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Revista Científica da Faculdade Salesiana Maria Auxiliadora

HOUSE MD: quando a morte


desperta esperança – uma leitura
desde a teologia de Jürgen
Moltmann

RENATO FERREIRA MACHADO


Doutorando em Teologia Faculdades Est, São Leopoldo –RS
Professor de Antropologia Cultural e Antropologia Religiosa
Da Faculdade Dom Bosco – Porto Alegre - RS
Coordenador da Pastoral Universitária da Faculdade Dom Bosco

Resumo
O artigo realiza uma leitura da série televisiva House M.D., em linhas gerais, tendo
por base o ideário teológico de Jürgen Moltmann sobre morte e esperança. Destaca-
se a relação pós-moderna com o sofrimento e a enfermidade, onde estas situações
são mascaradas por um estilo de vida consumista e voltado para as aparências.
Recorre-se aos personagens e situações da série televisiva como arquétipos
destas realidades humanas, buscando-se uma leitura teológica de atitudes,
diálogos e situações em geral de forma semiótica e desconstrutiva. Destaca-se o
pensamento teológico de Jürgen Moltmann sobre o lugar do corpo na Tradição
Cristã, bem como o sentido escatológico do sofrimento e da recuperação da saúde.

Palavras-chave:
: House MD, Moltmann, morte, esperança.
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Visões nº.7 - p. 2 - julho / dezembro 2009

HOUSE MD: quando a morte


desperta esperança – uma leitura
desde a teologia de Jürgen
Moltmann

RENATO FERREIRA MACHADO


Doutorando em Teologia Faculdades Est, São Leopoldo –RS
Professor de Antropologia Cultural e Antropologia Religiosa
Da Faculdade Dom Bosco – Porto Alegre - RS
Coordenador da Pastoral Universitária da Faculdade Dom Bosco

Abstract
The article provides a reading of the television series House MD, generally
speaking, based on the ideas of Jürgen Moltmann theology about death and
hope. It highlights the postmodern relationship with suffering and disease,
where these situations are masked by a consumer lifestyle and returned to the
appearances. It is through the characters and situations of the television series as
archetypes of these human realities, seeking a theological reading of attitudes,
situations and dialogues in general in a semiotic and deconstructive way. We
highlight the theological thought of Jürgen Moltmann on the place the body in the
Christian Tradition, and the eschatological sense of suffering and restore health.

Keywords:
House MD, Moltmann, death, hope.
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a ter contato humano com seus


pacientes e, quando isso acontece,
coloca-lhes a verdade de forma
1. INTRODUÇÃO nua, crua e irônica. O que pode
parecer, em um primeiro momento,

N
uma apologia à crueldade, mostra-
a tradição de longevas se exatamente o contrário com o
series televisivas que desenvolvimento das tramas da
imortalizam personagens, série: o personagem se revela uma
o Dr. Gregory House vem pessoa em conflito com o mundo
trilhando um caminho que o coloca e com a vida, uma vez que sofre
no imaginário pós-moderno. O de dores crônicas em uma de suas
personagem, interpretado pelo pernas e que, por causa disso,
ator inglês Hugh Laurie poderia acabou viciando-se em analgésicos.
ser mais um entre tantos médicos Na crise de seu sofrimento, ele
que protagonizaram dramas reconhece o sofrimento alheio
hospitalares no cinema e na TV, e testa seus próprios limites ao
mas revela-se inédito em sua investigar os limites dos pacientes.
personalidade e na forma como É nesta dimensão que se dá, então,
aborda os problemas cotidianos sua interação com o enfermo:
com os pacientes que são ao não acreditar em palavras e
colocados em suas mãos, em busca aparências1 , comunica-se com o
da salvação de suas vidas. Exibida profundo da pessoa em sofrimento
nos Estados Unidos pela Fox desde e ajuda-a a decidir sobre sua vida
novembro de 2004 e, no Brasil, e morte. Neste ponto, revela-se um
pelo Universal Channel – na TV conteúdo teológico que perpassa as
por assinatura – e pela Rede Record histórias, muitas vezes, de forma
– na TV aberta – a série já está em explícita. Dizendo-se ateu, House
sua sexta temporada e vem sendo questiona qualquer tipo de crença,
uma das mais assistidas do mundo. mas é interpelado profundamente
sobre o mistério da existência em
O personagem principal, que sua trajetória de vida. Tal fato
dá nome à série, é um médico é importante em uma sociedade
1. Dois de seus
jargões mais famo- diagnologista considerado um gênio secularizada, onde o discurso de fé
sos são “Everibody em sua área, que chefia a principal se encontra banido para o âmbito
lies!”(Todo mundo
mente!) e “People equipe de especialistas do Hospital íntimo pessoal e a teologia foi
don’t change!” (A pes- Escola Princeton-Plainsboro. Ao exilada dos discursos científicos
soas não mudam!).
contrário de outros personagens do relevantes (MOLTMANN, 2004,
mesmo contexto, porém, Gregory p.45-46): mesmo que não seja de
House é misantropo, antissocial e forma intencional, a inclusão de
politicamente incorreto. Em sua uma reflexão teológica no mass-
90 dinâmica de trabalho, recusa-se media sempre acaba provocando
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possibilidades de discussão de pessoas busca seus parâmetros


questões a ela relacionadas. de relação intra e interpessoal
nestas produções artísticas e
Neste sentido, é preciso levar que personagens carismáticos
em consideração que o mundo como o Dr. House inegavelmente
ocidental é profundamente influenciam comportamentos
marcado pela Tradição Cristã, e visões sobre a vida.
como experiência de fé, e pelo
ideário Iluminista europeu, como
experiência de organização
sociopolítica. Por isso, as 2. SER HUMANO, SER
produções artísticas que circulam COMO DEUS
nos grandes meios de comunicação,
de certa forma, acenam para as
grandes buscas e anseios deste
complexo social. Neste caso As narrativas da Criação dos
específico, a série aborda grandes textos sagrados revelam um
problemáticas humanas – doença, Deus em processo criativo,
sofrimento e morte – propondo expressando um pleno-amor do
encaminhamentos diferenciados qual só pode se originar a vida.
para elas. É no fato de fazer Ao chamar cada criatura pelo
uma grande crítica à cultura de nome, vai confirmando a bondade
superficialidade e simulacro de intrínseca de sua obra, com a
aparências que se tem cultivado na qual o caos vai tomando forma e
pós-modernidade, que House M.D. o nada começa a ser. Quando se
provoca teologia: no hospital da trata do humano, porém, há outros
série, médicos e pacientes precisam detalhes e atributos que parecem
chegar às suas questões últimas, ser exclusivos: nesta criatura do
desnudando o humano que busca sexto dia reconhece-se a imagem e
sentido para a vida em meio ao semelhança com o próprio Deus, ao
sofrimento. A verdade libertadora mesmo tempo em que se deixa claro
e a esperança, porém, não são que este mesmo ser foi erguido do
apresentadas como amenidades solo da terra. Homem e mulher são
2. Pode-se encon-
para o problema. Pelo contrário, na duplos em unidade: masculino e trar similaridade
ação de Gregory House todos são feminino, últimos a serem criados desta dinâmica em
Jo 5, 5-9, onde Jesus
levados a assumir suas contradições e primeiros a reconhecerem a pergunta ao paralíti-
para buscar a salvação, inclusive criação como paraíso, criaturas co se ele deseja ser
curado, colocando,
ele2 . Neste contexto, faz- com responsabilidade divina, assim, a responsabi-
se necessário identificar esta imagem da toda criação e lidade pessoal no pro-
cesso de libertação.
problematização teológica e imagem do criador, eucarísticos
propor seu aprofundamento, e sacerdotais, vivos que sabem de
uma vez que grande parte das sua própria morte. É nesta condição 91
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que se constrói, existencialmente, – redescobrindo-se como “pó,


a liberdade humana. Ao saber-se que ao pó voltará” (Gn 3, 19).
capaz, o ser humano também toma
consciência das consequências de Um “ser-como-Deus”, certamente
seus atos, vivendo sempre as “dores não se conformará com sua queda.
do parto” de suas próprias criações Não podendo mais realizar aquilo
(SUSIN, 2003, p. 129-136). que fazia antes da enfermidade,
buscará afirmação em seu discurso
Para um ser que projeta o mundo e em seus códigos de ética. Isso
a partir de seus sonhos e valores, fica bastante claro, por exemplo,
o reconhecimento de limites no episódio “Controle”3 , no qual a
sempre traz sofrimento e a morte presidente de uma grande empresa
sempre parece injusta. O momento é acometida por um “mal súbito”
em que o caos primordial parece durante uma importante reunião
arrastar a existência para antes de negócios. Quando começa a
da criação causa temor – por sentir a estranheza da doença em
saber-se inevitável – e transforma seu corpo, ela segue a reunião
muitas existências em fuga para normalmente, até seu limite de
lugar nenhum (ALVES, 1988, tolerância à dor e ao desconforto.
p. 133-134). Pensando-se por Após encerrar diplomaticamente
este viés, é interessante constatar o encontro, chama sua assistente
que os episódios da série House pelo celular, com a palavra help:
MD, quase que invariavelmete, seu sofrer não pode ser público,
se iniciem mostrando situações uma vez que sofrer não está no rol
do cotidiano, sem nenhuma de qualidades necessárias a uma
referência ao que virá depois ou executiva de alta performance
mesmo ao núcleo de personagens quanto esta personagem. A única
centrais da trama. Em seu dia-a- a saber é sua assistente direta que,
dia, as pessoas são surpreendidas durante a internação hospitalar e
por algum quadro patológico que tratamento, manterá os negócios
as impede de continuar em sua em dia. Diante deste quadro, o
3. Control – primeira
rotina e, de certa forma, acena Dr. Gregory House recusa-se a ter
temporada, episó- para o fim de sua existência. Não contato com a paciente, exatamente
dio 14, exibido pela
primeira vez nos Es-
havendo diagnóstico claro, o por entender que ela não conseguirá
tados Unidos em 15 enfermo é encaminhado para a fazer uma avaliação sincera
de março do 2005
e, no Brasil, em 14
equipe de Gregory House, que fará dela mesma, tão absorvida que
de julho de 2005. investigações em busca das causas está pelas funções que assumiu.
e tratamentos para a doença. Em Sua investigação se dá de forma
uma relação simbólica, ali está o indireta, através daquilo que mais
ser que vive como imagem de Deus lhe incomoda: a “pose” mantida
– consciente, capaz, imaginativo pela paciente, mesmo diante de
92 e criador através de seu trabalho uma grave doença que pode lhe
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tirar a vida. Quando chega ao


House: Eu quero saber o que é correto.
diagnóstico final da enfermidade,
House tem um único e emblemático Paciente: Eu valho tudo isso? Você
me acha patética. Alguém que tem
diálogo com ela. Tendo descoberto um bom emprego e tudo que quer,
que todo o quadro de saúde era mas não gosta da própria aparência.

conseqüência de bulimia e da House: Pare de se esconder! Estou


ingestão de um medicamento perguntando se quer viver ou morrer.
Pode ao menos me responder? (...)
que ajudava a disfarçar os sinais Quero que me diga que sua vida
do distúrbio alimentar, o que é importante para você, porque
eu não sei. Porque é o que está
levara a um quadro agudo de em jogo neste momento. Sua vida.
disfunção cardíaca e à necessidade
de um transplante, o médico Ora, não é por acaso que o episódio
comunica a situação à paciente. se intitula Controle: ao tentar manter
tudo sob controle em sua carreira,
House: Você precisa de um
transplante de coração. em nome do sucesso profissional,
a personagem perdeu a noção de
Paciente: Eu me exercito... corro...
valores sobre a sua própria vida.
House: Você se corta! (...) A abordagem de Gregory House,
Paciente: Não entendo então, acaba desconstruindo aquilo
o que isso tem a ver... que dá a ela, atualmente, um
House: Você sofre de intensa bulimia e parâmetro existencial: a crença de
se obriga a vomitar. Tinha que descobrir que tudo tem um preço e de que as
uma maneira eficiente de vomitar
sem dar sinais de bulimia, o que seria coisas só valem a pena quando dão
inadequado para alguém em sua posição. bons resultados. É o que House
questiona: é possível medir o valor
Ele continua, então, dizendo que o da vida dela, em termos financeiros?
comitê de transplantes se reunirá É um “bom negócio” garantir um
para discutir o caso dela e que ele transplante para alguém que pode
terá de falar sobre a bulimia e as acabar se matando para manter as
condições psicológicas da paciente, aparências? Impotente diante da
o que provavelmente a excluirá situação, a personagem verbaliza
da lista de candidatos a recepção sua vontade de continuar vivendo.
de órgãos. House diz, então, que
pode mentir para o comitê, mas
que isso arriscaria a carreira dele.
De forma sarcástica, ele diz que 3. PERGUNTAR POR
seria uma boa oportunidade para DEUS NO SOFRIMENTO
que ele pedisse uma propina.

House: Quanto acha que vale a sua


vida? Quanto vale o meu trabalho?
Perder o controle sobre o próprio
Paciente: Por que veio fazer
isso comigo? O que você quer? corpo coloca em cheque todos 93
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os projetos de futuro que se pode uma cultura individualista, porém,


ter. Pensar o futuro como projeto, este projeto de futuro pode acabar
aliás, é característica intrínseca da sendo um mero arremedo do
mística judaico-cristã: acredita- projeto de vida originário, presente
se em um Deus que promete na ação criadora de Deus. Da
vida e se revela no tempo, promessa, passa-se ao progresso
diferenciando passado e presente e do sonho de vida, passa-se ao
ao apontar a plenitude que virá. sonho de consumo. Neste ambiente
a corporeidade e a saúde adquirem
Sob o signo da promessa de Deus,
a realidade é experimentada como
o status de funcionalidade, pois o
história. O campo de ação daquilo trabalho perde seu caráter criativo
que enquanto história é inserido
dentro da experiência, da lembrança
para assumir o paradigma da
e da esperança, é produzido, torna-se produtividade. Nesta criação
manifesto e é modelado pela promessa.
(MOLTMANN, 1971, p. 117)
humana só se chega ao tempo
sabático por acidente, como
De certa forma, se é mais humano acontece à personagem supracitada.
na medida em que se pode projetar Tem-se, assim, um ser segregado
a vida com esperança para o porvir. às trevas de suas impossibilidades,
Esta herança do Povo da Aliança procurando mostrar a luz de suas
e dos seguidores de Jesus vem próprias conquistas ao preço de,
parar na cultura ocidental como muitas vezes, sacrificar aquilo que
busca de possibilidades mediante tem de mais importante. Tem-se,
a força de trabalho e a exploração aqui, a abertura para a dimensão
de recursos naturais. Por isso, o soteriológica da economia divina.
mundo moderno é inaugurado
exatamente quando o ser humano Esta dimensão aparece nas
se torna “independente” da Terra narrativas sinóticas no destaque
e de seus ciclos, em uma clara à manifestação do poder curativo
distorção dos valores abraâmicos de Jesus Cristo: mais do que
(MOLTMANN, 1999, p. 74-75): se um simples “conserto de saúde”
antes era Deus quem prometia e, por operado pelo Filho de Deus,
sua Graça, colocava o ser humano é uma reinserção da criatura
em movimento para a promissão, humana no “concerto da criação”,
agora é a própria criatura que uma vez que a enfermidade
projeta, promete e se justifica aparece nos Evangelhos como
em busca da “realização” de sua uma “desafinação” com a própria
vida. Ora, como imago Dei este essência humana, que é ser imagem
ser é capaz de prometer e assumir de Deus. Por isso, homem e mulher,
suas promessas e, de certa forma, sob o olhar do Messias, encontram-
vai construindo sua liberdade se enfermos e não pecadores e,
exatamente quando realiza aquilo ao experimentar a presença de
94 que imagina e deseja. Inserido em Jesus, é a própria presença do
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Reino de Deus e sua Justiça que Deus que acontece no livro de Jó.
experimentam, de forma totalizante
A ira de Deus me ataca e me dilacera,
e totalizadora. Em um mundo range os dentes contra mim e crava em
de “autoconsumação” e sem mim os seus olhos hostis. Abrem contra
mim a boca e me esbofeteiam com
expectativas de transformação, suas afrontas, todos em massa contra
estas ações curativas de Cristo mim. Deus me entrega como presa aos
perversos, e me entrega na mão dos
parecem coisas irreais e fora de injustos. Eu vivia tranqüilo, e ele me
contexto; à luz da promessa de esmagou. Agarrou-me pela nuca e me
triturou, fazendo de mim o seu alvo.
vida glorificada de Deus, porém, Com seus arqueiros ele me rodeou,
elas são mera conseqüência da me atravessou os rins sem piedade,
e derramou por terra o meu fel. Abriu
presença dEle em meio à sua minha carne com mil brechas, e como
própria criação. Ao expulsar a guerreiro me assaltou. (Jó 16, 9-14)
possibilidade do caótico na vida, o
Verbo Encarnado possibilita que se Assim como Jó, a existência
volte a sonhar e projetar o futuro de House parece se tornar um
na confiança de um Deus-Amor constante perguntar pela justiça:
atento e alentador de suas criaturas em suas atitudes, meticulosidade
(MOLTMANN, 2007, p. 83-85). e aspereza, por vezes transparece
o grito de um injustiçado, que não
Esta é uma realidade custosa compreende porque o mal se abateu
para o personagem principal da sobre sua vida (MOLTMANN,
série, o Dr. Gregory House, que 2007, p. 74-75). Sua atitude,
teve um músculo extirpado da porém, não é de resignação à sua
perna em consequência de um situação, mas de esforço para
diagnóstico médico errado. Com deter este mesmo mal na vida de
as dores constantes amenizadas outros. Neste ponto parece se
pela ingestão compulsiva de encontrar uma grande riqueza
analgésicos, ele acaba obcecado por teológica: quando House expressa
acertar sempre seus diagnósticos, seu ceticismo e seu ateísmo, a
mesmo que, para isso, tenha favor de uma visão clara e lógica
que se opor a toda lógica da da realidade, ele acaba colocando
medicina que exerce, ou, melhor em cheque aquilo que está
dizendo, encontrar outras lógicas institucionalizado em nossa cultura
e possibilidades. Um dos fios quanto à fé e à esperança. Isto fica
condutores da série, aliás, é o visível explícito, por exemplo, quando ele
incômodo que sua enfermidade conversa com uma paciente sua
lhe causa e sua esperança de que acredita estar sendo testada por
fazer sua perna voltar ao normal. Deus em sua doença. Ele lhe diz:
Descrente de qualquer coisa que
“Você pode ter a fé quer quiser em
não possa ser comprovada, ele espíritos, em vida após a morte,
acaba tornando sua existência no paraíso e no inferno, mas se
tratando desse mundo, não seja
uma expressão do conflito com idiota. Porque você pode me dizer que 95
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deposita sua fé em Deus para viver menino, que faria uma doação de
bem o seu dia, mas quando chega
a hora de atravessar a rua, eu sei medula para seu irmão – que sofre
que você olha para os dois lados.”4 de leucemia – acaba adoecendo
e ficando também à beira da
Esta “não-ingenuidade” no morte. Não havendo mais tempo
ato de crer vai ao encontro do hábil para reverter o quadro dos
pensamento de Moltmann (2004, dois, é o irmão leucêmico que
p. 27) quando se refere à fé como acaba tendo que salvar a vida do
“incredulidade superada”, ao invés outro com o sacrificio da sua. O
de “protoconfiança ingênua” . diálogo de House com o jovem
enfermo, na tentativa de convencê-
lo a fazer o sacrifício por seu
irmão mostra bem este sentido:
4. A MORTE MUDA TUDO
“Não vai adiantar. Você está morrendo.
Nada vai mudar isso. A medicação
só ameniza as coisas. Quatorze anos
no planeta, a maior parte do tempo
sofrendo. Morrer antes de aprender
Muitas são as vezes em que Gregory a dirigir, antes de tirar o sutiã de uma
garota, antes de beber uma cerveja...
House se refere à morte como Acredite, você perdeu muita coisa.
“única doença que não pode ser Coisas muito boas. Deve ser difícil
acreditar em Deus ou justiça, ou num
curada”. Ao mesmo tempo, porém, bem maior. Mas sua vida não precisa ser
as narrativas da série mostram um em vão. Você pode salvar seu irmão.”

“morrer em processo”, no qual


vidas vão sendo mudadas a partir
da sinalização de fragilidades A grande questão que parece
existenciais manifestadas no corpo. surgir aqui é esta: quando, afinal,
No contexto em que é produzida, a vida vale a pena? Ou, ainda:
esta série parece mexer com o quando é que não se vive em vão?
4. Damned if you Do grande ponto fraco da civilização Estes questionamentos podem
– primeira tempora-
da, episódio 5, exibi- ocidental pós-industrial, que é o se traduzir na pergunta feita pelo
do pela primeira vez de exilar a morte para um âmbito doutor da lei a Jesus, em Lc 10,
nos Estados Unidos
em 14 de dezembro de desintegrado da vida e, por isso 25: O que devo fazer para herdar
2004 e, no Brasil, em mesmo, criar uma cultura de medo a vida eterna? A resposta vem em
12 de maio de 2005.
e terror referente a ela. O cultivo forma de novas perguntas (Lc
5. Family – terceira de uma vida vazia pode levar a 10, 26) e de uma história onde
temporada, episó-
dio 21, exibido pela uma morte vazia, na qual se fica se revela quem é o “próximo”, a
primeira vez nos ante a desesperadora situação de quem se deve um amor tão grande
Estados Unidos em
01 de maio de 2007 tornar tudo o que foi vivido em e verdadeiro quanto a si mesmo
e, no Brasil, em 02 esquecimento e perceber-se que (Lc 10, 29-37): aquele que usa de
de agosto de 2007.
nada fez sentido. Esta questão se misericórdia para com o outro.
traduz na situação retratada no Esta é a provocação que House faz
96 episódio Familia5 , no qual um ao paciente: sua vida parece não ter
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valido a pena, mas ela terá todo o moderno se desespera diante da dor,
seu valor revelado no seu sacrifício do fracasso, da doença e da morte
para que a vida do outro valha. exatamente por depositar suas
Sem dúvida, uma lição bastante esperanças em sua autosuficiência.
difícil de ser aprendida em um Parece ser urgente uma educação
contexto consumista, imediatista para a realidade humana: uma
e moralista como o nosso. aprendizagem do alterocentrismo
e da centralidade dos próprios
Uma outra dimensão que se limites, para, a partir daí, tornar-
depreende neste exemplo é o de se próximo do outro e tratar de
assumir-se como próximo do suas feridas, mesmo quando as
outro com todas as incoerências e proprias feridas continuam doendo.
limitações que se possa ter, ao invés
de procurar alguém que “precise
de nossa ajuda”. Provavelmente,
aí esteja o diferencial da atitude 5. REFERÊNCIAS
de Gregory House: ele sabe que
o quem tem a oferecer é sua
sagacidade e competência em
medicina e que isso independe Videografia
dele ser “politicamente correto” ou
não. Quando se trata de lidar com a HOUSE MD. Fox / Universal
proximidade da morte, não há mais Studios. Criador: David Shore.
tempo ou espaço para convenções, Produção: Katie Jacobs, David
pois muitas destas mesmas Shore, Paul Attanasio, Bryan
convenções servem apenas como Singer, Russel Friend, Garrett
um medicamento que ameniza Lerner e Thomas L. Moran
a dor mas não cura a doença. – Fox. Elenco: Hugh Laurie,
Lisa Edelstein, Robert Sean
A vida humana é biológica tal como
outra vida que a si mesmo se reproduz.
Leonard, Jennifer Morrison,
A humanidade desta vida consiste no Jesse Spencer, Omar Epps, Peter
facto de que ela é recebida, afirmada
e que ela é, enquanto tal, uma vida
Jacobson, Kal Penn, Olivia Wilde.
interessada. A força para ser pessoa
reside na total afirmação e no amor
sem reservas a esta frágil e mortal
vida. (MOLTMANN, 2007, p. 87) Bibliografia

Esta vida biológica, que a série


mostra como vida em relação e em
busca de sentido, é pergunta que ALVES, Rubem. O Enigma da
espera resposta e totalidade em Religião. Campinas: Papirus, 1988.
busca de unidade. Cultivando uma
solidão desértica, o ser humano pós- MOLTMANN, Jürgen. 97
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Experiências de Reflexão
Teológica – Caminhos e
Formas da Teologia Cristã. São
Leopoldo: UNISINOS, 2004.

MOLTMANN, Jürgen. No fim,


o início - breve tratado sobre a
esperança. São Paulo: Loyola, 2007.

MOLTMANN, Jürgen. O Espírito


da Vida. Petrópolis: Vozes, 1999.

MOLTMANN, Jürgen. O que é


a Vida Humana? Antropologia
e desenvolvimento biomédico.
Humanística e Teologia.
Porto, tomo XXVIII, fascículo
1 / 2, p. 67-87, dez. 2007.

MOLTMANN, Jürgen. Teologia


da Esperança – Estudo sobre os
fundamentos e as conseqüências
de uma Escatologia Cristã.
São Paulo: Herder, 1971.

SUSIN, Luiz Carlos. A Criação de


Deus. São Paulo: Paulinas, 2003.

98

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