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A Constituição de 1988

Uma Constituição de esperança

Jorge Miranda

Sumário
I – A transição constitucional: 1. Poder cons-
tituinte material e poder constituite formal; 2. A
relação necessária de uma e outra manifestação
de poder constituinte; 3. A transição constitucio-
nal, modo de exercício do poder constituinte;
4. Revolução e transição; 5. A continuida-
de formal do ordenamento; 6. A transição
constitucional brasileira; 7. A Assembleia
Constituinte. II  –  A Constituição de 1988:
8. Os princípios fundamentais; 9. Os direitos
fundamentais; 10. A organização económica; 11.
A organização do poder político; 12. O plebiscito
de 1993; 13. A fiscalização da constitucionalida-
de; 14. A frustrada revisão constitucional; 15.
Um juízo global sobre a Constituição.

I – A transição constitucional
1. Qualquer Constituição pressupõe um
poder constituinte material como poder
de auto‑organização e auto‑regulação do
Estado. E este poder é um poder originá-
rio, expressão da soberania do Estado na
ordem interna ou perante o seu próprio
ordenamento (MIRANDA, 2002, p. 355 et
seq.; 2003, p. 87 et seq.).
Mas qualquer Constituição moderna
implica também um poder constituinte
formal como poder do Estado de atribuir
às normas constitucionais uma forma ade-
quada e de lhes atribuir uma força jurídica
específica diante das demais normas.
Com efeito, por um lado:

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a) O factor determinante da abertura de princípios para ficar definido o quadro da
cada era constitucional é, não a aprovação vida colectiva; o estatuto do Estado1 carece
de uma Constituição formal (ou a redacção de uma Constituição formal; traçar este
de uma Constituição instrumental), mas o estatuto comporta opções jurídico‑políticas
corte ou a contraposição frente à situação de importância central;
ou ao regime até então vigente, em nome de b) Quer a ideia de Direito (ou o desígnio,
uma nova ideia de Direito ou de um novo o projecto, o carácter do regime) se desenhe
princípio de legitimidade, seja por meio de com muito vigor e nitidez, quer se ofereça
revolução, seja por outro meio; mais ou menos vaga ou fluida, não pode
b) A entidade determinante do conteúdo deixar de ser interpretada, concretizada,
fundamental de uma Constituição é a enti- convertida em regras de comportamento
dade – força política ou social, movimento e de relação (relação entre o Estado e os
militar ou popular, monarca, outro órgão cidadãos, relação entre os futuros órgãos
ou grupo – que assim vai inflectir a ordem de poder), em regras que compõem a Cons-
preexistente e assumir a inerente responsa- tituição formal;
bilidade histórica; c) Até à Constituição formal os órgãos
c) Tal entidade, ora pode convocar ou de poder aparecem como órgãos provi-
estabelecer uma assembleia, um colégio, sórios ou transitórios e os seus actos de
outro órgão com vista à elaboração da decisão política como tendo validade ou
Constituição formal, ora, porventura, ser eficácia condicionada a futura confirmação
ela logo a decretá‑la; ou convalidação; e, quando se trate de um
d) O órgão que elabora e decreta a Cons- novo regime democrático, as “grandes
tituição formal é solidário da ideia de Direi- reformas de fundo” deverão situar‑se no
to, do desígnio, do projecto correspondente âmbito de futuro órgão democraticamente
à ruptura ou à inflexão e não poderia con- constituído;
tradizer ou alterar essa ideia, esse desígnio, d) Se o Direito ordinário criado entre
esse projecto sem nova ruptura ou inflexão, o momento da ruptura ou da inflexão da
sem se transformar em entidade originária ordem anterior e o da entrada em vigor
de uma diferente Constituição material; da nova Constituição formal não pode ser
e) Aliás, mesmo se a ideia de Direito é de submetido (por estar ou ter de se pressupor
democracia pluralista, o órgão encarregado que está de acordo com a nova ideia de
de fazer a Constituição formal não goza Direito) a tratamento igual ao do Direito
de uma margem de liberdade plena; não editado no regime precedente, nem por
adstrito, decerto, a um determinado e único isso é menos seguro que só a Constituição
sistema de direitos fundamentais, de orga- representa o novo fundamento do ordena-
nização económica, de organização política mento jurídico;
ou de garantia da constitucionalidade, está e) O poder constituinte ou a soberania
sujeito a um limite – o da coerência com o do Estado não se manifesta só no momento
princípio democrático e da sua preservação inicial ou no primeiro acto do processo,
(não pode estabelecer uma Constituição nem só no momento final de decretação da
não democrática). Constituição formal; manifesta‑se no enlace
Não significa isto, contudo, que a elabo- de todos os actos e no conjunto de todos os
ração da Constituição formal redunde em órgãos que neles intervêm.
algo despiciendo ou acessório, porquanto, 2. São duas faces da mesma realidade.
por outro lado: Ou dois momentos que se sucedem e com-
a) Não basta, com a civilização da lei pletam, o primeiro em que o poder consti-
escrita e com o constitucionalismo, uma 1
Ressalvando sempre, de novo, o caso particular
qualquer ideia ou um qualquer conjunto de da Grã‑Bretanha.

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tuinte é só material, o segundo em que é, difícil de registar (ou de fixar, com todo o
simultaneamente, material e formal2. rigor) o momento da mudança de regime
O poder constituinte material precede ou de Constituição material.
o poder constituinte formal. Precede‑o Não deve, no entanto, ter‑se por pouco
logicamente, porque a ideia de Direito relevante. A evolução política inglesa do
precede a regra de Direito, o valor comanda Estado estamental para a monarquia cons-
a norma, a opção política fundamental a titucional e da predominância da Câmara
forma que elege para agir sobre os factos, dos Lordes para a da Câmara dos Comuns
a legitimidade a legalidade. E precede‑o reconduz‑se, no fundo, a uma prolongada
historicamente, porque há quase sempre transição. E talvez mais sugestivas, porque
dois tempos no processo constituinte, o do ocorridas em períodos breves, são, entre
triunfo de certa ideia de Direito ou do nas- outras, a outorga da Carta Constitucional
cimento de certo regime e o da formalização portuguesa por D. Pedro IV (D. Pedro I do
dessa ideia ou desse regime; e o que se diz Brasil) em 1826; a instauração do fascismo
da construção de um regime político vale na Itália de 1922 a 1925; a passagem da IV
também para a formação e a transformação à V República em França em 1958; a con-
de um Estado. sagração de regimes de partido único em
Em segundo lugar, o poder constituinte África nos anos 60 e 70; a restauração da
material envolve o poder constituinte for- democracia na Grécia em 1974; a “reforma
mal, porquanto (assim como a Constituição política” espanhola de 1976‑1978.
formal contém uma referência material) Refiram‑se também as transições de
este é, por seu turno, não menos um poder regimes militares, ou de base militar, para
criador de conteúdo valorável a essa luz. regimes constitucionais democráticos no
Não somente o poder constituinte formal Peru, de 1977 a 1979, na Argentina, de 1982
complementa e especifica a ideia de Direito a 1983, no Brasil, de 1985 a 1988, e no Chi-
como é, sobretudo, através dele que se de- le, de 1988 a 1990; a transição do domínio
clara e firma a legitimidade em que agora de um partido hegemónico para a plena
assenta a ordem constitucional. competitividade política, no México; a tran-
Confere, pois, o poder constituinte for- sição de regimes marxistas‑leninistas para
mal estabilidade e garantia de permanência regimes pluralistas na Hungria, na Polónia
e de supremacia hierárquica ou sistemática e na Bulgária, em 1989 e 1990; a transição
ao princípio normativo inerente à Consti- na Nicarágua em 1990; a abertura ao plu-
tuição material. Confere estabilidade, visto ralismo político em S. Tomé e Príncipe,
que a certeza do Direito exige o estatuto Cabo Verde, Moçambique, Guiné‑Bissau e,
da regra. Confere garantia, visto que só a de certo modo, Angola no início dos anos
Constituição formal coloca o poder cons- 90; a passagem do apartheid ao regime de-
tituinte material (ou o resultado da sua mocrático multi‑racial na África do Sul; a
acção) ao abrigo das vicissitudes da legis- passagem, na Venezuela, da Constituição
lação e da prática quotidiana do Estado e de 1961 à Constituição de 1999.
das forças políticas. 4.  Na revolução há uma necessária
3. Menos estudado do que a revolução sucessão de Constituições – materiais e
vem a ser o fenómeno que apelidamos de formais. A ruptura com o regime prece-
transição constitucional. Menos estudado, dente determina logo o nascimento de
não só por até há poucos anos ser muito uma nova Constituição material, a que se
menos frequente mas também por ser mais segue, a curto, a médio ou a longo prazo,
2
Ou ainda: primeiro, há um poder constituinte
a adequada formalização.
material não formal; depois, um poder constituinte Na transição ocorre sempre um dua-
material formal. lismo. Pelo menos, enquanto se prepara a

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nova Constituição formal, subsiste a ante- impor‑se como fundamento de legalidade
rior, a termo resolutivo; e nada impede que mas ainda obter efectividade.
o mesmo órgão funcione simultaneamente 5. Como explicar, entretanto, a continui-
como órgão de poder constituído à sombra dade formal do ordenamento, sem ruptura?
da Constituição prestes a desaparecer e Uma resposta interessante, a respeito da
como órgão de poder constituinte com vista nova Constituição brasileira, é avançada
à Constituição que a vai substituir. por Tércio Sampaio Ferraz Júnior.
O processo de transição é, na maior par- Segundo este Autor, a distinção entre
te das vezes, insusceptível de configuração poder constituinte originário e derivado
a priori, dependente das circunstâncias his- funciona como regra de calibração. A ideia
tóricas. Outras vezes adopta‑se o processo de um poder autónomo, inicial e incondi-
de emenda ou de revisão constitucional; cionado, contraposto a um poder – direito
e pode até suceder que a Constituição derivado, tem também um carácter crip-
admita expressamente formas agravadas tonormativo. E uma “figuração” que está
de emenda ou revisão para se alterarem na base, que regula, que calibra o sistema,
princípios fundamentais da Constituição permitindo reconhecer de um lado uma
e, portanto, para se transitar para uma nova fonte principal de direito que, uma vez
Constituição. exaurida a sua função fundamental, deixa
Nem se conteste a autonomia do concei- à norma posta a instauração das relações
to, sugerindo que se reconduz, no fundo, de subordinação. Graças a esta distinção, é
a golpe de Estado. Não é assim, pois na possível uma regulação do sistema...
transição constitucional se observam as Que acontece quando o receptor pro-
competências e as formas de agir instituí- mulga uma emenda que altera o relato da
das: o Rei absoluto, por o ser, julga poder norma que lhe confere competência? Apa-
autolimitar‑se, tal como uma assembleia rentemente, ele cumpre a norma e engendra
pode ser autorizada por uma lei formal- um paradoxo. Na verdade, porém, isto não
mente conforme com a Constituição previ- ocorre. Porquê? Porque, ao promulgar a
gente a decretar uma nova Constituição. emenda alterando o relato da norma que
Dir‑se‑á que, de qualquer sorte, existe autoriza os procedimentos para emendar,
desvio ou excesso de poder, visto que a o receptor (poder constituído) põe-se como
um órgão criado por certa Constituição emissor (poder constituinte). Isto é, já não
está vedado, por natureza, suprimi‑la ou é a norma que autoriza os procedimentos
destrui‑la (pois nemo plus juri transfere potest de emenda que está a ser accionada, mas
quam habet). Mas esse desvio de poder só se outra, com o mesmo relator, mas com ou-
dá do prisma da Constituição anterior; não do tro emissor e outro receptor. E uma norma
prisma da nova Constituição, que, precisa- nova, uma norma-origem.
mente, surge com a decisão de abrir cami- Quando o Congresso Nacional promul-
nho ou deixar caminho aberto à mudança ga uma emenda, conforme os arts. 47o e 48o
de regime. E nisto consiste – em paralelo da Constituição de 1969, emenda que altera
com o que se verifica com a revolução – o os próprios artigos, não é a norma dos arts.
exercício do poder constituinte originário. 47o e 48o que está a ser utilizada, mas outra,
Em última análise, uma transição cons- pois o poder constituído já assumiu o poder
titucional produz‑se, porque a velha legiti- constituinte.
midade se encontra em crise, e justifica‑se Nem toda a norma-origem integra o
porque emerge uma nova legitimidade. E sistema na sua coesão... No caso, porém,
é a nova legitimidade ou ideia de Direito invoca-se uma regra de calibração: o Con-
que obsta à arguição de qualquer vício gresso Nacional, bem ou mal, representa o
no processo e que, doravante, vai não só povo... Esta regra de calibração é que per-

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mite integrar a norma‑origem no sistema, o poderia um Congresso ordinário, formado
qual, assim, se mantém em funcionamento, à sombra da Constituição de 1967‑1969,
trocando, porém, o seu padrão: do pa- atribuir poder constituinte – quer dizer,
drão‑legalidade para o padrão-efectividade para fazer nova Constituição – ao Congres-
(MIRANDA, 1988, p. 7 et seq.). so a eleger em 15 de Novembro de 1986 e
6. Ao contrário da Constituição portu- a reunir no 1o de Fevereiro de 1987? Como
guesa de 1976, saída de uma revolução, a poderia um Congresso ordinário criar uma
Constituição de 1988 nasceu de uma tran- Assembleia Constituinte? Tal só foi possível
sição constitucional (Cf. MIRANDA, 1987, porque, a partir de Janeiro de 1985, o Brasil
p. 29; WACHOWICZ, 2000). E quando é já estava em fase constituinte, já estava
que ocorreu essa transição, quando é que desencadeado o processo conducente à
ocorreu o exercício do poder constituinte Constituição formal que haveria de ser
material. aprovada em 1988.
Num sentido muito amplo, decerto a Também na Espanha, a passagem do
transição tem de ser compreendida a par- regime franquista para a actual monarquia
tir de um processo relativamente longo, parlamentar não se verificou em 1978, com
de quase três anos. Contudo, o momento o referendo sobre a nova Constituição;
decisivo, o que assinalou a viragem polí- deu‑se logo em 1976, quando o Rei (Rei,
tica fundamental, o que marcou o fim da segundo as Leis fundamentos do General
ditadura militar foi a eleição do candidato Franco) nomeou um Governo para efectuar
a Presidente da República, proposto pela aquilo a que se chamou a “transição políti-
Oposição ao regime militar, pelo colégio ca”. Assim como, por exemplo, na Polónia
eleitoral em Janeiro de 1985. ou em S. Tomé e Príncipe, em Moçambique,
Com efeito, o que se havia verificado em Cabo Verde e na Guiné‑Bissau, a pas-
até então tinha sido sempre a sucessão sagem do regime de partido único para a
de Generais‑Presidentes, indicados pelas democracia viria a registar‑se com a decisão
Forças‑Armadas ao colégio eleitoral. Ora, desse partido único de se abrir ao pluralis-
em Janeiro de 1985, em vez de ser eleito o mo. Ou, na África do Sul, o fim do apartheid
candidato identificado com o regime (aliás, não veio com a Constituição de 1996; veio
pela primeira vez, um civil), foi eleito o antes, com os acordos de Nelson Mandela
Candidato apoiado pelo Partido do Mo- e Frederick De Klerck.
vimento Democrático Brasileiro e pelos 7.  De realçar, entretanto, uma parti-
dissidentes do partido governamental, e o cularidade da Assembleia Constituinte
regime aceitou o resultado, ou, pelo menos, brasileira de 1987‑1988.
não o recusou, não reagiu. Se o regime con- É que, a despeito do nome, a Emenda
tinuasse o mesmo (ou se tivesse margem de Constitucional não previu uma verdadei-
manobra, em face da situação política, eco- ra Assembleia Constituinte, ou seja, uma
nómica e social, para continuar o mesmo), Assembleia especificamente eleita para
não se teria resignado e teria encontrado elaborar e decretar uma Constituição,
forma para o tornar ineficaz (à semelhança dissolvendo-se terminada a sua obra (como
do que tem acontecido noutros países e à alguns chegaram a preconizar), e tivesse ela
semelhança do que, indirectamente, acon- apenas poderes constituintes ou também
teceu em Portugal em 1958 e 1959). poderes legislativos. O que previu foi um
Foi a resignação perante esse resultado, Congresso com poderes constituintes, que
e não a Emenda Constitucional no 26, de 27 funcionaria, ao mesmo tempo, como Con-
de Novembro (nem sequer a eliminação gresso ordinário e que, como Congresso
da legislação de carácter autoritário) que ordinário, permaneceria após a feitura da
envolveu a mudança de regime. Pois, como Constituição.

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E a escolha teve evidente significado o Brasil propugna pela formação de um
político e não meramente técnico. Se não Tribunal Internacional de Direitos Huma-
se tratava já de mais uma revisão consti- nos (art. 7o).
tucional tão pouco se tratava de criar, por Alguns dos princípios fundamentais
referência a qualquer legitimidade revo- são garantidos através de uma cláusula
lucionária uma nova Constituição. Daí a pétrea ou de limites materiais de revisão
subsistência da Constituição de 1967-1969, constitucional (art. 60, § 4o).
emendada, até à entrada em vigor da nova 9.  Diversamente de todas as anteriores
Constituição, em vez de um interregno ou Constituições brasileiras, a de 1988 ocupa-
de uma revogação ou abolição; daí o esta- se dos direitos fundamentais com priorida-
tuto não provisório do Congresso anterior de em relação as demais matérias.
à eleição e do Presidente da República; daí Além de direitos habitualmente enume-
a limitação imanente da soberania do Con- rados noutras Constituições, encontram-se
gresso eleito em 15 de Novembro de 1986. no longo art. 5o: a garantia de assistência
religiosa nas entidades civis e militares de
internação colectiva; a previsão de prazo,
II – A Constituição de 1988
nos termos da lei, para a prestação de in-
8. A Constituição de 1988 abre com um formação pelos poderes públicos; à qualifi-
preâmbulo (donde consta a invocação do cação do racismo e da tortura como crimes
nome de Deus) e com “princípios funda- inafiançáveis; o mandado de segurança
mentais”. colectivo (a impetrar por partidos políti-
Quatro notas se salientam aqui: cos, organizações sindicais ou de classe
1a) Declarar-se a República formada ou associações legalmente constituídas);
pela “união indissolúvel dos Estados e o mandado de injunção; a também nova
Municípios e do Distrito Federal” (art. figura do “habeas data” para conhecimento
1o), o que, indo ao encontro da realidade, de informações constantes de registos ou
aponta para um duplo grau de organização de bancos de dados de entidades públicas
territorial – federalismo a nível de Estados e para rectificação desses dados.
e regionalismo a nível de município; As normas definidoras dos direitos e
2a) Fundar-se o “Estado Democrático de garantias têm aplicação imediata (art. 5o, §
Direito” (mesmo art. 1o) na soberania, na 1o, idêntico ao art. 1o, no 3 da Constituição
cidadania, na dignidade da pessoa humana, alemã e ao art. 18o, no 1 da Constituição
nos valores sociais do trabalho e da livre portuguesa).
iniciativa e no pluralismo político; Os direitos sociais abrangem tanto a
3a) Proclamarem‑se grandes princípios educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a
do Direito internacional – independência segurança, a previdência social, a protecção
nacional, prevalência dos direitos humanos, à maternidade e à infância e a assistência
autodeterminação dos povos, não interven- aos desempregados como os direitos dos
ção, igualdade entre os Estados, defesa da trabalhadores atinentes à segurança do
paz, solução pacífica dos conflitos, repúdio emprego, ao salário, à associação sindical,
ao terrorismo e ao racismo, cooperação à greve e à participação (arts. 6o a 11). Mas
entre os povos para o progresso da huma- só muito mais à frente surge a “ordem
nidade, concessão de asilo político; social” (arts. 193 a 232), evidentemente
4a) Afirmar‑se um projecto de integração indissociável dos direitos sociais, mesmo
dos povos da América Latina. quando se traduz em garantias institucio-
O segundo e o terceiro pontos reflec- nais e incumbências do Estado. Dominam
tem alguma influência da Constituição aqui as normas programáticas, muitas
portuguesa. Em disposições transitórias, delas de difícil cumprimento até a longo

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prazo, pelo menos da mesma maneira num rendo e iniciativa popular, o abaixamento
país tão diversificado como o Brasil (e cuja da capacidade eleitoral activa para 16 anos
estrutura federativa deveria recomendar (embora só a partir dos 18 anos seja o voto
maior plasticidade). obrigatório e se verifique imputabilidade
Mas não pode esquecer-se que algumas penal) e a proibição de cassação. E, no
das normas atinentes a direitos são bem capítulo anexo dos partidos políticos, o
necessárias no contexto concreto do Bra- princípio da livre criação, a proibição de
sil: assim, a vedação da comercialização financiamento por entidades estrangeiras,
de órgãos, tecidos, substâncias humanas, a prestação de contas à justiça eleitoral, a
sangue e seus derivados (art. 199, § 4o); a exigência de normas de fidelidade e dis-
consideração, a par da segurança social, da ciplina partidária, o direito a recursos do
assistência social (art. 203); a gratuitidade e fundo partidário e o acesso gratuito à rádio
a gestão democrática do ensino público (art. e à televisão. A lei que alterar o processo
206, IV e VI); o acesso ao ensino obrigatório eleitoral só entrará em vigor um ano após
como direito público subjectivo (art. 208, § a sua promulgação (art. 16).
1o); a obrigação de recuperação do ambien- 10. A Constituição económica apresen-
te degradado após explorações mineiras ta-se moderadamente nacionalista, com
(art. 225, § 2o); a consideração da Floresta compromisso entre tendências liberais e
Amazónica como património nacional (art. estatizantes, e nem sempre em sintonia com
225, § 4o); a recondução do planejamento as incumbências assumidas pelo Estado na
familiar a livre decisão do casal, (art. 226, ordem social.
§ 7o); o apoio à adopção (art. 227, § 5o); o Prevê-se tratamento favorecido para as
reconhecimento da organização social e empresas brasileiras de capital nacional
cultural e a protecção das terras dos índios de pequeno porte (art. 170). É assegurado
(arts. 231 e 232). o livre exercício de qualquer actividade
E ainda: o pluralismo de ideias e de económica, independentemente de autori-
concepções pedagógicas e a coexistência zação, salvo nos casos previstos na lei; res-
de instituições públicas e privadas do salvados os casos previstos, na Constituição
ensino (art. 206, III); a possibilidade de os a exploração directa de actividade pelo
recursos públicos serem dirigidos a escolas Estado só será permitida quando necessária
comunitárias, confessionais e filantrópicas, aos imperativos da segurança nacional ou
sem fins lucrativos (art. 213); a considera- a relevante interesse colectivo (art. 173);
ção do ensino religioso facultativo como e as empresas públicas sujeitam-se ao
disciplina dos horários normais das escolas regime das empresas privadas (art. 173,
públicas do ensino fundamental (art. 210, § 1o). Todavia, o Estado exercerá funções
§ 1o); a proibição de qualquer censura po- de fiscalização, incentivo e planejamento
lítica, ideológica e artística (art. 220, § 1o); a (determinante para o sector público e indi-
criação de um Conselho de Comunicação cativo para o sector privado) e a lei reprime
Social (art. 224). o abuso do poder económico (arts. 174 e
Conexos com os direitos fundamentais 173, § 4o). São apoiadas e estimuladas as
são também a garantia institucional da ad- cooperativas e outras formas de associati-
vocacia (art. 131); a criação de Defensoria vismo (art. 174, § 2o).
Pública ao serviço dos necessitados (art. As desapropriações de imóveis urbanos
134); e as limitações ao poder de tributar, serão feitas com prévia e justa indemniza-
designadamente a não retroactividade das ção em dinheiro (art. 182, § 3o); as de imó-
leis criadoras de tributos (art. 150). veis rurais, para fins de reforma agrária,
No capítulo dos direitos políticos, mediante prévia e justa indemnização em
sobressaem a previsão de plebiscito, refe- títulos da dívida agrária, com cláusula de

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preservação do valor real, mas as benfeito- 12.  Na Constituinte havia uma larga
rias úteis e necessárias sê-lo-ão em dinheiro corrente parlamentarista. Manteve-se o
(art. 184). Serão, porém, insusceptíveis de sistema presidencial; mas, à luz duma fór-
desapropriação a pequena e média proprie- mula conciliatória, o Acto das Disposições
dade rural, desde que o seu proprietário Constitucionais Transitórias determinou a
não possua outra, e a propriedade produ- realização, em 7 de Setembro de 1993, dum
tiva (art. 185). plebiscito para se decidir o problema, e
11. A organização do poder político fe- também para se escolher entre república e
deral mantém-se fiel à divisão clássica dos monarquia (art. 2o).
três poderes e ao sistema presidencial, este Os resultados do plebiscito viriam a
algo controlado ou fiscalizado. ser favoráveis tanto ao presidencialismo
No Congresso, bicameral, a Câmara quanto à república e a Constituição deixou,
dos Deputados é eleita por 4 anos, por assim, de ser provisória no referente a es-
representação proporcional em cada Es- tes dois aspectos – aliás, fundamentais – a
tado e no Distrito Federal; e o Senado por partir de então.
representação majoritária, elegendo cada 13. Reconhecendo a experiência de con-
Estado e o Distrito Federal 3 Senadores, trolo da constitucionalidade vinda desde
com mandato de 8 anos. 1891, a Lei Fundamental de 1988 procuraria
O Congresso pode sustar os actos nor- aperfeiçoar e desenvolver o sistema e com-
mativos do Poder Executivo que exorbitem pletá-lo com novos institutos de controlo de
do poder regulamentário ou dos limites de inconstitucionalidade quer por acção quer
delegação legislativa (art. 49, V) e compete- por omissão, e tanto de controlo concreto
lhe autorizar referendos e convocar plebis- quanto de controlo abstracto.
citos (art. 49, XV). E são múltiplos os meios que se estabe-
O Presidente da República é eleito por lecem, muito para além dos constantes de
sistema de dois turnos (como em França outras Constituições:
e em Portugal), por 4 anos. A eleição do a) Fiscalização concreta a cargo de todos
Presidente importa a do Vice‑Presidente os tribunais (art. 97 da Constituição);
com ele registado. O Presidente é auxiliado b)  Julgamento pelo Supremo Tribunal
pelos Ministros de Estado, que referendam Federal de recursos extraordinários das
os seus actos e decretos e em quem ele pode causas decididas em única ou última ins-
delegar algumas das suas atribuições de tância, quando a decisão recorrida contra-
carácter administrativo. O Congresso, que riar dispositivos da Constituição, declarar
passa a eleger 2/3 dos membros do Tribu- a inconstitucionalidade de tratado ou lei
nal de Contas da União, pode convocar os federal ou julgar válida lei ou acto de gover-
Ministros para informações, sob pena de no local contestado em face da Constituição
responsabilidade (art. 50). (art. 102-III);
O poder judiciário compreende o Su- c)  Acção directa de inconstitucionali-
premo Tribunal Federal, o Superior Tri- dade de lei ou acto normativo federal ou
bunal de Justiça, os Tribunais Regionais estadual, a propor pelo Presidente da Re-
Federais e Juízes Federais, os Tribunais e pública, pela Mesa do Senado Federal ou
Juízes de Trabalho, Eleitorais e Militares pela da Câmara dos Deputados, por Mesa
e os Tribunais e Juízes dos Estados, do de Assembleia Legislativa, por Governador
Distrito Federal e dos territórios (art. 92). de Estado, pelo Procurador-Geral da Re-
O Supremo Tribunal Federal é composto pública, pelo Conselho Federal da Ordem
por 11 Ministros nomeados pelo Presidente dos Advogados, por partido político com
da República depois de aprovada a escolha representação no Congresso Nacional e por
pelo Senado (art. 101). confederação sindical ou entidade de classe

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de âmbito nacional [arts. 102-I, alíneas a), 15.  A Constituição de 1988 – apesar
1a parte, e p), e 103]; de escrita em português jurídico claro e
d) Acção declaratória de constitucionali- preciso – está longe de ser perfeita. É de-
dade de lei ou acto normativo federal [arts. masiado extensa e minuciosa em muitos
102-I, alínea a), 2a parte, e § 2o, e 103, § 4o]; aspectos e tem uma sistematização pouco
e)  Arguição de descumprimento de feliz, sobretudo no domínio dos direitos
preceito fundamental decorrente da Cons- fundamentais, por se aglomerarem num
tituição, a apreciar pelo Supremo Tribunal único artigo (o 5o) todas as liberdades e
Federal (art. 102, § 1o); garantias e por os direitos sociais (Capí-
f)  Acção de inconstitucionalidade por tulo II do Título II) aparecer separado da
omissão (art. 103, § 2o), tendo por fonte a ordem social (Título VIII). Por outro lado,
Constituição portuguesa; por enfrentar ou querer resolver todas as
g) Mandado de injunção [arts. 5o-LXXI questões, deixa às Constituições estaduais
e 102-I, alínea q)] a conceder “sempre que pequena possibilidade de variação e inova-
a falta de norma regulamentadora torne ção e, sob esse aspecto, acaba por ser, senão
inviável o exercício dos direitos e liber- centralizadora, pelo menos de tendência
dades fundamentais e das prerrogativas uniformizadora.
inerentes à nacionalidade, à soberania e à Vários sectores da opinião jurídica e
cidadania”. política têm‑na, por estes ou por outros mo-
A arguição de descumprimento de tivos, criticado e alguns – de linha conserva-
preceito fundamental (regulamentada pela dora – gostariam até de a reformar de alto a
Lei no 9.883, de 3 de Dezembro de 1999) baixo ou de a substituir por outra (também
poderia ser um meio de defesa de direi- à semelhança do que se tentou, sem êxito,
tos fundamentais, quando esgotados ou em Portugal em 1980 com a Constituição de
inviáveis outros meios, e aproximável da 1976). Mas essas vozes não a têm consegui-
Verfassungsbechwerde alemã. O mandado de do abalar – o que não significa que ela não
injunção um interessantíssimo mecanismo possa ser melhorada3.
de fiscalização concreta da inconstituciona- Os vinte anos de vigência da Consti-
lidade por omissão. tuição são vinte anos de democracia, de
14.  O Acto das Disposições Transitó- liberdade e de progresso económico‑social
rias estabeleceu igualmente que a revisão como o Brasil nunca antes conhecera. São
constitucional se efectuaria após cinco anos vinte anos de paz, em que foi possível a
contados de promulgação da Constituição, destituição, sem perturbação das institui-
pelo voto de maioria absoluta dos membros ções, de um Presidente da República em
do Congresso Nacional em sessão unica- processo de impeachment. São vinte anos de
meral (art. 3o). Era um regime distinto das afirmação progressiva de cidadania. E são,
emendas (art. 60), não sem parecença com o a despeito de todas as contrariedades, vinte
regime da primeira revisão da Constituição anos de abertura à esperança4.
portuguesa de 1976 e, como este destinado
(parece) a uma adaptação mais facilitada 3
Por exemplo: salvaguardar plenamente o Poder
das normas constitucionais depois de um Legislativo do Congresso e só consentindo em casos
excepcionais “as medidas provisórias” de que tanto
primeiro período de experiência. têm abusado os Presidentes da República; ou libertan-
Esta revisão frustrar-se-ia. Contudo, têm do o Supremo Tribunal Federal de inúmeras compe-
sido aprovadas sucessivas alterações avul- tências de menor alcance, para se consagrar, antes, às
sas, com particular relevo pela que admitiu funções de tribunal de constitucionalidade.
4
Foi ainda a Constituição de 1988 que propiciou
a reeleição para um segundo mandato do o desenvolvimento dos estudos constitucionais num
Presidente da República, dos Governadores surto sem precedentes e colocando a doutrina brasilei-
estaduais e dos Perfeitos Municipais. ra no cerne da comunidade juscientífica mundial.

Brasília a. 45 n. 179 jul./set. 2008 163


A Constituição não é apenas a Cons- ______ . A transição constitucional brasileira e o ante-
tituição‑cidadã, de que falava Ulysses projeto da comissão Afonso Irinos. Revista de Informa-
ção Legislativa, Brasília, a. 24, n. 94, abr./jun. 1987.
Guimarães. É, igualmente, a Constituição
da esperança. ______ . Manual de direito constitucional. Coimbra:
Coimbra, 2003. 2 v.
______ . Teoria do estado e da constituição. Rio de Janeiro:
Forense, 2002.
Referências
WACHOWICZ, Marcos. Poder constituinte e transição
MIRANDA, Jorge. A convocação da constituinte como constitucional. Curitiba: Juruá, 2000.
problema de controle constitucional In: ______ . O
direito. [S. l.: s. n], 1988.

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