, de modo que
formassem um montão que ao mais simples abalo viesse abaixo com estrondo.

Em seguida certificou-se de que os sólidos caixilhos das janelas não podiam ser
abertos pela banda de fora.

Afinal meteu o revólver debaixo do travesseiro, e só depois de tomadas estas


precauções é que se deitou.

Durante alguns segundos ainda, pôs-se a escutar os mais insignificantes rumores que se
ouviam em roda, mas como não sentisse novidade, dormiu até ao dia seguinte.
VI — O domador

No dia seguinte devia efetuar-se o casamento de Teresa Hubert e de José Leroud.

Como não queria perder um dia de trabalho, Girard resolveu só comparecer de tarde na
festa, em que devia tomar parte toda a gente da terra. Por isso à hora do costume saiu para ir
ao Château-Neuf.

Ao passar por diante da oficina de Hermano avistou-o com o seu fato de trabalho,
sentado, num banco, com os braços pendentes e a cabeça descaída para o peito.

Estava pálido, tinha os olhos vermelhos e meio fechados. Conhecia-se-lhe pelo rosto
que passara uma noite de insónia.

Leão parou à porta e disse-lhe num tom cuja aspereza e arrogância exagerava de
propósito:

— Então, Hermano, não vais ao casamento da Teresinha.

Hermano, ao ouvir esta voz, estremeceu e levantou-se. Descobrindo-se respondeu com


humildade:

— Peço perdão, peço desculpa, hoje há muito que fazer, e depois... não estou para
alegrias...

— Isto não faz ao caso. É preciso ir ao casamento; a tua ausência podia ser notada, e eu
quero que vás lá... É verdade que não tens, como de costume, a pistola de dois canos para
atirar em honra dos noivos; mas se quiseres, eu lá darei explicações...

— Eu lá irei, senhor, eu lá irei — interrompeu Hermano.

— Perfeitamente. Para acabar de te resolver, anuncio-te que terei o prazer de


comparecer na festa mais tarde... Não te impacientes; irei lá, prometo-te.

E retirou-se.

Quando Leão se achou a certa distância, Hermano fez um gesto de raiva. Depois
encaminhou-se para o seu quarto a fim de se vestir para a festa.

Durante o dia toda a aldeia esteve em folgança rasgada. O rés do chão e uma espécie de
cercado plantado de batatais, que havia detrás da casa, estava cheio de mesas emprestadas
pelos vizinhos e pelos amigos. Em cima das mesas diversas espécies de comidas, quentes ou
frias, e vinho ou cidra, de que todos podiam servir-se quanto quisessem. Numa parte
reservada do cerrado, um músico raspava numa rebeca, e da rebeca assim raspada, sabiam
valsas e contradanças, que faziam saltar rapazes e raparigas.

Entre os convidados achava-se a viúva Lourenço, mais enfeitada que um palmito, mas
conservando sob os seus enfeites de mau gosto, a frescura e a riqueza de contornos que
despertavam admiração geral.

Sem dúvida que a viúva não desgostaria de dançar e também bom número de rapazes
ardiam por lhe pedir uma valsa, principalmente o pobre João Pedro, que vestido com o seu
pobre fato de domingo andava incessantemente à roda dela.

Mas ninguém se atrevia a aproximar dela, e a formosa viúva continuava no seu lugar.

E por detrás dela estava Hermano, que parecia guardá-la. O tanoeiro estava com o seu
fato domingueiro, que a sociedade achava muito catita.

Apesar do seu apuro, estava com uns ares lúgubres, e não proferira vinte palavras
desde que se achava em casa da Hubert. Assim que qualquer rapaz fazia menção de se
aproximar da viúva, ele lançava ao imprudente um olhar tão irritado, tão ameaçador, que o
outro girava nos calcanhares e não tardava a confundir-se por entre o ajuntamento.

Estas disposições de Hermano contribuíram para desanimar os convidados, e a festa


esmorecia. De repente, algumas vozes gritaram:

— O parisiense!... agora é que vamos rir. Aí vem o parisiense!

Efetivamente, Girard chegava aos pulinhos à parte do cerrado que servia de sala de
dormir.

Vinha vestido com simplicidade, mas convenientemente, e, segundo o costume, estava


radiante de bom humor.

Aproximou-se dos convivas e cumprimentou-os.

Depois de se inclinar respeitosamente diante de Teresa, travou da mão de Leroud e


apertou-lha com vigor.

— Faço-lhe os meus comprimentos e dou-lhe a minha bênção, Leroud — disse com


uma gravidade cómica. — Possa a sua posteridade ser tão numerosa como as estrelas do céu
e os grãos de areia do mar... dou-lhe licença para isso!

Leroud ficou de boca aberta diante deste comprimento, de que ele não entendia palavra,
e o estroina voltou-lhe as costas e dirigiu-se para Hermano.

— Olha o meu senhorio! — Disse com o seu tom zombeteiro. — Então tu juraste
monopolizar a formosa senhora Lourenço? Aposto que tens dançado todo o dia com ela...
Isso não é permitido pelos regulamentos, meu velho!

— Senhor — balbuciou Hermano, — eu nem me lembrei...

— Está bom — interrompeu Girard, — abaixo os monopolistas!... Formosa dama —


acrescentou com ar de galantaria, — concede-me uma valsa, uma contradança ou... tudo o
que quiser?

— Com todo o gosto, senhor — respondeu a viúva que aceitou com ânsia a mão que lhe
ofereciam.

— Tu, Hermano — continuou Girard, — vais convidar uma dessas raparigas, e farás de
meu vis-à-vis.

— Senhor, juro-lhe que não tenho vontade nenhuma...

— Hás de me servir de meu vis-à-vis, já te disse! Já viram um senhorio que se


emancipa a tal ponto? Chegou a vez dos inquilinos se mostrarem tiranos... Esta noite, quando
formos para casa, havemos de passar pelo tabelião... que ainda hoje não me viu.

Hermano levantou-se como se o solo lhe fugisse dos pés. Agarrou na mão da primeira
moça que achou ao pé de si e encaminhou-se para o grupo dos dançadores, com a mesma boa
vontade com que um urso fazia iguais movimentos ameaçado pelo cacete do dono.

O artista não pareceu notar a raiva de Hermano, ou se deu por ela foi para a meter a
ridículo com o seu formoso par, a quem dizia tanta tolice que a fazia perder o compasso.

A dança prolongou-se tanto tempo quanto quis Leão Girard.

Finalmente, cansado, parou, e um sinal avisou Hermano de que lhe fora restituída a
liberdade de ação.

Vendo, porém, que a sua valente companheira ainda não estava cansada, chamou João
Pedro, encarregou-o de o substituir junto da viúva, e depois de lhe ter dito algumas graças
que muito os divertiu a ambos, foi descansar em frente de um copo de cidra.

Quando ele tornou a aparecer entre os que dançavam, João Pedro e a viúva já estavam
sentados. Tinham ido para um canto do cerrado, onde conversavam em voz baixa, o que fez
carregar o sobrolho a Leão.
Quanto a Hermano voltara para o seu lugar primitivo, mas já não parecia inerte e
abatido como antes.

Estava, sem dúvida, num dos quartos de hora de revolta prevista pelo seu perseguidor.

Tinha a cabeça erguida, lia-se-lhe no rosto uma expressão determinada e quando Leão
apareceu o seu olhar em vez de se abaixar, fitou-o com ódio.

O artista limitou-se a sorrir e passou assobiando.

Dirigiu-se para uma parte do cerrado onde os rapazes se exercitavam na luta, segundo o
costume de certas terras.

Girard observou-os por um momento, depois, despindo a sua sobrecasaca, ofereceu-se


para lutar com os mais valentes campeões.

A princípio houve recusa; era muita honra, e conhecia-se também que receavam
desfazer aquele parisiense de tão fraca figura.

Leão só com grande custo conseguiu resolver um dos assistentes a aceitar o desafio.

Entretanto, a opinião a seu respeito não tardou a mudar. O adversário foi derrubado um
pouca rudemente. Um segundo teve igual tratamento, e tudo isto o artista conseguia com tanta
facilidade que até nem deixava de dizer os seus gracejos, que muito divertiram a galeria.

Já ninguém queria experimentar.

Leão perguntou:

— Quem é o rapaz mais forte cá da aldeia?

Responderam-lhe logo:

— É o Hermano.

— Então que se aproxime!

Talvez que fosse isto mesmo que Hermano quisesse, porque ao primeiro chamamento
avançou resolutamente, com os lábios cerrados e fechados os punhos.

— Hermano — perguntou-lhe o artista, — queres lutar comigo?

— Sim — respondeu o tanoeiro.


Enquanto despia a sobrecasaca, estava todo numa tremura nervosa. Os seus dedos de
ferro arrancavam os botões, rasgavam o fato.

— Ai que ele vai dar cabo do parisiense! — murmurou um dos circunstantes.

— Isso é o que se há de ver! — observou outro.

Os dois lutadores caíram em guarda; Hermano furioso, sombrio, taciturno, com a sua
estatura atlética; Girard leve, flexível, zombeteiro.

Mas ainda desta vez o combate não foi muito demorado; no momento em que se
precipitavam um sobre o outro, Hermano, sem que se soubesse como aquilo tinha sido, foi
derrubado com uma rudeza que teria atordoado outro qualquer menos robusto.

O próprio Hermano ao ver-se estendido por terra, parecia não acreditar na sua derrota
e estava como que fulminado.

Talvez que lhe acudisse novamente a ideia de que Leão devia a sua superioridade a um
poder sobrenatural.

Quando ele se erguia em meio das risadas dos espetadores, Girard disse-lhe
tranquilamente:

— Vamos lá! Isto foi uma primeira tentativa... Apanhei-te de surpresa... Aguenta-te
agora melhor.

— Sim, sim, a primeira não valeu — repetiu Hermano resmungando raivoso.

Após um pequeno intervalo, os dois lutadores puseram-se novamente em guarda; e ou


porque Hermano redobrasse de esforços, ou porque conhecesse melhor a tática do
adversário, não se deixou derrubar à primeira investida. Agarraram-se, procurando cada um
deles levantar o outro do solo; mas, quando desenvolviam todo o seu vigor, o pé do artista
escorregou e os combatentes, sempre enlaçados, caíram juntos.

Leão Girard ficara por baixo; segundo as regras do combate, devia ser considerado
como vencido, e o combate cessar logo.

Não sucedeu assim: Hermano não deu ouvidos aos espetadores que lhe gritavam se
levantasse. Continuava a ter seguro Leão, e debruçado sobre ele, ofegante, soltando uma
espécie de estertor, parecia animado por um verdadeiro frenesim.

Soltou uma das mãos, agarrou o adversário pela gravata e principiou a apertar-lhe a
garganta. Nos seus olhos fulvos e raiados de sangue brilhava o sinistro fulgor próprio de
quem vai cometer um crime.
Evidentemente, todos os instintos ferozes daquela má índole acabavam de despertar.
Girard julgou-se perdido.

Contudo disse em voz baixa:

— Estão a olhar para ti, assassino!

Esta palavra teve um efeito mágico. A mão que segurava a gravata de Leão soltou-se; as
feições contraídas tornaram ao seu natural, o fulgor dos olhos apagou-se e Hermano pôs-se
em pé balbuciando:

— É má brincadeira... perde-se a cabeça... e não se sabe o que se faz.

Ninguém mais além de Leão conhecia o perigo que este acabara de passar.

Quando se achou de pé, esfalfado e alagado de suor, disse ao tanoeiro:

— Estamos iguais; mas agora é a decisiva!

— Não — respondeu Hermano com mau modo; — para quê?

— Quero eu. A primeira vez foste surpreendido; à segunda escorregou-me um pé; agora
é que é para decidir.

— Seja pois!

E principiou a terceira prova.

Leão conhecia quanto lhe importava demonstrar ao tanoeiro a sua superioridade física.

Agarrou francamente o adversário pela cintura e deixou-se também agarrar. Depois de


alguns movimentos simulados de parte a parte, soltou-se por um esforço súbito, irresistível,
e fez ir o adversário rolar por terra a três passos de distância.

O vencedor foi acolhido com aplausos. Quase todos os que assistiam à festa, até os que
dançavam, tinham formado círculo para verem o resultado da luta.

Contudo, quando Hermano, todo magoado, se levantou, ninguém teve suficiente audácia
para o caçoar diretamente. Limitaram-se a exaltar o vigor e a destreza do parisiense.

Hermano, depois de se vestir lentamente, disse a Girard:

— Eu bem sabia... você é o diabo em pessoa.


Depois foi sentar-se calado a um canto.

Girard, pela sua parte, vestiu a sobrecasaca e foi novamente borboletear em roda da
viúva Lourenço.

O resto da festa passou-se sem incidente notável.

Era já tarde e a noite caíra, havia muito, quando o artista desejou regressar a casa.
Aproximou-se de Hermano.

— Já estou farto — disse; — ponhamo-nos a caminho!

— Eis-me, senhor — acudiu Hermano com humildade, preparando-se para o


acompanhar.

Tinham ainda que atravessar a aldeia, escura e deserta àquela hora.

Leão não estava ainda bem convencido de que a sua vítima feroz tivesse desistido de
toda a ideia de agressão súbita e de cilada. Disse porém de si para si: «Se com semelhante
homem dou a conhecer o menor receio, estou perdido!» e continuava imperturbavelmente o
seu sistema de provocação e desafio.

De repente Hermano perguntou:

— Senhor Girard, não tínhamos de passar pelo tabelião?

— Bem! Já vejo onde te dói. Sossega... O escrevente do tabelião estava na festa de


Teresa e dirá ao patrão que me viu de perfeita saúde.

Deram mais alguns passos em silêncio. Foi Leão que tornou secamente:

— Hermano, as tuas assiduidades junto da viúva Lourenço desagradam-me. Ela


queixou-se-me, e demais, tenho outras vistas sobre ela... Exijo, pois, que desistas
completamente das tuas pretensões a seu respeito, que não te tornes a aproximar dela, que
nunca mais lhe dirijas a palavra, e não te lembres de impedir que se aproximem ou lhe
falem... Compreendeste-me, não é verdade?

Hermano não pôde conter uma praga formidável.

— Então, o que é lá isso? — Voltou-lhe o artista levando a mão à algibeira onde tinha o
revólver. — Só se fores um grandíssimo alarve é que não percebes que a resistência te não
serve de coisa alguma!

— Bem sei! — Replicou Hermano soltando um gemido abafado. — O senhor tem a


força e a coragem... contudo, não me faça perder a paciência. Eu gosto da viúva Lourenço,
ela é bonita, é rica, desejo casar com ela. Tenho razões para crer que os meus projetos não
lhe desagradam...

— Mas não tens remédio senão desistir... És muito esquecido, Hermano!

— Não, não me esqueço de nada. Mas, pelo amor de Deus, o que quer de mim?

— Ora essa! Quero que sofras — respondeu Leão; — se te poupei ao suplício das
galés, ao do cadafalso, resolvi, contudo, que sofresses tanto como o galeriano ou o
condenado à morte. Só assim tranquilizarei a minha consciência, que me ordena livre a
sociedade de um patife como tu... Pois quê! Eu havia de te deixar continuar na realização dos
teus projetos de facínora? Havia de te permitir depois de matares tua mulher e o teu sogro,
que desposasses uma mulher mais a teu gosto que a primeira? Isso era realmente muito
cómodo!

— Mas, enfim — tornou Hermano torcendo as mãos com desespero, — posso ter
esperanças de ver um fim a este tormento?... E quando?

— Tens muita pressa! Ainda agora ele principiou... Se eu sair daqui, o que decerto há
de acontecer dentro de alguns meses, poderás então respirar um pouco. Não te levarei para
Paris, e no dia em que me for embora, saberás que garantia tenciono tomar a teu respeito.
Até então é preciso que eu faça desaparecer esse orgulho grosseiro, esses instintos ferozes,
essa independência selvagem que fez de ti o que tu és. Deves agora compreender era que
mãos caíste, Hermano; ainda que eu tivesse de perecer na luta não cederia... Procura antes
desarmar-me com teu arrependimento, com a tua submissão; tens tudo a ganhar excitando a
minha generosidade, hás de achar a provocação rude, já te previno disso, porque serei para
ti... o castigo!

Após um momento de reflexão, Hermano disse com brutal franqueza:

— Vamos, o senhor é um homem... e um homem a valer! Sabe tudo, vê tudo, nada o


atrapalha! Não se há de admirar se lhe disser que durante estas últimas vinte e quatro horas
não tenho pensado noutra coisa senão em lhe dar a matar, fosse de que maneira fosse, e
depois fugir para o bosque... Mas está dito, cedo. O senhor é o mais forte, o mais esperto de
nós dois; nada posso contra si e o senhor pode tudo contra mim. Desta vez está tomada a
minha resolução: ainda que o senhor me batesse, me escarrasse na cara, não faria nada. Eu
gostava da Lourenço, e se alguém na terra tentasse disputar-ma não faria bem. Exige que eu
desista, pois bem, como quiser. O primeiro cobarde, João Pedro, por exemplo, pode
namorá-la se quiser; e quanto ao senhor...

— Oh! Quanto a mim não peço licença a ninguém para estas coisas... — interrompeu
Leão Girard. — Ora bem, Hermano, lembra-te das tuas boas resoluções.. e nada de recaídas!
Uma palavra imprudente, um movimento de cólera podem custar-te caro.

— Sim, sim senhor, mas da sua parte... em consciência... sim, não me pique muito em
certas ocasiões! Olhe que há momentos em que não sei muito bem o que se passa na minha
cabeça, não tenho mão em mim, e seria capaz...

— Isso para mim é que me não serve, Hermano! Preciso de uma submissão cega,
absoluta, agora e depois, de noite como de dia.

— Em suma, senhor, far-se-á diligência... Mas devo preveni-lo.

— A mim que me importam muito as tuas prevenções. Eu saberei impor-te a minha


vontade, e desgraçado de ti se procurares resistir!

Apesar desta firmeza o artista fez no seu íntimo o protesto de aproveitai o conselho e
suavizar um pouco a sua tirania, durante certos acessos de vertigem.

Recolheram a casa e Hermano despediu-se humildemente. Mas Girard não se fiando


muito nas promessas do seu hospedeiro, não se deitou sem adotar os mesmos meios que
adotara na véspera para garantir a sua tranquilidade durante a noite.
VII — A cilada

Leão Girard, génio folgazão, não era homem que conservasse por muito tempo a sua
atitude desconfiada perante Hermano.

O mesmo caráter leviano e temerário, que o levava a procurar o perigo, também o


levou a esquecer dentro em poucos dias as precauções que primeiramente tomara.

Começou por não trazer revólver consigo; depois avisou o tabelião de que não passaria
pelo escritório senão de oito em oito dias. Finalmente, já não se entrincheirava de noite com
os móveis.

Como a sua confiança aumentasse, principiou a dar grandes passeios pelos arredores
em companhia de Hermano, e recolhiam-se muitas vezes de noite atravessando os grandes
bosques que cobriam aquela região.

Hermano não parecia disposto a abusar daquela confiança. Nunca houvera servilismo
mais completo.

A gente da terra desconhecia aquele homem feroz que outrora lhe inspirava tanto terror.

Estava sempre grave e taciturno e já não se mostrava agressivo, evitando


cuidadosamente os conflitos.

Uma palavra, um gesto de Leão, bastava para o fazer desistir do projeto mais decidido.

Entretanto, aquela submissão servil custara decerto muito a Hermano porque se tornou
cada vez mais magro e pálido.

Aquela espécie de colosso, trigueiro, de ombros largos, já não era mais que um
esqueleto de cabelos grisalhos e olhos encovados. Até a voz perdera o timbre sonoro e só
tinha agora intonações veladas, abafadas, quase tímidas.

Leão Girard não tardou a impor-lhe um sacrifício mais pungente que os outros.
Devemo-nos lembrar de que proibira a Hermano todas as relações com a Lourenço, e como
ele próprio frequentava a casa da bonita viúva, Hermano imaginou que o artista lhe impusera
semelhante preceito por interesse puramente pessoal.

Teve bem depressa motivos para supor que se enganara, porque se divulgou na aldeia
que o João Pedro estava nomeado jardineiro em chefe do Château-Neuf, e que além disso
casava com a viúva Lourenço. Acrescentava-se que era ao parisiense que se deviam as
prosperidades que choviam agora sobre a cabeça de João Pedro.

Poucos dias antes, o especulador milionário a quem pertencia o novo palácio viera com
grande ostentação visitar a propriedade e ficara encantado com as pinturas de Girard.
Depois o artista divertira-se tanto com os gracejos e historietas, que o opulento bolsista
principiara a engraçar com ele deveras.

Leão aproveitou o ensejo para lhe gabar o seu protegido, e o proprietário querendo
mostrar a grande importância que dava a uma tal recomendação, nomeara no mesmo instante
João Pedro jardineiro em chefe da casa.

O humilde namorado da viúva instalou-se logo com a família num lindo pavilhão,
coberto de ardósias e coroado de cataventos dourados, pavilhão destinado às suas novas
funções.

Que meios empregara Leão para decidir a formosa Lourenço a coroar os desejos de
João Pedro? Nunca se soube. A verdade é que o casamento ficou resolvido com extrema
alegria de João Pedro e grande espanto dos seus rivais.

A notícia produziu em Hermano mais impressão que todas as provações a que o seu
perseguidor entendera devê-lo submeter.

A noite que se seguiu ao dia em que toda a aldeia pôde ler num cartaz afixado na
mairie, os nomes dos futuros esposos, o pintor acordou repentinamente a um ruído estranho
que vinha do quarto de Hermano.

Saltando da cama abaixo, correu a fechar a porta e a deitar mão do revólver. E em pé,
no meio da escuridão, pôs-se a escutar.

Nada se mexia na casa; porém o ruído tornava-se cada vez mais distinto. Eram soluços,
gritos inarticulados.

Evidentemente quem os soltava achava-se dominado por transportes frenéticos,


contorcia-se na cama, mordia os travesseiros e as cobertas: era um desespero tempestuoso.

Apesar de não desconhecer quão pouco merecedor de piedade era o labrego, Girard
não pôde deixar de sentir alguma comiseração.

— Pobre diabo! — Exclamou. — Amava deveras aquela mulher! Se ele soubesse!

E tornou-se a deitar.

Desistindo daquela vez do seu sistema de vexames e torturas morais, não obrigou o
tanoeiro a assistir ao casamento.
Ele mesmo se absteve também de comparecer e naquele dia levou Hermano consigo
para uma aldeia próxima, sob um pretexto qualquer, de modo que ao recolherem-se à noite a
Rivecourt tudo estava acabado.

Apesar destas contemplações parece que o casamento da viúva destruíra no coração de


Hermano uma vaga e última esperança. Tornava-se cada vez mais sombrio.

Muitas noites Leão tornou a acordar ao ruído de acessos semelhantes àquele de que
falámos: e era para recear que aquele desespero, cuidadosamente dissimulado de dia não
fizesse explosão na primeira ocasião favorável contra o homem que Hermano podia
considerar como o autor dos seus sofrimentos.

Leão Girard não previu esta eventualidade, ou não quis tomá-la em consideração.
Tratou de desempenhar outra vez o papel de carrasco folgazão.

Sem tocar senão com muita reserva em certas fibras delicadas, descarregava, contudo,
incessantes golpes sobre o coração da sua vítima.

Era mais a loucura do estouvado do que a verdadeira crueldade; parecia-se com as


criação que torturam tudo em que tocam.

Entretanto, apresentou-se uma circunstância em que Hermano podia ter tentações de


tirar uma terrível desforra.

Dissemos que Leão Girard, muito cheio de aborrecimento, procurava todas as


distrações possíveis, e sucedia-lhe muitas vezes ir para serões, festas, casamentos, nas
aldeias próximas.

Nestas ocasiões, fazia-se acompanhar do seu guarda-costas, no que fazia muito bem,
porque a sua veia satírica, as suas maneiras atrevidas e, sobretudo, a mania galanteadora,
expunham-no frequentemente a questões e desforços.

Nos divertimentos, Hermano mantinha-se numa atitude completamente passiva.

Conservava-se afastado, mal respondendo às perguntas que lhe faziam, indiferente aos
folguedos da festa.

Quando tratavam de voltar para casa, Hermano empunhava o seu varapau, de que tinha
o cuidado de ir munido; depois o artista e o seu acólito regressavam por caminhos desertos
para Rivecourt, onde a maior parte das vezes, como sabemos, só chegavam em meio da
noite.

Cerca de um mês antes de finalizar os seus trabalhos de pintura, Leão fora à aldeia de
Santo André, situada quase a uma légua de Rivecourt, do outro lado da floresta.
Fora aí atraído por um enxame de bonitas mulheres, entre as quais se achava uma que
excedia em beleza a própria viúva Lourenço.

Havia em Santo André uma grande sala onde se dançava em certos dias. Era ali que
Girard tinha ensejo de ver a pessoa que por então parecia ser o objeto das suas homenagens.

Por desgraça, as suas assiduidades junto dela irritavam muito um pai, um irmão e um
noivo, sem contar grande número de rivais.

Estas indisposições manifestaram-se sobretudo na noite em que falamos. Leão dançara


constantemente com a rapariga, e parece que muito a divertira à custa dos rapazes bonitos do
sítio que tomaram parte no baile.

O primeiro resultado do seu procedimento atrevido foi os pais da rapariga levarem-na


a toda a pressa, sem lhe darem tempo sequer de dizer adeus a Girard.

Este, que nesse momento se achava na outra extremidade da sala, não compreendeu o
olhar consternado que ela lhe deitou ao retirar-se, e convencido de que a encontraria, sentou-
se num lugar desocupado, à espera que ela voltasse.

A súbita retirada da bonita dançadora e da sua família, aumentou ainda mais a


fermentação na parte masculina da assembleia.

Conversava-se com animação; dizia-se em voz alta que a insolência do parisiense já


não se podia suportar, e que era tempo de lhe pôr termo.

Talvez não ouvisse estes ditos ameaçadores; mas, se os ouvia, não lhes dava
importância e continuou tranquilamente a esperar o regresso da dama preferida.

Hermano, que segundo o seu costume se conservava na última fila dos circunstantes e
na sombra, aproximou se dele e disse-lhe em voz baixa:

— Parece-me, sr. Leão, que estes ares por aqui não lhe são muito favoráveis... Alguns
rapazes além, falam em desancá-lo, por causa da pequena. Aquele, principalmente, de calça
branca, noivo, segundo parece, da mocita, é que trata de exaltar os mais. Se quer um
conselho, o melhor é pôr-mo-nos quanto antes a caminho.

— Deixa-te de histórias! — Retrucou-lhe Leão encolhendo os ombros. — Estes patifes


são incapazes de me atacarem de frente.

— Não é bom fiar... E depois ainda temos que andar pelo bosque para voltarmos para
casa. Podem lembrar-se de se porem de emboscada...
— Se tens medo, podes voltar só para Rivecourt... Demais, dado o caso de não voltar a
pequena ao baile sei onde poderei encontrá-la; e então a tua presença ser-me-á inútil; não só
te dou licença de te retirares, mas até to ordeno, porque aqui não podes senão servir-me de
embaraço.

— Com a sua licença, senhor Leão, tome cuidado... Esta gente está contra o senhor, olhe
como eles o olham de revés!

— A mim que me imporia! O que eu desejava é que eles se resolvessem a atacar-me


para eu ter ocasião de sovar alguns... O das calças brancas, principalmente, incomoda-me...
Mas não te inquietes, e safa-te depressa.

— É uma imprudência, senhor Leão, e depois não se lembra... Se lhe acontecesse algum
mal eu poderia ver-me metido em boas, por causa da tal caixa que está no tabelião...

— Ora já sei onde a bota te aperta — tornou o artista jovialmente. — Tens razão; se
cometer uma imprudência, não é justo que tu pagues... sabe, pois, que há já muito tempo, que
a caixa com o seu conteúdo, não está no tabelião, porque achava que era muito aborrecido ir
todos os dias visitar aquele sujeito. Agora está em minha casa, em Rivecourt, numa gaveta
da cómoda... Eis a chave da gaveta. Se me derem cabo dos ossos nalguma desordem,
poderás tomar as medidas que julgares convenientes para tua segurança. No caso contrário,
esta noite ou amanhã, restituir-me-ás a chave... Agora que estás sossegado a teu respeito,
põe-te a andar que me estás incomodando os nervos.

Hermano agarrara a chave e metera-a na algibeira. Contudo sempre disse com os olhos
baixos:

— Em todo o caso não seria mau que o sr. Leão olhasse um pouco por si. Há entre essa
gente alguns indivíduos que não são bons...

— Ora! Vai tu para o diabo e mais eles! — vociferou o artista impaciente.

Hermano não se atreveu a insistir mais e saiu.

Leão esperou ainda alguns instantes; mas como afinal a formosa dançadora não
aparecia, deixou também o baile.

Na sua preocupação não reparou que cinco ou seis rapazes, entre os quais se achava o
da calça branca, saíam ao mesmo tempo que ele.

Depois não tratou de voltar logo para Rivecourt, e meteu-se por uma rua da aldeia de
Santo André.

A Lua brilhava no céu, mas na sombra projetada pela casaria reinava densa escuridão,
e o artista podia deslizar ao longo da rua sem ser visto, tanto mais que ia caminhando com
extremas precauções. Costeou por muito tempo um muro que parecia pertencer a uma
herdade e parou a uma portinha. Depois de estar por um momento em observação bateu de
um modo particular.

Esperou, e como não recebesse resposta, repetiu o sinal.

Então, do outro lado do muro ouviu-se um passo pesado, uma voz grossa dizer:

— Não há aqui nada para ti parisiense do diabo! Vai-te para o sítio donde vieste e não
me andes a rondar a casa... Tenho a minha espingarda e se queres receber uma bala olha que
não há de ser custoso.

Girard reconhecera a voz do pai do seu formoso par. Bateu em retirada murmurando:

— Basta... Estão de guarda à porta, voltaremos pela janela!

Contudo, julgando inútil continuar naquela noite as suas empresas amorosas, voltou
pela estrada que ia dar a Rivecourt.

Como dissemos, tinha quase uma légua a percorrer no bosque; e apesar de que a estrada
era boa e larga, e o luar a alumiava suficientemente, àquela hora da noite o trajeto oferecia,
nas atuais circunstâncias, certos perigos.

Vimos que a população masculina de Santo André estava muito irritada contra Girard e
segundo as previsões de Hermano era muito possível que os parentes, os pretendentes e os
simples namorados da formosa aldeã se combinassem para aplicar uma correção ao sedutor
parisiense. Ora, sabe-se o que é uma correção ministrada por campónios brutais.

Por outro lado, enquanto seguia o seu caminho, Leão ia pensando nas valiosas
concessões que fizera a Hermano.

Confiando-lhe a chave do móvel onde se achavam as provas do crime, não se pusera


inteiramente à sua discrição? Seguro da impunidade, Hermano não teria tentações de
satisfazer o seu rancor com o seu perseguidor desapiedado? Bastava-lhe para isso ocultar-se
no bosque, atacar Girard por surpresa e matá-lo. O pintor tinha agora bastantes inimigos na
localidade para que este novo crime fosse lançado à conta de uma vingança particular e para
que as suspeitas caíssem sobre qualquer outro que não fosse o verdadeiro culpado.

Em caso de ataque, Leão não devia, portanto, contar senão com os seus punhos
vigorosos e a sua agilidade.

Ainda hão de estar lembrados que já não trazia, havia muito, o revólver com que
entendera dever prevenir-se contra Hermano. Agora nem tinha uma bengala, que nas suas
mãos experimentadas seria uma arma temível.

Para suprir essa falta, arrancou um ramo de uma árvore, desbastando-o dos ramúsculos;
depois continuou o seu caminho pelo meio da estrada, em plena luz, assobiando um
estribilho belicoso.

Era uma dupla imprudência; houvera sido muito melhor deslizar sem ruído à sombra
das altas faias que orlavam a estrada do que mostrar-se e dar a saber de longe a sua
aproximação.

Não tardou a pagar a sua temeridade.

Achava-se a meio caminho, isto é, numa parte da floresta tão distante de Santo André
como de Rivecourt, quando ouviu junto de si, por baixo das árvores, um sussurro de vozes.

Parou e cessou de assobiar, sem, contudo, ainda se pôr em defesa.

Um indivíduo invisível exclamou no modo de falar próprio da terra:

— É ele... tenho a certeza de que é ele.

— Então saltemos-lhe em cima — disse o outro.

No mesmo instante, observou-se extraordinário movimento por entre o mato, e cinco a


seis homens, entre os quais se achava o famoso calça branca saltaram, brandindo enormes
cacetes.

— Patifes! — Bradou o artista. — Se não fossem uns cobardes, e se se apresentassem


um depois do outro, provar-lhes-ia...

Mas os sentimentos cavalheirescos não pareciam estar nos hábitos daqueles campónios
exaltados, que todos ao mesmo tempo atacaram Girard.

Debalde procurou meter-se por entre o mato; rodeavam-no por todos os lados, e por
inábeis que fossem os seus adversários era impossível escapar-lhes.

Logo no princípio o infeliz artista recebeu muitas bordoadas. Contudo fazia-lhes frente,
e como um dos seus adversários investia muito de perto com ele descarregou-lhe na cabeça
uma pancada que o deitou por terra.

Em compensação, quebrou-se-lhe o triste ramo de árvore, e só ficou com um pedaço de


lenha quase inútil na mão.

Vendo o seu embaraço, os assaltantes investiram com ele mais vigorosamente, Girard
acabou por cair aos murros sobre o mais encarniçado, que sucedeu ser o das calças brancas.

Depressa o venceu, e o infeliz das calças brancas rolou por sua vez no solo.

Contudo, esta vitória saiu cara a Leão. Enquanto se ocupava de um só adversário, o


resto do bando agredia-o com vigor. Atordoado com uma pancada na fronte, o artista
cambaleou e foi derrubado.

A sua queda não deteve aqueles brutos, a quem a própria resistência exaltava. Talvez
não cessassem de bater quando uma voz ofegante, que rapidamente se aproximava exclamou:

— O quê! O quê! Temos uma traição! É preciso que eu lá vá... aguente-se, senhor
Girard!

A alguns passos de distância apareceu um homem alentado, agitando uma espécie de


maça cujos efeitos os assaltantes não tardaram a sentir.

Aproveitando esta diversão, Girard tornou a si, levantou-se e armado de um cacete


verdadeiro, apanhado no campo de batalha, entrou de novo em combale.

Desta vez os moços de Santo André, muitos dos quais tinham recebido sérias contusões,
acharam que a luta se tornava grave; deitaram a fugir levando consigo os estropiados.

— É ainda aquele ferrabrás do Hermano — dizia um deles. — Donde diabo saiu ele?
Se não fosse o seu auxílio, não era o parisiense que saía a salvo desta.

Excitado pela luta e pelo desejo de vingança, Leão queria recomeçar o combate.

Receando que os adversários voltassem outra vez à carga, Hermano não lho consentiu.
Pegou-lhe pelo braço e obrigou-o a internar-se no bosque, onde em razão do escuro, toda a
perseguição se tomou impossível.

Puseram-se a caminho silenciosamente. Os de Santo André iam por outro lado


resmungando.

Finalmente, Girard, que ficara muito maltratado, disse ao seu companheiro:

— Mais devagar, Hermano. Palavra que me fizeram num feixe. Acho-me no estado em
que se achava D. Quixote, depois de certo encontro com os arrieiros... Por minha fé que
chegaste a propósito!... Já te julgava de volta a Rivecourt.

— Para lhe dizer a verdade, senhor Leão, eu já desconfiava. Por isso pus-me a andar
devagar e quando vi aqueles vadios na estrada, desconfiei que lhe queriam fazer alguma.
Ocultei-me com uma sebe, espreitei-os, e assim que o atacaram, deitei a correr...
— E salvaste-me a vida, Hermano, porque aqueles brutos davam bordoada de cego. O
teu mérito é tanto maior quanto menos te tenho poupado há certo tempo para cá, e agora
oferecia-se uma bela ocasião de te vingares sem o menor risco para ti... Bem, não me
esquecerei.

Estes elogios talvez o desvanecessem, mas Hermano não respondeu nada.

Como já não receavam novo ataque, meteram outra vez pela estrada e aproximaram-se
coxeando de Rivecourt.

No momento de aí chegarem, Hermano disse ao seu companheiro:

— Decerto que amanhã o sr. Leão vai queixar-se daquelas boas peças à gendarmeria.

— Nisso é que te enganas; não me queixarei de ninguém, e nem me gabarei do que se


passou... Rogo-te até que fales nisso o menos possível. Ninguém vai dizer que apanhou
bordoada, apesar de haver pago com usura aos que lhe deram!

— Mas porque não se hão de castigar aqueles bandidos?

— Porque eu não merecia outra coisa — replicou o artista um pouco corrido... —


Contanto que a lição me aproveite!... Mas receio muito que nada me sirva!...

— Puseram-no em mísero estado e o senhor há de sentir-se por muito tempo!

— Também muitos deles vão amassados por ti e por mim... Adeus! Tenho lá em casa
dois ou três frascos de água de colónia que me hão de servir para banhar as pisaduras.
Façamos o menor barulho possível, com esta história, todos nós ganharemos com isso.

— Que homem! — Murmurou Hermano.

Quando o artista ia a entrar para o seu quarto, Hermano disse-lhe com brandura:

— A chave da sua cómoda, senhor Leão.

Entregou-lhe a chave.

— Está bom — disse Girard.

Depois foi pôr compressas de água de colónia nas suas numerosas contusões.

Chegou finalmente o dia em que Leão Girard devia definitivamente deixar a aldeia de
Rivecourt.
As suas pinturas no palácio estavam concluídas. Não tinha mais a fazer do que voltar a
Paris, para aí se entregar a trabalhos à altura do seu talento.

Logo de manhã, Hermano principiou a acondicionar os volumes e a pregar os caixotes.

Apesar da alegria que aquela retirada lhe devia causar, o tanoeiro parecia mais
sombrio que nunca.

Girard aproveitou um momento em que ambos fatigados, descansavam sentados nas


malas, para dizer com o seu bom humor habitual.

— Ora bem, Hermano, tu hás de com certeza estar contente? Parto e o teu suplício vai
cessar... Palavra, que é tempo de isto acabar para ti! Andas para aí amarelo como uma cidra
e não tens senão a pele em cima do osso. Há oito meses que não dormes um sono a valer...
Sim, eu tratei-te com rigor; martirizei-te de todos os modos mas não podia proceder de outra
maneira.

— Portanto sr. Leão — disse Hermano com os olhos baixos, — posso esperar que... o
sr. não me denunciará.

Estas palavras eram uma confissão e a primeira que fazia, porque se deve ter notado
que até àquele momento, nem uma palavra lhe escapara que parecesse mostrar a verdade das
acusações que lhe faziam.

O artista tomou um ar grave:

— Isso dependerá de ti, Hermano — replicou. — Depois de te atormentar bastante,


podia impor-te a obrigação de venderes os teus bens e expatriar-te.

Mas principio a crer que realmente procederas daqui por diante como homem de bem.
Demais, salvaste-me a vida na floresta de Santo André, e essa boa ação deve ter uma
recompensa... Continua, pois, a habitar Rivecourt e a viver ali pelo trabalho, como em outros
tempos. Talvez eu nunca torne a pôr os pés nesta aldeia; entretanto, recorda-te bem das
minhas palavras. Apesar de ausente andarei informado das tuas insignificantes ações, várias
pessoas, que tu não conheces, hão de me participar o teu modo de proceder, à primeira
suspeita grave que se levantar contra ti, ver-me-ás aqui aparecer. Hás de então achar-me tão
inexorável como me achas agora indulgente. Fica pois prevenido, Hermano, ao menor passo
inconveniente que deres, ai de ti!

— Está dito, sr. Leão — retorquiu Hermano, — não me tornarei a descuidar. Já não
quero mais... O sr. pôs-me no caminho direito e não saio dele.

— Assim espero... Conheces-me agora e sabes que nada me assusta... Anda agora
sempre em tinha reta, porque, ainda que eu tivesse de te fazer saltar os miolos, um novo
crime da tua parte não ficará impune, juro-te!

Instantes depois, um belo char-à-bancs, pertencente ao serviço do palácio, parava no


pátio para transportar Leão à mais próxima estação do caminho de ferro.

Uma parte da população de Rivecourt viera assistir a retirada daquele parisiense que
inspirava sentimentos tão diversos na terra.

As mulheres, principalmente, e as mais bonitas, eram em grande número. Entre elas


achavam-se por exemplo, Teresa, tendo ao lado o esposo, a viúva Lourenço com o seu novo
marido João Pedro.

Ambas, assim como um bom número das suas companheiras, sentiam uma aflição que se
esforçavam por ocultar e todas olhavam umas para as outras com desconfiança.

Leão despediu-se delas dizendo-lhes ao ouvido uma palavra que as outras não ouviam.

No momento de subir para o carro, despediu-se dos homens que estavam presentes.

Chegando a Hermano disse-lhe em voz baixa:

— Adeus, Hermano, lembra-te!...

— Terei todo o cuidado de não me esquecer — retorquiu Hermano no mesmo tom.

Notando a alteração da sua voz, o pintor olhou para ele com atenção. Hermano tinha as
feições contraídas pela mágoa. Lágrimas como punhos, lágrimas de aflição e de saudade,
deslizavam-lhe pelas faces queimadas do sol.

Explique quem puder esta singularidade, esta contradição humana! Hermano amava o
jovem estouvado, que lhe devassara os terríveis segredos, que o atormentara
desapiedadamente durante oito longos meses, e que ainda neste momento o ameaçava com
uma incessante e oculta vigilância. É porque efetivamente as índoles rudes e ferozes, como a
sua, submetem-se de bom grado a uma superioridade física e moral, energicamente afirmada.

Assim o tigre e o leão acaba por amar o domador que o protege com barras de ferro,
que o priva do alimento e do sono, que o chicoteia. Até se tem visto estes ferozes animais
defenderem o seu dono num momento de perigo, ou morrerem de pesar quando o perdem.

Hermano não tornou necessária uma intervenção do artista nos seus negócios e viveu
como homem de bem.

Apenas, quando se proferia diante dele o nome de Leão Girard, dizia num tom de
enternecimento, de respeito e de temor:

— Que homem!... Afinal, aquilo e que é um homem às direitas!

FIM

Ficha técnica

Título: O crime de Rivecourt.


Autor: Élie Berthet.
Edição digital: (zero papel), agosto de 2012.
Ortografia usada: Variante europeia. Em conformidade com o acordo ortográfico da
língua portuguesa de 16 de dezembro de 1990.
Índice
I — O serão na aldeia
II — O parisiense
III — O ataque
IV — A devassa
V — Um chá
VI — O domador
VII — A cilada

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