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BIBLIOTECA DE c1ÊNc1As socl/us _ _


SOC lÍOI..()GI/-\
_ Textos escolhndos de
Alfred Schutz
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Organização e introdução
_ de Helmut R. Wagner

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2 O MUNDO DA VIDA 7")

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contra um fundo ou horizonte mais ou menos desarticulado. A
O MUNDO DA VIDA r “atitude natural” não conhece esses problemas. Para ela, o mundo
e', desde o início, não o mundo privado do indivíduo, mas um
mundo intersubjetivo, comum a todos nós, no qual não temos um
interesse teórico, mas um interesse eminentemente prático. O
mundo da vida cotidiana é a cena e também o objeto de nossas
acões e interacões. Temos de dominá-lo e modificá-l_o de forma
.\ _;

a realizar os propósitos que buscamos dentro dele, entre nossos


semelhantes. Assim, trabalhamos e operamos não só dentro do,
O Mundo da Attitude Natural mas também sobre o, mundo. Nossos movimentos corporais --
os cinéticos, os de locomoção, os de operação --~ afetam, por assim
Começamos com uma análise do mundo da vida coti- dizer, o mundo, modificando ou mudando seus objetos e seus
diana que o homem totalmente alerta e adulto que age sobre relacionamentos mútuos. Por outro lado, esses objetos oferecem
ele e sobre e entre seus semelhantes vivencia como realidade resistência a nossos atos e temos de vencê-los ou de nos confor-
na “atitude natural”. marmos com ela. Nesse sentido, pode-se dizer com certeza que
“O mundo da vida cotidiana” significará o mundo intersub- um motivo pragmático governa a nossa atitude natural com re-
jetivo que existia muito antes do nosso nascimento, vivenciado e lação ao mundo da vida cotidiana. Mundo, nesse sentido, é algo
interpretado por outros, nossos predecessores. como um mundo que temos de modificar, através de nossas ações, ou que modi-
l; ica nossas ações.
organizado. Ele agora se dá à nossa experiência e interpretação.
Toda interpretação desse mundo se baseia num estoque de expe-
riências anteriores dele, as nossas próprias experiências e aquelas
que nos são transmitidas por nossos pais e professores, as quais. ¡_-
-4
Situação Biográƒica Determinada
na forma de “conhecimento à mão”, funcionam como um código
de referência. Todo momento da vida de um homem e a situação
A esse estoque de experiências “à mão” pertence o nosso biográfica determinada em que ele se encontra, isto o ambiente
«conhecimento de que 0 mundo em que Vivemos é um mundo de l
físico e sócio-cultural conforme definido por ele, dentro do qual
objetos bem delimitados, com qualidades definidas, objetos entre ele tem a sua posição, não apenas posição em termos de espaço
-os quais nos movimentamos, que nos resistem, e em relação aos físico e tempo exterior, ou de seu status e papel dentro do s_is-
quais podemos agir. Para a “atitude natural", o mundo não 6. tema social, mas também sua posição moral e ideológica. Dizer
nem nunca foi, um aglomerado de pontos coloridos, barulhos que essa definição da situação é determinada em termos biográ-
incoerentes, regiões de frio e de calor. A análise filosófica ou psi- ficos significa dizer que ela tem a sua história; é a sedimen-
-cológica da constituição de nossas experiências pode, mais tarde, tação de todas as expe1°iências -anteriores desse homem, organi-
em retrospectiva, descrever de que modo elementos desse mun- zadas de acordo com as posses “habituais” de seu estoque de
conhecimento à mão, que como tais são posses unicamente dele,
do afetam os nossos sentidos, de que modo os percebemos passi-
va, indistinta e confusamente, de que modo, através da apercepçäo _' dadas a ele e a ele somente. Essa situação biográfica determinada
ativa, nossa mente isola certos traços do campo de percepção, inclui certas possibilidades de atividades teóricas ou práticas fu-
concebendo-os como coisas bem delineadas nitidamente em realce, tura-s. que chamaremos de “propósito à mão”. É esse propósito
à mão que define que elementos, dentre todos os outros contidos
r numa dada situação, são relevantes para esse propósito. Esse “sis-
Transcrito dos seguintes itens da Bibliografia: 19450, 533-34; 19530, 6; tema de relevâncias”, por sua vez, determina que elementos dc-
1_959a, 77-79; 1944, 500-501.. vem ser transformados no substrato de uma tipificação genera-

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74 FUNDAMENTOS DA FENoMENoLoc1A
O MUNDO DA '\‹'ll)A /'l

lizada, quais desses traços devem ser selecionados como caractc- H


nsticas tipicas e quais outros como exclusivos e individuais... que rejeitam os outros princípios do pragmatismo, espet-ialim-nlr .1
sua teoria da verdade. Na realidade, mesmo dentro dos Iimilm
restritos do conhecimento do senso comum da vida coli‹lizmz|, u
referência a “interesses”, “problemas” e “relevâncias" não (-
Estoque de Conhecimento explicação suficiente. Todos esses termos são apenas nomes qm-_
se dão a assuntos altamente complicados e que exigem um vs
O homem, na vida diária... tem a qualquer mo- tudo mais aprofundado.
mento um estoque de conhecimento à mão que lhe serve como Em segundo lugar, deve-se salientar que o estoque de co-
um código de interpretações de suas experiências passadas e pre- nhecimento existe num fluxo contínuo e muda de qual-
sentes, e também determina sua antecipação das coisas que virão. quer Agora para o seguinte, não só em termos de extensão
Esse estoque de conhecimento tem sua história particular. Foi como também de estrutura. Está claro que qualquer experiência
constituído de e por atividades anteriores de experiência de nossa posterior o enriquece e alarga. Através da referência ao estoque
consciência, cujo resultado tornou-se agora uma posse nossa, habi- de conhecimento à mão, num determinado Agora, a experiência
tual. Husserl, ao descrever o processo constitutivo que isso en- I
l atual em curso aparece como “familiar”, se está relacionada por
volve, fala, esquematicamente, de “scdimentação do significado”. meio de uma “síntese de reconhecimento” a alguma experiência
Por outro lado, esse estoque de conhecimento à mão não é anterior, nos modos de “igualdade”, “semelhança", “similarida-
nada homogêneo, mas apresenta uma estrutura especial. lá aludi de”, “analogia”, etc. A experiência em curso pode, por exemplo,
à distinção de William Iames entre “conhecimento sobre” e “co- 1
_! ser identificada com uma experiência anterior “igual, que se re-
nhecimento por familiaridade”. Há um núcleo relativamente pe- pete”, ou com uma experiência anterior “igual_, mas modificada”,
queno de conhecimento que é claro, distinto e consistente. Esse ou, ainda, como uma experiência de um tipo semelhante ao de
núcleo é cercado de zonas de gradação variada de vagueza, obs- alguma já vivenciada, e assim por diante. Ou. então, a expe-
curidade e ambigüidade. A essas se seguem zonas de preconceitos, riência em curso aparece como “estranha”, no caso de nem ao
crendices cegas, puras suposições, mera adivinhacão, zonas de menos remeter a um tipo à mão de experiência anterior. Em
4'-.+nz, 44
ambos os casos, o estoque de conliecimento à mão que serve
coisas nas quais basta “acreditar”. E, finalmente, existem regiões
como código de interpretação da experiê11c.ia atual em curso. Essa
que ignoramos completamente. . .
referência a atos já vivenciados pressupõe memória, e todas as
Primeiro, vamos considerar o que determina a estruturação suas funções, tais como lembrança, retenção, reconhecimento.
do estoque de conhecimento num determinado Agora. Pode-se co- /

meçar dizendo que é o sistema de nosso interesse prático ou teó-


rico nesse momento específico que determina não só o que pro-
blemático e o que pode permanecer inquestionável, mas também O Caráter do Conhecintento Prático
o que deve ser conhecido, e com que grau de clareza e precisão
deve ser conhecido, para a resolução do problema em causa. . . . o conhecimento do homem que age e pensa dentro
Neutras palavras, é o problema em particular do qual nos ocupa- do mundo de sua vida cotidiana não é homogêneo; é 1) incoe-
mos que subdivide nosso estoque de conhecimento à mão em rente; 2) apenas parcialmente claro' e 3) não está livre de con-
l tradiçoes.
A-4
3

zonas diferentes de relevância para a sua solução e estabelece,


assim, os limites das várias zonas do nosso conhecimento mencio- 1. É incoerente porque os interesses do indivíduo, que de-
nadas acima, ou seja, zonas de nitidez e de vagueza, de clareza terminam a relevância dos objetos que ele seleciona porque acha
e obscuridade, de precisão e ambigüidade. Aqui está a chave para que deve conhecer melhor, não são eles próprios integrados num
a interpretação pragmática da natureza do nosso conhecimento,
j. sistema coerente. Eles são apenas em parte organizadosem plz|‹
cuja validade relativa tem de ser reconhecida mesmo por aqueles nos de qualquer tipo, co1no, por exemplo, planos de vida, plzmoê:
de trabalho e lazer, planos relativos a qualquer papel social

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76 FUNDAMENTOS DA 1=ENoMENoLoc1A

assumido. Mas a hierarquia desses planos muda com a situação e


com o crescimento da personalidade; os interesses mudam conti-
nuamente e provocam uma transformação ininterrupta na forma
e no conteúdo das linhas de relevância. Não só muda a seleção ll. O Cenário Cognitive do l\/lundo da Vida
dos objetos a serem conhecidos, mas também o grau de conheci-
mento que sobre eles se almeja.
2. Na vida diária é só parcialmente -- e, ousamos dizer,
excepcionalmente -- que o homem se interessa pela clareza de
seu conhecimento, isto é, por uma visão mais profunda das re-
lações entre os elementos desse mundo e os princípios gerais
que as regulam. Ele se satisfaz com o fato de haver um bom
serviço de telefone a seu dispor e, normalmente, não pergunta
os detalhes do funcionamento do aparelho ou que leis de Física
possibilitam seu funcionamento. Ele compra uma mercadoria na
loja sem saber como é produzida e paga com dinheiro, embora
tenha apenas uma vaga idéia do que o dinheiro realmente seja.
Para ele, é ponto pacífico que seu semelhante vai compreender o
l l
seu pensamento, se expresso em linguagem simples, e vai respon- ij' |
I
der de acordo, sem imaginar como pode se explicar esse desem-
penho milagroso. Além de tudo, ele não procura a verdade e não
questiona a certeza. Tudo o que quer é informação sobre possibi-
lidades, e visão das chances e riscos que a situação à mão acar-
reta com relação ao resultado de suas ações. Que o metrô fun-
cione amanhã, como normalmente, é para ele uma possibilidade
quase da mesma ordem que a de que o Sol vai se levantar. Se,
em razão de algum interesse especial, ele precisar de mais conhe-
cimento sobre um determinado assunto, existe uma prestativa
civilização moderna que coloca à sua disposição uma cadeia de
balcões de informações e bibliotecas de referência.
3. Finalmente, seu conhecimento não é consistente. Ao
mesmo tempo, ele pode considerar igualmente válidas afirmações
que, na realidade, são incompatíveis uma com a outra. Como pai,
cidadão, empregado e membro de uma igreja, um homem pode
ter as mais diferentes e incongruentes opiniões sobre temas mo-
rais, políticos ou econômicos. Essa inconsistência não se origina
necessariamente de uma falha lógica. Simplesmente, o pensamen-
to das pessoas se espalha por assuntos situados em níveis dife-
rentes e de relevância diferente, e elas não têm consciência das
modificações que teriam de fazer para passar de um nível a outro.

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3

IN'I`EIiPRETAÇAO SOCIAL
E ORIENTAÇÃO INDIVIDUAL

Ii. A Concepção Social da Comunidade


e do Indivíduo

o MUNDO soc1AL como Pnnssturosro Vamos par-


tir de um exame das articulações e formas de organizações do
mundo social que constituem a realidade social das pessoas -que
nele vivem.. A pessoa nasce num mundo que existia antes de seu
nascimento e que, logo de partida, não é um mundo simples-
mente físico, mas também um mundo sócio-cultura_l. Esse último
é um mundo pré-constituído e pré-organizado, cuja estrutura espe-
cial é resultado de um processo histórico e diferente, portanto,
em cada cultura ou sociedade. `
zu

Certos traços, contudo, sao comuns a todos os mundos so-


ciais porque enraízam-se na condição humana. Em toda parte
encontramos grupos de sexo e grupos de idade, e alguma divisão
de trabalho por eles condicionada; e organizações de parentesco
mais ou menos rígidas, que ordenam o mundo social em zonas
de proximidade variável, desde a intimidade familiar até à estra-
nheza. Em toda parte encontramos também hierarquias de supe-
rioridade e subordinação, de líder e seguidor, dos que estão no
poder e dos que são subjugados. Em toda parte, também, encon-
tramos um estilo de vida aceito, isto é, um modo de se chegar a
termos com as coisas e as pessoas, com o natural e com
o sobrenatural. Além disso, há em toda parte objetos culturais,
tais como instrumentos necessários para dominar o mundo exte-
rior, brinquedos para as crianças, artigos para adorno, instrumen-
tos musicais de um ou outro tipo, objetos que servemrcomo
símbolos sagrados. Existem certas cerimônias que marcam os
grandes acontecimentos no ciclo de vida do indivíduo (nascimento.

Transcrito dos seguintes itens da Bibliografia: l957a, 36-38; 1944, 501-2;


1957a, 57-60, 52-54; 1-944,502-4, 505-7; .1957a, 61.

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80 o cr-tNÁR¡o coc-N1'r1vo Do MUNDO DA v1DA 1NTERmu3'rAçÃo soc1AL E oR11zNTAçÃo INDIVIDUA1. 81

ciação, casamento, morte), ou no ritmo da natureza (plantio sistente e apenas parcialmente claro, como é -- toma, para os
colheita, solstícios, etc.) . . .
('DÍ:ã' membros do grupo interno, um aspecto de coerência, clareza e
Assim, o mundo social no qual o homem nasce e tem de consistência suficientes para que todos tenham uma chance ra-
achar seu caminho é por ele vicenciado como uma rede fina de zoável de compreender e ser compreendidos. Qualquer pessoa
relacionamentos sociais, de sistemas de signos e de símbolos com nascida ou criada dentro do grupo aceita o esquema ready-made
sua estrutura de significados particular, de formas institucionali- estandardizado do padrão cultural que lhe é transmitido pelos
zadas de organização social, de sistemas de status e prestígio, etc. antecessores, professores e autoridades, como um guia não-ques-
O significado de todos esses elementos do mu_ndo social, em toda tionado e inquestionável para todas as situações que normalmente
a sua diversidade e estratificação, assim como o padrão de sua ocorrem dentro do mundo social. O conhecimento associado ao
própria textura, é tido como pressuposto pelas pessoas que nele padrão cultural traz sua evidência em si próprio --- ou, em vez
vivem. A soma total dos aspectos relativamente naturais, que o disso, é tido como pressuposto, na falta de evidência do con-
mundo social tem- para as pessoas que nele vivem, constitui, trário. E um conhecimento de receitas certas para interpretar o
para usar uma expressão de William Graham Sumner, os costu- mundo social e para lidar com pessoas e coisas de forma a
mes do “grupo interno”, que são socialmente aceitos como as obter, em cada situação, os melhores resultados possíveis com o
formas boas e corretas de se confrontar coisas e pessoas. São mínimo esforço, evitando conseqüências indesejáveis. A receita
vistos como pressupostos porque se provaram eficientes até então funciona, de um lado, como preceito para as ações e, assim,
e. sendo socialmente aprovados, são vistos como fatos que dis- serve como um código de expressão: quem quiser obter um
pensam explicaçao ou justificativa.
as

i certo resultado tem de proceder conforme indicado pela receita


Esses costumes constituem a herança social que é transmi- dada para tal propósito. De outro lado, a receita serve como um
tida às crianças que nascem e crescem dentro do grupo... código de interpretação: supõe-se que quem procede de acordo
Isso é assim porque 0 sistema de costumes estabelece um com as indicações de uma determinada receita pretende obter o
padrão em termos do qual o grupo interno “define a sua situação”. resultado correspondente. Assim, é função do padrão cultural
Mais que isso: originado de situações anteriores, definidas pelo eliminar pesquisas problemáticas, oferecendo instruções ready-
grupo, o código de interpretação que até então mostrou-se efi- made para o uso, substituindo a verdade, difícil de alcançar,
ciente torna-se elemento da situação atual. Assumir o mundo por truísmos confortáveis, e substituindo o questionável por aqui-
como pressuposto, inquestionável, implica a hipótese profunda- lo que se “auto-explica”.
mente enraizada no senso comum de que até segunda ordem o Esse “pensar como sempre”, como se pode chamá-lo, corres-
mundo vai continuar sendo, essencialmente. da mesma maneira ponde à idéia de Max Scheler da “concepção relativamente na-
como foi até aqui; aquilo que se provou válido até agora conti- tural do mundo” (relativ natiirliche Weltanschauung); 1 ela inclui
nuará a sê-lo, e qualquer coisa que nós, ou outros como nós, as suposições “óbvias” relevantes para um determinado grupo
pudemos realizar com êxito anteriormente poderá ser realizada social, o qual Robert S. Lynd descreve de modo brilhante --- bem
de novo, de modo semelhante, e trará resultados essencialmente como suas contradições e ambivalências inerentes -- como 0
semelhantes. “espírito de Middletown”. O pensar como sempre pode ser man-
tido enquanto certas suposições básicas permanecerem verdadei-
AUTO-INTERPRETAÇÃQ DA COMUNIDADE CULTURAL "' ras ou, mais precisamente: 1) enquanto a vida, e especialmente'
O sistema de conhecimento assim adquirido - incoerente, incon- a vida social, continuar a ser a mesma que foi até então,,o que

* Nota do organizador: Tendo discutido as características e limitações do 1 Max Scheler, “Probleme einer Soziologie des Wissens”, Die Wissensƒormen
conhecimento prático do homem sobre assuntos cotidianos (ver “O Caráter :md die Gesellschaƒt (Leipzig, 1926), pp. 58 e seguintes; cf. Howard Becker
do Conhecimento Prático” no cap. 2, acima), Schutz voltou-se para os funda- c I--lellmuth Otto Dahlke, “Max Scheler's Sociology of Knowledge”, Philo-
mentos sociais desse conhecimento individual, conforme se encontram no s‹›¡›z'r_v and Phenomenological Research, 2 (1942): 310-22, especialmente
sistema cognitivo do “grupo interno”, a comunidade cultural. |›. 31.5.

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82 ¿ os cI-3I×IAnIo cocnrrivo Do MUNDO Dxevirm.
/ .

INTI-:nPRETAçÃo socIAL E ORIENTAÇÃO 1NDIvIDUAL 83

vale dizer que os mesmos problemas, requerendo as mesmas so- Nossa descrição vale tanto para: a) grupos “existenciais”
luções, ressurgirão e que, portanto, nossas experiências anteriores com os quais compartilho uma herança social; e b) os chamados
serão suficientes para dominar situações futuras; 2) enquanto pu- grupos voluntários, que eu formo ou aos quais me associo. No
dermos confiar_ no conhecimento que nos é transmitido por pais, entanto, existe a diferença de que, no primeiro caso, o membro
professores, governos, tradições, hábitos, etc., mesmo se não en- individual se encontra dentro de um sistema de tipificações, papéis,
tendemos sua origem e signifitcado real; 3) enquanto, no decor- posições e status pré-constituído, e não estabelecido por ele, dado
rer normal das coisas, for suficiente conhecer um pouco o tipo a ele como herança social. No caso de grupos voluntários, porém,
ou estilo geral dos acontecimentos que podemos encontrar em esse sistema não é vivenciado pelo membro individual 'como
nosso mundo da vida, de forma que possamos dominá-los ou con- ready-made; ele tem de ser construído pelos membros e por isso
trolá-los; te 4) enquanto nem o sistema de receitas como códigos sempre envolve um processo dinâmico de evolução. No início,
somente alguns dos elementos da situação são comuns; os outros
de interpretação e expressão nem as suposições básicas que os
sustentam, mencionadas acima, forem de nossa esfera pessoal, têm de ser produzidos através de uma definição comum da si-
na

tuaçao comum.
mas do mesmo modo aceitos e aplicaclos pelos nossos seme-
lhantes. Isso implica um problema da maior importância. Como de-
fine o membro individual de um grupo a sua situação particular
com relação ao quadro comum de tipificações e relevâncias em
o SIGNIFICADO SUBJETIVO Do PERTENCER A UM GRUPO termos do qual o grupo define a sua situação? Mas, antes de
O significado subjetivo do grupo, o significado que um grupo buscarmos a resposta, faz-se necessária uma advertência.
tem para os seus membros, é freqüentemente descrito como um Nossa descrição é puramente formal e não se refere nem à
sentimento entre os membros de que eles pertencem ao conjunto, natureza dos laços que unem o grupo nem à extensão, duração
ou de que compartilham interesses comuns. Está certo, mas, infe- ou intimidade do contato social. Aplica-se, portanto, tanto a um
lizmente, esses coiiceitos foram apenas parcialmente analisados ou, casamento quanto a uma associação comercial, à associação a
mais precisamente, apenas no que diz respeito a comunidade c um clube de xadrez ou à cidadania de uma nação, à participação
associação (Maclver), Genzemsclzaƒt e Gesellschaƒt (Toennies), numa conferência ou na cultura ocidental. Cada um desses gru-
grupos primários e secundários (Cooley), e assim por diante... pos, entretanto, refere-se a um grupo maior, do qual é um ele-
o significado subjetivo que o grupo tem para os seus mento. Um casamento ou uma empresa comercial, é claro, ocorre
membros consiste em seu conhecimento de uma situação comum dentro do quadro geral que é o contexto cultural do grupo maior
e, com ela, de um sistema comum de tipificações e relevâncias. e de acordo com o estilo de vida (inclusive seus costumes, moral,
Essa situação tem a sua história, da qual participam as biografias leis, etc.) predominante nessa cultura, estilo de vida esse que é
dos membros individuais; e o sistema de tipificações e relevân- dado aos atores individuais como um código de orientação e
cias que determina a situação forma uma “concepção relativa- interpretação para as suas ações. Contudo, cabe aos membros do
mente natural do mundo” comum. Aqui, os membros, indivi- casamento, ou sócios da empresa comercial, definir e constante-
dualmente, estão à vontade, isto encontram seu caminho sem mente redefinir sua situação individual (privada) dentro desse
contexto.
dificuldade, no meio comum, guiados por um conjunto de recei-
tas de hábitos, costumes, normas, etc., mais ou menos institucio- Essa é, obviamente, a razão principal por que, para Max
nalizados, que os ajudam a viver em liarmonia com seres e seme- Weber, a existência do casamento, ou do Estado, não significa
lhantes pertencentes à mesma situação. O sistema de tipificações mais que a mera chance (possibilidade) de as pessoas agirem ou
e relevâncias compartilhado com os outros membros do grupo virem a agir de uma forma específica -- ou, na terminologia que
define os papéis sociais, as posições e o status de cada um. Essa usa em seu texto, de acordo com 0 quadro geral de tipificações e
aceitação de um sistema comum de relevãncias leva os iiicmbros relevâncias aceitas sem questionamento pelo meio sócio-cultural
do grupo a uma autotipificação homogênea. uni questão. Tal quadro geral é vivenciado pelos membros indi-

h-l-`.R.S.
84 O OENÃRIO cooNITIVo DO MUNDO DA VIDA Av ,Ú

INTERPRETAÇAO SOOIAL E ORIENTAÇAO INDIVIDUAL 85

viduais como de institucionalizações a serem interiorizadas, e O diversos grupos sociais. Como vimos, é apenas com relação à
indivíduo tem de definir a sua situação pessoal única usando O participação em grupos voluntários, e não em grupos “existen-
padrão institucionalizado para a realização de seus interesses pes- ciais”, que O indivíduo está livre para escolher dc que grupo
soais particulares. quer ser membro e de que papel social quer ser incumbido. No
Temos aqui um aspecto da definição privada da situação de entanto, pelo menos um aspecto da liberdade do indivíduo é o
membro do indivíduo. Um corolário dele é a atitude particular fato de poder escolher por si mesmo com que parte de sua perso-
que O indivíduo escolhe adotar com relação ao papel social que nalidade quer participar dos grupos; O fato de poder definir sua
tem de desempenhar dentro do grupo. Uma coisa é O significado situação dentro do papel do qual está incumbido; e de poder
objetivo do papel social e a expectativa com relação ao papel estabelecer sua própria ordem privada de relevâncías, na qual
conforme definida pelo padrão institucionalizado (digamos, cargo cada participação nos vários grupos tem O seu lugar.
da presidência dos Estados Unidos); outra coisa, o modo parti-
cular subjetivo como O indivíduo incumbido desse papel define
a sua situação dentro dele (a interpretação de Roosevelt, Truman.
II. Perspectivas Externas e Internas
Eisenhovver de sua missão).
O elemento mais importante na definição da situação pri-
VISÃO DO GRUPO EXTERNO -- VISÃO DO GRUPO INTER-
vada é, contudo, O fato de que O indivíduo sempre é 1n.e1IilJÍr'o
de numerosos grupos sociais. Como mostrou Simmel, cada indi- NO Os membros do grupo externo não Vêm O estilo de Vida
víduo se situa na interseção de diversos círculos sociais, e o seu do grupo interno como verdades evidentes. Nenhum artigo de fé
e nenhuma tradição liistórica os compromete a aceitar como
número será maior quanto mais diferenciada for a personalidade
do indivíduo. Isso acontece porque O que faz uma personalidarie certo e bom O modo de ser de qualquer grupo que não seja O
única é precisamente aquilo que não pode ser repartido com Os seu. Não só O seu “mito central”, mas também os seus proces-
sos de racionalização e institucionalização são diferentes. Outros
outros. .
deuses revelam outros códigos do certo e do bom, outras coisas
O De acordo com Simmel, O grupo formado por um pIƒoccs.ͬ'o são sacras e tabu, são outras as proposições assumidas por “Di-
através do qual muitos indivíduos unem partes de suas persona- reito Natural”.2 O estranho mede os padrões que dominam no
lidades -- impulsos específicos, interesses, forças -- enquanto O grupo em questão de acordo com O sistema de relevâncias que
que cada personalidade realmente é permanece fora dessa áre_a predomina no “aspecto natural do mundo” segundo O seu grupo
comum. Os grupos são caracteristicamente diferentes de acordo de origem. Enquanto não se puder achar uma fórmula de trans-
com as personalidades totais dos membros e as partes de suas formação que permita O transplante do sistema de relevâncias c
personalidades com as quais participam no grupo... Na dtzfi- tipificações que dominam no grupo em questão para aquele do
nição do indivíduo de sua situação particular, os vários papeis grupo de origem, O modo de ser do primeiro permanece incom-
sociais que se originam desse pertencer múltiplo a grupos di- preensível; mas e, freqüentemente, considerado de valor menor e
versos são vivenciados como um conjunto de tipificações que inferior.
são, por sua vez, ordenadas segundo uma hierarquia privada de
domínios de relevância, cujo fluxo, é claro, é contínuo. .possível Esse princípio se aplica, embora em menor grau, também ao
que exatamente esses traços da personalidade do indivíduo, que caso de relacionamento entre dois grupos que têm muitas coisas
são, para ele, da mais alta ordem de relevância, sejam irrelevantes em comum, isto é, onde os dois sistemas coincidem numa me-
do ponto de vista de qualquer sistema de relevâncias tido como dida considerável. Por exemplo, emigrantes judeus do Iraque têm
pressuposto pelo grupo do qual ele é membro. Isso pode levar a grande dificuldade em compreender que suas práticas de poliga-
conflitos na personalidade, gerados principalmente devido ao es-
forço de preencher as várias, freqüentemente incompatíveis, expec- 9 T. V. Smith, em The American Philosophy oƒ Eqaality (Chicago, 1927) _,
p. 6, indicou que Locke usou O “Estado da Natureza e a Igualdade” para
tativas de papéis correspondentes à participação do indivíduo nos dcstronar tiranos e Hobbes para colocar no trono O “Deus mortal”.
86 O OENÃRIO cOoNIT1vo DO IVIUNDODA VIDA INTnRPRETAçAO socIAL E ORIENTAÇAO INDIVIDUAL
.nm ,Q

87

mia e casamento entre crianças não sejam permitidas pelas leis do altamente detestáveis. Em termos mais gerais, ao “aspecto
de Israel, O lar nacional dos judeus. Outro exemplo encontra-se natural do mundo” segundo O grupo A soma-se não só uma certa
nas discussões na assembléia francesa, em 1789, depois que La- idéia estereotipada do “aspecto natural do mundo” segundo O
fayette submeteu seu primeiro esboço da Declaração dos Direitos grupo B, mas também um estereótipo do Inodo como O grupo B
Humanos, modelado segundo O padrão americano. Diversos Ora- supostamente vê O grupo A. Em grande escala -- isto é, no
dores referiram-se às diferenças básicas entre a sociedade ameri- relacionamento entre grupos -- esse é O mesmo fenômeno que,
cana e a francesa: a situação de um país novo, de colônia que com respeito às relações entre indivíduos, Coolcy chamou de
cnrijeceu seu relacionamento com a matriz, não pode ser compa- “efeito de espelho”.
rada com a de um país que usufruiu vida constitucional própria Tal situação pode levar a várias atitudes por parte do grupo
durante quatorze séculos. O princípio de igualdade teria uma interno com relação ao grupo externo: O grupo interno pode
função e um significado inteiramente diferentes no contexto histó- manter sua adesão ao seu estilo de Vida e tentar mudar a ati-
rico de cada um dos dois países; a distribuição igual da riqueza
tude do grupo externo por meio de um processo de educação,
e O estilo de vida igualitário na América permitem a aplicação de disseminação de informação ou de persuasão e de propaganda
da ideologia igualitária, a qual teria as mais desastrosas conse-
apropriada. Ou O grupo interno pode tentar ajustar O seu modo-
qüências se aplicadas à sociedade francesa, altamente diferen-
de pensar ao do grupo externo, aceitando O padrão de relevân-
ciada.3
cias -deste último pelo menos parcialmente. Ou, ainda, pode-se
Entretanto, é importante entender que a auto-interpretação estabelecer uma política de cortina de ferro, ou de pacificação e,
pelo grupo interno e a interpretação pelo grupo interno da “con- finalmente, O último meio de se desfazer O círculo vicioso, a
cepção natural do mundo” dos grupos externos são freqüente- guerra, em qualquer nível. Pode haver uma conseqüência secun-
mente interligadas, e isso de uma maneira dupla. dária se, por exemplo, os membros do grupo interno que defen-
a) De um lado, O grupo interno freqüentemente sente-se dem uma política de entendimento mútuo são acusados pelos
mal compreendido pelo grupo externo; essa incapacidade de com- porta-vozes do etnocentrismo radical de desleais, traidores, etc.,
preender seu estilo de Vida, assim sente O grupo interno, deve O que, mais uma vez, levaria a uma alteração na auto-interpre-
estar enraizada em preconceitos hostis, ou em má fé, já que as tação do grupo social.
Verdades tidas pelo grupo interno são como “coisas óbvias”,
“evidentes” e, portanto, compreensíveis para qualquer ser huma-
no. Esse sentimento pode levar a uma alteração parcial no sis-
tema de relevâncias que domina dentro do grupo interno, ou seja,
originar uma solidariedade em resistência à crítica externa.
O grupo externo é, então, visto com repugnância, nojo, aversão,
antipatia, ódio ou medo.
b) De outro lado, estabelece-se um círculo viciosO,4 por-
que O grupo externo, através da reação alterada do grupo interno,
fortifica sua interpretação dos traços do grupo interno como sen-

3 Eric Voegelin, “Der Sinn der Erklãrung der Menschen -- und Bürgerrechte
von 1789”, Zeitschriƒt ƒiir öƒƒentlíches Recht, 8 (1928): 82-120.
tt Sobre O problema do círculo vicioso dos preconceitos, Ver R. M. Maclver,
The More Perfect Union (Nova York, 1948), especialmente as pp. 68-81,
e também O memorando do Secretário-Geral das Nações Unidas, The Main
Types and Causes of Discriminatiou, Documento E/Cn 4/Sub 2/40/Rev.
de 7 de junho de 1949, seções 56 e seguintes.

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