Você está na página 1de 6

HistóriaS do Teatro Brasileiro

Angela de Castro Reis e Ana Luisa Lima

Na obra O roubo da História: como os europeus se apropriaram das


ideias e invenções do Ocidente (2008), o antropólogo e historiador Jack Goody
discute com contundência o viés etnocêntrico da maior parte da historiografia
ocidental, mostrando como os historiadores europeus se apropriaram das
conquistas de outras culturas, colocando-se como inventores de valores como
democracia, capitalismo, individualismo e amor. Observando que “deixar de
reconhecer as qualidades do outro é o melhor caminho para não se dar conta
do potencial dele” (2008, p.9), o cientista social expõe de modo veemente as
estratégias de dominação cultural perpetradas pelos europeus a partir da
conceituação do passado e sua apresentação de acordo com o que aconteceu
na escala provincial da Europa (frequentemente da Europa Ocidental), impondo
ao resto do mundo esta conceituação.
O que a obra de Goody nos ajuda a lembrar é que a escrita da História
traz sempre um ponto de vista, como igualmente aponta Mia Couto (2012, p.6),
apropriando-se de um provérbio africano: “Até que os leões inventem suas
próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de
caça”. Do mesmo modo, Millôr Fernandes faz um comentário bem humorado
sobre o tema:

A história é dos vitoriosos, isso já foi muito dito. O que não foi dito é que a história,
mais do que tudo, é de quem tem os melhores historiadores. Os romanos, por exemplo,
não iam chamar de finos e eruditos os países que, ocasionalmente, os venciam. Nunca
deram colher ao inimigo. Átila ficou na história como exemplo de monstruosidade e
primarismo intelectual porque obrigou os romanos a pedir penico – e não tinha um bom
press-release. Você conhece algum historiador huno? (FERNANDES, 1996, p.226.)

Como observa Goody, “há sempre uma tendência em organizar a


experiência a partir daquele que a examina, seja indivíduo, grupo ou
comunidade” (2008, p.15). Os registros são feitos sempre a partir de um ponto
de vista ideológico, sendo construídos, na maioria das vezes, por quem tem
mais educação formal, poder econômico, poder político, fazendo com que
certas histórias se tornam dominantes em detrimento de outras. Desse modo, é
importante entender os motivos pelos quais essa ou aquela produção foi vista
como mais importante ou modelar.

No Brasil, até o surgimento de programas de pós-graduação em Artes


Cênicas, Artes e Teatro nos anos 90 (e com mais intensidade a partir dos anos
2000) a bibliografia disponível sobre o teatro brasileiro do século XX voltava-se
prioritariamente para os grupos amadores, as companhias e os atores que no
fim da década de 30 e durante a década de 40 empenharam-se em uma
renovação da cena teatral, abandonando padrões que, remanescentes do
século XIX, firmaram-se nas primeiras décadas do século XX. Tal modelo
historiográfico tinha como ponto de partida o eixo Rio - São Paulo, sendo
marcante a escassez de registros acerca do teatro produzido em outras regiões
do país, em qualquer tempo; os textos fora deste padrão ficavam restritos a
seus locais de origem, praticamente não havendo circulação nacional de obras
acerca do teatro baiano, pernambucano, cearense, gaúcho ou amazonense
(para citar alguns exemplos). A História do Teatro Brasileiro editada por João
Roberto Faria, lançada em dois volumes (2012 e 2013) pela Editora
Perspectiva, de São Paulo, embora tenha dado uma importante contribuição à
história do teatro brasileiro, mais uma vez reforçou o “sudestecentrismo”
presente em nossa historiografia. Reunião de textos de importantes
pesquisadores de inúmeras universidades brasileiras, a publicação
praticamente ignorou movimentos, produções e acontecimentos teatrais
ocorridos em estados do país que não sejam Rio de Janeiro ou São Paulo.
No entanto, como docente na Escola de Teatro da Universidade Federal
da Bahia (UFBA) durante os anos de 2004 e 2010, a Profa. Dra. Angela de
Castro Reis vislumbrou um panorama diverso. Ao ministrar pela primeira vez a
disciplina História do Teatro Brasileiro na graduação do Curso de Artes
Cênicas, na Escola de Teatro da UFBA, foi preciso mostrar aos estudantes –
evidentemente muito interessados na história do teatro baiano - como a
escassez de bibliografia é um impedimento importante em algumas áreas de
pesquisa acerca do teatro brasileiro. Assim, a docente sugeriu que cada qual
escolhesse um tema de seu interesse e empreendesse uma pesquisa de fontes
documentais, encarregando-se individualmente ou em grupo de uma aula;
desse modo, o curso foi estruturado em dois módulos, sendo o segundo
dedicado ao teatro baiano, com seminários apresentados pelos discentes.

As pesquisas desenvolvidas então trouxeram à tona inúmeros objetos,


que formaram um rico e variado painel sobre a história do teatro baiano, do
século XIX até o século XXI: edifícios teatrais como o Teatro São João e o
Teatro Gamboa; atores como Xisto Bahia, Nilda Spencer, Mário Gusmão,
Harildo Deda; grupos como a Companhia de Teatro da UFBA, o Núcleo de
Teatro do TCA (Teatro Castro Alves), o Bando de Teatro Olodum, o Avelãz y
Avestruz; diretores como Márcio Meirelles e Fernando Guerreiro; grupos
teatrais ligados a ONGs – formando uma extensa lista que não pode ser citada
por completo.

A participação em bancas de mestrado e doutorado pelo Brasil, bem


como os encontros em Congressos como o da ABRACE – Associação
Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas – ou da ANPUH –
Associação Nacional de História – também permitiram à docente o contato com
pesquisas desenvolvidas em várias partes do Brasil, revelando novas e
importantes histórias que, no entanto, não têm a visibilidade desejada, já que
em sua maioria são divulgadas apenas em seus locais de origem.

Assim, buscando colaborar com uma história mais plural do teatro no


país, a pesquisadora organizou, em parceria com a também professora
universitária Ana Luisa Lima, profunda conhecedora da produção cultural no
Brasil, o Seminário HistóriaS do Teatro Brasileiro. O evento teve como objetivo
reunir estudiosos da história do teatro de diferentes regiões do Brasil, dando a
conhecer pesquisas que, contemplando diferentes tempos e espaços,
construíram um painel que se pode nomear como realmente brasileiro.

O Departamento SESC Nacional se mostrou o parceiro adequado à


realização dessa ideia, que não conseguiria ser concretizada com a dimensão
pretendida sem a participação da instituição. Além da abrangência em termos
nacionais, inerente à natureza do projeto, a proposição de ir para além da
montagem de um painel por regiões, integrando-as por meio dos aportes
tecnológicos oferecidos, permitiu que técnicos do SESC, profissionais da cena
e pesquisadores de todos os estados do país pudessem, a cada encontro, ter
uma percepção bastante aprofundada da História do Teatro de cada região
brasileira.

A difícil tarefa de dar visibilidade à ainda singular e desconhecida história


do teatro de cada região, respeitando suas especificidades, foi perseguida no
projeto com a possibilidade de, em tempo real, interagir com os palestrantes,
refletir sobre o tema e completar possíveis lacunas. Dessa maneira, não
apenas construiu-se um panorama de histórias acontecidas no passado, como
principalmente refletiu-se sobre práticas desenvolvidas no presente, integrando
e solidificando o conhecimento adquirido no painel plural oferecido pelas
Histórias do Teatro Brasileiro.

Beneficiando-se da estrutura dos regionais do SESC, o Seminário foi


organizado em cinco mesas, cada qual composta por três pesquisadores e
contando com a mediação de uma das duas curadoras. Em Belém,
participaram Denis Bezerra (PA), Michele Campos de Miranda (PA) e Nereide
Santiago (AM), com mediação de Ana Luisa Lima; em Salvador, Leidson Ferraz
(PE), Marcelo Costa (CE) e Reginaldo Carvalho (BA), com mediação de Angela
Reis; em Goiânia, Ana Paula Teixeira (GO), Elizângela Carrijo (BSB) e Fabrício
Moser (MS), com mediação de Angela Reis; em Florianópolis, Clóvis Massa
(RS), Vera Colaço (SC) e Walter Lima Torres (PR), com mediação de Ana
Luisa Lima; no Rio de Janeiro, Duílio Kuster Cid (ES), Fernando Mencarelli
(MG) e Fabiana Fontana (RJ), em mesa que, com mediação de Ana Luisa
Lima, contou ainda com uma fala de Angela Reis, que expôs e comentou o
percurso do Seminário.

Ao final do projeto, verificou-se que os encontros, muito mais do que


reforçarem singularidades de cada região ou localidade, foram atravessados
por temas comuns a vários locais e momentos da história teatral: o
amadorismo (muitas vezes nas modalidades estudantis ou universitárias);
modelos europeus de dramaturgia, atuação e encenação; a importância
decisiva dos edifícios para o estabelecimento da atividade teatral, bem como a
disputa pela ocupação desses espaços; a intensa circulação dos artistas, seja
em turnês ou em festivais; o papel central dos acervos documentais na
preservação da história teatral e as diversas metodologias que possibilitam o
acesso a estes, sendo a história oral uma das mais importantes; a intensa
relação entre a atividade artística e a situação política do país, destacando-se
as vicissitudes advindas da censura em períodos ditatoriais e de intensa
repressão aos direitos civis; a marcante presença do teatro feito em grupo a
partir dos anos 80 do século XX; e, por fim, o fecundo diálogo travado entre o
teatro e as Universidades, sendo estas instituições o motor e/ou centro da
atividade teatral em inúmeros locais do país. O fato de todos os palestrantes
serem oriundos e/ou docentes de Programas de pós-graduação reforça de
modo contundente o papel central das Universidades no desenvolvimento de
pesquisas com olhares múltiplos; contemplando outras geografias e
temporalidades, as apresentações trouxeram contribuições inestimáveis para a
construção de histórias descentralizadas do teatro brasileiro.

Se o século XX foi marcado pelos projetos de modernidade e pós-


modernidade nas artes, espera-se que no século XXI as implantações de redes
permitam que a produção do conhecimento local e específico possa se
horizontalizar. Tratando-se o Brasil de um país de dimensões continentais, é
preciso enfrentar a difícil tarefa de, percebendo as diferenças regionais,
integrar conhecimentos específicos, gerando uma produção diversa e global
oriunda do conhecimento adquirido tanto nas questões locais quanto por temas
pulsantes ao longo do tempo.

A partir do início dos anos 2000, apresentou-se no país uma clara


intenção de se conhecer e valorizar a diversidade cultural brasileira, desde a
preocupação na descentralização dos investimentos públicos nessa área, até o
reconhecimento da heterogeneidade estética e suas possíveis apropriações.
Durante o projeto foi possível perceber como o nosso teatro atravessa as
diferentes regiões e suas possíveis transversalidades, e que a produção teatral
brasileira é volumosa, abrangente e para muito além da região Sudeste.

Com efeito, mesmo que a realidade não fosse inesgotável, bastaria a necessidade
que tem cada geração, para tornar o conhecimento aquilo que ele é por natureza,
tentativa de explicar o homem e o mundo. O importante é tornar a linguagem comum em
carne, e osso, essa é a tarefa que cada geração tem de realizar, ao serem chamados a
repensar o mundo (SUASSUNA, 1975, p.39)
Desse modo, o Seminário Historias do Teatro Brasileiro construiu um
espaço de troca de saberes, formando não apenas um painel multifacetado da
nossa história teatral mas possibilitando uma visão muito ampla acerca da
cultura brasileira. Pois, como afirma Milton Santos, “o centro do mundo está em
todo lugar. O mundo é o que se vê de onde se está”. (In: TENDLER, 2006).

Referências

COUTO, Mia. A confissão da leoa. SP: Companhia das Letras, 2012.

FERNANDES, Millôr. Millôr definitivo: a Bíblia do caos. Porto Alegre: L&PM Editores, 1996.

GOODY, Jack. O roubo da História: como os europeus se apropriaram das ideias e invenções
do Ocidente. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. Recife: Editora Universitária (UFPE), 1975.

TENDLER, Silvio. O mundo global visto do lado de cá. Documentário, 2006.

Você também pode gostar