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Edicao 8 Artigo 5 PDF
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Resumo
O artigo realiza uma leitura da série televisiva House M.D., em linhas gerais, tendo
por base o ideário teológico de Jürgen Moltmann sobre morte e esperança. Destaca-
se a relação pós-moderna com o sofrimento e a enfermidade, onde estas situações
são mascaradas por um estilo de vida consumista e voltado para as aparências.
Recorre-se aos personagens e situações da série televisiva como arquétipos
destas realidades humanas, buscando-se uma leitura teológica de atitudes,
diálogos e situações em geral de forma semiótica e desconstrutiva. Destaca-se o
pensamento teológico de Jürgen Moltmann sobre o lugar do corpo na Tradição
Cristã, bem como o sentido escatológico do sofrimento e da recuperação da saúde.
Palavras-chave:
: House MD, Moltmann, morte, esperança.
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Visões nº.7 - p. 2 - julho / dezembro 2009
Abstract
The article provides a reading of the television series House MD, generally
speaking, based on the ideas of Jürgen Moltmann theology about death and
hope. It highlights the postmodern relationship with suffering and disease,
where these situations are masked by a consumer lifestyle and returned to the
appearances. It is through the characters and situations of the television series as
archetypes of these human realities, seeking a theological reading of attitudes,
situations and dialogues in general in a semiotic and deconstructive way. We
highlight the theological thought of Jürgen Moltmann on the place the body in the
Christian Tradition, and the eschatological sense of suffering and restore health.
Keywords:
House MD, Moltmann, death, hope.
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Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora
N
uma apologia à crueldade, mostra-
a tradição de longevas se exatamente o contrário com o
series televisivas que desenvolvimento das tramas da
imortalizam personagens, série: o personagem se revela uma
o Dr. Gregory House vem pessoa em conflito com o mundo
trilhando um caminho que o coloca e com a vida, uma vez que sofre
no imaginário pós-moderno. O de dores crônicas em uma de suas
personagem, interpretado pelo pernas e que, por causa disso,
ator inglês Hugh Laurie poderia acabou viciando-se em analgésicos.
ser mais um entre tantos médicos Na crise de seu sofrimento, ele
que protagonizaram dramas reconhece o sofrimento alheio
hospitalares no cinema e na TV, e testa seus próprios limites ao
mas revela-se inédito em sua investigar os limites dos pacientes.
personalidade e na forma como É nesta dimensão que se dá, então,
aborda os problemas cotidianos sua interação com o enfermo:
com os pacientes que são ao não acreditar em palavras e
colocados em suas mãos, em busca aparências1 , comunica-se com o
da salvação de suas vidas. Exibida profundo da pessoa em sofrimento
nos Estados Unidos pela Fox desde e ajuda-a a decidir sobre sua vida
novembro de 2004 e, no Brasil, e morte. Neste ponto, revela-se um
pelo Universal Channel – na TV conteúdo teológico que perpassa as
por assinatura – e pela Rede Record histórias, muitas vezes, de forma
– na TV aberta – a série já está em explícita. Dizendo-se ateu, House
sua sexta temporada e vem sendo questiona qualquer tipo de crença,
uma das mais assistidas do mundo. mas é interpelado profundamente
sobre o mistério da existência em
O personagem principal, que sua trajetória de vida. Tal fato
dá nome à série, é um médico é importante em uma sociedade
1. Dois de seus
jargões mais famo- diagnologista considerado um gênio secularizada, onde o discurso de fé
sos são “Everibody em sua área, que chefia a principal se encontra banido para o âmbito
lies!”(Todo mundo
mente!) e “People equipe de especialistas do Hospital íntimo pessoal e a teologia foi
don’t change!” (A pes- Escola Princeton-Plainsboro. Ao exilada dos discursos científicos
soas não mudam!).
contrário de outros personagens do relevantes (MOLTMANN, 2004,
mesmo contexto, porém, Gregory p.45-46): mesmo que não seja de
House é misantropo, antissocial e forma intencional, a inclusão de
politicamente incorreto. Em sua uma reflexão teológica no mass-
90 dinâmica de trabalho, recusa-se media sempre acaba provocando
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Reino de Deus e sua Justiça que Deus que acontece no livro de Jó.
experimentam, de forma totalizante
A ira de Deus me ataca e me dilacera,
e totalizadora. Em um mundo range os dentes contra mim e crava em
de “autoconsumação” e sem mim os seus olhos hostis. Abrem contra
mim a boca e me esbofeteiam com
expectativas de transformação, suas afrontas, todos em massa contra
estas ações curativas de Cristo mim. Deus me entrega como presa aos
perversos, e me entrega na mão dos
parecem coisas irreais e fora de injustos. Eu vivia tranqüilo, e ele me
contexto; à luz da promessa de esmagou. Agarrou-me pela nuca e me
triturou, fazendo de mim o seu alvo.
vida glorificada de Deus, porém, Com seus arqueiros ele me rodeou,
elas são mera conseqüência da me atravessou os rins sem piedade,
e derramou por terra o meu fel. Abriu
presença dEle em meio à sua minha carne com mil brechas, e como
própria criação. Ao expulsar a guerreiro me assaltou. (Jó 16, 9-14)
possibilidade do caótico na vida, o
Verbo Encarnado possibilita que se Assim como Jó, a existência
volte a sonhar e projetar o futuro de House parece se tornar um
na confiança de um Deus-Amor constante perguntar pela justiça:
atento e alentador de suas criaturas em suas atitudes, meticulosidade
(MOLTMANN, 2007, p. 83-85). e aspereza, por vezes transparece
o grito de um injustiçado, que não
Esta é uma realidade custosa compreende porque o mal se abateu
para o personagem principal da sobre sua vida (MOLTMANN,
série, o Dr. Gregory House, que 2007, p. 74-75). Sua atitude,
teve um músculo extirpado da porém, não é de resignação à sua
perna em consequência de um situação, mas de esforço para
diagnóstico médico errado. Com deter este mesmo mal na vida de
as dores constantes amenizadas outros. Neste ponto parece se
pela ingestão compulsiva de encontrar uma grande riqueza
analgésicos, ele acaba obcecado por teológica: quando House expressa
acertar sempre seus diagnósticos, seu ceticismo e seu ateísmo, a
mesmo que, para isso, tenha favor de uma visão clara e lógica
que se opor a toda lógica da da realidade, ele acaba colocando
medicina que exerce, ou, melhor em cheque aquilo que está
dizendo, encontrar outras lógicas institucionalizado em nossa cultura
e possibilidades. Um dos fios quanto à fé e à esperança. Isto fica
condutores da série, aliás, é o visível explícito, por exemplo, quando ele
incômodo que sua enfermidade conversa com uma paciente sua
lhe causa e sua esperança de que acredita estar sendo testada por
fazer sua perna voltar ao normal. Deus em sua doença. Ele lhe diz:
Descrente de qualquer coisa que
“Você pode ter a fé quer quiser em
não possa ser comprovada, ele espíritos, em vida após a morte,
acaba tornando sua existência no paraíso e no inferno, mas se
tratando desse mundo, não seja
uma expressão do conflito com idiota. Porque você pode me dizer que 95
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deposita sua fé em Deus para viver menino, que faria uma doação de
bem o seu dia, mas quando chega
a hora de atravessar a rua, eu sei medula para seu irmão – que sofre
que você olha para os dois lados.”4 de leucemia – acaba adoecendo
e ficando também à beira da
Esta “não-ingenuidade” no morte. Não havendo mais tempo
ato de crer vai ao encontro do hábil para reverter o quadro dos
pensamento de Moltmann (2004, dois, é o irmão leucêmico que
p. 27) quando se refere à fé como acaba tendo que salvar a vida do
“incredulidade superada”, ao invés outro com o sacrificio da sua. O
de “protoconfiança ingênua” . diálogo de House com o jovem
enfermo, na tentativa de convencê-
lo a fazer o sacrifício por seu
irmão mostra bem este sentido:
4. A MORTE MUDA TUDO
“Não vai adiantar. Você está morrendo.
Nada vai mudar isso. A medicação
só ameniza as coisas. Quatorze anos
no planeta, a maior parte do tempo
sofrendo. Morrer antes de aprender
Muitas são as vezes em que Gregory a dirigir, antes de tirar o sutiã de uma
garota, antes de beber uma cerveja...
House se refere à morte como Acredite, você perdeu muita coisa.
“única doença que não pode ser Coisas muito boas. Deve ser difícil
acreditar em Deus ou justiça, ou num
curada”. Ao mesmo tempo, porém, bem maior. Mas sua vida não precisa ser
as narrativas da série mostram um em vão. Você pode salvar seu irmão.”
valido a pena, mas ela terá todo o moderno se desespera diante da dor,
seu valor revelado no seu sacrifício do fracasso, da doença e da morte
para que a vida do outro valha. exatamente por depositar suas
Sem dúvida, uma lição bastante esperanças em sua autosuficiência.
difícil de ser aprendida em um Parece ser urgente uma educação
contexto consumista, imediatista para a realidade humana: uma
e moralista como o nosso. aprendizagem do alterocentrismo
e da centralidade dos próprios
Uma outra dimensão que se limites, para, a partir daí, tornar-
depreende neste exemplo é o de se próximo do outro e tratar de
assumir-se como próximo do suas feridas, mesmo quando as
outro com todas as incoerências e proprias feridas continuam doendo.
limitações que se possa ter, ao invés
de procurar alguém que “precise
de nossa ajuda”. Provavelmente,
aí esteja o diferencial da atitude 5. REFERÊNCIAS
de Gregory House: ele sabe que
o quem tem a oferecer é sua
sagacidade e competência em
medicina e que isso independe Videografia
dele ser “politicamente correto” ou
não. Quando se trata de lidar com a HOUSE MD. Fox / Universal
proximidade da morte, não há mais Studios. Criador: David Shore.
tempo ou espaço para convenções, Produção: Katie Jacobs, David
pois muitas destas mesmas Shore, Paul Attanasio, Bryan
convenções servem apenas como Singer, Russel Friend, Garrett
um medicamento que ameniza Lerner e Thomas L. Moran
a dor mas não cura a doença. – Fox. Elenco: Hugh Laurie,
Lisa Edelstein, Robert Sean
A vida humana é biológica tal como
outra vida que a si mesmo se reproduz.
Leonard, Jennifer Morrison,
A humanidade desta vida consiste no Jesse Spencer, Omar Epps, Peter
facto de que ela é recebida, afirmada
e que ela é, enquanto tal, uma vida
Jacobson, Kal Penn, Olivia Wilde.
interessada. A força para ser pessoa
reside na total afirmação e no amor
sem reservas a esta frágil e mortal
vida. (MOLTMANN, 2007, p. 87) Bibliografia
Experiências de Reflexão
Teológica – Caminhos e
Formas da Teologia Cristã. São
Leopoldo: UNISINOS, 2004.
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