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Organização e introdução
_ de Helmut R. Wagner
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RIO DE IANEIRO
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contra um fundo ou horizonte mais ou menos desarticulado. A
O MUNDO DA VIDA r “atitude natural” não conhece esses problemas. Para ela, o mundo
e', desde o início, não o mundo privado do indivíduo, mas um
mundo intersubjetivo, comum a todos nós, no qual não temos um
interesse teórico, mas um interesse eminentemente prático. O
mundo da vida cotidiana é a cena e também o objeto de nossas
acões e interacões. Temos de dominá-lo e modificá-l_o de forma
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74 FUNDAMENTOS DA FENoMENoLoc1A
O MUNDO DA '\‹'ll)A /'l
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IN'I`EIiPRETAÇAO SOCIAL
E ORIENTAÇÃO INDIVIDUAL
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80 o cr-tNÁR¡o coc-N1'r1vo Do MUNDO DA v1DA 1NTERmu3'rAçÃo soc1AL E oR11zNTAçÃo INDIVIDUA1. 81
ciação, casamento, morte), ou no ritmo da natureza (plantio sistente e apenas parcialmente claro, como é -- toma, para os
colheita, solstícios, etc.) . . .
('DÍ:ã' membros do grupo interno, um aspecto de coerência, clareza e
Assim, o mundo social no qual o homem nasce e tem de consistência suficientes para que todos tenham uma chance ra-
achar seu caminho é por ele vicenciado como uma rede fina de zoável de compreender e ser compreendidos. Qualquer pessoa
relacionamentos sociais, de sistemas de signos e de símbolos com nascida ou criada dentro do grupo aceita o esquema ready-made
sua estrutura de significados particular, de formas institucionali- estandardizado do padrão cultural que lhe é transmitido pelos
zadas de organização social, de sistemas de status e prestígio, etc. antecessores, professores e autoridades, como um guia não-ques-
O significado de todos esses elementos do mu_ndo social, em toda tionado e inquestionável para todas as situações que normalmente
a sua diversidade e estratificação, assim como o padrão de sua ocorrem dentro do mundo social. O conhecimento associado ao
própria textura, é tido como pressuposto pelas pessoas que nele padrão cultural traz sua evidência em si próprio --- ou, em vez
vivem. A soma total dos aspectos relativamente naturais, que o disso, é tido como pressuposto, na falta de evidência do con-
mundo social tem- para as pessoas que nele vivem, constitui, trário. E um conhecimento de receitas certas para interpretar o
para usar uma expressão de William Graham Sumner, os costu- mundo social e para lidar com pessoas e coisas de forma a
mes do “grupo interno”, que são socialmente aceitos como as obter, em cada situação, os melhores resultados possíveis com o
formas boas e corretas de se confrontar coisas e pessoas. São mínimo esforço, evitando conseqüências indesejáveis. A receita
vistos como pressupostos porque se provaram eficientes até então funciona, de um lado, como preceito para as ações e, assim,
e. sendo socialmente aprovados, são vistos como fatos que dis- serve como um código de expressão: quem quiser obter um
pensam explicaçao ou justificativa.
as
* Nota do organizador: Tendo discutido as características e limitações do 1 Max Scheler, “Probleme einer Soziologie des Wissens”, Die Wissensƒormen
conhecimento prático do homem sobre assuntos cotidianos (ver “O Caráter :md die Gesellschaƒt (Leipzig, 1926), pp. 58 e seguintes; cf. Howard Becker
do Conhecimento Prático” no cap. 2, acima), Schutz voltou-se para os funda- c I--lellmuth Otto Dahlke, “Max Scheler's Sociology of Knowledge”, Philo-
mentos sociais desse conhecimento individual, conforme se encontram no s‹›¡›z'r_v and Phenomenological Research, 2 (1942): 310-22, especialmente
sistema cognitivo do “grupo interno”, a comunidade cultural. |›. 31.5.
vale dizer que os mesmos problemas, requerendo as mesmas so- Nossa descrição vale tanto para: a) grupos “existenciais”
luções, ressurgirão e que, portanto, nossas experiências anteriores com os quais compartilho uma herança social; e b) os chamados
serão suficientes para dominar situações futuras; 2) enquanto pu- grupos voluntários, que eu formo ou aos quais me associo. No
dermos confiar_ no conhecimento que nos é transmitido por pais, entanto, existe a diferença de que, no primeiro caso, o membro
professores, governos, tradições, hábitos, etc., mesmo se não en- individual se encontra dentro de um sistema de tipificações, papéis,
tendemos sua origem e signifitcado real; 3) enquanto, no decor- posições e status pré-constituído, e não estabelecido por ele, dado
rer normal das coisas, for suficiente conhecer um pouco o tipo a ele como herança social. No caso de grupos voluntários, porém,
ou estilo geral dos acontecimentos que podemos encontrar em esse sistema não é vivenciado pelo membro individual 'como
nosso mundo da vida, de forma que possamos dominá-los ou con- ready-made; ele tem de ser construído pelos membros e por isso
trolá-los; te 4) enquanto nem o sistema de receitas como códigos sempre envolve um processo dinâmico de evolução. No início,
somente alguns dos elementos da situação são comuns; os outros
de interpretação e expressão nem as suposições básicas que os
sustentam, mencionadas acima, forem de nossa esfera pessoal, têm de ser produzidos através de uma definição comum da si-
na
tuaçao comum.
mas do mesmo modo aceitos e aplicaclos pelos nossos seme-
lhantes. Isso implica um problema da maior importância. Como de-
fine o membro individual de um grupo a sua situação particular
com relação ao quadro comum de tipificações e relevâncias em
o SIGNIFICADO SUBJETIVO Do PERTENCER A UM GRUPO termos do qual o grupo define a sua situação? Mas, antes de
O significado subjetivo do grupo, o significado que um grupo buscarmos a resposta, faz-se necessária uma advertência.
tem para os seus membros, é freqüentemente descrito como um Nossa descrição é puramente formal e não se refere nem à
sentimento entre os membros de que eles pertencem ao conjunto, natureza dos laços que unem o grupo nem à extensão, duração
ou de que compartilham interesses comuns. Está certo, mas, infe- ou intimidade do contato social. Aplica-se, portanto, tanto a um
lizmente, esses coiiceitos foram apenas parcialmente analisados ou, casamento quanto a uma associação comercial, à associação a
mais precisamente, apenas no que diz respeito a comunidade c um clube de xadrez ou à cidadania de uma nação, à participação
associação (Maclver), Genzemsclzaƒt e Gesellschaƒt (Toennies), numa conferência ou na cultura ocidental. Cada um desses gru-
grupos primários e secundários (Cooley), e assim por diante... pos, entretanto, refere-se a um grupo maior, do qual é um ele-
o significado subjetivo que o grupo tem para os seus mento. Um casamento ou uma empresa comercial, é claro, ocorre
membros consiste em seu conhecimento de uma situação comum dentro do quadro geral que é o contexto cultural do grupo maior
e, com ela, de um sistema comum de tipificações e relevâncias. e de acordo com o estilo de vida (inclusive seus costumes, moral,
Essa situação tem a sua história, da qual participam as biografias leis, etc.) predominante nessa cultura, estilo de vida esse que é
dos membros individuais; e o sistema de tipificações e relevân- dado aos atores individuais como um código de orientação e
cias que determina a situação forma uma “concepção relativa- interpretação para as suas ações. Contudo, cabe aos membros do
mente natural do mundo” comum. Aqui, os membros, indivi- casamento, ou sócios da empresa comercial, definir e constante-
dualmente, estão à vontade, isto encontram seu caminho sem mente redefinir sua situação individual (privada) dentro desse
contexto.
dificuldade, no meio comum, guiados por um conjunto de recei-
tas de hábitos, costumes, normas, etc., mais ou menos institucio- Essa é, obviamente, a razão principal por que, para Max
nalizados, que os ajudam a viver em liarmonia com seres e seme- Weber, a existência do casamento, ou do Estado, não significa
lhantes pertencentes à mesma situação. O sistema de tipificações mais que a mera chance (possibilidade) de as pessoas agirem ou
e relevâncias compartilhado com os outros membros do grupo virem a agir de uma forma específica -- ou, na terminologia que
define os papéis sociais, as posições e o status de cada um. Essa usa em seu texto, de acordo com 0 quadro geral de tipificações e
aceitação de um sistema comum de relevãncias leva os iiicmbros relevâncias aceitas sem questionamento pelo meio sócio-cultural
do grupo a uma autotipificação homogênea. uni questão. Tal quadro geral é vivenciado pelos membros indi-
h-l-`.R.S.
84 O OENÃRIO cooNITIVo DO MUNDO DA VIDA Av ,Ú
viduais como de institucionalizações a serem interiorizadas, e O diversos grupos sociais. Como vimos, é apenas com relação à
indivíduo tem de definir a sua situação pessoal única usando O participação em grupos voluntários, e não em grupos “existen-
padrão institucionalizado para a realização de seus interesses pes- ciais”, que O indivíduo está livre para escolher dc que grupo
soais particulares. quer ser membro e de que papel social quer ser incumbido. No
Temos aqui um aspecto da definição privada da situação de entanto, pelo menos um aspecto da liberdade do indivíduo é o
membro do indivíduo. Um corolário dele é a atitude particular fato de poder escolher por si mesmo com que parte de sua perso-
que O indivíduo escolhe adotar com relação ao papel social que nalidade quer participar dos grupos; O fato de poder definir sua
tem de desempenhar dentro do grupo. Uma coisa é O significado situação dentro do papel do qual está incumbido; e de poder
objetivo do papel social e a expectativa com relação ao papel estabelecer sua própria ordem privada de relevâncías, na qual
conforme definida pelo padrão institucionalizado (digamos, cargo cada participação nos vários grupos tem O seu lugar.
da presidência dos Estados Unidos); outra coisa, o modo parti-
cular subjetivo como O indivíduo incumbido desse papel define
a sua situação dentro dele (a interpretação de Roosevelt, Truman.
II. Perspectivas Externas e Internas
Eisenhovver de sua missão).
O elemento mais importante na definição da situação pri-
VISÃO DO GRUPO EXTERNO -- VISÃO DO GRUPO INTER-
vada é, contudo, O fato de que O indivíduo sempre é 1n.e1IilJÍr'o
de numerosos grupos sociais. Como mostrou Simmel, cada indi- NO Os membros do grupo externo não Vêm O estilo de Vida
víduo se situa na interseção de diversos círculos sociais, e o seu do grupo interno como verdades evidentes. Nenhum artigo de fé
e nenhuma tradição liistórica os compromete a aceitar como
número será maior quanto mais diferenciada for a personalidade
do indivíduo. Isso acontece porque O que faz uma personalidarie certo e bom O modo de ser de qualquer grupo que não seja O
única é precisamente aquilo que não pode ser repartido com Os seu. Não só O seu “mito central”, mas também os seus proces-
sos de racionalização e institucionalização são diferentes. Outros
outros. .
deuses revelam outros códigos do certo e do bom, outras coisas
O De acordo com Simmel, O grupo formado por um pIƒoccs.ͬ'o são sacras e tabu, são outras as proposições assumidas por “Di-
através do qual muitos indivíduos unem partes de suas persona- reito Natural”.2 O estranho mede os padrões que dominam no
lidades -- impulsos específicos, interesses, forças -- enquanto O grupo em questão de acordo com O sistema de relevâncias que
que cada personalidade realmente é permanece fora dessa áre_a predomina no “aspecto natural do mundo” segundo O seu grupo
comum. Os grupos são caracteristicamente diferentes de acordo de origem. Enquanto não se puder achar uma fórmula de trans-
com as personalidades totais dos membros e as partes de suas formação que permita O transplante do sistema de relevâncias c
personalidades com as quais participam no grupo... Na dtzfi- tipificações que dominam no grupo em questão para aquele do
nição do indivíduo de sua situação particular, os vários papeis grupo de origem, O modo de ser do primeiro permanece incom-
sociais que se originam desse pertencer múltiplo a grupos di- preensível; mas e, freqüentemente, considerado de valor menor e
versos são vivenciados como um conjunto de tipificações que inferior.
são, por sua vez, ordenadas segundo uma hierarquia privada de
domínios de relevância, cujo fluxo, é claro, é contínuo. .possível Esse princípio se aplica, embora em menor grau, também ao
que exatamente esses traços da personalidade do indivíduo, que caso de relacionamento entre dois grupos que têm muitas coisas
são, para ele, da mais alta ordem de relevância, sejam irrelevantes em comum, isto é, onde os dois sistemas coincidem numa me-
do ponto de vista de qualquer sistema de relevâncias tido como dida considerável. Por exemplo, emigrantes judeus do Iraque têm
pressuposto pelo grupo do qual ele é membro. Isso pode levar a grande dificuldade em compreender que suas práticas de poliga-
conflitos na personalidade, gerados principalmente devido ao es-
forço de preencher as várias, freqüentemente incompatíveis, expec- 9 T. V. Smith, em The American Philosophy oƒ Eqaality (Chicago, 1927) _,
p. 6, indicou que Locke usou O “Estado da Natureza e a Igualdade” para
tativas de papéis correspondentes à participação do indivíduo nos dcstronar tiranos e Hobbes para colocar no trono O “Deus mortal”.
86 O OENÃRIO cOoNIT1vo DO IVIUNDODA VIDA INTnRPRETAçAO socIAL E ORIENTAÇAO INDIVIDUAL
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mia e casamento entre crianças não sejam permitidas pelas leis do altamente detestáveis. Em termos mais gerais, ao “aspecto
de Israel, O lar nacional dos judeus. Outro exemplo encontra-se natural do mundo” segundo O grupo A soma-se não só uma certa
nas discussões na assembléia francesa, em 1789, depois que La- idéia estereotipada do “aspecto natural do mundo” segundo O
fayette submeteu seu primeiro esboço da Declaração dos Direitos grupo B, mas também um estereótipo do Inodo como O grupo B
Humanos, modelado segundo O padrão americano. Diversos Ora- supostamente vê O grupo A. Em grande escala -- isto é, no
dores referiram-se às diferenças básicas entre a sociedade ameri- relacionamento entre grupos -- esse é O mesmo fenômeno que,
cana e a francesa: a situação de um país novo, de colônia que com respeito às relações entre indivíduos, Coolcy chamou de
cnrijeceu seu relacionamento com a matriz, não pode ser compa- “efeito de espelho”.
rada com a de um país que usufruiu vida constitucional própria Tal situação pode levar a várias atitudes por parte do grupo
durante quatorze séculos. O princípio de igualdade teria uma interno com relação ao grupo externo: O grupo interno pode
função e um significado inteiramente diferentes no contexto histó- manter sua adesão ao seu estilo de Vida e tentar mudar a ati-
rico de cada um dos dois países; a distribuição igual da riqueza
tude do grupo externo por meio de um processo de educação,
e O estilo de vida igualitário na América permitem a aplicação de disseminação de informação ou de persuasão e de propaganda
da ideologia igualitária, a qual teria as mais desastrosas conse-
apropriada. Ou O grupo interno pode tentar ajustar O seu modo-
qüências se aplicadas à sociedade francesa, altamente diferen-
de pensar ao do grupo externo, aceitando O padrão de relevân-
ciada.3
cias -deste último pelo menos parcialmente. Ou, ainda, pode-se
Entretanto, é importante entender que a auto-interpretação estabelecer uma política de cortina de ferro, ou de pacificação e,
pelo grupo interno e a interpretação pelo grupo interno da “con- finalmente, O último meio de se desfazer O círculo vicioso, a
cepção natural do mundo” dos grupos externos são freqüente- guerra, em qualquer nível. Pode haver uma conseqüência secun-
mente interligadas, e isso de uma maneira dupla. dária se, por exemplo, os membros do grupo interno que defen-
a) De um lado, O grupo interno freqüentemente sente-se dem uma política de entendimento mútuo são acusados pelos
mal compreendido pelo grupo externo; essa incapacidade de com- porta-vozes do etnocentrismo radical de desleais, traidores, etc.,
preender seu estilo de Vida, assim sente O grupo interno, deve O que, mais uma vez, levaria a uma alteração na auto-interpre-
estar enraizada em preconceitos hostis, ou em má fé, já que as tação do grupo social.
Verdades tidas pelo grupo interno são como “coisas óbvias”,
“evidentes” e, portanto, compreensíveis para qualquer ser huma-
no. Esse sentimento pode levar a uma alteração parcial no sis-
tema de relevâncias que domina dentro do grupo interno, ou seja,
originar uma solidariedade em resistência à crítica externa.
O grupo externo é, então, visto com repugnância, nojo, aversão,
antipatia, ódio ou medo.
b) De outro lado, estabelece-se um círculo viciosO,4 por-
que O grupo externo, através da reação alterada do grupo interno,
fortifica sua interpretação dos traços do grupo interno como sen-
3 Eric Voegelin, “Der Sinn der Erklãrung der Menschen -- und Bürgerrechte
von 1789”, Zeitschriƒt ƒiir öƒƒentlíches Recht, 8 (1928): 82-120.
tt Sobre O problema do círculo vicioso dos preconceitos, Ver R. M. Maclver,
The More Perfect Union (Nova York, 1948), especialmente as pp. 68-81,
e também O memorando do Secretário-Geral das Nações Unidas, The Main
Types and Causes of Discriminatiou, Documento E/Cn 4/Sub 2/40/Rev.
de 7 de junho de 1949, seções 56 e seguintes.